TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3ª CÂMARA CÍVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO N° xxxxxxxxx
ORIGEM: xxxxxxxxx
AGRAVANTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
AGRAVADO: xxxxxxxxxx
RELATORA: DESª. MATILDE CHABAR MAIA
RICARDO ALBERTON DO AMARAL
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul
O presente Parecer, da lavra do Procurador de Justiça, Ricardo
Alberton do Amaral, ilustra de forma brilhante a necessidade do cuidado
no trato de liminares envolvendo sequestro de valores sob a argumentação
de tutela do direito à saúde. A concessão indiscriminada de liminares
permite que, por vezes, alguns beneficiários vejam a tutela excepcional
de tal direito como uma oportunidade obtenção fácil de recursos, nem
sempre tendo consciência da excepcionalidade da medida, bem como a
finalidade específica desses recursos. Em razão dos desdobramentos do
caso, decorrente, diga-se, do brilhante e responsável Parecer; os nomes e
demais elementos identificadores dos envolvidos foram riscados.
Max Möller
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Agravo de instrumento. Saúde. Sucessivas ordens de bloqueio
nas contas públicas com as respectivas expedições de alvará a
paciente que não comprovou padecer das enfermidades alegadas.
Impositiva a proibição de nova ordem de bloqueio de valores.
Prestação de contas que não se presta ao fim pretendido, pois,
além da total falta de organização na sua elaboração, contém
comprovantes demonstrando a existência de gastos completamente
divorciados do objeto da ação. Rejeição que se impõe. Nulidade da
ação por falta de citação do Estado que não merece ser reconhecida,
face ao comparecimento espontâneo do ente público nos autos.
Elementos constantes do feito que merecem análise acurada dessa
Corte. Sugestão de remessa de cópia de inteiro teor à CorregedoriaGeral de Justiça.
1. Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo Estado do Rio Grande
do Sul diante de decisão que, nos autos da ação ordinária contra ele ajuizada
por xxxxxxxxxxxxx, afastou a alegação de ausência de citação do ente público;
entendeu não ter havido alteração do pedido formulado pelo autor e, por fim,
julgou boas as contas por este prestadas.
Em razões, o Estado sustenta não ter sido regularmente citado na ação, estando
o processo tramitando à sua revelia, inclusive com a expedição de inúmeros
alvarás em favor do agravado para levantamento de dinheiro. Argumenta, de
outro lado, que o autor modificou diversas vezes o pedido objeto da ação, o
que não se mostra possível em face da legislação processual vigente. Sustenta
a impossibilidade de haver bloqueio de valores nas contas públicas, por ferir
a independência e a autonomia dos poderes. Requer o provimento do agravo.
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Concedido, em parte, o efeito suspensivo reclamado, com o fim de suspender
a homologação das contas apresentadas pelo autor, bem como de impedir
a determinação de novos bloqueios de valores, manifestou-se a magistrada
singular, ocasião em que juntou cópias do processo e esclareceu ter iniciado a
presidir o feito apenas em 09 de janeiro próximo passado.
Após, vieram os autos a esta Procuradoria de Justiça para parecer.
É o brevíssimo relatório.
2. O recurso é adequado e tempestivo, pelo que deve ser conhecido.
A situação que se verifica no presente feito é de todo inusitada, sendo
por vezes difícil de acreditar nos fatos ocorridos. Por tal motivo, é preciso
compreender este processo de forma global antes de se proceder à análise do
mérito das razões recursais.
Com efeito, em 15 de maio de 2007 o agravado ajuizou ação ordinária contra
o Estado buscando o custeio de exame de ressonância magnética com contraste,
cujo valor alcançava, à época, R$ 2.340,00. Segundo a inicial, o exame se faria
necessário em virtude da doença denominada fibromialgia que acometia o autor.
Em vista de o pedido ter sido instruído com laudos médicos que comprovavam
as alegações do autor, foi deferida a medida liminar então requerida (fl. 28).
Aparentemente não cumprida espontaneamente a decisão pelo Estado, foi
determinado o bloqueio nas contas públicas do valor equivalente ao custo do
exame.
Neste momento, os fatos começaram a ficar nebulosos.
Em 03 de julho de 2007, o autor peticionou referindo a necessidade de realizar
uma bateria de exames na cidade de São Paulo, no Hospital Albert Einstein,
no dia 06 de julho de 2007, para que, no dia 03 de agosto seguinte, pudesse
ser submetido a uma cirurgia que lhe traria “significativas melhoras”. Assim,
pediu a liberação de R$ 2.605,24 para “seguimento do processo de reabilitação
da saúde e melhora do autor” (fl. 33).
Como facilmente se infere dos autos, em nenhum momento o autor especificou
qual cirurgia seria realizada, tampouco o motivo pelo qual deveria ser feita na
cidade de São Paulo e em um dos hospitais mais caros do país. Efetivamente,
não há notícias da espécie de cirurgia realizada, nem se poderia, ou não, ser feita
no Rio Grande do Sul.
Junto com sua petição, o autor colacionou um “atestado” (fl. 34) no qual
entendeu justificado o montante cuja liberação mediante alvará requereu em
juízo. A bem da verdade, este “atestado” nada mais é do que uma espécie
de orçamento em que são descritos os possíveis gastos que ele teria com a
viagem: passagem de avião, consulta com o Dr. José Goldemberg, ônibus, táxi e
alimentação. Contudo, chama atenção o fato de este “atestado” ter sido firmado
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pela médica que atende junto à Prefeitura, que, conforme dito, estabeleceu os
valores que o autor necessitaria para custear as passagens, a alimentação, o táxi,
o hotel, etc. Não se sabe qual a legitimidade que uma médica atuante junto à
prefeitura municipal tem para produzir orçamentos de viagem...
Entretanto, não é apenas isto que chama atenção no referido documento,
muito menos no processo.
Com efeito, as despesas sempre foram projetadas considerando os gastos do
autor e de um acompanhante. Entretanto, não há qualquer elemento nos autos
que evidencie a necessidade de o autor ter companhia 24 horas, até porque não
se pode perder de vista ser ele maior e capaz, conforme faz prova a procuração
de fl. 19, por ele assinada.
Pois bem. Referido pedido foi acolhido pelo Magistrado, que, de pronto,
sem sequer oportunizar o cumprimento espontâneo da decisão, determinou
o bloqueio de valores nas contas públicas, conforme se percebe da decisão
lançada à fl. 35 e do alvará sacado pelo autor à fl. 36v.
Com relação à cirurgia realizada, nada mais foi dito...
Poucos dias depois, o autor requereu a expedição de novo alvará, desta
vez para liberação de R$ 1.565,24, os quais seriam necessários para custear as
despesas relativas à “internação agendada” para o dia 10 de julho no Albert
Einstein (fl. 37). Novamente nenhuma explicação foi dada, nenhum laudo foi
juntado aos autos, nenhuma evidência da doença foi constatada.
Além dos motivos apontados, a petição também causa estranheza em razão
do aparente conflito de datas. Na petição anterior (de apenas seis dias antes), o
autor disse que realizaria bateria de exames na cidade de São Paulo, no dia 06
de julho de 2007. Apenas quatro dias depois pediu lhe fossem alcançados mais
R$ 1.565,24, os quais seriam necessários para custear seu retorno à cidade de São
Paulo. Embora sem qualquer justificativa plausível para a súbita necessidade de
nova viagem, o pleito foi, no mesmo dia, acolhido pelo magistrado, ocasião em
que restou determinada a expedição de alvará (fl. 45).
Tanto já não bastasse, dois dias depois da liberação de R$ 1.565,24 (isso
sem contar os valores que já haviam sido alcançados ao autor), o demandante
peticionou novamente requerendo a liberação de mais R$ 3.500,00, supostamente
relativos a gastos suplementares junto ao Hospital Albert Einstein. O bloqueio
de valores nas contas do Estado, por sua vez, foi determinado no mesmo dia (fl.
48v).
Relatando a necessidade de ser submetido com urgência a uma consulta préagendada para o dia 28 de setembro de 2007 (termos que parecem um tanto
quanto contraditórios), pediu o autor a liberação de mais R$ 6.662,50, cujo alvará
sacou no dia 27 de setembro (fls. 50/53). O orçamento no qual está baseado o
valor requerido pelo autor novamente apresenta uma peculiaridade: foi firmado
pela Assistente Social da Prefeitura. Não se atina o motivo pelo qual ela foi a
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responsável por estabelecer os valores necessários à aquisição das passagens (de
avião, para o autor e acompanhante), ao pagamento de táxi, hospedagens, etc,
assim como fora feito no “atestado” anterior firmado pela médica da prefeitura.
Outro ponto curioso é o fato de constar do próprio orçamento da prefeitura
o nome da agência para qual deveria ser realizado o depósito (Ferreira Turismo
Ltda.), fornecendo, ainda, os dados necessários à sua efetivação
Após sacar mais de dezesseis mil reais das contas públicas, o autor postulou
a liberação de mais R$ 55.532,75 (fls. 54/55), já que necessitava urgentemente
ser submetido a tratamento clínico (igualmente no Albert Einstein) para
artrite reativa. Por tal motivo, deveria permanecer internado no hospital por
vinte e cinco dias em apartamento individual, com acompanhamento médico
permanente. Novamente deferido o pedido, o valor total gasto pelo Estado com
o tratamento do autor (que até hoje não se sabe exatamente em que consistiu)
alcançou a vultosa cifra de R$ 138.614,07.
Pois bem. Não se discute que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
tampouco se questiona a ineficiência das políticas públicas, as quais é sabido
serem insuficientes para conferir ao cidadão os meios necessários à sua digna
sobrevivência. Por tal motivo, firmou-se entendimento de que, nos casos em
que a saúde do cidadão está periclitante, a medida excepcional de bloqueio nas
contas públicas é viável, até por ser medida menos onerosa do que a imposição
de astreintes.
Entretanto, há que se ter bom senso na determinação de sequestro de verbas
públicas, que apenas se justifica em casos excepcionais e quando demonstrado o
efetivo perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.
Entretanto, há que se ter bom senso na determinação de sequestro de verbas
públicas, que apenas se justifica em casos excepcionais e quando demonstrado o
efetivo perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.
Data maxima venia, nada disso se verifica no caso dos autos, onde o que
ocorreu foram concessões desenfreadas e injustificadas de alvarás judiciais
para levantamento de vultosas quantias em dinheiro, sem que sequer se tenha
oportunizado ao Estado o cumprimento espontâneo das ordens judiciais. Aliás,
as determinações judiciais consistiram única e exclusivamente na imediata
determinação de bloqueio de valores e de expedição de alvará, no mais das
vezes sem a correlata e indispensável fundamentação.
Mercê de os requisitos necessários à concessão de medida liminar jamais terem
sido provados pelo autor, todos os pedidos por ele levados a efeito com base
única e exclusivamente na sua argumentação foram deferidos pelo magistrado,
em decisões que, com todo respeito, são completamente lacônicas.
Pelos motivos expostos, é imperioso que essa Corte proceda à análise acurada
dos fatos subjacentes à propositura deste agravo, devendo cópia dos autos ser
remetidas à Corregedoria-Geral de Justiça para adoção das medidas que julgar
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necessárias.
Com efeito, além dos pontos já assinalados, a “prestação de contas”
apresentada pelo autor mais parece um emaranhado de papéis do que qualquer
outra coisa. Mesmo assim, análise um pouco mais detida da documentação por
ele apresentada bem demonstra a farra havida com dinheiro público.
Não se pretende esgotar a análise da denominada “prestação de contas” –
até porque, para isso, seria necessária a ajuda de um profissional - mas apenas
transcrever, a título exemplificativo, algumas das despesas do autor pagas pela
sociedade. Confira-se:
- consulta oftalmológica (R$ 350,00, fl. 58);
- exame no Laboratório do Sono (R$ 690,00, fl. 59);
- quitação de plano dentário (R$ 2.950,00, fl. 61);
- recibo de consulta médica com a Dra. Luciana Maria Sarin, datado de 25
de outubro de 2007, no valor de R$ 2.480,00 (fl. 128). Aparentemente, referese tratamento com médica psiquiatra. Não há nos autos, entretanto, qualquer
indicação de tratamento psiquiátrico ao autor;
- R$ 450,00 gastos em consulta com a Dra. Eliova Zuilerman, que
aparentemente atende no Hospital Einstein. Não há referência à especialidade
da médica tampouco às razões da consulta (fl. 127);
- recibo de R$ 90,00 referente a consulta particular com o “Dr. Heitor” em
nome de Pablo Cristiano Lemos Quintano (fl. 134);
- do recibo do Hotel Confort em SP (R$ 119,90) consta o nome de Márcio
Daniel Bergamn. Não é o pai do autor, conforme identidade de fl. 18. Há, ainda,
despesas de frigobar (fl. 140);
- conta de telefonemas interurbanos no total de R$ 131,65 (fl. 70);
- pedidos de filé mignon, escalopes parisiense - fl. 80;
- gastos com tortas, diversos cafés, chocolates, suco de abacaxi com hortelã
(fls. 78, 79), brigadeiros (fl. 148), três buffets em um único almoço (fl. 149), bem
casado, sunday no Mc Donald’s (fl. 151), CIGARROS (PASME-SE) (fl. 152),
quatro lanches na mesma tarde (fl. 153), treze almoços e jantas (fl. 177), três ou
quatro refrigerantes por refeição;
- no dia 16.07.07 há comprovante de cinco almoços. Os recibos da parte
superior direita e o da inferior esquerda da fl. 79 contemplam, cada um,
dois almoços. Na página seguinte (fl. 80) há outro comprovante de almoço,
igualmente no dia 16.07.07;
Veja-se:
*2 Buffet de massas e salada (mais refrigerante e café) às 13:57,
totalizando R$ 59,00 (fl. 79);
*2 Buffet de massas e salada (mais refrigerante e café) às 16:17,
totalizando R$ 59,00 (fl. 79);
*1 Buffet de massas e salada (mais refrigerante e café) às 14:03,
totalizando R$ 29,50 (fl. 80). Conclusão: no dia 16 de julho de 2007, o
autor almoçou cinco vezes;
- conta de almoço totalizando R$ 73,90: pedidos de filé mignon, strogonoff,
brigadeiro, cafés (tudo na mesma refeição): fl. 148;
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- gastos com lavanderia do hospital (fl. 88);
- gastos com sessões de acupuntura, fisioterapia, avaliação fisiátrica,
termoterapia, hidroterapia que alcançam R$ 8.532,62, sem sequer um atestado
nos autos (fls. 95/96);
- radiologia dentária: R$ 52,75 (fl. 126).
- contrato de implante e prótese firmado com clínica odontológica: R$
4.230,00 (fl. 130);
- nas despesas com medicamentos, o autor relaciona “Vick”, omeprazol e
sandália (fls. 137/138);
SANDÁLIA!!!
- não se sabe a que título foram efetuados dois depósitos na conta de Ferreira
Turismo Ltda., já que todas as despesas do autor foram custeadas em separado
pelo Estado, como demonstrado até mesmo pelos recibos por ele trazidos. Como
se vê da fl. 113, foram feitos dois depósitos para referida empresa: um de R$
1.176,48 e outro de R$ 620,00. O depositante foi o pai do autor;
- despesas com o Hospital Moinhos de Vento no valor de R$ 18.205,12 (fl.
89) e R$ 240,00 (fl. 88). Não se sabe a que se referem, tampouco há qualquer
comprovante de pagamento nos autos.
Consoante se denota do rol supra, gize-se, colhido dos autos à guisa meramente
exemplificativa, a natureza dos gastos do autor é completamente incompatível
com o objeto da ação, mormente ao se considerar que seu objetivo inicial era o
de compelir o Estado a custear exame de ressonância magnética. À evidência,
houve não só alteração do pedido como também total irresponsabilidade na
disponibilização das verbas públicas, considerando que as despesas do autor
transbordaram por completo o limite do razoável.
Assim, a rejeição da “prestação de contas” apresentada pelo autor é medida
impositiva, pois, além de os comprovantes por ele trazidos serem totalmente
dissociados do objeto da ação, não há como negar a ausência dos comprovantes
de inúmeras despesas por ele relacionadas. A desordem dos recibos, ademais,
é generalizada, não sendo possível analisar se estão de acordo com as alegadas
necessidades do autor.
Registre-se, por fim, que a nulidade da ação por falta de citação do Estado foi
corretamente afastada pela eminente Relatora, já que, à luz da jurisprudência
pátria, o comparecimento espontâneo aos autos supre a formalidade do ato
citatório.
4. Ante o exposto, o parecer é pelo parcial provimento do agravo, a fim
de ser rejeitada a prestação de contas apresentada pelo agravado, bem como a
alegação de nulidade da ação por ausência de citação. De outro lado, deve ser
proibida a determinação de nova ordem de bloqueio nas contas públicas, com
encaminhamento de cópia dos autos, por fim, à Corregedoria-Geral de Justiça.
Porto Alegre, 30 de abril de 2009.
Ricardo Alberton do Amaral
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