Intervenção inicial do Governador Carlos da Silva Costa na Conferência
“Para uma Reforma Abrangente da Organização e Gestão do Setor Público”
Fundação Calouste Gulbenkian, 28 de janeiro de 2013
Minhas senhoras e meus senhores, muito bom dia.
É com enorme satisfação que me dirijo a vós nesta sessão de abertura da
conferência coorganizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, o Conselho de
Finanças Públicas e o Banco de Portugal, dedicada à reforma da organização e gestão
do setor público.
Nesta alocução inicial, proponho cobrir três tópicos. Começarei por vos apresentar a
motivação para a decisão, tomada durante o verão passado, de promover esta
iniciativa e por clarificar o seu âmbito. Dedicarei depois alguns minutos àquilo que
distingue o exercício da gestão pública quando comparado com a gestão das
atividades privadas e aos desafios que isso coloca para a definição de um modelo de
governo do setor público. Terminarei com uma breve referência a alguns fatores que
considero críticos para o sucesso de uma reforma abrangente do setor público em
Portugal.
1. Motivação da conferência e clarificação do âmbito
Há cerca de dois anos, a incapacidade de refinanciamento da dívida pública nos
mercados financeiros obrigou o Estado português a recorrer – pela terceira vez em
menos de quatro décadas – à assistência financeira internacional e a negociar e
executar um vasto programa de ajustamento económico.
A consolidação orçamental e a criação das bases para uma sustentabilidade
duradoura das finanças públicas constituem, como sabemos, um dos três pilares
fundamentais do programa de ajustamento acordado com a União Europeia e o FMI.
Efetivamente, a evolução das contas públicas portuguesas nos últimos 40 anos
mostra, de forma inequívoca, que a indisciplina financeira tem sido a regra: défices
totais e primários elevados e persistentes, desorçamentação, desvios da execução
orçamental face aos objetivos traçados, políticas orçamentais pró-cíclicas, reformas
falhadas ou adiadas, falta de eficiência na provisão de serviços públicos, ausência de
avaliação de políticas públicas são problemas recorrentes e há muito conhecidos.
A indisciplina financeira do setor público atravessou diferentes conjunturas e
regimes de política económica, bem como configurações políticas muito diversas. A
situação não se alterou com a integração da economia portuguesa na área do euro.
Este panorama traduz um fracasso inequívoco do regime financeiro do Estado e, de
uma forma mais geral, leva-nos a questionar todo o modelo de organização e gestão
do setor público em Portugal – um modelo que mostrou não conter mecanismos
endógenos que impedissem o aparecimento de desequilíbrios, ou promovessem a
sua correção atempada.
É precisamente este o foco da conferência que nos propusemos organizar.
Não se trata de debater o âmbito das funções do Estado, ou o nível de provisão de
diferentes bens públicos. A escolha sobre a amplitude das funções do Estado e sobre
a quantidade de serviços públicos que a sociedade está disposta a pagar, de forma
sustentável, através de taxas de utilização e de impostos é um debate fundamental,
mas situa-se num outro plano.
Esta iniciativa conjunta com a Fundação Calouste Gulbenkian e o Conselho de
Finanças Públicas pretende, antes, alimentar a reflexão sobre o enquadramento
institucional que, independentemente do perímetro das funções do Estado, melhor
possa assegurar que a redução do défice público não será um fenómeno meramente
transitório. Em simultâneo, uma organização e gestão do setor público que promova
a utilização mais racional dos recursos disponíveis poderá contribuir
significativamente para a própria consolidação das contas públicas.
Por outras palavras, as decisões políticas sobre os bens e serviços aos quais o Estado
garante acesso, ou sobre quais as falhas de mercado a regular, estão numa esfera
diferente das decisões relativas ao modelo de governo das entidades encarregadas
do fornecimento desses bens e serviços ou das tarefas de regulação.
Nesta última esfera, aquela que nos propomos debater, colocam-se, entre outras,
questões como:
• Quais as vantagens e riscos da contratualização de funções públicas a entidades
não públicas?
• Qual o grau de especialização desejável dos objetivos e das funções das entidades
públicas?
• É desejável separar em entidades diferentes as funções de aconselhamento aos
decisores políticos e as funções de natureza operacional? (Devemos, por exemplo,
separar o aconselhamento sobre política fiscal da cobrança de impostos?). Em caso
afirmativo, devem estes diferentes tipos de entidades estar sujeitos a regras
diferentes no que se refere ao grau de autonomia de gestão e correspondente
responsabilização pelos resultados?
• Que modelo orçamental nos garante resultados compatíveis com a
sustentabilidade de médio e longo prazo das finanças públicas e melhor promove
soluções eficientes na produção dos bens e serviços públicos?
• Como assegurar que as políticas públicas são definidas e executadas de forma
consistente com os objetivos anunciados?
• Que modelo de gestão de recursos humanos permite criar um corpo de
funcionários públicos independente, altamente qualificado, motivado e respeitado
pela sociedade e, ao mesmo tempo, garante uma evolução das despesas com
pessoal compatível com a capacidade produtiva do país?
2. Desafios que se colocam à gestão no setor público por comparação com o setor
privado
Estas são questões difíceis com que todos os países se confrontam e para as quais
têm sido tentadas diferentes soluções. São questões indissociáveis das
características intrínsecas dos bens e serviços públicos e da forma como a produção
do setor público é financiada. Vale a pena debruçarmo-nos brevemente sobre estas
características diferenciadoras e sobre os desafios que delas decorrem para a gestão
das entidades públicas – desafios que não se colocam às entidades privadas que
produzem bens e serviços para o mercado.
Desde logo, a produção do setor público enfrenta dificuldades de medição muito
consideráveis. Este é, por exemplo, o caso das funções de regulação económica ou
das funções de soberania, como a justiça, a defesa, segurança interna ou os negócios
estrangeiros. Nestas, e noutras áreas da atividade do setor público, a produção é
indivisível e é obrigatoriamente consumida pelos cidadãos independentemente da
procura que lhe seja dirigida, não estando, desta forma, sujeita a qualquer tipo de
“teste de viabilidade” pelo mercado.
Adicionalmente, no caso de bens providos pelo setor privado através do mercado, o
custo e o benefício associados ao consumo de um determinado bem recaem sobre o
agente que o consome. Já no caso dos bens providos pelo setor público, verifica-se
uma divergência entre o custo/benefício privado e custo/benefício social. Com
efeito, uma vez que a produção do setor público é financiada pelos contribuintes
através de impostos (presentes e futuros), os seus custos são repartidos por toda a
sociedade. No entanto, os benefícios tendem a ser apropriados por um número
muito mais reduzido de agentes. Por exemplo, a construção de uma ponte é
financiada por toda a sociedade, mas beneficia sobretudo os habitantes de uma
determinada zona e as empresas envolvidas na sua construção. Esta situação leva a
que os agentes que beneficiam de determinados programas de despesa pública
tenham incentivos para se organizarem no sentido de promover a realização dessa
despesa; por outro lado, e uma vez que os custos de financiamento são muito
diluídos, o escrutínio da racionalidade económica e social da despesa tende a ser
insuficiente. Cria-se, desta forma, um enviesamento para o crescimento excessivo da
despesa pública.
Um terceiro aspeto relaciona-se com os efeitos intertemporais das políticas. Como
sabemos, muitas decisões de política têm os seus efeitos sobre a despesa ou a
receita do setor público diluídos no tempo, ou concentrados no médio e longo prazo.
Na medida em que o horizonte relevante para os agentes políticos está
inevitavelmente associado a ciclos eleitorais, gera-se aqui um incentivo para a
tomada de decisões em que o retorno para os decisores ocorre no presente e os
custos para a sociedade são adiados para o futuro. Por exemplo, várias decisões que
no passado conduziram a regras generosas na atribuição de benefícios ou à
expansão das parcerias público-privadas não podem deixar de ser analisadas nesta
perspetiva.
As características que aqui enumerei – e que, repito, são inerentes à produção de
bens e serviços pelo setor público – geram, como vimos, um conjunto de incentivos
perversos que se traduzem em ineficiências e problemas de adequação entre aquilo
que é produzido pelo setor público e os objetivos que se pretendem alcançar com
essa produção.
É hoje consensual que estes incentivos podem ser contrariados por modelos de
organização e gestão do setor público que tenham como preocupação central
promover a eficiência, a eficácia e a transparência na utilização de recursos pelo
setor público. Como noutras áreas, também aqui não há modelos únicos nem
soluções mágicas. Há que procurar as soluções que, sendo consistentes com aqueles
princípios, melhor se adequem à realidade de cada sociedade.
3. Fatores críticos de sucesso para a reforma do setor público em Portugal
Se é crucial conhecer e compreender os modelos de organização e gestão pública
suscetíveis de promover uma afetação eficiente de recursos e a eficácia das políticas
públicas – aquilo que os anglo-saxónicos designam por value for money –, não é
menos importante perceber quais os fatores determinantes para que a mudança de
paradigma seja bem sucedida.
Em Portugal, como em muitos outros países, foram já tentadas reformas
abrangentes do setor público, algumas delas inspiradas nas melhores práticas
internacionais, incluindo a aproximação aos modelos de gestão do setor privado.
Sem prejuízo de casos pontuais de inegável sucesso – e há casos concretos de
excelência, por exemplo, nos setores da saúde ou do ensino superior, onde o
progresso foi notável e Portugal compara favoravelmente no plano internacional –,
as reformas empreendidas não permitiram alterar decisivamente os níveis globais de
eficiência e eficácia no funcionamento da administração pública portuguesa.
Gostaria, por isso, que desta conferência saíssem também elementos de reflexão
sobre o que poderá estar na origem de muitas tentativas de reforma “falhadas”. E
destacaria, a este propósito, alguns fatores que me parecem particularmente
relevantes.
Em primeiro lugar, as mudanças de paradigma exigem tempo, método e recursos.
Procurar corrigir num curto espaço de tempo fragilidades acumuladas ao longo de
muitos anos é simplesmente irrealista. Há que fazer um diagnóstico aprofundado
dos problemas existentes antes de avançar com a implementação de soluções. Há
que construir uma visão – saber onde queremos chegar – e definir uma estratégia
para a alcançar. Há, finalmente, que estabelecer um plano de ação e reunir os
recursos que permitam concretizar, no terreno, a estratégia definida.
Em segundo lugar, as mudanças de paradigma exigem liderança, determinação e
perseverança, não sendo compatíveis com alterações frequentes de rumo. Os riscos
de fadiga e o poder da resistência passiva não podem ser menosprezados. Há, por
isso, que promover e alimentar uma apropriação contínua dos objetivos e dos
instrumentos da reforma por parte dos atores relevantes, aquilo que habitualmente
designamos por ownership. Uma comunicação intensa e eficaz e a procura de um
amplo consenso em torno da visão e da estratégia são elementos críticos.
Em terceiro lugar, há que garantir uma efetiva capacidade de decisão
(empowerment) de todos aqueles que desempenham um papel de relevo na
definição e execução das reformas. Delegação e responsabilização efetiva dos
gestores e chefes de projeto são princípios importantes a acautelar.
4. Notas finais
Permitam-me que conclua.
A indisciplina financeira e os problemas de eficiência e eficácia na captação e na
utilização de recursos pelo setor público têm sido fenómenos permanentes das
últimas quatro décadas. Como referi, a situação não se alterou de forma
fundamental com a participação na área do euro, o que mostra que não houve uma
apropriação por parte dos agentes políticos, económicos e sociais dos princípios e
regras de disciplina subjacentes ao projeto da moeda única.
Este é o momento para corrigirmos o rumo.
É necessário um novo contrato social, assente no desenvolvimento de instituições
inclusivas, que subordinem a despesa pública ao esforço tributário socialmente
aceitável e uma hierarquia de prioridades politicamente legitimada.
A sustentabilidade deste processo depende da nossa capacidade para
desenvolvermos um modelo de organização e gestão pública que promova a
sustentabilidade, a eficiência e a eficácia das decisões de afetação de recursos. O
debate abrangente e participado que aqui terá lugar ao longo dos próximos três dias
dará seguramente um contributo inestimável para a construção deste novo
paradigma.
Muito obrigado.
Referências
Costa, C. (2012), Intervenção do Governador Carlos da Silva Costa na sessão de
abertura da 8ª Conferência Anual da Ordem dos Economistas
Dabla-Norris, E. and E.Paul (2006), “What transparency can do when incentives fail:
An analysis of rent capture”, IMF WP/06/146
Kornay, J., E.Maskin e G.Roland (2003), “Understanding the soft budget constraint”,
Journal of Economic Literature, Vol 41, N.4, December 2003
Kotter, J.P. (1995), “Leading Change: Why transformation efforts fail”, Harvard
Business Review, March-April 1995
Sarmento, L.M. et al (2010), “Revisão da Lei de Enquadramento Orçamental Relatório do Grupo de Trabalho nomeado pelo Despacho nº 8065/2010, de 30 de
Abril, do Ministro de Estado e das Finanças”, julho de 2010
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