IMPLICAÇÕES DECORRENTES DO ESTUDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SEGUNDO OS MAGISTÉRIOS DE HANS KELSEN, MIGUEL REALE E WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO Gustavo Henrique Velasco Boyadjian1 Resumo: O presente trabalho tem por escopo abordar perspectivas acerca dos direitos fundamentais, segundo os ensinamentos Hans Kelsen, Miguel Reale e Willis Santiago Guerra Filho. Palavras–Chave: Direitos Fundamentais, Hans Kelsen, Miguel Reale e Willis Santiago Guerra Filho. Sumário: 1. Considerações iniciais 2. Hans Kelsen, a teoria pura do direito e os direitos fundamentais 3 Miguel Reale, a teoria tridimensional e os direitos fundamentais 4. Os direitos fundamentais e o magistério de Willis Santiago Guerra Filho 5. Considerações finais 6. Referências. 1. Considerações iniciais Para que possamos discorrer acerca de quaisquer perspectivas dos direitos fundamentais, devemos inicialmente buscar compreender o significado e o alcance do instituto. Consistem os direitos fundamentais em uma categoria especial de obrigações que encontram sua síntese na solidariedade entre os homens. São aqueles que salvaguardam a 1 Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Franca, Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Uberlândia, Professor da Universidade Federal de Uberlândia, da UNIPAC – Campus Araguari e da UNIUBE – Campus Uberlândia. Advogado. 2 dignidade humana no desenvolvimento das relações sociais. Representam situações reconhecidas juridicamente que possibilitam que consigamos ficar mais próximos de um direito ideal, justo e humano. Segundo Canotilho, são direitos de defesa dos cidadãos, os quais devem ser compreendidos sob dois enfoques: 1 – Constituem, num plano jurídico-objectivo, em normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; 2 – Implicam, num plano jurídico-objectivo, poder de exercer positivamente direitos fundamentais ( liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos ( liberdade negativa)”2 . Os direitos fundamentais asseguram aos homens o respeito ao seu direito à vida, à liberdade, à igualdade, à dignidade, dentre outros, bem como ao pleno desenvolvimento da sua personalidade3. Garantem, ainda, a não ingerência do Estado na esfera do indivíduo e consagram a dignidade humana4, razão pela qual a sua proteção deve ser reconhecida positivamente pelos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais. 2 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 541. Entende-se por personalidade a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. 4 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.3. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 51. 3 3 O ramo do direito destacado para tratar os direitos fundamentais, a organização e funcionamento estatais, bem como os direitos de garantia dos cidadãos é o direito constitucional. Jorge Miranda Neto define referido ramo do direito como sendo: a parcela da ordem jurídica que rege o próprio Estado enquanto comunidade e enquanto poder. É o conjunto de normas (disposições e princípios) que recordam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao Estado-poder , e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder os modos de formação e manifestação da vontade política, os órgãos de que esta carece e os atos em que se concretiza5 Pertinente também, ainda a título introdutório, ser feita a diferenciação entre direitos fundamentais, direitos humanos e os direitos da personalidade. Os direitos fundamentais, segundo o ensinamento de Sarlet6, correspondem aos direitos do ser humano, reconhecidos e positivados em esfera constitucional de determinado Estado. Os direitos humanos, por seu turno, guardam semelhança com os documentos de direito internacional, sem estar vinculados à determinada ordem constitucional de um Estado. São válidos universalmente e seu caráter é supranacional. Com relação aos direitos da personalidade, sua tutela jurídica encontra fundamento em dois níveis, um de natureza constitucional, relativo 5 MIRANDA, Jorge, 1990 apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 31. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraris do Advogado, 2006, p. 35 e 36. 4 aos princípios da sociedade, e o outro decorrente da legislação ordinária. São aqueles que asseguram às pessoas o poder de proteção das características mais relevantes de sua personalidade. Tratam-se de direitos subjetivos identificados com os valores essenciais da pessoa humana, abrangendo tanto aspectos de cunho moral, físico e intelectual. Carlos Alberto Bittar assim os define: são os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.7 Uma característica essencial dos direitos fundamentais é a chamada universalidade, ou seja são aplicáveis a todos, respeitado-se unicamente as características resultantes das normas jurídicas serem espaço-temporais . 2. Hans Kelsen, a teoria pura do direito e os direitos fundamentais Em face da sociabilidade humana, torna-se necessário que as condutas possam ser disciplinadas, a fim de que haja a prescrição dos comportamentos proibidos, de modo a dirimir os conflitos inerentes à vida em grupo. Percebemos a existência de duas modalidades distintas de normas, as jurídicas e as morais. 7 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6 ed. rev., atual. e compl. de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 1. 5 Ambas, além de serem imperativas, possuem uma mesma base ética, visto que buscam disciplinar as condutas humanas, entretanto, só a jurídica é autorizante, porque dá ao lesado por sua violação o direito de exigir o seu cumprimento ou a reparação do mal proporcionado Podemos concluir que as normas jurídicas possuem o caráter da bilateralidade, uma vez que impõe um padrão comportamental a uma pessoa, e autorizam o lesado a exigir o dever criado. As normas morais, por sua vez, são unilaterais, apenas prescrevem um comportamento, sem dar margem para que a pessoa lesada faça uso de qualquer meio legal para que se tenha seu cumprimento. Ainda sobre o assunto, ressaltamos que o direito, ou seja as normas jurídicas, possuem como características a coercibilidade e a heteronomia (são obrigatórias e quando de seu descumprimento dão margem a aplicação de sanção), ao passo que as normas morais são denominadas como sendo autônomas. Segundo a visão de Hans Kelsen, a validade de uma norma jurídica positivada é completamente independente de sua aceitação pelo sistema de moral instalado, e a validade das normas jurídicas não corresponde à ordem moral. Conclui que inexiste a obrigatoriedade do direito se enquadrar dentro dos ditames impostos pela moral. A ciência do direito não tem a função de promover a legitimação do ordenamento jurídico pelas normas morais existentes, devendo unicamente conhecê-lo, e descrevê-lo de forma genérica, hipotética e abstrata. Kelsen preconiza que o direito deve ser estudado exclusivamente a partir das idéias de normatividade e validade, e que seu campo de estudo não se confunde com o da ética, que seria a ciência dirigida ao conhecimento da moral. Daí podermos concluir que, segundo o magistério kelseniano, as normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito ao passo que as normas morais são unicamente objeto de estudo da ética como ciência. 6 O estudo do ordenamento jurídico não pode ser centrado no que é moral ou imoral, no que é justo ou injusto, mas unicamente no que é válido ou não, sobre o lícito e o ilícito. Para Kelsen o direito é um sistema normativo responsável por regular a conduta humana; uma ciência de normas e proposições; um conjunto normativo de estrutura hierárquica no qual as normas superiores fundamentam a validade das inferiores, que se amoldam aos ditames e diretrizes traçados pelas primeiras. A ética é uma ciência autônoma do direito, encarregada de estudar e discutir as normas morais e não as normas jurídicas. Cumpre-nos enquadrar os direitos fundamentais no quadro de direito descrito por Kelsen. Na visão do jurista, os referidos direitos estão enquadrados dentro dos chamados direitos políticos, "que são a capacidade de influir na formação da vontade do Estado, o que quer dizer: de participar - direta ou indiretamente - na produção da ordem jurídica - em que a "vontade do Estado" - , se exprime(...)8. São apontados como direitos político-fundamentais, o direito à igualdade perante as normas, a liberdade da propriedade, a liberdade da pessoa, a liberdade de opinião, a liberdade de consciência – incluindo a liberdade religiosa- e a liberdade de associação e reunião, bem como a liberdade de manifestação9, todos, sem exceção, constitucionalmente permitidos e, em alguns casos assegurados. 8 9 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 155. Tais garantias seriam dadas pelas constituições modernas. 7 3. Miguel Reale, a teoria tridimensional e os direitos fundamentais Miguel Reale entende haver a existência de duas ordens distintas de realidade. A primeira delas é chamada de realidade natural, e a outra de realidade humana, cultural ou histórica10. Na realidade cultural, ou seja no mundo construído, existe a participação intencional do homem, que implementa construções sobre o mundo dado. Tais modificações recebem o nome de cultura. Para Reale, cultura seria: o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.".11 Toda e qualquer construção cultural, inclusive o direito, é uma construção valorativa, que encontra no indivíduo seu valor inicial, seu valor fonte. Reale defende a existência de dois tipos distintos de normas éticas, as normas morais e as jurídicas. Ambas têm uma mesma base ética, qual seja o comportamento humano. Ocorre que somente as segundas são heterônomas, bilaterais e, por isso, autorizantes. Os valores que condicionam o surgimento das normas são variáveis, e intimamente ligados ao momento histórico, o que permite que concluamos que todo e qualquer direito, 10 11 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 23. REALE, Miguel. Op.cit., p. 25. 8 inclusive os fundamentais, surgidos ou protegidos pelas normas estão suscetíveis aos valores socialmente desenvolvidos. Para Reale as normas estão condicionadas a três fatores básicos que interagem entre si, formando a chamada dialética da implicação. O primeiro fator ou elemento é o normativo, que caracteriza o ordenamento jurídico que tem como função traçar normas de conduta de modo a disciplinar o comportamento social. O segundo fator a ser comentado é o fático. As normas jurídicas têm como função disciplinar fatos sociais. O terceiro aspecto é o axiológico ou valorativo. As normas jurídicas que disciplinam os fatos sociais estão o condicionadas a valores desenvolvidos em dado momento histórico. As normas têm o condão de proteger valores sociais de modo a disciplinar os fatos. Trata-se do direito como valor de justiça. O estudo e a conjugação destes elementos resultou no desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito. Os direitos fundamentais, já definidos quando da introdução deste trabalho, bem como as normas jurídicas que os garantem, são resultado da conjugação dos elementos fato, valor e norma. 4 Os direitos fundamentais e o magistério de Willis Santiago Guerra Filho Willis Santiago Guerra Filho segue como referencia para teoria defendida em sua obra Processo Constitucional e os Direitos Fundamentais, o modelo tridimensional denominado “modelo DREIER-ALEXI”, onde se destacam as dimensões analítica, empírica e normativa, no estudo dogmático do direito. Propõe a adoção do referido modelo "como referencial básico, sem 9 por isso deixar de introduzir modificações que o torne compatível com idéias próprias em epistemologia jurídica (...)12 O modelo DREIER-ALEXI é uma tentativa de conciliação entre o positivismo normativista, o positivismo sociológico ou realismo, e o jusnaturalismo. Willis Santiago Guerra Filho adota a expressão dimensões de direitos fundamentais em substituição as chamadas gerações de direitos fundamentais, alegando que o que se passa com os ditos direitos fundamentais não é uma mudança de geração, mas simplesmente o fato de que assumem outra dimensão Defende o autor que a norma jurídica não é a única forma de expressão dos direitos fundamentais. Isto porque a Constituição Federal (topo da pirâmide kelseniana) entre seus artigos 1º a 4º preconizou os princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil. Por princípios devemos compreender como sendo alicerces, bases de sustentação. São os pilares de sustentação de todo o ordenamento jurídico. Por tal razão não se pode aceitar quaisquer atos que venham a violar os princípios constitucionais. O artigo 5º, § 2° do referido diploma demonstra os fatos ora alegados13. Para Guerra Filho, não se trata de afirmar que existem direitos fundamentais que não estejam positivados, visto que os princípios já integram o ordenamento jurídico. O que ocorre, é que inexistem normas específicas para todos os bens juridicamente protegidos por nossa Constituição. Questão muito interessante no trabalho de Willis Santiago Guerra Filho é a forma como trabalha a diferenciação entre normas regras e normas princípios. As primeiras encarregam-se de descrever "estados-de-coisa" formado por um fato ou um certo número deles, enquanto os 12 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Celso Bastos, 1999, p. 34. 13 Diz o § 2º do art. 5º da Constituição Federal: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios nela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 10 princípios mencionam diretamente valores protegidos, razão pela qual têm um grau mais elevado de generalidade e abstração do que as regras. Para o autor, o estudo da Constituição deve vir acompanhado do conhecimento dos princípios constitucionais, bem como dos direitos fundamentais assegurados por nosso ordenamento, de modo que possamos compreender tais temas de forma sistemática e interdisciplinar. 5. Considerações finais Os direitos fundamentais se materializaram em textos escritos com o movimento constitucionalista, que objetivava a limitação do poder do Estado, protegendo, dessa forma, o particular contra as formas de interferência estatal. Os direitos fundamentais, muitas vezes em razão dos pensamentos estudados no presente trabalho, acabaram por gerar reflexos tanto de cunho ético quanto filosófico. Constata-se haver pontos de concordância entre os pensamentos dos três juristas, tal como a necessidade da positivação normativa para a caracterização dos direitos fundamentais, bem como o papel da ética enquanto criadora de normas de conduta. Ademais, restou claro que o tema é bastante complexo, visto estar diretamente ligado a busca de um direito ideal. 6. Referências BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 6 ed. rev., atual. e compl. de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva,1997. 11 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Celso Bastos, 1999. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1998. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 21.ed. São Paulo: Saraiva, 1994. ______________. Filosofia do Direito. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1996. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.