Dolo eventual e culpa consciente no homicídio de trânsito
(1)
O reinado da Teoria Volitiva versus o primado da Teoria Cognitiva:
A aplicação do dolo eventual, ou, então, da culpa consciente, mormente em condutas atreladas ao
trânsito, é um problema dos mais tormentosos no Direito penal 1. Isso se deve ao fato de grande parte da
doutrina penal pátria buscar a diferenciação entre os delitos doloso e culposo no conceito tradicional de
dolo, como conhecimento e vontade de realização de uma ação típica, contaminando, assim, o
entendimento jurisprudencial, que valora em demasia a teoria volitiva.
Ocorre que para um entendimento mais moderno, o dolo não é conhecimento e vontade, mas
unicamente conhecimento da realização de uma ação típica. Essa mudança conceitual foi observada por
parte da doutrina penal e na sequência será trabalhada com o fim de comprovar que a distinção entre as
duas figuras delitivas se deve verificar sobre o plano do conhecimento do perigo criado pelo agente (art.
20), ou seja, num plano cognitivo, rechaçando-se qualquer teoria da vontade (art. 18, I), mormente pela
carência de fundamento e pelas constantes mudanças de paradigma para justificar as diversas soluções às
espécies de dolo. Prossigo detalhadamente.
A teoria volitiva pretende fundamentar o dolo à margem de qualquer critério normativo, pois
desnecessário quando assenta seu conteúdo principal na premissa psicológica da vontade, entendida na
linguagem cotidiana como querer a realização do tipo objetivo 2.
É o que ocorre no caso em que a esposa quer matar o marido, quando alertada da traição. Para tanto,
dirigindo em alta velocidade sua caminhonete, invade o jardim no qual aquele estava com a amante,
atropelando-o fatalmente. Ela responderia por homicídio doloso, pois o tipo objetivo foi realizado e
decorreu de sua vontade. No entanto, e se a esposa, ao contrário, não mais invadisse o jardim da casa, mas
resolvesse danificar os freios do veículo no qual o marido estava com a outra mulher dirigindo-se ao
único motel da cidade localizado numa curva ao final de acentuado declive, desejando vingar-se
unicamente daquele a quem dedicou toda a sua vida, sem nada desejar a amante, falecendo esta,
responderia por homicídio culposo? O não querer o tipo objetivo para essa vítima, pela premissa inicial,
ensejaria esta conclusão. E essa solução seria justa?
Os próprios defensores da teoria volitiva respondem negativamente, atribuindo maior censura à
esposa a despeito do resultado não desejado, até porque o julgou negativamente, pois deduzem que ela
assumiu uma postura psíquica na qual estava de acordo com a possível morte da amante3 e com
fundamento nessa ampliação afastam qualquer alegação de sua parte no sentido de não ter querido
psicologicamente a morte da outra mulher, ainda que isso seja a mais pura verdade 4.
1
2
3
4
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 309.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 33. Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de
Direito Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 309.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 35.
Santos, Humberto Souza. “Problemas Estruturais do Conceito Volitivo de Dolo”, in Temas de Direito Penal. Luís Greco e Danilo Lobato
(coords.). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 270.
Em síntese, o dolo eventual foi pensado para não permitir a punição de condutas mais graves a título
de simples culpa, pois, em que pese o conhecimento do perigo de realização típica, a esposa não desistiu
de seu comportamento. A circunstância de ela aprovar internamente a realização do tipo penal – postura
psíquica de estar de acordo – é equivalente ao querer a sua realização.
Ocorre que nem a doutrina majoritária e nem a jurisprudência pátria informam qual o conteúdo desta
“aprovação interna” para justificar sua existência. Simplesmente a primeira segue a teoria do
consentimento ou da anuência na qual é imprescindível a posição interna do agente 5 e a segunda segue o
mero saber legal 6. A propósito, vide precedente do Superior Tribunal de Justiça:
“Caracteriza-se o dolo do agente, na sua modalidade eventual, quando este pratica ato do qual
pode evidentemente resultar efeito lesivo (no caso, morte), ainda que não estivesse nos seus
desígnios produzir aquele resultado, contudo tendo assumido claramente, com a realização da
conduta o risco de provocá-lo (art. 18, I, CP)” (STJ, 5ª Turma, Recurso especial n. 912.060-DF, rel.
(para acórdão) Min. Napoleão Maia Filho, DJ 10/03/2008).
E disso resulta o seguinte pensamento doutrinário, ventilado aos quatro cantos: “se o agente representa
a possibilidade do resultado lesivo e confia na sua não verificação, estará configurada a culpa consciente e
não o dolo eventual” 7. Este postulado, além de nada resolver, porque também no dolo eventual era possível
a esposa acreditar que a morte da outra mulher não ocorreria 8, é muitíssimo perigoso, pois, como o
intérprete não consegue adentrar na mente da autora 9, transfere a esta o poder de definir se aprovou o risco
do resultado ou se confiou seriamente na sua não verificação. Em síntese, “estaria o direito abrindo mão de
sua competência” 10.
Para evitar uma resposta que todos sabem ao questionamento do juiz de como a esposa teria atuado
em relação à morte da amante de seu marido – e em outras situações 11 – a jurisprudência busca alcançar
um juízo sobre a postura psíquica do autor em relação ao assumir o risco do resultado por meio da
avaliação das circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido:
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7
8
9
10
11
Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 122; Noronha, Magalhães. Direito Penal. São Paulo:
Saraiva, 1978, p. 138; Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 310.
“Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (art. 18, I).
Entre outros: Bruno, Aníbal. Crimes contra a Pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1975, p. 72; Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de
Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 173. Roxin, Claus. Política Criminal y Estructura del Delito. Trad. Juan
Bustos Ramírez e Hernán Hormazábal Malarée. Barcelona: PPU, 1992, p. 44, busca distinguir político-criminalmente as
duas figuras partindo, desde o princípio, das diferentes consequências jurídicas (a comissão culposa no Direito penal
alemão na maioria dos casos resta impune e nos outros é punível de modo essencialmente menor do que o delito doloso).
Assim, segundo o seu desenvolvimento, “a diferença reside em que o autor doloso reconheceu e considerou seriamente a
possibilidade da produção do resultado e apesar disso se manteve na execução de seu plano. Com isso decidiu
conscientemente, ainda que apenas para o caso eventual, contra o bem jurídico protegido. Nesta ‘decisão pela possível
lesão ao bem jurídico’ se expressa a medida de culpabilidade e perigosidade que justifica a pena por dolo. Pelo contrário,
quem apesar da possibilidade reconhecida da produção do resultado confia imprudentemente em que o resultado não se
produzirá, não se decidiu contra o bem jurídico protegido, senão que atua na suposição da exclusão de uma lesão do
direito. Uma falta de cuidado pode também merecer pena no caso de bens jurídicos valiosos, porém é muito menos punível
desde a perspectiva político-criminal”.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 40.
Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Trad. Diego Luzón Peña, Díaz Colledo, Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 417, para
quem “a realização do plano pelo agente constitui a essência do dolo”.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 61-62.
TJRS, Embargos infringentes n. 70000284265, rel. Des. Silvestre Ayres Torres, j. 03/12/1999.
“Direito penal e processual penal. Habeas corpus. Crime de competência do Tribunal do Júri.
Racha automobilístico. Homicídio doloso. Dolo eventual. […] 6. Para configuração do dolo eventual
não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às
circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do
evento, e não da mente do autor, eis que não se exige declaração expressa do agente” (STF, 2ª
Turma, Habeas corpus n. 91.159/MG, relª. Min. Ellen Gracie, DJ 24/10/2008) ou (Habeas corpus n.
97.252/SP, relª. Minª. Ellen Gracie, DJ 04/09/2009).
“Penal e processo penal. Homicídios dolosos. Dolo eventual e culpa consciente. Não se pode
generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. [...] O dolo eventual, na
prática, não é extraído da mente do autor, mas das circunstâncias. Não se exige uma declaração
expressa do agente” (STJ, 5ª Turma, Recurso especial n. 247.263/MG, rel. Min. Félix Fischer, DJ
20/08/2001).
O resultado dessa aferição, a meu ver, é um juízo de imprevisibilidade, seja para afirmar ou negar o dolo
eventual. Basta verificar que em vários julgados ele é refutado, embora as circunstâncias do caso concreto
sejam avaliadas negativamente, pois se reconhece que a ocorrência do evento não era esperada pelo agente.
Para exemplificar a real contrariedade de posicionamentos:
“É incabível a desclassificação para crime culposo no caso de agente que dirige alcoolizado, em alta
velocidade e sem habilitação, provocando a morte de suas vítimas, a dilaceração e amputação do pé de
uma terceira, além de lesionar gravemente duas crianças. Logo, tendo o agente assumido o risco de
produzir o resultado, é incabível a desclassificação” (TJCE, 1ª C. Crim., Recurso criminal n.
2003.0001.6482-3/1, rel. Des. José Eduardo Machado, j. 18/11/2003).
“Em tema de delitos de trânsito, não se coaduna com o entendimento de que possa estar o
agente imbuído de elemento subjetivo relativo ao dolo eventual, acaso este não tenha assumido o
risco da produção do resultado, por mais reprovável tenha sido a conduta por ele desenvolvida,
conforme se verifica na situação de embriaguez ao volante, excesso de velocidade e condução na
contramão direcional, admitindo-se, neste caso, a hipótese da culpa consciente” (TJMG, Recurso
criminal n. 307.184-2/000, rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJMG 10/02/2004).
Ademais, também é evidente que por meio desta técnica a afirmação do dolo eventual ocorrerá por dados
meramente indiciários, sem que o magistrado necessite demonstrar porque aferiu a circunstância negativa num
grau maior do que uma eventual circunstância positiva até porque, ao final da primeira fase procedimental, tem
aplicação o princípio in dubio pro societate. A título de exemplo:
“No caso concreto, é de ser mantida a pronúncia do acusado. A defesa técnica, em suas razões
recursais, alega que o delito foi culposo, requerendo a desclassificação. Contudo, é sabido que a
desclassificação do fato, nesta fase do processo, exige prova extreme de dúvida de que não se trata de
crime doloso contra a vida, e no caso vertente, não se pode afastar de plano a hipótese do dolo eventual.
A prova produzida demonstra que o réu, durante a madrugada, depois de participar de baile, conduzia
veículo automotor embriagado, na contramão de direção e com faróis apagados, vindo a colidir contra a
motocicleta, o que infelizmente ocasionou a morte da vítima” (TJRS, 1ª C. Crim., Recurso criminal n.
70021130042, rel. Des. Manuel Martinez, j. 19/12/2007).
“Em caso de atropelamento com vítima fatal, provocado por agente que conduzia veículo em
velocidade incompatível com o local e embriagado, havendo dúvida sobre a existência de dolo
eventual ou culpa, a celeuma deve ser remetida ao Tribunal do Júri para o pronunciamento dos
jurados” (TJSP, Recurso criminal n. 295.091.3/0-00, rel. Des. Silva Pinto, j. 09/02/2004).
Mas o mais grave está por vir. Preocupar-se em demasia com a valoração das circunstâncias do caso
concreto para alcançar a “aprovação interna” significa não se preocupar com o fundamental que é
demonstrar a conexão entre a “aprovação interna” e a conduta praticada. Priorizar o primeiro em
detrimento do segundo significa presumir uma periculosidade no agente. E isso, talvez inclusive sem
perceber, faz dos magistrados verdadeiros advogados de um “Direito penal de ânimo”,12 ferindo o
princípio constitucional da lesividade ou ofensividade.
A teoria volitiva, em relação ao dolo eventual, substitui a vontade em seu sentido cotidiano por um dado
psíquico equivalente a um “estar de acordo” com a ocorrência do resultado. O conteúdo desta expressão é
duvidoso. Conceder ao autor a competência de preenchê-lo é algo infundado pelos resultados já conhecidos e
recorrer à valoração das circunstâncias do caso concreto para fundamentá-lo resulta em odioso Direito penal de
ânimo. Essa rápida recapitulação só fortalece a consideração preliminar que a diferença entre dolo eventual e
culpa consciente se deve realizar num plano cognitivo.
Necessário, portanto, precisar a distinção entre as duas modalidades de crime no plano cognitivo.
Para tanto é pertinente iniciar com a lição de Herzberg: “não interessa se o autor levou a sério um perigo
conhecido, o que interessa é se ele conhece um perigo que deveria ser levado a sério” 13. Que o dolo
pressupõe conhecimento dos elementos objetivos não há dúvidas. Mas o que se entende por
conhecimento? Para Greco, “significa domínio, um controle sobre a realização do fato” 14.
Aplicando essa definição ao caso proposto, conclui-se que a esposa dominava a conduta, isto é,
conhecia o perigo concreto de produção do resultado, e poderia decidir-se pelo não agir, porém não o fez.
Ela controlava o que fazia e o que poderia acontecer com a amante de seu marido ao danificar os freios do
veículo em que se encontrava e que percorreria o declive acentuado, e mesmo assim não limitou sua
conduta. De fato, porém, desejava somente a morte do marido. Logo, será que embora tendo domínio, o
fato da esposa não estar de acordo com a morte da amante pode excluir seu dolo? Luís Greco aduz que
“ou o agente quer o que domina, e neste caso a vontade parece redundante; ou ele não o quer, e neste caso
12
13
14
Santos, Humberto Souza. “Problemas Estruturais do Conceito Volitivo de Dolo”, in Temas de Direito Penal. Luís Greco e Danilo Lobato
(coords.). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 282.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 58.
Greco, Luís. “Dolo sem Vontade”, in Liber Amicorum de José de Souza e Brito. Augusto Silva Dias (coord.). Coimbra:
Almedina, 2009, p. 891-893. Talvez entre os meus poucos leitores se encontre algum aluno que recorde das aulas de dolo
eventual e do exemplo do jovem aidético que mantém relação sexual com sua namorada sem a utilização de preservativo. Em
um dos encontros informei que o jovem valorava o sexo sem proteção com preponderância ao dever de fazê-lo com segurança,
sabendo “não ter as rédeas do acontecer físico”. Ao enfatizar a falta de controle pelo portador depois da criação do perigo não
cometi nenhum equívoco, mas deixei de destacar o realmente decisivo, que não é a conseqüência da conduta, pois dela o
contaminado não poderia se esquivar, mas o controle que ele possuía anteriormente à conduta, pois ele sabia o que fazia e o
que poderia decorrer de seu fazer, e ainda assim agiu racionalmente.
não se vê porque o que ele não quer tem de ter mais importância do que aquilo que ele conscientemente
domina” 15. Vê-se, portanto, que a resposta é negativa.
Uma vez delineado o conceito de conhecimento, torna-se necessário precisar o seu conteúdo. Para
essa atividade surgem três teorias: a da probabilidade, a da possibilidade e a da qualidade do risco
conscientemente criado. Concentrarei a atenção na última teoria, desenvolvida por Ingeborg Puppe ao
argumento de que o perigo não pode ser compreendido apenas como um dado quantitativo, baseado em
índices de probabilidade 16.
Destaca a penalista que “um perigo será um perigo doloso, que fundamenta o dolo, quando ele
representar, em si, um método idôneo para a provocação do evento, [...] se, segundo os conhecimentos
daquele que o utiliza, a chance de alcançar o objetivo for relativamente grande” 17.
Regressando aos exemplos: a esposa ao subir no jardim com a caminhonete em excesso de velocidade
para atropelar o marido aplicou um método de matar. Danificar os freios do automóvel para que o marido sofra
um acidente é, em princípio, um método idôneo de lesões corporais, tornando-se “método de matar na
presença de circunstâncias especialmente perigosas” 18, como o fato do motel para o qual ambos se dirigiram
estar localizado numa curva ao final de acentuado declive.
No segundo contexto a esposa representou as condições verossímeis de realização do perigo por ela
criada, incluindo a morte da outra mulher, para alcançar o seu objetivo maior, ou seja, matar seu marido.
O perigo por ela criado era evidente e não controlável no caso concreto. Torna-se indiferente, portanto,
saber se ela confiava na não ocorrência da morte da amante, pois como afirma Ingeborg Puppe, “se o
perigo é intenso e apresenta-se com grande evidência diante dos olhos do autor, esta ‘confiança’ nada
mais representa que a recusa de tomar uma posição diante do perigo, sendo que essa indiferença que deve
ser reprovada no autor doloso” 19. Portanto, a sua decisão inicial não pode ser abandonada depois da
verificação do resultado fatal.
Dos argumentos apresentados deixo registradas três conclusões, pela pertinência do momento e
necessidade de compilação. A consciência do perigo é fundamental para punição do agente, pois na sua
ausência não há dolo. Pela teoria cognitiva o agente é tratado com uma pessoa racional que quis o evento.
Em regra geral o perigo é culposo.
15
16
17
18
19
Greco, Luís. “Dolo sem Vontade”, in Liber Amicorum de José de Souza e Brito. Augusto Silva Dias (coord.). Coimbra:
Almedina, 2009, p. 896.
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 309, descreve o postulado da
teoria da probabilidade: “diante da dificuldade de demonstrar o elemento volitivo, o querer o resultado, admite a
existência do dolo eventual quando o agente representa o resultado como de muito provável execução e, apesar disso,
atua, admitindo a sua produção. No entanto, se a produção do resultado for menos provável, isto é, pouco provável,
haverá culpa consciente. Como se constata, a teoria da probabilidade desconhece o elemento volitivo”.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 82-84.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 83. Logoz, Paul apud
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 309, afirma que “no dolo
eventual, o agente decide agir por egoísmo, a qualquer custo, enquanto na culpa consciente o faz por leviandade, por não
ter refletido suficientemente”.
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 101.
(2)
A aplicabilidade da distinção pelas Instâncias de Controle:
A aplicação da teoria volitiva para diferenciar as duas figuras há muito deveria ser esquecida, mas
permanece como a tônica nas Instâncias de Controle, especialmente no que se refere aos casos de
homicídio de trânsito. Os quatro fatores que reputo fundamentais para tal conclusão são os seguintes: a) a
conversão pelos representantes ministeriais da natureza do perigo conscientemente criado no trânsito
(como antes destacado, em regra geral o perigo é culposo); b) o fenômeno da juridicização da opinião
pública (apresentadores televisivos querendo doutrinar penalmente e influenciando de forma negativa a
opinião pública); c) a análise recursal desfavorável à defesa e favorável à acusação; e, d) a burocratização
dos magistrados diante do princípio do conforto.
Na seqüência irei correlacionar cada fator a um exemplo prático (aqueles que constantemente
ocorrem no dia-a-dia) para facilitar o estudo. Depois apresentarei vários julgados apresentando os
conflitantes posicionamentos adotados na jurisprudência brasileira.
(2.1)
A influência do álcool na condução de veículo automotor:
Existe uma enxurrada de denúncias por homicídio doloso, especialmente porque o órgão de acusação
converte a natureza do perigo conscientemente criado no trânsito, que em regra geral é culposa. Da análise
jurisprudencial:
“[…] Neste sentido, cumpre-se destacar que os crimes de trânsito são em regra culposos, razão
pela qual para que seja configurado dolo, ainda que eventual, o magistrado deve apontar elementos
concretos no sentido de que o denunciado ao menos "assumiu o risco de produzir o resultado", no caso,
morte. […] No caso em tela, embora o recorrente tenha violado seu dever objetivo de cuidado ao
ingerir bebida alcoólica (art. 165, do CTB), conforme demonstra o exame de alcoolemia, este não é um
fator que, por si só, transforme sua conduta em dolosa. Conforme bem destacado no parecer
ministerial: infere-se pelo exame de alcoolemia realizado que a embriaguez do recorrente não se
mostrou suficiente para embasar a tese de que este agiu com dolo eventual por esse motivo. Ainda, é
de se considerar que o fato da pessoa estar embriagada quando do acidente não pode ser utilizado
genericamente e de forma generalizada para afirmar que agiu com dolo eventual” (TJPR, 1ª C. Crim.,
Recurso criminal n. 766943-6, rel. Des. Macedo Pacheco, DJ 27/07/2011 – grifos pessoais).
“Habeas corpus. Homicídio. Crime de trânsito. Embriaguez. Dolo eventual. Aferição automática.
Impossibilidade. Ordem concedida. Em delitos de trânsito, não é possível a conclusão automática de
ocorrência de dolo eventual apenas com base em embriaguez do agente. Sendo os crimes de trânsito
em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto,
demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao
bem jurídico tutelado. Ordem concedida para, reformando o acórdão impugnado, manter a decisão do
magistrado de origem, que desclassificou o delito para homicídio culposo e determinou a remessa dos
autos para o juízo comum”. (STJ, 6ª Turma, Habeas corpus n. 58.826/RS, Rel. Min. Maria Thereza de
Assis, DJ 08/09/2009 – grifos pessoais).
É muito comum o Ministério Público equiparar os casos de consumo moderado de álcool às situações
de consumo abusivo de álcool, ignorando que os efeitos do álcool são distintos em cada fase da embriaguez
(a fase do macaco, na qual o alcoolizado se torna desinibido e alegre; a fase do leão, na qual o alcoolizado
comporta-se valente, agredindo e insultando as pessoas a sua volta; e, a fase do porco, na qual o alcoolizado
perde o controle de suas funções fisiológicas).
É evidente que o agente que consome moderadamente cria um perigo reduzido ao bem jurídico,
devendo responder por homicídio culposo de trânsito, não podendo automaticamente passar às estatísticas
do dolo eventual na qual se encontra que consome em demasia 20. Passemos a análise do seguinte
precedente jurisprudencial com posterior consideração:
“Havendo indícios de que o acusado, após ingerir considerável quantidade de bebida alcoólica,
teria agido com dolo eventual ao conduzir o seu automóvel em condições adversas, atropelando cinco
pessoas, uma das quais fatalmente, caso é de pronúncia, a fim de que o Tribunal do Júri, juiz natural da
causa, dirima a controvérsia sobre a tipicidade subjetiva da conduta delituosa [...]” (TJPR, 1ª C. Crim.,
Recurso criminal n. 639451-4, de Almirante Tamandaré, rel. Des. Telmo Cherem, DJ 02/07/2010).
E o que se deve entender por “ingerir considerável quantidade de bebida alcoólica”? Para fugir do
natural subjetivismo, entendo que uma análise objetiva deve ser proposta. Esta análise deve ter por base um
percentual único de interferência do álcool na condução de veículo por qualquer pessoa. Explico melhor:
deve-se definir tecnicamente um percentual que, uma vez ultrapassado, prejudique seriamente a condução
do veículo automotor independentemente das características fisiológicas do condutor. Logo, quanto mais
próximo desse percentual, maior é a qualidade do risco conscientemente criado pelo motorista. Assim será
preservada a regra geral de que o perigo é culposo, salvo quando da presença de circunstâncias
especialmente perigosas que, neste julgado, pode estar presente pela grande quantidade de bebida ingerida
pelo agente que atropelou fatalmente uma das vítimas.
E como comprovar o conhecimento, isto é, que o condutor tinha o controle da realização do fato e
que ele representou o perigo concreto de produção do resultado que criou com sua ação de dirigir sob a
influência de álcool? Entendo que por meio de palavras, enunciados ou imagens expressivas. Aliás,
depreende-se dos precedentes jurisprudenciais:
“As diversas campanhas realizadas com o objetivo de conscientizar os condutores dos riscos de
direção perigosa, são suficientes para esclarecer a todos da necessidade de redobrada atenção quando na
condução de veículo automotor. Por esta razão a insistência na direção veicular de forma arriscada,
irresponsável, em clara inobservância das regras de trânsito, evidencia o desinteresse pela incolumidade
alheia, podendo, assim, responder pelo delito doloso” (TJAM, 1ª C. Crim., Recurso n. 2011.005492-8,
rel. Desª. Carla Santos do Reis, DJ 21/05/2012 – grifos pessoais).
20
Jakobs, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoría de la Imputación. Trad. Cuello Contreras e Gonzales de Murillo.
Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 334. Sobre a embriaguez, vide: França, Genivaldo Veloso. Medicina Legal. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1998; Loureiro Neto, José da Silva. Embriaguez Delituosa. São Paulo: Saraiva, 1990.
“Age com dolo eventual o agente que, após ingerir bebida alcoólica, apesar dos reclamos de
ocupantes do veículo que chamaram sua atenção ao iminente risco do acidente, provocando a morte
de duas pessoas e ferindo quatro” (TJRO, 1ª C. Crim. Recurso criminal n. 2003.008963-8, relª. Desª.
Zelite Carneiro, j. 12/02/2004).
Os julgados corporificam regras de experiência que não foram construídas pelos julgadores para os
específicos casos, mas são reconhecidas socialmente, ou seja, existe um consenso social de que quem
bebe em demasia e depois dirige um automóvel está consciente de que pode ocasionar uma morte, pois o
perigo que decorre da ação é intenso. Estas regras de experiência social são importantes, primeiro porque
substituem a íntima convicção do juiz, pois para casos idênticos ele pode decidir diversamente e, segundo,
para afastar qualquer recurso à opinião do condutor.
A dificuldade, nesse âmbito, continuaria relacionada à prova da embriaguez. Nesse sentido,
necessário se faz a definição de um percentual único, seguindo a proposta acima delineada. Assim,
seguindo entendimento de alguns especialistas, já consagrado pelo Supremo Tribunal Espanhol 21,
sustento que a partir de 0,75 mg de álcool por litro de ar expirado dos pulmões ou 15 decigramas de álcool
por litro de sangue a influência da substância psicoativa é provável, devendo considerar-se a mesma como
certa com mais de 20 decigramas de álcool por litro cúbico de sangue, salvo quando o condutor comprove
que esta taxa de álcool não lhe afeta. Assim, quanto mais alta a taxa de álcool no sangue, mais próxima à
caracterização do dolo eventual.
(2.2)
A influência da juridicização da opinião pública:
O segundo fator que colabora com a aplicação dos postulados da teoria volitiva e a consequente
afirmação do dolo eventual nos casos de homicídios no trânsito refere-se ao chamado fenômeno da
juridicização da opinião pública, em especial nos desafios conhecidos como “racha”.
A influência ou pressão midiática, patrocinada por apresentadores incultos e que se consideram
baluartes da moralidade, exigindo penas graves, acarreta imprecisões e a ruptura com a boa técnica
jurídica. Com fidúcia afirma José Henrique Pierangeli que “bem se disse que quando a emoção está no
seu máximo, o direito está no seu mínimo” 22.
Como devemos nos afastar desses ícones do sensacionalismo popular, duas questões devem ser
respondidas: como comprovar o conhecimento do perigo nas situações de racha e esse perigo deverá ser
qualificado como culposo ou doloso? A primeira resposta não foge ao que antes já foi dito para o contexto
da alcoolemia ao volante. Assim, desde as campanhas publicitárias a respeito até o alerta efetuado por
outras pessoas antes da realização da conduta. Vejamos:
21
22
Vicente Martínez, Rosario. Derecha Penal de la Circulación Vial. Barcelona: Bosch, 2006, p. 175.
Pierangeli, José Henrique. “A Morte no Trânsito. Culpa Consciente ou Dolo Eventual?”, in Escritos Jurídico-Penais. São Paulo: RT, 2006,
p. 393.
“Recurso em sentido estrito. Homicídios decorrentes de acidente de trânsito. Consumo de
bebida alcoólica. Participação em racha. Advertência das vítimas quanto à velocidade. Dolo
eventual. Possibilidade. Pronúncia mantida. Quando fica patente nos autos que o réu, mesmo
tendo sido advertido para diminuir sua velocidade, insistiu em participar de "racha", imprimindo
velocidade imoderada, prenuncia-se a possibilidade de ocorrência da tese do homicídio por dolo
eventual, e mesmo que tal situação pudesse também conduzir ao homicídio culposo, o fato é que o
único Juízo competente para o deslinde da questão fática e anímica do tema é o Tribunal do Júri,
impondo-se a manutenção da pronúncia. Recurso conhecido e não provido” (TJMG, 1ª C. Crim.,
Apelação criminal n. 1.0110.03.000466-4/001, de Campestre, rel. Des. Judimar Biber, j. 03/07/2007
– grifos pessoais).
“As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o perigo da direção perigosa e
manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas
condutas, tais como o racha, a direção em alta velocidade, sob embriaguez, entre outras. Se, apesar
disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando
o seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso” (STF, 1ª Turma,
Habeas corpus n. 71.800-1/RS, rel. Min. Celso de Mello, DJ 20/06/1995).
Sobre a natureza do perigo criado pelo condutor que se envolve em competição não autorizada,
conhecida popularmente como “racha” ou “pega”, os Ministros do Superior Tribunal de Justiça refutaram
tese proposta pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais que destacou que se o condutor atuasse com dolo
eventual nessas hipóteses, implicaria admitir que para ele fosse indiferente a sua própria morte. O
Tribunal Superior entendeu como absurdo esse entendimento e destacou que não se trata de argumento
aceito pela dogmática-jurídica. Textualmente:
“[...] A desconstituição da admissibilidade do dolo eventual com o argumento de que tal
‘implicaria em admitir para os réus também fosse indiferente as suas próprias mortes, sabendo-se
que uma colisão com outro veículo sempre traz esse risco’, não tem acolhida na dogmática jurídicopenal. O próprio agir perigosamente, de forma consciente, traz em si uma probabilidade de tragédia
até mesmo, e por vezes, tão só para o condutor. A distinção entre dolo eventual e culpa consciente
não se resolve na forma posta” (STJ, 5ª Turma, Recurso especial n. 247.263, rel. Min. Félix Fischer,
j. 05/04/2001).
A tese desenvolvida pelo Tribunal Mineiro é bastante semelhante à exposição de Roxin, embora o
penalista a utilize a despeito do desrespeito à preferencial: “a diferença radica, sem embargo, em que o
condutor, em tal situação e apesar de sua consciência no risco, confia em poder evitar o resultado
mediante sua habilidade ao volante, porque do contrário desistiria de sua atuação, pois ele mesmo seria a
primeira vítima da ação” 23. Logo, esta tese tem acolhida na dogmática penal, porém seu equívoco, a meu
ver, radica na outorga do poder de decidir se agiu dolosa ou culposamente para o condutor e essa é uma
23
Roxin, Claus. Derecho Penal. Trad. Luzón Peña, Díaz Colledo, Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 426.
saída perigosa, pois certamente, mesmo conduzindo o veículo em velocidade exorbitante, o agente
destacaria que confiava no final feliz.
A solução dos togados mineiros também é passível de críticas. Eles se colocam no lugar dos
condutores considerando apenas às consequências prejudiciais à vida destes. Porém, não se deve dizer que
os agentes envolvidos, assim agindo, seriam indiferentes a sua própria morte, mas sim que eles são
indiferentes à morte de pessoas inocentes. E mais, quem se autocoloca em situação de perigo está
dispondo de sua própria vida e, assim, é consciente de que o pior poderá lhe acontecer.
Os competidores conhecem que a participação numa corrida contra outro veículo gera perigo
intenso, porque o automotor vira uma arma letal em suas mãos. Eles conhecem o perigo que pode
decorrer de sua conduta antes mesmo de iniciá-la e, por meio de uma decisão racional, desprezam por
completo a segurança dos bens jurídicos em troca de simples emulação. Assim, como destaca Puppe, o
equívoco no “tudo vai acabar bem” 24, não deve ser aceito. Nestes casos, a reprovação é dolosa.
Exemplifico com precedente dos Tribunais de Justiça Estaduais:
“Podendo o acusado, quando da pratica do racha, antever perfeitamente, o resultado morte, não
se pode afastar do âmbito do Tribunal Popular o decisório” (TJSP, 11ª C. Crim., Recurso criminal n.
987.134-3/0, rel. Des. Guilherme Strenger, j. 12/09/2007).
“Existindo na prova pericial elementos relevantes de que os acusados imprimiram alta
velocidade, sinalizada pelo longo trecho de frenagem na pista, com características de ‘racha’, além
de atestar ter a vítima sido arrastada por 36,80 metros de distância, inevitável a pronúncia, para que
o Júri, competente para dirimir sobre crimes dolosos contra a vida, possa apreciar e julgar quanto ao
dolo eventual, inclusive” (TJRO, 5ª C. Crim., Recurso criminal n. 00.000826-5, rel. Des. Antônio
Cândido, j. 06/04/2000).
“Homicídio simples e lesões corporais gravíssimas. Acusado que imprime velocidade
elevadíssima em seu veículo, em via urbana de intenso movimento, participa de disputa automobilística
(racha), ocasionando violento acidente do qual resultou gravemente lesionado um jovem e morta uma
adolescente. Reconhecimento do dolo indireto eventual pelo colegiado popular. Decisão que encontra
apoio nas declarações de testemunhas do ocorrido. Recurso improvido” (TJSC, 2ª C. Crim., Apelação
criminal n. 32.582, rel. Des. Jorge Mussi, j. 30/04/1996).
(2.3)
A influência do excesso de velocidade:
Mas ainda é necessário precisar a intensidade de perigo nos casos em que não há participação em
racha, mas apenas quando o agente dirige em excesso de velocidade. Uma vez mais destaco que não se
deve converter automaticamente a natureza do perigo conscientemente criado no trânsito, que é culposa.
Assim, a pequena superação do limite de velocidade, em que pese não permitida, gera um perigo reduzido
24
Puppe, Ingeborg. “Dolo Eventual e Culpa Consciente”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 58. Trad. Luís Greco. São Paulo: RT,
jan./fev. 2006, p. 119.
e, por isso, não deve pertencer ao âmbito do dolo 25. E mais, até a grande superação da velocidade
permitida pode nem gerar perigo se o veículo for equipado com instrumentos de segurança, como um
sistema de controle eletrônico de estabilidade.
Extrai-se de precedente jurisprudencial:
“Nos delitos de trânsito, em regra, os fatos são cometidos sob a égide da culpa consciente e
não do dolo eventual, sendo este uma exceção. Assim, não se pode generalizar o comportamento do
motorista no sentido de trabalharmos com o constante aspecto doloso, sendo imprescindível, mesmo
nesta fase de pronúncia ou desclassificação, que existam elementos cristalinos apontando para o
dolo. [...] o excesso de velocidade, por si só, não pode caracterizar a presença do dolo eventual nos
delitos de trânsito. É preciso que se reúnam condições outras que, somadas, levem à conclusão de
que houve o transbordamento psicológico e volitivo da culpa consciente para o dolo eventual [...] o
excesso de velocidade, mas que, juridicamente, é pouco para ultrapassarmos o comportamento
inicial da culpa no trânsito para especificamente o dolo” (TJPR, Recurso criminal n. 632241-0/01,
rel. Des. Luiz Panza, DJ 30/03/2011 – grifos pessoais).
Como delimitar e precisar a circunstância do excesso de velocidade? Uma vez mais delineio uma
proposta de cunho objetivo que decorre de uma correspondência com as infrações administrativas e suas
diferentes naturezas. A finalidade é evitar uma solução meramente casuística. Logo, a infração
administrativa média e a infração grave dizem respeito ao crime culposo, ao passo que a infração
administrativa gravíssima se refere ao delito doloso. No primeiro caso estaríamos diante de situações que
devem ser retratadas, em que pese divergências, como de velocidade excessiva, ao passo que no segundo
diante de situações de velocidade exorbitante. Novamente destaco que as circunstâncias do caso concreto
devem ser sopesadas, contudo, em regra geral, o perigo será intenso, caracterizando o dolo eventual,
quando a velocidade for superior à máxima permitida em mais de cinquenta por cento, sendo medida por
instrumento ou equipamento hábil nas rodovias, vias de trânsito rápido, vias arteriais e demais vias (art.
218, III, CTB). Por exemplo:
“Apelação criminal. Crime de trânsito. Homicídio culposo. Art. 302 do Código de Trânsito.
Materialidade e autoria comprovadas. Velocidade superior à permitida no local do acidente.
Desobediência ao dever de cuidado objetivo. Comportamento imprudente. Impossibilidade de
absolvição. Em ação penal, comprovadas a materialidade e autoria do crime de trânsito e, que o
acusado foi imprudente ao dirigir veículo automotor com velocidade excessiva para o local do
acidente, ou seja, sem observar os cuidados objetivos que todo motorista deve ter ao dirigir veículo
automotor, do qual resultou atropelamento com vítima fatal, configura-se o cometimento de
homicídio culposo, cabendo ser imposta a condenação do responsável pelo acidente nas penas do art.
302 da Lei n. 9.503/97” (TJPI, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 2010.000.100.430-41, rel. Des.
Joaquim Dias de Santana Filho, j. 04/02/2011).
25
Jakobs, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoría de la Imputación. Trad. Cuello Contreras e Gonzales de Murillo.
Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 335.
“[...] No caso em tela, o exame pericial do local do acidente foi conclusivo ao atestar que a
velocidade imprimida ao veículo do apelado era excessiva, incompatível com a segurança do trânsito
para aquela via. Vislumbra-se, pois, caso clássico de imprudência, a qual é, diante das circunstâncias
que envolvem o delito, suficiente para levar-se o apelado à condenação [...]” (TJPI, 1ª C. Crim.,
Apelação criminal n. 2010.000.100.446-53, rel. Des. Raimundo Nonato Alencar, j. 21/06/2011).
E corroborando a tese proposta anteriormente:
“Apelação criminal. Homicídio culposo. Pretensão de absolvição. Alegada culpa exclusiva da
vítima. Improcedência. Falta de dever objetivo de cuidado configurado. Culpa evidenciada na
modalidade de imprudência. Prova robusta sustentando a condenação. A conduta do apelante, ao
trafegar em velocidade excessiva para o local (acima de 82 km/h, quando o permitido era de 60
km/h), somado ao fato de ter visto a vítima atravessando a avenida antes da colisão, sem frear o seu
veículo, configura atuação culposa na modalidade de imprudência [...]” (TJPR, 1ª C. Crim.,
Apelação criminal n. 631795-9, rel. Des. Jesus Sarrão, j. 25/11/2010).
“Processual penal. sentença de Pronúncia. Art. 408 do CPP. Crime de homicídio da
competência do Tribunal do Júri Popular. Dolo eventual. Art. 18, I, do Código Penal. Exclusão da
qualificadora de perigo comum (art. 121, § 2°, III) pelo juiz pronunciante. Impossibilidade, salvo se
manifesta ou indiscutível a sua inadmissibilidade. Lições da doutrina jurídica e da jurisprudência dos
tribunais do país. 1. Não se permite ao Juiz, na sentença de pronúncia, excluir qualificadora de crime
doloso contra a vida (dolo eventual), constante da Denúncia, eis que tal iniciativa reduz a amplitude
do juízo cognitivo do Tribunal do Júri Popular, albergado na Constituição Federal. 2. Caracteriza-se
o dolo no agente, na sua modalidade eventual, quando este pratica ato do qual pode evidentemente
resultar o efeito lesivo (neste caso, a morte), mesmo que não estivesse nos seus desígnios produzir
aquele resultado, mas tendo assumido claramente, com a realização da conduta, o risco de provocála (art. 18, I, do CP). 3. O agente de homicídio com dolo eventual produz, inequivocamente, perigo
comum (art. 121, § 2°) quando, imprimindo velocidade excessiva a veículo automotor (165km/h),
trafega em via pública urbana movimentada (Ponte JK) e provoca desastre que ocasiona a morte do
condutor de automóvel que se deslocava em velocidade normal, à sua frente, abalroando-o pela sua
parte traseira” (STJ, 5ª Turma, Recurso Especial n. 912.060/DF, rel. Arnaldo Lima, DJ 10/03/2008).
Do Código Penal Espanhol depreende-se interessante dispositivo que incrimina o motorista que
conduza o veículo automotor a velocidade superior a 60 km/h em via urbana ou em 80 km/h em via
interurbana à permitida regularmente. O legislador ibérico cominou pena de prisão de três a seis meses ou
alternativamente multa ou prestação de serviços à comunidade, bem como a privação do direito de dirigir
por tempo superior a um ano e até quatro anos (art. 379, 1).
(2.4)
A influência das ultrapassagens perigosas:
Outro fator que colabora com a supremacia da teoria volitiva se relaciona com a análise recursal, na
qual os recursos defensivos em poucos casos são providos, ao passo que os recursos da acusação ou da
assistência fatalmente são providos. Exemplificando: há muitos anos houve um acidente de trânsito que
envolveu um caminhoneiro em Porto Belo, comarca de Tijucas, Estado de Santa Catarina. O motorista
objetivava ultrapassar outro caminhão e já quando efetuava a manobra, em sentido contrário surgiram
quatro ônibus lotados de religiosos. Os três primeiros tiveram sucesso em desviar, porém o último foi
atingido. O agente causador do acidente procurou retornar a sua pista, conseguindo guiar a cabine para
tal, ficando, entretanto, a carreta do caminhão na pista contrária, sendo que foi nela que o ônibus bateu,
falecendo vinte e uma pessoas e restando trinta e cinco feridos. O agente pleiteou a desclassificação da
denúncia para homicídio culposo. O Tribunal indeferiu:
“Pronúncia. Homicídios e Lesões Corporais. Dolo eventual. O agente que, dirigindo um
caminhão, com carga pesada, em uma reta, com condições climáticas favoráveis, pretende
ultrapassar um veículo longo que trafega em velocidade razoável, depara-se com um ônibus que lhe
dá sinais luminosos, indicando a impossibilidade de ultrapassagem e não toma conhecimento,
obrigando aquele veículo a deslocar-se para o acostamento e, na seqüência, outros dois coletivos
procedem do mesmo modo, sem que o acusado desista da manobra e vem a chocar-se com um
quarto ônibus, matando vinte e uma pessoas e ferindo outras trinta cinco, age com dolo eventual,
devendo responder perante o Tribunal do Júri, eis que ultrapassou os limites da culpa consciente”
(Recurso criminal n. 9.698/94, rel. Des. Cláudio Marques, j. 24/05/1994).
Vale destacar que em várias passagens do acórdão o relator enfatizou que com o processado “não há
qualquer dúvida” de que a conduta do agente configurou situação de dolo eventual considerando “sua
tresloucada e tenebrosa aventura rodoviária”. O Corpo de Jurados entendeu pela ocorrência do homicídio
culposo de trânsito (art. 302 da Lei n. 9.503/97). O representante ministerial recorreu da decisão e obteve êxito
no provimento da apelação 26. Veja-se literalmente:
“Júri. Homicídios. Dolo eventual. Desclassificação para crimes culposos. Afronta à prova.
Novo julgamento ordenado. [...] O veredicto dos jurados que, sem apoio nos elementos de convicção
existentes no processo, afirma que os crimes foram cometidos por culpa, na modalidade de
imprudência do agente, é decisão manifestamente contrária a prova dos autos. [...] Quanto aos
crimes de homicídio, a decisão dos jurados delirou da prova, devendo ser anulado o veredicto, pois
exsurge do caderno processual a presença do dolo eventual [...]” (Apelação criminal n. 33.760/95,
rel. Juiz Nilton Macedo Machado, j. 21/11/1995).
A título de curiosidade, na nova sessão o condutor foi absolvido, deixando todos perplexos, como
enfatizou o Promotor. Mas a perplexidade deste e de outros representantes ministeriais já existe desde o
momento da abertura da Lei de Trânsito e a constatação da reduzida pena cominada ao crime de
26
Ilustrando o tema com outros julgados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: Nepomoceno, Alessandro. Além da Lei. A Face Escura da
Sentença Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 137 e ss.
homicídio culposo se comparada àquela prevista ao homicídio doloso do Código Penal. Eis outro fator
que colabora com a grande quantidade de denúncias por homicídio doloso.
Observe o exemplo: o condutor do caminhão sabe que efetuar uma manobra de ultrapassagem numa
curva sem visibilidade em razão de intenso nevoeiro pode gerar a colisão com veículo que transita em
sentido contrário. Apesar desse conhecimento ele efetua a ultrapassagem e colide com o quarto ônibus de
fiéis que não conseguiu desviar ao acostamento. Esse agente deverá responder por homicídio doloso ou
culposo?
Sabe-se que é impossível adentrar na consciência do motorista para saber se ele aprovou
internamente o resultado morte e que o coringa da confiança na não ocorrência deste resultado deve ser
descartado. A análise da situação deve ser feita com respaldo nas regras de experiência social. Logo,
importante questionar se qualquer pessoa em seu melhor juízo de consciência deixaria de realizar a
ultrapassagem por que essa manobra era apta a provocar um perigo manifesto e evidente? Como a
resposta é positiva, tem-se que o motorista, pessoa racional, ao realizar a ultrapassagem perigosa assumiu
o risco de provocar o resultado e por ele deve responder a título de dolo.
Recordo uma vez mais: “a utilização do veículo automotor só se apresenta como um método idôneo
de matar na presença de circunstâncias especialmente perigosas, pois a maior parte das lesões sofridas em
acidentes de trânsito não é fatal” 27. Este aspecto da teoria cognitiva não é levado em consideração,
porquanto a jurisprudência nacional resiste em abandonar os postulados da teoria volitiva, quiçá, porque
ela atua como um “escudo protetor contra as incertezas e acaba por se tornar mais importante do que o
enfrentamento das questões impostas pela realidade” 28.
27
28
Puppe, Ingeborg. A Distinção entre Dolo e Culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 87.
Santos, Humberto Souza. “Problemas Estruturais do Conceito Volitivo de Dolo”, in Temas de Direito Penal. Luís Greco e Danilo Lobato
(coords.). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 282.
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Dolo eventual e culpa consciente