1 VISÃO JURÍDICA DOS ATOS ILÍCITOS NO CÓDIGO CÍVIL DE 2002 Sílvio Ernane Moura de Sousa Professor Mestre do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos, Campus Araguari. Nathália Della Posta e Costa Bacharela em Direito e ex-graduanda do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos, Campus Araguari. INTRODUÇÃO A conscientização da população quanto aos seus direitos, trás a necessidade de esclarecimento quanto aos seus deveres, principalmente, sobre as conseqüências de uma ação voluntária em desacordo com o ordenamento jurídico. Portanto, o estudo dos atos jurídicos ilícitos ganha importância, tendo em vista, principalmente, seu aspecto social. Destarte, a proposta do presente artigo é a de enfocar, sob a ótica do Código Civil 2002, a questão do ato ilícito e suas conseqüências jurídicas, bem como avaliar, de maneira direta e sucinta, a repercussão jurídica dos atos ilícitos em razão da sua nova disciplina legal no atual código civilista. Para tanto, inicialmente, apresentar-se-á uma noção geral sobre o tema proposto, procurando, desde já, fixar algumas premissas que serão de grande importância para o desenvolvimento do presente estudo. Nessa perspectiva, serão abordados, em um primeiro momento, temas como: a nova legislação civilista em face aos atos ilícitos e a questão da culpa no novo Código Civil. Em um segundo momento, será analisado, mais detalhadamente, o ato ilícito propriamente dito, colocando em discussão o seu conceito. Assim, ganha espaço contextual a principal conseqüência legal do ato ilícito, qual seja: a responsabilidade civil. Nesse sentido, cabe ressaltar que o estudo dos atos ilícitos, apesar de situado na parte geral, não deve ser dissociado das demais matérias constantes no sistema codificado, por uma questão de sistemática. Aliás, é bom salientar que sua conseqüência maior, a Responsabilidade Civil, encontra-se situada na parte especial do Código, razão para o seu estudo integrado. 2 Por derradeiro, outro tema de grande relevância jurídica, o abuso do direito considerado como ato ilícito, também ganhará uma atenção especial nesse trabalho. 1 ASPECTOS GERAIS DO TEMA A noção de ilícito, no âmbito do direito, não possui contornos absolutos, suscetíveis de predeterminação. Esta noção muda com as idéias morais relativas às relações sociais em cada época e em cada localidade territorial (países). É uma questão de moral social. Portanto, o indivíduo que, por acaso, acarrete um dano a outro indivíduo não comete só por isso um delito, se seu ato não é ilícito, se não ofende a um direito de terceiro conforme a moral predominante. Os atos jurídicos em geral são condutas humanas (ação/omissão) lícitas ou ilícitas. Condutas humanas lícitas são os atos a que a lei emprega os efeitos perseguidos pelo indivíduo. Esses atos humanos são realizados em conformidade com o ordenamento jurídico vigente, produzindo efeitos jurídicos voluntários, tencionados pelo agente. Por outro lado, as condutas humanas, tidas como ilícitas, são praticadas em desconformidade com as prescrições do ordenamento jurídico vigente. Muito embora repercutam na esfera do Direito, produzem efeitos jurídicos involuntários, mas determinados por esse ordenamento. Sendo assim, em vez de direitos, criam-se deveres. Desse modo, se o agente dos negócios ou atos jurídicos, por ação ou omissão, pratica ato contra o Direito, com ou sem intenção demonstrada de prejudicar, mas ocasiona prejuízo, dano a outrem, estamos no campo dos atos ilícitos. O ato ilícito pode constituir-se de ato único, ou de série de atos, ou de conduta ilícita. A ação ou omissão ilícita pode acarretar dano indenizável. O atual Código Civil prescreve em seu art. 186 a cláusula geral de responsabilidade civil referenciada no ato ilícito, nos seguintes termos: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Analisando o artigo acima transcrito, observa-se a sutil diferenciação feita pelo atual legislador, se comparado com o legislador de 1916. Nesse sentido, o novo 3 Código, na Parte Geral, conceitua o ato ilícito, deixando para disciplinar sua principal conseqüência, o efeito obrigacional de reparação do dano, na Parte Especial, ao regular a Responsabilidade Civil. O Código de 1916, a rigor, não trazia expressamente o conceito de ato ilícito, todavia, já na Parte Geral, reportava-se a ele para determinar seus efeitos (art.159)1. Apesar da nova sistematização não tenha o intuito de por si modificar substancialmente a noção já assentada de ato ilícito, traduz, em seu favor, uma técnica legislativa mais aperfeiçoada. Outrossim, percebe-se que o atual Código disciplina expressamente somente as modalidades culposas da negligência e da imprudência, não fazendo qualquer menção à imperícia. Entretanto, tal omissão não parece trazer maiores problemas, haja vista que os casos de imperícia podem ser incluídos tanto como imprudência ou como negligência. Nenhuma referência expressa foi feita à culpa no novo código civilista, ao contrário do que se fazia na 2ª parte do art. 159 do revogado Código de 1916, onde havia menção expressa da culpa. Assim sendo, diante dessa não-referência expressa, alguns poderiam afirmar que o novo art. 186, em regra, excluiria, do ato ilícito, a avaliação da culpa, ressalvadas apenas as hipóteses de coação moral ou física irresistível. Todavia, este posicionamento seria completamente descabido, pois significaria desmontar toda teoria até aqui construída em torno do ato ilícito. Destarte, a referida supressão tem a finalidade de, sob o prisma sistemático, guardar estrita coerência com a tendência objetivista trazida pela nova codificação. A mencionada finalidade pode ser claramente percebida no Título IX (arts. 927 a 954), especificamente reservado ao trato da responsabilidade civil. O Código Civil de 1916, influenciado pelo Código de Napoleão, baseava o seu sistema de responsabilidade quase que exclusivamente no ato ilícito, que tem a culpa latu sensu como elemento central2. Dessa maneira, a doutrina e a jurisprudência entendiam que, para surgir o dever de indenizar, fazia-se necessário que a vítima conseguisse demonstrar a conduta culposa do agente causador do dano. 1 “Art.159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar” - Código Civil de 1916. 2 STOCO, 2007, p. 203. 4 Entretanto, como forma de superar essa extremada rigidez do subjetivismo, as premissas da responsabilidade objetiva ganham espaço. Contudo, visando evitar exageros, diante das premissas avaloradas da responsabilidade objetiva, a análise da mesma leva em conta sua extensão. Assim, as premissas da responsabilidade objetiva devem ser aplicadas tão somente em situações específicas (em consonância com a lei), pois, ainda, em nosso ordenamento jurídico, a responsabilidade subjetiva é a regra. Embora a responsabilidade objetiva apresente inúmeras vantagens, não pode ainda pretender, mesmo na atualidade, aplicação plena. O risco e a culpa constituem, hoje, fontes de responsabilidade, que, embora diferentes, convivem harmoniosamente3. A rigor, o Código Civil traz apenas três artigos referentes ao ato ilícito em si, são eles: art.186, art.187 e o art.188. Nesses artigos: o conceito de ato ilícito, a conseqüente responsabilidade civil, o abuso do direito e as excludentes de ilicitude. No que se refere à responsabilidade civil, embora o novo Código mostre na parte geral sua presença, foi na parte especial do Código Civil que o legislador trabalhou com mais minúcias a verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade como um todo. 2 ATOS ILÍCITOS O conceito de ato ilícito é de grande importância, por ser o fato gerador da responsabilidade civil. A quem pratica o ato ilícito resta o dever de indenizar, caso gere dano ou prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral e em caso de negligência ou imprudência restam sanções como multa ou prisão. O doutrinador Antunes Varela faz importante observação sobre o conceito de ato ilícito, ao mencionar que o elemento básico da responsabilidade é o fato do agente, sendo este fato dominável ou controlável pela vontade, configurando um comportamento ou uma forma de conduta humana. Pois só quanto a fatos dessa natureza, têm cabimento a idéia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei impõe. 3 TOLOMEI, 2002, p. 198. 5 O professor e doutrinador Carlos Roberto Gonçalves também faz o seguinte relato sobre o ato ilícito: Ato ilícito é, portanto, fonte de obrigação: a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado. É praticado com infração a um dever de conduta, por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, das quais resulta dano para outrem. 4 As definições dadas ao ato ilícito seguem essa mesma linha – profunda ligação entre o seu conceito e o de culpa. Todavia, esse critério trás enorme dificuldade em versar sobre responsabilidade objetiva, na qual não se cogita a culpa. Destarte, se a culpa integra o ato ilícito, então, conclui-se, onde não houver culpa também não haverá ilícito. Assim sendo, qual seria o fato gerador da responsabilidade objetiva? Diante dessa dificuldade, o doutrinador Alvino Lima5, afirma configurar uma redundância dizer que a culpa é um ato ilícito. Existem também os que defendem a tese de que a obrigação de reparar sem culpa não é caso de responsabilidade, porém, de uma simples garantia. Entretanto, esse último entendimento não pode vingar, pois a responsabilidade objetiva é universalmente reconhecida e consagrada, sendo que seus domínios cada vez mais se expandem, não havendo mais razão para negar sua existência nos casos de indenização sem culpa. Antes da análise conceitual do ato ilícito em sentido amplo e estrito, é bom tecer alguns comentários sobre o duplo aspecto da ilicitude, pois tais explicações ajudarão numa melhor compreensão das duas faces do ato ilícito. No aspecto objetivo da ilicitude, leva-se em conta para sua configuração apenas a conduta ou fato em si mesmo, sua materialidade ou exterioridade, e verifica-se a desconformidade dela com a que o Direito queria. A conduta contrária à norma jurídica é tida como ilícita, ainda que não tenha origem numa vontade consciente e livre. Isso se deve pelo fato do legislador, ao impor determinada conduta, ter valorado positivamente o fim que essa conduta visa a atingir. Assim, pode-se afirmar que a antijuridicidade de uma conduta é normalmente estabelecida à luz de certos valores sociais, valores estes que podem ser englobados na noção tradicional do bem comum. Em suma, toda vez que uma conduta humana é contrária à norma jurídica, o valor supracitado será ferido em sua essência, ainda que tal conduta não decorra de ato humano voluntário. 4 5 GONÇALVES, 2003, p.162. LIMA, 2003, p. 97. 6 Já no aspecto subjetivo da ilicitude, a qualificação de uma conduta como ilícita implica fazer um juízo de valor a seu respeito, sendo esse juízo de valor somente possível se tal conduta resultar de ato humano consciente e livre. Por esse prisma subjetivista, a ilicitude só se configura quando o comportamento objetivamente ilícito for também culposo. Nesse sentido, manifestou o autor Orlando Gomes: Mas a antijuridicidade objetiva distingue-se nitidamente da antijuridicidade subjetiva. Para que esta se configure, é necessário que o ato seja imputável ao agente, isto é, a quem tenha procedido culposamente. Na antijuridicidade objetiva, a reação da ordem jurídica não leva em conta o comportamento do agente. Ademais, pode ser provocada por um fato stricto sensu, enquanto a antijuridicidade subjetiva sempre é conseqüência de ato voluntário. 6 Feita essa breve observação sobre o duplo aspecto da ilicitude, pode-se passar à análise conceitual do ato ilícito em seu duplo sentido. Em sentido estrito, o ato ilícito é o conjunto de pressupostos da responsabilidade. Na responsabilidade subjetiva, serão necessários, além da conduta ilícita, a culpa, o dano e o nexo causal. É o sentido do artigo 186 do Código Civil. A culpa insere-se como um dos pressupostos da responsabilidade subjetiva. A culpa é o elemento nuclear do ato ilícito que lhe dá causa. Por outro lado, a responsabilidade objetiva não exige culpa como pressuposto necessário para a sua configuração. Já em sentido amplo, o ato ilícito indica apenas a ilicitude do ato, tido como contrário ao Direito, sem qualquer menção ao elemento subjetivo ou psicológico. Cabe salientar que o conceito de ato ilícito, impresso pela doutrina clássica, tornou-se insuficiente até mesmo para a verificação da responsabilidade subjetiva. Assim, levando-se em consideração o conceito da culpa como erro de conduta, medido pelo proceder do homem prudente e imputável moralmente, observa-se que as necessidades sociais arrastaram a doutrina e a jurisprudência dos tribunais a uma idéia mais ampla da culpa. Destarte, pode-se concluir que o conceito estrito de ato ilícito, tendo a culpa como um dos seus elementos, tornou-se insuficiente até mesmo na responsabilidade subjetiva. 6 GOMES, 1995, p. 52. 7 Já em sede de responsabilidade civil objetiva, só tem resguardo o ato ilícito em sentido amplo, assim compreendido como a mera contrariedade entre a conduta e a ordem jurídica, em razão da violação do dever jurídico preexistente7. Na visão moderna da atual doutrina, o Código Civil de 2002, assumiu em relação ao ato ilícito uma postura dicotômica, visto que a responsabilidade subjetiva é baseada no ato ilícito stricto sensu, previsto no artigo 927, lembrando que o parágrafo único deste mesmo artigo traz outras situações igualmente geradoras da obrigação de indenizar independentemente de culpa, configurando a responsabilidade objetiva. É de extrema importância salientar que o Código Civil também formulou outro conceito de ato ilícito, mais abrangente, no seu artigo 187, no qual a culpa não é elemento integrante. Nesse aspecto, têm-se como elementos integrantes a boa-fé, os bons costumes e o fim econômico ou social do Direito. O abuso de direito também foi enquadrado como ato ilícito dentro de uma visão objetiva, pois boa-fé, bons costumes, fim econômico ou social, nada mais são que valores ético-sociais consagrados pela norma em defesa do bem comum, que não se aproximam com o conceito de culpa. É de suma importância ressaltar que o Código Civil de 2002, contém cláusulas gerais tanto para a responsabilidade subjetiva como para a objetiva, cada qual abrangendo determinadas áreas da atividade humana. A base da responsabilidade subjetiva é o ato ilícito stricto sensu (artigo 186), tangível, basicamente, nas relações individuais. Já o ato ilícito em sentido amplo é a base da responsabilidade objetiva, incidindo, basicamente, nas relações entre o indivíduo e o grupo (Estado, empresas, fornecedores de serviços, produtos etc). Ademais, não é demais salientar que na responsabilidade subjetiva a culpa configura-se como um de seus pressupostos, enquanto, na responsabilidade objetiva a simples violação voluntária de um dever jurídico preexistente enseja a sua configuração. Por fim, é necessário relatar que o elemento nuclear da responsabilidade é o descumprimento de um dever jurídico por uma conduta voluntária do agente, ensejando para este o dever de responder pelas conseqüências jurídicas daí decorrentes, caso ocorra dano a outrem8. 7 8 CAVALIERI FILHO, p. 2008, p. 209. VARELA, 2002, p.58. 8 Nesse sentido, pode-se afirmar que não basta, para ensejar o dever de indenizar, a prática de um ato prejudicial aos interesses de outrem; é necessário violar dever jurídico preexistente (ilicitude). Por exemplo, se um feirante instala sua barraca de frutas e verduras próximo a outro feirante, que comercializa os mesmos produtos, certamente causará a este prejuízo, pois lhe diminuirá o movimento e os lucros, entretanto, o primeiro em nada terá que indenizar o segundo, tendo em vista a inexistência de violação dever jurídico preexistente. A ilicitude só surgirá, e, conseqüentemente, o dever de indenizar, se vier a praticar concorrência desleal. A ilicitude deve constar da conduta do agente, e não do dano que dela nasça, que é o seu efeito. Destarte, sendo lícita a conduta, em princípio não haverá o que indenizar, ainda que danosa a outrem. Bem verdade que existem atos lícitos que podem gerar responsabilidade, mas são casos excepcionais. De outra lado, pode-se afirmar que a responsabilidade civil, de certa forma, integra o Direito Obrigacional, tendo em vista que sua conseqüência maior é a obrigação de indenizar (obrigação de natureza pessoal). Nesse sentido, não resta dúvida que o ato ilícito enquadra-se como uma das fontes do Direito Obrigacional, ao lado da lei, do contrato e da declaração unilateral de vontade, sendo por tanto a transgressão da norma, havendo sempre uma conseqüência negativa ao causador quando esta ocorrer. 3 CONSEQUÊNCIAS DOS ATOS ILÍCITOS: RESPONSABILIDADE CIVIL. A obrigação de indenizar é a primeira conseqüência jurídica do ato ilícito. O dano causado por este é responsável pela quebra do equilíbrio jurídico-econômico, anteriormente existente entre o agente e a vítima. Nesse foco, é necessário que se restabeleça o mencionado equilíbrio, para tanto, procura-se restaurar a vítima o seu statu quo ante. Nesse campo, procura-se repor ao prejudicado, tanto quanto possível, à situação anterior à lesão. Sendo uma das formas de restituição ao statu quo ante, a fixação de uma indenização determinada em proporção ao dano. Todavia, não se pode deixar de mencionar, que mesmo havendo violação de um dever jurídico por parte do agente, nenhuma indenização será devida caso não 9 haja verificação de prejuízo, por parte da vítima. Deste modo, a obrigação de indenizar decorre da existência da violação de direito e do dano, simultaneamente. Do art. 186 do Código Civil depreende-se a denominada imputabilidade, isto é, a existência, no agente, da livre determinação de vontade. Nesse sentido, podese afirmar que para alguém ser responsabilizado pela prática de um ato ilícito, é necessário que o mesmo, no momento de sua conduta, tenha discernimento suficiente para entender a ilicitude de seu comportamento. Destarte, aquele que não tenha discernimento no momento da conduta, não incorre em culpa e, por isso, não pratica ato ilícito9. Para responsabilização pelo ato ilícito, imprescindível se faz determinar a imputabilidade do agente. No tocante aos agentes incapazes, não há qualquer dúvida. Todavia, no que concerne aos considerados legalmente incapazes, a questão não é pacífica quanto à responsabilização ou não dos mesmos. Pelo que dispunha o art. 156 do Código Civil de 1916, muito se discutira a respeito dessa questão. O doutrinador Antonio Ferreira Coelho, afirmava, na vigência daquele diploma civil, que não se deveria indagar acerca do discernimento do agente, pelo que qualquer um responderia independentemente da capacidade, pela reparação dos danos derivados de atos ilícitos. Lado outro, o Código Civil de 2002 não trouxe dispositivo legal com redação semelhante ao antigo art. 156, mencionado acima. Numa primeira leitura, mais desatenta, do Código Civil atual, poder-se-ia concluir que o menor responderia, indistintamente, pelo ato ilícito, sem qualquer cogitação de sua capacidade. Essa interpretação traria verdadeiro absurdo. Entretanto, como se verá a questão deve ser encarada em outros termos e, para tanto, deve sistematicamente invocar as regras da Parte Especial, em especial o disposto no art. 928 do Código Civil. Também, para essa análise, não se pode e nem se deve esquecer do Estatuto da Criança e do Adolescente10. O ordenamento jurídico, pretendendo proteger os incapazes, confere aos mesmos, representações legais em sentido amplo, de determinadas pessoas, que passam a atuar como responsáveis desses incapazes. Portanto, por exemplo, a conduta do incapaz resultante em um ato ilícito, será, em um primeiro momento, de 9 QUEIROGA, 2003, p.254. DINIZ, 2009, p. 387. 10 10 inteira responsabilidade de seu responsável, cabendo a este responder pela reparação, em regra, com o seu próprio patrimônio11. Porém, excepcionalmente, os pais, os tutores e os curadores podem não responder pelo dano causado à vítima, seja em razão de ordem legal, por exemplo, o pai que se encontra desprovido da guarda e da companhia do filho menor; seja em razão de ordem econômica, quando por exemplo, o patrimônio do responsável é insuficiente para arcar com a indenização. Diante dessas excepcionalidades, o atual Código Civil, trouxe significativas inovações, criou no art. 928 duas exceções ao princípio de responsabilidade dos incapazes: a) no caso em que os responsáveis não tenham a obrigação de indenizar, o patrimônio do incapaz responde diretamente pelos prejuízos. b) no caso em que os responsáveis não disponham de meio suficiente para arcar com a indenização, o patrimônio do incapaz é atingido apenas subsidiariamente, de forma a complementar o que faltar para o integral valor da indenização. O legislador preferiu prestigiar o direito da vítima, nem que para isso atinja o patrimônio do incapaz. Combinando esta perspectiva legal com a idéia de proteção mínima do incapaz, o Código Civil, no parágrafo único do art. 928, estabeleceu que a indenização seja justa e que não prive o incapaz dos meios necessários à sua sobrevivência. Esta regra inspira-se no princípio geral da responsabilidade civil contemporânea, combinada com os fundamentos constitucionais da República, enfocando, principalmente, o princípio da dignidade humana. Por este princípio, não se determina apenas a proteção aos diversos atributos inerentes à pessoa, mas exige-se, além disso, a garantia mínima de que cada indivíduo tenha os meios necessários para o desenvolvimento da sua personalidade e para a manutenção de uma vida digna. Nesse sentido, busca-se, independentemente de previsão normativa específica, um patrimônio mínimo do indivíduo, imune e superior aos interesses de qualquer credor. Portanto, mesmo havendo violação de um dever jurídico, existindo culpa e até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida uma vez que 11 FIUZA, 2000, p. 299. 11 não se tenha verificado prejuízo. Não existindo dano, para o Direito Privado o ato ilícito é irrelevante. A ausência de dano torna sem objeto a pretensão à sua reparação. Excepcionalmente, a lei presume o dano, como acontece na Lei de Imprensa, que pressupõe a existência de dano moral em casos de calúnia, difamação e injúria, praticadas pela imprensa. 4 O ABUSO DO DIREITO COMO ATO ILÍCITO Inicialmente, é bom salientar que o instituto do abuso do direito foi conhecido no século XX pela doutrina e jurisprudência, a despeito de que seus vestígios foram identificados nos atos do direito medieval, bem como na teoria do direito romano12. Conforme registro histórico, em 1912, com o caso Clement Bayard13, julgado pela Corte de Amiens, a teoria do abuso do direito tornou-se amplamente conhecida. Somente a título de registro histórico, é importante salientar que a formulação do conceito e premissas do instituto do abuso de direito, fizeram surgir diversas teorias, as quais procuraram justificar ou negar o ato abusivo, identificando-o ou distinguindo-o do ato ilícito. No entanto, a teoria que mais ganhou defensores, quando do início histórico das discussões doutrinárias sobre o abuso de direito, foi a denominada afirmativista, que, em regra, compreendia o abuso do direito apenas como princípio geral de interpretação das normas jurídicas, ou seja, como instrumento a permitir a adaptação do direito positivo à realidade social. Apesar de não ter solucionado o problema da identificação do ato abusivo, esta teoria contribuiu para a formulação do conceito, introduzindo a idéia de que as normas que atribuem direitos não devem ser interpretadas de acordo somente com sua letra, mas também de acordo com seu espírito, isto é, segundo um conteúdo valorativo. Após longos estudos e discussões sobre o ato abusivo, a doutrina, finalmente, evoluiu para a visão do ato abusivo como aquele pelo qual o agente extrapola os limites ao exercício do direito, sendo estes fixados por seu fundamento axiológico, ou seja, o abuso surge no interior do próprio direito, sempre que ocorra uma desconformidade com o sentido teleológico em que se funda o direito subjetivo. O CARPENA, 2002, p. 143. No caso Clement Bayard, consta que o proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer justificativa, enormes torres no vértice das quais instalou lanças de ferro, colocando em perigo as aeronaves que ali aterrizavam. A decisão considerou abusiva a conduta, responsabilizando o proprietário. 12 13 12 fim – social ou econômico – de um certo direito subjetivo não é estranho à sua estrutura, mas elemento de sua própria natureza. Nesse sentido, a teoria do abuso do direito passa a rever o próprio conceito de direito subjetivo, tornando-o relativo. Destarte, pode-se afirmar que a caracterização do ato abusivo depende do estabelecimento de limites ao exercício do direito subjetivo, além dos quais o titular ingressa no plano da antijuridicidade, sujeitando-se às sanções correspondentes. Duas teorias procuram definir e explicar as premissas do denominado abuso do direito. A chamada teoria subjetiva vê abuso do direito quando o ato, apesar de amparado pela lei, for praticado deliberadamente com o interesse de prejudicar alguém. Já para outra teoria, chamada de objetiva, o abuso do direito estará no uso anormal ou antifuncional do direito. Caracteriza-se pela existência de conflito entre a finalidade própria do direito e a sua atuação no caso concreto. O nosso Código Civil, em seu art. 927, aponta também o abuso do direito como fonte da obrigação de indenizar. Em consonância com os mais modernos códigos civis, o código civil pátrio conceituou o abuso do direito como ato ilícito no seu art. 18714. Da exatidão desse artigo, depreende-se, em primeiro lugar, que a concepção adotada em relação ao abuso do direito é a objetiva, haja vista a prescindibilidade da consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito; basta que se excedam esses limites. O nosso Código filiou-se à doutrina de Saleilles, a quem coube conceituar o abuso do direito como exercício anormal do direito, contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, que, reprovado pela consciência pública ou social, excede, por conseqüência, o conteúdo do direito15. Uma segunda conclusão pode-se retirar da análise do art. 187 do Código Civil, que é a de estar definitivamente afastado o entendimento doutrinário, de que o abuso do direito não configura ato ilícito. A lei expressamente diz que o é, embora “Art.187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. – Código Civil de 2002. 15 Destaca-se neste sentido o Enunciado n.37 da Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal (Brasília, setembro de 2002): “a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivofinalístico”. 14 13 com características próprias e conteúdo especial. No abuso do direito à conduta é respaldada em lei, porém, fere ostensivamente o seu espírito. Por fim, em razão do art. 187 do Código Civil, conclui-se que o abuso do direito, outrora estranho ao Código de 1916, foi agora construído a princípio geral, podendo abarcar todas as áreas do Direito (obrigações, contratos, propriedade, família), pois a expressão “o titular de um direito” abrange todo e qualquer direito cujos limites foram excedidos. A adoção da teoria do abuso do direito pelo nosso ordenamento jurídico representa um dos aspectos da constitucionalização do Direito Civil, tendência moderna e característica do Estado Social, possibilitando a permanente oxigenação do sistema ao permitir a adequação das normas à realidade social, em constante mutação16. Nessa linha de raciocínio, as normas constitucionais contêm os fundamentos e os princípios da República e descrevem um projeto de sociedade, a ser realizado através dos valores por ela mesma escolhidos como mais relevante num dado momento histórico. Essas normas constitucionais incidem diretamente sobre as relações interprivadas, legitimando, tão-somente, os atos praticados em conformidade com os valores fundamentais do ordenamento, contidos na própria Carta Magna. CONCLUSÃO Em uma análise limitada do direito, pode-se conceituar o ato ilícito como sendo todo o fato que, não fundado em direito, cause dano a alguém. Para que um fato configure ato ilícito, dentro de uma concepção jurídica, é necessário que infrinja um direito preexistente de que outrem seja titular, só então se abre espaço para responsabilidade civil. Portanto, o ato ilícito é sempre uma conduta voluntária (ação ou omissão) que infringe um dever jurídico, e não que simplesmente ameace infringi-lo. De tal modo que, desde o momento em que um ato ilícito foi praticado, estar-se-á diante de um processo executivo, e não diante de uma simples manifestação de vontade. Todavia, nem por isso o ato ilícito dispensa uma manifestação de vontade. Nesse sentido, se 16 BITTAR, 2003, p. 345. 14 faz necessário que essa conduta humana seja voluntária. Concluindo, ato ilícito é o conjunto de pressupostos da responsabilidade. Finalmente, diante da estreita relação existente entre o ato ilícito e a responsabilidade civil, pode-se afirmar o caráter solidário do Código Civil de 2002. Portanto, afasta-se definitivamente a natureza individualista da codificação anterior, que se chocava frontalmente com nossa orientação constitucional, expressamente consolidada nos princípios fundamentais da República. De outro lado, ao mesmo tempo em que mantém inalterada a clássica noção de ato ilícito, o atual Código adota um sistema paralelo de responsabilização objetiva, baseado, ou na lei ou no risco, incorporando em seu texto, o resultado de décadas de discussões na doutrina e nos tribunais. Por exemplo, na chamada teoria do risco, solidariza-se a obrigação de reparar o dano, em casos específicos, onde, antes, se condenava a própria vítima a assumir o prejuízo, em razão da insuficiência da teoria da culpa, o que, na realidade, soava como grande injustiça. Nesse sentido, não paira dúvida alguma de que a consagração do princípio da responsabilidade objetiva no código civilista significa o acolhimento legislativo de conquistas, já não tão recentes, da experiência social e da cultura jurídica. BIBLIOGRAFIA BITTAR, Carlos Alberto e BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito Civil Constitucional – o direito civil na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: RT, 2003. CARPENA, Heloísa. Abuso do Direito no Código de 2002 apud A Parte Geral do novo Código Civil – Coordenador Gustavo Tepedino. Rio de janeiro: Renovar, 2002. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. SP: Atlas, 2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, v. 7. 23ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009. 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