NOTAS SOBRE A PRORROGAÇÃO DE CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS E O DIREITO COMUNITÁRIO * Gonçalo Santos Machado O recente relatório do Tribunal de Contas veio reacender a polémica sobre a prorrogação do prazo da concessão do Terminal de Contentores de Lisboa. Relembre-se que a vigência do referido contrato de concessão foi objecto de acordo entre a Administração do Porto de Lisboa e a concessionária Liscont, nos termos do qual a concessão foi prorrogada por um período adicional de 27 anos. No referido relatório, o Tribunal de Contas considerou que o interesse público não teria sido acautelado, designadamente pelo facto de a prorrogação assentar em projecções económicas duvidosas e por ter sido preterida a realização de concurso público. Do ponto de vista estritamente jurídico esta última questão assume contornos muito interessantes, sobretudo se analisada na perspectiva da conformidade desse acordo com o direito comunitário, nomeadamente à luz da interpretação que tem sido defendida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). É o que aqui nos propomos fazer com a análise de algumas decisões que o TJUE proferiu em questões semelhantes. A utilidade deste exercício será tentar determinar qual seria o sentido de uma hipotética decisão do TJUE caso o mesmo fosse chamado a pronunciar-se sobre a conformidade da referida prorrogação do contrato de concessão com o direito comunitário. A nosso ver, a questão reconduz-se a saber se a reposição do equilíbrio financeiro de um contrato de concessão de serviços públicos, realizada por recurso à prorrogação do respectivo prazo de execução, será compatível com o direito comunitário, à luz da interpretação preconizada pelo TJUE. Previamente, cumpre notar que, não obstante a fase de formação de contratos de concessões de serviço público não ser até hoje regulamentada pela chamada hard law comunitária (directivas ou regulamentos), a verdade é que, desde a prolação do Acórdão Telaustria, de 7.12.2000 (Proc. C324/98), que o TJUE entende, de forma pacífica, que os princípios constantes do Tratado CE são aplicáveis à fase de formação de todos os contratos públicos e de concessão, ainda que não abrangidos pelas Directivas, desde que os mesmos se revistam de relevância económica para a construção do Mercado Único europeu. Note-se também que, apesar da prorrogação se referir, em princípio, à fase de execução dos contratos de concessão, que não se encontra regulada nas Directivas aplicáveis, o TJUE decidiu já, no Acórdão ASM Brescia/Comune de Rodengo Siano, de 17.07.2008 (Proc. C-347/06), que a prorrogação do prazo de execução de um contrato de concessão representa a sua automática subtracção à concorrência do mercado da prestação desses serviços. Com efeito, se no termo de uma concessão, o respectivo prazo for estendido sem que haja a possibilidade de outros operadores económicos apresentarem propostas para a prestação do mesmo serviço, pode ficar em causa o exercício de liberdades comunitárias, tais como a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento (respectivamente, artigo 43.º e 49.º do Tratado da CE). Entrando na análise da questão, não será despiciendo notar que a Comissão Europeia, na sua Comunicação Interpretativa sobre as Concessões em Direito Comunitário, de 24.2.1999, (JO 2000/C 121/02) não teve dúvidas em afirmar peremptoriamente que «quando uma concessão chega ao seu termo, a sua renovação equivale a uma nova concessão e, portanto, estará coberta pela presente comunicação.». Mas, sendo as Comunicações Interpretativas da Comissão instrumentos de soft law (carecendo, portanto, de vinculatividade), foquemos antes a nossa atenção na posição que tem sido adoptada pelo TJUE. Em primeiro lugar, no Acórdão Comissão/Itália, de 13.09.2007 (Proc. C-260/04), o TJUE analisou esta questão num caso em que estava em causa a prorrogação de 329 concessões de apostas hípicas por um período de seis anos para além do seu prazo de vigência, feita por intermédio de acto legislativo (sem qualquer abertura à concorrência, portanto). O acto que determinou a prorrogação foi objecto da denúncia de um operador privado do sector, a qual deu origem à acção de incumprimento intentada pela Comissão contra a República Italiana, tendo aquela invocado que esta, ao prorrogar as concessões para gestão das apostas hípicas «sem qualquer processo de abertura à concorrência, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado e violou, em especial, o princípio geral da transparência e a obrigação de publicidade decorrentes dos artigos 43.º e 49.º CE.». Registe-se que, neste acórdão, o Tribunal declarou que a prorrogação em causa nos autos «impede a abertura das referidas concessões à concorrência e a fiscalização da imparcialidade dos processos de adjudicação». Ou seja, o Tribunal refuta liminarmente o entendimento de que a prorrogação da concessão possa ser configurada de outra forma que não como uma nova concessão. Por seu turno, no já citado Acórdão ASM Brescia, o TJUE considerou que a prorrogação de concessão de serviços públicos através de acto legislativo consubstanciava uma discriminação em função da nacionalidade. Neste acórdão decidiu-se que «(...) uma regulamentação como a que está em causa no processo principal, ao implicar que seja protelada a adjudicação de uma nova concessão mediante procedimento de concurso público, constitui, pelo menos durante esse período de adiamento, uma diferença de tratamento em detrimento das empresas que possam estar interessadas nessa concessão que estão situadas num Estado-membro diferente daquele a que está sujeita a entidade adjudicante.» Finalmente, o Tribunal de Justiça havia já considerado, no Acórdão Comissão/França, de 5.10.2000 (Proc. C-337/98), que qualquer modificação substancial que abranja o objecto do contrato deve ser equiparada à celebração de um novo contrato, implicando um novo concurso (embora neste caso estivéssemos perante uma empreitada e não perante um contrato de concessão, e que a sujeição do novo contrato à concorrência não resultava apenas dos princípios do Tratado, mas também do regime da Directiva 93/38). No mesmo sentido, o TJUE decidiu, no recente Acórdão Pressetext, de 19.07.2008 (Proc. C-454/06), que uma alteração substancial do contrato consubstancia uma nova adjudicação, embora, face às especialíssimas circunstâncias do caso, tenha admitido a prorrogação do contrato. Dos quatro acórdãos citados parece ser legítimo concluir que o TJUE considera que a alteração de condições contratuais que atinjam um elemento essencial do contrato – como é manifestamente o caso do respectivo prazo de execução – configura um novo contrato. As consequências do breve excurso que antecede são óbvias. Qualquer prorrogação do prazo de vigência de um contrato que esteja submetido à concorrência estará, em princípio, sujeita às regras de contratação pública, na medida em que constitui, para esses efeitos, um novo contrato. Por outras palavras, a posição do TJUE tem sido a de, em princípio, não admitir a prorrogação de contratos de execução continuada, na medida em que essas prorrogações constituem novos contratos e a sua celebração sem observância de quaisquer procedimentos pré-contratuais é claramente violadora do princípio da concorrência, essencial à concretização do Mercado Único Europeu. Assim, salvo melhor opinião, a prorrogação, pelo Estado, do prazo da concessão do Terminal de Contentores de Lisboa está em contradição com a acima resumida jurisprudência do TJUE o que, consequentemente, indicia a sua invalidade à luz do direito comunitário da contratação pública. * Advogado