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ESPAÇO
E S PA Ç O
ABERTO
André Sant’Anna de Oliveira*1
Um novo
olhar sobre as
cotas
raciais
1 Este texto foi produzido
com base no trabalho
monográfico “Cotas para
negro na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro”,
apresentado, em dezembro
de 2007, ao curso de
graduação em pedagogia
do Centro Universitário Celso
Lisboa, no Rio de Janeiro,
e orientado pela professora
Zilda Guapyassú, leitora da
revista Democracia Viva.
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As discussões relacionadas à questão etnorracial tiveram grande destaque a partir do
nazi-facismo, criado na Europa entre as décadas de 1930 e 1940. Desde então, embates
ferrenhos foram realizados acerca das diferenças existentes entre as diversas etnias,
nos campos científico; social; educacional;
psicológico etc.
No Brasil contemporâneo, os debates sobre as diferenças raciais tomaram novo
fôlego com o advento das cotas sociais/educacionais destinadas a minorias desfavorecidas. Nesse contexto, a Lei 4.151/03 foi
sancionada, no estado do Rio de Janeiro,
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com intuito de reservar nas universidades
públicas estaduais 45% das vagas a pessoas
oriundas de escolas públicas e pertencentes
às minorias étnicas, sendo 20% dessas vagas
destinadas a estudantes negros(as).
A partir de sua sanção, a lei tornou-se
objeto de estudo da sociedade carioca, polarizando a população em dois grupos distintos: os pró-cotas e os anticotas. De um lado,
pessoas defensoras dos ideais cotistas vêem
as cotas como um direito historicamente
construído e forjado na desigualdade social
e no racismo latente. De outro, pessoas
opositoras que acreditam na inviabilidade
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de tal sistema por considerar o Brasil um
país de mestiços. No que se refere à lei, salientam que o único objetivo é atestar inferioridade inexistente.
Negritude e educação
O Brasil – Colônia, Império, República –
teve, historicamente, postura permissiva
diante da discriminação e do racismo para com
os(as) africanos(as), estendida a seus(suas)
descendentes até os dias de hoje. O Decreto
1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do país não poderiam estudar pessoas negras, sendo a instrução da pessoa adulta negra dependente
da disponibilidade de professores. Em 1878,
o Decreto 7.031-A dava aos(às) negros(as) o
direito de estudar no período noturno. No entanto, diversas estratégias foram montadas
para impedir o acesso pleno da população
negra aos bancos escolares.
Durante a evolução histórico-social
do Brasil, foi possível constatar a existência de diversos mecanismos dissimulados –
criados pela elite brasileira – cujo escopo
principal era o de impedir o acesso ou a
permanência do “cidadão de cor” (termo
depreciativo utilizado para denominar a
pessoa negra) na escola.
Christian Baudelot e Roger Establet,
no livro L´École capitaliste en France (1971),
elaboram um viés ideológico – denominado posteriormente por Demerval Saviani,
no livro Escola e democracia (2006), como
Teoria da escola dualista. Segundo os autores da epistemologia, a escola que, a priori,
se caracteriza por sua aparência unitária e
unificadora é, na verdade, dividida em duas
redes, as quais estão em conformidade com
a divisão da sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado.
O pensamento desenvolvido na teoria
da Escola Dualista salta aos olhos da sociedade no desenrolar do processo histórico brasileiro, em especial na contemporaneidade,
com o aparecimento de dois tipos de escola
para a educação básica: pública e particular.
Por causa dos padrões adotados no
processo seletivo das universidades do
Brasil, a educação básica figura como o
mais poderoso meio de aquisição de competências e habilidades necessárias para a
aprovação no vestibular. Nesse contexto,
fica evidenciado que o ensino público, com
suas limitações, mutilado, sucateado e destruído pelo Estado capitalista, configura-se
como barreira quase intransponível para estudantes da rede pública – haja vista os diversos entraves que dificultam a evolução da
aprendizagem plena (escolas abandonadas;
professorado mal-remunerado; greves), impedindo, assim, o acesso desses(as) estudantes
a cadeiras universitárias.
Em contrapartida, nas escolas particulares, o ensino de qualidade – livre das
obstruções dos mecanismos capitalistas
perversos – visa à aprovação nas grandes
instituições de ensino superior, favorecendo o acesso de grande parte da prole burguesa a cursos extremamente valorizados
no âmbito social. Parafraseando algumas
idéias explicitadas na teoria de Christian
Baudelot e Roger Establet (1971), torna-se
evidente a função da escola (pública ou
particular) como instrumento ideológico
do Estado burguês a serviço de seus interesses capitalistas. Com efeito, a rede
pública escolar, longe de ser instrumento
de equalização/eqüidade social, é, na verdade, fator de marginalização cujo único
objetivo é deixar à margem da sociedade
todas as pessoas que ingressam no ensino
público, em especial as pessoas negras,
que, segundo Ricardo Henriques (2001),
compõem a maioria da população pobre e
miserável do país e têm a escola pública
como via única de acesso aos bens culturais. Baseado nesses aspectos, Kabengele
Munanga (2003) inferiu que:
Se, por um milagre, os ensinos básico e
fundamental melhorassem seus níveis para
que os alunos pudessem competir igualmente no vestibular com os alunos oriundos dos colégios particulares bem abastecidos, os alunos negros levariam cerca de
32 anos para atingir o atual nível dos alunos brancos. Isso supondo que os brancos
ficassem parados em suas posições atuais,
esperando a chegada dos negros, para juntos caminharem no mesmo pé de igualdade
(Munanga, 2003, p. 119).
Uma hipótese improvável, ou melhor,
inimaginável. O que se pode vislumbrar, na
prática, é a supremacia cada vez maior de
pessoas brancas nos cursos universitários do
Brasil. Ricardo Henriques (2001) evidencia
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claramente essa disparidade ao afirmar
que 97% dos universitários brasileiros são
pessoas brancas, 2% negras e 1% descendentes de orientais.
Discriminação positiva
As políticas afirmativas têm um histórico
recente no cenário mundial. Seu caráter
ideológico-racial despertou sentimentos sociais antagônicos em países que adotaram o
sistema de cotas (Estados Unidos, Inglaterra,
Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova
Zelândia, Malásia e, mais recentemente, o
Brasil) como um viés compensatório para a
população etnicamente discriminada.
No Brasil, o tema veio à tona com o
advento de leis distrital e estadual, por
exemplo, a Lei 4.151/03, do estado do Rio
de Janeiro, que reserva percentual de vagas
para afrodescendentes nas universidades
públicas cariocas. O objetivo dessas medidas
seria o de compensar 119 anos de discriminação e preconceitos sociais baseados na
etnia que impediram a pessoa negra e
Por dentro da lei
Para análise mais aprofundada, segue a
transcrição de dois artigos da Lei 4.151/03,
do estado do Rio de Janeiro, de reserva de
vagas nas universidades públicas para afrodescendentes:
Art. 1º – Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as
universidades públicas estaduais estabelecer
cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:
I – oriundos da rede pública de ensino;
II – negros;
III – pessoas com deficiência, nos termos
da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.
Art. 5º – Atendidos os princípios e as regras instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º
e seu parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco)
anos de vigência desta Lei, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer vagas
reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo total de 45% (quarenta e cinco
por cento), distribuído da seguinte forma:
I – 20% (vinte por cento) para estudantes
oriundos da rede pública de ensino;
II – 20% (vinte por cento) para negros; e
III – 5% (cinco por cento) para pessoas
com deficiência, nos termos da legislação em
vigor, e integrantes de minorias étnicas.
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seus(suas) descendentes de ascenderem para
classes mais abastadas da sociedade brasileira. A esse respeito, Ricardo Henriques
(2001) afirma que dos 22 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem abaixo da linha
da pobreza, 70% são negros(as), e dos 53 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem
na pobreza, 63% são negros(as).
A aprovação da lei da “discriminação
positiva” pelo poder Legislativo do estado
do Rio de Janeiro suscitou na elite carioca
– em especial, na classe média – um sentimento de indignação e descontentamento,
haja vista que 45% das vagas nas universidades estaduais deixaram de ser disputadas “democraticamente” e em condições
“iguais” por estudantes egressos(as) do ensino médio. A postura das classes média e
alta com relação às cotas pode ser historicamente elucidada, uma vez que as cadeiras
universitárias são consideradas, desde o
Estado burguês até os dias de hoje, um patrimônio sociocultural indissociável da sua
condição de classe hegemônica. JeanJacques Rosseau (1991), no Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, escrito originalmente
em 1750, advertia que as desigualdades não
refletiriam atributos congênitos de tais ou
quais grupos, mas sim construções socialmente produzidas, racionalmente explicáveis e, em alguma medida, controláveis pela
ação do Estado (Rousseau, 1991).
No momento em que informações
relativas às cotas foram massificadas pela
mídia de forma alienante e fragmentada, a
sociedade carioca polarizou-se em duas
vertentes distintas: a dos defensores e a dos
opositores das cotas. Os opositores vêm
sendo beneficiados por meio de apelos tendenciosos da imprensa elitizada e dissimulada que, utilizando o poder de persuasão
característico dos meios de comunicação de
massa, molda e manipula a opinião pública.
Dessa forma, cumpre um perverso papel
social como aparelho ideológico a serviço
das oligarquias dominantes. Em entrevista
ao jornal Folha de S. Paulo, o professor de
Antropologia da Universidade de Brasília
(UnB), José Jorge de Carvalho, afirmou que
“a elite não quer perder o poder. Vagas nas
universidades públicas boas são cotas de poder. E a elite não quer concorrentes negros”
(Collucci, 2006).
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UM NOVO OLHAR SOBRE AS COTAS RACIAIS
A consolidação das leis de reparação
discriminatória à população afrodescendente e os fecundos debates realizados em
âmbito estadual contribuíram para o florescimento de novos e abrangentes pensamentos na Câmara e no Senado Federal.
Segundo o que vem sendo divulgado amplamente pela mídia, tramitam, somente no
Congresso Nacional, 130 projetos de lei
sobre a questão racial.
Reconstruindo a história
Com o objetivo de corrigir os erros cometidos durante 500 anos de colonialismo, escravidão, extermínio físico, psicológico e simbólico de negros(as) africanos(as) e seus(suas)
descendentes, os movimentos sociais envidaram esforços no intuito de mobilizar setores
da sociedade carioca a participarem da luta
em prol da democratização do ensino superior e de uma universidade multicultural.
Coube às universidades estaduais do
Rio de Janeiro e da Bahia o pioneirismo
em estabelecer normas e estratégias que
favoreceram a reserva de vagas para afrodescendentes como resposta aos anseios de
grande parcela da população, que se encontrava historicamente excluída dos bancos
universitários.
Essa nova proposta de inclusão étnico-racial tem por escopo o advento de uma
nova universidade democrática – multicultural, imbuída de espírito social pleno
– e a possibilidade de inserção da pessoa
negra no cerne da produção científica,
para que possa contribuir, de maneira mais
incisiva, no desenvolvimento da sociedade
em todos os aspectos possíveis. Sobre isso,
alerta Marlene Ribeiro:
A construção de competências acadêmicas
legítimas, no quadro de uma sociedade
excludente, racista, discriminatória, que
diz projetar ser justa, inclui experiências
de ruptura com o modelo tradicional de
universidade (Ribeiro, 1999, p. 240).
unicamente aos interesses das classes mais
abastadas. Significa que as instituições de ensino superior, ao reconhecerem a hierarquia
social e econômica da sociedade brasileira
como forma de dominação étnico-racial,
ainda que latente, e avaliarem essa denominação como injusta, tendem a ampliar seu
campo de visão e de construção do conhecimento. Transcendem, assim, o reacionário
conceito unidirecional de mundo, legado
do eurocentrismo, em busca de um novo
paradigma: aquele das multifacetas e da
diversidade, que tem como cunho principal
a criação de um saber científico ominicultural e democrático.
A presença cada vez maior de jovens
negros(as) nas universidades públicas pode
propiciar novo posicionamento deles(as)
na sociedade, possibilitando o surgimento
de cidadãs e cidadãos realmente livres, sujeitos da história e arquitetos(as) da própria
história, e, assim, críticos(as) e desarticuladores(as) de todos os mecanismos excludentes existentes, contribuindo para o aparecimento de uma nova ordem social.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2003),
em consonância com esse pensamento, diz
o seguinte: “Há que pensar a formação universitária como possibilidade de enfrentar,
superar intolerâncias, o que implica buscar
meios de suprimir desigualdades seculares”
(Silva, 2003, p. 52).
Críticas no alvo
As políticas afirmativas trouxeram para o
centro do debate social questões raciais que
se encontravam diluídas na falsa ideologia
da igualdade racial no Brasil. Kabengele
Munanga (2003) refere-se a diversos argumentos usados por alguns segmentos da
sociedade brasileira, que questionam a legitimidade da discriminação positiva na contemporaneidade. Dentre as várias vertentes
de pensamentos contrários às cotas evidenciadas pelo autor no artigo “Políticas de
ação afirmativa em benefício da população
negra no Brasil: um ponto de vista em defesa
de cotas” (2003), duas serão utilizadas como
objeto de estudo.
A primeira questão diz respeito à
impossibilidade de implementar cotas para
pessoas negras no Brasil, por ser difícil definir quem é negro por causa da mestiçagem.
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Cumpre ressaltar que a universidade
– como centro ativo de produção de conhecimento científico –, ao promover e executar medidas de inclusão de grupos étnicos
marginalizados e oprimidos, passa a fazer
parte da sociedade, assumindo compromisso com ela, uma vez que deixa de atender
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O argumento baseia-se totalmente no mito
da igualdade racial, ou seja, o Brasil seria
um país harmonioso, formado unicamente
por pessoas mestiças descendentes de três
etnias distintas: a colonizadora, a escrava e
a nativa. Esse pensamento não caracteriza
a realidade vivida no interior das relações
sociais, uma vez que o racismo brasileiro
não se concretiza no plano do genótipo, mas
sim do fenótipo. Em outros termos, negra é a
pessoa que possui características externas de
negro, pois, segundo Oracy Nogueira (1985),
o preconceito é de marca e não de origem.
Em um segundo momento, o autor
evidencia outros argumentos contrários à
implantação das políticas afirmativas, pois
essa poderia prejudicar a imagem profissional de funcionários(as), estudantes e artistas negros(as), que seriam acusados(as)
de terem entrado por uma porta diferente.
Significa que, no momento das grandes
concorrências, as cotas poderiam, perigosamente, estimular os preconceitos. Refutando
essa linha de pensamento, Munanga faz uma
analogia da recente história de lutas e conquistas das mulheres com a atual situação
da população negra no Brasil e o reflexo da
política de discriminação positiva. Em suas
idéias, ele afirma o seguinte:
A história da luta das mulheres ilustra
melhor o que seria o futuro dos negros.
A discriminação contra elas não foi totalmente desarmada, mas elas ocupam cada
vez mais espaços na sociedade, não porque
os homens tornaram-se menos machistas
e mais tolerantes, mas porque, justamente
graças ao conhecimento adquirido, elas
demonstram competências e capacidades
que lhes abrem portas antigamente fechadas (Munanga, 2003, p. 126).
Finalmente, o clímax das discussões remete para duas vertentes principais.
A primeira salienta a impossibilidade de
ingresso e permanência das pessoas negras
nas universidades públicas. Realmente, a
dificuldade que cotistas encontram para se
manter estudando é notória, causada exclusivamente pela situação econômica inerente
à condição social dos(as) educandos(as) de
baixa renda. Com o intuito de resolver esse
problema, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) elaborou o Projeto de Lei 3.378/2006, que modifica a Lei
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4.151/03, fazendo com que o programa de
apoio relatado no Artigo 4º vigore durante todo
o curso universitário do(a) estudante cotista.
A segunda refere-se à violação do
artigo 5º da Constituição Federal, que prevê a igualdade perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos(às)
brasileiros(as) e aos(às) estrangeiros(as)
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Essa igualdade legal explicitada pela
Constituição brasileira, em nenhum momento deixou o plano retórico. Basta observar a atual situação do país. Salta aos olhos
o descaso da sociedade com os direitos básicos das camadas mais pobres da população.
Saúde, educação e habitação são alguns
exemplos de que os preceitos previstos na
Lei Maior não conseguiram alcançar significativamente a maioria da população, em
nenhuma medida. Nega, assim, à classe
pobre (onde se encontra o maior percentual
de pessoas negras) o acesso aos bens historicamente construídos pela sociedade e indispensáveis ao desenvolvimento da cidadania em todos os seus aspectos.
Cotas e TV
É inegável que, dentre os veículos de comunicação de massa, a televisão ocupe papel
de destaque na divulgação de informações
graças ao poder das imagens. Nos termos
de Pierre Bourdieu (1997), dispondo desta
força excepcional que é a da imagem televisiva, os jornalistas podem produzir efeitos
sem equivalentes. Esse poder construído
historicamente por meio de imposições
simbólicas, propiciou o surgimento de um
novo império burguês, ideológico, político
e econômico, cujo único escopo (da maioria
das emissoras de televisão) é defender os
interesses das oligarquias imperialistas em
detrimento das necessidades da população,
particularmente da mais pobre.
No que tange às políticas afirmativas,
observou-se que, desde a criação até a consolidação, um arsenal de matérias jornalísticas, tendenciosas e fragmentadas, foram
veiculadas maciçamente pela mídia televisiva com o objetivo de depreciar, em qualquer medida, todos os aspectos ideológicos
oriundos desse movimento social.
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UM NOVO OLHAR SOBRE AS COTAS RACIAIS
O cunho das diversas reportagens
exibidas, normalmente em horário nobre,
era a defesa latente dos direitos da burguesia aos bens culturais da sociedade como
classe dominante. Essas mensagens foram
facilmente diluídas por meio de mecanismos
alienadores, cujo objetivo era, paradoxalmente, ocultar mostrando.
A televisão, como expoente do ideal
burguês, atuou – e atua – como instrumento
de manipulação de idéias em massa, favorecendo-se do poderoso recurso chamado
imagem como ferramenta de construção de
uma realidade paralela imersa na alienação
e no controle velado da opinião pública.
Nesse contexto, Pierre Bourdieu alerta:
Os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que
a imagem tem a particularidade de poder
produzir o que os críticos literários chamam
o efeito de real, ela pode fazer ver e fazer
crer no que faz ver (Bourdieu, 1997, p.28).
A reserva de vagas para pessoas negras nas universidades do Estado do Rio de
Janeiro tem papel fundamental na implantação de um novo paradigma social. Cria
possibilidades para o acesso de cidadãos e
cidadãs, outrora esquecidos, aos conhecimentos científicos difundidos no âmbito acadêmico. Com efeito, possibilita a construção
de uma universidade diferente, multicultural, multiétnica, que responda aos anseios
de toda a população, uma instituição imbuída com o verdadeiro espírito de redenção e
democratização da sociedade.
O que se propõe aqui é a possibilidade de outro viés argumentativo, diferente
daquele veiculado pela mídia comercial,
trazendo à tona os diversos entraves latentes que, historicamente, impediram a pessoa negra, como agente social, de ascender
culturalmente.
Diante dos questionamentos e das
hipóteses explicitados, pode-se inferir que
o sistema de cotas – consolidado no Rio de
Janeiro com a Lei 4.151/03 –, longe de ser
ferramenta discriminatória, caracteriza-se,
na verdade, como poderoso instrumento de libertação para os quilombos contemporâneos,
que se encontram oprimidos pela violência
simbólica imposta à cultura afro-brasileira
desde o primeiro dia após a pseudolibertação dos(as) escravos(as) no Brasil.
Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu
enfatiza: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor
significações, e a impô-las como legítimas,
dissimulando as relações de força que estão
na base de sua força, acrescenta sua própria
força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força” (Bourdieu; Passeron,
1975, p.19).
*André Sant’Anna
de Oliveira
Pedagogo
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