1 Carta do Adeus * (Trad. de Luciano Bedin da Costa)** À Carl Von Gersdorff, Naumbourg, 13 de abril de 1869 O termo fatídico chegou, é a última noite que passo no país. Amanhã de manhã eu me lanço neste grande e vasto mundo, numa nova profissão para a qual ainda não constituí hábitos, na atmosfera pesada e opressiva do dever e do trabalho. Mais uma vez, é preciso dizer adeus. Os dias felizes de atividade livre e sem constrangimento, onde o instante presente reinava com soberania, onde podia gozar das artes e do mundo como um espectador, estes tempos estão irremediavelmente colocados no passado: é, doravante, o severo deus do Dever cotidiano que irá reinar. ''Velho veterano, eu parto''. Tu conheces esta emocionante canção estudantil! Sim, é isto! ''É minha vez de ser filisteu''. Não importa como, mas esta pequena frase sempre acaba por se tornar verdadeira. Não somos ingenuamente chamados ao mundo das tarefas e das honras – trata-se de saber, somente, se estas grades são de ferro ou de algodão. Eu ainda tenho a coragem para tentar saltar destas celas e, sobre outras bases, experimentar os riscos da vida. Eu não sinto ainda nenhum sinal da corcunda obrigatória dos professores. Ser um filisteu, um homem da massa – que Júpiter e todas as Musas me preservem disto! Eu não saberia mesmo como tornar-me devoto do dever, pois isto não é da minha natureza. Eu me sinto, a bem dizer, próximo de um tipo de filisteu, do tipo dos ''especialistas''; e não é muito natural que a carga diária, que a constante concentração do pensamento acerca de certos domínios da ciência e sobre determinados problemas embotam um pouco a livre receptividade do espírito e atacam o sentido filosófico em suas raízes. Mas imagino poder fazer frente a este perigo com mais calma e segurança que a maior parte dos filólogos; a gravidade filosófica está já bem ancorada em mim; os verdadeiros problemas, os problemas essenciais da vida e do pensamento me são devolvidos muito nitidamente pelo mistágogo Schopenhauer, do qual creio nunca desertar. Infundir este sangue novo em meus conhecimentos científicos, transmitir ao meu auditório o sério schopenhaueriano que se encontra emprestado do rosto deste grande homem, tal é meu desejo, minha audaciosa esperança. Eu desejaria ser mais do que uma simples ''boa túnica'' a vestir os futuros filólogos: a geração atual dos educadores, os cuidados necessários à próxima ninhada, eis o que me preocupa. Pois é necessário viver nossa vida, tentar fazer um uso dela de tal forma que os outros nos abençoem e nos julguem preciosos por assim vivermos. A ti, caro amigo, a quem divido meus sentimentos sobre os problemas essenciais da vida, eu desejo toda a felicidade que tu mereces; a mim, tua velha e fiel amizade. Adeus! Friedrich Nietzsche, Dr. * Trata-se da última carta do estudante Nietzsche antes de assumir o posto como professor de filologia na Universidade da Basiléia. Carta extraída de La vie de Frédéric Nietzsche d'après sa correspondence. Textes choisis et traduits par Georges Walz. Paris: Les Éditions Rieder, 1932, p.151-152 (tradução de Luciano Bedin da Costa). ** Luciano Bedin da Costa é Doutor em Educação e Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É autor de ESTRATÉGIAS BIOGRÁFICAS: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller (Sulina, 2011) e organizador de VIDAS DO FORA: habitantes do silêncio (UFRGS, 2010). Nas horas vagas, faz rabiscos dos seus pensadores favoritos . E-mail: [email protected] ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br