O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL EM FACE DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
O móvel do presente trabalho é a necessidade de se elaborar uma
releitura do artigo 28 do CPP com os novos princípios do Processo Penal adotados
pela CF de 1988.
Ora, com o sistema constitucional de 1988 e a adoção do sistema
acusatório e, ainda, na linha do garantismo penal pregado por autores como
FERRAJOLI1, entendo que o artigo 28 do Código de Processo Penal precisa ser
interpretado e aplicado pelo juiz de modo a permitir a sua adequação às
disposições constitucionais, o que implica em que o magistrado não deva exercer
juízo de valor em relação a pedido de arquivamento formulado pelo Ministério
Público.
Efetivamente, o Ministério Público é o titular da ação penal, não
devendo o juiz, que, em regra, deve permanecer inerte como garantia de sua
1
“De todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, o
mais importante, por ser estrutural e logicamente pressuposto de todos os
outros, indubitavelmente é a separação entre juiz e acusação. Essa
separação, exigida por nosso axioma A8 nullum iudicium sine accusatione,
forma a primeira das garantias orgânicas estipuladas em nosso modelo
teórico SG. Ela comporta não só a diferenciação entre os
sujeitos que
desenvolvem funções judicantes e os que desenvolvem funções de postulação
e o conseqüente papel de espectadores passivos e desinteressados reservado
aos primeiros em virtude da proibição ne procedat iudex ex officio, mas
também, e sobretudo, o papel de parte – em posição de paridade com a
defesa – consignado ao órgão da acusação e a conseqüente ausência de
qualquer poder sobre a pessoa do imputado. Entendida nesse sentido, a
garantia da separação
representa, de um lado, uma condição essencial do
distanciamento do juiz em relação às partes em causa, que, como veremos, é
a primeira das garantias orgânicas que definem a figura do juiz, e de,
outro, um pressuposto dos ônus da contestação e da prova atribuídos à
acusação, que são as primeiras garantias procedimentais do juízo.”
(FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 1.ed. São
Paulo: RT, 2002. p. 454-455)
1
imparcialidade, imiscuir-se na seara relativa à possibilidade, em tese, de
comprovação de indício de autoria e prova da materialidade de crime em um
inquérito policial, quando o titular da ação não encontra esses elementos mínimos
em um inquérito policial.
O princípio da obrigatoriedade da ação penal pública não é suficiente
para conferir a um juiz garantista2 a função anômala de fiscal de sua efetividade.
Na verdade esse controle da obrigatoriedade da ação penal pública
deve ser efetuado dentro do próprio Ministério Público.
Marcelo Polastri3 já leciona uma tendência de alteração do CPP no
sentido ora defendido, cabendo trazer à baila a sua lição:
“Naturalmente, por este motivo, e, sobretudo
visando reforçar o sistema acusatório abraçado por nossa
legislação processual penal, os Anteprojetos de Código de
Processo Penal de autoria de Frederico Marques procuraram
afastar o Juiz de tal função anômala, substituindo a
fiscalização judicial por um autocontrole institucional, a ser
exercido pelo Conselho Superior do Ministério Público, que
teria
a
função
de
homologar
ou
não
as
decisões
administrativas de arquivamento feitas pelos promotores de
justiça e, mesmo, originalmente, pelo Procurador-Geral de
Justiça”.
2
3
dever constitucional do juiz brasileiro.
Marcellus Polastri Lima, Curso de processo Penal, vol 1, p 149
Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002.
2
Concordo plenamente com o ilustre membro do parquet carioca, mas
ouso ir além. Em verdade, o anteprojeto apenas está adequando o CPP à
Constituição Federal.
Ora, independentemente de lei, é dever do juiz fazer a interpretação de
todo o ordenamento jurídico a partir da Constituição.
Assim, apesar de não existir nenhuma inovação formal no artigo 28 do
CPP, constata-se que esse artigo foi substancialmente alterado pela adoção do
sistema acusatório na Constituição de 1988.
Deveras, atualmente, ao receber o pedido de arquivamento formulado
pelo Procurador da República não deve mais o juiz exercer qualquer análise de
mérito sobre o pedido de arquivamento, mas sim remetê-lo a Câmara de
Coordenação e Revisão Criminal do Ministério Público Federal para que a questão
seja resolvida e comunicado ao juízo sobre o efetivo arquivamento do inquérito
policial ou o oferecimento de denúncia e, aí sim nessa última hipótese, com uma
acusação formal já formulada, o magistrado exercerá a análise se existem ou não
elementos suficientes para o recebimento da denúncia.
A adoção de tal medida tem por finalidade viabilizar um efetivo sistema
acusatório, garantindo o respeito à força normativa da Constituição e aos princípios
fundantes do moderno direito processual penal.
Afinal, o que significa o sistema acusatório? Essencialmente a
separação, como direito fundamental de qualquer cidadão, entre o órgão do
3
Estado, incumbido de oferecer a acusação e o órgão do estado que possuí a tarefa
de julgar.
Essa separação, clausula pétrea de nossa Constituição, tem por objetivo
precípuo garantir ao réu um julgamento imparcial e justo.
Ora, lógica e cronologicamente anterior à participação do Estado juiz é
necessária à formulação de uma acusação.
Quid iure se o órgão constitucionalmente incumbido de efetuar essa
acusação não a faz?
Ora, deve-se frisar que o sistema acusatório implica necessariamente
que para a existência de um processo penal haja uma dupla valoração positiva
estatal (primeiramente do Ministério Público - oferecimento da denúncia- e
posteriormente do juiz- recebimento da denúncia) acerca da existência de indícios
de autoria e prova de materialidade de crime supostamente
por parte do
investigado.
Se o primeiro filtro estatal (Ministério Público) já não vislumbra a
existência de crime, não há que se falar em intervenção de juiz para ratificar, ou
não, tal decisão. Até porque é pressuposto lógico da atuação do juiz um primeiro
juízo positivo por parte do Estado Acusador.
Se esse primeiro filtro estatal é negativo os fatos já não podem ser
apreciados pelo juiz (segundo e último filtro para o exercício do jus puniendi
estatal).
4
Todas essas considerações derivam de um efetivo sistema acusatório
previsto na Carta Magna de 1988.
Muitos argumentam , então, que o Ministério Público ficaria sem controle
e que é indispensável a participação do juiz para funcionar o tradicional sistema de
freios e contra-pesos de poderes.
Efetivamente, se se analisar friamente o artigo 28 do CPP pode-se
afirmar que existe algum controle efetivo por parte do juiz sobre a instituição do
Ministério Público? Claro que não, até porque a última palavra
sobre o
oferecimento da denúncia nos termos tradicionais do Código é do Ministério
Público.
Então, que mecanismo efetivo de controle é esse, em que o próprio
poder controlado decide o conteúdo do ato ao final do controle? No máximo há um
controle sobre a atuação dos Promotores de Justiça e dos Procuradores da
República, mas sobre a instituição Ministério Público controle efetivo no sistema
tradicional já não existe.
Ocorre, que muito pior que isso é atribuir esse simulacro de controle a um
juiz que deve ser garantista.
Definitivamente, não é admissível que o órgão julgador do Estado exerça
juízo de valor se o primeiro filtro do cidadão já se manifestou negativamente.
Não se está a falar de tertúlias acadêmicas, mas sim de um processo
penal e de todos os danos que invariavelmente esse ato já causa a qualquer
cidadão.
5
Pelo sistema tradicional do CPP, o juiz, sem uma acusação formal, ao
contrário com um pedido expresso de arquivamento, estudo os autos do inquérito
policial e constata que, em tese, existe crime e que é preciso ser formulada uma
denúncia.
Que paradoxo! O órgão estatal que julga se coloca efetivamente como
se órgão acusador fosse.
Num sistema inquisitorial, como o do Código fascista Italiano, que serviu
de inspiração para o nosso CPP, tal situação é plenamente compreensível.
Entretanto, no sistema acusatório tal medida é, data maxima venia,
impossível e absurda por contrariar a lógica do princípio acusatório.
Remeto, então,
incontinenti à Câmara de Coordenação e Revisão
Criminal do MPF com o único objetivo de evitar que um ato de sérias
conseqüências fique sem nenhum controle, o que é incompatível com o Estado
Democrático de Direito.
Com a medida adotada, evitam-se dois graves problemas, a saber:a)
que não haja uma indevida atuação do juiz sem acusação formal e b) que o ato de
arquivamento do inquérito policial fique sem qualquer controle.
O cidadão tem o direito constitucional de que um juiz somente aprecie um
fato após uma formal acusação por parte do Estado, tanto que a participação do
juiz nas investigações preliminares, somente são admissíveis quando envolverem
medidas acobertadas pelo manto da reserva de jurisdição.
6
Ante as razões expostas concluo que deve o magistrado em qualquer
pedido do Ministério público de arquivamento de Inquérito policial encaminhar os
autos do inquérito a Câmara de Coordenação e Revisão criminal do MPF (LC
75/93), sem exercer qualquer juízo de valor sobre o cabimento ou não da acusação
contra o réu,
para que esse órgão efetue a fiscalização do princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública; sendo preservado
com essa nova
interpretação do artigo 28 do CPP o sistema acusatório previsto na Carta Magna
de 1988
Vitória, 2 de setembro de 2003.
AMÉRICO BEDÊ FREIRE JÚNIOR
Juiz Federal Substituto, em auxílio na 7.ª Vara e Professor de Processo Penal na
FDV, ex-Promotor de Justiça/MA.
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