Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil da Administração
Margarida Cortez
I. SOBRE O ABANDONO DA DISTINÇÃO ENTRE GESTÃO PÚBLICA E
GESTÃO PRIVADA
Actualmente, o regime da responsabilidade civil extracontratual da Administração
encontra-se regulado no DL nº 48051, de 21 de Novembro de 1967. Porém, este
diploma
como faz notar o seu art. 1º
ocupa-se apenas da responsabilidade por
actos de gestão pública, cuja efectivação
acrescente-se
terá lugar na jurisdição
administrativa. Da responsabilidade da Administração por actos de gestão privada cuida
o Código Civil (art. 501º), sendo competente para o conhecimento das acções de
indemnização correspondentes a jurisdição comum.
Naturalmente que a primeira dificuldade que enfrentamos é precisamente a de saber o
que separa a gestão pública da gestão privada. Esta é, porém, uma tarefa complexa, e
porventura até inútil.
Com efeito, num tempo em que, especialmente no contexto de uma administração
constitutiva, é frequente o recurso a fórmulas organizatórias jurídico-privadas, i.e., à
criação de entidades privadas fictícias ou de mão pública, que formam uma
Administração paralela, mais eficaz porque liberta de certos controlos públicos; num
tempo em que é frequente o uso de meios privatísticos, designadamente na gestão de
estabelecimentos públicos; por fim, num tempo em que se assiste a um aumento
exponencial da contratualização da actividade administrativa com privados, fará sentido
manter essa bipartição?
Parece-nos evidente que essa miscigenação entre público e privado retirou sentido à
distinção, que aliás sempre encontrou dificuldades no campo da actividade material e
técnica da Administração, que é juridicamente neutra.
A nosso ver, o que verdadeiramente está em causa, para efeitos de um regime próprio de
responsabilidade civil, não é o tipo de gestão, mas o exercício da função administrativa
em si, independentemente da natureza dos meios empregues e dos sujeitos a quem é
confiado.
Propomos então
e ao que julgamos saber não estamos sozinhos
a substituição da
ideia de gestão pública pela ideia de exercício da função administrativa.
Alargar-se-á assim, e de modo impressivo, o âmbito de aplicação da habitualmente
chamada responsabilidade civil da Administração: não só ela se estenderá a domínios
onde a prossecução do interesse público é feita com recurso a instrumentos de direito
privado, como contemplará a actuação dos privados que se encontram a exercer a
função administrativa.
Esta nova referência, de marcado pendor finalístico, tem ainda a virtualidade de nos
manter na órbita da relação jurídica administrativa que, como se sabe, serve de critério
delimitador do âmbito material de competência da jurisdição administrativa.
É certo que nem tudo fica assim resolvido
Temos consciência de que o cenário acabado de descrever
e que já de si é complexo
não dá conta de todas as zonas de indefinição. Estamos a pensar, nomeadamente, nas
áreas de concurso positivo entre público e privado, i.e., em actividades que
tradicionalmente eram consideradas públicas, mas que hoje se vêm abrindo, em regime
de concorrência, à iniciativa privada.
Cremos, no entanto, que essa tarefa de clarificação deve ter lugar noutra sede.
II. SOBRE O REGIME DE REPARTIÇÃO DE RESPONSABILIDADES
Outro aspecto eventualmente carecido de revisão diz respeito ao regime de repartição de
responsabilidades entre a entidade pública e os seus servidores.
Convém recordar que o DL nº 48051 (nos arts. 2º e 3º) poupa os titulares dos órgãos,
funcionários e agentes de responderem civilmente perante os lesados quando actuam
funcionalmente com mera culpa, independentemente do grau que a caracterize,
limitando portanto a sua responsabilidade externa aos casos de dolo. Assim, nos casos
de negligência leve ou de diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que eram
devidos em razão do cargo, a responsabilidade é exclusiva da entidade pública, que
todavia tem direito de regresso na última hipótese, i.e., no caso de negligência grosseira.
Queremos desde já sublinhar que não partilhamos a opinião dos Autores que
consideram este regime revogado por inconstitucionalidade superveniente, por força do
disposto no art. 22º da CRP. O facto de aí se dizer que o Estado e as demais entidades
públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária, com os titulares dos órgãos,
funcionários e agentes, não pode significar um agravamento automático da
responsabilidade destes no plano das relações externas.
A nosso ver, a Constituição de 76 (no actual art. 22º) veio simplesmente estabelecer um
princípio geral de responsabilidade das entidades públicas, pondo termo a uma tradição
constitucional caracterizada pela responsabilidade pessoal e exclusiva dos "empregados
públicos", sem todavia pôr em causa a liberdade conformadora do legislador ordinário
na definição dos pressupostos do dever de responder.
Todavia, isto não significa que o regime do DL nº 48051 permaneça imune a qualquer
crítica. Por nossa parte, veríamos com bons olhos os servidores da Administração
passarem a responder perante os lesados não só no caso de dolo, mas também no caso
de diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em
razão do cargo. Mais do que isso parece-nos, no entanto, excessivo. E excessivo porque
desrazoável, na medida em que se estaria a colocar os titulares dos órgãos, funcionários
e agentes administrativos ante o constante fantasma da responsabilidade civil, o que
inevitavelmente os inibiria na sua actuação, convertendo-os em agentes timoratos, com
as indesejáveis consequências em matéria de eficiência administrativa.
De todo o modo, independentemente do alcance que se vier a dar à responsabilidade
solidária, sempre nos parecerá adequada uma limitação da discricionaridade quanto ao
exercício do direito de regresso por parte das entidades públicas. A nosso ver, havendo
dolo ou negligência grosseira e sendo a entidade pública chamada a responder pela
obrigação integral, não pode ela deixar de exercer esse direito face ao autor material do
facto ilícito. Deve portanto abandonar-se a ideia de que estamos perante uma
prerrogativa de exercício discricionário. A discricionaridade existirá apenas quanto à
determinação do valor a reclamar, que deverá resultar de uma ponderação de vários
factores, a saber: o resultado danoso produzido, a existência ou não de intencionalidade,
a responsabilidade profissional do agente ao serviço da Administração e a sua relação
com a produção do resultado danoso.
III. SOBRE AS FORMAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Reservo a última parte desta intervenção às formas de responsabilidade civil.
Como se sabe, a doutrina juspublicística desde há muito que optou entre nós por
reconduzir à ideia de responsabilidade civil grande parte dos deveres públicos de
compensação de prejuízos. Daí que a responsabilidade civil da Administração
compreenda hoje três tipos bem distintos: a responsabilidade por factos ilícitos, a
responsabilidade pelo risco e a responsabilidade por actos lícitos.
É sobre cada uma delas que teceremos breves comentários, justamente aqueles que nos
parecem mais oportunos no quadro de uma programada reforma.
a) Responsabilidade por factos ilícitos:
No que se refere à responsabilidade por factos ilícitos, deve o conceito de ilicitude ser
suficientemente abrangente, de forma a compreender, quer no campo da actividade
jurídica, quer no campo da actividade material, todas as acções ou omissões que violem
as normas constitucionais, legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis,
que infrinjam as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em
consideração, ou que não correspondam aos padrões de actuação dos órgãos ou dos
serviços, e de que resulte lesão dos direitos ou interesses legalmente protegidos de
terceiros.
Como facilmente se perceberá, julgamos ser esta a sede própria da chamada "culpa do
serviço"
tradução menos feliz da expressão francesa faute du service , figura que
cobre os danos anónimos ou colectivos quanto à autoria, e que em bom rigor nada tem a
ver com um juízo de censura subjectivo, mas antes com o afastamento dos standards de
actuação e rendimento dos serviços.
Por estarmos no âmbito da responsabilidade subjectiva, outro aspecto que merece
referência é naturalmente a culpa. A nosso ver, não devemos persistir na técnica de
remissão para as disposições do Código Civil, mas antes formular um conceito próprio
de culpa, adaptado à realidade da Administração, elegendo assim como paradigma de
diligência e de aptidão aquele titular do órgão, funcionário ou agente respeitador das
normas jurídicas e demais regras aplicáveis, tendo em conta naturalmente as
circunstâncias de cada caso.
Todavia, é em matéria de repartição do ónus da prova que se aconselha maior ousadia.
Por um lado, justifica-se uma presunção de culpa no caso da prática de actos jurídicos
ilícitos. Dir-se-á, portanto, que a ilegalidade dispensa uma indagação autónoma sobre o
pressuposto da culpa, o que em bom rigor nem constitui grande novidade, se tivermos
em consideração a prática jurisprudencial nesta matéria.
Por outro lado, deve proceder-se a uma inversão do ónus da prova da culpa em certos
domínios da actividade material da Administração. Assim, por exemplo, deve a
Administração responder pelos danos causados por pessoas que se encontram sob sua
vigilância ou por coisas sobre as quais tenha um dever de conservação, salvo se provar
que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam
evitado os danos.
Por último, uma nota dedicada à relação entre ilegalidade e responsabilidade civil, ou ao
relacionamente entre o recurso de anulação e a acção de indemnização, especialmente
quando estão em causa danos resultantes de actos administrativos ilegais.
Como se sabe, o art. 7º do DL nº 48051 trata deste problema, embora a fórmula
utilizada pelo legislador tivesse suscitado enorme controvérsia. Estabelece este preceito
que "O dever de indemnizar por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas,
dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados
do seu direito de recorrer dos actos causadores do dano; mas o direito destes à reparação
só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de
recurso ou a negligente conduta processual no recurso interposto".
Abstraindo dos termos da mencionada controvérsia, importará esclarecer no futuro que
o dever de indemnização não depende da utilização pelo lesado dos meios contenciosos
adequados à remoção do acto jurídico causador de danos. Significa isto que a
impugnação contenciosa do acto (ou mesmo de uma norma administrativa ilegal) não
constitui um pressuposto processual da acção de indemnização.
Todavia, há que prevenir um eventual concurso de culpa do lesado, decorrente da sua
negligência processual. Assim, caso o lesado omita culposamente a utilização de meios
processuais
principais e acessórios
aptos a evitar a produção ou o agravamento
dos danos, pode a indemnização ser reduzida ou mesmo excluída. Sublinhe-se, pois, que
o que está em causa não é saber se por via desses meios processuais o lesado teria
conseguido a reparação total ou parcial dos danos sofridos em virtude do acto ilegal,
mas se o recurso a esses meios processuais podia ter evitado os danos cujo
ressarcimento ele vem reclamar numa acção de indemnização.
b) Responsabilidade pelo risco
Quanto à responsabilidade pelo risco, torna-se necessário alargar a cláusula geral
prevista no art. 8º do DL nº 48051. Diz-se aqui que "O Estado e demais pessoas
colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do
funcionamento de serviços administrativos especialmente perigosos ou de coisas e
actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força
maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou
culpa das vítimas ou de terceiro, sendo neste caso a responsabilidade determinada
segundo o grau de culpa de cada um".
Em primeiro lugar, e em coerência com o que dissemos de início, o âmbito subjectivo
desta responsabilidade deve estender-se a entidades privadas que exercem funções
administrativas.
Em segundo lugar, parece-nos sensato moderar o grau de perigosidade do serviço,
actividade ou coisa de que resulte o dano. Em vez de excepcional, preferimos especial.
Em terceiro lugar, temos dúvidas sobre a subordinação da dignidade indemnizatória do
dano à condição da sua anormalidade e especialidade. Por um lado, cremos que a
circunstância de o serviço, a coisa ou a actividade ser especialmente perigoso constitui
condição suficiente para a reparação do dano. Afinal, não constituirá o carácter perigoso
do serviço, da actividade ou da coisa um índice semiótico da anormalidade do dano?
Por outro lado, acreditamos que, por razões de justiça material, o carácter especial do
dano deve dar lugar à possibilidade de fixar equitativamente a indemnização em
montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos quando for
significativamente elevado o número de lesados.
Uma última palavra para dizer não desconhecemos as propostas que têm sido feitas no
sentido de prever novas hipótese de responsabilidade pelo risco, independentes do
carácter perigoso da actividade em causa, especialmente no caso de danos causados por
actos informáticos. Cremos, no entanto, que a atrás defendida presunção legal de culpa
no caso de actos jurídicos ilícitos já previne as naturais dificuldades de prova deste
pressuposto nos casos de actos administrativos praticados com o auxílio de
equipamentos informáticos.
c) Indemnização pelo sacrifício
A categoria da responsabilidade por acto lícito procurou responder a situações de
sacrifício legítimo
porque imposto pelo interesse comum
que, por força do
princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, não devem
permanecer sem compensação.
Diz-nos o nº 1 do art. 9º do DL nº 48051 que "O Estado e demais pessoas colectivas
públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos
administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado
prejuízos especiais e anormais".
Estão manifestamente aqui contemplados os comportamentos ablatórios intencionais da
Administração, de que constitui exemplo paradigmático a expropriação por utilidade
pública. Acontece que neste caso
como em casos afins, designadamente nas
chamadas expropriações de sacrifício
a indemnização não constitui uma
consequência do comportamento público, mas antes um momento constitutivo dele e
portanto uma condição de validade do próprio acto jurídico que de tal comportamento
vier a resultar.
Sendo assim, o que verdadeiramente aqui está em causa não é o ressarcimento de um
dano, segundo as regras da responsabilidade civil, mas a contemporânea compensação
do valor real do bem ou direito subtraído, sob pena de invalidade do acto impositivo do
encargo.
Abstraindo, porém, desta evidência, cumpre notar que o legislador de 67 optou, também
neste domínio, pela técnica da cláusula geral. Assim, há lugar a compensação quando,
no interesse geral, a Administração, por acto jurídico ou material lícito, impuser
encargos ou causar prejuízos especiais e anormais aos particulares.
Como facilmente se adivinha, a dificuldade está em saber quais são as situações
subsumíveis a esta hipótese. E também como se sabe, o direito do ordenamento do
território e do urbanismo constitui terreno propício para essa discussão. Aí, porém, tem
havido um evidente esforço de clarificação: não só se vem afinando a distinção entre
medidas expropriativas e medidas conformadoras do direito de propriedade, como se
vem ensaiando mecanismos de perequação compensatória dos benefícios e encargos
decorrentes dos instrumentos de gestão territorial vinculativos.
Só que nem sempre está em causa o direito de propriedade. Muitas vezes não estão
sequer em causa verdadeiros direitos subjectivos, e ainda assim registam-se prejuízos
especiais e anormais na esfera dos particulares, em virtude de uma actuação lícita da
Administração. Então o que é decisivo: a qualidade da posição jurídica do particular, a
qualidade do dano, ou ambas?
A nosso ver, ambos os aspectos devem ser ponderados. Aliás, o carácter anormal do
dano sugere uma especial qualificação normativa do interesse sacrificado.
A questão que agora se põe, é a de saber se deve o legislador fornecer indicações
tópicas quanto ao sentido dos requisitos do dano. Por nossa parte, não vemos obstáculo
a que isso aconteça, desde que a concretização seja meramente exemplificativa.
Terminamos formulando votos de que o anunciado projecto de proposta de lei da
responsabilidade civil extracontratual do Estado chegue a bom porto.
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