A HISTÓRIA DO CUIDADO DISPENSADO AOS DOENTES MENTAIS AO LONGO DOS SÉCULOS Ana Paula Carvalho Orichio UCB Da pré-história a Idade Média Pintura rupestre encontrada em uma caverna - http://blogdaprehistoria.blogspot.com/. Segundo relatos de historiadores e médicos, o tratamento dos doentes mentais durante a pré-história, provavelmente consistia de ritos tribais com o objetivo de alterar o comportamento. Se essas medidas não obtinham sucesso, provavelmente o individuo era abandonado a própria sorte para morrer de inanição ou por ataque das feras. Os loucos, os idosos e os deficientes recebiam o mesmo tratamento, em virtude da característica nômade da sociedade da época. Da pré-história a Idade Média Nos primórdios da Era Grega, era notável a consideração humana pelos doentes, estes usavam os templos como hospitais, que ofereciam ar livre em abundância, água pura e luz solar. Usavam teatro, cavalgadas e caminhadas para melhorar o humor dos doentes. Entretanto, apesar desse modo de agir humano, em alguns casos, o tratamento era rígido: a inanição, correntes e flagelo eram defendidos, pois acreditava-se que, quando aqueles que recusavam alimentos começassem a comer, a memória também seria constantemente refrescada. A Idade Média é um imenso intervalo de tempo entre a Antigüidade Clássica e a Idade Moderna ou modernidade. Nesse período, sob a influência do cristianismo, acreditava-se que o mundo era um todo organizado de acordo com os desígnios de Deus. Por isso, tudo e todos obedeciam à ordem divina. Os insanos, assim como os retardados e os miseráveis, eram considerados parte da sociedade e o principal alvo da caridade dos mais abastados, que assim procuravam expiar seus pecados. Continuação Os doentes mentais eram chamados de insanos, “lunáticos” (do latim luna = Lua, pois acreditava-se que a mente das pessoas era influenciada pelas fases da lua) Defendia-se que doença mental era decorrente de uma relação defeituosa entre o homem e a divindade, um castigo por faltas morais e pecados cometidos, ou provocada pela penetração de um espírito maligno no organismo do indivíduo ou, ainda, pela evasão da alma do corpo da pessoa. Ainda assim, os loucos desfrutavam de relativa liberdade de ir e vir: suas famílias confiavam na caridade alheia para garantir a sobrevivência de seus filhos e aceitavam seus impulsos e características peculiares como expressão da vontade de Deus. Muitas vezes, esses insanos eram submetidos a rituais religiosos. Doentes com distúrbios mentais mais graves ou mais agressivos eram flagelados, acorrentados, escorraçados, submetidos a jejuns prolongados, sob a alegação de estarem “possuídos pelos demônios”. Podiam até ser queimados, por serem considerados feiticeiros. No final da Idade Média, vários indivíduos de comportamento “desviante”, de loucos a contestadores, foram assim perseguidos, julgados e queimados vivos nas fogueiras da Santa Inquisição. O Período que se seguiu a Idade Media foi ainda mais terrível para os loucos. No Final do Séc. XV, ocorreram mudanças drásticas na ordem social e econômica, tais como a ruptura da ordem feudal e a emergência do capitalismo mercantil. Houve assim, o confinamento dos loucos em Santas Casas e hospitais gerais para que estes fossem juntamente com os mendigos, prostitutas e toda sorte de desviados retirados do cenário urbano. Continuação Imagem de um hospital na Idade Média, onde os pacientes ocupavam o mesmo espaço indiscriminadamente e chegavam a dividir o mesmo leito hospitalar. No Século XVI os doentes mentais eram trancafiados em celas, masmorras ou asilos para “loucos”, onde os curiosos podiam pagar para ver a “representação” dos internos. Um século mais tarde a doença mental era atribuída a uma batalha entre Deus e o Diabo pela posse da alma humana. Acreditavam que as bruxas podiam causar e curar as doenças. Com o passar dos anos, as reformas políticas e sociais na França ao final do século XVIII influenciaram os hospitais e prisões de Paris. Ocorreram inúmeros movimentos de denúncias contra as internações arbitrárias dos doentes mentais, seu confinamento e promiscuidade com toda espécie de marginalizados sociais. Foram denunciadas ainda as torturas disfarçadas ou não sob a forma de tratamento. Em 1792 Philippe Pinel provou que era um erro tratar os doentes mentais desumanamente. Ele libertou os doentes, que em alguns casos, estavam acorrentados há mais de vinte anos e reformulou o tratamento dos doentes mentais. A Influência de alguns países no mundo. Com ele surge a psiquiatria e o louco começa a ser visto como um doente a ser tratado com os dispositivos do tratamento moral, na medida em que haveria uma parte de sua mente não atingida pela alienação. O tratamento moral consistia em observar e disciplinar o doente, para que seus desvios fossem corrigidos. A partir dai os doentes mentais passaram a ser internados em espaços especialmente preparados denominados de asilos. As idéias de Pinel influenciaram outros médicos tais como seu aluno, Esquirol, que fundou nada menos que 10 asilos e foi o primeiro professor regular de psiquiatria. A Inglaterra teve como expoentes os Irmãos Tuke, que realizaram reformas revolucionárias n a q u e l e p a í s . No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das idéias originais do método. Permanecem as idéias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. Muitos pobres e doentes mentais eram leiloados e vendidos e o retorno das vendas era enviado ao Tesouro Municipal. No final do século XIX difundiu-se o rigoroso movimento para a construção de hospitais públicos apropriados em grandes áreas rurais, onde os doentes trabalhavam para ajudar na manutenção da instituição. Este modelo reforçou o asilamento e a exclusão dos doentes que passaram a morar muito longe das cidades. Em razão da distância a comunidade e as famílias logo desistiam de manter contato com os parentes hospitalizados. Assim sendo, era muito comum que um paciente uma vez internado ali permanecesse por toda a vida. Com o aumento do número de imigrantes na América, as cidades sofreram uma explosão populacional e cresceram em direção os remotos hospitais públicos psiquiátricos. A necessidade de tratamento dos doentes mentais são mais numerosas e complexas do que jamais foram antes. O tratamento humanizado dos hospitais em regime de colônias agrícolas não conseguia atender a demanda e, na virada do século, as instituições transformaram-se em um sistema ineficiente, caro e desumano, capaz de fazer pouco mais do que proteger seus internos uns dos outros e da sociedade. A psiquiatria no Brasil após a chegada da família real Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro em 1808, o país deixou de ser colônia e se tornou reino unido com Portugal e Algarve. Foi iniciada a urbanização no Rio de Janeiro, em Ouro Preto e Salvador e realizada a abertura dos portos às nações amigas. As epidemias de febre amarela, tifo, varíola entre outras, assolavam o país e a loucura era uma ameaça constante, pois, questionava a sua transmissibilidade para as classes sociais indiscriminadamente. Assim, na segunda metade do século XIX os centros urbanos estavam infestados de desviantes: mendigos, criminosos, aleijados, doentes, negros, escravos e loucos, tornando sombria a vida para as populações mais afortunadas. Com isso restava , ao Estado a responsabilidade de criar um espaço institucional para o louco. Criam-se os primeiros hospícios brasileiros, na tentativa de devolver ordem ao caos instalado nas cidades, recolhendo para trás de suas grades essa malta de desviados. Esses habitantes eram recolhidos nos Asilos de Mendicância e de Órfãos, administrados pela Santa Casa de Misericórdia. Teve assim, o início da construção de um espaço específico para reclusão e tratamento destes, em terreno cedido pela Provedoria da Santa Casa de Misericórdia. Este projeto foi concretizado em 1841, com a construção do Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, inaugurado onze anos depois, no ano de 1852. Na direção e gerência do estabelecimento ficaram as Irmãs de Caridade. A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro O clínico responsável prescrevia o tratamento curativo e receitava atividades baseadas em trabalhos manuais, meios de entretenimento e serviços domésticos do estabelecimento. Além disso, quando os internos não colaboravam em suas atividades eram aplicados meios coercitivos e repressivos. Nessa perspectiva, algumas condutas eram tomadas para restabelecer a ordem e a postura de obediência dos internos, dentre elas destacavam: proibições de visitas e passeios, restrição alimentar, isolamento em celas fortes, uso de colete de força e banhos de emborcação. Foto da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro feita por Victor Frond por volta de 1858. Desse modo, o propósito da instituição psiquiátrica era controlar e moldar os comportamentos por meio da vigilância, do controle, da disciplina e da violência institucional, o que pressupõe tratar insanos, irresponsáveis e irrecuperáveis. Outro aspecto importante diz respeito ao tratamento diferenciado que os portadores de transtorno mentais teriam acesso se possuíssem recursos financeiros para pagar suas despesas durante a internação. O pagamento variava conforme classes: na 1a classe o alienado ficaria em quarto separado, com tratamento especial; na 2a classe teria um quarto para dois alienados, recebendo tratamento especial; e na 3a classe haveria as enfermarias gerais para pessoas livres e escravos que tivessem senhores que possuíssem meios para pagar o tratamento. O Hospício Pedro II Hospício Pedro II A criação desse local não foi garantia de melhor tratamento. Continuavam as denúncias de maus tratos aos loucos, o que resultou na desanexação do hospício da Santa Casa. No dia 11 de janeiro de 1890, o Hospício Pedro II, passou a se chamar Hospício Nacional de Alienados e desvincula-se da Santa Casa de Misericórdia, ficando subordinado a administração pública. No entanto os cuidados continuavam sendo prestados pelas Irmãs de Caridade. Em 11 de agosto do mesmo ano, elas deixaram o hospício onde haviam prestado assistência desde 1852. A saída das Irmãs de Caridade provocou séria crise no Hospício Nacional dos Alienados, pois não havia quem cuidasse dos doentes mentais. Este hospital necessitava de “enfermeiros especializados”, porque as Irmãs de Caridade haviam sido dispensadas. Tal iniciativa decorreu do confronto entre os grupos de médicos e de religiosas, que disputavam o poder político institucional. Houve então a iniciativa de trazer as enfermeiras francesas leigas para atender a demanda de serviços e cuidados no Hospício. Entretanto, esta iniciativa não foi suficiente para dar conta do problema da loucura no Rio de Janeiro, diante disso, foi criada a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras com a finalidade de preparar formalmente pessoal de enfermagem para os hospícios e hospitais militares. O Hospício Pedro II Hospício Pedro II O ensino dessa escola era ministrado por eminentes médicos que haviam estudado e estagiado nos melhores hospitais franceses. Assim sendo, as atividades de enfermagem eram norteadas pelo modelo pineliano, (instituído por Phillipe Pinel) onde o poder disciplinar era definido como terapêutico e instrumento de modificação comportamental dos pacientes. Desta forma, a enfermagem brasileira se organizou, inicialmente, para cuidar dos doentes mentais, e tinha como objetivo central a manutenção da vida e a vigilância constante. Além disso, cabia a enfermagem promover distrações, para evitar que os doentes mentais desenvolvessem comportamento destrutivo. Ao longo dos anos, houve um grande avanço e investimento na saúde pública, mas à Psiquiatria ainda cabia o papel de afastar e/ou segregar os loucos. Nos primeiros 20 anos do século XX foram criados novos hospitais em modelos de colônias com o objetivo de abrigar número cada vez maior de loucos. Foto de um hospital colônia para alienados mentais Leitos de Sórdidos no Rio Grande do Sul. Acervo . . . Cozinha do Hospital de Coxipó na década de 50. As inúmeras tentativas de tratar os doentes mentais – O Eletrochoque Na antiguidade grega, Hipócrates (460-377 a.C.) já notara que as convulsões resultantes da malária podiam curar pacientes com distúrbios mentais. Além disso, tem sido observado na prática médica que pacientes epilépticos geralmente não apresentam esquizofrenia, talvez devido a uma incompatibilidade entre convulsões e doenças mentais. Por isso, a partir do início do século 20, foram desenvolvidos métodos para produzir choques fisiológicos para a prática psiquiátrica. Entre eles, podem ser citados a febre induzida pela malária, as convulsões produzidas pela administração de insulina ou metrazol e a terapia por choques eletroconvulsivos, desenvolvida em 1937 pelos neurologistas italianos Ugo Cerletti (1877-1963) e Lucio Bini (1908-1964). Eles estavam convencidos de que um choque elétrico aplicado à cabeça produzia convulsões. Em Genova, e posteriormente em Roma, ele usou equipamentos de eletrochoque para provocar crises epilépticas em cães e outros animais. A idéia de usar o choque eletroconvulsivo em seres humanos ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos sendo anestesiados com eletrochoque, antes de serem abatidos nos matadouros de Roma. Ele então convenceu dois colegas a ajudá-lo a desenvolver um método e um equipamento para ministrar breves choques elétricos em seres humanos. As inúmeras tentativas de tratar os doentes mentais – O Eletrochoque Eles inicialmente experimentaram vários tipos de dispositivos em animais, até determinarem os parâmetros ideais e aperfeiçoarem a técnica, antes de iniciarem uma série de eletrochoques em humanos com esquizofrenia aguda. Após 10 a 20 eletrochoques em dias alternados, a melhora na maioria dos pacientes começou a se tornar evidente. Um dos benefícios inesperados do eletrochoque transcraniano foi que ele provocava amnésia retrógrada, ou seja, uma perda de todas as memórias de eventos imediatamente anteriores ao choque, incluindo a sua percepção. Assim, os pacientes não tinham sentimentos negativos relacionados à terapia. O Eletrochoque passou a ser usado em pacientes esquizofrênicos e nos casos de depressão severa que eram resistentes a todos os tratamentos, com boa resposta terapêutica. Aperfeiçoamentos significativos na técnica de eletrochoque foram feitos desde então, incluindo o uso de relaxantes musculares sintéticos, tais como succinilcolina, a anestesia de pacientes com agentes de curta duração, a pré-oxigenação cerebral, o uso de EEG para monitoração da crise, e melhores dispositivos e formas de onda para ministrar o choque transcraniano. Imagem de um aparelho de Eletrochoque A utilização indiscriminada do tratamento fez com que esse recurso, a despeito de suas possibilidades terapêuticas, ficasse associado ao castigo físico e ao controle disciplinar. A terapia eletroconvulsiva desapareceu, na Europa, com o fim da Segunda Guerra, enquanto, no Brasil, foi abolida, na rede pública de Saúde Mental, somente na década de 80. Atualmente é utilizada como recurso extremo no tratamento da catatonia e da depressão, sua aplicação deve ser realizada em centro cirúrgico, onde o paciente é submetido a anestesia e todos os cuidados inerentes aos tratamentos invasivos. Este fica sob a supervisão direta do anestesista, enfermeiros e psiquiatra. Psicocirurgias ou lobotomias Existe evidência de que trepanação, prática de fazer cavidades no crânio, é utilizada desde 5000 A.C. Esta pode ter sido uma tentativa de permitir que o cérebro se expandisse em caso de aumento da pressão intracraniana, por exemplo, após traumas cranianos. Entretanto, a psicocirurgia como entendida nos dias de hoje não foi praticada até o início do século XX. O procedimento leva a um estado algo sedado de baixa reatividade emocional nos pacientes e existem controvérsias sobre os resultados do procedimento. Psicocirurgias ou lobotomias A primeira tentativa sistemática de psicocirurgia humana ocorreu em 1935, quando o neurocirurgião Egas Moniz, em parceria com o cirurgião Almeida Lima na Universidade de Lisboa, realizou uma série de lobotomias pré-frontais - procedimento que secciona a conexão entre o lobo frontal ou córtex pré-frontal e o restante do cérebro. Moniz e Lima referiram bons resultados, especialmente no tratamento da depressão, embora cerca de 6% dos pacientes não tenham sobrevivido à operação e da ocorrência de efeitos adversos marcantes na personalidade e funcionamento social dos pacientes. Apesar dos riscos, o procedimento foi recebido com algum entusiasmo, notadamente nos Estados Unidos, como um tratamento para condições mentais previamente incuráveis, fato que rendeu a Moniz um Prêmio Nobel em medicina em 1949. Psicocirurgias A psicocirurgia foi popularizada nos Estados Unidos quando Walter Freeman inventou um procedimento no qual era utilizado um picador de gelo e um martelo de borracha ao invés de equipamento cirúrgico para realizar a lobotomia transorbital (com acesso cirúrgico pelo olho). Freeman martelava o picador de gelo dentro do crânio logo acima do conducto lacrimal e movia-o em várias direções. De 1936 aos anos de 1950, Freeman divulgou as lobotomias por todo os Estados Unidos. As lobotomias gradualmente perderam sua utilidade com o desenvolvimento de drogas antipsicóticas e passaram a ser realizadas apenas raramente. Hoje, a psicocirurgia pode ser um tratamento de último recurso para pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo, depressões graves e para transtornos alimentares no Chile, Estados Unidos, Suécia e México. A farmacologia em beneficio das doenças mentais A partir da década de 50, disseminou-se o uso de novos medicamentos para o tratamento das doenças mentais. Em 1952, os pesquisadores franceses obtiveram sucesso no tratamento de doenças mentais com uma nova substância – a clorpromazina . O medicamento mostrou-se capaz de reduzir a agitação psicomotora e diminuir a atividade alucinatória e delirante. Essa ação psicofarmacológica foi então chamada neurolepsia, e os novos medicamentos, neurolépticos. Com o emprego da clorpromazina, inaugura-se uma nova fase da psiquiatria. O aumento do conhecimento sobre as doenças mentais e suas relações com os fatores sociais, possibilitou o surgimento da Psiquiatria Social cuidando da influência dos fatores sociais como, caráter nacional, critérios demográficos e preconceitos, todos responsáveis pela saúde e doença. A partir daí, compreende-se o paciente não apenas com base em sua dinâmica intra-psíquica, mas como membro ativo de uma comunidade, influenciando-a e sendo influenciado por ela. Deste modo, o conceito de comunidade terapêutica emerge reconhecendo a importância do meio ambiente no tratamento do doente mental, procurando trabalhar o mais próximo possível deste ambiente. Um aspecto predominante neste momento é de que a pessoa que está doente não perdeu completamente as suas capacidades de julgar, perceber, pensar e sentir. No contexto desta evolução surge a Psiquiatria Preventiva, com o enfoque na prevenção primária, buscando reduzir a freqüência dos transtornos mentais; a secundária visando reduzir a duração desses transtornos, e a terciária para reduzir a deterioração que pode resultar desses transtornos. A aplicação prática da proposta destes níveis de prevenção marca o surgimento no campo, da Psiquiatria Comunitária. Trata-se de um avanço no tratamento, onde é considerado como objeto do cuidar esse grupo populacional. É uma etapa evolutiva da psiquiatria na qual a promoção, detecção precoce e tratamento e reabilitação do transtorno mental se aplicam a toda população. Porém, é principalmente da experiência de recuperação de indivíduos com perturbações mentais durante a guerra, para devolvê-los à frente de batalha o mais cedo possível, que advém o reconhecimento da eficácia desses dispositivos terapêuticos. São exatamente os psiquiatras que realizaram tais tarefas e se tornam após o término do conflito bélico seus arautos, tanto nacional quanto internacionalmente. A Reforma Psiquiátrica Brasileira influenciada pelos países mundo afora Na década de 60 inicia-se na Itália uma reforma psiquiátrica, também conhecida como psiquiatria democrática. Esta, de forma pioneira, inicia movimento de inclusão social dos doentes mentais, que de forma gradativa, esvazia os hospícios, retornando com seus doentes para o núcleo familiar. Concomitantemente, amplia e reforça a psiquiatria territorial, oferecendo à comunidade, por região, o tratamento ambulatorial e realizando visita domiciliar. Esta prática, de certa forma, visa dar apoio à família do doente mental, que precisa acolhê-lo no domicílio, como parte da terapêutica. A Reforma Psiquiátrica Brasileira influenciada pelos países mundo afora Enquanto isso, no Brasil, inicia-se a Ditadura Militar como um processo decisório centralizador e autoritário. Neste Período, houve a unificação dos institutos de aposentadoria e pensões, e foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). O movimento militar de 64 foi o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase a partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes. Entretanto, as política de assistência médica no Brasil, dão prioridade à contratação de serviços de terceiros em detrimento dos serviços médicos próprios da Previdência Social. Durante os anos da ditadura militar, a política manicomial sofreu grande expansão, devido à contratação e ao financiamento pela Previdência Social de clínicas privadas. Ocorre assim, um enorme aumento do número de vagas e de internações em hospitais psiquiátricos privados, principalmente nos grandes centros urbanos. Essa situação, porém, não trouxe mudanças significativas quanto ao tratamento do doente mental, porque os hospitais privados reproduziam as condições dos grandes hospitais públicos mesmo com serviços de hotelaria melhor, pois mantinham as mesmas características asilares. Continuação A Previdência Social sofreu no início de 1980, grande crise institucional, gerada, entre outras coisas, pelo modelo privatizante de saúde. O INPS comprou os serviços médicos do setor privado, através de credenciamentos dados a estes serviços. Com isso, serviços hospitalares comprados de terceiros, representavam quase a totalidade de seus gastos. No caso da Psiquiatria, praticamente não existia a assistência ambulatorial, o favorecimento do setor privado na compra de leitos levava à estagnação do setor hospitalar público, que apresentavam baixa resolutividade e qualidade deficiente na assistência prestada. Durante os anos que se seguiram todas as iniciativas inovadoras, até mesmo de organismos oficiais, enfrentaram resistência de abolir com a cultura asilar e segregadora instaurada. Continuação O modelo tradicional de assistência à saúde mental no Brasil, baseado na exclusão do sujeito do convívio social, com a sua internação em manicômios por longos períodos de tempo, apresentava sinais de esgotamento desde o final da década de 70, pois no caso da assistência psiquiátrica, as discussões a respeito das práticas manicomiais acompanhavam o projeto sanitarista que, em fins dos anos de 1970, já delineavam uma forma de participação popular no setor saúde. Um dos acontecimentos importantes que marcou o início do movimento para a reestruturação da assistência psiquiátrica foi a crise da DINSAM Divisão Nacional de Saúde Mental , que era o órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde mental. Este movimento ficou conhecido pela luta corporativa por melhores condições de trabalho, dignidade e autonomia profissionais, ampliação dos recursos humanos, entre outras. A DINSAM reconhecendo a necessidade de reformulação da assistência psiquiátrica no país, lança diretrizes para uma política de Saúde Mental com avanços significativos. Continuação Enquanto isso, diante do histórico marcadamente ditatorial que assolou o país nos anos de 60 e 70, as Universidades assumiram o papel de contestar o governo autoritário vigente. As faculdades de medicina criaram os Departamentos de Medicina Preventiva, que aglutinavam e difundiam o pensamento crítico na saúde, bem como as discussões quanto à determinação social da doença e a organização social da prática medica. O Movimento Sanitário, originalmente acadêmico, não se limitou à produção de novo saber. Este procurou aliar a produção científica à busca de novas práticas políticas e de saúde em contraposição àquelas existentes. O movimento de redemocratização política motivou toda sociedade, os próprios trabalhadores dos hospitais psiquiátricos começaram a denunciar as péssimas condições as quais eram submetidos os pacientes: celas fortes, espancamento e falta de higiene. Continuação 1980, um convênio entre o Ministério da Previdência e Assistência Social e o Ministério da Saúde permitiu que recursos humanos e financeiros dos dois ministérios fossem utilizados na manutenção dos hospitais do Ministério da Saúde. Esse convênio possibilitou que esses hospitais passassem a atender mais amplamente a clientela previdenciária. Tal convênio era a co-gestão que possibilitou a modernização dos hospitais psiquiátricos do Ministério da Saúde, por meio do repasse de recursos da Previdência que, anteriormente, iam para o setor privado. No setor saúde, em 1986, a 8ª Conferência delibera pela necessidade de um Sistema Único de Saúde. Proposta que é ratificada na Constituição de 1988. A idéia original do SUS era que congregasse todos os recursos para a saúde em único órgão e que se redefinisse o atendimento com base em 3 princípios: a) a universalização das ações – todos tem direito ao atendimento; b) a integralidade das ações – o atendimento seria integral, englobando a prevenção, o tratamento e a recuperação; c) a hierarquização das ações – os serviços se organizariam de modo a prestarem atendimento primário, secundário e terciário. Esse sistema deveria ser organizado com a participação e o controle da comunidade, através dos Conselhos de Saúde. Em 1987, o movimento de Trabalhadores em Saúde Mental buscava articular propostas e ações contra o modelo manicomial, e lança o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. A partir de então, iniciaram-se algumas tentativas de modificação do sistema asilar de assistência em saúde mental. As denúncias dirigidas às internações psiquiátricas influenciaram, radicalmente, a prática clínica como um todo. É nesse contexto que surge o movimento por uma Reforma Sanitária, buscando reorganizar o atendimento à saúde da população. As Conferências Nacionais de Saúde, até então órgão burocrático, tornam-se verdadeiros fóruns onde se debatiam e se propunham as políticas de saúde, com a participação dos órgãos oficiais, dos prestadores de serviços de saúde e dos usuários. Assim sendo, em 1987, o movimento pela reforma psiquiátrica alcançou grande força política, com o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, e já não era mais um movimento só dos técnicos do setor, tendo sido ampliado para o espaço social a luta antimanicomial, cujo lema era “Por uma sociedade sem manicômios”. Era o início da adoção dos princípios da desinstitucionalização para as transformações das práticas em saúde mental. Ainda em 1987 acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que tem como temática principal a discussão da cidadania e doença mental. E propõe: a) “reversão da tendência hospitalocêntrico e psiquiatrocêntrica”, dando prioridade ao sistema extra-hospitalar e multiprofissional; b) não credenciamento pelo setor público de leitos hospitalares em hospitais psiquiátricos tradicionais, com redução progressiva dos existentes, substituindo-os por serviços alternativos; c) proibição da construção de novos hospitais psiquiátricos; d) implantação de recursos assistenciais alternativos como hospital-dia, lares protegidos, núcleos de atenção, etc. e) recuperação de pacientes crônicos em serviços extrahospitalares; f) emergência psiquiátrica funcionando em emergências de hospitais gerais. Com relação ao resgate da cidadania, propõe: retirar a internação psiquiátrica como ato obrigatório do tratamento psiquiátrico; direito do paciente acessar seu prontuário médico; direito do paciente a escolher o tipo de tratamento e terapeuta; garantias legais contra internações involuntárias. No ano de 1988, a Assembléia Nacional Constituinte encerra a nova Carta, a chamada Constituição Cidadã, que buscou criar uma democracia ideal, onde delimita-se o conceito de cidadania política e determina o direito universal à saúde, além de estabelecê-la como um dever do Estado. A proposta de reformulação de assistência psiquiátrica manicomial do século XX tem, como precursora, a lei 180 de 1978, chamada Lei Basaglia, constituída a partir do movimento que, estabelecia mudanças no estatuto jurídico do paciente. A Lei, além de proibir novas internações e construção de novos hospitais psiquiátricos, estabeleceu a abolição do estatuto de periculosidade do doente mental. Desta forma, o paciente tornava-se cidadão de pleno direito, mudando, com isso, a natureza do contrato de serviços por ele utilizados a partir da experiência realizada em Gorizia e Trieste pelo movimento da Psiquiatria Democrática, instituída a partir de 1973, por Franco Basaglia. No Brasil a experiência mais marcante foi no hospício de Barbacena, Minas Gerais. Este movimento teve repercussão no país na segunda metade da década de 70 iniciando uma reflexão e conseqüente consciência da questão psiquiátrica como parte da questão nacional. Apesar das mudanças mundiais acerca do tratamento psiquiátrico, valorização do ambiente terapêutico e aspectos psicológicos dos doentes, a enfermagem brasileira mantém suas ações voltadas ao apoio aos tratamentos biológicos e manutenção da ordem institucional. Apenas no final da década de 60 e início da década de 70 a enfermagem psiquiátrica começou a incorporar idéias do modelo humanista, centrado na pessoa. Desse modo é importante o conceito que a sociedade tem do doente mental, uma vez que este influencia de forma efetiva no tratamento oferecido. Importante também é saber o conceito que os trabalhadores da Saúde Mental têm deste doente e como este pode determinar o cuidado dispensado. Nos Estados Unidos, na década de 60, o governo de Kennedy, preocupado em encontrar formas de diminuir os custos com as internações psiquiátricas e, ao mesmo tempo, dar resposta aos conflitos sociais que se acentuavam, busca inspiração na chamada “psiquiatria de setor” francesa e traça os programas de ação social, chamada Psiquiatria Comunitária. Com a cidade dividida em micro-regiões, os pacientes eram atendidos em sua própria comunidade, em uma tentativa de se prevenir internações. A equipe de saúde mental (e não somente o psiquiatra) se encarregava de controlar os indivíduos sob sua jurisdição, no sentido de conter as crises antes que elas se tornassem graves o suficiente que exigissem internação. A psicoterapia institucional francesa constitui-se como movimento de contestação ao modelo asilar tradicional, e propõe demandar esforços no sentido de humanizar e melhorar as condições materiais dos hospitais psiquiátricos, através de mudanças na sua organização interna. A idéia principal centra-se na quebra da hierarquia piramidal tradicional, onde o poder é exercido por poucos e obedecido por muitos. A proposta de uma transversalidade na organização permite que as funções diretivas estejam a cargo de todas as pessoas, de modo a permitir que o doente ascenda nas suas funções sociais dentro do próprio coletivo. É neste contexto, de transições e mudanças, que a enfermagem psiquiátrica se insere. Na nova concepção das práticas de enfermagem psiquiátrica, tende-se a diluir a hierarquia, a rigidez de papeis e a dicotomia entre cuidador e assistido. Predomina a abordagem do problema como conjunto e minimiza-se a nosologia ou o diagnóstico. Isso denota que as transformações ocorridas na psiquiatria ao longo de sua história estão diretamente ligadas às reformulações sociais da época. Assim seu objeto de intervenção se modifica, deixa de ser o louco, a loucura e a doença mental, e passa a ser a saúde mental; assim os cuidados de enfermagem voltam-se para a pessoa inserida num contexto sócio, político e cultural. Vale ressaltar que a despeito de todas as mudanças ocorridas no cenário nacional, o enfermeiro continua atuando predominantemente no contexto hospitalar de modelo asilar. É bastante reduzido o número de enfermeiros que optam por trabalhar na área de psiquiatria e saúde mental. Assim, evidencia-se o quanto as mudanças na assistência psiquiátrica tem sido lentas, estando à mercê dos interesses hegemônicos nos diversos níveis de determinação econômica, política e ideológica. A Lei que garantiu a Reforma Psiquiátrica Brasileira A partir da promulgação da Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, o Brasil entrou para o grupo de países com uma legislação moderna e coerente com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde e seu Escritório Regional para as Américas, a OPAS. A Lei indica uma direção para a assistência psiquiátrica e estabelece uma gama de direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais; regulamenta as internações involuntárias, colocando-as sob supervisão do Ministério Público, órgão do Estado guardião dos direitos indisponíveis de todos os cidadãos brasileiros. A Reforma Psiquiátrica é entendida como processo social complexo, que envolve a mudança na assistência de acordo com os novos pressupostos técnicos e éticos, a incorporação cultural desses valores e a convalidação jurídico-legal desta nova ordem. A Lei que garantiu a Reforma Psiquiátrica Brasileira A reestruturação da assistência, principal pilar da Reforma, contava desde 1990 com a Declaração de Caracas, documento norteador das políticas de Saúde Mental. Os três níveis gestores do Sistema Único de Saúde buscaram soluções efetivas para esta área, sustentados por vigoroso movimento social e com diretrizes pactuadas em duas conferências nacionais, de 1987 e 1992. A partir da promulgação da Lei e da realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental, em dezembro de 2001, o processo se acelera, mostrando resultados cada vez mais estimulantes. De acordo com dados da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde o quantitativo de leitos em hospitais psiquiátricos diminuiu de 85.037, em 1991 para 67.462, em 1996; enquanto a quantidade de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) aumentou de quatro para 154 no mesmo período. Em 2006, o Ministério da Saúde registrou a implantação do milésimo CAPS, em Fortaleza/CE. Programa de volta para casa Ao prever o pagamento mensal de um auxílio-reabilitação psicossocial em contas bancárias para os próprios beneficiários, o programa também atende ao disposto no artigo 5.º da Lei n.o 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos dos usuários dos serviços de Saúde Mental, determinando que os pacientes a longo tempo hospitalizados, ou para os quais se caracterize situação de grave dependência institucional, sejam objeto de “política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida”. O Programa De Volta para Casa, em conjunto com o Programa de Redução de Leitos Hospitalares de Longa Permanência e com os Serviços Residenciais Terapêuticos, constitui-se em um dos tripés do processo de desinstitucionalização e da Política Nacional de Saúde Mental. O objetivo deste programa é contribuir efetivamente para o processo de inserção social, incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados, facilitadora do convívio social, capaz de assegurar o bem-estar global e estimular o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de cidadania. O Programa De Volta para Casa vem se consolidando como ferramenta imprescindível para a concretização da desinstitucionalização e a reafirmação dos ideais da Reforma Psiquiátrica brasileira, além de representar um importante avanço no campo dos direitos humanos. Novas oportunidades e novos sonhos são possibilitados pelo auxílio-reabilitação psicossocial. A garantia de renda mensal permite que o portador de transtorno mental circule pelos espaços urbanos, constituindo novas relações e aprendizados com os seus vizinhos, com os comerciantes locais, com sua conseqüente inclusão em atividades culturais e no trabalho. Dessa forma, os beneficiários do Programa de Volta para Casa (re)conquistam a sua cidadania, como atores que transpõem os muros dos hospitais psiquiátricos, e recontam suas histórias em novos cenários. Referencias bibliográficas: ROCHA, R.M. Enfermagem em saúde mental. 2ª ed. e ampl. 7ª reimp. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 2009. TAYLOR, C.M. Fundamentos de Enfermagem Psiquiátrica. 13ª Ed. Porto Alegre: Artes Medicas, 1992. STUART, G.W & LARAIA, M.T Enfermagem psiquiátricas 4 ed.. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso editores 2002. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2010;12(1):170-6. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n1/v12n1a21.htm.