Filosofia Ficha 1 Nome: 2os anos Nº: Felipe fev/12 Turma: Entre o martelo e a cortesia por Renato Janine Ribeiro Nietzsche falava em filosofar com o martelo. Queria dizer: para filosofar, é necessária uma certa dose de destruição, de violência mesmo. Não se filosofa na base das zumbaias e rapapés. O ataque, a agressão, o “agon” que ele tanto prezava – e que significa luta, estando presente em nossa palavra “antagonista” – são essenciais, se quisermos pensar para valer. Pensar é, portanto, um ato de batalha, se não de guerra. Isso é bem diferente do que dissemos no artigo do mês passado. Insistimos, então, na necessidade de que um debate seja educado. Isso, antes de mais nada, porque ninguém pode ter a certeza de estar certo. Portanto, se respeitarmos um ao outro, poderemos trabalhar em conjunto para chegar a algo melhor. É essa a lição da democracia. Pode ser que o conhecimento, construído em conjunto, tenha um forte elemento democrático no seu modo de fazer. Mas, mesmo assim, marteladas podem ser importantes para pensar. Por quê? Porque há um forte risco, quando dialogamos, de nos enredarmos ou de sermos enredados. Melhor explicando: um diálogo nunca é completamente inocente. Ou melhor ainda, o poder está com quem formula as perguntas. Se eu dialogar com você sobre qualquer assunto, e um de nós dois fizer as perguntas, elas já vão condicionar um tanto as respostas. Um exemplo simples: se eu colocar a questão de quem vai pagar o déficit da Grécia, eu já assumo que ele pode e deve ser pago. A resposta vai ser sobre os meios, não sobre o problema em si. Já se eu perguntar se vale a pena a Grécia se arruinar, enquanto a Islândia simplesmente se negou a pagar a enorme dívida que contraíram em seu nome, abrirei espaço para outra resposta. Por isso, mesmo o que parece mais democrático, mais inocente, mais igualitário, que é o diálogo, celebrado desde Sócrates até Habermas, pode ter – escondido – um truque. Há um momento notável na Filosofia Antiga, que é quando um interlocutor diz ao grande filósofo: “Como és autoritário, Sócrates!” Ou seja, por trás de suas perguntas inocentes, conduzes insensivelmente a conversa para a conclusão que preferes. Essa, a contribuição de Nietzsche para a Filosofia: desconfiar do diálogo. Isso não quer dizer retornar ao monólogo. Ao contrário, é tentar ir além dele. É tentar ver se, quando conversamos, estamos falando da mesma coisa (geralmente não estamos). É notar melhor a divergência de posturas face ao mundo – e a lição democrática, aqui, consistirá em aceitar que não haja uma “única” questão, nem mesmo “a grande questão”, “a questão oportuna”. As questões interessantes mesmo são as que importunam. Mas este Nietzsche não será bonzinho demais, um Nietzsche democrata, quando ele condenava o socialismo e mesmo a democracia? Fique claro que não estou falando, aqui, de seu pensamento – mas de como certas ideias dele podem ajudar-nos a pensar. Porque, no fundo, o que importa nos grandes filósofos – ou nos pequenos, até nos medíocres – é como nos auxiliam a pensar a aventura humana. Para isso, é bom lê-los com atenção, claro, mas também vale apropriar-se das ideias deles que nos sirvam. Nietzsche, pelo menos, nos torna desconfiados. Para pensar livremente, ou simplesmente para pensar, esta é uma condição essencial. Daí que martelar não seja agredir o outro. É, simplesmente, reconhecer que a ação de pensar é, a seu modo, uma produção, como diria um marxista, ou uma guerra, como poderia dizer Nietzsche. RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br 2