Será a arte trágica uma alternativa à racionalidade?
(Sobre A origem da tragédia, de Nietzsche)
Na sua obra “A Origem da Tragédia”, Nietzsche propõe a utilização da arte
como meio de interpretação metafísica da vida. O autor defende que a linguagem
racional é por natureza inadequada para apreender e transmitir o conhecimento da
realidade: a única forma de compreender a vida no seu significado mais
abrangente é através da estética, cujas categorias devem ser, essencialmente,
símbolos.
Se, desde o século V a.C., filósofos como Sócrates e Platão deram primazia
à razão como meio de interpretação da realidade, Nietzsche pretende, através da
sua tese, acabar com esta tendência. Mas reconhece que, desde o século XVIII,
filósofos iluministas como Kant e, posteriormente, Schopenhauer realizaram alguns
progressos, ao demonstrarem os limites e o relativismo do conhecimento.
Para o autor, a evolução da arte processa-se através das relações de
unidade e oposição entre dois modelos, inspirados na Grécia Clássica: o apolíneo,
da harmonia, do sonho e da Razão, e o dionisíaco, representativo do instinto, da
desordem e do Irracional. A tragédia ática realiza e simboliza, para Nietzsche, a
mais perfeita união e síntese entre estes dois paradigmas.
A música é, para o autor, uma arte maioritariamente dionisíaca. Ela
representa a linguagem instintiva e emocional, sendo vista como a única que nos
apresenta directamente a realidade. É, por isso, caracterizada como a linguagem
do Absoluto e aquela que permite o acesso ao Infinito. Assim, se ouvíssemos os
concertos “As Quatro Estações” de Vivaldi, conseguiríamos apreender todos os
elementos e imagens que o compositor nos pretende transmitir e, munidos dessa
intuição, sair do isolamento da nossa individuação e mergulhar na unidade da
natureza. No entanto, se outra pessoa ou mesmo o próprio músico nos fizesse
uma descrição verbal daquilo que consta na composição, a visão que teríamos
seria um enfraquecimento e deturpação do tema, uma vez que a linguagem
conceptual (racional) não consegue, através dos seus signos e apesar das
inevitáveis metáforas, dar-nos a noção correcta da realidade. A música expressase como uma forma apolínea que tem por base a força da liberdade dionisíaca.
Mas, se a visão de Nietzsche foi, na época (século XIX), inovadora, e
permitiu uma certa libertação dos vícios dogmáticos do racionalismo ocidental, não
pode ser clamada como isenta de críticas. Ao propor a arte como justificação do
mundo, Nietzsche oferece uma forma a que devem obedecer todos os elementos,
mas multiplica o significado dos mesmos. Ou seja, deixa de haver um significado
concreto e objectivo a atribuir a cada coisa. Ora, ainda que todos os significados
sejam imperfeitos e incompletos, todos são, do mesmo modo, equivalentes? Não é
absurdo considerar a par e igualmente verdadeiras a interpretação astrológica dos
animais do Zodíaco e a interpretação astronómica dos astros? Se todas as
interpretações são ilusões verdadeiras, por que é preferível a interpretação trágica
que Nietzsche nos propõe?
Outro problema a assinalar é o facto de a vida, como fenómeno complexo,
não se poder justificar da mesma forma que a arte. Assim, o que o autor fez foi
deixar de procurar um modo de justificar a vida e não encontrar um significado
novo para esta.
Nietzsche abraçou o relativismo. Criticou a Razão como valor absoluto e
meio de nos guiar até à verdade, para dar a primazia à emoção. No entanto, se a
razão tem limites, como há muito os seus defensores sustentam, a solução a
adoptar não deve ser uma postura anti-racionalista, mas sim uma atitude de crítica
da razão. Seria insuportavelmente perigosa a existência de uma sociedade na qual
todos dessem a primazia à emoção: isto levaria a que cada um realizasse os seus
desejos sem nunca pensar nas consequências e significado da sua acção. Cada
um tentaria subverter os acontecimentos segundo a sua opinião, não se podendo
identificar qual a visão correcta, já que a racionalidade estaria em segundo plano
neste contexto. Viver segundo o império da emoção imediata, em vez de abrir aos
indivíduos muitas e belas possibilidades de vida, como Nietzsche pretende,
condená-los-ia à pura violência que compromete a escolha e arruína a própria
vida. O recurso a outros valores em detrimento da racionalidade levaria a um
aumento dos conflitos entre os povos, acrescido do facto de nenhum deles ter uma
justificação racional para os seus actos.
Deste modo, a utilização da estética como método de interpretação do
mundo não pode ser uma solução definitiva, devido aos problemas que tal
acarretaria. Se a perspectiva de Nietzsche foi inédita, e o autor estava consciente
disso, esta não foi sujeita a um método crítico rigoroso que apontasse os defeitos
da tese. O autor foi talvez demasiado ingénuo pelo facto de não ter procurado
justificar convenientemente as suas teses e o caminho que percorreu até as
formular.
Ana Gabriela Rocha, 12º I
Escola Secundária de Alberto Sampaio
Maio de 2006
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