Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Resumo A produção textual está presente na vida dos alunos desde os anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. O presente artigo pretende analisar as narrativas produzidas por alunos de uma escola pertencente à rede estadual de ensino de Santa Catarina. Observa‐se as formas de retomada, as relações de causa e efeito, e o clímax das produções e traça‐se um comparativo entre os textos escritos em dois momentos distintos (2011 e 2012). O corpus de análise provém das atividades do subprojeto de Letras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). As narrativas foram coletadas a partir de duas propostas de produção de textocom o intuito de identificar os elementos e recursos presentes na escrita dos alunos. Subsidiados nos Estudos do Letramento e nas Concepções do Círculo de Bakhtin, nota‐se que a interferência das atividades propostas pelos bolsistas aliada à inserção contínua dos alunos em práticas letradas, contribuiu para que a segunda produção evoluísse nos quesitos enfatizados. Os estudantes passaram a utilizar diferentes formas de retomada, problematizar relações de causa e efeito e a construir um clímax para a história. As práticas e eventos de letramento auxiliaram, assim, os alunos a tornarem‐se proficientes em diversas e diferentes situações. Palavras‐chave: Letramentos; Narrativas; Ensino Fundamental; Língua Portuguesa. Gabriela Kloth [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth Introdução As práticas de leitura e escrita estão presentes em todas as esferas da comunicação humana, sejam elas familiar, escolar ou do trabalho. A cultura grafocêntrica e as atividades de leitura permeiam, todos os dias, as distintas situações vividas na escola e em outras instâncias pelos diferentes atores sociais. Nesse contexto se inserem as discussões aqui propostas. O presente artigo provém de uma pesquisa em desenvolvimento em um programa de pós‐graduação stricto sensu em educação e objetiva analisar as narrativas produzidas por alunos nas práticas e eventos de letramento que constituem as aulas de Língua Portuguesa, uma vez que um dos objetivos da escola é “possibilitar que seus alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita na vida da cidade” (ROJO, 2008, p. 585). Pretendemos, ainda, assinalar de que maneira essas aulas, como eventos de letramento, interferiram na produção textual dos estudantes. A relevância dessa pesquisa se constata a partir do levantamento feito acerca da temática empreendida. Ao voltarmos nosso olhar para o GT 10 (Alfabetização, Leitura e Escrita) da ANPED SUL 2012 e para o GT 4 (Educação Básica) de 2010, entre outras produções científicas, percebemos que as discussões propostas se voltam para os letramentos na prática da alfabetização, dirigem‐se, em sua maioria, aos primeiros anos do Ensino Fundamental. Compreendemos que há trabalhos que contemplam a discussão acerca dos letramentos na esfera escolar, mas minoria se direciona para essas práticas nos anos finais do Ensino Fundamental, principalmente, no que concerne à escrita de narrativas. O subprojeto de Letras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), no qual os dados foram gerados, teve por objetivo identificar e analisar as dificuldades dos alunos no que tange à leitura e à escrita, e abrangeu o período compreendido entre junho de 2011 e dezembro de 2013. Os dados analisados são frutos de duas propostas de produção de texto: a primeira, desenvolvida em outubro de 2011, compreendia a sequência de imagens de um menino plantando duas árvores e descansando entre elas; a segunda, em dezembro de 2012, apresentava gravuras referentes a um cachorro atropelado e encaminhado ao hospital. Ambas as propostas X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth continham figuras sem falas, que focavam as relações de causa‐consequência, e serviram de subsídio para que os alunos desenvolvessem suas narrativas. A pesquisa tem caráter longitudinal, sendo os alunos acompanhados e as intervenções realizadas ao longo de dois anos. É, ainda, de cunho qualitativo e insere‐se na área da educação. De acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 16, grifos do original) A investigação qualitativa em educação assume muitas formas e é conduzida em múltiplos contextos. [...] Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, [...] Privilegiam essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. Nossas análises ancoram‐se nos Estudos do Letramento e nas compreensões do Círculo de Bakhtin, buscando traçar um comparativo entre os resultados das duas propostas de produção textual, apontando possíveis avanços oriundos dos eventos de letramento que constituíram as aulas de Língua Portuguesa ministradas pelos bolsistas do projeto. Essas atividades visaram, diretamente, à escrita de narrativas, entretanto, as demais práticas e eventos de letramento em que os alunos se inseriram também agregaram conhecimentos para a realização dessas produções. Após a contextualização da pesquisa proposta, apresentamos brevemente as teorias que nos subsidiam e tecemos nossas análises do corpus coletado, traçando um comparativo entre os dois momentos de produção textual e os seus resultados. Por fim, expomos nossas considerações acerca do processo. Apresentando a teoria: um pouco acerca dos letramentos O cerne desse artigo diz respeito às práticas de letramento nos anos finais do Ensino Fundamental, especialmente nas aulas de Língua Portuguesa. O termo letramento originou‐se da “necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema da escrita” (SOARES, 2004, p. 6). O letramento ou os letramentos, no plural, estão, assim, ligados às situações e as concepções de leitura e X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth escrita próprias de cada sociedade, particulares a cada grupo social pertencente a diferentes épocas e momentos históricos. Ao utilizarmos o termo práticas de letramento, nos referimos ao modo como os significados de letramento são construídos nos contextos sociais e culturais em que a leitura e a escrita desempenham um papel (STREET, 2000), ou seja, prática de letramento é a forma como as pessoas lidam com os diferentes letramentos. As práticas de letramento não são observáveis. Já os eventos de letramento são ocasiões nas quais podemos observar o desenvolvimento da leitura e/ou da escrita, percebendo as suas características, ou seja, são ocasiões onde podemos ver a leitura e/ou a escrita acontecendo. A perspectiva ideológica dos estudos do letramento considera os eventos de letramento observáveis (STREET, 2000). As práticas de letramento acontecem de acordo com a esfera (BAKHTIN, 2003) onde se inserem, resultando no que podemos chamar, por exemplo, de letramento acadêmico, religioso ou familiar. Essas práticas não se excluem, mas completam‐se, uma vez que “é por meio das práticas de letramento que os sujeitos aprendem, constroem novos conhecimentos” (DIONÍSIO, 2007, p. 214). O sujeito torna‐se, então, proficiente em diferentes práticas letradas, uma vez que se constitui de relações sociais acontecidas nas diversas esferas da interação humana. Os letramentos diferenciam‐se da alfabetização uma vez que são concebidos “como práticas sociais, que envolvem o texto, que envolvem a leitura e a escrita. E alfabetização – práticas de escolarização, práticas em que se introduzem as crianças ou os adultos num determinado código” (DIONÍSIO, 2007, p. 211). Assim, depreendemos que a alfabetização relaciona‐se à natureza psicológica e individual, a uma capacidade adquirida (ROJO, 2009). Já os letramentos estão sujeitos às interações sociais, situadas em determinado tempo e espaço, reporta‐se à prática social (STREET, 2003). Os letramentos, assim, não se restringem à alfabetização: embora a maioria das práticas requeira o domínio do código escrito, outras práticas letradas não dependem da alfabetização. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth A análise ora proposta insere‐se na esfera escolar, ambiente composto por múltiplas práticas de letramento, presentes nos mais variados gêneros (BAKHTIN, 2003) e linguagens, mas que, muitas vezes, não focalizam essas práticas, como se o ambiente escolar não fosse esfera de relações sociais. Embora permeada por práticas consideradas tradicionais, “escola é letramento e dele decorre, quer suas práticas sejam orais ou escritas; quer haja ou não texto escrito sendo utilizado na sala de aula. Logo, só é admitida uma estrutura adjetiva: ‘letramento escolar’” (ROJO, 2000, p. 6, grifos da autora). A instituição escolar é, portanto, uma agência de letramento e está, a todo o momento, por diferentes práticas, inserindo os estudantes nesse contexto, resignificando seus saberes e contribuindo para que se tornem sujeitos letrados. Porém, as práticas de letramento escolar não podem ser suficientes, é preciso promover a integração desses letramentos, os quais se tem maior afinidade, com aqueles letramentos que não estão tão presentes no dia‐a‐dia. Uma das formas de integrar esses letramentos é através do trabalho com gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003), desde aqueles comuns aos alunos até os que não fazem parte da sua interação diária, o que possibilita ao estudante transitar entre as diferentes esferas da interação humana. Voltando‐nos para Scliar‐Cabral (2003), encontramos um dos motivos que possibilita a compreensão de novas narrativas: as histórias seguem uma estrutura canônica condizente com o modo como conhecemos e percebemos o desenrolar dos fatos no espaço e no tempo. A essa estrutura canônica chamamos de esquemas narrativos ou gramáticas das estórias. Para a análise proposta, utilizaremos o esquema de Stein & Glenn (1979) reformulado por Scliar‐Cabral e Grimm‐Cabral (1991), configurado como uma organização ativa das experiências e reações passadas e formulado em regras nas quais as histórias podem ser encaixadas. Contudo, a internalização desses esquemas depende de as crianças estarem expostas ou não a experiências narrativas. Sendo as aulas de Língua Portuguesa consideradas eventos de letramento e os alunos inseridos continuamente em práticas letradas, analisamos, na sequência, como esses eventos e práticas letradas, que constituíram as intervenções dos bolsistas do PIBID, influenciaram na produção textual dos alunos, contribuindo na escrita de narrativas mais claras e articuladas. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth Articulando teoria e prática: os letramentos no ensino fundamental Os textos que compõem o corpus de análise provêm de duas propostas de produção de texto, realizadas, respectivamente, em outubro de 2011 e dezembro de 2012. Na primeira ocasião, alguns alunos estiveram ausentes por diferentes motivos, dessa forma, nos limitamos a analisar somente os textos daqueles presentes nos dois momentos. Assim, do total de 24 estudantes, voltamos nosso olhar sobre 14 deles, analisando e tecendo nossas análises acerca das duas produções textuais que escreveram. Ressaltamos, ainda, que análises limitam‐se às práticas dos bolsistas nas aulas de Língua Portuguesa, pois foram atividades com as quais todos tiveram contato. Não excluímos, porém, a influência e importância de outras práticas e eventos de letramento na produção textual dos alunos. De posse das propostas de produção de texto, a partir das ilustrações que as compunham, os alunos tiveram o período de uma aula – 45 minutos – para desenvolver as suas narrativas. Após essas coletas de dados, os textos foram digitados, de acordo com as particularidades da escrita de cada um, e tabulados para análise. Entre as categorias observadas estavam, por exemplo: título, fórmula inicial, descrição do personagem, introdução de cenário, entre outras. Nesse trabalho, nos deteremos às categorias que abrangem os anafóricos (retomadas), relações de causa e efeito e clímax. Um olhar para os anafóricos A relação pela qual os elementos do texto vão, de alguma forma, sendo retomados chama‐se reiteração (ANTUNES, 2005). Esse movimento para trás e para frente é o que assegura ao texto a sua continuidade, o seu fluxo. Entre as formas de reiteração consta a substituição gramatical que se caracteriza, na maioria das vezes, pelo uso de pronomes como forma de retomada; a substituição lexical, ou seja, o uso de uma palavra no lugar de outra que lhe seja equivalente; e a retomada por elipse, a omissão de um termo ou expressão já apresentados anteriormente (ANTUNES, 2005). Nas primeiras produções houve a predominância da substituição gramatical. Nos textos analisados, o pronome pessoal ele/ela estava presente, quase sempre, de maneira absoluta, isso é, era a única forma de retomada. Como exemplo, temos a produção de uma estudante que X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth lança mão dos pronomes para retomar os personagens (grifos nossos): “No dia seguinte ele plantou mais uma árvore, todos os dias ele ia regar as árvores até elas crescerem quando elas cresceram ele ficou feliz porque ele tinha ajudado a plantar duas árvores”. O personagem apresentado como um menino é retomado, ao longo de todo texto como ele; as árvores, mencionadas no trecho, transformam‐se em elas no desenvolvimento da narrativa. Ao notarmos essa regularidade em quase todas as narrativas, desenvolvemos atividades voltadas para esse fim. Pautados no conceito de sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), trabalhamos com os alunos a estrutura dos contos de fada, sua sequência e organização. Abordamos também a forma como os personagens eram retomados nesses textos, comparando à maneira como aos estudantes faziam essa retomada. Após as intervenções realizadas e a escrita da segunda proposta de produção de texto, retomamos a mesma estudante e a narrativa escrita por ela (grifos nossos): “A menina não gostava de animais muito menos de cachorro, então ela pediu para seu namorado se livrar do cachorro. Mas o menino tinha se apegado muito com o seu novo cachorro, então não queria se livrar do Bilu”. Nesta produção, a aluna lançou mão não apenas de pronomes (ela), mas também de substantivos (menina, namorado, cachorro, Bilu) para retomar os personagens da sua história. Depreendemos, assim, que as atividades desenvolvidas foram significativas para os estudantes, oportunizando repensarem a sua escrita e internalizarem outros recursos que poderiam ser aplicados ao texto. Traçando um comparativo entre as duas produções de texto, demonstramos a seguir os avanços obtidos com relação ao uso dos anafóricos (grifos nossos): Quadro 1 – A retomada dos personagens Aluno 1 Outubro 2011 E ele ficou muito alegre. E ele colocou uma rede, amarrada nas duas árvores, e todos os dias ele relachava Tranquilo no jardim observando a natureza. Dezembro 2012 Quando Lary avista seu cachorro caido ao chão ele se dessespera e começa a gritar e correr pedindo socorro, um homem que percebe o desespero do garoto chama a Ambulância. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
Aluno 2 Aproveitou para plantar 2 arvores para ele colocar uma rede nelas, ele regou todo dia e até que a arvore cresceu e ele botou a rede e descansou. Aluno 3 Ele vai plantando arvores com muito carinho, uma por uma ele vai plantando, depois ele vai regando suas arvores, depois de varios dias a arvore cresceu. X Anped Sul
Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth Certo dia um menino chamado Cory estava dando uma volta com seu cachorro Ludi, por que ele não saia de casa por uns 4 meses e ai Cory desidiu dar uma voltinha pelo bairro. Seu dono dezesperado sem saber o que fazer chamou uma ambulancia por que na cidade que ele morava não existia veterinário, quando a ambulancia chegou não viu nenhuma pessoa atropelada, eles ja estavam indo embora e o homem chamou eles devolta. Fonte: Arquivo das autoras. Observando o quadro 1, percebemos que, embora ainda utilizem o pronome como anafórico, essa não é mais a única forma de retomar o personagem. A substituição gramatical, predominante nos primeiros textos, é acompanhada, na segunda produção, pela substituição lexical. No excerto que corresponde à produção do Aluno 1, o personagem é apresentado como Lary (substantivo próprio), retomado a primeira vez como ele (pronome pessoal) e, na sequência, por garoto (substantivo comum). Reportando‐nos ao Aluno 2, a primeira opção foi o substantivo comum (um menino), seguido pelo substantivo próprio (Cory), pelo pronome pessoal (ele) e, novamente, pelo substantivo próprio. Já o Aluno 3 optou por seu dono (substantivo comum) e pelo pronome pessoal (ele). Essas escolhas garantem a continuidade do texto, a fluidez da narrativa, uma vez que a escrita não aparece marcada por repetições, tornando a leitura simples e prazerosa. Contudo, a substituição de palavras não é ocasional. Essa atitude supõe um ato de interpretação e análise, avaliando a adequação do termo substituidor àquilo que se pretende conseguir. Os alunos, assim, adquiriram a capacidade de se referir a um mesmo personagem de diversas maneiras, abandonando o uso de uma só forma de reiteração. A substituição gramatical, predominante nos textos de 2011, divide espaço com a substituição lexical, garantindo fluidez e continuidade na escrita dos alunos. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth Um olhar para as relações de causa e efeito Os fatos ocorridos na história possuem uma motivação (causa) e a sua ocorrência desencadeia novos fatos (consequência). À ligação entre a motivação e o fato desencadeado chamamos relações de causa e efeito ou causalidade (GANCHO, 2002). Ao olharmos para a proposta de produção de texto utilizada em 2011, entendemos que não havia ali muitos complicadores, que exigissem dos alunos elaborar um grande problema. Dessa forma, a maioria dos textos apresentou como relação de causa e efeito o menino cuidar das árvores para, depois, ter onde descansar, como no exemplo: “quando elas cresceram ele ficou feliz porque ele tinha ajudado a plantar duas árvores então ele colocou uma rede e deitou‐se porque ele já estava cansado de tanto regar as árvores só mesmo cansado ele estava ajudando a cuidar do nosso Brasil”. As relações apresentadas mantiveram‐se, em sua maioria, bastante ligadas às imagens da proposta. Não houve inserção de outros complicadores, a não ser aqueles já explícitos na história. As relações de causa e efeito também foram abordadas no trabalho com o gênero discursivo conto. Ao explorarmos as narrativas com os alunos, enfatizamos a forma como o problema era ali apresentado e as tentativas feitas pelos personagens até que uma solução fosse alcançada, mostramos que elementos desconhecidos ou não explícitos poderiam ser usados na escrita. Porém, ao retomarmos as produções de 2012, compreendemos que a ênfase dada a essas relações não foi suficiente. Observando os textos provenientes da segunda proposta de produção de texto, percebemos que os alunos eram ainda bastante dependentes das figuras ali colocadas, mesmo que houvesse um elemento diferente na construção da relação de causa efeito, como no exemplo: “A menina não gostava de animais muito menos de cachorro, então ela pediu para seu namorado se livrar do cachorro; Victor foi passear com seu cachorrinho Bilu, quando foram atravessar a rua na faixa de pedestre. Bilu saiu correndo e veio um carro e o atropelou o pobre do cachorrinho”. A estudante lança mão de um elemento além das imagens: o sentimento da personagem. O fato da personagem não gostar de animais fez com o que Victor passeasse com o cachorro, criando aí a situação para o atropelamento. Outra inclusão de elementos é percebida no excerto: “um de seus amigos corta a corrente de Laik que fugio e atravesou a rua e foi atropelada, por um carro”. Nas imagens contidas X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth na proposta havia somente o personagem masculino e o cachorro, não havia o desenho de outras pessoas, nem de alguém cortando a coleira do cachorro. Essa é, portanto, outra adição do aluno para criar as relações de causa e efeito. As primeiras produções restringiam‐se, basicamente, à descrição das imagens, sem a inserção de complicadores ou grandes conflitos. De acordo com Gancho (2002, p. 8), “para se entender a organização dos fatos no enredo não basta perceber que toda história tem começo, meio e fim; é preciso compreender o elemento estruturador: o conflito”. Assim, constatamos que nas narrativas de 2011, os alunos encadeavam a história como uma sequência de acontecimentos, somente descritos, sem ligação lógica. Não se ativeram a necessidade da utilização do elemento estruturador. Essa ausência de conflito, muitas vezes, faz com que a leitura se torne linear, por vezes, monótona. Isso, segundo Koch (2004, p. 41), ocorre devido “ao grau de previsibilidade ou expectabilidade da informação, um texto será tanto menos informativo quanto mais previsível (redundante) for a informação que traz”. Nos textos escritos em 2012, os alunos permitiram‐se adicionar novos elementos, causadores de problemas e conflitos, possibilitando ao leitor criar expectativas frente os fatos da história. Conforme Scliar‐Cabral (1991, p. 84), “há sempre a expectativa de que, após o conflito ou problema qualquer, que seria o tema da estória, ocorra a resolução que encaminha para o fim da narrativa”. Depreendemos, pois, que ancorados pelos estudos acerca das narrativas, pela leitura e audição de histórias, atrelados ao trabalho realizado em sala de aula, os alunos compreenderam que suas narrativas precisavam mais que começo, meio e fim. Para que despertassem a curiosidade do leitor ou causassem surpresa, elementos problemáticos deveriam ser inseridos, explanados e solucionados. Embora tenham ficado bastante ligados à figura, os estudantes, na segunda produção, adicionaram novos elementos, criaram um conflito, produzindo, assim, uma narrativa melhor articulada. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth Um olhar para o clímax O clímax é o ponto culminante da história, o momento de maior tensão, quando o conflito chega ao seu ponto máximo (GANCHO, 2002). Está intimamente ligado às relações de causa e efeito, e aos conflitos acontecidos na história. Voltando nosso olhar para as narrativas de 2011, percebemos que as produções são lineares, não apresentam muitos conflitos, tornam‐se histórias fluídas, sem picos de emoção ou grandes guinadas. Retomamos aqui o que foi exposto acima: a proposta de produção de texto, nesse momento, não apresentava grandes conflitos, era linear, mostrava o menino plantando as árvores e desfrutando da sombra ofertada por elas. A proposta apresentada contribuiu, então, para a falta de clímax nas histórias escritas. As intervenções, os eventos de letramento realizados, também abrangeram o clímax dos contos de fada. Após a leitura dos textos, conversávamos com os alunos acerca do ponto alto da história, como foi descrito, quais os elementos estavam presentes e como foi finalizado. Conforme a sequência didática era desenvolvida, os alunos percebiam que todas as histórias lidas ou comentadas possuíam clímax, todas apresentavam um conflito que, primeiro, gerava grande tensão para, depois, ser resolvido. Diante do exposto e compreendido nas aulas, a maioria das produções escritas em 2012 apresentavam clímax, todos ligados ao momento em que o cachorro era atropelado e o seu dono não sabia ao certo o que fazer, conforme o exemplo: “veio um carro e o atropelou o pobre do cachorrinho. Victor entrou em desepero começou a berrar feito louco, todos pararam para ver o estado do Bilu, então a Laura que era a namorada de Victor, ligou para o hospital e logo veio a ambulância e levou o Bilu”. Traçando um comparativo entre os dois momentos de produção, observamos como a linearidade das histórias cedeu lugar a momentos de tensão: Quadro 2 – O clímax das histórias Aluno 1 Outubro 2011 [...] ficou esperando que elas crescesem... Algum tempo depois essas arvores creceram. E ele ficou muito alegre. E ele colocou uma Dezembro 2012 [...] a corrente se escapa e Rabito atravesa no sinal vermelho e só se ouve um barulho. Quando Lary avista seu cachorro caido ao chão ele se dessespera e X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
Aluno 2 Aluno 3 rede, amarrada nas duas árvores, e todos os dias ele relachava Tranquilo no jardim observando a natureza. Um certo dia um menino viu que estava sol no tempo, e aproveitou para plantar 2 arvores para ele colocar uma rede nelas, ele regou todo dia e até que a arvore cresceu e ele botou a rede e descansou. Eles ganharam uma muda de árvore e ele foi para casa, e a plantou em um bosque e plantou duas de uma vez só e os dias passar ele regava as suas árvores para crenser para ele brincar com sua rede X Anped Sul
Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth começa a gritar e correr pedindo socorro, um homem que percebe o desespero do garoto chama a Ambulância. Ludi sai correndo, e um carro em alta felocidade atropela ele. Cory desesperado chama um taxi, no caminho para o hospital o taxi quebra, e Cory liga para a ambulancia. Foi atravessar a faixa de pedestre sem olhar para os dois lados Bilu saiu, em uma desparrada, que nem deu tempo do carro parar e bateu no pobre cachorro de Bruno. Bruno começou a pedir socorro! Fonte: Arquivo das autoras. Voltando nosso olhar para o quadro 2, percebemos que na segunda produção as histórias possuíam um ponto de tensão, diferente das narrativas de 2011. O clímax ocorre a partir do desenvolvimento de um conflito e culmina no seu desfecho. Assim, através da inserção e do desenvolvimento das relações de causa e efeito, também ausentes na produção de 2011, os estudantes apresentaram um ponto máximo na história. Sendo o momento mais perigoso do personagem, a crise mais iminente, o clímax, na produção dos alunos, ligou‐se basicamente a ação do dono ao ver o cachorro atropelado. Ao olharmos para o excerto do Aluno 1 temos o clímax: “Quando Lary avista seu cachorro caido ao chão ele se dessespera e começa a gritar e correr pedindo socorro”. Na sequência, acontece o desfecho, a resolução do problema: “um homem que percebe o desespero do garoto chama a Ambulância”. Voltando‐nos para a produção do Aluno 2, temos o clímax no momento em que “Ludi sai correndo, e um carro em alta felocidade atropela ele”. Para solucionar o problema, o personagem Cory chama um táxi e leva seu cachorro ao hospital. Por fim, nos escritos do Aluno 3, Bilu, o cachorro, “saiu, em uma desparrada, que nem deu tempo do carro parar e bateu no pobre cachorro de Bruno”. O menino, ao ver o cachorro atropelado, pede socorro, desencadeando a solução do conflito. Retomando as palavras de Koch (2004, p. 41), “se a informação for introduzida, pelo menos em parte, de X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth forma menos esperada, menos previsível, haverá um grau médio de informatividade”. Depreendemos, assim, que embora se relacionem basicamente a ação do dono para com o cachorro, os alunos fugiram da previsibilidade da descrição, gerando conflitos que acabaram, na maioria das vezes, surpreendendo o leitor e enriquecendo as narrativas. Conclusão Como proposto no início deste artigo, nos dispusemos a analisar as narrativas produzidas por alunos dos anos finais do Ensino Fundamental em dois momentos distintos, bem como os avanços e retrocessos ocorridos. Para tanto, trouxemos excertos dos textos escritos por 14 alunos em 2011 e 2012. No aspecto geral, compreendemos que os eventos de letramento, as interferências realizadas pelos bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), aliados às demais práticas e eventos de letramento participados pelos alunos, contribuíram para que suas narrativas se tornassem mais claras e articuladas, abarcando, na segunda produção, campos não contemplados na primeira e fazendo usos de elementos que, no primeiro momento, não estavam presentes na escrita. Considerando que é por meio das práticas e eventos de letramento que os sujeitos constroem o seu conhecimento, e concebendo a escola como agência de letramento, percebemos as práticas aqui descritas como auxílio para tornar os estudantes proficientes em diferentes práticas letradas. Os letramentos estão, portanto, ligados às práticas e concepções de leitura e escrita próprias de cada esfera social, a diferentes épocas e momentos históricos. É papel da escola integrar essas práticas, contribuindo para a transição efetiva dos estudantes entre as diferentes esferas da interação humana. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.13
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Eventos de letramento no ensino fundamental: a escrita narrativa Gabriela Kloth REFERÊNCIAS
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