DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E
SUSTENTABILIDADE
VISÃO TEOLÓGICA E
ANTROPOLÓGICA
Prof. Dr. Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Reitor da UNISINOS
•
Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (RN - 1891);
•
Encíclica Quadragesimo Anno de Pio XI (QA - 1931);
•
Mensagem radiofônica La solemnità de Pio XII, em 15 de maio de 1941;
•
Encíclicas Mater et Magistra (MM -1961) e Pacem in Terris (PT - 1963)
de João XXIII;
•
Encíclica Populorum Progressio (PP - 1967) e Carta apostólica
Octagesima Adveniens (OA - 1971) de Paulo VI;
•
Encíclicas Laborem Exercens (LE - 1981), Sollicitudo Rei Socialis
(SRS - 1987), Centesimus Annus (CA - 1991) de João Paulo II, e seu
Discurso na Conferência Internacional do Trabalho em Genebra, na sede
da Organização Internacional do Trabalho em 15 de maio de 1982;
•
Encíclica Caritas in Veritate (CV – 2009) de Bento XVI.
Cabe considerar, igualmente, como referências obrigatórias da
Doutrina Social da Igreja (=DSI) a Constituição pastoral Gaudium et Spes,
a Constituição dogmática Lumen Gentium, a Declaração Dignitatis
Humanae, do Concílio Vaticano II, a Exortação apostólica Evangelii
Nuntiandi (1975) de Paulo VI, o Documento Justitia in Mundo (1971) do
sínodo dos bispos sobre a justiça no mundo, o Documento final da II
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (1968)
em Medellin, o documento final da III Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano e do Caribe (1979) em Puebla, a instrução Libertas
Christiana (1986) da Congregação para a Doutrina da Fé sobre liberdade
cristã e libertação, o documento final da IV Conferência Geral do
Episcopado Latino-americano e do Caribe (1992) em Santo Domingo, o
documento final da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano
e do Caribe (2007) em Aparecida.
O magistério social de João Paulo II
A leitura dos acontecimentos históricos à luz da Palavra de
Deus, feita com o auxílio da reflexão filosófica e das
ciências humanas é uma das fontes inspiradoras da DSI,
que tem seu fundamento na antropologia cristã. O ser
humano, com efeito, “é o primeiro caminho que a Igreja
deve percorrer na realização da sua missão (...) o caminho
traçado pelo próprio Cristo, caminho que invariavelmente
passa pelo mistério da encarnação e da redenção”
(Redemptor hominis 13). Os homens e as mulheres
concretos visados pela DSI inserem-se “na complexa rede
de relações das sociedades modernas” (CA 54). A DSI
pertence “ao domínio da teologia e especialmente da
teologia moral” (SRS 41), uma vez que sua finalidade é a de
“orientar o comportamento cristão” SRS 41.
O ser humano na medida em que é “sujeito autônomo de
decisão moral que constrói, através dessa decisão, o
ordenamento social” (CA 13) é pessoa. A pessoa humana
compreendida como “ser dotado de subjetividade, capaz de
agir de maneira programada e racional, capaz de decidir por
si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo” (LE 6) é o
vértice da antropologia cristã. A transcendência, a
verdade, o bem a liberdade a cultura são dimensões
fundamentais da pessoa humana.
A pessoa é um ser social. Pessoa e sociedade constituem o
núcleo semântico da DSI. A sociabilidade da pessoa desenha-se
na DSI, dentre outros, com os conceitos de sociedade e de
Estado. Para João Paulo II, em continuidade com Leão XIII, o
indivíduo, a família e a sociedade são anteriores ao Estado:
“a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas
realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família
até aos grupos econômicos, sociais, políticos e culturais, os
quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados
– subordinando-se sempre ao bem comum – da sua própria
autonomia” (CA 13). A sociedade, tal como a pessoa, é dotada de
subjetividade (SRS 15). A subjetividade da sociedade está
ligada à “subjetividade criadora do cidadão” (SRS 15).
O Estado “existe para tutelar os direitos de um e de outras e
não para os sufocar” (SRS 15). As intervenções do Estado na
sociedade tem caráter limitado e instrumental (CA 11). Em outras
palavras, “o Estado tem o dever de promover o bem comum, e de
procurar que os diversos âmbitos da vida social, sem excluir o
econômico, contribuam para realizar aquele, embora no respeito da
legítima autonomia de cada um deles” (CA 11). O Estado “e toda a
sociedade tem a obrigação de defender os bens coletivos que,
entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual
cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais”
(CA 40). Estes bens coletivos são, dentre outros, o ambiente
natural e o ambiente humano (CA 40). O bem comum, a
subsidiariedade e a solidariedade são três princípios que regem a
sociabilidade, tanto na esfera da sociedade, quanto na esfera do
Estado. A pessoa, o bem comum, a subsidiariedade e a
solidariedade são os quatro princípios fundantes da DSI.
João Paulo II afirma na encíclica LE que “o trabalho humano é uma
chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social, se
nós procurarmos vê-la verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do
homem” (LE 3). Ele afirma na encíclica CA que “no nosso tempo, torna-se
cada vez mais relevante o papel do trabalho humano, como fator produtivo das
riquezas espirituais e materiais (...) Hoje mais do que nunca, trabalhar é um
trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros” (CA33). O trabalho, na
medida em que “constitui uma dimensão fundamental da existência do homem
sobre a terra” (LE 4), é entendido na LE como “uma atividade transitiva, quer dizer,
uma atividade de modo tal que, iniciando-se no sujeito humano, se endereça para
um objeto exterior, pressupõe um específico domínio do homem sobre a terra” (LE
4). O trabalho é um processo universal pois “abrange todos os homens, todas as
gerações, todas as fases do progresso econômico e cultural e, simultaneamente, é
um processo que atua em todos e cada um dos homens, em todos os sujeitos
humanos conscientes” (LE 4). O processo universal e múltiplo de submeter a terra
pelo trabalho adquire um sentido objetivo e um sentido subjetivo. O sentido objetivo
do trabalho tem na agricultura e na indústria suas expressões mais importantes. Em
ambas, hoje em dia, de maneira prevalecente, a atividade humana deixou de ser
manual, passando a ser ajudada pela ação de máquinas e de mecanismos cada
vez mais aperfeiçoados. A tecnociência desempenha um papel de maior relevância
no trabalho, e, contudo, ainda assim “o sujeito próprio do trabalho continua a ser o
homem” (LE 5).
A DSI vem focalizando, ultimamente, a questão ecológica, pois o
homem contemporâneo “consome de maneira excessiva e desordenada
os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata
do ambiente natural há um erro antropológico, infelizmente muito
espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de
transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho,
esquece que este se desenrola sempre sobre a base da dação originária
das coisas por parte de Deus” (CA 37).
Na interação contemporânea do sujeito e do objeto do trabalho, a técnica
gerada pelo pensamento, quando entendida como um conjunto de meios
de que o homem se serve no próprio trabalho, é indubitavelmente uma
aliada do homem, facilitando-lhe o trabalho, aperfeiçoando-o, acelerando-o
e multiplicando-o (LE 5). Por outro lado, ela pode constituir-se quase em
adversária do homem, quando o suplanta, tirando-lhe “todo o gosto pessoal
e o estímulo para a criatividade e para a responsabilidade; igualmente,
quando tira o emprego a muitos trabalhadores que antes estavam
empregados” (LE 5). O sentido subjetivo do trabalho consiste em que “é
como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho” (LE 6). O homem
que realiza o trabalho é uma “pessoa, um sujeito consciente e livre, isto é,
um sujeito que decide por si mesmo” (LE 6). Esta afirmação constitui “num
certo sentido, a medula fundamental e perene da doutrina cristã sobre o
trabalho humano” (LE 6).
As interrogações que surgem a respeito do trabalho “contém em si uma
carga particular de conteúdos e de tensões de caráter ético e ético-social”
(LE 6). Isto se deve ao fato que “o fundamento para determinar o valor do
trabalho humano não é em primeiro lugar o gênero de trabalho que se
realiza, mas o fato de aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da
dignidade do trabalho devem ser procuradas sobretudo não na sua
dimensão objetiva, mas sim na sua dimensão subjetiva” (LE 6). A
dignidade da pessoa que trabalha fundamenta a dimensão ética do agir
econômico do homem.
João Paulo II critica o economismo que entende o trabalho
como uma mercadoria que o trabalhador vende ao dador de
trabalho (LE 7). O trabalho não é nem uma mercadoria
sui generis, nem uma força anônima necessária para a produção, i. é
força-trabalho. Segundo tais concepções, “o homem passa então a ser
tratado como instrumento de produção; enquanto que ele – ele só por si,
independentemente do trabalho que realiza – deveria ser tratado como
seu sujeito eficiente, como seu verdadeiro artífice e criador” (LE 7).
Nisto consiste, para João Paulo II “o erro do primitivo capitalismo [que]
pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma,
da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção,
como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu
trabalho – ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como
verdadeira finalidade de todo o processo de produção” (LE 7).
No magistério social de João Paulo II, a dimensão ético-social
desempenha, portanto, um papel relevante na política social e econômica.
A dimensão ético-social da pessoa permeia a esfera socioeconômica:
“o ensino da Igreja exprimiu sempre a firme e profunda convicção de
que o trabalho humano não diz respeito simplesmente à economia,
mas implica também e sobretudo valores pessoais. O próprio sistema
econômico e o processo de produção auferem vantagens precisamente
do fato de tais valores pessoais serem respeitados” (LE 7). O ESI
considera o agir econômico do homem à luz do conceito de pessoa, a
partir do qual esclarece os binômios trabalho e capital, trabalho e
propriedade.
É oportuno recordar, com relação ao binômio trabalho e capital,
“um princípio ensinado sempre pela Igreja. É o princípio da
prioridade do trabalho em confronto com o capital (...) o
trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que
o capital, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece
apenas um instrumento, ou causa instrumental” (LE 12). João Paulo II
afirma, com relação ao sistema de trabalho e ao sistema socioeconomico:
“é preciso acentuar e por em relevo o primado do homem no
processo de produção, o primado do homem em relação às coisas.
E tudo aquilo que está contido no conceito de ‘capital’, num sentido restrito
do termo, é somente um conjunto de coisas. Ao passo que o homem,
como sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que faz,
o homem, e só ele, é uma pessoa. Esta verdade contém em si
consequências importantes e decisivas” (LE 12). A crítica de João Paulo
ao que ele chama de economismo é uma destas consequências. Na
perspectiva do economismo, tanto na sua vertente capitalista como na sua
vertente socialista “o trabalho foi separado do capital e contraposto
mesmo ao capital, e por sua vez o capital contraposto ao trabalho, quase
como se fossem duas forças antagônicas, dois fatores de produção” (LE
13). Assim “o erro do economismo se dá quando o trabalho humano é
considerado exclusivamente segundo a sua finalidade econômica” (LE
13).
Relativamente ao binômio trabalho e propriedade,
por um lado a propriedade privada é um direito “fundamental
para a autonomia e o desenvolvimento da pessoa” (CA 30).
Contudo, por outro lado, “a propriedade dos bens não é um
direito absoluto, mas, na sua natureza de direito humano,
traz inscritos os próprios limites” (CA 30). O ESI compreende
a questão da propriedade e do direito de propriedade privada
como um difícil processo histórico, cujos atores são homens
vivos e concretos: “de um lado, aqueles que executam o trabalho
sem serem proprietários dos meios de produção; e do outro lado,
aqueles que desempenham a função de patrões e empresários e
que são os proprietários de tais meios, ou então representam os
proprietários” (LE 14). Na CA, João Paulo inclui “a propriedade
do conhecimento, da técnica e do saber” (CA 31) como outra
forma de propriedade. Na explicitação mais recente da DSI, a
terra, os meios de produção, o capital, o conhecimento, a técnica
e o saber são as formas contemporâneas de propriedade.
A DSI critica a antinomia ‘trabalho e capital’ a partir da
afirmação do primado da “subjetividade do homem na vida
social e, especialmente, na estrutura dinâmica de todo o processo
econômico” (LE 14). O primado da subjetividade do homem fundamenta
“o contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da
criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito
ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens” (LE 14).
Na LE, de um ponto de vista sintático, o direito de propriedade, por
causa da sua subordinação à destinação universal dos bens da
criação, torna-se o direito à propriedade privada. A propriedade
“adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho.
E isso diz respeito de modo particular à propriedade dos meios de
produção” (LE 14). Para a LE, a posse dos meios de produção,
segundo a sua natureza, tanto sob a forma de propriedade privada,
quanto sob a forma da propriedade pública ou coletiva legitima-se na
medida em que “servindo ao trabalho, tornem possível a realização
do primeiro princípio desta ordem, que é a destinação universal dos
bens e o direito ao seu uso comum” (LE 14).
João Paulo II propõe uma revisão do capitalismo e do
socialismo, a partir da interação da subjetividade do homem,
que assegura a subjetividade da sociedade, com a estrutura
dinâmica de todo o processo socioeconômico. Esta revisão
é para ser feita sob o aspecto dos direitos do homem
“entendidos no seu sentido mais amplo e nas suas relações com o
trabalho” (LE 14). O erro das teorias econômicas do século XVIII
e de toda a prática econômico-social desse período consistiu na
multiplicação abundante das riquezas materiais, isto é, os meios,
perdendo de vista o fim, quer dizer o homem, a quem tais meios devem
servir. Na LE, “o mesmo erro, que agora já tem uma fisionomia histórica
definida, ligada ao período do capitalismo e do liberalismo primitivos,
pode voltar a repetir-se ainda, noutras circunstâncias de tempo e de
lugar, se no modo de raciocinar se partir das mesmas premissas tanto
teóricas como práticas” (LE 13). Por outro lado, “a eliminação
apriorística da propriedade privada dos meios de produção (...) o
simples fato de subtrair esses meios de produção (o capital) das
mãos dos seus proprietários privados não basta para os socializar
de maneira satisfatória (...) o simples fato de os meios de produção
passarem para a propriedade do Estado, no sistema coletivista,
não significa só por si, certamente a ‘socialização’ desta
propriedade” (LE 14).
O binômio trabalho e propriedade, hoje em dia, vem se configurando
sempre mais como uma relação entre trabalho e iniciativa empresarial
(CA 32) num sistema de livre mercado, sob a égide do direito de
iniciativa econômica (SRS 15). O direito de iniciativa econômica
“é um direito importante, não só para os indivíduos singularmente,
mas de igual modo para o bem comum” (SRS 15). Este direito está
fundamentado na subjetividade criadora do cidadão. A negação
deste direito, “ou a sua limitação, em nome de uma pretensa igualdade de todos
na sociedade” faz com que prevaleçam “a passividade, a dependência e a
submissão ao aparato burocrático que, como único órgão disponente e
decisional – se não mesmo possessor – da totalidade dos bens e dos meios de
produção, faz com que todos fiquem numa posição de dependência quase
absoluta, que é semelhante à tradicional dependência do operário-proletário ao
capitalismo” (SRS 15). João Paulo II afirma na CA que “o livre mercado parece ser
um instrumento mais eficaz para dinamizar os recursos e corresponder
eficazmente às necessidade” (CA 34). Ele delimita, contudo, o campo do livre
mercado, às “necessidades ‘solvíveis’, que gozam da possibilidade de
aquisição, e para os recursos que são ‘comercializáveis’, isto é, capazes de
obter um preço adequado” (CA 34). Em seguida, ele alerta que “existem
numerosas carências humanas, sem acesso ao mercado. É estrito dever de
justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam
insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos. Além disso, é necessário
que estes homens carentes sejam ajudados a adquirir os conhecimentos, a entrar no
círculo de relações, a desenvolver as suas aptidões para melhor valorizar as suas
capacidades e recursos” (CA 34).
O direito de livre iniciativa é regido por algo anterior: “ainda
antes da lógica da comercialização dos valores e das formas de
justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem
porque é homem, com base na sua eminente dignidade. Esse algo
que é devido, comporta inseparavelmente a possibilidade de
sobreviver e de dar uma contribuição ativa para o bem comum da
humanidade” (CA 34). Em outras palavras, “há necessidades
coletivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através
dos seus [do mercado] mecanismos; existem exigências
humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens
que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem
vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado
oferecem seguras vantagens (...) põem no centro a vontade e
as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram
com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma
‘idolatria’ do mercado, que ignora a existência de bens que,
pela sua natureza, não são nem podem ser simples
mercadoria” (CA 40).
Após a Segunda Guerra Mundial, como se pode ver, a DSI
vem fazendo convergir o centro da ordem socioeconômica e
sociopolítica para a dignidade da pessoa, o destino universal dos
bens materiais, o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade.
João Paulo II não propõe a DSI como terceira via, alternativa ao sistema
capitalista e ao sistema socialista. Ele também afirma que “é inaceitável a
afirmação de que a derrocada do denominado ‘socialismo real’ deixe o
capitalismo como único modelo de organização econômica” (CA 35). Ele
propugna, neste sentido, “uma sociedade do trabalho livre, da empresa e
da participação. Esta não se contrapõe ao livre mercado, mas requer
que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais,
de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a
sociedade” (CA 35). A DSI logrou êxito na sua crítica ao Estado totalitário
(CA 45) e na assimilação do sistema democrático: “A Igreja encara com
simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos
cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade
quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir
pacificamente, quando tal se torne oportuno” (CA 46). Ora, “uma autêntica
democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta
concepção da pessoa humana” (CA 46).
A partir dos pressupostos filosóficos-antropológicos acima expostos,
especialmente o pressuposto da liberdade da pessoa, João Paulo II
reconhece os aspectos positivos da moderna economia de empresa:
“A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos,
cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo
econômico e em muitos outros campos” (CA 32). O fator decisivo de produção
da economia de empresa mencionada pela CA não é, nem a terra, nem o capital,
visto como conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, mas é de maneira
decisiva “o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela
no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de
intuir e satisfazer a necessidade do outro” (CA 32). Ou ainda: “a liberdade
econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se
torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou
um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para
viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba
por a alienar e oprimir” (CA 39). Segundo João Paulo II, “o desenvolvimento
integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior
produtividade e eficácia do próprio trabalho” (CA 43). À luz deste
desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho, “a empresa não pode
ser considerada apenas como uma ‘sociedade de capitais’; é simultaneamente uma
‘sociedade de pessoas’, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas
responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua
atividade, quer aqueles que aí colaboram com o seu trabalho” (CA 43).
A encíclica CA reconhece “a justa função do lucro como
indicador do funcionamento da empresa: quando esta
dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram
adequadamente usados e as correlativas necessidades
humanas devidamente satisfeitas” (CA 35). Contudo,
“o lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o
único” (CA 35). O objetivo da empresa “não é simplesmente
o lucro, mas sim a própria existência da empresa como
comunidade de homens que, de diverso modo, procuram a
satisfação das suas necessidades fundamentais e constituem
um grupo especial a serviço de toda a sociedade” (CA 35).
Assim, a “consideração de outros fatores humanos e
morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais
para a vida da empresa” (CA 35) devem ser agregados ao
lucro.
João Paulo II alerta para os riscos e os problemas do
processo econômico da economia de empresa:
“hoje muitos homens, talvez a maioria, não tem a
possibilidade de adquirir os conhecimentos de base
que permitam exprimir a sua criatividade e
desenvolver as suas potencialidades, nem de
penetrar na rede de conhecimentos e
intercomunicações, que lhes consentiria ver
apreciadas e utilizadas as suas qualidades” (CA 33).
Eles estão, por assim dizer, marginalizados do
progresso econômico.
A orientação que a Igreja oferece no campo socioeconômico
mediante o seu ensinamento social “reconhece o valor positivo
do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a
necessidade de que estes sejam orientados para o bem comum”
(CA 43). O bem comum e a subsidiariedade são princípios éticos que
definem o papel do Estado setor da economia, tanto com vistas à
harmonização e condução do progresso, quanto no desempenho de funções de
suplência em situações excepcionais: “a atividade econômica, em particular a da
economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e
político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias de liberdade
individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos
eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, o de garantir esta segurança,
de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio
trabalho e, consequentemente, sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e
honestidade” (CA 48). Além desta, “outra tarefa do Estado é a de vigiar e orientar
o exercício dos direitos humanos, no setor econômico (...) O Estado tem o dever
de secundar a atividade das empresas, criando as condições que garantam
ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos
momentos de crise” (CA 48).O Estado tem também “o direito de intervir quando
situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao
desenvolvimento” (CA 48). A CA prevê funções de suplência do Estado “quando
setores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vistas de
formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de
suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem comum
devem der, quanto possível, limitadas no tempo” (CA 48).
O magistério social de Bento XVI
“A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência
do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas,
que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão
meramente produtiva e utilitarista da existência. O ser humano está feito
para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência.
Por vezes o homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o
único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma
presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, que provém
— se queremos exprimi-lo em termos de fé — do pecado das origens. Na
sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado
original mesmo na interpretação dos fenômenos sociais e na construção da
sociedade. ‘Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para
o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da
ação social e dos costumes’ ” (CV 34).
“No elenco dos campos onde se manifestam os efeitos
perniciosos do pecado, há muito tempo que se acrescentou
também o da economia. Temos uma prova evidente disto
mesmo nos dias que correm. Primeiro, a convicção de ser
auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na
história apenas com a própria ação induziu o homem a
identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de
bem-estar material e de ação social. Depois, a convicção da
exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar
influências de caráter moral, impeliu o homem a abusar dos
instrumentos econômicos até mesmo de forma destrutiva.
Com o passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas
econômicos, sociais e políticos que espezinharam a liberdade
da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram
capazes de assegurar a justiça que prometiam” (CV 34).
“Deste modo, como afirmei na encíclica Spe Salvi,
elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés,
constitui um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento
humano integral, procurado na liberdade e na justiça. A esperança
encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade. Já está
presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na
verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus
absolutamente gratuito, irrompe na nossa vida como algo não
devido, que transcende qualquer norma de justiça. Por sua natureza,
o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência. Aquele
precede-nos, na nossa própria alma, como sinal da presença de Deus em
nós e das suas expectativas a nosso respeito. A verdade, que é dom tal
como a caridade, é maior do que nós, conforme ensina Santo Agostinho.
Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência
pessoal é-nos primariamente dada; com efeito, em qualquer processo
cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre
encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela não nasce da
inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser
humano” (CV 34).
“Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é
uma força que constitui a comunidade, unifica os homens
segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins.
A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos;
mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma
comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de
qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade
verdadeiramente universal: a unidade do gênero humano, uma
comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da
convocação da palavra de Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão
decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom
não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo
e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento econômico, social
e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar
espaço ao princípio da gratuidade como expressão de
fraternidade” (CV 34).
“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada,
é a instituição econômica que permite o encontro entre as
pessoas, na sua dimensão de operadores econômicos que
usam o contrato como regra das suas relações e que trocam
bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas
carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da
chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações
do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social
nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça
distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado,
não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político
mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza.
De fato, deixado unicamente ao princípio da equivalência de
valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a
coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas
internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado
não pode cumprir plenamente a própria função econômica. E,
hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da
confiança é uma perda grave” (CV 35).
“A atividade econômica não pode resolver todos os
problemas sociais através da simples extensão da lógica
mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução
do bem comum, do qual se deve ocupar também e
sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se
presente que é causa de graves desequilíbrios separar o
agir econômico — ao qual competiria apenas produzir
riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a
justiça através da redistribuição” (CV 36).
“Desde sempre a Igreja defende que não se há-de considerar
o agir econômico como anti-social. Por si só o mercado
não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte
sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do mercado,
como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte
das relações autenticamente humanas. É verdade que o mercado
pode ser orientado de modo negativo, não porque isso esteja na
sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em
tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estado
puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações
culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e
as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se
quem as gere tiver apenas referimentos egoístas. Deste modo é
possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em
instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem
que produz estas consequências, não o instrumento por si
mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em
causa, mas o homem, a sua consciência moral e a sua
responsabilidade pessoal e social” (CV 36).
“A doutrina social da Igreja considera possível viver
relações autenticamente humanas de amizade e
camaradagem, de solidariedade e reciprocidade,
mesmo no âmbito da atividade econômica e não
apenas fora dela ou depois dela. A área econômica não
é eticamente neutra nem de natureza desumana e antisocial. Pertence à atividade do homem; e,
precisamente porque humana, deve ser eticamente
estruturada e institucionalizada” (CV 36).
“O grande desafio que temos diante de nós — resultante
das problemáticas do desenvolvimento neste tempo de
globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a
crise econômico-financeira — é mostrar, a nível tanto de
pensamento como de comportamentos, que não só não
podem ser transcurados ou atenuados os princípios
tradicionais da ética social, como a transparência, a
honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas
relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica
do dom como expressão da fraternidade podem e devem
encontrar lugar dentro da atividade econômica normal.
Isto é uma exigência do homem no tempo atual, mas também
da própria razão econômica. Trata-se de uma exigência
simultaneamente da caridade e da verdade” (CV 36).
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