A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA NO AMBIENTE DIGITAL Elizabeth Conceição de Almeida Alves ([email protected]) Coautora: Ardalla Guimarães Oliveira ([email protected]) Coautora: Waldinéia Lemes da Cruz Alves ([email protected]) Orientador: Prof. Dr. Dánie Marcelo de Jesus ([email protected]) Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT RESUMO: É perceptível o fato de que no contexto contemporâneo emergem inúmeras formas de ler e escrever diante da nova dinâmica que a sociedade vivencia, suscitada pela presença de um aparato tecnológico em quase todas as áreas do cotidiano das pessoas. No entanto, vivemos em um país em que é recorrente ouvirmos que os jovens não gostam de ler, principalmente as leituras tradicionais sugeridas nos currículos escolares. Nesse novo cenário, pesquisadores (BUZATO, 2007; LANKSHEAR E KNOBEL, 2006; SOUZA, 2011; ROJO, 2012, 2013) vêm enfatizando a importância dos estudos de novos letramentos entendidos como práticas sociais que podem ser manifestadas de diferentes formas, em lugares diferentes e em situações distintas, como no ambiente digital. Com base nessa realidade, este trabalho tem por objetivo investigar a presença dos novos letramentos nesse universo social permeado por práticas sociais, mediante tecnologias digitais observadas em comunidades que utilizam dessas práticas para comunicar, ler e produzir no ambiente digital, enfim, interagir-se e compreender como adolescentes participam de eventos de letramentos fora da sala de aula. Um desses estilos de interação é o “fanfiction”. Tal fenômeno é uma prática de letramento on-line. A “fanfic”, abreviação do termo em inglês fanfiction, ou seja, “ficção criada por fãs” que também pode ser chamada de Fic, trata-se de contos ou romances escritos por terceiros. Os autores dessas Fics são chamados de Fictores. Esse tipo de gênero não apresenta caráter comercial nem lucrativo, pois são escritos por fãs, que utilizam a tela para escrever histórias à partir de personagens ficcionais já existentes. De acordo com Vargas (2005), no Brasil, essa prática se tornou mais visível e ganhou impulso a partir de 2000, ano em que foi publicado o primeiro livro da Série Harry Potter, de J. K. Rowling. É nesse contexto de leitura e produção na tela e com o advento da internet, que o gênero fanfiction emerge como uma prática de letramento online motivada pela utilização de produtos associados à indústria do entretenimento. Mesmo já existindo antes da internet, foi com o advento dessa que as fanfictions começaram a agregar um número maior de fãs havendo um engajamento mútuo das pessoas que participam dessa comunidade virtual, rompendo barreiras geográficas e linguísticas. É, portanto, por meio desses desafios quanto a funcionalidade do letramento digital e com o intuito de compreender melhor essa prática social na atualidade, que investigarei quatro adolescentes do sexo feminino, característica peculiar do gênero fanfiction que escrevem colaborativamente no ambiente digital. Para entender e interpretar essas práticas sociais emergentes na atualidade, utilizo da abordagem interpretativista de fazer pesquisa. Tal abordagem passou a ser relevante no estudo das ações sociais e consequentemente a significação que essas ações confere aos atores imersos no letramento digital. Essa investigação se encontra em andamento e sob o olhar interpretativista se apoia em análises de dados gerados, por meio de entrevistas, cuja intenção é mostrar como a escrita se constitui por meio do fanfiction e aponta para resultados que venham contribuir para a minha própria prática e levantar indagações para futuras pesquisas. PALAVRAS CHAVE: letramentos, fanfiction, escrita ABSTRACT: It is noticeable the fact that, in the contemporary context, emerge countless ways to reading and writting facing the new dynamic that society experiences, aroused by the presence of a technological apparatus in almost all areas of people’s daily lives. However, we live in a country where we recurrently hear that young people do not like to read, especially the suggested traditional readings in school curricula. In this new scenario, researchers (BUZATO, 2007; LANKSHEAR, KNOBEL, 2006; SOUZA, 2011; ROJO, 2012, 2013) have emphasized the importance of studying the new literacies understood as social practices that can be expressed in different ways, in different places and in different situations, as in the digital environment. Based on this fact, this work aims to investigate the presence of new literacies in this social universe, permeated by social practices through digital technologies observed in communities that use these practices to communicate, read and produce the digital environment, finnaly, interact and understand how adolescents participate in literacies events outside the classroom. One of these interactive styles is the “fanfiction”. Such phenomenon is a practice of online literacy. “Fanfic”, an abbreviation of the English term “fanfiction”, ie “fiction created by fans” which can also be called Fic, are short stories or novels written by others. The authors of these Fics are called Fictores. This type of genre does not have commercial or commercial purpose, because they are written by fans using the screen to write the stories from existing fictional characters. According to Vargas (2005), in Brazil, this practice has become more visible and gained momentum from 2000, when the first book in the JK Rowling’s Harry Potter series was published. In this context of reading and production on the screen togheter with the advent of internet, the fanfiction genre emerges as a practice of online literacy, motivated by the use of associated products to the entertainment industry. Even existing before the internet, it was with the advent of this one, that fanfiction began to aggregate a increasingly number of fans, having a mutual engagement of people who participate in this virtual community, breaking geographical and linguistic barriers. It is therefore, through these challenges as the functionality of digital literacy and in order to better understand this social practice today, which I will investigate four teenage girls, peculiar characteristic of the genus fanfiction, that write collaboratively in the digital environment. To understand and interpret these emerging social practices today, I use the interpretive approach to research. Such an approach became relevant in the study of social action and consequently the signification that these actions gives to the actors, immersed in digital literacy. This investigation is ongoing and under the gaze rests on interpretive analysis of data generated through interviews, whose intention is to show how it is written through fanfiction and points to findings that may contribute to my own practice and raise questions for future research. KEYWORDS: Literacies, fanfiction, writing 1. Introdução As sociedades contemporâneas têm perpassado por mudanças sociais e tecnológicas decorrentes de um contexto marcado pelo advento da internet. A internet tem sido um importante meio de comunicação e socialização de diferentes comunidades que em qualquer parte do mundo podem conectar-se, interagir das mais variadas formas. Nesse contexto tem emergido práticas letradas, dentre elas, fanfiction advinda da interação de fãs mediante a indústria de entretenimento. Dentro dessa cultura de participação, definida por Jenkins (1992, apud VARGAS, 2005) como “um novo estilo de consumo, que emerge devido a divulgação de novas tecnologias e pela convergência de mídias” inserida no ambiente virtual, estão presentes fãs leitores e escritores que passam a ser criadores de suas próprias histórias ficcionais. Nesse novo cenário, pesquisadores (BUZATO, 2007; LANKSHEAR E KNOBEL, 2006; SOUZA, 2011; ROJO, 2012, 2013) vêm enfatizando a importância dos estudos de novos letramentos entendidos como práticas sociais que podem ser manifestadas de diferentes formas, em lugares diferentes e em situações distintas, como no ambiente digital. Queremos então, destacar uma dessas realidades ou práticas sociais "fanfiction", termo resultante da fusão de duas palavras inglesas fan e fiction, ou seja, "ficção criada por fãs", mas que também pode ser chamada de Fic. Fanfiction é uma prática de letramento on-line. Os autores dessas Fics são chamados de Fictores. Esse tipo de gênero não apresenta caráter comercial nem lucrativo, pois são escritos por fãs que se utilizam de personagens ficcionais já existentes. De acordo com Vargas (2005), no Brasil, essa prática se tornou mais visível e ganhou impulso a partir de 2000, ano em que foi publicado o primeiro livro da Série Harry Potter, de J. K. Rowling. Os autores desse gênero escrevem a partir de certa afinidade que desenvolveram com personagens conhecidas através de leituras de livros, filmes, seriados, bandas e tais personagens despertam esses autores que não se contentam em apenas ler, assistir, ouvir e passam a interagir por intermédio da produção escrita criando e recriando histórias fictícias agindo como autor, porém sem fins lucrativos. Desse modo, pode-se dizer que tal prática tem sido vivenciada por jovens, adolescentes e crianças que escrevem sobre os seus personagens preferidos em aventura própria. Eles se engajam em eventos de letramentos diversificados que demandam ler e escrever na esfera digital, no entanto, muitos desses eventos não são reconhecidos pela escola, pois na instituição eles devem se envolver em leitura e escrita pertinentes às atividades propostas no currículo linear. É portanto, possível, afirmar que os adeptos de fanfiction participam da escrita colaborativa, mediados pela tela do computador, e que esse movimento está intrinsicamente relacionado ao processo de produção escrita no ambiente digital articulado pela interação de jovens, cujo interesse repousa em partilhar com as comunidades virtuais suas produções. Na seção seguinte, passo a trazer teorizações, que de certa forma, possibilitam reflexões no âmbito dos novos letramentos. O presente trabalho se fundamenta em uma pesquisa em andamento, cujo enfoque constituiu na investigação de quatro adolescentes que interagem nessa emergente prática social denominada fanfiction e que se aglutinam em ambientes virtuais partilhando leituras, escritas, opiniões, sem barreiras geográficas. 2. Letramentos: conceitos e suas contribuições na sociedade digital Nesse contexto, faz-se necessário apontar alguns conceitos de letramentos, no entanto um elemento essencial nesse percurso teórico é entender inicialmente a definição de letramento. Conforme Soares (2004), letramento reporta-se a um processo que vai muito além da aquisição de uma “tecnologia da escrita”. Takaki (2012) advoga que letramento se localiza em “contextos socioculturais específicos” e requer atribuições diferenciadas para cada situação. Ainda no âmbito de letramentos, Soares (2002) sugere que a pluralização da palavra se dá pela necessidade de reconhecer que o surgimento de diversificados tipos de tecnologias de escrita geram variados letramentos. Com a instalação das novas tecnologias, há uma mobilização orbitando as práticas sociais, tornando-as mais complexas. Ainda consoante a autora: “Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e, portanto, do fenômeno que ele designa já vem sendo reconhecida internacionalmente, para designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual, auditiva, espacial. (SOARES, 2002, p. 155, 156). Convém ainda ressaltar, perseguindo o pensar de Lopes (2010), que mais recentemente, os estudos atinentes a letramentos passaram a acrescentar outras práticas sociais não voltadas unicamente para o texto escrito, expandindo para conceitos mais abrangentes que considerem, de igual parte outras práticas de construção de sentido como letramentos radiofônicos, televisivos, digitais, etc, entendidos como novos letramentos. Alinhados a esse pensamento, Lankshear e Knobel (2007) denominam esses eventos como novos letramentos, pelo fato de vivermos em uma sociedade marcada pela digitalidade . Para os autores a digitalidade sinaliza a maneira técnica, ou seja, a condição dada pelo computador de modificar “textos, sons, cores”. No entanto, é necessário um novo pensamento, uma nova forma de agir diante das tecnologias avançadas. Ainda no mesmo rumo dos autores O mundo contemporâneo apresenta diferenças consideráveis comparativamente a trinta anos atrás, e essa diferença tem aumentado. Muito dessa mudança está relacionado ao desenvolvimento de novas tecnologias interconectadas e de novas formas de fazer coisas e de novos modos de elas serem viabilizadas por essas tecnologias. Mas e mais, o mundo tem se alterado em função de as pessoas explorarem palpites e “visões” do que seja possível, dado o potencial das tecnologias digitais e das redes eletrônicas. [...] (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007; p. 10 apud MAIA, 2013; p. 67-68) Com base nessa constatação, inegavelmente, um dos grandes desafios é entender os novos letramentos digitais como práticas sociais. Pensando nisso, Lopes (2010) explica tal fenômeno como um ambiente de romper paradigmas e de ampliar, de forma infinita, maneiras de relacionar-se socialmente, desfazendo as fronteiras tradicionais. Esse autor assevera ainda que os novos letramentos digitais apontam para uma realidade de maior participação entre as pessoas com a possibilidade de uma construção colaborativa de significados. Desta forma, um dos objetivos da escola deveria ser permitir que os alunos compartilhem das várias práticas sociais, ou seja, de práticas de letramento onde possam utilizar a leitura e a escrita. Para isso é pertinente que a educação linguística valorize na atualidade os diversos letramentos de forma ética e participativa. Vale ressaltar que tais práticas possibilitam os indivíduos contemporâneos serem participantes ativos e colaborativos envolvendo a integração efetiva do letramento impresso e do letramento digital. Nessa direção, Buzato (2004) aponta que o letramento digital pode ser compreendido como o conjunto de saberes que possibilita os indivíduos contemporâneos serem participantes ativos de práticas letradas mediadas por ferramentas tecnológicas. No âmbito da cultura digital, Magda Soares define letramento digital de maneira distinta: Um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e escrita na tela, diferente do estado ou condição - do letramento dos que exercem práticas de leitura e escrita no papel. (SOARES, 2002, p. 151 apud FRADE, 2011, p. 60) Para Frade (2011), é pertinente dizer que o letramento digital implica não apenas a apropriação de uma tecnologia, mas, acima de tudo, o exercício efetivo das práticas de escrita que circulam no meio digital. Todavia, compreendemos que o letramento digital é uma noção importante no cenário dinâmico contemporâneo, pois abarca uma infinidade de práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita no ambiente digital, mediado por tecnologias que vem instaurando novas formas de comunicação. Tomando, portanto, como premissa o aporte teórico até aqui sinalizado, na seção seguinte, passo a delinear a comunidade de navegadores. 3. Contextualização da comunidade de navegadores O espaço por onde esta pesquisa vem caminhando é um universo real e virtual. Real, uma vez que, segundo estudo realizado por Rheingold (2000), aponta que participam de comunidades virtuais, sujeitos que compartilham produções específicas subjacentes da vida cotidiana. Os participantes desse ambiente leem livros, assistem filmes, série televisiva, curtem revista em quadrinho, anime, videogame, bandas entre outros, que servem de base para produção de histórias ficcionais que são postadas em sites específicos. No entanto, há também os escritores que produzem fanfictions advindas de leitura on-line figurando assim os navegadores-autores. Tais comunidades virtuais são “comunidades de prática” (WEGNER, 1998). Pode-se entender como prática um evento sempre social que ocorre em contextos históricos específicos. Esses contextos são construídos pelos atores que deles participam, responsáveis por seu desenvolvimento, manutenção, permanência ou desaparecimento. Nesses espaços, os usuários expõem, de forma espontânea, suas percepções, produções, opiniões, experiências e compartilham nesse ambiente que pode ser entendido, então, “como um local de construção de uma 'inteligência coletiva' em potencial” (LÉVY, 2008). As comunidades aliadas, por exemplo, em torno da Banda Super Junior, expressam algo em comum, coletivo, que é o fato de serem fãs do mesmo estilo de música, e os seguidores que leem ou escrevem fanfiction sobre a banda criam uma ficção quase sempre com um ar romântico ou de amizade com um dos personagens que fascina os seguidores. Consoante Vargas (2005), é necessário entender que os sujeitos que dispõem de meios, informações e disponibilizam de tempo para partilhar em uma comunidade virtual, representam uma nova elite pró-ativa que permeia a sociedade contemporânea e que abarcam saberes que os diferencia dos navegadores da Web 1.0 que utilizavam a rede para checar informações. É nessa nova configuração contemporânea que habitam os leitores e escritores de tela. Dentre eles, jovens e adolescentes que tem o hábito de passar horas navegando na internet na busca e na leitura de histórias que reportam a um original, cuja admiração é compartilhada com usuários que integram determinada comunidade. Chartier considera que as novas formas de produção e leitura de texto na tela vem configurando uma revolução no processo de leitura e escrita. Segundo o autor, com essas mudanças, Se abrem possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a sua condição: ela substitui a materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar específico; às relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso ela opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens nem limites. Essas mutações comandam, inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas intelectuais. (CHARTIER, 1994, p. 100-101 apud SOARES, 2002, p. 152) Essas novas maneiras de ler e escrever que permeiam a pós-modernidade dão lugar a novos gêneros discursivos, possibilitados pela presença de novas tecnologias aliadas ao universo digital. Na sequência passo a descrever e analisar uma das categorias predominantes identificadas após a leitura e transcrição dos dados preliminares, mediante as falas e vivências das adolescentes participantes da pesquisa. Para fins de esclarecimento, acrescento que as participantes da pesquisa são assim identificadas: A1, A2, A3 e A4. A registrar que A se remete a Adolescente, ao passo que numeral é atribuído de acordo com a ordem das entrevistas. A sigla P indica a fala do Pesquisador. 4. Fanfiction e práticas de escrita na internet Nesta seção, vamos analisar práticas de escrita com o objetivo de entender como se desenrola o processo de produção de fanfiction no ambiente digital. Na sequência, descrevemos e analisamos duas das categorias suscitadas nos diálogos com as entrevistadas. 4.1. Exercício colaborativo e participativo de escrita Em um contexto de conexão, leitura, produção e interação ininterruptas, em que as informações se agregam em velocidade cibernética, o que se percebe na categoria exercício colaborativo e participativo de escrita é o envolvimento que torna possível o diálogo e a autoria. Nesse ambiente, as relações não são imparciais, uma vez que suscitam, nos participantes, a autoestima e possibilita o exercício de autoria. De acordo com as respostas coletadas, os comentários são prioritários na produção de fanfics, como evidenciados nos excertos a seguir: Excerto 1 P: “Você nunca postou uma fanfic completa?” A4: “Só one shot, só de um capítulo.” P: “Você postar capítulo por capítulo tem um por quê?” Qual seria?” A4: “Não terminou de escrever o próximo capítulo (risos).” P: “Você acha que seria só isso?” A4: “Na verdade, vou escrevendo a história, conforme os comentários, então, não tem como postar tudo.” P: “Então os comentários servem para dar uma energia para o escritor?” A4: “A história vai de acordo com eles (risos).” (Entrevista 8, em 06-11-2013) Excerto 2 P: “Os autores gostam que façam comentários?” A2: “Sim. Dessa forma estamos avaliando. Às vezes, elas são inseguras demais com a escrita, elas precisam de alguém para falar que está bom pra continuar escrevendo. Tem muitas garotas que abandonam as fanfics, por causa disso: porque não tem ninguém para comentar não tem ninguém para falar: “Nossa, como essa história é legal! É tão interessante! Escreve mais”. Então elas acabam abandonando”. (Entrevista 6, em 28-10-2013) Nesses excertos, pude perceber que no processo da produção de escrita na fanfiction, no que diz respeito à elaboração do texto, há uma expectativa quanto às intervenções provenientes dos comentários de A4 “A história vai de acordo com eles”, uma vez que, nesse perfil de atividade, o processo colaborativo está intimamente concatenado à constituição da escrita. No escrever fanfic, parece haver uma conexão por meio da interação e do trabalho associado ao grupo. Desse modo, as adolescentes rompem com antigos paradigmas de autoria, desmistificando a ideia do autor como o possuidor do que diz, já que, ao tomar a palavra, passa a falar a linguagem e não o autor (SANTAELLA, 2007). Essas adolescentes, a partir das opiniões, promovem a linguagem, pois a autoria se torna híbrida, isenta de padronização. Dessa maneira, o que sobressai é a produção ganhando conotação no universo ficcional. Adiciono, a esta discussão inicial, a fala em que a participante A4 expõe explicitamente que, para ela, os comentários explicitam um valor contundente no trajeto da criação “Na verdade, vou escrevendo a história conforme os comentários, então não tem como postar tudo”. No exemplo, há indício que a autoria é construída a partir de uma relação, colaborativa e não possessiva. Soma-se a esse exemplo a afirmação da A2 no trecho abaixo: Excerto 3 P: “Mas algumas escritoras fazem alterações na escrita da fanfic?” A2: “Sim, tanto que é normal você entrar em uma fanfic e ver alguém falando: “ah, essa parte aqui, eu que contribuí”, e também tem leitoras que pede para fazer a correção do português dizendo: “olha essa frase está legal, você podia colocar assim”, e as autoras sempre agradecem; elas falam: “ nossa, obrigada, é sempre bom ter alguém para colaborar”. As autoras agradecem pelas ideias.” P: “Mas algumas autoras mudam tanto a gramática quanto o enredo?” A2: Sim, geralmente a leitoras comentam e a escritora dialoga com as amigas sobre os comentários no sentido de incluir na história.” (Entrevista 9, em 14-03-2013) Nesse sentido, a escrita, como um exercício colaborativo e participativo, converge para uma diferente função do autor nas palavras de A2 “[...]tanto que é normal você entrar em uma fanfic e ver alguém falando: “ah, essa parte aqui, eu que contribuí”. Essa visão parece colaborar com o que afirma Azzari e Custódio (2013), atrelando a função do autor ao nascimento do leitor como um indivíduo que se envolve com uma diversidade de leituras, acrescida de debates e criações, que podem viabilizar sua atuação como protagonista “[...] geralmente as leitoras comentam e a escritora dialoga com as amigas sobre os comentários no sentido de incluir na história.” Além disso, chamo a atenção para o fato de A2 deixar transparecer que considera o comentário como um leque de possibilidades para que a leitora e comentarista alinhe à sua produção, havendo então a promoção do protagonismo ao afirmar “ A história vai de acordo com eles (risos)”. Com base ainda, no excerto da Adolescente 2 “Dessa forma estamos avaliando. As vezes elas são inseguras demais com a escrita elas precisam de alguém para falar que tá bom pra continuar escrevendo”, pode parecer que as participantes da pesquisa têm agregado as suas práticas sociais, mediadas pelas correntes eletrônicas, a escrita colaborativa, indicando assim, que a escrita na fanfiction, exige que novas habilidades sejam instauradas. Observo, que a entrevistada, no que concerne a escrita colaborativa, tenciona esclarecer que a habilidade de comentar é determinante na construção conjunta e participativa de fanfics, podendo-se enxergar uma diferente paisagem no processo de criação no mundo digital. Nessa dimensão Lopes (2010) argumenta que: “Os novos letramentos digitais, como práticas sociais envolvem a participação colaborativa de atores sociais localizados sócio-histórico culturalmente na construção conjunta de significados” (LOPES, 2010, p. 398). À luz dos diálogos analisados, parece ser possível considerar a construção conjunta de significados, característica da sociedade contemporânea, um fenômeno que revela um movimento que parece desordenar a linearidade a hierarquia, pois no espaço digital autor e leitor interagem intensamente “Nossa como essa história é legal é tão interessante escreve mais” gerando textos em uma rede de significados. Nesse sentido, Chartier (2002, p. 25) ressalta que no espaço digital há a escrita coletiva onde o leitor pode intervir no conteúdo como observamos no papel da comentarista. Enfatiza esse autor que o texto eletrônico, território flexível, expansivo, permite engajamento não o isolamento, pois se alimentam das ideias e opiniões na perspectiva de melhorar seu desempenho na escrita. Articulando essa premissa com a dinâmica ainda instaurada em muitos ambientes escolares, tal como aponta Tapscott (2010), em que é premente a prática “faça sozinho”, a participante parece admitir que o paradigma de aprendizado individual pode soar estranho para os sujeitos intimamente imersos no território virtual e que cresceram no ambiente de colaboração, criação e participação levando em consideração que : “Tem muitas garotas que abandonam as fanfics por causa disso porque não tem ninguém para comentar não tem ninguém para falar […] Então elas acabam abandonando”. Acredito que, diante dessa fala da Adolescente 2, parece ser de central interesse dessa geração, a cumplicidade com a escrita colaborativa, o que faz compreender que neste comentário há indícios que o ambiente digital parece ser um local de apoio mútuo e os usuários são impulsionados a prosseguir diante das contribuições dos leitores, traço que difere a escrita digital da escrita da escola. Diante disso, compreendo que as escolas contemporâneas necessitam de uma nova postura, um novo ethos diante de uma sociedade híbrida onde as relações são fluidas em todas as suas esferas, pois à luz de Sibilia (2012) os habitantes dos universos escolares estão bem diferentes daqueles que a frequentaram em épocas passadas tendo esse espaço como o meio prevalecente de socialização. Já as novas gerações se utilizam de novas maneiras de comunicar, colaborar e estão ávidos para contribuir com suas experiências nas comunidades das quais participam. 4.2. Aprendizagem fora do ambiente escolar Vive-se um momento social e histórico em que o advento do computador e a Web 2.0 indicam novas formas de aprender, falar, fazer e de estar presente no mundo contemporâneo. Em tempos de computação ubíqua, os jovens reconfiguram novas construções e participações em eventos de letramento. Segundo Lankshear e Knobel (2006, p. 30), as escolas ainda estão dominadas pelo letramento convencional e são os estudantes que vivem também em espaços fora da sala de aula que têm se engajado com os novos letramentos, como exemplificam os excertos a seguir: Excerto 4 P: “E você acha que com a leitura de fanfics você melhorou um pouco sua leitura, sua escrita? Você aprendeu palavras novas? Você conseguiu algum aprendizado?” A1: “Eu comecei a melhorar a minha leitura. A minha escrita melhorou bastante, foi o que mais melhorou.” P: “Melhorou a leitura e a escrita?” A1: “A leitura. Quando eu leio em voz alta, eu leio de uma forma mais adequada, eu leio melhor e de uma forma que dê de entender, uma forma boa.” P: “E os professores nunca perceberam essa melhora em você ou já perceberam e te elogiaram?” A1: “Sim. Minha professora de Português disse que teve uma época que eu tinha melhorado.” P: “Mas não perguntou o que você estava fazendo para melhorar?” A1: “Não.” (Entrevista 5, em 27-10-2013) Excerto 5 P: “Você considera que sua escrita e leitura melhoraram lendo fanfiction?” A2: “Sim, bastante.” P: “O que você acha que melhorou?” A2: “A gramática melhora, a forma de organizar as ideias na hora de você escrever algum texto, a introdução, como você faz pra levar da introdução até o final do capítulo, sem deixar nada meio maçante e sim mais envolvente. Até que aprendi bastante coisa.” (Entrevista 6, em 28-10-2013) Nesse sentido, parece-me que as alunas, em seus depoimentos, admitem a importância da fanfiction no processo de aprender, “Eu comecei a melhorar a minha leitura. A minha escrita melhorou bastante, foi o que mais melhorou”, mesmo distante do ensino formal. Essa afirmação parece colaborar com o que pontua Jenkins (2009), ao inferir que, na atualidade, há aprendizagem fora dos espaços educacionais, num processo de participação em ambientes de dedicação, criatividade, em torno da cultura popular. O autor postula que os alunos têm se apropriado de aprendizagem, mesmo distantes das práticas escolares canonizadas. Ampliam, assim, seus conhecimentos, pelo rompimento das barreiras geográficas e pela fluidez demandadas pelas novas configurações que hoje circulam na sociedade, conforme a fala da A2 no excerto 23. Em vista dessas novas configurações, Sibilia (2012, p. 195) justifica que o mundo contemporâneo é caracterizado por uma interação on-line mais contínua “pois a ubiquidade do dispositivo permite que cada um se conecte quando está em condições de participar, o que nem sempre acontece nas salas de aulas comuns”. A prova disso é a afirmação de A2, que sinaliza ter aprendido “bastante” com a leitura e a escrita de fanfiction, que ocorre, sobretudo, em meio não institucional. Em conformidade com Sibilia (2012), essa mobilidade, conexão e a ausência de confinamento, podem estar sendo mais favoráveis para a aprendizagem para além da escola, como afirmam os diálogos abaixo da Adolescente 4. Excerto 6 P: “Você acredita que depois que se tornou leitora escritora você teve algum avanço na sua escrita e leitura?” A4: “Sim, avancei. Eu percebo que quando paro de escrever começo a cair.” P: “No decorrer de suas leituras e escritas, na escola, algum professor percebeu que você avançou?” A4: “(risos) Professor falou que minha nota tinha aumentado na redação.” (Entrevista 8, em 6-11-2013) Intui-se que as alunas, embora participem de práticas de escrita, distantes do ensino formal, parecem apresentar sinais de avanço, pela superabundância da leitura e escrita na internet, diante da fala da Adolescente 4 “[...] Professor falou que minha nota tinha aumentado na redação”. Como se pode observar, as adolescentes pesquisadas agregam saberes através de elementos característicos do meio digital ao circularem pela internet. Esses dados podem sugerir que a aprendizagem não está relacionada exclusivamente com o processo linear prescrito nos currículos escolares, pois, mesmo que a professora não tenha aparentemente percebido, o avanço da aluna pode ter sido devido à relevância de sua participação na leitura e escrita colaborativa no ambiente digital. Dessa forma, assim como a lâmpada elétrica trouxe mudança de costumes para as pessoas que viveram no tempo em que emergiu essa tecnologia, a contemporaneidade e as mudanças provocadas pela fluidez nas relações sociais têm imprimido características que devem ser observadas com atenção pela esfera escolar. 5. Considerações finais Podemos observar, que a contemporaneidade abre espaço para a prática dos variados eventos de letramentos. Esses espaços estão repletos de mídias que permitem conexão ininterrupta potencializando uma comunicação mais fluida e híbrida. No entanto, as novas gerações estariam tendo tudo isso fora da escola, onde ganham mais habilidade no uso do letramento digital. Neste trabalho discorremos sobre fanfiction, um dos diferentes letramentos emergentes na mídia contemporânea e presente no ambiente virtual, que circula no ciberespaço onde os usuários expõem de forma espontânea suas percepções, produções, opiniões, experiências e compartilham nesse ambiente que pode ser entendido, então, como um local de construção de uma inteligência coletiva em potencial (LÉVY, 2008). Importante fato a salientar sobre as fanfictions é que tal cultura tecnológica parece ainda predominar em torno de atividades sociais desenvolvidas pelos jovens fora dos limites da escola. Sibilia (2012) afirma que a escola ainda continua com a ideia de confinamento, própria da instituição oitocentista, alimentada por antigas tecnologias como o quadro e o giz, permitindo que os arcaicos rigores escolares façam parte diariamente das experiências escolares. Observa-se ainda, nos ambientes escolares, a recorrência da queixa que os jovens não leem nem escrevem nem se interessam pelas leituras e escritas mais tradicionais, mas parece ser possível constatar, através dos diálogos das adolescentes, uma diferente configuração, uma vez que as participantes escrevem histórias colaborativamente, conforme o excerto abaixo: Excerto 7 A2: Sim tanto que é normal você entrar em uma fanfic e ver alguém falando: “ah essa parte aqui eu que contribuí” e também tem leitoras que pede para fazer a correção do português dizendo: “olha essa frase está legal você podia colocar assim” e as autoras sempre agradecem; elas falam: “nossa, obrigada, é sempre bom ter alguém para colaborar”. As autoras agradecem pelas ideias. Evidentemente, diante disso é interessante destacar que esses usuários se encontram nas salas de aula e se o letramento é um fenômeno social seria pertinente trazer para o espaço escolar os usos sociais da leitura e escrita. Nesse sentido é possível perceber que abrir espaço para dialogar com alunos sobre em que práticas estão engajados fora da sala de aula pode ser uma maneira interessante de conhecê-los mais. Diante desse panorama, Sibilia destaca que: Falta, sem dúvida, o mais difícil: redefini-las (escolas) como espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento e decantação de experiências capazes de insuflar consistência nas vidas que as habitam. (SIBÍLIA, 2012, p.211) Em face desse novo contexto de produção, lidar com esses desafios é levar em conta a urgência de descobrir maneiras de valorizar o fenômeno fanfiction na esfera escolar, enxergando o aluno como um construtor e colaborador na era das linguagens líquidas. Para Jesus (2010), faz se necessário um movimento escolar em espaços isentos de barreiras territoriais dirimindo, assim, o estilo tradicional evidenciado pela presença do educador e do educando, abrindo espaço para o engajamento em atividades colaborativas de escrita. 6. Referências AZZARI, E. F.; CUSTÓDIO, M. A. Fanfics, Google Docs... a produção textual colaborativa. In: ROJO, R. (org). Escol@ Conectada – os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. BUZATO, M.E.K. Desafios empírico metodológicos para a pesquisa em letramentos digitais. Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas: UNICAMP, nº 46, p. 45-62, 2007. BUZATO, M.E.K. Letramento digital abre portas para o conhecimento. EducaRede, Disponível em: <http://www.educarede.org.br/educa/html/index_busca.cfm> Acesso em 12 mar. 2004. CHARTIER, R. Os desafios da escrita. Tradução Fulvia M. L. Moretto, São Paulo: UNESP, 2002. Fanfic (verbete). Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/fanfic>. Acesso em 24 out. 2012. FRADE, I.C.A.S. Alfabetização Digital: Problematização do conceito e possíveis relações com a pedagogia e com aprendizagem inicial do Sistema de escrita. In: COSCARELLI.C.V; RIBEIRO. A.E.(Orgs.) Letramento Digital: aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: Ceale: Autêntica, 2011. JENKINS, H. Cultura da convergência: colisão entre os velhos e novos meios de comunicação. LANKSHEAR, C; KNOBEL, C. New Literacies: everyday practices & classroom learning. Nova York: McGraw-Hill Open University, 2nd Edition, 2006. LÉVY, P. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2008. LOPES, L. P. M. Os novos letramentos digitais como lugares de construção de ativismo político sobre sexualidade e gênero. Revista Trabalhos de Linguística Aplicada. Campinas: UNICAMP, v. 49(2), p. 393-417, 2010. MAIA, J. O. Novos e híbridos letramentos em contexto de periferia. In: ROJO, R. (org.) Escol@ conectada – os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. RHEINGOLD, H. The Virtual Community: homesteading on the electronic frontier. Apud WILBUR, S. P. An Archæology of Cyberespaces – virtuality, comunity, identity. In: BELL, D; KENNEDY, B. M. The Cybercultures Reader. London: Routledge, 2000. ROJO, R.(Org.) Escol@ Conect@d@: Os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. ROJO, R; MOURA, E.(Orgs.) Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. SOUZA, L. M. T. M. O professor de inglês e os letramentos no século XXI: métodos ou ética? In JORDÃO, C.M; MARTINEZ, J.Z; HALU, R.C. (Orgs.) Formação “desformatada” Práticas com professores de língua inglesa. Campinas: Pontes Editores, 2011, p.279-303. SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br/revista/rev/rev81.htm> Acesso em 31 jul. 2013. SOARES, M. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. 2.ed. São Paulo: Global, 2004. TAKAKI, N. H. Letramentos na sociedade digital: navegar é e não é preciso. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. TAPSCOTT, D. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a internet estão mudando tudo, das empresas aos governos. Tradução Marcello Lino. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010. VARGAS, M.L.B. O fenômeno Fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Ed.Universidade de Passo Fundo, 2005. WEGNER, E. Communities of practice: learning, meaning and identity. Cambridge University Press, 1998.