COLEÇÃO DIREITO AMBIENTAL EM DEBATE MARCELO DIAS VARELLA ANA FLÁVIO BARROS PLATIAU (Organizadores) Princípio da Precaução A numeração das páginas não corresponde à versão impressa Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União Sumário Prefácio Marie-Angèle Hermitte Capítulo 1 - Os direitos e interesses das futuras gerações e o princípio da precaução Alexandre Kiss Capítulo 2 - O princípio da precaução Rüdiger Wolfrum Capítulo 3 - O princípio da precaução Philippe Sands Capítulo 4 – O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional Nicolas de Sadeleer Capítulo 5 – Princípio de Precaução: uma nova postura face aos riscos e incertezas científicas Solange Teles da Silva Capítulo 6 - Avaliação dos riscos e princípio da precaução Marie-Angèle Hermitte e Virginie David Capítulo 7 – O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca Olivier Godard Capítulo 8 – Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e Oportunidades David Freestone e Helen Hey Capítulo 9 – Implementando Cautelosamente o Princípio da Precaução: A Abordagem Precautória no Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios David Freestone Capítulo 10 – Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA Marcelo Dias Varella Capítulo 11 – A adoção do princípio da precaução pela OMC Hélène Ruiz Fabri Capítulo 12 – Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio: da oposição filosófica para os ajustes técnicos? Christine Noiville Capítulo 13 – Princípio da precaução no direito brasileiro e no direito internacional e comparado Paulo Afonso Leme Machado Capítulo 14 – O princípio da precaução e a sua aplicação na justiça brasileira: estudo de casos Aurélio Virgilio Veiga Rios Capítulo 15 – A legitimidade da governança global ambiental e o princípio da precaução Ana Flávia Barros Platiau Prefácio Marie-Angèle Hermitte O lançamento de uma coleção de direito ambiental, o projeto de ter a participação de juristas de língua francesa, assim como publicar a primeira obra que trata do princípio da precaução não foram decisões tomadas irrefletidamente. Não é fruto do acaso ou da conjuntura, mas a marca de um projeto intelectual dos diretores desta coleção. Antes de tudo, tem a ver com a escolha do direito ambiental; ao contrário do que crêem muitos juristas, este direito não pode reduzir-se a um ramo peculiar, mais ou menos limitado ao campo da proteção da natureza. Sua primeira função, certamente, é a de assegurar a proteção do meio ambiente, que é um objetivo político recente e de pouco consenso, politicamente falando; todavia, acumula muitas outras características importantes. Inicialmente, no plano teórico, observa-se que o direito ambiental está hoje voltado tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente stricto sensu; ora, a junção progressiva destes dois ramos do direito é a implementação jurídica de uma filosofia do homem moldado pelo ecossistema que está construindo, numa sucessão sem fim de causas e efeitos. É no direito ambiental que se observa a luta entre duas filosofias políticas: uma que fundamenta a vontade do homem em livrar-se cada vez mais das contingências naturais, por meio de uma moldagem tecnológica do meio ambiente; outra que reconhece a necessidade de uma congruência entre o homem e uma natureza que ele nunca poderá dominar totalmente, pois ela continua maltratando com suas reações inesperadas e naturalmente autônomas às modificações que lhe são impostas. Num plano mais prático, este amplo projeto de pesquisa da congruência conseguiu expressar-se no universo jurídico, mediante o princípio da integração. Assim, o direito ambiental tem por vocação a transformação de todos os outros ramos do direito: existindo para si mesmo, existirá cada vez mais para reconstruir os outros direitos, tendo em vista seus próprios objetivos. Todo direito aplicável à indústria e à agricultura terá de tolerar modificações para integrar objetivos ambientais e sanitários; então, mais que dele mesmo, o direito ambiental retira sua importância do conjunto da ordem jurídica. Enfim, observa-se que é um dos ramos mais inovadores do direito e inúmeras de suas inovações espalham-se no conjunto do sistema jurídico. É verdadeiro num nível técnico, em que novos princípios foram elaborados; mas é também verdadeiro num nível político, e a importância desta constatação é significativa. De fato, a característica do direito ambiental é de ter surgido em decorrência de uma demanda da sociedade civil, mais do que do universo político e, o que é muito importante, sua implementação ocorre sob o controle e, de certa forma, sob a pressão da sociedade civil, freqüentemente contra as autoridades do Estado, que são vistas como muito permissivas pelos vizinhos de uma fábrica ou de outro problema qualquer. É por isto que, antes de tudo, o direito ambiental é o molde em que se elabora o que se convencionou chamar de nova governança, que eu definiria como um modo de governar compartilhado entre as autoridades públicas tradicionais do modelo representativo e uma forma nova de democracia direta. Neste contexto, a escolha da primeira obra sobre o princípio da precaução é lógica. Mais uma vez, não é somente porque este princípio é novo, porque se elabora rapidamente e penetra o conjunto da ordem jurídica nacional e internacional. É também e sobretudo, por causa de sua importância para esta nova governança. De fato, insistindo sobre a necessidade de agir de forma racional durante as fases de incertezas cientificas e técnicas, até então reservadas à expectativa, o princípio da precaução tem por vocação reforçar a participação do público, dos leigos, no que concerne à decisão. Diante de uma situação de incerteza e de ignorância, o sistema abala as hierarquias tradicionais. Obviamente, os cientistas têm uma função peculiar, a de levar adiante as pesquisas que permitirão vencer essa ignorância; no entanto, eles se deparam com a necessidade de confessá-la, de deixar vir à tona suas controvérsias e suas hesitações muito mais que uma imagem fictícia de verdade e de saber; assim, cientistas e leigos estão ficando mais próximos uns dos outros. É evidente que serão as instituições tradicionais que tomarão formalmente as decisões. Todavia, num contexto de risco coletivo, de ignorância e de sacrifícios a serem consentidos, associar o público à decisão é um ato de prudência. Os princípios de informação e participação do público, que são os menos aplicados dos grandes princípios do direito ambiental, são também e talvez os mais importantes. Mostrando que as elites científicas e políticas estão desarmadas, a idéia da precaução está fundamentalmente ligada à renovação democrática que se tenta impor. Contudo, interessar-se pela doutrina francesa parecia menos evidente. Por sua posição geopolítica, seu tamanho, suas riquezas, a diversidade de sua população, o Brasil pode pretender tornar-se independente intelectualmente e, de resto, será logicamente atraído pela esfera americana, no sentido de um continente americano ainda por ser construído. É justamente no âmbito desta invenção do mundo que a doutrina francesa, restrita a uma audiência bastante reduzida, em razão dos poucos conhecedores da língua francesa, pode apresentar interesse. Tradicionalmente ligada a inúmeros países do Sul, relativamente ignorante ou indiferente aos modismos intelectuais, para o melhor assim como para o pior, a doutrina francesa representa um pólo de diversidade cultural que pode ser útil de se conhecer para aumentar as possibilidades de escolhas políticas e jurídicas, com as quais o Brasil é confrontado. Trata-se de contrapeso, de contramoda, de incentivo à aliança. Que esta coleção provoque a aprendizagem recíproca de argumentações mais ricas e mais diversas. Estes são meus votos. Apresentação Este primeiro volume, entre três programados para a “Coleção direito ambiental em debate”, apresenta uma discussão sobre o princípio da precaução. A nossa maior intenção consiste em trazer para a literatura brasileira, grandes nomes do direito internacional, que atualmente são dificilmente acessíveis no Brasil. Este problema decorre de inúmeros fatores: em primeiro lugar, os leitores brasileiros não têm familiaridade com línguas estrangeiras, principalmente se não se tratar da língua inglesa, sobretudo em função da grande influência norte-americana sobre nossa doutrina. Este livro se focaliza sobretudo em grandes autores franceses, mas também alemães, holandeses e outros. O segundo objetivo é promover o diálogo entre os principais acadêmicos europeus e norte-americanos acerca da natureza do princípio da precaução e, principalmente, sobre os desafios de sua implementação, o que os professores David Freestone e Hellen Hey comentaram ser a “segunda geração” de estudos e pesquisas sobre o tema. O debate pretende ajudar a tecer uma malha teórica capaz de auxiliar, em grande medida, à parte do desenvolvimento da discussão sobre risco e precaução, a disseminar o tema e seus desafios decorrentes no Brasil. Tomamos a liberdade de convidar alguns autores brasileiros consagrados como o Paulo Affonso Leme Machado e outros que estão se destacando por seus estudos e atividades como Solange Teles da Silva e Aurélio Rios. Tais artigos tentam esboçar os contornos do princípio da precaução no ordenamento jurídico brasileiro, assim como suas formas de concretização. A disposição dos artigos ao longo do volume naturalmente respeitou uma seqüência baseada nos vieses dados por cada autor a temas ou questões específicas. O primeiro grupo de artigos, por exemplo, inclui os textos dos Professores Alexandre Kiss, Rüdiger Wolfrum, Philippe Sands, Solange Teles da Silva, Marie-‐Angèle Hermitte & Virginie David, e Nicolas de Sandeleer. Estes seis artigos possuem em comum o mesmo ponto de partida: a apresentação do estado do princípio da precaução no direito internacional. Entretanto, todos possuem metodologias distintas, apresentando o princípio da precaução a partir de diferentes roupagens. O professor Alexandre Kiss tem como principal alvo demonstrar a ligação entre equidade intergeracional e o princípio da precaução, tendo em vista a definição de o princípio do desenvolvimento sustentável. O artigo do professor Rüdiger Wolfrum, por sua vez, vele-‐se da riqueza dos instrumentos jurídicos internacionais para comentar a evolução da abordagem precautória, levantando importantes pontos para debate tal como a construção de políticas e a tomada de decisão em contextos de incerteza, em contraposição à necessidade de prova de impactos negativos sobre o meio ambiente. De forma análoga, Philippe Sands desenvolve uma apresentação do status do princípio da precaução, bem como uma discussão acerca de seu significado. Em outras palavras, Sands estuda o status da consolidação do princípio da precaução, essencialmente nas cortes regionais e foros internacionais. O professor Nicolas de Sadeleer assinala que apesar da dificuldade própria do direito internacional do meio ambiente, a fragmentação, é possível estabelecer um valor jurídico para o princípio da precaução a partir das fontes tradicionais do Direito Internacional, aprofundando-‐se nas raízes deste princípio, construindo sua tipologia jurídica e identificando de forma precisa seus contornos. A professora Solange Teles da Silva demonstra a ascensão do princípio da precaução no direito internacional. Finalmente, o texto da professora Marie-‐Angèle Hermitte e de Virginie David apresentam uma análise clara dos elementos de difícil análise em se tratando do princípio da precaução, demonstram suas origens e fecham com brilhantismo o bloco, abrindo os olhos do leitor para abordagens que devem ser dadas para a melhor compreensão do princípio da precuação. O segundo bloco de artigos, em contraste ao primeiro que tinha na definição e evolução do princípio da precaução seus focos, são construídos sob dilemas decorrentes da epistemologia, da aplicação, interpretação, percepção e extensão da precaução. Tratase de um passo além, em consonância com o estado da arte do princípio no direito internacional. O artigo de Olivier Godard, em suas próprias palavras, propõe que “O dilema posto pela inscrição jurídica do princípio da precaução é de saber se ela será mais fiel à concepção apurada e reflexiva do princípio da precaução que as idéias brutas que levaram a sua aceitação pelo público.” Em seu texto, Godard utiliza o caso da vaca louca como ponto de partida para uma reflexão sobre o posicionamento a ser dado ao princípio da precaução. Já o texto de Freestone & Hey é construído sob o problema da incerteza versus impactos negativos significativos, quando da aplicação do princípio da precaução e revela bem uma visão setorial do princípio, em se tratando de direito marítimo. O artigo de David Freestone fundamenta-se na dicotomia interesses nacionais versus interesses comuns e transgeracionais, a partir de uma análise do Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios e da Convenção sobre o Direito do Mar, que foi um dos primeiros e mais importantes tratados internacionais a propor uma forma de concretização do princípio da precaução no direito internacional. O artigo subseqüente de Marcelo Varella, por sua vez, põe em contraste as diferentes abordagens para o princípio da precaução em diferentes organizações internacionais, demonstrando o como o princípio ou abordagem precautória é analisado em um mesmo momento por diferentes espaços de resolução de conflitos, e como elementos políticos são inerentes a esta análise e podem influenciar a avaliação do princípio da precaução. Os artigos de Hélène Ruiz Fabri e Christine Noiville encerram o segundo “bloco” com um interessante aprofundamento da discussão sobre a aplicação e evolução da consideração do princípio da precaução na Organização Mundial do Comércio (OMC). Finalmente, o terceiro bloco de artigos inicia-se com a apresentação dos artigos dos professores Paulo Afonso Leme Machado e Aurélio Virgilio Veiga Rios cuja ênfase é o estado e a implementação do princípio da precaução no ordenamento jurídico interno brasileiro. A professora Ana Flávia Platiau retoma em seu artigo o ponto dos professores Nicolas de Sandeleer e Olivier Godard para demonstrar, a partir do papel das comunidades epistêmicas e da sociedade civil global em questões vinculadas à biotecnologia, que os ordenamentos jurídico e político caminham em ritmos distintos. O método de construção da obra ocorreu de modo a torná-la um conjunto harmônico e integrado de textos. Os professores foram convidados a escrever artigos ou a indicar um dos seus melhores textos sobre o tema. Em seguida, os organizadores fizeram críticas e retornaram os textos para os autores, em conjunto com todos os outros textos da obra. Assim, foi possível cada autor conhecer e discutir os demais textos, alterando seus próprios trabalhos. A versão final, após novas discussões, foi traduzida para o português e revisada pelos organizadores e pelos autores. Uma nova revisão de português então foi realizada, por profissionais experientes e revisada novamente pelos organizadores. Assim, trata-se de uma obra cuja coerência aproxima-se mais a de livro do que de uma simples reunião coletânea de artigos. Para tornar a obra mais compreensível, os organizadores adicionaram algumas notas de rodapé, explicando certos termos técnicos que são raramente encontrados nos textos brasileiros. Acreditamos assim, trazer ao público brasileiro, alguns trabalhos de qualidade sobre o princípio da precaução. Gostaríamos de agradecer a todos que trabalharam para que esta empreeitada fosse possível, aos técnicos Rafael Schleicher, Maria Edevalcy Marinho e Liziane Paixão, pela uniformização de notas e estilos, e ajuda nesta apresentação e traduções; aos tradutor Bruno Guérard. As revisoras de portugues Sandra Jacovini e especialmente à professora Amabile, pela contribuição indispensável para a qualidade da obra. Enfim, aos editores dos textos originais pela permissão concedida para a tradução. Um agradecimento especial vai também a Sub-Procuradora Geral da República, Sandra Cureau, Presidente da Escola Superior do Ministério Público da União, aos Diplomatas Guillaume Ernst e Laetitia Daget, do Ministério das Relações Exteriores do Governo Francês e ao Procurador da República Antônio Fonseca, Presidente da Fundação Pedro Jorge, pelo apoio financeiro para a realização dos trabalhos. Ana Flávia Platiau Marcelo Dias Varella Capítulo 1 Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da Precaução Alexandre Kiss* O título deste capítulo propõe a análise de três elementos separados: direitos e interesses, gerações futuras e princípio da precaução. Cada um dos elementos será examinado separadamente, antes de uma tentativa de síntese. De qualquer modo, para facilitar a análise, a ordem pela qual os três serão discutidos foi modificada no sentido de priorizar o conceito-chave de gerações futuras. 1. O que são gerações futuras? O conceito de eqüidade intergeracional surgiu nos anos 80. Sua origem está relacionada com a ansiedade desencadeada pelas mudanças globais que caracterizaram a segunda metade do século XX. O poder da humanidade de transformar as características físicas da Terra alcançou um nível que dificilmente poderia ser imaginado há um século. Ao mesmo tempo, a população mundial aumentou numa velocidade sem precedentes, dobrando em algumas décadas. Esse crescimento ocasionou aumento no uso dos recursos naturais e na conscientização sobre a escassez desses recursos.1 Como resultado, houve uma crescente conscientização de que as mudanças globais podem ter como efeito a redução da parte da riqueza global a que cada habitante do mundo tem acesso. A pergunta, então, é se a mudança global deve ser feita para provocar uma redução da parcela da riqueza global a que cada indivíduo tem direito - mesmo àqueles que vivem atualmente na Terra. Uma imagem impressionante dos anos 1970 - a Espaçonave Terra - ilustra tais apreensões: nós, toda a humanidade, estamos a bordo de um veículo viajando pelo espaço, a energia solar é o único recurso suplementar que teremos até o fim desconhecido * Professor Alexandre Kiss é diretor de pesquisas CNRS/França e professor emérito da Universidade de Estrasburgo, França. 1 Os recursos naturais aqui mencionados incluem não somente minerais, água e ar, mas também a diversidade biológica e o espaço. da viagem. Assim, devemos conservar nossos recursos de forma sábia e compartilhá-los, sem esquecer que os que ocuparem nossos lugares a bordo, no futuro, serão ainda mais numerosos que nós. Esses interesses são acompanhados e ampliados por uma crescente inquietude pela situação do meio ambiente. Essas preocupações têm também uma dimensão temporal embora não necessariamente coincidente. A preservação do meio ambiente está obrigatoriamente focalizada no futuro. Uma decisão consciente para evitar o esgotamento dos recursos naturais globais, em vez de nos beneficiarmos ao máximo das possibilidades que nos são dadas hoje, envolve necessariamente pensar sobre o futuro. Entretanto, o futuro pode ter uma dimensão de médio ou longo prazo, enquanto a preocupação relacionada ao interesse das gerações futuras é necessariamente de longo prazo e, sem dúvida, um compromisso vago. Um outro aspecto motiva a preocupação com as gerações futuras. Mesmo sendo verdade que, desde o início, a humanidade usou recursos naturais, algumas vezes chegando a sua extinção, também desenvolveu uma riqueza cultural espiritual própria. Como afirmou o pensador francês Paul Valéry: “Nós, civilizações, agora sabemos que somos mortais”.2 De fato, muitas civilizações e culturas locais desapareceram no decorrer da história da humanidade, mas nunca o ritmo de desaparecimento foi tão rápido como no século atual. Com isso, a mudança global que está ocorrendo no momento afeta não só os recursos naturais, mas também os recursos culturais humanos que foram acumulados durante milhares de anos. Esses recursos consistem, por exemplo, de conhecimentos de povos indígenas, de registros científicos ou até mesmo de películas que se deterioraram com o passar do tempo. Fatores psicológicos e éticos explicam nossas reações a tais questões. Nossa primeira reação pode ser genética, instintiva. Todas as espécies vivas procuram instintivamente assegurar sua reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas também fazem a provisão para o futuro bem-estar de seus descendentes. A história humana é testemunha dos constantes esforços dos seres humanos para proteger não somente suas próprias vidas, mas também para garantir o bem-estar e melhorar as 2 VALÉRY, P.. Regards sur le monde actuel et autres essais, p. 121. oportunidades para sua prole. O cuidado instintivo com as crianças e netos faz parte da natureza humana. Considerações éticas reforçam e podem também expressar esses sentimentos instintivos. Como disse um escritor francês, nós não somos os herdeiros de nossos pais, mas os devedores de nossas crianças.3 Para haver justiça, a riqueza que nós herdamos das gerações precedentes não deve ser dissipada para nossa própria conveniência e prazer, mas passada adiante, na medida do possível, para aqueles que nos sucederão. Certamente, não há nenhuma justificativa moral em privar o outro de receber o que recebemossem esforço de nossa parte. O termo eqüidade intergeracional foi utilizado para representar este conceito.4 Expressa o reconhecimento do que devemos a nossos antepassados e nossa gratidão para com eles, assim como o que devemos à posteridade. Uma vez reconhecidas nossas obrigações quanto ao futuro, permanece ainda uma dificuldade maior – a definição do termo geração. Uma nota de advertência é necessária com relação ao que pode parecer simplesmente uma questão terminológica. O uso atual do termo geração serve freqüentemente para referir-se a uma série de produtos ou conceitos que, em razão dos desenvolvimentos tecnológicos, podem ser substituídos por novas séries de produtos ou conceitos. A implicação deste uso particular é que as gerações se substituem e a geração substituída se torna antiquada e, conseqüentemente, inútil. O uso do termo geração neste sentido, precisa ser tratado com cuidado. Por exemplo, na lei dos direitos humanos, os direitos civis e políticos são tratados freqüentemente como sendo direitos de primeira geração; os direitos sociais e econômicos, como direitos de segunda geração e o desenvolvimento e os direitos ambientais, como sendo direitos de terceira geração. Se o argumento anterior fosse aplicado à lei dos direitos humanos, implicaria que os direitos humanos de segunda geração tornariam obsoletos os direitos da primeira geração e a chamada terceira geração de direitos teria o mesmo efeito sobre a segunda geração. Isto seria obviamente absurdo e inaceitável. Com relação aos direitos das gerações futuras, não existe certamente nenhuma implicação de que, quando uma nova geração surgir, a existente deva desaparecer. De 3 SAINT-EXUPÉRY, A.. Vol de nuit, p. 29. WEISS, E.. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and Intergenerational Equity, p.17. 4 qualquer modo, além dos problemas de terminologia, o conceito de geração é obscuro. Historicamente, considerando a variada expectativa de vida no passado, a duração de uma geração foi aceita com sendo de trinta anos. A relevância de tais estimativas, em vista de uma maior expectativa de vida no mundo desenvolvido e as grandes diferenças entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, é altamente questionável. De forma conceitual, o principal problema é que não há nenhuma geração distinta. Em cada duas centenas de seres humanos que nascem e morrem, mais de cinco bilhões de pessoas de todas as idades coexistem. Seria mais exato falar não de gerações, mas de um fluxo constante; a humanidade pode ser comparada a um enorme rio que flui constantemente, torna-se cada vez maior e nele nenhuma distinção pode ser feita entre as gotas de água que formam esse rio. A conseqüência lógica de tal aproximação seria reconhecer a futura humanidade como detentora de direitos. A compreensão de que a futura humanidade começa novamente a cada segundo conduziria assim ao reconhecimento da totalidade da humanidade, incluindo os membros atuais e futuros, como pessoa legal, sujeito de direito e portadora potencial de direitos e deveres. Alguma sustentação conceitual para tal enfoque pode ser encontrada no conceito legal existente de crimes contra a humanidade no qual a humanidade por inteiro é protegida contra atentados à vida e à integridade de seus membros. Finalmente, admitir que as gerações futuras têm direitos poderia conduzir ao reconhecimento de que a humanidade, como tal, possui um status legal. Em princípio, esta compreensão poderia ser reconhecida nas leis do Direito Internacional.5 Os principais problemas a serem tratados estão relacionados ao estabelecimento de procedimentos legais adequados através dos quais a representação de direitos e interesses da humanidade seria assegurada.6 2. Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras 5 No princípio do Direito Internacional, um dos principais direitos do Estado era a autopreservação que poderia ser interpretada como sendo uma forma de cuidado futuro. 6 WEISS, E. op. cit., p.148-152. (propondo a criação da Comissão sobre o Futuro do Planeta, com os seguintes membros: comissários, ombudsmen, um programa de monitoramento, uma unidade de aconselhamento técnico e uma unidade educacional). Os instrumentos legais internacionais freqüentemente fazem referência aos "direitos das gerações futuras". Com base na variedade de instrumentos, incluindo declarações e deliberações bem como cláusulas de tratados, é possível aceitar esses direitos como sendo os que cada geração tem em beneficiar-se e em desenvolver o patrimônio natural e cultural herdado das gerações precedentes, de tal forma que possa ser passado às gerações futuras em circunstâncias não piores do que as recebidas. Isto exige conservação e, onde for possível, melhoria da qualidade e da diversidade dessa herança e, especificamente, a conservação dos recursos renováveis, dos ecossistemas e dos processos de suporte à vida, assim como do conhecimento humano e da arte. Requer ainda que sejam evitadas ações com conseqüências desastrosas e irreversíveis para a herança natural e cultural, citadas em vários instrumentos internacionais.7 Diferentes expressões dos direitos das gerações futuras são encontradas em diferentes textos. De acordo com a Declaração de Estocolmo de 1972, a primeira a formular este princípio, encontramos: “O homem... tem a solene responsabilidade de proteger e melhorar o meio ambiente para a atual e as futuras gerações”.8 O mesmo princípio foi reafirmado por diversos tratados internacionais e por outros instrumentos.9 Particularmente significativo é o artigo 3(1) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Essa Convenção foi um dos principais resultados da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD): “As partes devem proteger o sistema climático para o benefício das atuais e futuras gerações da humanidade”.10 Essa Convenção é uma continuação de diversas deliberações da Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU), sendo a mais importante a que se refere à Proteção do 7 "Goa Guidelines on Intergenerational Equity", 15. 2. 1988, reproduzido por WEISS, op. cit., p. 293. 8 Princípio I, UN Conference A/Conf. 48/14/Rev. 1. 9 Princípio I, UN Conference A/Conf.48114/Rev 1. 9. Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (CITES), Washington, March 3, 1973,993 UNTS 243; Convention for the Protection of the Mediterranean Sea Against Pollution, Barcelona, February 16, 1976, (1976) 15 ILM290; Convention on the Conservation of Nature in the South Pacific, Apia, June 12, 1976, UNEP, (1983) Selected Multilateral Treaties in the Field of the Environment, p. 463; Convention on the Prohibition of Military or Any Other Hostile Use of Environmental Modification Techniques, Geneva, May 18, 1977, (1977) 16 ILM 88; Kuwait Regional Convention for Cooperation in the Protection of the Marine Environment from Pollution, Kuwait, April 24, 1978, (1978) 17 ILM 511; Convention on the Conservation of Migratory Species of Wild Animals, Bonn, June 23, 1979, (1980) 19 ILM 15; Convention on the Conservation of European Wildlife and Natural Habitats, Bern, September 19, 1979, European Treaty Series, no 104; Convention for the Protection and Development of the Marine Environment of the Wider Caribbean Region, Cartagena de Indias, March 24, 1983, (1983) 22 ILM 227; ASEAN Agreement on the Conservation of Nature and Natural Resources, Kuala Lumpur, July 9, 1985, (1985) 15 EPL p. 64; Convention on the Transboundary Effects of Industrial Accidents, Helsinki, March 17, 1992, UN E/ECE/ 1268. 10 Nova Iorque, 9. 5.1992, (1992) 31 ILM 849. Clima Global para as Atuais e Futuras Gerações da Humanidade.11 Na Convenção sobre Diversidade Biológica, as partes contratantes apresentam sua decisão "para conservar e usar de forma sustentável a diversidade biológica para o benefício da geração atual e das gerações futuras".12 De acordo com o terceiro princípio da Declaração do Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio, “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”.13 A preocupação pelas gerações futuras também é inerente ao conceito de desenvolvimento sustentável. A Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (WCED) define desenvolvimento sustentável como "a capacidade humana de assegurar que o desenvolvimento atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas próprias necessidades".14 A Comissão, além disso, concordou que : o conceito de desenvolvimento sustentável implica limites, não absolutos, mas limites impostos pelo atual estado da tecnologia e da organização social, em recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas.15 Se for admitido que o direito das gerações futuras ou da futura humanidade foi reconhecido como tal pela lei internacional costumeira, mediante tratados internacionais assim como mediante instrumentos de soft law, dois pontos emergem como significativos. O primeiro refere-se ao conteúdo desse direito e o segundo, a sua execução. O enfoque inicial do direito das gerações futuras levou à conclusão de que este direito buscou proteger as opções que temos atualmente e procurou transmiti-las às gerações futuras. Entretanto, essa abordagem não é necessariamente satisfatória porque coloca excessiva ênfase nos deveres da geração presente. Não considera o fato de que a própria natureza do conceito exige que seja aplicado através dos séculos. Como pode a 11 UNGA Res 43/53, 6. 12. 1988, UN Doc. A/Res/43/53. 12 Ultimo parágrafo do preâmbulo, Rio de Janeiro, 5.6. 1992, (1992) 31 ILM 818. 13 Rio de Janeiro, 14. 6. 1992, (1992) 31 ILM 874. 14 Our Common Future (1987), p. 43. 15 Ibid., p. 8. mesma quantidade de espaço, de regiões naturais, de água limpa, de animais selvagens ser garantida para infinitas gerações com número cada vez maior de indivíduos? Deve o mundo ser transformado em um museu ocupado sempre com maior número de monumentos, de artefatos e de locais históricos? Mesmo se a humanidade atual pudesse aceitar essa abordagem, não poderia ser aceitável para as gerações futuras. Como podemos saber as preferências das gerações futuras daqui a, por exemplo, cinqüenta ou cem anos? Uma relação mais concreta pode ser estabelecida com base no conceito de desenvolvimento sustentável, conforme aparece no relatório do WCED.16 Nesse relatório, desenvolvimento está ligado à obtenção de direitos econômicos, sociais e culturais. O desenvolvimento sustentável procura assegurar que tais direitos sejam obtidos no futuro, o que significa que as condições para sua obtenção também necessitam ser mantidas. Estas condições são a disponibilidade de recursos naturais adequados. O direito das gerações futuras pode conseqüentemente ser definido nos termos dos direitos aos recursos naturais necessários para garantir, por um período indeterminado, direitos econômicos, sociais e culturais básicos. Entretanto, tal enfoque é totalmente antropocêntrico. Certamente, o conceito dos direitos das gerações futuras ou da futura humanidade se refere somente aos seres humanos. Não obstante, os recursos naturais, que são necessários para assegurar a apreciação de direitos econômicos, sociais e culturais, incluem não somente recursos que são essenciais à sobrevivência da humanidade, tal como a água e o ar; recursos que servem para enriquecer a humanidade, como minerais, mas também ecossistemas e processos essenciais à vida assim como à diversidade biológica.17 A apreciação de direitos culturais inclui necessariamente a conservação de elementos básicos de nossa civilização. Estes elementos não são somente sintéticos, mas abrangem também a flora e fauna selvagem, tal como baleias, leões e serpentes, paisagens e locais naturais. É necessária uma interpretação mais ampla dos direitos humanos para refletir os interesses mais diversificados das gerações futuras. 16 Ibid., p. 8-9 e 43-66. 17 O rascunho da Declaração sobre os Princípios dos Direitos Humanos e o Meio Ambiente, incluídos no relatório final da Sra Fatma Zohra Ksentini, relatora especial da subcomissão de Prevenção contra a Discriminação e da Proteção de Minorias (06. 7. 1994)) declara em seu Artigo 6: “Todas pessoas têm o direito à proteção e preservação do ar, solo, água, geleiras, flora e fauna e aos processos essenciais e áreas necessárias para manutenção da diversidade biológica e de ecossistemas”. (UN, E/CN.4/Sub.2/1994/9, Annex I, p. 75). Assim, até onde se se refere ao direito das gerações futuras, aceita-se que ele inclua direitos econômicos, sociais e culturais e a conservação das condições, abrangendo a conservação da diversidade biológica, necessária para assegurar sua realização. Com relação à segunda questão, a implementação dos direitos das gerações futuras, os instrumentos internacionais fornecem pouca orientação. Contudo, alguns indicativos podem ser encontrados na prática de sistemas legais domésticos, particularmente em uma recente decisão da Suprema Corte da República das Filipinas e em um recente decreto adotado na França. O caso da Minors Oposa versus a Secretaria do Departamento de Meio Ambiente e de Recursos Naturais18, na Suprema Corte da República das Filipinas, ilustra como os direitos das gerações futuras podem ser protegidos. Nesse caso, trinta e cinco menores, representados por seus pais e por uma associação, a Rede Ecológica Filipina (Philippine Ecological Network), encaminharam uma intimação, exigindo que o governo interrompesse as licenças de exploração de madeira existentes e restringisse a emissão de novas licenças. Sua petição foi baseada na alegação de que os desflorestamentos resultavam em danos ambientais. O julgamento em primeira instância desqualificou o pedido, mas a Suprema Corte reverteu a decisão. Decidiu, entre outras coisas, que os requerentes tinham o direito de representar seus filhos ainda não nascidos e que tinham defendido adequadamente o direito deles a um meio ambiente equilibrado e saudável. Sobre o locus standi dos requerentes, a Corte determinou o seguinte: Os requerentes menores afirmam que representam sua geração assim como as gerações ainda não nascidas. Não encontramos nenhuma dificuldade em julgar que eles podem para si mesmos, para outros de sua geração e para as gerações futuras, impetrar um processo judicial. Sua capacidade para ingressar em juízo no interesse das sucessivas gerações pode ser fundamentada no conceito de responsabilidade intergeracional, assim como no direito a um meio ambiente sadio e equilibrado. A natureza significa o mundo em sua totalidade como foi criado. Tal ritmo e harmonia incluem indispensavelmente, inter alia, a cuidadosa disposição, utilização, gestão, renovação e a conservação das florestas do país, dos minerais, da 18 (1994) 33 ILM 168. terra, das águas, das indústrias de pesca, da vida selvagem, das áreas costeiras e de outros recursos naturais a fim de que sua exploração, desenvolvimento e utilização sejam eqüitativamente acessíveis à geração presente, assim como às futuras gerações.19 Desnecessário dizer que cada geração tem como responsabilidade preservar para a geração futura o ritmo e a harmonia para um completo desfrute de uma ecologia equilibrada e saudável. De forma um pouco diferente, a assertiva dos menores terem direito a um ambiente em boas condições constitui ao mesmo tempo a concretização de sua obrigação em assegurar a proteção daquele direito para as gerações vindouras.20 Esta sentença é naturalmente fundamentada nos textos constitucionais e legislativos que são aplicáveis nas Filipinas.21 A petição inicial foi considerada válida e o direito de agir dos requerentes foi aceito pelo Tribunal, assim como o direito de defesa foi garantido aos beneficiários das licenças de exploração de madeira. A Corte Suprema não deu uma definição para o conceito gerações futuras. Entretanto, sua decisão foi claramente fundamentada neste conceito. Certamente a Corte poderia declarar que os menores, como os requerentes, poderiam somente reivindicar seus próprios interesses futuros. Ao contrário, a Corte preferiu adotar um enfoque mais abrangente e reconhecer os direitos dos menores em cumprir suas obrigações para as gerações ainda por virem. Na França, o direito das gerações futuras foi reconhecido de forma institucional. Em janeiro de 1993, um Conselho de Gerações Futuras foi estabelecido por decreto. 22 Esse órgão independente pode ser consultado sempre que for identificado um problema com impacto potencial sobre os direitos das gerações futuras. Está também autorizado, por sua própria iniciativa, a oferecer aconselhamento em tais questões. Esta iniciativa 19 Title (Environmental Natural Resources), Book IV of the Administrative Code of 1987, B.D. No 292". 20 WEISS, E. Op cit, n. 18, p. 185. 21 A seção 16, do artigo II da Constituição de 1987, indica explicitamente que "O Estado deverá proteger e garantir o direito do povo a uma ecologia equilibrada e saudável de acordo com o ritmo e harmonia da natureza". O ato de Reorganização do Departamento de Ambiente e Recursos Naturais, promulgado em 10. 6. 1987, OE nº 192, autorizou esse Departamento, em conformidade com a Constituição, a garantir uma eqüitativa divisão dos benefícios advindos dos recursos naturais "para o bem-estar das presentes e gerações futuras de filipinos”. Na seção 3, uma Declaração de Política do mesmo instrumento também menciona o uso eqüitativo dos recursos naturais do país, "não somente para a geração presente, mas também para as gerações futuras". Essa Declaração de Política está substancialmente reafirmada no Título XIV, Livro IV do Código Administrativo de 1987, Seção 1, EO No 292 (Ibid., p. 187 e 189). 22 Decreto n. 93-298, de 8. 3. 1993, Journal Officiel de La République Française. francesa oferece importante exemplo de como pode ser tratado um dos principais problemas que surgem com a implementação dos direitos das gerações futuras, ou seja, como a questão da representação pode ser solucionada. Resumindo, os direitos das gerações futuras, baseados na obtenção de direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo a conservação da diversidade biológica, podem, ao menos em princípio, ser implementados por Cortes e por órgãos nacionais independentes. Entretanto, a história contemporânea ilustra a fragilidade de muitos Estados, alguns dos quais são incapazes de impor sua autoridade sobre a população. Assegurar a proteção dos direitos das futuras gerações supõe uma forma de continuidade que somente pode ser alcançada com a participação de instituições internacionais. Além disso, experiências com Estados totalitários demonstram também que o melhor estímulo para alcançar a proteção dos direitos humanos é a existência de instituições internacionais independentes, que podem avaliar sua efetiva implementação. Assegurar os direitos das gerações futuras é uma tarefa muito mais difícil do que assegurar o respeito pelos direitos humanos atuais. Isto deve ser outorgado a uma autoridade internacional, talvez a um Alto Comissariado ou a uma Comissão Mundial, como a Comissão Brundtland. 3. O princípio da precaução Como indicam os diversos autores, várias formulações diferentes foram usadas para definir ou descrever o princípio da precaução. Alguns consideraram que o princípio 15 da Declaração do Rio reflete o enfoque mais comumente aceito: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. O princípio da precaução pode ser considerado como a forma mais desenvolvida da regra geral, impondo uma obrigação para impedir danos ao meio ambiente. Ele constitui o ponto de partida para uma grande organização do direito ambiental e, em particular, para o direito ambiental internacional. Com exceção de uma série de tratados que tratam da compensação para os danos ambientais, a grande maioria das convenções internacionais é baseada no princípio de que a degradação ambiental deve ser impedida evitando a poluição ou danos - em vez de se esperar que ela ocorra e, então, tentar neutralizar seus efeitos negativos. A diferença entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução está na avaliação do risco que ameaça o meio ambiente. A precaução é considerada quando o risco é elevado - tão elevado que a total certeza científica não deve ser exigida antes de se adotar uma ação corretiva, devendo ser aplicado naqueles casos em que qualquer atividade possa resultar em danos duradouros ou irreversíveis ao meio ambiente, assim como naqueles casos em que o benefício derivado da atividade é completamente desproporcional ao impacto negativo que essa atividade pode causar no meio ambiente. Nestes casos, é necessário um cuidado especial a fim de preservar o ambiente para o futuro. Este é naturalmente o ponto comum entre os direitos das gerações futuras e o princípio da precaução. Em determinadas situações, a aplicação do princípio da precaução é uma condição fundamental para proteger os direitos das gerações futuras. Uma das principais características deste princípio é que, naqueles casos onde há uma incerteza científica, a obrigação real de tomar decisões passa dos cientistas para os políticos, para aqueles cuja tarefa é governar. Entretanto, não há uma identidade total entre os dois conceitos. O princípio da precaução foi adotado somente no campo da proteção ambiental. Outras áreas importantes que são abrangidas pelos direitos das gerações futuras - tais como a ciência, a arte e a preservação de monumentos históricos - não foram beneficiadas por qualquer obrigação internacional que imponha a aplicação do princípio da precaução. A Convenção da UNESCO para a Proteção da Herança Cultural e Natural do Mundo, de 23 de novembro de 1972, proclama o dever de cada Estado de assegurar “...a identificação, proteção, conservação, apresentação e transmissão às gerações futuras da herança cultural e natural referidas nos artigos 1 e 2 e situadas em seu território.” 24 Entretanto, o artigo 5 (c) dessa Convenção menciona somente a necessidade de estudos técnicos e científicos, de pesquisa e desenvolvimento dos meios pelos quais o Estado poderá neutralizar os perigos que ameaçam sua herança cultural e natural. Não há 24 Art. 4 (1972) 11 ILM 1358. nenhuma menção quanto à necessidade de se tomarem medidas em uma situação de incerteza científica. Neste sentido, o regime legal para a proteção do meio ambiente pode ser considerado como sendo mais avançado que o regime para a proteção da herança cultural, preservação que pode ser parte crucial dos direitos das gerações futuras. Um dos alvos no desenvolvimento do Direito Internacional deve ser a expansão dos campos de aplicação do princípio da precaução ao campo de proteção da herança cultural. Isto seria no sentido do interesse das gerações futuras ou, posto de maneira mais simples, da humanidade. Desta forma, seria um avanço primordial a uma interpretação mais abrangente dos conceitos de direitos humanos, para incluir direitos culturais assim como o direito à diversidade biológica, apoiada por estruturas institucionais para garantir sua aplicação. Referências bibliográficas VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. Paris: Gallimard, 1945. SAINT-‐ EXUPÉRY, A. de. Vol de nuit. Paris: Gallimard,1948. WEISS, E. Brown. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and Intergenerational Equity. New York: Transnational, 1989. Capítulo 2 O Princípio da Precaução Prof. Dr. Rüdiger Wolfrum* 1. Introdução Em novembro de 1990, o secretário-geral das Nações Unidas, em seu relatório sobre direito do mar, enfatizou a importância do princípio da precaução nas futuras abordagens para proteção do meio ambiente marinho e a conservação de recursos. Relatou também que o princípio foi endossado praticamente em todos os recentes fóruns internacionais.1 De fato, o princípio da precaução tornou-se uma parte intrínseca da política ambiental internacional, especialmente com sua adoção, em 1992, como princípio 15 da Declaração do Rio: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Apesar da redação cautelosa, o princípio foi incluído em muitos tratados internacionais ambientais, seja explícita ou implicitamente, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, em 19922; a Convenção de Helsinque sobre Proteção da Área do Mar Báltico, em 19923; e a Convenção sobre a Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico.4 Durante muitos anos, o princípio da precaução pertenceu aos princípios do direito ambiental nacional; pois sua origem está no conceito alemão do Vorsorgeprinzip, como mencionado no artigo 5 da lei federal sobre o controle de * Professor Wolfrum leciona na Universidade de Heidelberg e pesquisador do Instituto Max Planck de Direito Público Comparado e Direito Internacional. Apresentação realizada no Conselho Europeu. Conferência sobre direito ambiental: “Novas tecnologias e direito do ambiente marinho”, Lisboa, 18 e 19 de setembro de 1998. 1 UN Doc. A/45/721, 19 de novembro de 1990, p. 20, parágrafo 60. 2 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 42. 3 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 28. 4 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992:71. emissões.5 Antes, havia apenas referências explícitas a certos instrumentos internacionais, já que o conteúdo do princípio estava consagrado em vários documentos de política internacional.6 Por exemplo, a Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano reconheceu a necessidade de salvaguardar os recursos naturais, por meio de um planejamento cauteloso e gerenciamento, para o benefício das futuras gerações.7 A Carta Mundial para a Natureza declarou que as atividades “que podem trazer um risco significativo à natureza” não deveriam continuar quando os “efeitos adversos potenciais não são totalmente compreendidos”.8 A primeira referência internacional explícita ao princípio da precaução está contida na Declaração Ministerial da Segunda Conferência Internacional sobre a Proteção do Mar do Norte, de novembro de 1984:9 (...) a fim de proteger o Mar do Norte de possíveis efeitos danosos da maioria das substâncias perigosas, uma abordagem de precaução é necessária, a qual pode exigir ação para controlar os insumos de tais substâncias mesmo antes que um nexo causal tenha sido estabelecido por evidência científica clara e absoluta.10 O princípio tem sido aplicado particularmente com respeito à poluição marítima11 e, recentemente, ele se expandiu à pesca. Levando em consideração que o princípio da 5 Gerd Winter (ed.), German Environmental Law, Basic Texts and Introduction, 1994, p. 143-153. Warwick Gullett, “Environmental Protection and the ‘Precautionary Principle’, A Response to Scientific Uncertainty in Environmental Management, Environmental and Planning Law Journal, 1997, 52 (55). 7 Princípio 2. 8 Documento da ONU A/RES 37/7, 28 de Outubro de l982. 9 Declaração ministerial pedindo redução da poluição, 25 de novembro de 1987, International Legal Materials (ILM) 27, 1988, 835 (838). 10 A colocação foi reiterada na Declaração Final da Terceira Conferência Internacional sobre Proteção do Mar do Norte, 7-8 de março de 1990, Yearbook of International Environmental Law, 1990, n.1, p. 658 a 661. Lê-se: “Os participantes ...... continuarão a aplicar o princípio da precaução, isso é, agir para evitar impactos de danos potenciais de substâncias que são persistentes, tóxicas e passíveis de bioacumulação mesmo onde não haja prova científica para provar um vínculo causal entre emissões e efeito...”. Na realidade, a Declaração adotada na Primeira Conferência Internacional sobre Proteção do Mar do Norte, de 1984, referiu-se ao princípio da precaução uma vez que o texto alemão da Declaração falou de Vorsorgemassnahmen, uma noção que foi traduzida por “medidas preventivas oportunas”; veja David Freestone e Elen Hey, “Origins and Development of Precautionary Principle” in D. Freestone e E. Hey (eds.), The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996, p. 3 a 5. 11 A parte da Declarção de várias conferências internacionais sobre o Mar do Norte. Veja as Recomendações da Comissão de Partes 89/1 e 89/2, de 22 de junho de 1989, e a Decisão 89/1, de 14 de junho de 1989, da Comissão de Oslo. Referências adicionais ao princípio da precaução foram inseridas na Declaração 15/27, de 25 de maio de 1989, do Conselho Administrativo do PNUMA. 6 precaução se desenvolveu a partir do direito ambiental nacional,12 parece ser apropriado identificar seu significado e suas implicações no direito nacional quando o conteúdo do princípio precaução é interpretado a partir do direito internacional ambiental. Alguns dos críticos13 deste princípio, em particular aqueles que defendem que a implementação do princípio da precaução será prejudicial aos futuros desenvolvimentos econômicos e tecnológicos, poderão descobrir, a partir da avaliação da experiência nacional com a aplicação do princípio da precaução, que nenhum dos efeitos negativos esperados ocorreram de fato. O princípio da precaução possui várias características substantivas e procedimentais. Estas devem ser consideradas como mecanismos para implementar as primeiras. O princípio da precaução não requer medidas reguladoras particulares; seu interesse está em quando as medidas conservadoras devem ser tomadas. No entanto, ao se fazer assim, muda-se significativamente a abordagem para as atividades com um impacto potencialmente negativo sobre o ambiente. Em vez de esperar até que haja prova de um impacto negativo sobre o meio ambiente, deve-se agir antes que tal impacto se materialize.14 Isso requer uma reconsideração de como as decisões políticas relativas ao meio ambiente são tomadas em caso de incerteza científica. 2. O Princípio da Precaução requer medidas preventivas em casos de incerteza científica. A segunda sentença do princípio 15 da Declaração do Rio tenta especificar um significado substantivo do princípio da precaução, embora combine aspectos substantivos e procedimentais, e evoque a abordagem precaucionária em vez do princípio da precaução. Do texto, é evidente que a implementação do princípio da precaução significa tomar medidas antes que os danos ambientais se materializem. Com respeito a isso, a introdução do princípio da precaução indica uma mudança substantiva da política no direito ambiental internacional, uma vez que este, até agora, concentrou-se na obrigação 12 Veja, com referência a J. Cameron e J. Abouchar, “The Status of the Precautionary Principle in International Law” in D. Freestone e E. Hey, (eds). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996, p. 29-38 e ss. 13 Veja, por exemplo, Frank B. Cross, “Paradoxal Perils of the Precautionary Principle”, Washington and Lee Law Review, 1996, n.53, p. 851 e ss. 14 Freestone e Hey , op. cit., p. 13. que os Estados têm de não causarem danos ambientais significativos, ou propiciar a restauração se tais danos ocorrerem. Observe-se então, que o texto do Princípio 15 contém duas premissas: o dano tem de ser irreversível e as medidas a serem tomadas devem ser economicamente viáveis. Além disso, a obrigação de os Estados aplicarem a abordagem precaucionária é apenas “de acordo com suas capacidades”. Isso quer dizer que as obrigações dispostas são de uma natureza relativa, uma vez que elas dependem das capacidades econômicas e financeiras do Estado em questão. Essas qualificações não são necessariamente partes da definição do Princípio da Precaução contido em outros instrumentos internacionais.15 Na medida em que a substância do princípio da precaução está em questão, o artigo 2, do parágrafo 2 (a) da Convenção para a Proteção do Ambiente Marítimo do Nordeste Atlântico é mais avançado. De acordo com ele: As partes contratantes aplicarão: (a) o princípio da precaução, em virtude de quais medidas preventivas devem ser tomadas quando há bases razoáveis para considerar que substâncias ou energias introduzidas, direta ou indiretamente, no ambiente marinho, possam trazer perigos à saúde humana, prejudicar os recursos vivos e ecossistemas marinhos, causar danos ou interferir em outros usos legítimos do mar, mesmo quando não haja prova conclusiva de relação causal entre os insumos e os efeitos Aqui, novamente, o texto normativo deixa muito claro que a implementação do princípio resultará em tomar medidas preventivas ou em levar a cabo atividades que possam ser consideradas perigosas. A redação desta medida indica que a tomada das medidas preventivas é obrigatória, enquanto o Princípio 15 fala somente que a abordagem precaucionária deve ser amplamente aplicada. Além disso, no artigo 2, parágrafo 2 da Convenção para Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, as medidas preventivas devem ser tomadas se houver possibilidades de dano aos direitos ou interesses do homem, ou ao ambiente enquanto tal (ecossistema), resultado de um 15 Entretanto Alexandre Kiss, “Os direitos e os interesses das futuras gerações e o princípio da precaução”, neste livro, considera que a formulação do Princípio 15 reflete o princípio da precaução na sua abordagem mais amplamente aceita. impacto ao ambiente marinho, considerando que de acordo com o Princípio 15, o dano tem que ser irreversível. O Artigo 2, parágrafo 5 (a) da Convenção sobre a Proteção e Uso de Cursos d’Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, 1992, fornece uma outra definição do princípio de precaução. De acordo com ele, as partes deverão ser guiadas, entre outras coisas, pelo princípio da precaução: (...) em virtude do qual, a ação de evitar o potencial impacto transfronteiriço resultante da liberação de substâncias perigosas não deve ser postergada sob a alegação de que a pesquisa científica não provou totalmente um nexo causal entre essas substâncias, de um lado, e o potencial impacto transfronteiriço, de outro (...) Todas as três definições mencionadas exigem que certas atividades sejam controladas, ou não sejam realizadas, ainda que não exista evidência científica nítida de que tais atividades resultariam em danos ao meio ambiente. Em relação a isso, o princípio da precaução assemelha-se ao princípio da prevenção, o qual é bem estabelecido no direito internacional ambiental. No entanto, os dois princípios diferem significativamente, e isso constitui a natureza inovadora do princípio da precaução.16 O princípio da precaução impõe uma obrigação para os Estados, para que estes previnam danos ambientais conhecidos ou cientificamente previsíveis fora de seus territórios.17 Esta obrigação está contida em um grande número de tratados. Em comparação a isso, o princípio da precaução reflete o reconhecimento de que as atividades humanas tendo um impacto sobre o ambiente, muitas vezes têm conseqüências negativas que não podem ser completamente previsíveis ou verificáveis antes da ação. Em sua aplicação, o princípio da precaução requer que uma ação não deva ser executada se ela coloca um risco desconhecido de dano. Procedimentalmente, o princípio da precaução impõe, sobre aqueles que desejam empreender uma ação, o ônus da prova de que ela não prejudicará o ambiente. 16 Diferente de D.Freestone e Z. Makuch, “The New International Environmental Law of Fisheries: The 1995 United Nations Straddling Stocks Agreement”, Yearbook of International Environmental Law, 1996, v. 7 p. 3-13. 17 Por exemplo, artigo 194 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (UNCLOS). Também a Resolução da Assembléia Geral 44/225, de 22 de dezembro de 1989, sobre pesca de arrasto em larga escala em mar aberto, e seu impacto sobre os recursos marinhos vivos, pode ser considerada uma aplicação do princípio da precaução.18 A Resolução solicita a todos aqueles envolvidos na pesca de arrasto em larga escala em mar aberto a cooperarem para o aumento da coleta e compartilhamento de dados científicos estatisticamente relevantes. Ela recomenda medidas para eliminar a prática de atos sem fundamentos científicos. A Resolução reflete o princípio da precaução, uma vez que ela restringe uma atividade ainda que sem dados científicos concretos sobre o impacto ambiental da atividade em questão. Além disso, ela inverte o ônus da prova, com respeito ao impacto desta atividade sobre outras que procuram dar continuidade à pesca. Finalmente, ela requer a intensificação das atividades de pesquisa a serem empreendidas e a respectiva cooperação entre os Estados interessados. Este último aspecto representa uma conseqüência lógica que flui do princípio da precaução. Da mesma forma, a Convenção sobre Conservação e Gestão dos Recursos de Bering, 1994,19 é baseada no princípio da precaução. Esta Convenção determina que os Estados-parte se encontrarão anualmente para decidir níveis de pesca permissíveis e estabelecer quotas. No entanto, a pesca não será permitida, a menos que a biomassa de pesca na bacia das ilhas Aleutas seja determinada para exceder 1,67 milhões de toneladas.* Os Estados Unidos e a Federação Russa parecem ter concordado que, se este limite não for alcançado, eles também suspenderão a pesca em suas próprias zonas econômicas exclusivas.20 A interpretação do princípio da precaução, como uma exigência de ação antes que a possibilidade de danos ambientais possa ser cientificamente estabelecida, levanta pelo menos duas questões, a saber, qual situação ou conjunto de fatos desencadeia o uso do princípio da precaução, e se a restrição de uma atividade, com base no princípio da precaução, garante que haverá posterior revisão de tal decisão. 18 A. Tahindro. “Conservation and Management of Transboundary Fish Stocks; Comments in the Light of the Adoption of the 1995 Agreement for the Conservation and Management of Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks”, ODILA, 1997, n. 28, p. 14; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 17. 19 Texto no Yearbook of International Environmental Law, 1994, 5, p. 821; para análise veja W.V. Dunlap, International Journal of Marine & Coastal Law, 1995, n. 10, p. 114; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p.18. * O autor utiliza a expressão metric tons. [nota dos organizadores] 20 D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 18 com as respectivas referências. Qualquer atividade humana significante pode ter impacto sobre o meio ambiente. Contudo, deve haver algum mecanismo desencadeador para restringir ou até mesmo proibir uma dada atividade com base no princípio da precaução, caso contrário ele sufocaria qualquer nova atividade. Sugeriu-se que o princípio da precaução deveria ser aplicado apenas quando houver alguma prova de que a atividade considerada ameace causar danos ao meio ambiente e se tal dano for irreversível. Outros sustentaram que quanto mais sério for o dano, é provável que mais cedo o princípio da precaução tenha que ser invocado. O princípio 15 segue a primeira abordagem, e a Declaração sobre o Mar do Norte segue a última, enquanto o artigo 2 da Convenção do Nordeste Atlântico aplica mais amplamente o princípio da precaução. No entanto, para as três interpretações mencionadas deve haver pelo menos uma descoberta prima facie que uma dada atividade possa resultar em dano considerável ao ambiente marinho. Apesar disso, ainda permanece alguma incerteza de quando o princípio da precaução deve ser aplicado, de forma que aquele que visa empreender uma determinada atividade tem que provar seu impacto, ao contrário da visão na qual aquele que almeja restringir ou proibir aquela atividade tem que provar que ela resultará em dano ambiental. Se uma atividade foi proibida ou restrita com base no princípio da precaução, a incerteza sob a qual esta decisão foi tomada deve ser reanalisada em intervalos regulares. As novas descobertas, assim como os novos desenvolvimentos, devem ser levados em consideração. O Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais* e de Populações de Peixes Altamente Migratórios (artigo 6)21 fornece um procedimento que responde às duas perguntas levantadas. O Artigo 6 desta Convenção exige que os Estados-parte apliquem a abordagem precaucionária para conservação, gestão e exploração das populações de peixe tranzonais e de peixes altamente migratórios, com o objetivo de preservar o ambiente marinho e proteger os recursos marinhos vivos. Assim como em outros instrumentos internacionais já mencionados, o Artigo 6 da Convenção enfatiza que a ausência de informação científica * Trata-se de cardumes de peixes que se deslocam entre as zonas de exploração exclusiva dos Estados e as águas internacionais [nota dos organizadores]. 21 Uma avaliação das respectivas regras foi dada por Tahindro (nota 19), 1 (p. 12 e ss.); D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 26 et ss. adequada não deverá ser usada como razão para adiar ou deixar de tomar medidas de conservação e gerenciamento. Contudo, a Convenção não se satisfaz apenas com o estabelecimento deste princípio abstrato. O Artigo 6 da convenção exige que os Estadosparte tomem medidas específicas para implementar a abordagem precaucionária. Os Estados estão obrigados a melhorar o processo decisório sobre a pesca, especialmente compartilhando as melhores informações científicas disponíveis e implementando técnicas para lidar com os riscos e incertezas. Além disso, os Estados-partes usarão os guias de boa conduta para aplicação dos pontos de referência*, estabelecidos dentro de uma visão precaucionária para os padrões de conservação e gestão destes cardumes de peixes tranzonais e altamente migratórios, assim como a determinação de pontos de referência de determinados cardumes. Essas diretrizes estão especificadas no Anexo II do Acordo e incluem uma descrição detalhada das ações preventivas e das modalidades de aplicação de vários pontos de referência dentro do contexto das estratégias precaucionárias de gestão de pesca. O Artigo 6, parágrafo 3 (d) da Convenção, em conjunto com os guias de boas condutas, exige o estabelecimento de pontos de referência sobre a conservação ou limitação e gestão ou escolha dos cardumes. Tais pontos de referência precaucionários são específicos para cada população de peixes. Exige-se que os Estados-parte tomem medidas para evitar ultrapassar os pontos de referência para determinados cardumes que são objeto da Convenção e monitorem regularmente as populações em estágio crítico, objeto ou não do Tratado, associadas ou dependentes das espécies de que a Convenção cuida, a fim de rever o status desses cardumes ou espécies, assim como a eficiência das medidas de conservação e gestão adotadas. Enquanto os pontos de referência sobre limites podem ser abordados, eles não devem ser excedidos. Se forem excedidos, os Estados devem tomar ação imediata, de acordo com as diretrizes. Os Estados-parte também são instruídos a adotar medidas de conservação e de gestão baseadas na abordagem precaucionária para atividades de pesca novas ou exploratórias até que haja dados científicos suficientes para avaliar o impacto da pesca na sustentabilidade a longo prazo dos estoques. Finalmente, onde um fenômeno natural ou atividade de pesca tem um impacto adverso significativo sobre o status do cardume * Um ponto de referência de precaução é um valor estimado, calculado por meio de um procedimento científico acordado, correspondente ao estado do recurso e da pesca e que pode ser usado como guia para o ordenamento da pesca. [nota dos organizadores]. relacionado, solicita-se aos Estados-parte a adoção de medidas de conservação e gestão temporárias, em base emergencial, com o objetivo de assegurar que as atividades pesqueiras não intensifiquem tal efeito adverso. Tais medidas devem baseadas na melhor evidência disponível. 3. O Princípio da Precaução e a Obrigação de Usar a Melhor Tecnologia Disponível Como pode ser notado a partir da aplicação do princípio da precaução no direito nacional, exige-se o uso da melhor tecnologia disponível e das melhores práticas disponíveis. Assim, o princípio da precaução constitui um incentivo para o desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, sob o Princípio da Precaução há a obrigação de melhorar a tecnologia da pesca, para reduzir desperdícios ou reduzir as substâncias prejudiciais ao meio ambiente marinho durante a rota usual de um navio. Embora os acordos internacionais exijam que os Estados usem a melhor tecnologia disponível, a conexão com o princípio da precaução não está sempre evidente. Este conceito tem sido utilizado nos tratados sobre a poluição marítima e no regime de poluição aérea transfronteiriça.22 Exemplos pertinentes de aplicação do princípio da precaução, para o primeiro caso, que destaca a obrigação de usar a melhor tecnologia disponível, são a Convenção sobre a Proteção do Meio Ambiente Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992,23 e a Convenção para a Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, do mesmo ano.24 De acordo com o Apêndice 1 deste último, o conceito é definido como: “o último estágio do desenvolvimento (estado da arte) de processos, de recursos ou de métodos de operação que indicam adequação de uma medida particular para limitar depósitos, emissões e lixo. Ao determinar se um conjunto de processos, recursos e métodos de operação constituem a melhor tecnologia disponível em casos gerais ou individuais, será dada consideração especial para: 22 Artigo 6 da Convenção sobre Poluição Atmosférica de Longo Alcance, 1979; Artigo 2 parágrafo 2, parágrafo 3 do Protocolo de Nox, 1988: artigo 2, parágrafo 3 do Protocolo de VOC, 1991 e, ainda que de certa forma em redação diferente, no artigo 2, parágrafo 4 do Protocolo do Ácido Sulfúrico, 1994. Estes não contêm a definição da noção de melhor tecnologia disponível, mas se referem aos anexos dispondo diretrizes para concretização da noção. 23 Nota 3. 24 Nota 4. a) processos comparáveis, recursos ou métodos de operação que foram recentemente bem sucedidos; b) avanços tecnológicos e mudanças no conhecimento e entendimento científico; c) a viabilidade econômica de tais técnicas; d) limites de tempo para instalação tanto de fábricas novas como daquelas existentes; e) a natureza e volume das descargas e emissões em questão” (tradução não oficial). A noção da melhor tecnologia disponível possui diferentes facetas. Ela limita a margem de liberdade dos Estados-parte, com respeito à implementação das suas obrigações, sem aboli-las. Particularmente, a referência da viabilidade econômica contida na Convenção do Nordeste Atlântico, de 1992, e a Convenção sobre Proteção do Ambiente Marinho do Mar Báltico, de 1992, permite que os Estados-parte equilibrem suas obrigações ambientais com as prerrogativas econômicas. Se a comunidade de Estados desejar melhorar a tecnologia utilizada, existe a possibilidade de transferir tecnologias apropriadas de conservação ou prevenção a Estados que não teriam acesso a elas por questões econômicas. A noção da melhor tecnologia disponível requer também que se tomem ações para a proteção ambiental, com o uso dinâmico da tecnologia protetora moderna. No entanto, o padrão de proteção é indicado pelo desenvolvimento técnico, ao invés das necessidades ambientais, que podem ser melhor atingidos pela da proibição de certas atividades cujos efeitos negativos, do ponto de vista do meio ambiente, não podem ser tecnicamente mitigados.25 Da mesma forma, compreendido no âmbito da obrigação do uso da melhor prática ou tecnologia disponível, é a obrigação dos Estados de substituirem atividades ou substâncias prejudiciais por atividades ou substâncias menos poluentes.26 De acordo com 25 Um Crítico a esse respeito é Jonas Ebbesson, “Compatibility of International and National, Environmental Law, 1996”, p. 126. 26 Agenda 21, seção 19.44. a Agenda 21, este conceito constitui um dos vários elementos de boa prática ambiental, um conceito mencionado em vários tratados internacionais.27 Ocasionalmente, a tarefa de definir qual é a melhor prática ou tecnologia a ser utilizada não é deixada para cada Estado individualmente, mas para os Estados-parte de um determinado acordo ambiental internacional, instituições particulares estabelecidas sobre um determinado acordo internacional ambiental ou um grupo de especialistas. Nesses casos, o conceito de melhor tecnologia e práticas disponíveis tem a intenção de fornecer adaptações flexíveis de obrigações internacionais ambientais aos novos desenvolvimentos, tecnologias ou padrões. Isso serve para tornar os respectivos regimes mais efetivos. A Convenção para a Proteção do Nordeste Atlântico é um exemplo desta abordagem, na medida em que se prevêem emendas para os anexos técnicos. 4. O Princípio da Precaução e o Princípio do Desenvolvimento Sustentável Há uma ligação nítida entre o princípio da precaução e o princípio de que qualquer desenvolvimento que tem um impacto sobre o meio ambiente deve ser sustentável.28 A noção de desenvolvimento sustentável exige a perseguição de padrões de crescimento que assegurem as necessidades da geração atual e não comprometam a habilidade das gerações futuras em assegurar suas necessidades.29 O princípio da precaução reflete a tendência crescente no direito internacional ambiental, particularmente no tocante ao direito ambiental marítimo, de que o meio ambiente é melhor protegido por meio da prevenção do que pela obrigatoriedade de recuperação ou por meio medidas paliativas. Prevenir o dano ambiental ou a degradação, em si mesmo, é um elemento decisivo em qualquer regime construído sobre o princípio do desenvolvimento sustentável, uma vez que a sustentabilidade pressupõe o afastamento de danos irreversíveis ou degradação. Contudo, o princípio da precaução também desempenha um papel na definição de quando um desenvolvimento é sustentável. Esta visão pode ser encontrada no Projeto das Diretrizes para a Sustentabilidade Ecológica de Usos para Consumo e Não Consumo de 27 Convenção sobre o Nordeste Atlântico de 1992, Apêndice 1; Convenção sobre a Proteção do Ambiente Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992, Anexo II, regulação 2. 28 Veja em particular Kiss, (neste livro), p. 27 e ss., e também sobre o princípio de desenvolvimento sustentável. 29 D. Dzidzornou, “Four Principles in Marine Environment Protection: A Comparative Analysis”, ODILA 29 (1991), p. 91-95; M. Young, “Inter-generational equity, the precautionary principle and ecologically sustainable development”, Nature and Resources, 1995, n. 31, p. 16 e ss. Espécies Selvagens, um projeto proposto durante a Assembléia Geral de 1994 da União Internacional para Conservação da Natureza em Buenos Aires. De acordo com essas diretrizes preliminares, é provável que o uso de espécies selvagens seja sustentável se certas pré-condições forem respeitadas ou certos procedimentos forem adotados, como o princípio da precaução. Ao aplicar o princípio da precaução sobre o conceito de uso sustentável, estas Diretrizes preliminares determinam que “o princípio da precaução requer a abordagem de questões de sustentabilidade do uso com o compromisso de agir de forma que prejudique o menos possível a viabilidade das espécies ou a integridade do ecossistema afetado.” Isso pode resultar em decisões de não usar as espécies ou o ecossistema. A este propósito, o princípio da precaução é especialmente importante quando se estimam os níveis de uso sustentáveis. A utilização dos pontos de referência para a gestão sustentável como estabelecidos na Convenção sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios representa uma forma de implementação desta abordagem. 5. Conclusão O princípio da precaução, ou abordagem da precaução, no direito ambiental internacional, reflete a necessidade de tomar decisões relacionadas ao meio ambiente ante à incerteza científica sobre o potencial dano futuro de uma determinada atividade. Requer, assim, que as respectivas decisões sejam tomadas com cautela e que as contraações ou a interrupção das atividades potencialmente prejudiciais não sejam adiadas somente pela razão de não haver prova científica de que tal dano ambiental possível ou degradação se materialize. Não há um consenso sobre todas as conseqüências da continuidade da implementação deste princípio, exceto sobre a inversão do ônus da prova, ou seja, que a entidade ou Estado interessado em empreender ou continuar uma determinada atividade deve provar que ela não resultará em prejuízos, ao invés de se ter que provar que haverá danos ambientais. Levantou-se a questão se o princípio da precaução tornou-se parte do direito internacional costumeiro.30 No entanto, deve-se dizer que a formulação geral, como 30 P. McIntyre e T. Mosedaele, “The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law”, Journal of Environmental Law, 1997, n. 9, p. 221-235. contida no Princípio 15 da Declaração do Rio, e que parece ser amplamente aceita, recebeu mais refinamentos no direito dos tratados. As implicações práticas desses refinamentos, como na Convenção sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios são mais significativas do que aquelas que fluem do princípio da precaução em sua forma genérica. A incerteza científica é inerente a todas as atividades ambientais, e o direito internacional ambiental tem que levar isso em consideração. Conseqüentemente, os respectivos acordos internacionais tiveram que planejar instrumentos e mecanismos de implementação que tivessem flexibilidade suficiente, a fim de permitir às partes a se adaptarem a mudanças em nossas habilidades científicas de compreensão e tecnológicas.31 Tem-se discutido que o princípio da precaução não é um conceito totalmente novo. O princípio da prevenção já trouxe a necessidade de se prever uma possível ameaça. Quanto maior for o dano possível, mais rigorosas serão as exigências de alerta e de esforços precaucionários. Da mesma forma, ainda existem questionamentos sobre as exigências de se considerar ou se avaliar um risco como significativo. um Estado deve ter cuidado ou diligência convenientes em sua indagação sobre se é provável ou não que o dano seja causado. No entanto, as conseqüências advindas da aplicação do princípio da precaução são significativas. Isso pode ser constatado ao se indicar o impacto que o princípio da precaução tem sobre a conservação e gestão da pesca em alto mar, comparando-se as provisões relevantes da convenção do direito do mar. De acordo com o artigo 116 da UNCLOS, todos os Estados têm o direito de que seus filhos se engajem na pesca em alto mar, desde que respeitem as obrigações dos tratados, incluindo aqueles da Parte VII, seção 2 da UNCLOS, os direitos, assim como os interesses de Estados costeiros.32 Os artigos 117 e 118 impõem a todos os Estados a obrigação individual e conjunta de tomar medidas necessárias para a conservação de recursos marítimos em alto mar e de cooperararem entre si para este objetivo. Mais especificações sobre a regra geral estão contidas no artigo 119 da UNCLOS. De acordo com ele, os Estados têm a obrigação de 31 Edith Brown Weiss, “International Environmental Law: Contemporary Issues and the Emergence of a New World Order”, Georgetown Law Journal, 1992/193, n. 81, p. 675 -688. 32 Veja, por exemplo, artigo 63, parágrafo 2 e 64 a 67 da UNCLOS. “...preservar ou restabelecer as populações das espécies capturadas a níveis que possam produzir o máximo rendimento sustentável...”, estas medidas devem ser baseadas na melhor prova científica disponível e devem acomodar fatores específicos ambientais e econômicos. Um dos fatores a ser levado em consideração é o efeito sobre espécies relacionadas ou dependentes de espécies-alvo, que devem ser conservadas ou recuperadas acima de níveis nos quais a reprodução possa estar seriamente ameaçada. Esse efeito tem uma conotação ambiental, uma vez que essas espécies não são as espécies-alvo e podem até mesmo não ser objeto de pesca.33 Entretanto, as regras, de forma geral,34 somente obrigam os Estados a tomarem medidas, quando fundadas em descobertas científicas, se a pesca resulta ou ameaça resultar em um declínio das populações de peixes abaixo dos níveis máximos35 de produção sustentável. Isso quer dizer, na prática, que os Estados têm apenas que intervir em caso de uma crise e somente se tal crise for bem definida pelas descobertas científicas. A aplicação da abordagem da precaução, por sua vez, exige que os Estados tomem ações antes de tais crises, isso é, onde há uma prova prima facie de que tal crise possa ocorrer. Aqueles em favor de continuar a atividade em questão têm agora que provar cientificamente que tal crise não existe e que a atividade em questão não leva à crise. A implementação do princípio da precaução requer a adoção e estabelecimento de determinados procedimentos que assegurem institucionalmente que as descobertas científicas e os novos desenvolvimentos tecnológicos estejam sendo canalizados para o respectivo processo de tomada de decisão. A Convenção sobre Populações de Peixes Tranzonais oferece tal procedimento. Um outro procedimento, neste âmbito, pode ser encontrado na Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas. Esta mantém, de maneira oportuna, um corpo técnico permanente para suprir informações científicas e tecnológicas.36 Este órgão fornece avaliações científicas sobre as mudanças climáticas e seus efeitos, e o impacto da implementação das medidas da Convenção. Também 33 D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 9. Para uma análise mais detalhada veja, especificamente, Ellen Hey. 35 Tem sido argumentado que o artigo 119 da UNCLOS devido a sua referência a fatores econômicos e ambientais se refere ao resultado sustentável ótimo ao invés do resultado máximo, R. Wolfrum, Internationalisierung Staatsfreier Räume, 1984, p. 662; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 9. 36 Artigo 9. 34 identifica novas tecnologias relevantes, dá assistência para a capacitação para pesquisa científica e avaliação e responde aos questionamentos científicos das Partes. Referências bibliográficas CAMERON, J. e ABOUCHAR, J. “The Status of the Precautionary Principle in International Law” in D. Freestone e E. Hey, (eds). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996. CROSS, Frank B. “Paradoxal Perils of the Precautionary Principle”, Washington and Lee Law Review, 1996, n.53. DUNLAP, W. V. “Bearing Sea” in International Journal of Marine & Coastal Law, 1995, n. 10. DZIDZORNOU, D. “Four Principles in Marine Environment Protection: A Comparative Analysis”, ODILA 1991, n. 29. EBBESSON, Jonas. “Compatibility of International and National, Environmental Law, 1996” FREESTONE, D. e HEY, E. “Origins and Development of Precautionary Principle” in D. Freestone e E. Hey (eds.). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996. FREESTONE, D. e MAKUCH, Z. “The New International Environmental Law of Fisheries: The 1995 United Nations Straddling Stocks Agreement”, Yearbook of International Environmental Law, 1996, v. 7. GULLETT, Warwick. “Environmental Protection and the ‘Precautionary Principle’, A Response to Scientific Uncertainty in Environmental Management, Environmental and Planning Law Journal, 1997, n. 52. KISS, A. “Os direitos e os interesses das futuras gerações e o princípio da precaução” in VARELLA, M. D. e PLATIAU, A. Princípio de precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. MCINTYRE, P. e MOSEDAELE, T. “The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law”, Journal of Environmental Law, 1997, n. 9. TAHINDRO, A. “Conservation and Management of Transboundary Fish Stocks; Comments in the Light of the Adoption of the 1995 Agreement for the Conservation and Management of Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks”, ODILA, 1997, n. 28 WEISS, E. B. “International Environmental Law: Contemporary Issues and the Emergence of a New World Order”, Georgetown Law Journal, 1992/193, n. 81. WINTER, Gerd (ed.). German Environmental Law, Basic Texts and Introduction, 1994 YOUNG, M. “Inter-‐generational equity, the precautionary principle and ecologically sustainable development”, Nature and Resources, 1995, n. 31. Capítulo 3 O princípio da precaução Philippe Sands* Enquanto o princípio da prevenção pode ser encontrado em tratados internacionais ambientais e em outros atos internacionais, pelo menos desde os anos 1930, o princípio da precaução começou a constar nos instrumentos legais internacionais, em meados dos anos 1980. De qualquer forma, o princípio da precaução pode ser encontrado como princípio em certos ordenamentos jurídicos nacionais, mais notadamente no da Alemanha Ocidental.37 O princípio da precaução tem como objetivo orientar o desenvolvimento e a aplicação do direito internacional ambiental, quando existe incerteza científica. Continua gerando desentendimentos quanto a seu significado e efeitos, o que se reflete na opinião dos Estados e na prática forense internacional. Alguns consideram que serve como base para uma ação legal internacional inicial, nas questões ameaçadoras ao meio ambiente, tais como a diminuição da camada de ozônio e as mudanças climáticas.38 Por outro lado, seus oponentes criticam a capacidade que o princípio tem para regulamentar e limitar a atividade humana. O núcleo do princípio, que ainda está evoluindo, é refletido no princípio 15 da Declaração do Rio, que estabelece que: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para * Professor Sands é professor e diretor do University College de Londres, advogado perante a Corte Internacional de Justiça. Retirado do capítulo 6 do livro ainda a ser publicado: Philippe Sands. Principles of International Environmental Law. 2ª edição. Cambridge University Press. 37 K. von Moltke. “The Vorsorgeprinzip in West German Environmental Policy”. In Twelfth Report, Royal Commission on Environmental Pollution, 1988, p. 57. 38 Ver, por exemplo, o apoio dado ao princípio da precaução pelos Estados insulares, pertencentes à Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS) e que estão ao nível do mar, que é colocado da seguinte maneira: “Para nós, o princípio da precaução é muito mais que uma semântica ou um exercício teórico. Ele é um imperativo moral e ecológico. Nós acreditamos que o mundo agora entende nossas preocupações. Nós não podemos nos dar o luxo de esperar por provas conclusivas, conforme alguns sugeriram no passado. A prova é nosso temor, irá matar-nos. Embaixador Robert van Lierop, Representante Permanente de Vanuatu nas Nações Unidas e Co-presidente do Grupo de Trabalho 1 do Comitê de Negociação Internacional para Estruturação da Convenção em Mudanças Climáticas, em declaração na sessão plenária desse mesmo órgão, em 5 de fevereiro de 2001, p. 3. o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.39 O princípio da precaução (ou o enfoque de precaução, como os Estados Unidos e alguns outros preferem) tem sido adotado em muitos tratados internacionais ambientais, desde 1989. Embora sua formulação exata não seja idêntica em cada instrumento, a linguagem do Princípio 15 da Declaração do Rio recebe amplo suporte. O princípio encontra sua origem nos acordos ambientais mais tradicionais que solicitam aos participantes e às instituições por eles criadas agir e adotar decisões baseadas em “pesquisas cientificas” ou métodos40, ou “à luz dos conhecimentos disponíveis no momento”.41 Estes modelos sugerem que a ação deverá ser tomada somente quando existirem evidências científicas da ocorrência de danos ambientais significativos e que, na ausência de tais evidências, nenhuma ação é necessária42. Exemplos desse enfoque tradicional incluem a Convenção de Paris de 1974, que permite às partes adotarem medidas adicionais “se a evidência científica estabelecer que um risco sério pode ser criado por essa substância em questões marítimas e se for necessária uma ação urgente”; isto exige que a parte que deseja adotar as medidas “prove” o motivo para sua ação, baseando-‐se na existência de evidência científica suficiente, o que pode ser difícil de se obter. A Convenção de Intervenção de 1969 foi um dos primeiros tratados internacionais a reconhecer as limitações do enfoque tradicional, no que diz respeito às conseqüências ambientais advindas de uma omissão do agir. Permite que medidas proporcionais sejam tomadas para impedir, mitigar ou eliminar ameaça grave e iminente de poluição de óleo, em regiões litorâneas, considerando “a extensão e a probabilidade de danos iminentes se aquelas medidas não forem tomadas”.43 Em meados dos anos 1980, o desenvolvimento de ações para a diminuição da camada de ozônio refletiu um crescente apoio à ação de precaução. O primeiro tratado que faz referência ao termo é a Convenção de Viena de 39 Ver o plano de implementação do WSSD, parágrafos 22 e 103;]. Convenção Internacional da Pesca de Baleia, Art. V (2): Convenção sobre Focas da Antártica, Anexo parágrafo 7 (b); Patrimônio Mundial, Preâmbulo; Convenção de Londres, Art. XV (2); Convenção de Bonn, 1972, Art. III (2) e XI (3) (ação com base na “evidência confiável, incluindo a melhor evidência científica disponível”). 41 Convenção sobre Radiação de 1960, artigo 3 (1) 42 Art. 4 (4) 43 Art. I e V (3) (a) 40 1985, que demonstrou o reconhecimento das partes às “medidas de precaução” tomadas em nível nacional e internacional.8 Em 1987, os participantes do Protocolo de Montreal mencionaram “as medidas de precaução” para controlar a emissão de determinados CFCs que tinham sido aceitos em níveis nacionais e regionais (Comunidade Européia) e declararam sua determinação em “proteger a camada de ozônio, tomando medidas de precaução para controlar eqüitativamente todas as emissões globais de substâncias que exaurem a mesma”.9 O enfoque da precaução foi baseado em medidas para proteger outros ambientes, especialmente o ambiente marinho. O preâmbulo da Declaração Ministerial da Conferência Internacional para a Proteção do Mar do Norte (1984) refletiu a conscientização de que os Estados “não devem esperar por provas de efeitos prejudiciais antes de entrarem em ação”, uma vez que os danos ao ambiente marinho podem ser irreversíveis ou apenas remediáveis, após longos períodos de tempo, e as medidas corretivas têm alto custo.10 Isto introduz a idéia de que a ação de precaução pode ser justificada por questões econômicas. A Declaração Ministerial da Segunda Conferência do Mar do Norte (1987) aceitou que “a fim de proteger o Mar do Norte de possíveis danos das substâncias mais perigosas, um enfoque de precaução se faz necessário”.11 Na Terceira Conferência Ministerial do Mar do Norte (1990), os ministros garantiram a continuidade da aplicação do princípio da precaução.12 A Declaração Ministerial de Bergen sobre Desenvolvimento Sustentável da Região da Comunidade Européia (1990) foi o primeiro instrumento internacional que considerou o princípio como de aplicação geral, ligado ao desenvolvimento sustentável. Estabelece que: A fim de obter o desenvolvimento sustentável, as políticas devem ser baseadas no princípio da precaução. Medidas ambientais devem antecipar, impedir e atacar as causas de degradação ambiental. Onde existirem ameaças de 8 Preâmbulo. Preâmbulo. 10 Bremen, 1º de novembro de 1984. 11 Londres, 25 de novembro de 1987; também recomendação da PARCOM 89/1, de 1989 (apoiando a “ação do princípio da precaução”). 12 Haia, 8 de março de 1990. 9 danos sérios ou irreversíveis, a falta de total certeza científica não deve ser usada como razão para retardar a tomada de medidas que visam impedir a degradação ambiental.13 O elemento da antecipação é fundamental nesse texto, refletindo a necessidade de medidas ambientais eficazes, baseadas em ações que tenham um enfoque a longo prazo e que possam predizer mudanças, na base de nosso conhecimento científico. Além disso, para que o princípio da precaução seja aplicado, a ameaça ao meio ambiente deve ser “séria” ou “irreversível”, mesmo que ainda não haja nenhuma limitação com base na viabilidade econômica das medidas, que não devem ser adiadas. Enquanto as emendas ao Protocolo de Montreal eram preparadas, o Conselho Administrativo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) reconheceu que “esperar por provas científicas relativas ao impacto dos poluentes liberados no mar poderia resultar em danos irreversíveis ao ambiente marinho e em sofrimento ao seres humanos”, e recomendou que todos os governos adotassem o “princípio da ação de precaução” como base de suas políticas relacionadas com a prevenção e a eliminação de poluição marinha.14 Desde então, vários tratados ambientais, incluindo alguns que são de aplicação global em matérias ambientais de interesse amplo e aplicáveis a quase todas as atividades humanas, adotaram o princípio da precaução ou sua razão lógica básica. Entre os primeiros estava a Convenção de Bamako de 1991, que solicita esforços de suas partes para adotar e executar o preventivo enfoque da precaução para poluição, que inclui inter alia impedir a liberação, no meio ambiente, de substâncias que possam causar dano aos seres humanos ou ao meio ambiente, sem esperar provas científicas a respeito de tal dano. As partes devem cooperar umas com as outras ao tomarem medidas apropriadas para implementar o princípio da precaução a fim de prevenir a poluição, por meio da aplicação de métodos de produção limpos15 13 Bergen, 16 de maio de 1990, parágrafo 7; I.P.E. (I/B/16-05-90). Decisão do Conselho Administrativo 15/27, de 1989. 15 Art. 4 (3) (f). 14 Esta formulação está entre as de maior impacto. Ela cria um elo entre os enfoques de prevenção e de precaução, não exige que os danos sejam “sérios” ou “irreversíveis” e reduz os limites nos quais a evidência científica pode requerer ação. As partes da Convenção sobre Cursos de Água Transfronteiriços de 1992 concordaram em serem guiadas pelo princípio da precaução: em virtude do qual a ação para evitar potencial impacto transfronteiriço da liberação de substâncias perigosas não deveria ser adiada, com base no fato de que a pesquisa científica ainda não provou inteiramente a existência de um nexo causal entre aquelas substâncias, de um lado, e o potencial impacto transfronteiriço, de outro.16 Esta formulação limita a aplicação do princípio a somente efeitos transfronteiriços, muito embora o nível dos danos ambientais seja acima daquele requerido pela Convenção de Bamako como “efeito adverso significativo”. A Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992 não faz referência específica ao princípio da precaução, embora o preâmbulo indique que “quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas a fim de evitar ou minimizar essa ameaça”.17 O nível dos danos ambientais na Convenção da Diversidade Biológica está, portanto, abaixo do nível “sério” ou “irreversível” requerido pela Declaração de Bergen de 1990. Seu Protocolo de Biossegurança de 2000 apóia-se amplamente no enfoque de precaução. O objetivo do Protocolo é declarado: estar “de acordo” com o princípio 15 (da Declaração do Rio) e, com essa finalidade, o Protocolo afirma que “a falta de total certeza científica devido à insuficiência de informações científicas e a falta de conhecimentos relevantes relacionados à amplitude dos potenciais efeitos adversos de um organismo vivo, modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica”, não impedirá um Estado-parte de proibir importações.18 A referência ao princípio da precaução foi matéria geradora de polêmica na Convenção sobre as Mudanças Climáticas de 1992, e o texto, na versão final adotada, estabeleceu limites quanto à aplicação do princípio da 16 Art. 2 (5) (a). Veja também a Convenção do Danúbio, Art. 2 (4). Preâmbulo. 18 Art. 10 (6). Ver também Art. 11 (8) e, com relação à avaliação de risco Art. 15 e Anexo 3. 17 precaução, ao requerer uma ameaça de danos “sérios ou irreversíveis” e por meio da vinculação de compromissos com incentivos à tomada de medidas economicamente viáveis.19 Além destas duas Convenções, atualmente muitas outras comprometem suas partes ao princípio da precaução ou a seu enfoque. A Convenção para Proteção dos Ambientes Marinhos do Nordeste do Atlântico (OSPAR) de 1992 vincula a prevenção à precaução: medidas de prevenção devem ser tomadas quando há “ motivo justo para preocupação (...) mesmo quando não há nenhuma evidência convincente de relações causais entre fontes e efeitos”.20 Neste caso, o limite é bastante baixo. O critério aplicado pela Convenção do Mar Báltico de 1992 introduz uma outra variante: medidas preventivas devem ser tomadas “quando há razão para supor” que o dano pode ser causado “mesmo quando não há nenhuma evidência conclusiva que existe um relacionamento causal entre as fontes e seus supostos efeitos.21 A Convenção sobre a Conservação e Gestão de Populações de Peixes Tranzonais de 1995 submete os Estados litorâneos e Estados que pescam em alto-‐ mar a aplicar totalmente o enfoque da precaução, e exibe em detalhes as modalidades para sua aplicação.22 Um número crescente de outras Convenções -‐ regionais e globais -‐ também se referem ao enfoque da precaução com relação a uma série de assuntos diferentes.23 O Tratado de Maastricht emendou o artigo 130r(2) do Tratado da Comunidade Européia, de modo que a ação da Comunidade, no meio ambiente, fosse “baseada no princípio da precaução”, e o Tratado de Amsterdã de 1997 posteriormente emendou o Tratado da Comunidade Européia para aplicar o princípio à política da Comunidade no meio ambiente (artigo 174(2)). A Comissão Européia publicou um Comunicado sobre o Princípio da Precaução que resume o enfoque da Comissão a respeito do uso desse princípio, estabelece normas de 19 Art. 3 (3). Art. 2 (2) (a). 21 Art. 3 (2). 22 Arts. 5 (c) e 6 e Anexo II (Normas para aplicação de pontos de referência de precaução na Convenção sobre a Conservação e Gestão de Peixes Tranzonais e Peixes Altamente Migratórios). 23 Por exemplo, 1973 CITES, Res. Conf. 9.24 (1994); Tratado sobre Energia, de 1994, Art. 18; Protocolo de 1996 á Convenção de Londres de 1972, Art. 3; Protocolo de Biossegurança de 2000, Art.1; Convenção POPS de 2001 (“A precaução abrange os interesses de todas as partes e está contido nesta Convenção”, Preâmbulo, ver também Art.1); Convenção sobre o Nordeste do Pacífico, de 2002, Art.5 (6) (a). 20 procedimento para sua aplicação e tem como propósito desenvolver a compreensão sobre levantamentos, avaliação e manejo de risco quando não há certeza científica.24 O Comunicado considera que o princípio foi “consolidado progressivamente no direito internacional ambiental, e desde então tornou-‐se um princípio desenvolvido e geral do direito internacional”.25 O princípio foi aplicado pela Corte de Justiça das Comunidades Européias26 e pela Corte da Agência Ambiental Européia que, em casos de efeitos de determinados produtos sobre a saúde humana e onde possa haver incerteza prática e científica relacionada à questão considerada, regulamentou que a aplicação do princípio da precaução é justificada e “propõe, primeiramente, uma identificação das potenciais conseqüências negativas que podem surgir para a saúde, a partir de uma proposta de fortalecimento de suas ações e, em seguida, uma avaliação detalhada sobre o risco à saúde baseada na informação científica mais recente”. A Corte foi além: Quando a insuficiência ou a inconseqüência ou a natureza imprecisa das conclusões a serem extraídas daquelas considerações tornam impossível determinar com certeza o risco ou perigo, mas a probabilidade de dano considerável ainda persiste onde a eventualidade negativa pode ocorrer, o princípio da precaução justificaria tomar medidas restritivas.27 24 COM 2000 (1), 2 de fevereiro de 2000 <http://europa.eu.int/comm/dgs/health_consumer/library/pub/pub07_en.pdf> 25 idem, p. 11. 26 Ver, por exemplo, o Caso C-180/96, Reino Unido versus Comissão Européia, 1998 ECR I-2265 (“ as instituições podem tomar medidas de proteção sem ter que esperar que a realidade e a seriedade daqueles riscos se tornem completamente aparentes”, parágrafos 99 e 100); ver também o caso T-70/99, Alpharma Inc. versus Conselho da União Européia, Ordem de 30 de junho de 1999 (Medidas preliminares) 1999 ECR II-2027, o presidente da Corte da Primeira Instância, referindo-se ao princípio e afirmando que “requerimento ligado à proteção da saúde pública deve incontestavelmente receber maior dedicação que considerações econômicas”. Ver também o caso C-6/99, Association Greenpeace France et autres versus Ministère de l’Agriculture et de la Pêche et autres, 2000 ECR I-1651 (Edição Francesa) (com relação à Diretriz 90/220, o cumprimento do princípio da precaução é refletido na obrigação de notificação imediata à autoridade competente de nova informação relacionada ao risco que o produto pode ter para a saúde humana ou para o meio ambiente e a obrigação da autoridade competente de informar imediatamente à Comissão e aos Estados-membros. Restringir provisoriamente ou proibir o uso ou a venda de produto permitido em seu território onde tem razões justificáveis para considerar que constitua risco para a saúde humana ou para o meio ambiente, parágrafo 44). 27 Caso E-3/00, EFTA Surveillance Authority versus Noruega, Julgamento de 5 de abril de 2001. O princípio ou o enfoque da precaução tem recebido apoio difundido pela comunidade internacional em relação a uma grande variedade de temas. O que o princípio significa e que status ele tem no direito internacional? Não há consenso entre Estados e outros membros da comunidade internacional quanto ao significado do princípio da precaução. De modo geral, significa que os Estados concordam em agir com cuidado e com previsão ao tomarem decisões que concernem a atividades que podem ter um impacto adverso no meio ambiente. Uma interpretação mais apurada defende que o princípio requer que atividades e substâncias que podem ser prejudiciais ao meio ambiente sejam controladas e possivelmente proibidas, mesmo se nenhuma evidência conclusiva ou predominante estiver disponível sobre o que o dano ou o provável dano possam causar ao meio ambiente. Como a Declaração Ministerial de Bergen propôs, “a falta de total certeza científica não deve ser usada como razão para adiar medidas para impedir a degradação ambiental”. Na Declaração do Rio, a exigência foi considerada obrigatória: a falta de total certeza científica “não será usada” para impedir a ação. O que continua em debate é o nível em que a evidência científica é suficiente para sobrepujar argumentos que adiam medidas ou em que proporção poderá ser requerida como matéria do direito internacional. Uma mudança mais significativa seria adotada com uma interpretação do princípio da precaução de forma mais ampla, invertendo o ônus da prova. Sob a ótica tradicional, atualmente encontra-se na pessoa contrária a uma determinada atividade a obrigação de provar que essa atividade causa ou pode causar danos ambientais. Um novo enfoque, apoiado pelo princípio da precaução, tenderia a inverter o ônus da prova e exigiria que pessoas que desejam realizar uma atividade provem que ela não causará dano ao meio ambiente. Esta interpretação exegiria que poluidores e Estados poluidores estabelecessem que suas atividades e a liberação de determinadas substâncias não afetariam adversa ou significativamente o meio ambiente, antes da concessão do direito de liberar substâncias poluidoras ou realizar a atividade proposta. Esta interpretação pode também requerer ação reguladora nacional ou internacional, quando a evidência científica sugere que a falta de ação pode resultar em dano grave ou irreversível ao meio ambiente, ou quando há pontos de vista diferentes quanto ao risco da ação. Há uma evidência crescente que sugere que esta interpretação está começando a ser apoiada pela prática dos Estados, mesmo sendo ainda insuficiente para ser considerada uma regra de aplicação geral. Os exemplos incluem a Diretriz sobre Esgotos Urbanos da Comunidade Européia de 1991, que permite que determinados tipos de esgoto sejam objeto de um tratamento menos rigoroso do que aquele geralmente exigido pela ordem oficial, fixando que “estudos detalhados indiquem que tais descargas não afetarão desfavoravelmente o meio ambiente”.28 Na Convenção OSPAR de 1992, as partes (França e Reino Unido), que, originalmente, queriam manter a opção de despejar no mar lixos radioativos de níveis baixo e intermediário, foram obrigadas a informar à comissão da OSPAR os “resultados de estudos científicos que comprovassem que nenhuma operação de despejo resultaria em perigo para a saúde humana, danos a recursos vivos ou ao ecossistema marinho, danos à infra-estrutura ou interferências em outros usos legítimos do mar”.29 O exercício de cortes e tribunais internacionais, e dos Estados que neles litigam, dá certo significado e efeitos ao princípio da precaução. Antes da Corte Internacional de Justiça, o princípio foi supostamente posto em relevo na petição da Nova Zelândia em 1995, relacionada aos testes nucleares franceses. A Nova Zelândia confiou extensivamente no princípio, descrevendo-o como “um princípio amplamente aceito e operante do direito internacional” e encarregou a França de provar que os testes propostos não causariam aumento do risco ambiental.30 Cinco Estados “intervenientes” (Austrália, Micronésia, Ilhas Marshall, Samoa e Ilhas Salomão) também invocaram o princípio. A França contestou que seu status no direito internacional era “tout à fait incertain” e que, em nenhuma situação, o mesmo já fora aplicado, e que as obrigações comprobatórias para os Estados, no direito internacional ambiental, não eram diferentes das outras áreas do direito internacional.31 A decisão da Corte não fez referência a estes argumentos, embora a discordância do Juiz Weeramantry apontasse que a “evolução do princípio encontraria dificuldade comprobatória causada pelo fato de a informação poder 28 Decisão oficial da Comissão Européia 91/271, Art. 6 (2). Anexo II, Art. 3 (3) (c). 30 Pedido da Nova Zelândia, parágrafo 105; ver também ICJCR/95/20, pp.20-1, 36-8 Pedido da Nova Zelândia, parágrafo105 ; ver também ICJ CR/95/20, pp. 20-1, 36-8. 31 ICJ CR/95/20, pp. 71-2. 75. 29 estar nas mãos da parte ameaçadora ou causadora do dano”, e isto estava “ganhando um crescente apoio por fazer parte do Direito Ambiental Internacional”.32 No caso Gabcikovo-Nagymaros, a Hungria e a Eslováquia também invocaram o princípio da precaução. Novamente, a Corte não sentiu necessidade de recorrer ao princípio, limitando-se a fazer uma referência à reivindicação da Hungria que justificava o término do Tratado de 1977 e o reconhecimento das partes, acordo este relacionado à necessidade de tratar seriamente os interesses ambientais e de tomar as medidas necessárias de precaução.33 Particularmente, a falha da Corte foi não fazer referência ou aplicar o princípio, em suas considerações sobre as condições em que a Hungria poderia ter invocado o conceito de necessidade ecológica para impedir a injusta suspensão dos trabalhos nas duas barragens, em 1989.34 Mesmo tendo reconhecido sem dificuldade “que os interesses divulgados pela Hungria em seu ambiente natural, na região afetada pelo projeto Gabcíkovo-Nagymaros, estava relacionado a um interesse essencial do “Estado”, a Corte achou que a Hungria não provou o “real”, “grave” e “iminente” “perigo” existente em 1989 e que as medidas tomadas pela Hungria foram a única resposta possível.”35 A Corte considerou que havia sérias dúvidas quanto ao possível dano às fontes e à biodiversidade da água doce, mas que estes: (...) não poderiam, isoladamente, estabelecer a existência objetiva de um perigo no sentido de elemento componente de um estado de necessidade. A palavra ‘perigo’ invoca certamente a idéia de ‘risco’; o que distingue precisamente ‘perigo’ dos danos materiais. Mas um estado de necessidade não poderia existir sem um ‘perigo’ devidamente estabelecido, num determinado período do tempo; a simples apreensão de 32 Reportagem da CIJ de 1995,p.342; ver também Juiz ad hoc Palmer ( “a norma envolvendo o princípio da precaução foi desenvolvida rapidamente e pode ser agora um princípio consuetudinário da lei relacionada ao meio ambiente”, ibid, p.412). Ver ainda a decisão divergente do Juiz Weeramantry em Threat or Use of Nuclear Weapons, 1996 ICJ Reps., 502. 33 1997 ICJ Reps, pp. 62 (parágrafo 97) e 68 (parágrafo. 113). Mas ver também as opiniões separadas do julgamento Koroma, onde o princípio da precaução foi incorporado a um tratado em 1997, mas “não foi provado que se violou a autorização de resolução unilateral do tratado: ibid., p. 152. 34 A Corte considerou, em caráter excepcional, que o estado de necessidade era reconhecido pelo direito costumeiro por impossibilitar um erro de um ato que não estivesse em conformidade com uma obrigação internacional, e confiou na forma do artigo 33 dos artigos esboçados pelo Comissão de Direito Internacional (ILC) sobre responsabilidade do Estado: 1997 ICL Reps., p. (parágrafo.50-2) 35 Idem, parágrafo 54. um possível ‘perigo’ não seria suficiente nesse sentido. Além disso, mal poderia ser de outra maneira, quando o ‘perigo’ que constitui o estado de necessidade vem a ser ao mesmo tempo ‘grave’ e ‘iminente’. ‘Iminência’ é sinônimo de ‘imediação’ ou ‘proximidade’ e vai muito além do conceito de possibilidade. (...) Isso não exclui, no ponto de vista da Corte, que um ‘perigo’ que apareça a longo prazo seja tratado como ‘iminente’ assim que for estabelecido, num período de tempo relevante, apesar da distância a que o perigo pode estar, o que não é nem menos evidente, nem menos inevitável.36 Esse não é o sentido da precaução, estabelecida como premissa na necessidade de estabelecer certeza e evitar danos graves. Entretanto, deve ser reconhecido que a Corte esteve preocupada com a aplicação da lei em 1989, quando a Hungria suspendeu injustamente (sob o ponto de vista da Corte) o trabalho, no projeto. Nessa época, o princípio da precaução ainda não tinha sido desenvolvido como uma regra geral de direito internacional, passível de aplicação. Talvez a Corte tenha pensado isto quando indicou mais tarde em julgamento que o que “teria sido uma correta aplicação da lei antes de 1989 ou de1992, poderia ser um erro judicial, se realizado em 1997.”37 O Tribunal Internacional para o Direito do Mar também apresentou argumentos que invocam a precaução, e mostrou estar de acordo com a aplicação do princípio, embora não demonstrasse segurança. Em 1999, no caso Atum*, a Austrália e a Nova Zelândia solicitaram ao tribunal que decidisse se “a atitude das partes, utilizando o princípio da precaução, para pescar atum, depende de um acordo final para a solução da controvérsia”. O Japão não perguntou sobre o status ou efeito do princípio. Em sua decisão, o Tribunal Internacional afirmou que as partes devem “agir com cautela e precaução para assegurar que medidas efetivas de conservação sejam tomadas para evitar danos sérios aos estoques de atum” (parágrafo 77); que houve “incerteza científica relativa a que medidas seriam tomadas para conservar o estoque desta espécie de atum” (parágrafo 79) e que, embora não pudesse definitivamente avaliar a evidência científica apresentada pelas partes, medidas 36 Ibidem Ibidem, parágrafo 134. * O original fala em Southern Blue-Fin Tuna, uma espécie de atum (nota dos organizadores) 37 deveriam ser tomadas de forma urgente para preservar os direitos das partes e para evitar outra deterioração ao estoque destas espécies de atum (parágrafo 80). Ao ordenar que as partes parem de conduzir programas experimentais de pesca, o Tribunal estava claramente dando um enfoque de precaução, como o juiz Treves reconheceu em opinião própria.38 Em 2001, no caso MOX, a Irlanda reivindicou que o Reino Unido não tinha aplicado o enfoque da precaução para a proteção do mar irlandês, no exercício de sua autoridade, ao tomar decisões relacionadas às conseqüências diretas e indiretas da operação da usina MOX e de movimentos transfronteiriços de materiais radioativos, associados à operação da referida usina MOX.39 O princípio foi invocado pela Irlanda, na fase de medidas temporárias para apoiar sua reivindicação de que o Reino Unido tinha obrigação de demonstrar que nenhum dano surgiria das descargas e de outras conseqüências da operação da usina MOX e informar a avaliação feita pelo Tribunal quanto à urgência das medidas solicitadas para a operação da usina.40 Aceitando que é necessária prudência e precaução em toda avaliação de risco, o Reino Unido argumentou que, na ausência de evidência de risco de dano real de dano, a precaução não poderia ser motivo para limitar os direitos do Reino Unido de autorizar a operação de uma usina.41 O Tribunal não requereu a suspensão da das atividades da usina, como a Irlanda tinha solicitado, mas ordenou que as partes cooperassem e trocassem informações sobre possíveis conseqüências para o mar irlandês, levantadas fora da comissão da usina MOX e adotassem apropriadamente medidas para impedir a poluição do ambiente marinho, 38 “No presente caso, parece-me que a exigência de urgência é satisfeita somente no aspecto da precaução. Eu lamento que isso não esteja citado explicitamente na decisão”: Opinião separada do Juiz Treves, parágrafo 8. Ver também a opinão separada do Juiz Lang (“não obstante, não é possível, com base nos materiais disponíveis e nos argumentos apresentados para aplicação destas medidas provisórias, determinar se, como os autores argumentam, o costume internacional reconhece um princípio da precaução”, parágrafo. 15) e do Juiz ad hoc Shearer (“O tribunal não achou necessário entrar numa discussão referente ao princípio/enfoque da precaução. Entretanto, eu acredito que as medidas solicitadas pelo Tribunal estão corretamente baseadas em considerações derivadas de um enfoque de precaução”). 39 Capítulo 9; Ver Indicação de Reivindicação da Irlanda , 25 de outubro de 2001, parágrafo 34 (“O princípio da precaução é uma regra de direito consuetudinário internacional que é obrigatório para o Reino Unido e relevante à avaliação das ações do Reino Unido, com referência a LOSC “). 40 Decisão de 3 de dezembro de 2001, parágrafo 71 41 Resposta do Reino Unido, 15 de novembro de 2001, parágrafo 150. resultante da operação da usina.42 Esta decisão, com caráter de precaução, foi estabelecida com base em considerações de prudência e cautela.43 O princípio tratado também pelo Órgão de Apelação da OMC.44 Em 1998, no caso sobre os carne com hormônios, a Comunidade Européia invocou o princípio para justificar sua proibição das importações de carne produzida, nos Estados Unidos e no Canadá, com hormônios artificiais, em que os impactos sobre a saúde humana eram incertos. A Comunidade argumentou que o princípio era “uma regra geral e consuetudinária do direito internacional ou, no mínimo, um princípio geral do Direito”, que era aplicável tanto à avaliação quanto à gerência de um risco, e que informava o significado e efeito dos artigos 5.1 e 5.2 do acordo de medidas sanitárias e fitossanitárias da OMC.45 Os Estados Unidos negaram que o princípio representasse um princípio consuetudinário do direito internacional e preferiu caracterizá-‐lo como um “enfoque” que varia de acordo com o contexto.46 O Canadá fez referência ao princípio da precaução como sendo “um princípio emergente do direito internacional, que pode, no futuro, ser transformado em um dos princípios gerais do Direito reconhecido pelas nações civilizadas”, conforme o artigo 38(1)(c) do Estatuto da CIJ”.47 O Órgão de Apelação concordou com os Estados Unidos e com o Canadá que o princípio da precaução não havia anulado os artigos 5.1 e 5.2 do acordo SPS, considerando, contudo, que o princípio era baseado no preâmbulo e nos artigos 3.3. e 5.7 do acordo SPS, que não esgotou a importância do princípio.48 42 Decisão de 3 de dezembro de 2001, parágrafo 89 (1). Ibid., parágrafo 84. Conforme a opinião separada do Juiz ad hoc Szekely (O tribunal “ deve ter sido responsável, em face de tal incerteza às demandas irlandesas relacionadas à aplicação do princípio da precaução (ver os parágrafos 96 a 101 do pedido, pp. 43-46). É lamentável que não se tenha feito assim, porque se tivesse agido de outra maneira poderia ter concedido a medida requisitada pela Irlanda, que pedia a suspensão das atividades da usina”). 44 Veja T. Christoforou, “Science, law and precaution in dispute resolution on health and environmental protection: what role for scientific experts?”, in J. Bourrinet & S. Maljean-Dubois (eds), Le Commerce International des Organismes Génétiquement Modifiés (2002). 45 Relatório do Órgão de Apelação, 16 de janeiro de 1998, WT/DS48/AB/R, parágrafo 16. 46 Idem, parágrafo 43. Os Estados Unidos citaram que o Acordo SPS reconheceu um enfoque de precaução (em seu Artigo 5.7) 47 Ibidem, parágrafo 60. 48 Ibidem, parágrafo 124 ( “um processo encarregado de determinar (…) se o critério “evidência científica suficiente” está presente para possibilitar a manutenção da medida SPS de um membro, pode e, claramente, deve levar em consideração que os representantes governamentais geralmente agem sob perspectivas de pudência e de precaução, onde os riscos de irreversibilidade, e.g. extinção de espécies e danos à saúde humana, são levados em consideração”). O Órgão de Apelação determinou que “os responsáveis e os 43 Reconhecendo que o status do princípio, no direito internacional, é assunto de debate aberto e foi considerado por alguns como princípio geral do direito consuetudinário ambiental internacional, o Órgão de Apelação disse: Aparece claramente que o princípio foi aceito pelos Membros como sendo um princípio geral ou consuetudinário do direito internacional. Nós consideramos, entretanto, que é desnecessário e provavelmente imprudente para o Órgão de Apelação tomar uma posição nesta importante, porém abstrata questão. Notamos que o próprio grupo não encontrou nenhuma posição definitiva do que vem a ser o status do princípio da precaução, no direito internacional, e que o princípio da precaução ainda necessita de uma formulação concreta, fora do âmbito do direito internacional ambiental.49 O princípio também foi questionado diante de outras Cortes, tais como a Corte Européia de Direitos Humanos. Em Balmer-‐Schafroth versus Suíça, os requerentes reivindicaram que a falha da Suíça em fornecer revisão administrativa de uma decisão que autoriza a operação de uma usina nuclear violou o Artigo 6 da Convenção Européia.50 A reivindicação foi rejeitada pela maioria, porque a conexão entre a decisão do governo e o direito dos requerentes era demasiadamente remota e pouco importante. A Corte entendeu que os autores falharam ao estabelecer uma nexo direto entre as condições de operação da usina elétrica (...) e o direito de proteger a integridade física, como eles falharam em não mostrar que a representantes governamentais devem agir de boa-fé, com base nas opiniões divergentes, oriundas de fontes qualificadas e respeitadas” (parágrafo 194), o que foi endossado pela decisão CE-Amianto (Relatório do Órgão de Apelação, de 12 de março de 2001, parágrafo 178, que completou: “Para justificar uma medida, no contexto do artigo XX (b) do GATT de 1994, um membro deve fundamentar-se na boa-fé, em fontes que, numa determinada época, podem ser divergentes, mas que refletem opiniões qualificadas e respeitadas. Um membro não é, para o estabelecimento de padrões de saúde pública, automaticamente obrigado a seguir a opinião da maioria da comunidade científica”. 49 Idem, parágrafo 123. O Órgão de Apelação destacou que, no caso Gabcíkovo-Nagymaros, a CIJ não considerou o princípio da precaução como uma norma recente, desenvolvida no campo do direito ambiental, e declinou de seu direito de declarar tal princípio entre as obrigações do Tratado de 1977, ibid, nota 93. 50 Julgado em 26 de julho de 1987, Eur.CtHR Reps-IV. O Artigo 6 da Convenção determina que “na fixação de direitos civis e obrigações, todos são titulares de um julgamento justo... por um tribunal” operação da usina elétrica Mühleberg os expôs pessoalmente a um perigo não somente sério mas também específico e, sobretudo, iminente. Na ausência de tal conhecimento, os efeitos das medidas sobre a população que o Conselho Federal poderia ter solicitado em casos instantâneos permaneceram conseqüentemente hipotéticos. Dessarte, nem os riscos ou ajustes foram estabelecidos em nível de probabilidade que fizesse o resultado dos procedimentos ser decisivo (...).51 A opinião divergente de sete juizes, entretanto, criticou esta decisão, ao acreditar que a mesma “ignorou toda a tendência das instituições internacionais e do direito internacional público que protege gerações presentes e futuras, como evidenciado [inter alia] (...) pelo desenvolvimento do princípio da precaução”.52 Várias decisões em nível nacional orientaram o status do princípio da precaução, no direito internacional. Em Vellore, por exemplo, a Suprema Corte indiana decidiu que o princípio da precaução era uma característica essencial de “desenvolvimento sustentável” e, como tal, parte do direito consuetudinário internacional.53 Contrariamente, a Corte Federal dos Estados Unidos surge mais contida quanto a seu enfoque, acreditando que o princípio ainda não foi estabelecido no direito consuetudinário internacional para levantar uma causa de ação sobre o Alien Tort Claims Statute.54 Como conclusão, podemos dizer que o status legal do princípio da precaução está evoluindo. Há suficientes evidências de práticas estatais na sentido de que o princípio, tal como elaborado no Princípio 15 da Declaração do Rio e em várias 51 Idem, parágrafo 40. Opinião dissidente do Juiz Pettit, seguida pelos juízes Golcukul, Walsh, Russo, Valticos, Lopes Rocha and Jambrek, 53 Vellore Citizens Welfare Forum v Union of India and Others, Petição (C) no 914 de 1991 (Kuldip Singh, Faizanuddin JJ), julgamento de 28 de agosto de 1996, parágrafos 10, 11 e 15. Cf. Narmada Bachao Andolan versus Union of India & Others, Sup. Ct. India, Julgamento de 18 de outubro de 2000 <http://www.narmada.org/sardar-sarovar/sc.ruling/majority.judgement.doc>. 54 Beanal v Freeport-Mcmoran, US District Court for Eastern District of Louisiana, de 9 de abril de 1997, 969 F. Supp. 362, p. 384 (“o princípio não constitui [um] parâmetro internacional sobre o qual existe consenso universal, na comunidade internacional sobre seu status cogente e [seu] conteúdo); afirmado pela Corte de Apelações do 5o Circuito, dos EUA em 29 de novembro de 1999, 197 F.3d 161. 52 convenções internacionais, tem recebido atualmente sustentação suficientemente ampla para permitir a afirmação de que se trata de direito costumeiro. Dentro do âmbito da União Européia, tem conseguido o status de costume internacional, mesmo com as diferentes definições adotadas. Todavia, deve ser reconhecido que algumas cortes e tribunais internacionais foram relutantes ao indicar que o princípio tem status de costume internacional, ainda que esta posição esteja cedendo espaço para aquela que defende seu reconhecimento. A relutância em aceitar o princípio da precaução pode ser compreendida, no contexto de sua consolidação; enquanto isso, as conseqüências práticas de sua aplicação continuarão a ser determinadas caso a caso.55 Referências Bibliográficas BODANSKY, D. “Scientific uncertainty and the precautionary principle”, 33 Envt 4 (1991). BOYDEN GRAY, C e RIVKIN, D. “A “No Regrets” Environmental Policy”, 83 Foreign Policy. 47 (1991). CAMERON, J. E ABOUCHAR, J. “The precautionary principle: a fundamental principle of law and policy for the protection of the global environment”, 14 B.C.Int”l. & Comp.L.Rev. 1 (1991). De SADELEER, N. Environmental Principles in an Age of Risk, 2003. De SADELEER, N., “Réfléxions sur le statut juridique du principe de précaution”, in E. Zaccai & J-‐N Missa, Le principe de précaution, 2000 FABRA, A. “The LOSC and the Implementation of the precautionary principle”, 10 Yearbook of International Environmental Law, 1999, n. 15 FREESTONE, D. “Caution or precaution: “a rose by any other name…”?” 10 Yearbook of International Environmental Law 25 (1999) FREESTONE, D. “The Precautionary Principle”, in R. Churchill and D. Freestone (eds.), International Law and Global Climate Change. London : Graham & Trotman/Nijhoff, 1991, 447 p. 55 Neste sentido, ver a opinião em separado do Juiz Treves, citado na nota xx, parágrafo 9 FREESTONE, D. e HEY, E. The Precautionary Principle and International Law. The Hague : Kluwer Law International, 1996, 274 pg. GUNDLING, L.. “The status in international law of the principle of precautionary action” in International Journal of Estuarine & Coastal Law, 1990, n. 5, 23. HEY, E. “The Precautionary Concept in Environmental Policy and Law: Institutionalising Caution”, 4 Geo.Int”l.Envt”l.L.Rev. 303 (1992) HOHMANN, H. Precautionary Legal Duties and Principles of Modern International Environmental Law, 1994 MARR, S. The Precautionary Principle in the Law of the Sea -‐ Modern Decision-‐ Making in International Law, 2003 O´RIORDAN, T. e CAMERON, J. (eds.), Interpreting the Precautionary Principle. London : Earthscan, 1994, 315 p. REHBINDER, R. Das Vorsorgeprinzip in Internationalen Rechtsvergleich, (1991) TROUWBORST, A. Evolution and status of the precautionary principle in international law, The Hague ; London : Kluwer Law International, 2002, 378 p. Capítulo 4 O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional Nicolas de Sadeleer* Apesar da presença de um grande número de declarações não cogentes enunciando numerosos princípios, a Comunidade internacional ainda não tem um instrumento obrigatório de aplicação universal que reúna os principais princípios do direito ambiental. Essa lacuna é ainda mais lamentável porque o direito internacional do meio ambiente é fortemente fragmentado. Não é, portanto, de se surpreender que diversos autores tenham tentado, mediante contribuições doutrinárias, identificar, aliás, elaborar diferentes princípios do direito internacional do meio ambiente, entre eles o princípio da precaução. Alguns desses princípios doutrinários já foram consagrados como princípios do direito consuetudinário pela Corte Internacional de Justiça. É o caso do princípio 21 da Conferência de Estocolmo (1972) sobre o Meio Ambiente Humano e do princípio da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, consagrado recentemente pela Corte Internacional de Justiça, na questão GabcikovoNagyramos. Outros, como o princípio da precaução, estão prestes a ascender a esse patamar. Conhecido há muitos anos por alguns especialistas em direito ambiental, o princípio da precaução vive recentemente, no decorrer de crises alimentares e ecológicas que permeiam a atualidade, uma oportunidade sem precedentes. Sobre seu significado, falaremos apenas de que se trata de uma norma em virtude da qual a ausência de certeza, levando em conta os conhecimentos científicos do momento, não deve nem se opor, nem retardar a adoção de medidas destinadas a prevenir um risco que apresenta um certo grau de gravidade1. Pretendendo ser a expressão de uma filosofia de ação antecipada, esse * Professor nas Faculdades Saint-Louis. Diretor do Centro de Estudo de Direito Ambiental. Pesquisador qualificado pela Vrije Universiteit Brussel. Essa contribuição foi redigida no quadro de um projeto de pesquisa SSTC (Pólos de Atração Interuniversitários, fase V 2002-2006) sobre as lealdades do saber. 1 Para um comentário aprofundado das diferentes definições desse princípio, nós recomendamos a leitura de nossos trabalhos científicos Les principes du pollueur-payeur, de prévention, de précaution, collection Universités francophones, Bruxelas. Paris: Bruylant, Agence universitaire francophone, 1999, 437 p; assim como de Environmental Principles: from Political Slogans to Legal Rules. Oxford: Oxford University Press, 2002, 500 p. princípio, conseqüentemente, não exige que se reúna um conjunto de provas científicas para se adotar uma decisão que evite um risco. O sucesso fulminante que o princípio da precaução pôde encontrar nos cenários internacionais, em menos de uma década, não nos deve fazer esquecer de que seus contornos são tão difíceis de apreender quanto aqueles de outros princípios do direito internacional. Tanto a diversidade de definições que lhe foram atribuídas nas diferentes convenções internacionais, quanto a quantidade de aplicações que se tenta dar ao princípio, realçam a heterogeneidade de suas facetas. Nem a doutrina nem a jurisprudência chegaram até o momento a dissipar o mistério que permeia seu estatuto jurídico. Como classificá-lo? Ele se reveste dos traços peculiares aos princípios gerais do direito internacional? Trata-se de uma regra de direito consuetudinário, de um padrão jurídico, de uma norma de conteúdo aberto? É suficientemente preciso para que se possam deduzir as obrigações jurídicas que dizem respeito aos Estados? Reclama a adoção de regras mais precisas? Quanto às modalidades de execução, apresentam igualmente seu conjunto de questões. É preciso afastar um risco grave, significativo, irreversível, coletivo? A adoção de uma medida de precaução requer um mínimo de indícios quanto à consistência do risco sob suspeita ou está livre de todo e qualquer elemento de prova? Sob qual forma convém aplicá-lo? Sob a forma de moratória, de controle, de vigilância ou de autorização? E por quanto tempo? Contudo, é possível fixar um certo número de pontos-chave para apreender esse estatuto vago, uma norma totalmente orientada para se opor à dúvida. A questão do valor jurídico do princípio da precaução merece ser abordada sob o ângulo das fontes tradicionais do direito internacional. Convém, antes de mais nada, examinar o estatuto do princípio quando é enunciado nos textos de direito não cogente (I). A partir do momento em que o princípio é firmado nas convenções internacionais, é preciso verificar se ele corresponde exatamente a um princípio jurídico de direito positivo convencional (II). Em razão de sua constante reafirmação nos textos normativos, é necessário perguntar-se se é ele desde então dotado de um valor comunitário (Comunidade européia - CE) (III) ou se ele é filiado a um princípio apontado no artigo 38 § 1º, "c") do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (IV). A evolução da jurisprudência das jurisdições internacionais é analisada na última seção (V). 1. A Consagração do Princípio da Precaução nas Regras de Direito Não Cogente Os instrumentos de soft norm, tais como as recomendações, as linhas diretrizes, as declarações dos Chefes de Estado nas conferências internacionais, não substituem as fontes tradicionais do direito internacional2. Ao contrário dos princípios normativos que são encontrados nos dispositivos das convenções internacionais, os princípios enunciados nesses instrumentos não são cogentes. Utilizado em diferentes declarações ministeriais relativas à proteção do meio ambiente, a partir de meados dos anos oitenta3, o princípio da precaução foi efetivamente imposto internacionalmente em 1992, na Conferência do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento4. Instrumento jurídico não cogente, a Declaração de 13 de junho de 1992 sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento o enuncia, tomando o cuidado de enumerar as condições a serem respeitadas, no momento de sua aplicação: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (tradução não oficial). 2 Uma extensa literatura é consagrada às fontes não obrigatórias em direito internacional. Ver P. Weil. “Towards Relative Normativity in International Law”, American Journal of International Law, 1983, n. 77, p. 413; T. Grtuchalla-Wesierki. “A Framework for Understanding soft law”, McGill Law Journal, 1984, n. 30, p. 37-88; C.M. Chinkin. “The Challenge of Soft Law: Development and Change in International Law”, ICLQ, 1989, n. 38, p. 85-86; P.-M. Dupuy. “Soft Law and the International Law on the Environment”, Mich. J Int'l L., 1991, n.12, p. 420; P. Birnie e A. Boyle, International Law and the Environment. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 165; A. Boyle. “Some Reflections on the Relationship of Treaties and Soft Law”, ICLQ, 1999, n.48, p. 901; O. Elias e C. Lim. “General Principles of Law”. “Soft Law” and the “Identification of International Law”, 1997, n. 28/3, N.Y.I.L., p. 45; C.M. Chinkin. “Normative Development in the International Legal System”, in D. Shelton (ed.), Commitment and Compliance. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 21-42. 3 N. de Sadeleer, Les principes, op. cit., p.138. 4 O princípio é igualmente reconhecido em um outro documento não obrigatório, a Agenda 21, 16 de junho de 1992, UN Doc. A/ Conf. 151/26, Vol. III (1992). Na mesma época, o princípio foi citado na maioria das declarações internacionais relativas à proteção ambiental ou ao desenvolvimento sustentável: em Berger, em 16 de maio de 1990, pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa5; em 25 de maio de 1989, pelo Conselho Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)6; em Addis-Abeba, em julho de 1990, pelo Conselho dos Ministros da Organização da Unidade Africana (OUA); em outubro de 1990, pela Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (ESCAP)7 e, finalmente, pelo Conselho dos Ministros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A profusão de atos enunciando assim o “princípio” ou a “abordagem da precaução” não deve, entretanto, iludir. Seu estatuto depende em grande parte da natureza dos textos que o enunciam. Apesar das intenções louváveis que defendem essas numerosas declarações, o princípio da precaução não tem, nem de longe, os traços necessários para seu reconhecimento como uma regra jurídica. Nesse estágio, o princípio permanece desprovido de alcance cogente na medida em que esses diferentes fundamentos jurídicos não têm por objetivo obrigar seus signatários. Contudo, o fato de o princípio da precaução estar sendo regularmente formulado há mais de uma década por esses instrumentos contribui para que esteja sendo progressivamente inserido nos textos convencionais com caráter obrigatório8. Consagrado num primeiro estágio nas declarações, o princípio faz agora o papel de precursor de regras obrigatórias. Além disso, a reiteração dos compromissos assumidos pelos Estados por meio de resoluções sucessivas pode ter importante repercussão sobre a elaboração posterior de um princípio de direito costumeiro, utilizando notadamente a evolução progressiva da opinio juris necessária à fixação de uma nova regra44. Em outras 5 Declaração Ministerial de Bergen sobre o Desenvolvimento Sustentável na Região ECE, para. 7. Decisão do Conselho Executivo do PNUE 15/27 (1989) sobre a abordagem de precaução em matéria de poluição marinha. 7 Declaração de Bangcoc de 1990 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Ásia e no Pacífico. 8 Sobre a integração de conceitos de soft law no direito convencional, ver . D. Shelton. “Law Non-Law and the Problem of “ Soft Law” e A. Kiss. “Commentary and Conclusions”, in D. Shelton (ed.), Commitment and Compliance, op. cit., p. 10, 229. Ver também C.M. Chinkin. “Normative Development in the International Legal System “, in D. Shelton (ed.). Commitment and Compliance, op. cit., p. 31-34. 44 Licitude da ameaça ou do emprego de armas nucleares, parecer de 8 de julho de 1996, Rec, 1996,p. 254255, parágrafo 70. 6 palavras, a repetição do princípio da precaução, numa pletora de atos não cogentes, atesta seu status nascendi45. 2. A Consagração Progressiva do Princípio da Precaução nas Convenções Internacionais i) Uma progressão espetacular Logo no início da década de oitenta, o princípio da precaução foi inscrito na maior parte dos atos internacionais bilaterais e multilaterais que dizem respeito à proteção do meio ambiente11. A incerteza envolvendo as causas e os efeitos da poluição atmosférica e marinha serviu-lhe como foro privilegiado, no final dos anos oitenta. Assim, as convenções seguintes fazem referência tanto a uma abordagem quanto a um princípio da precaução: - Convenção de Londres, de 30 de novembro 1990, sobre a preparação, a luta e a cooperação quanto à poluição por hidrocarburetos12. - Convenção de Paris, de 22 de setembro de 1992, sobre a Proteção do Ambiente Marinho do Atlântico13. - Convenção de Helsinque, de 17 de março de 1992, sobre a Proteção e a Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos Internacionais14. 45 Fr. Maes. “Environmental Law Principles and the Legislator: the Law of the Sea”, in M. Sheridan e L. Lavrysen (eds.), Environmental Law Principles in Practice, Bruxelles, Bruylant, 2002, p. 59; M. Kamto. “Les nouveaux principes du droit international de l'environnement”, Revue juridique de l'environnement, 1993/1, p. 11. 11 Sobre os desenvolvimentos recentes do princípio da precaução em direito internacional, ver. D. Freestone e E. Hey. “Origins and Development of the Precautionary Principle”, in The Precautionary Principle and International Law. Londres, La Haye, Boston, Kluwer Law Intl., 1996, p. 3; A. Kiss. “Chronique de droit international”, R.J.E., 1996/1-2, p. 96; P. Birnie. “The Status of Environmental “soft law” : Trends and Examples with Special Focus on IMO Norms, in Competing Norms”, in The Law of Marine Environmental Protection. Londres, La Haye, Boston, Kluwer Law Intl., 1997, p. 51 ; T.O'Riordan, J. Cameron e A. Jordan A. (eds.), Interpreting the Precautionary Principle, 2 ed.. Londres: Cameron & May, 2001. 12 Segunda consideração da Convenção de Londres. 13 O princípio é definido pela Convenção OSPAR como sendo aquele “segundo o qual medidas de prevenção devem ser tomadas quando houver motivos razoáveis para inquietar-se com fato de que as substâncias ou a energia introduzida no meio marinho possa trazer riscos para a saúde do homem, prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas marinhos, ficar atento aos valores de concordância ou criar obstáculos a outras utilizações legítimas do mar, mesmo se não existirem provas concludentes a partir de um relatório de causalidade entre as contribuições e os efeitos” (artigo ponto 2, a). (tradução não oficial). - Convenção de Helsinque, de 2 de abril de 1992, sobre a Proteção do Meio Marinho, na Zona do Mar Báltico15. - Convenção de Charleville-Mezière, de 26 de abril de 1994, sobre a Proteção do rio Escaut e do rio Meuse16. - Convenção de Sofia, de 29 de junho de 1994, sobre a Cooperação para a Proteção Sustentável do rio Danúbio 17. - Protocolo de Barcelona, de 10 de junho de 1995, na Convenção de Barcelona de 1976, sobre as Zonas Especialmente Protegidas e a Diversidade Biológica, no Mediterrâneo19. - Convenção de Rotterdam, de 22 de janeiro de 1998, sobre a Proteção do rio Reno20. O princípio ganhou rapidamente o setor da pesca, sendo inserido em diversas disposições do acordo de Nova Iorque, de 4 de dezembro de 1995, sobre a aplicação da Convenção sobre o Direito do Mar, relativo à conservação e à gestão das populações de peixes tranzonais e populações de peixes altamente migratórios. Quanto à poluição atmosférica, a primeira norma internacional a consagrar o princípio foi a Convenção sobre a Poluição Atmosférica de Longa Distância, adotada em Genebra, em 13 de novembro de 1979, pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa22. 15 As Partes contratantes na convenção de Helsinque engajaram-se em aplicar o princípio da precaução, que consiste: “em tomar medidas preventivas, uma vez que se basearam no pensamento de que as substâncias ou a energia introduzida, direta ou indiretamente, no meio marinho possa colocar em perigo a saúde do homem, prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas marinhos, impedir outras utilizações legítimas do mar, mesmo quando o relatório de causalidade entre as contribuições e seus efeitos não está estabelecido” (artigo 3, alínea 2)(tradução não oficial). 16 Os acordos Escaut-Meuse de Charleiville-Mezières definiram-no como o princípio “em virtude do qual a aplicação de medidas destinadas a evitar que a rejeição de substâncias perigosas pudesse ter um impacto transfronteiriço significativo não se difere do motivo de que a pesquisa científica não demonstrou plenamente a existência de um espaço de causalidade entre a rejeição dessas substâncias, de um lado, e um eventual impacto transfronteiriço significativo.” (artigos 2, a e 3,2 a). 17 ”O princípio do poluidor-pagador e o princípio da precaução constituem o fundamento de todas as medidas destinadas a proteger o Danúbio e as águas de sua bacia hidrográfica” (artigo 2.4). 19 Preâmbulo do Protocolo de Barcelona. 20 Artigo 4 da Convenção de Rotterdam. 22 As Partes contratantes da Convenção de Genebra sobre a Poluição Atmosférica de Longa Distância, de 13 de novembro de 1979, não apenas reconheceram “a possibilidade de que a poluição do ar, inclusive a poluição atmosférica transfronteiriça, provoca a curto e longo prazo efeitos danosos”, mas também tiveram receio de que “o fato de que o aumento previsto do nível de emissão de poluentes atmosféricos na Mesmo não fixando nenhuma quota de redução de emissões de cloro na atmosfera, a Convenção de Viena, de março de 1985, para a Proteção da Camada de Ozônio estabeleceu um processo de regulação que rapidamente, em 1987, originou o Protocolo Adicional de Montreal, que foi emendado várias vezes para, numa preocupação de precaução, suprimir totalmente o uso dos gases CFC, em 199523. Nesse sentido, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, assinada em Nova Iorque, em 9 de maio de 1992, impõe às Partes que tomem “medidas de precaução”4. Enfim, o Protocolo de Oslo, de 14 de junho de 1994, na Convenção Sobre a Poluição Atmosférica de Longa Distância, relativo a uma nova redução de emissões de enxofre, enuncia o princípio em seu preâmbulo. O princípio não está ausente nas convenções relativas à conservação da diversidade biológica. A Convenção Sobre a Diversidade Biológica, de 5 de junho de 1992, proclama de maneira implícita o princípio em seu preâmbulo25, enquanto a resolução da conferência das partes à convenção CITES de Forte Lauderdale, de 18 de novembro de 199426, e o Tratado de Haia, de 16 de setembro de 1995, sobre a Convenção sobre Pássaros Aquáticos Migratórios Africanos27, apontam-no expressamente. O fato de o princípio da precaução ser enunciado nessas convenções internacionais não revela seu estatuto jurídico28. Para acordar o estatuto de regra de direito positivo convencional ao princípio da precaução, é necessário primeiramente verificar se o estatuto está região pudesse aumentar esses efeitos danosos”. O segundo protocolo dessa convenção reconhece explicitamente o princípio da precaução (tradução não oficial). 23 Partindo da constatação de que efeitos nefastos resultam ou podem resultar de atividades humanas que “modificam ou podem modificar a camada de ozônio”, as Partes do protocolo de Montreal disseram-se “determinadas a proteger a camada de ozônio, tomando medidas de precaução para regulamentar imparcialmente o volume mundial total de emissões de substâncias que a empobrecem, o objetivo final sendo o de eliminá-los em função da evolução de conhecimentos científicos e levando em conta considerações técnicas e econômicas” (segunda e sexta motivações do Protocolo de Montreal). A convenção de Viena fez menos caso do princípio da precaução. Em virtude de sua sexta motivação, as Partes estariam “cientes das medidas de precaução já tomadas em âmbito nacional e internacional, visando à proteção da camada de ozônio”. (tradução não oficial). 25 O preâmbulo da CDB prevê que “no momento em que existe uma ameaça de redução sensível ou de perda da diversidade biológica, a ausência de certezas científicas totais não deve ser invocada como razão para postergar as medidas que permitem evitar o perigo ou atenuar os efeitos”. (tradução não oficial) 26 Resolução da nona conferência das Partes (Conf. 9.24). Ver B. Dickson. “ The Precautionary Principle in CITES: A Critical Assessment “, 1999, n.39, Natural Resource Journal, p. 211. 27 Artigo 2, alínea 2, e) Tratado de Haia. 28 P. Martin-Bidou. “ Le principe de précaution au droit international de l’environnement”, R.G.D.I.P., 1999/3, p. 660. reincorporado de forma correta no dispositivo de um texto de alcance normativo (enfoque formal) e até que ponto obriga seus destinatários (enfoque material). ii) Enfoque formal Num plano formal, no momento em que um princípio é enunciado por um tratado ou uma convenção internacional, deveria adquirir o valor normativo que é fixado por seus instrumentos. Nas ordens jurídicas nacionais em que o tratado ou a convenção internacional alcançaram um valor superior àquele da lei nacional, o princípio deverá impor-se ao legislador nacional. No entanto, o estatuto jurídico do princípio nas convenções citadas é tudo, menos homogêneo. Ora se trata de uma “abordagem de precaução”, ora de um “princípio”. Ora esse princípio figura no preâmbulo das convenções29, ora ele se encontra inscrito no próprio dispositivo da Convenção, seja sob a forma de uma obrigação geral30, seja sob a forma de um dispositivo mais preciso31. Todavia, ele só é um princípio de direito positivo se for afirmado no próprio dispositivo da convenção. Mencionado no preâmbulo, pode apenas inspirar as obrigações jurídicas mais precisas que se encontram enunciadas, no dispositivo da convenção. iii) Enfoque material A questão do estatuto jurídico do princípio da precaução nas convenções internacionais tende a tornar-se mais complexa no momento em que se examina sua redação. Nem sempre é apresentado como uma regra de aplicação imediata que se impõe diretamente aos Estados e que os juízes terão de levar em consideração em suas decisões. No momento em que a Convenção prevê expressamente a adoção de normas de execução, o princípio encontra-se desprovido de um caráter autônomo. Essa tese pode encontrar fundamento, por um lado, na estrutura do direito internacional e, por outro, numa interpretação literal de certas disposições que o enunciam. 29 Esse é o caso do princípio da precaução na Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 de junho de 1992 e no Protocolo de Oslo, de 14 de junho de 1994, na Convenção sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiriça de Longa Distância, relativo a uma nova redução das emissões de enxofre. 30 Ver o artigo 3, alínea 3 da Convenção de 9 de maio de 1992, sobre a mudança climática. 31 Ver o artigo 4 da Convenção de Bamako, de 30 de janeiro de 1991, sobre a interdição de importar resíduos perigosos e o controle de seus movimentos transfronteiriços, na África. Constata-se que o princípio figura nas diversas convenções quadro, aquelas que permitem recolher uma vasta participação dos Estados. Deverá ainda aparecer por meio dos protocolos que serão adotados após a entrada em vigor da convenção que, além do mais, só constitui uma primeira etapa na elaboração de regras obrigatórias32. Ademais, o emprego dos termos “basear”, “guiar”, “inspirar”, “esforçar-se” parecem tirar-lhe toda a aplicabilidade imediata e autônoma. A título de exemplo, a Convenção de Bamako, de 30 de janeiro de 1991, sobre a interdição de importar resíduos perigosos e sobre o controle dos movimentos transfronteiriços e a gestão dos resíduos perigosos produzidos na África prevê que "cada parte encarrega-se de adotar e de colocar em funcionamento medidas de precaução para confrontar-se com os problemas da poluição, (...)" enquanto, segundo a Convenção de Helsinque, de 17 de março de 1992, sobre a Proteção e a Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos Internacionais, as partes “são guiadas” pelo princípio da precaução. A Convenção de Sofia, de 29 de junho de 1994, sobre a Cooperação para a Proteção e a Utilização do rio Danúbio prevê que esse princípio constitui “o fundamento” de todas as medidas destinadas a proteger o Danúbio e as águas de sua bacia hidrográfica, enquanto a Convenção de Rotterdam, de 22 de janeiro de 1998, sobre a Proteção do rio Reno enuncia que “as partes contratantes inspiram-se” no princípio. Apesar de tudo, em outras numerosas convenções, o princípio é redigido de maneira mais afirmativa e aplica-‐se, portanto, aos Estados-‐partes. Assim, a Convenção de Paris, de 22 de setembro de 1992, sobre a Proteção do Meio Marinho do Nordeste do Atlântico e a Convenção de Barcelona, de 16 de fevereiro de 1976, sobre o mar Mediterrâneo, prevêem que as “partes apliquem” o princípio da precaução. Nesse mesmo sentido, conforme a Convenção Quadro, de 9 de maio de 1992, sobre as Mudanças Climáticas, “as partes são incumbidas de tomar as medidas de precaução...”. Entretanto, a maior parte dessas disposições geralmente não se preocupa em definir o princípio ou em precisar as modalidades de sua aplicação. Convém, portanto, verificar caso a caso se os termos empregados para descrever o princípio são suficientemente cogentes para decidir se é passível de ser 32 G. Palmer. “New Ways to Make International Environmental Law”, American Journal of International Law, 1992, vol. 86, n. 2, p. 259 ; L. Gehring. “International Environmental Regimes: Dynamic Sectoral Legal Systems “, Yb Intl. Environmental Law, 1990, n. 1, p. 35. aplicado diretamente no que diz respeito aos Estados, sem o intermédio de eventuais normas de execução. 3. O Princípio da Precaução, Regra do Direito Consuetudinário A repetição do princípio da precaução em um grande número de convenções conduz à questão de saber se ele se tornou um princípio de direito internacional consuetudinário. Se a obrigação dos Estados de cuidar para que as atividades exercidas nos limites de sua jurisdição ou sob seu controle não causem danos ao meio ambiente pode ser considerada como um princípio de direito consuetudinário33, o valor habitual do princípio da precaução permanece controverso. Observar-se-á que o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça abstém-se de estabelecer uma hierarquia entre as fontes do direito internacional que estão enumeradas; assim, não é possível postular se o tratado é superior ao costume ou o inverso34. O fato de não haver hierarquia entre as diferentes fontes do direito internacional não significa que, de um ponto de vista material, não haja hierarquia entre as normas jurídicas. Com efeito, uma fonte pode sobrepor-se à outra em razão da generalidade das regras em causa ou de sua respectiva posição cronológica. A regra consuetudinária é a conjunção da opinio juris dos Estados – a aceitação do caráter obrigatório da regra – e de uma prática efetiva35. Ora, apenas a aplicação repetida de uma prática jurídica estatal é suscetível de transformar a precaução em norma consuetudinária36. A prática deve ser “suficientemente embasada e convincente”37. As declarações, os comentários dos projetos de tratados pelos governos, as correspondências 33 C.I.J., Licéité de la menace ou de l’emploi d’armes nucléaires, aviso consultivo de 8 de julho de 1996, par. 29; Gabcikovo-Nagymaros, parágrafo. 53, 7 e 140. 34 N. K. Dinh et al., Droit international public, 6º ed. Paris : L.G.D.J., 1999, n. 223 e 224, p. 344-350. 35 C.I.J., Licéité de la menace ou de l’emploi d’armes nucléaires, Parecer Consultivo de 8 de julho de 1996, p. 253, parágrafo 64. 36 Ver. A. D’Amato, The Concept of Custom in International Law. Londres: Cornell, Ithaca, 1971, p. 7487; H. Thirlway, International Customary Law and Codification, Leiden, Sijhoff, 1972, p. 145-146;G.J.H. van Hoof, Sources of International Law, Deventer, Kluwer, 1983, p. 87; Hoggenmacher. “La doctrine des deux elements du droit coutumier dans la pratique de la Cour internationale “, R.G.D.I.P., 1986, 90, 5, p. 114; M. Bos. “The identification of Custom in International Law “, German Yb. of Intl. Law., 1982, 25, p. 22. 37 C.I.J., Délimitation de la frontière maritime dans la région du golfe du Maine, 12 outubro de 1984, Rec. 1984, p. 2999, parágrafo 111. diplomáticas, as legislações, as decisões jurisdicionais e administrativas, os argumentos diante dos tribunais internacionais, as declarações das organizações internacionais e as resoluções são também exemplos de práticas estatais que devem ser consideradas para avaliar o estatuto consuetudinário do princípio da precaução38. Conforme a maioria dos autores, não há dúvida de que o princípio da precaução reveste desde já o estatuto da regra internacional costumeira39, mesmo que essa interpretação permaneça ainda controversa, no âmbito da doutrina40. A tese do valor consuetudinário do princípio da precaução choca-se, entretanto, com a atitude de diversas instâncias jurisdicionais internacionais que se recusam a pronunciar-se claramente a favor dessa solução41. Tomemos posição nesse debate. As pesquisas que conduzimos nestes últimos anos sobre o estatuto e o alcance do princípio da precaução, tanto em direito internacional, quanto em direito comunitário ou em direito comparado nos permitem afirmar que a prática estatal expressa, por sua repetição, a convicção da maioria dos membros da comunidade internacional, de que aceitam que o princípio da precaução é um princípio de direito costumeiro, ao aplicarem as medidas de precaução em diferentes domínios, como a poluição atmosférica, a gestão dos recursos pesqueiros e a conservação da biodiversidade42. A repetição desse princípio em cinqüenta protocolos e convenções, no espaço de uma dezena de anos, constitui inegavelmente a prova da consolidação de uma prática constante, imutável e efetiva, em um nível universal e regional, num momento em que os riscos se revelam graves ou irreversíveis. A consagração recente do princípio da precaução no direito internacional convencional não constitui um obstáculo 38 I. Brownlie, International Law, 5 ed.. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 5 ; N. Q. Dinh et al, Droit international public, 6 ed.. Paris: L.G.D.J., 1999, p. 321-323. 39 Ver, por exemplo, P. Sands, Principes of International Environmental Law, vol. I, Manchester. Londres: Cameron May, 1994, p. 283; J. Cameron e J. Abouchar. “The Status of the Precautionary Principle in International Law”, in D. Freestone e E. Hey (eds.), The Precautionary Principle in International Law, Kluwer Law Int’l. Londres, Boston, New York, 1996, n. 29, p. 52 ; O. Mcintyre e T. Mosedale “ The Precautionary Principle as a Norm of Customary International Law “, Journal of Environmental Law, 1997, N. 9/2, p. 221. 40 Ver, por exemplo, P. Birnie e A. Boyle, International Law and the Environment. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 98; L. Gündling. “The Status in International Law of the Precautionary Principle”, International Journal of Estuarine and Coastal Law, 1990, n. 25, p. 30. 41 Cf. infra, Seção V. 42 Ver particularmente nossa obra Environmental Principles, op.cit. No mesmo sentido, ver. D. Freestone. “International Fisheries Law since Rio… “, in A. Boyle e D. Freestone (eds.), International Law and Sustainable Development. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 135-164. que o impedirá de vir a ser um princípio de direito consuetudinário. Ainda que um certo lapso de tempo deva ocorrer para que uma prática estatal tome consistência suficiente, nenhum prazo é fixado nem pela doutrina, nem pela jurisprudência43. Certos princípios de direito consuetudinário surgiram muito rapidamente – é o caso, por exemplo, do regime da plataforma continental – considerando que havia elementos suficientes que atestavam uma prática estatal constante. A isso é necessário acrescentar que, se a prática estatal deve ser suficientemente consistente, não deve, para isso, ser universal44. O fato de que certos Estados ou grupos estatais não reconhecem expressamente o princípio da precaução não constitui, portanto, um obstáculo para seu reconhecimento como princípio de direito consuetudinário. 4. O Princípio da Precaução e os Princípios Gerais do Direito Reconhecidos pelas Nações Civilizadas O Estatuto da Corte Internacional de Justiça prevê que a mesma aplique, além das convenções internacionais e do costume internacional, “os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas”. Inseridos entre as fontes formais do direito internacional, os princípios gerais de direito são diretamente aplicáveis pelo juiz internacional. Por serem partes dos Estatutos da Corte Internacional de Justiça, todos os Estados-membros da ONU são vinculados pelos princípios que podem ser enunciados por essa jurisdição. Entretanto, o estatuto reservado aos princípios gerais do direito previsto no artigo 38, § 1º, alínea “c” do estatuto da Corte Internacional de Justiça, permanece controverso45. 43 C.I.J., Plataforma continental do Mar do Norte (Dinamarca e Países Baixos c. RFA), 20 de fevereiro de 1969, Rec. 1969 p. 43, parágrafo 74. 44 A adoção de tratados multilaterais pode fazer emergir novas regras comunitárias. Por exemplo, Plataforma Continental do Mar do Norte, op. cit, Rec p. 41, parágrafo 71. 45 Ver. G. Fitzmaurice. “The General Principles of International Law Considered from the Standpoint of the Rule of Law “, RCADI, 1957, II, n. 92, p. 5; M. Akehurst. “Equity and General Principles of Law “, International and Comparative Law Quarterly, 1976, p. 801; W. Friedmann. “The Use of General Principles in the Development of International Law “, American Journal of International Law, 1963, p. 279; C. Parry, The Sources and Evidences of International Law, Manchester, Manchester U.P., 1965, p. 8391; J.G. Lammers. “General Principles of Law Recognized by Civilized Nations “, in Essays on the Development of the International Order (Panhuys), Alphen a/d Rijn, Sijthof & Noordhoff, 1980, p. 53-75; De acordo com alguns autores, não se trataria de uma fonte formal do direito46. Essa tese não merece apoio, pois se choca com o texto do artigo 38, § 1º, “c”, que, analisando expressamente os princípios gerais ao lado das outras fontes do direito internacional, consagra sem ambigüidade sua autonomia. Em compensação, outros autores consideram que essa noção inclui os princípios comuns das ordens jurídicas nacionais47. Uma terceira tese foi enunciada: os princípios gerais do direito seriam específicos às relações internacionais (por exemplo, o princípio de não intervenção, de reciprocidade, de igualdade entre os Estados)48. Enfim, certos autores consideram que esse debate se reveste de contornos um pouco acadêmicos na medida em que, geralmente, a Corte Internacional de Justiça não se preocupa em explicitar se os princípios que ela cita estão ligados ao artigo 38, parágrafo 1º, alínea “c” ou se trata de princípios de direito consuetudinário. É incontestável que a inserção da alínea “c”, no parágrafo 1º do artigo 38, do estatuto da Corte Internacional de Justiça, estava destinado a permitir a essa jurisdição preencher as lacunas da ordem jurídica internacional com o objetivo de evitar qualquer efeito non-liquet49. Essa técnica jurídica subscreve, além disso, uma visão moderna do direito segundo a qual o sistema jurídico deve ser sempre completo e coerente. Em todo o caso, os princípios visados no artigo 38, 1, “c” apresentam vantagens em relação aos princípios do direito consuetudinário de que possam ser invocados pelo juiz A. Vitanyi. “Les positions doctrinalçes concernant le sens de la notion de principes généraux de droit reconnus par les nations civilisés”, R.G.D.I.P., 1982, n.86, p. 45-116; I. Brownlie, op. cit., p. 15-19; G.J.H. van Hoof, op. cit., p. 131-150. 46 Ver. H. Kelsen, Principles of International Law, 2 ed.. New York: Holt, Rhinehart e Winston, 1956, p. 539-540; R.Y. Jennings. “The Identification of International Law “, in Bin Cheng (ed.), International Law: Teaching and Practice. Londres: Stevens & Sons, 1982, p. 4; A. Cassese, International Law in a Divided World. Oxford: Clarendon, 1986, p. 173-174; A. Cassese e J.H. Weiler (eds.), Change and Stability in International Law-Making. Berlin: De Gruyter, 1988, p. 33-37. 47 Ch. de Visscher . “Contributions à l’étude des sources de droit international “, R.D.I.L.C., 1993, p. 406; H. Lauterpacht, Private Law Sources and Analogies of International Law, Weesp Archon, 1970, p. 69-71; H. Bokor-Szego. “General Principles of Law “, in M. Bedjaoui (ed.), International Law: Achievements and Prospects. Paris, Dordrecht: Martinus Nijhof, 1991, p. 217; J. Combacau e S. Sur, Droit international public, 2 ed.. Paris: Montchrestien, 1995, p. 46; N. Q. Dinh et al, Droit international public, 6 ed.. Paris: L.G.D.J., 1999, p. 347-348. Além disso, as jurisdições internacionais desenvolvem os princípios gerais, emprestando-lhes elementos que foram comuns a todos ou à maior parte dos regimes jurídicos nacionais ou que foram transpostos no direito internacional (in dubio pro reo). 48 I. Brownlie, op. cit., p. 19; M. Virally. “Le rôle des principes dans le développement du droit international”, in Recueil d'études de droit international en hommage de Paul Guggenheim, Genebra, 1968, p. 533; J.G. Lammers. “General Principles of Law... “, op. cit., p. 57-59, 66-69. 49 I. Brownlie, Principles of Public International Law, 5 ed.. Oxford: Clarendon, 1998, p. 15; M. Shaw, op. cit., p. 81. internacional, mesmo na falta de uma prática estatal. Assim, os princípios gerais do direito um pouco esquecidos pelos Estados e as organizações internacionais podem sempre ressurgir, no contexto de uma decisão tomada por uma jurisdição internacional. Apesar das vantagens que apresenta o reconhecimento de um princípio geral de direito reconhecido pelas nações civilizadas, é forçoso constatar que os Estados raramente fundamentam seus agravos sobre sua violação; nenhuma decisão da Corte faz referência expressa a essa fonte formal do direito internacional50. Essa reserva por parte da Corte Internacional de Justiça, assim como de outras jurisdições internacionais, explica-se sem dúvida pelo fato de seu acionamento ser tributário do consentimento dos Estados51 e de que, enunciando de maneira demasiado audaciosa os novos princípios, colocariam em risco sua credibilidade. A consagração de um princípio como o da precaução poderá desagradar bastante a certas pessoas em razão das controvérsias que essa norma suscita. No entanto, uma jurisdição poderia consagrar a precaução, considerando o “princípio geral de direito”, sem referir-se expressamente ao artigo 38, § 1º, “c”, do Estatuto da Corte. O caráter comum dos princípios gerais do direito tem a ver com seu alto nível de abstração e sua extrema generalidade, que é declaradamente o caso do princípio da precaução. Preenchendo as lacunas do direito positivo, tal princípio geral poderia exercer uma função supletiva no momento em que os tratados ou o direito consuetudinário não prevêem soluções, no propósito de garantir as coerências do sistema jurídico. Poderia igualmente assumir uma função interpretativa, projetando uma nova luz sobre o direito convencional52. Nas duas hipóteses, o princípio da precaução assumiria um importante papel como fonte autônoma do direito. 5. O Cálculo Progressivo do Princípio da Precaução pelas Jurisdições Internacionais 50 H. Thirlway, op. cit., p. 110-111; J.G. Lammers, 'General Principles of Law...', op. cit., p. 71. W. Friedmann, The Changing Structure of International Law. Londres: Stevens & Sons, 1964, p. 189. Ver, também, G.J.H. van Hoof, op. cit., p. 144-146; J. Combacau e S. Sur, op. cit., p. 46. 52 Observar que, na questão Gabcikovo-Nagyramos, a Corte Internacional de Justiça julgou que o desenvolvimento sustentável não constitui um princípio e sim um “conceito” suscetível de exercer uma função interpretativa a respeito de disposições convencionais. 51 Podemos questionar se o princípio da precaução constitui em direito internacional um meta-princípio da mesma forma que o conceito de desenvolvimento sustentável53, se se trataria de um padrão jurídico ou se constituiria desde já um princípio geral do direito, tendo em vista o artigo 38, 1, “c”, ou um princípio de direito internacional consuetudinário. Por diversas vezes, o princípio da precaução foi invocado diante de diferentes jurisdições internacionais. Não obstante o dispositivo relativamente matizado de certas decisões, a maior parte dessas jurisdições se mostrou até o presente fortemente reservada quanto a uma aplicação direta e autônoma do princípio da precaução. Dessa maneira, o princípio impõe-se progressivamente nos casos em que a incerteza científica é significativa, como um princípio geral do direito internacional do meio ambiente. i) O princípio da precaução na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça Por duas vezes, o princípio da precaução foi invocado diante da Corte Internacional de Justiça, que se recusou a estatuir sobre seu fundamento. Na questão dos testes nucleares franceses de 1992, a Corte eludiu, por motivos de procedimento, a queixa apresentada pela Nova Zelândia que se fundamentava no princípio da precaução54. Na questão Gabcikovo-Nagyramos, a Corte evitou pronunciar-se diretamente sobre a aplicação do princípio da precaução que fora invocado pela Hungria para livrar-se de suas obrigações55. A Hungria, neste caso particular, justificara sua recusa em seguir a construção da infra-estrutura transfronteiriça sobre o Danúbio, invocando o estado de necessidade, tendo em vista o risco que corria o meio ambiente em razão da construção da barragem. Reconhecendo o caráter sério das preocupações ambientais apresentadas pela Hungria, para justificar sua recusa em observar o tratado relativo à construção de obras hidráulicas sobre o Danúbio, que ela havia concluído com a antiga Tchecoslováquia, a Corte 53 V. Lowe. “Sustainable Development and Unsustainable Arguments “, in A. Boyle e D. Freestone (eds.), International Law and Sustainable Development . Oxford: Oxford U.P., 1999, p. 19-39. 54 C.I.J., Nova Zelândia e França., decisão de 22 de setembro de 1995. 55 C.I.J., Hungria c. Eslováquia, 25 de setembro de 1997, Rec. 1997, parágrafo 56. Internacional de Justiça não admitiu, numa sentença de 25 de setembro de 1997, que havia ali um risco grave e iminente em razão do caráter vago dos danos invocados pelas autoridades húngaras56. “O perigo alegado pela Hungria, por ser a longo prazo – elemento mais importante - permanece vago. Como a própria Hungria reconhece, os danos que ela iria sofrer deveriam resultar, antes de tudo, de processos naturais relativamente lentos, cujos efeitos não poderiam ser muito avaliados. (...). Ainda que o perigo alegado pudesse ser muito grave, dificilmente, pelo exposto, poderia ser considerado como certo e, conseqüentemente, como iminente em 1989” (§ 56). (tradução não oficial). Esse raciocínio volta a excluir o longo prazo, tendo em vista que este comporta demasiadas incertezas. Os riscos devem ser temidos com um mínimo de certeza. Conseqüentemente, os riscos que poderiam causar a exploração da barragem a longo prazo não permitem justificar a ruptura unilateral, por parte da Hungria, de suas obrigações internacionais. ii) O princípio da precaução na jurisprudência do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio O fim do século XX ficará marcado por duas evoluções paralelas sem precedentes na história da humanidade: as crises ecológicas de uma amplitude sem igual (mudanças climáticas, empobrecimento da biodiversidade, rarefação do ozônio estratosférico,..) que emergiram ao mesmo tempo que uma liberalização progressiva do comércio mundial, que encontrou sua saída em 1994, quando da conclusão da Rodada do Uruguai. Sustentando esses desenvolvimentos paralelos, as regras jurídicas defrontam-se hoje em numerosos aspectos, de maneira nitidamente mais acentuada que no passado. Assim, a abertura dos mercados opõe-se à vontade de certos Estados de melhorar a proteção acordada à saúde e à segurança de seus trabalhadores e de seus consumidores ou ao meio físico. Proibido 56 Ibidem. pela Comunidade Européia em razão dos temores dos consumidores europeus, a carne bovina com hormônios, por exemplo, é vendida livremente no outro lado do Atlântico. Em todo o caso, o princípio da precaução conseguiu nessa questão aprofundar a linha divisória entre os postulados, sustentando a liberalização do comércio mundial e a imperiosa necessidade, reconhecida pela Comunidade Européia e por seus Estadosmembros, de adotar um alto nível de proteção do meio ambiente, dos consumidores e da saúde pública57. Perseguindo um objetivo de proteção sanitária mais elevada que os Estados Unidos e o Canadá, a Comunidade Européia interditou as importações de carne bovina que continha substâncias hormonais, proveniente da América do Norte. Essa medida de precaução, segundo as autoridades americanas, mascarava os desejos protecionistas por parte dos europeus. A Comunidade Européia, no litígio contra os Estados Unidos e o Canadá, defendeu vigorosamente que seu regime de interdição estava amparado pelo princípio da precaução e que o mesmo era considerado uma regra consuetudinária internacional. O Órgão de Apelação, por sua vez, deu uma resposta menos comprometedora à questão58: O estatuto do princípio da precaução em direito internacional continua a ser o assunto de um debate entre os acadêmicos, os operadores de direito, os regulamentadores e as jurisdições. O princípio da precaução é tido por alguns como sendo uma metamorfose de um princípio de direito geral de natureza consuetudinária do direito internacional do meio ambiente. Não está claro se se trata aqui de um princípio de direito geral ou de um princípio de direito consuetudinário. Consideramos, entretanto, desnecessário, e provavelmente imprudente, que o Órgão de Apelação tome posição no caso desta questão tão importante quanto abstrata. Constatamos que a própria mesa-redonda não tinha resolvido a questão do estatuto jurídico do princípio da precaução no direito internacional e que tal princípio, fora do domínio do direito internacional do meio ambiente, ainda espera uma formulação mais qualificada. 57 Essa obrigação resulta dos artigos 95, § 3), 152, § 1º, 153, § 1º e 175, § 2 do tratado da C.E. Relatório do Órgão de Apelação da OMC sobre a questão das medidas comunitárias no que concerne à carne e a seus produtos derivados (hormônios), WT/DS26/AB/R , 1998. 58 A partir desta constatação, o Órgão de Apelação concluiu que os litígios suscitados pela vontade de alguns Estados em se opor, por razões de saúde, à importação de produtos provenientes de outros Estados, deveriam ser resolvidos pelos acordos concluídos sob a égide da OMC. A referência implícita que é feita ao princípio da precaução nos artigos 5.7 e 3.3, do Acordo sobre a Aplicação das Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (acordo SPS), não pode levar à afirmação de que esse princípio prevaleceria sobre a obrigação imposta pelo artigo 5.1 e 2 do acordo de trazer uma prova científica de um risco. O segundo litígio, no decorrer do qual o princípio da precaução fora evocado na OMC, concernia à validade de uma decisão de embargo pronunciada pela Austrália sobre os salmões provenientes do Canadá. As medidas australianas foram baseadas em uma avaliação de riscos, cujo rigor era duvidoso. Fundamentando-se no relatório referente aos hormônios, o Órgão de Apelação decidiu, em seu relatório de 20 de outubro de 1998, que “o risco avaliado no quadro de um procedimento de avaliação dos riscos deve ser um risco verificável. A incerteza teórica não é o tipo de risco que deve ser avaliado conforme o artigo 5.1 do acordo SPS. Isto não significa, no entanto, que uma parte não possa determinar seu nível apropriado de proteção em conformidade com o objetivo do risco zero”. O Órgão de Apelação julgou que a proibição australiana à importação do salmão não estava fundamentada sobre um procedimento de avaliação de riscos, como o requerido pelo artigo 5.1 do acordo SPS e, portanto, condenou a Austrália59. Finalmente, em um relatório de 22 de fevereiro de 1999, o Órgão de Apelação baseou-se novamente na jurisprudência Comunidades Européias – Hormônios para rejeitar a aplicação correta do princípio da precaução para concluir que a medida proibitiva japonesa não estava corretamente formulada sobre uma avaliação dos riscos60. Colocando o princípio da precaução, seja sobre o regime da avaliação dos riscos (artigo 3.3), seja sobre uma cláusula de salvaguarda ( artigo 5.7) prevista pelo acordo SPS, o Órgão de Apelação o admite sob uma forma extremamente simplificada. Certamente os Estados vêem reconhecida, em virtude desse acordo comercial, a liberdade 59 Relatório do Órgão de Apelação da OMC, no caso Medidas que afetam a importação de salmão, WT/DS18/AB/R , 1998. 60 Relatório do Órgão de Apelação da OMC, no caso Japão – medidas visando aos produtos agrícolas, 22 de fevereiro de 1999. de escolher o nível de proteção sanitária que julgam apropriado e podem, conseqüentemente, “introduzir ou manter as medidas sanitárias (...) que implicam um nível de proteção mais elevado”61. Entretanto, não resta dúvida de que essas medidas devem ser “baseadas sobre os princípios científicos” e não podem ser “mantidas sem provas científicas suficientes”62. Em outros termos, a justificação científica impõe-se aqui como um verdadeiro paradigma. Dito isto, o Órgão de Apelação chegou, no entanto, a reformular certas condições citadas. Assim, o estudo dos riscos pode comportar os dados “qualitativos” além das informações “quantitativas”63 e fundamentar-se em opiniões científicas minoritárias64. Assim, a avaliação científica deve corresponder à realidade e não unicamente às práticas laboratoriais65. Essas reformulações levaram diversos autores a considerar que o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC estava disposto a levar em conta certas facetas do princípio da precaução. Entretanto, é necessário lembrar que o risco deve apresentar uma certa consistência para que o cálculo de um risco teórico continue excluído66. Do ponto de vista decisório, o Órgão de Apelação integrou igualmente certos elementos do princípio da precaução, reconhecendo a um Estado a faculdade de alcançar o objetivo de um risco zero67 e exigindo uma ligação lógica – e não de causa e efeito – entre os resultados de avaliação científica dos riscos e a medida adotada68. Desta forma, mesmo que uma medida de proteção sanitária não deva adaptar-se aos resultados da avaliação, a justificação científica continua sendo a brecha do acordo SPS69. Se essa jurisprudência ajuda de certa maneira a aplicar alguns elementos do princípio da precaução, não resta dúvida de que exige das partes que procedam a uma avaliação específica de riscos considerados “verificáveis”70. Assim, a avaliação não pode tratar de uma classe de substâncias consideradas de risco – os hormônios, por exemplo – 61 Art. 3.3. Art. 2.2 e 3.3. 63 Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 184-186; Austrália – Medidas visando às importações de salmões, relatório do Órgão de Apelação, 20 de outubro de 1998, parágrafo 124. 64 Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 194. 65 Ibidem, parágrafo 187. 66 Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, para. 186; Caso Austrália – Medidas visando às importações de salmões, parágrafo 129. 67 Caso Austrália – Medidas visando às importações de salmões, Órgão de Apelação, parágrafo 125. 68 Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 195. 69 C. Noiville. “Principe de précaution et OMC “, Journal de Droit International, 2000, p. 270-273. 70 Caso dos Hormônios, Órgão de Apelação, parágrafo 201. 62 mas deve visar aos supostos efeitos de cada substância71. Por outro lado, o princípio da precaução permanece encurralado nos limites de uma cláusula de salvaguarda, o artigo 5.7, que deve ser interpretada de forma restritiva. Confrontada a uma situação de urgência quando as “provas científicas pertinentes são insuficientes”, a Comunidade Européia poderá sempre, se assim o desejar, adotar “provisoriamente”, em virtude do artigo 5.7 do acordo SPS, medidas sanitárias “sobre a base de informações pertinentes disponíveis”, mas, neste caso, a manutenção da medida de proteção sanitária que for mais severa que aquela prevista pelo Codex Alimentarius, terá apenas valor provisório e deverá ser retirada posteriormente, após a realização de pesquisas que as autoridades públicas envolvidas deverão efetuar72. Enfim, se se pode compreender que o Órgão de Apelação esteja inclinado a admitir que o princípio constitui uma regra consuetudinária no domínio da segurança sanitária e fitossanitária, o mesmo deveria acontecer com os litígios ambientais em que o princípio se impôs verdadeiramente, tanto nos atos de soft norm, como nas convenções internacionais. iii) O princípio da precaução na jurisprudência do Tribunal do Direito do Mar Primeira decisão tomada pelo Tribunal Internacional de Direito do Mar, em 27 de agosto de 1999, a decisão “Atum*” constitui uma interessante aplicação do princípio da precaução no direito das pescas73, mesmo o Tribunal não tendo utilizado em sua decisão o termo “princípio”. Nesse caso, a Nova Zelândia e a Austrália contestaram um programa de pesca experimental de atum, liderado pelo Japão. Tal programa permitia, em virtude de uma convenção regional, que os pescadores japoneses capturassem uma quantidade 71 Ibidem, parágrafo 200. A época transitória deve ser estabelecida caso a caso, em função das circunstâncias específicas. Cf. Japão – Medidas que visam aos produtos agrícolas, relatório do Órgão de Apelação, 22 de fevereiro de 1999, parágrafo 92. * Literalmente, a tradução correta seria atum de nadadeiras azuis, do inglês bluefin tuna, mas que preferimos traduzir simplesmente por atum. [nota dos organizadores]. 73 Atuns, medidas provisórias, ordem de 27 de agosto de 1999 (caso nº 3 e 4). Ver. H.S.Schiffman. “The Southern Bluefin Tuna Case: ITLOS Hears Its First Fishery Dispute “, J. Int'l.Wildlife L. & Pol'y, 1999, n.3, p. 318; B. Kwiatkowska, American Journal of Interntional Law, 2000, n.24, p. 150; K. Leggett, 'The Southern Bluefin Tuna Cases: ITLOS Order on Provisional Measures', R.E.C.I.E.L.,2000, n.9, p. 75 ; A. Fabra. “The LOSC and the Implementaion of the Precautionary Principle “, YbIEL,, 1999, n.10, p. 17 ; D. Freestone,’Caution or Precaution “ A Rose By Any Other Name…. “ ?’,YbIEL, 1999, n.10, p. 25-32. 72 maior de atum que o previsto, a título de subsídio das quotas de pesca. Essa decisão unilateral tomada pelo Japão foi contestada com base nos artigos 64 e 116 a 119, da Convenção de Montego Bay sobre o Direito do Mar e no direito consuetudinário, regras que impõem a obrigação de cooperar diretamente, por intermédio das organizações internacionais apropriadas, visando assegurar a conservação dos peixes altamente migratórios e de promover sua exploração ideal. Levado a se pronunciar sobre a adoção de medidas conservacionistas contrárias ao programa experimental japonês, o Tribunal julgou que, em razão da incerteza científica sobre os riscos que tal programa gerava para a sobrevivência da espécie de atum, “as partes devem ... agir com prudência e precaução e cuidar para que medidas de conservação eficazes sejam tomadas com o objetivo de impedir que a população desse atum não sofra danos graves” 74. A opinião separada dada pelo juiz Laing destaca que o Tribunal não aplicou como tal o princípio da precaução, mas seguiu uma abordagem de precaução, sendo que este conceito é mais flexível que a noção de princípio. Mesmo assim, uma abordagem de precaução justifica a adoção de medidas conservacionistas para prevenir um risco de “danos graves” e irreversíveis75. Finalmente, no caso da usina MOX, a Irlanda solicitara ao Tribunal medidas conservacionistas, objetivando obrigar o Reino Unido a suspender imediatamente a autorização concedida à usina, em Sellfield, motivada pelo fato de que o Reino Unido não observara diversas obrigações da Convenção sobre o Direito do Mar, notadamente as resultantes dos artigos 123, 192 a 194, 197, 206, 207, 211, 212 e 21376. A Irlanda questionava as conseqüências irreversíveis do despejo de plutônio no ambiente marítimo, o risco de derramamentos e de emissões radioativas, tanto as resultantes da usina, como em conseqüência de acidentes industriais ou de ataques terroristas. A Irlanda concluía que o princípio da precaução impunha ao Reino Unido a responsabilidade de demonstrar que nenhum dano resultaria dos derramamentos e das outras atividades da usina MOX, e 74 Para. 1777 J.P. Beurier e C. Noiville. “La Convention sur les droits de la mer et la diversité biologique”, in Hommages à C. de Klemm. Estrasburgo : Conselho da Europa, , 2001, p. 107. 76 Mox, medidas provisórias, ordonnance de 3 de dezembro de 2001 caso nº 10. 75 que esse princípio deveria ser utilmente considerado pelo Tribunal na avaliação que ele faria da urgência em se tomar medidas conservacionistas requeridas. Ainda que não invocando como tal o princípio da precaução, o Tribunal obriga em sua decisão de 3 de dezembro de 2001, a Irlanda e o Reino Unido a cooperarem e fiscalizarem os riscos ou os efeitos que as operações da usina MOX poderiam resultar para o mar da Irlanda: 84. Considerando que, na opinião do Tribunal, a prudência e a precaução exigem que a Irlanda e o Reino Unido cooperem, trocando informações relativas aos riscos ou efeitos que poderiam decorrer ou resultar das operações da usina MOX e que elaborem, eventualmente, meios de resolvê-las; 85. Considerando que a Irlanda e o Reino Unido deveriam, cada um naquilo que lhes concerne, cuidar para não tomar nenhuma medida que pudesse agravar ou aumentar a controvérsia submetida ao Tribunal Arbitral, prevista no anexo VII; 86. Considerando que, em conformidade com o artigo 95, parágrafo I, do Regimento, cada parte é obrigada a submeter ao Tribunal um relatório e informações a respeito das disposições tomadas para colocar em prática as medidas conservacionistas prescritas pelo Tribunal;... iv) Perspectivas No momento em que aborda a questão do estatuto jurídico do princípio da precaução em direito internacional, o juiz internacional, vê-se, de repente, diante de um paradoxo. Do lado da Corte, esse princípio conhece um real sucesso, considerando-se seu enunciado constante, na maioria dos atos de direito internacional, logo após a Conferência do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento; por outro, nota-se uma certa reticência da parte das jurisdições internacionais em reconhecer um valor consuetudinário. O Órgão de Apelação da OMC recusa-se a se pronunciar sobre o estatuto jurídico dessa norma, em sua decisão sobre os hormônios; na verdade, faz uma aplicação extremamente simplificada, ao recordar a possibilidade de os membros da OMC adotarem as medidas provisórias a título de precaução, em virtude do artigo 5.7, do acordo SPS. Mesmo se as decisões tomadas pelo Tribunal Internacional do Direito do Mar, nos casos do atum e da usina Mox, pareciam à primeira vista mais audaciosas, não definiu o que entende por “precaução”. As opiniões isoladas parecem indicar que se tratava aqui de uma abordagem e não de um princípio. Essas reticências não podem ser explicadas de outro modo a não ser pela dificuldade de pronunciar-se sobre o estatuto jurídico do princípio da precaução. Trata-se de um princípio geral de direito, no sentido do artigo 38, 1, “c”, de uma categoria de princípio sobre o gênero ou de um princípio de direito consuetudinário? Seja o que for, esses diferentes processos demonstram o papel essencial que o princípio da precaução pode ter nos litígios internacionais sobre a noção de ônus da prova. 6. Conclusões No espaço de alguns anos, o princípio da precaução atingiu uma posição central, no direito internacional do meio ambiente. Para nossas sociedades que se tornaram, sob muitos aspectos, as “sociedades do risco”, este princípio é chamado a exercer um papel emblemático. Se o princípio não deve submeter-se ao fantasma securitário, perseguindo o sonho utópico do “risco zero”, seria irresponsabilidade, por outro lado, adotar a atitude do apostador, ou ainda pior, a do cínico. Entre estes dois extremos, nossos sistemas jurídicos devem retomar o caminho da prudência. Não seria lícito tentar ver este novo princípio como um fenômeno passageiro com o qual é preciso simplesmente compor. Vilipendiado ou enaltecido, ao princípio da precaução parece estar prometido um futuro brilhante. Próprio de um contexto neo ou pós-moderno do direito, a afirmação por estilos sucessivos do princípio da precaução no direito internacional assume diversas funções. Metamorfoseada em um fator de revelação de incertezas, a avaliação científica deve ser considerada pelo que realmente é, uma ferramenta, uma simples ferramenta de decisão. Além disso, o princípio da precaução deveria reformular as exigências de prova, a serem fornecidas pelas partes no tocante à gravidade do risco. Deveria igualmente servir de fio condutor para a elaboração dos protocolos de execução das inúmeras convenções internacionais que o consagram. A necessidade de reforma nessa área é real. Ainda que sejam geralmente interligados, os riscos ecológicos são geralmente apreendidos por convenções de natureza setorial com marcas sensivelmente diferentes, adotados de maneira desordenada a fim de responder às crises pontuais. Referências Bibliograficas AKEHURST, M. “Equity and General Principles of Law”, International and Comparative Law Quarterly, 1976. BEURIER J.P. ;C. NOIVILLE. “La Convention sur les droits de la mer et la diversité biologique”. In Hommages à C. de Klemm. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2001. BIRNIE, P. “The Status of Environmental "soft law”: Trends and Examples with Special Focus on IMO Norms, in Competing Norms”. In The Law of Marine Environmental Protection, Londres, La Haye, Boston: Kluwer Law Intl., 1997. BIRNIE, P. e BOYLE, A. International Law and the Environment. Oxford: Oxford University Press, 2002. BOKOR-SZEGO, H. “General Principles of Law ”. In M. BEDJAOUI (ed.), International Law: Achievements and Prospects. 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O princípio foi adotado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (CNUAD) de 1992 e incluído na Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. (princípio 15). 1 Na verdade, textos como este, que constituem a chamada soft law ou soft norm (declarações, códigos de conduta, etc.), representam um instrumento precursor da adoção de regras jurídicas obrigatórias, estabelecem princípios diretores da ordem jurídica internacional que adquirem com o tempo a força de costume internacional, ou ainda propugnam pela adoção de princípios diretores, no ordenamento jurídico dos Estados. Diversas convenções internacionais na seara ambiental afirmaram a necessidade da adoção de medidas de precaução – como, por exemplo, as convenções que se referem às Doutora em Direito pela Universidade Paris I – Panthéon-Sorbonne, Professora de Direito Ambiental da Universidade da Cidade de São Paulo – UNICID, Professora convidada do Curso de Especialização em Engenharia Ambiental da Universidade de Campinas – UNICAMP. 1 O primeiro texto internacional que reconheceu o princípio da precaução foi a Carta Mundial da Natureza, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1982 (Declaração § 11). Posteriormente, este princípio foi retomado em diferentes convenções internacionais sobre a proteção do ambiente. Dentre as declarações e convenções internacionais onde há referências ao princípio da precaução, cite-se, por exemplo: a) a Declaração Ministerial adotada na Segunda Conferência Internacional para a Proteção do Mar do Norte (1987) (§ VII e XV.1) confirmada pela Declaração Ministerial adotada na Terceira Conferência Internacional, em 1990, para a proteção do Mar do Norte (preâmbulo); b) o Protocolo de Montreal referente a substâncias que destroem a camada de ozônio, em 1987 (preâmbulo e § 6 modificado em 1990) c) Convenção-quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 1992 (artigo 3(3)) (preâmbulo); d) Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 1992 (preâmbulo). ∗ substâncias destruidoras da camada de ozônio2 e às alterações climáticas3 – ou do próprio princípio da precaução – convenção da diversidade biológica4. Aliás, o Brasil assinou e ratificou as convenções que tratam dessas questões: a) o Protocolo de Montreal, referente a substâncias que destroem a camada de ozônio de 19875; b) a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas de 19926; c) a Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992.7 Contudo, as diferentes ordens jurídicas – internacional, “comunitária” e interna – não trazem uma única definição do princípio da precaução. Este artigo se aterá à análise de um desses campos, ou seja, a ordem jurídica interna, e buscará determinar os contornos do princípio da precaução, no ordenamento jurídico brasileiro, e suas formas de concretização. Em um primeiro momento, caberá distinguir ética, filosofia, atitude, enfoque ou abordagem de precaução do próprio princípio da precaução. A filosofia da precaução, baseada em uma ética das relações entre o homem, o meio ambiente, os riscos e a vida, encontra seu fundamento na consciência da ambigüidade da tecnologia e do limite necessário do saber científico. Se, por um lado, a pesquisa científica e as inovações tecnológicas trazem promessas, por outro, também trazem ameaças ou, pelo menos, um perigo potencial. Neste sentido, algumas indagações podem ser feitas: tudo o que é tecnicamente possível deve ser 2 As Partes do Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio afirmam que estão “decididas a proteger a camada de ozônio mediante a adoção de medidas cautelatórias para controlar de modo eqüitativo as emissões globais de substâncias que a destroem, com o objetivo final da eliminação destas, a partir de desenvolvimentos no conhecimento científico, e tendo em conta considerações técnicas e científicas”. 3 Dentre os princípios elencados no artigo 3º da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, encontra-se o item 3 que afirma que “As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima”. 4 No preâmbulo da Convenção sobre Diversidade Biológica, as partes declaram que “Observando também que, quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça”. 5 Decreto n° 99.280, de 6 de junho de 1990, promulga a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio. 6 Decreto n° 2.652, de 1° de julho de 1998, promulga a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, assinada em Nova York, em 9 de maio de 1992. 7 Decreto n° 2.519, de 16 de março de 1998, promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 5 de junho de 1992. realizado? Há necessidade de se refletir sobre os caminhos da pesquisa científica e das inovações tecnológicas. O princípio da precaução surge, assim, para nortear as ações, possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face das incertezas científicas. Explicitamente consagrado pelo ordenamento jurídico, como ocorre em direito internacional ou, por exemplo, no direito alemão ou francês, ou implicitamente fazendo parte da estrutura normativa, aflorando do artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de 1988, o princípio da precaução busca responder aos objetivos de segurança reforçada e à necessidade de regulamentação jurídica das dúvidas que advêm do desenvolvimento da ciência. Estabelecidas estas distinções, analisar-se-á a concretização deste princípio, ou seja, como ele é ou, ainda, como deve ser implementado, notadamente pela Administração e pelos magistrados. 1. Princípios de direito ambiental Antes de iniciar este estudo, é preciso preliminarmente apontar como os “princípios de direito ambiental” são definidos, no ordenamento jurídico brasileiro.8 Os princípios de direito ambiental constituem, como afirma Paulo Affonso Leme Machado, seu alicerce ou seu fundamento, orientando a geração do direito ambiental e sua implementação.9 Ou, ainda, como destaca Eckard Rehbinder, “os princípios guardam a capacidade, quando compreendidos como princípios jurídicos gerais, de influenciar a interpretação e a composição de aspectos cinzentos do direito ambiental”.10 Desta maneira, será analisado o princípio da precaução neste trabalho, ou seja, como um princípio geral do direito ambiental, que emerge do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 e é dotado de um caráter de generalidade11. Para determinar as condições e a forma de aplicação deste princípio, é necessário delimitar em primeiro lugar seus contornos. 8 Não será analisada neste artigo a discussão travada, há algumas décadas, entre juristas sobre princípios e regras. Destacar apenas que tanto Ronald Dworkin quanto Robert Alexy procedem a uma separação qualitativa entre regras e princípios, sustentando que não se trata apenas de uma distinção de grau de generalidade. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. 9 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 9a ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 43. 10 REHBINDER, Eckard: “Alllgemeine Umweltrecht” in SALZWEDEL, J. (org.) Grundzuge des Umweltrechts. Berlin, Erich Schmidt Verlag, 1982, p. 86 Apud DERANI, Cristiane, Direito ambiental econômico. 2ª ed. rev. São Paulo : Max Limonad, 2001, p.161. 11 “Os princípios gerais são regras de direito objetivo, não de direito natural ou ideal, expressos ou não nos textos, mas aplicados pela jurisprudência e dotados de um caráter suficiente de generalidade.” BERGEL, 1 – Da ética da precaução ao princípio da precaução Como ressalta François Ewald, a distinção entre ética da precaução e o próprio princípio da precaução é fundamental para que se possa precisar o conteúdo do princípio.12 A ética da precaução pode ser definida como uma moral universal que objetiva realizar um novo equilíbrio entre o homem e a terra: desenvolvimento sustentável. Mesmo que as interpretações a respeito do que se entenda por desenvolvimento sustentável sejam divergentes, é importante assinalar que ocorreu um processo de institucionalização da problemática ambiental, e as políticas públicas passaram a levar em conta a proteção ambiental.13 Alguns aspectos podem ser elencados como necessários para alcançar o desenvolvimento sustentável: os aspectos qualitativos do crescimento econômico, a interdependência do fluxo de matérias e energias, o ritmo de renovação dos recursos naturais, o respeito ao papel da diversidade biológica e a responsabilidade intergeracional.14 Esta filosofia da precaução não pode nem deve ser concebida como um obstáculo ao desenvolvimento, cujo escopo seja, pura e simplesmente, a abstenção de condutas e a condenação do poder tecnológico. Trata-se, na realidade, de objetivar que o desenvolvimento seja implementado de outra maneira, tendo como base o reconhecimento da própria relatividade do conhecimento científico. A filosofia da precaução pode ser assim traduzida como “um ato de fé na ciência e na tecnologia”15, buscando o conhecimento aprofundado do que já se sabe e desvendando o que ainda não se sabe. Não há a intenção de valorizar particularmente a incerteza, de privilegiar a ignorância; entretanto, a aplicação de um enfoque baseado na precaução, em uma filosofia da precaução, representa um convite a antecipar, conhecer e integrar esse Jean-Louis (trad. : GALVAO, Maria Ermantina). Teoria geral do direito. São Paulo : Martins Fontes, 2001, p. 109. 12 EWALD, François: “ Philosophie politique du principe de précaution” in EWALD, F./ GOLLIER, C. / DE SADELEER, N. Le principe de précaution. Que sais-je ? PUF, 2001, p. 45 e sgts. 13 NOBRE, Marcos : « Desenvolvimento sustentável : origens e significado atual » in AMAZONAS, Maurício de Carvalho/ NOBRE, Marcos (org.) Desenvolvimento sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: Ed. IBAMA, 2002, pp. 21-106. 14 PASSET, René: “Les imperatives du développement durable”, Pouvoirs Locaux n. 43, IV/1999, p.p. 6571. 15 (Nossa tradução, nosso grifo) EWALD, François: “ Philosophie politique [...]” in EWALD, F./ GOLLIER, C. / DE SADELEER, N., op.cit., p. 35. conhecimento incerto em uma conduta atual.16 A atitude de precaução se dirige, portanto, àqueles que têm um poder sobre o risco. Neste sentido, todos os atores políticos e sociais – em particular o Poder Público, os empreendedores e os pesquisadores – são chamados a refletirem sobre seus atos, sobre sua conduta17 e a integrarem não apenas em seu discurso, mas em suas práticas uma abordagem de precaução. A filosofia da precaução tem um duplo objetivo: a minimização e gestão dos riscos, bem como a aceitação da inovação.18 Assim, a lógica da precaução é inserida no processo de gestão dos riscos e também constitui uma condição da aceitação social desses riscos, cabendo à coletividade distinguir as tecnologias que devem ser desenvolvidas daquelas que devem ser vetadas. Daí a necessidade de um modelo de democracia ambiental19, baseado na transparência e na informação, permitindo que os atores sociais e políticos possam estabelecer um novo pacto social. Aliás, é importante assinalar que a Lei n° 10.650, de 16 de abril de 2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, possibilitando a qualquer indivíduo, independentemente da comprovação de interesse específico, ter acesso às informações de que trata a lei, cabendo ao órgão ou entidade estatal prestar a informação, no prazo de 30 (trinta) dias. O princípio da precaução, de acordo com François Ewald, expressa a vontade estatal na condução de determinada política em matéria de gestão de recursos ambientais e de proteção contra os riscos. Este princípio descreve as condições para a ação, deixando uma margem de escolha aos que devem implementá-lo. Ao analisar as políticas do meio ambiente, Nicolas de Sadeleer aponta a existência de três modelos distintos: um modelo curativo, um modelo preventivo e um modelo de antecipação.20 Este último é o chamado 16 Idem, p. 36. François EWALD considera que a atitude de precaução se dirige a todas as pessoas que tenham um poder sobre o risco em um sentido amplo, ou seja, “produtores, pesquisadores, peritos, poderes públicos, mas também aqueles que tenham o poder de criar – artificialmente – riscos: a mídia em particular e, in fine, o cidadão, cuja conduta pode ela mesma ser criadora de riscos”. (Nossa tradução) Idem, p. 40. 18 Idem, ibidem. 19 Philippe KOURILSKY e Geneviève VINEY afirmam que a construção de um modelo de democracia ambiental é a melhor resolução para situações de crise, em particular para equacionar a problemática referente aos organismos geneticamente modificados. KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Le principe de précaution. Rapport au Premier ministre, 29 novembre 1999. Paris : Editions Odile Jacob – La documentation française, 2000, p. 115. 20 DE SADELEER, Nicolas. Essaie sur la génèse et la portée juridique de quelques principes du droit de l’environnement. Thèse de doctorat, Faculté universitaire Saint-Louis, Faculté de droit, Belgique, 1998. 17 modelo de precaução e traz um novo paradigma que não supõe mais um conhecimento perfeito do risco, mas apenas a pressuposição de sua ocorrência.21 Tal modelo, como afirma o autor, apresenta-se sob a forma de uma ação preventiva antecipada em razão da incerteza e torna necessário que todos os riscos sejam apreciados, no processo decisório.22 Trata-se de um novo modelo de gestão da incerteza que inspira não apenas a política ambiental, mas também os campos de políticas públicas relacionadas à saúde e ao consumo.23 Nestas três esferas, aliás, o que se pretende é a gestão dos riscos oriundos das novas tecnologias. Poder-se-ia imaginar que se adota uma postura de desconfiança da ciência, mas na realidade apenas constata-se que os cientistas não têm respostas a todas as questões. Avaliar a incerteza na equação das decisões provoca a necessidade de repensar o modelo preventivo, baseado não apenas em questões de perigo, mas de risco e de um horizonte de longo prazo, levando-se em conta o direito das gerações futuras.24 Há necessidade de se desenvolverem políticas públicas, ou seja, “processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito”25, que tenham como fundamento a sustentabilidade. O conceito de sustentabilidade conduz à noção de uma gestão ambiental não apenas no espaço, mas também no tempo. É interessante ressaltar que Philippe Kourilsky e Geneviève Viney definem o princípio da precaução estritamente ligado à própria filosofia da precaução. Para estes autores, o princípio da precaução "define a atitude que devem tomar todos aqueles que adotam uma decisão relacionada à atividade, que se suponha possa comportar razoavelmente um perigo grave para a saúde ou para a segurança das gerações atuais ou futuras, ou para o meio ambiente. Impõe-se especialmente aos poderes públicos que devem fazer prevalecer os imperativos da saúde e da segurança sobre a liberdade comercial entre particulares e entre Estados. Conduz à adoção de todos os dispositivos 21 Idem, p. 108. Idem, pp. 108-109. 23 DE SADELEER : « Les avatars du principe de précaution en droit public : effet de mode au révolution silencieise ? » in Revue Française de Droit Administratif nº 17 (3) mai-juin 2001, pp. 548-549. 24 Jean-Pierre Beurier e Alexandre Kiss analisam a expressão « gerações futuras » e constatam a imprecisão da mesma. Como separar as gerações futuras das presentes? Como determinar quem faz parte da geração futura e da geração presente? Concluem os autores que a melhor expressão jurídica seria, na realidade, direito da humanidade. BEURIER Jean-Pierre/ KISS, Alexandre. Droit International de l’environnement. 2ème ed. Paris: Pedone, 2000, pp. 133-134. 25 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit, p. 264. 22 que permitam, por um custo econômica e socialmente suportável, detectar e avaliar o risco e reduzi-lo a um nível aceitável e, se possível, eliminá-lo, informando as pessoas e recolhendo suas sugestões sobre as medidas a serem implementadas. Este dispositivo de precaução deve ser proporcional à amplitude do risco e pode ser revisado a qualquer momento”. 26 Alguns autores brasileiros insistem em não fazer a distinção entre prevenção e precaução, distinção já consolidada em direito internacional do meio ambiente27, bem como em direito ambiental comparado28 e referem-se seja ao princípio de prevenção29, seja ao princípio de cautela30, como fórmula simplificadora. Tal posição, todavia, não se sustenta: o princípio da precaução, tal como foi consagrado no princípio 15 da Declaração do Rio, como bem salienta Álvaro Luiz Valery Mirra, “deve ser reconhecido como um dos princípios gerais do direito ambiental e integrante do ordenamento jurídico brasileiro”. 31 Em realidade, o princípio da precaução emerge do disposto no artigo 225 do texto constitucional de 1988, impondo aos operadores do direito a busca de respostas ao imperativo de segurança reforçada e a regulamentação das dúvidas nascidas da ciência, para que se possa garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto às presentes quanto às futuras gerações. Como assinala Norberto Bobbio, ao lado dos princípios gerais expressos, podem ser identificados os não-expressos, que têm como objetivo colher o espírito do sistema.32 É o caso do princípio da precaução, que decorre do direito de todos, gerações presentes e futuras, a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Portanto, o espírito da sistemática da proteção ambiental, consagrado no 26 (Nossa tradução). KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève Op.cit., p. 151. BEURIER Jean-Pierre/ KISS, Alexandre.Op.cit., p. 121 e sgts. 28 Aplicação do princípio da precaução pela jurisprudência administrativa francesa cf. ANDRIANTSIMBAZOVINA Joel : « Le Conseil d’Etat et le principe de précaution: l’affaire du maïs transgénique », Droit Administratif – Editions du Juris-classeur nº 6, juin 1999, p. 4-8. 29 É a posição adotada por Edis MILARÉ que, apesar de não descartar a diferença possível entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução, prefere adotar a fórmula do princípio da prevenção, englobando a precaução. MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.102. 30 Paulo de Bessa ANTUNES refere-se ao princípio da prudência ou da cautela, realizando uma confusão entre os princípios da prevenção e da precaução. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 1999, p.28-29. 31 MIRRA, Álvaro Luiz Valery: “Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial” in Revista de Direito Ambiental nº 21, jan.-mar/2001, p. 101. 32 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. (SANTOS, Maria Celeste C.J. – tradução) Brasília: Editora UNB, 1999, p. 159. 27 texto constitucional, abriga este princípio, que se resume, como assinala Cristiane Derani, “na busca do afastamento - no tempo e no espaço - do perigo, na busca também da proteção contra o próprio risco e na análise do potencial danoso oriundo do conjunto de atividades”.33 O objetivo do afastamento do próprio risco constitui o objetivo da proteção e gestão ambiental, na medida em que o que se deseja é assegurar o meio ambiente equilibrado para todos. O risco representa uma “possibilidade de perigo”34, quer dizer, há um perigo mais ou menos previsível. O perigo pode ser definido como uma “situação de fato da qual decorre o temor de uma lesão física ou moral a uma pessoa ou uma ofensa aos direitos dela”.35 Trata-se de uma situação que inspira cuidado, quer dizer, há uma ameaça ou exposição da segurança ou da própria existência de uma pessoa ou mesmo de uma coisa. O risco pode ser hipotético ou certo. A partir da caracterização do risco hipotético e do risco certo é possível realizar a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção. Pode-se afirmar que “o conteúdo cautelar do princípio da prevenção é dirigido pela ciência e pela detenção de informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco fornecido pela atividade ou comportamento que, assim, revela situação de maior verossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da precaução”.36 Entretanto, não se trata de imaginar que os riscos hipotéticos sejam menos plausíveis. Na verdade, são as probabilidades que não têm a mesma natureza: “no caso da precaução, trata-se da probabilidade de que a hipótese seja exata; no caso da prevenção, o perigo está estabelecido e trata-se da probabilidade do acidente”.37 É justamente a determinação do risco hipotético que é delicada: “o risco é criado pela hipótese e não pode teoricamente ser nulo, exceto se a operação intelectual que o declarou admissível anule este risco, decidindo que a hipótese deva ser negligenciada”.38 Decidir que uma 33 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2ª ed. rev. São Paulo : Max Limonad, 2001, p.170. Idem. 35 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999. 36 AYALA, Patryck de Araújo/ LEITE José Rubens Morato. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 62-63. 37 (Nossa tradução). KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Op.cit, p. 18. 38 (Nossa tradução) Idem, p. 17. 34 hipótese deva ser negligenciada é uma decisão que deve ser tomada pelo conjunto dos atores da sociedade.39 A questão do princípio da precaução não se resume em determinar quais são os riscos que determinada sociedade deseja correr. Na verdade, o princípio da precaução está também intimamente ligado ao próprio questionamento da razão de determinada atividade40, ou seja, os objetivos de toda e qualquer atividade só serão legítimos se buscarem construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos.41 O princípio da precaução pode, portanto, ser definido como uma nova dimensão da gestão do meio ambiente na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos. Diante dos progressos tecnológicos das sociedades contemporâneas, o princípio da precaução busca implementar uma lógica de segurança suplementar que vai além da ótica preventiva e questiona a razão do desenvolvimento das atividades humanas, em função de uma melhora qualitativa de vida para o homem, no presente e no futuro. Ele constitui o fio condutor da lógica da proteção ambiental, da defesa e da preservação do meio ambiente para as gerações presentes e vindouras. 2 – A concretização do princípio da precaução O princípio e a ética da precaução podem ser concretizados, como afirma François Ewald, mediante procedimentos de precaução que implementarão técnicas de precaução, organizando as relações entre a administração e os atores da sociedade civil.42 Neste sentido, é interessante observar algumas pistas que pode fornecer a Comunicação relativa ao princípio da precaução, adotada em 2 de fevereiro de 2000, pela Comissão 39 Ulrich BECK, ao analisar as sociedades contemporâneas, afirma que a produção social das riquezas é sistematicamente acompanhada de uma produção social dos riscos. BECK, Ulrich. La société du risque. Sur la voie d'une autre modernité (trad. de l'allemand par L. Bernardi). Paris : Aubier, 2001. 40 DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 172 41 Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: art. 3º, incisos I, II, III e IV da Constituição Federal de 1988. “Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, considerando que o objetivo primordial do processo é o atingimento da Justiça Social. Nos casos em que está em jogo o direito ambiental, não é preciso que se tenha demonstrado através de prova científica e de precisão absoluta. Havendo indícios suficientes de que ocorrerá dano ambiental, bastando o risco de que o mesmo seja irreversível para que não se deixem para depois as medidas efetivas de proteção ao meio ambiente. Deve o julgador dar solução mais justa e favorável ao ambiente, em beneficio de todos os jurisdicionados. (TJRJ - Apelação da Ação Civil Pública nº 1999.001.19840 – 18ª Cam. Civ. – rel. Jorge Luiz Habib – j. 14.03.2000) 42 François EWALD: « Philosophie politique [...] », op.cit., p. 45. Européia para a concretização do princípio da precaução. Essa Comunicação informa como a Comissão pretende adotar o princípio e estabelecer diretrizes para sua aplicação, em matéria de proteção do ambiente, abrangendo igualmente a proteção da saúde das pessoas e dos animais, bem como a proteção vegetal.43 Tais medidas devem ser proporcionais ao nível de proteção que foi escolhido e não devem ser discriminatórias em sua aplicação. Elas também devem ser coerentes com medidas semelhantes já tomadas, baseando-se numa análise das potenciais vantagens e encargos da ação ou da ausência de ação. Não há previsão de um sistema estático, ou seja, estas medidas devem estar sujeitas a uma revisão à luz de novos dados científicos. Em relação à responsabilidade da produção de resultados científicos para uma análise de riscos mais detalhada, há possibilidade de que ela seja atribuída, tanto ao empreendedor quanto às autoridades administrativas. O objetivo não é politizar a ciência, nem aceitar um nível zero de risco, mas proporcionar uma base de ação sempre que a ciência não puder dar uma resposta clara e precisa. Pode-se considerar que, no Brasil, a exigência constitucional de realização de estudo prévio de impacto ambiental para obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente vai nesse sentido.44 Em outras palavras, a existência da possibilidade de obras e atividades causarem degradação ambiental submete esses empreendimentos à realização de estudo prévio de impacto ambiental. A exigência de estudo prévio de impacto ambiental, para instalação de obra ou atividade, potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, é constitucional – inciso IV do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Nesse momento, poderão ser levantadas as dúvidas e incertezas quanto aos riscos dessa atividade ou dessa obra e aos danos hipotéticos que poderia causar como também de sua real necessidade para a melhoria das condições da qualidade de vida da população brasileira. O estudo de impacto ambiental proporciona, portanto, uma base de ação para a administração pública. 43 Esta Comunicação relativa ao princípio da precaução completa o Livro Branco sobre a Segurança Alimentar, bem como o acordo obtido em Montreal sobre o Protocolo de Cartagena relativo à Biossegurança. Destaque-se que, normalmente, as referências, implícitas ou explícitas, ao princípio da precaução são realizadas no campo da saúde, da alimentação e do meio ambiente. 44 Inciso IV do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 : “IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental”. Pode-se indagar em que momento seria possível invocar o princípio da precaução. A Comunicação da Comissão preconiza que isto é possível, desde que seja realizada uma avaliação do risco, permitindo concluir que há possibilidade de impacto de um perigo sobre o meio ambiente ou a saúde humana.45 A estruturação da análise dos riscos deverá incluir três elementos: avaliação de riscos, gestão de riscos e comunicação de riscos. Distingue-se a decisão, de natureza eminentemente política, de agir ou não agir, e as medidas resultantes do recurso ao princípio da precaução, que devem respeitar os princípios gerais aplicáveis a qualquer medida de gestão de riscos. É lógico que mesmo o recurso às medidas de precaução dependerá de uma escolha política. Mas toda e qualquer escolha política deve estar pautada nos objetivos da República Federativa do Brasil, ou seja, deve buscar o desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos, ou seja, a satisfação das necessidades básicas, a elevação do nível de vida de todos, a obtenção de ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e a construção de um futuro mais próspero e seguro46. Dentre as técnicas e dispositivos de avaliação, é possível citar: a) a definição de padrões de precaução, quer dizer, a pesquisa dos riscos das atividades que potencialmente impliquem riscos e adoção de parâmetros e procedimentos diante desses riscos; b) a adoção de uma atitude ativa em face dos riscos: a necessidade de desenvolvimento de pesquisa científica e técnica aplicada, o que implica a previsão orçamentária de verbas públicas para as instituições de ensino e pesquisa e a ampliação da capacidade de pesquisa do país; c) o desenvolvimento das perícias em matéria de riscos, passagem obrigatória para decisões públicas, sobretudo em matéria ambiental, onde existem inúmeras variáveis interativas; 47 d) o incremento de técnicas de controle, vigilância e “traçabilidade”, visto que a própria sociedade se torna um grande laboratório.48 45 Commission des Communautés Européennes. Communication de la Commission sur le recours au principe de précaution. Bruxelles 02.02.2000, COM(2000) 1 final, p.13. 46 Estes aspectos são elencados no Preâmbulo do Capítulo 1 da Agenda 21, como fundamentais para alcançar o desenvolvimento sustentável. 47 MONEDIÈRE, Gerard: “Qualification matérielle et qualification juridique des faits: expertise et droit de l’environnement” in Actes du Seminaire de l’Institut Fédératif “Environnement et Eau” – Limoges, 5 avril 2000: Incertitude juridique, incertitude scientifique. Limoges : PULIM, 2001, p.107-140. A implementação deste princípio encontra-se associada à proporcionalidade, à proteção ambiental e à determinação de escalas do risco. A proporcionalidade pode ser definida como uma regra de interpretação e aplicação do direito, que é utilizada especialmente em casos em que “um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais. (...) Para alcançar este objetivo, o ato estatal deve passar pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, em sentido estrito”.49 Isto significa que o primeiro exame deve ser o da adequação, ou seja, devem-se buscar meios para que se alcance o desenvolvimento sustentável e para que os riscos sejam minimizados. A avaliação científica fornece uma base para que o princípio da precaução venha a ser implementado, pois são as conclusões desta avaliação que determinarão o nível adequado de proteção. E mesmo que não haja prova científica da existência de uma relação de causa e efeito, os atores políticos devem avaliar as conseqüências potenciais da falta de uma determinada ação sobre o meio ambiente e a saúde humana. A necessidade de atuação do poder público deve ser pautada em um exame comparativo. E, finalmente, o exame da proporcionalidade em sentido estrito deve pautar-se na dimensão do “peso”, isto é, do “valor” dos princípios que venham a colidir. Deve-se ponderar entre os objetivos a serem alcançados por determinada atividade e as escalas do risco, estabelecendo-se uma ordem de prioridades em função das incertezas que caracterizam o próprio princípio da precaução. É evidente que serão os valores da sociedade que determinarão a ordem de prioridades e, neste sentido, a proteção do meio ambiente e da saúde humana, e da vida, em última análise, deve ser colocada como valor absoluto, pois a vida não tem preço. A implementação do princípio da precaução pelos magistrados requer que seja assumida uma nova postura, visto que há “necessidade de decidirem com base em 48 “A precaução faz cair a barreira entre laboratórios e sociedade, experiência e experimentação. A sociedade torna-se por si mesma um imenso laboratório. Nós experimentamos ao vivo e a cores. Nós somos todos, em face do risco presumido, ao mesmo tempo experimentador e experimentados. Sábios e cobaias”. (Nossa tradução). François EWALD: « Philosophie politique [...] », op.cit., p. 53. 49 Luís Virgílio Afonso da SILVA, ao realizar uma análise da regra da proporcionalidade, demonstra a diferença quanto à origem e à estrutura das regras de proporcionalidade e razoabilidade. A regra da proporcionalidade possui elementos de sua estrutura que são independentes (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito) e aplicados em uma ordem pré-definida. SILVA, Luís Virgílio Afonso da: “O proporcional e o razoável”, Revista dos Tribunais nº 798, abril de 2002, p. 24. probabilidades – na noção de probabilidade incluída a idéia de risco sério e fundamentado – para impedir, fazer cessar ou reparar degradações ambientais, abandonando-se o ideal de certeza na apuração da lesividade apontada”.50 Não se trata de garantir o risco zero, ou seja, desde que haja uma mera suposição de um risco, deve-se adotar uma moratória ou abster-se definitivamente, o que significaria pautar-se em uma concepção radical deste princípio.51 Também não há que se defender uma concepção minimalista que determina a aplicação do princípio da precaução apenas em presença de um risco provável e de natureza a provocar danos graves e irreversíveis, reduzindo sua utilidade.52 Uma posição intermediária requer que os magistrados identifiquem e extraiam o princípio da precaução do artigo 225 do texto constitucional e o apliquem, desde que uma hipótese de risco cientificamente plausível seja admitida por parte significativa da comunidade científica, no momento em que a decisão esteja sendo tomada. Como assinala Antonio Gordillo Canas, “a constitucionalização dos valores básicos e dos princípios deles derivados não somente coloca o juiz no marco necessário de uma jurisprudência de valores, senão que acolhe o fundamento básico e assinala o sentido inspirador nos quais deverá desenvolver-se o exercício do poder legislativo”.53 Cabe, portanto, aos magistrados assegurarem a concretização do princípio da precaução, para que seja assegurado a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por meio de levantamento jurisprudencial, Ana Carolina Casagrande Nogueira constata, todavia, que a aplicação desse princípio pelos tribunais brasileiros ainda é reduzida, sendo comuns decisões judiciais que não impõem a obrigação de fazer ou negam a existência de responsabilidade com fulcro da inexistência da comprovação do risco de lesão ou dano efetivo ao meio ambiente e à saúde. Mas isto não significa a total ausência do princípio da precaução, nas decisões do judiciário brasileiro.54 Tal princípio vem sendo utilizado na fundamentação de decisões judiciais que tratam de questões de 50 MIRRA, Álvaro Luiz Valery: “Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial” in Revista de Direito Ambiental nº 21, jan.-mar/2001, p. 102. 51 KOURILSKY, Philippe e VINEY, Geneviève. Op. cit., p. 139. 52 Idem, p. 139-140 53 CANAS, Antonio Gordilho Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 262. 54 NOGUEIRA, Ana Carolina Casagrande: “O conteúdo do princípio da precaução, no direito ambiental brasileiro” In BENJAMIN, Antonio Herman (org.) Anais do 6º Congresso Internacional de Direito Ambiental, de 03 a 06 de junho de 2002: 10 anos da ECO-92: O Direito e o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: IMESP, 2002, pp. 302-306. incertezas e às vezes, mesmo sem referência expressa ao princípio, são determinadas medidas de precaução.55 A titulo de ilustração, cite-se a ementa do Tribunal Federal da 1ª Região, que consagra o princípio da precaução: “DIREITO AMBIENTAL. HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ. ANÁLISE INTEGRADA. NECESSIDADE DO ESTUDO DO IMPACTO AMBIENTAL EM TODA A EXTENSÃO DO RIO, E NÃO POR PARTES. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. 1. O Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, envolvendo realização de obras de engenharia pesada, construção de novos portos e terminais, ampliação dos atuais, construção de estradas de acesso aos portos e terminais, retificações das curvas dos rios, ampliação dos raios de curvatura, remoção dos afloramentos rochosos, dragagens profundas ao longo de quase 3.500 km do sistema fluvial, construção de canais, a fim de possibilitar uma navegação comercial mais intensa, como o transporte de soja, minério de ferro, madeira etc, poderá causar grave dano à região pantaneira, com repercussões maléficas ao meio ambiente e à economia da região. É necessário, pois, que se faça um estudo desse choque ambiental em toda a extensão do Rio Paraguai até a foz do Rio Apa. 2. Aplicação do princípio que o intelectual chama da precaução, que foi elevado à categoria de regra do direito internacional, ao ser incluído na Declaração do Rio, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - Rio/92. “Mais vale prevenir do que remediar”, diz sabiamente o povo.......”56 Conclusão O princípio da precaução aflora do próprio artigo 225 do texto constitucional de 1988 e constitui um princípio geral do direito ambiental que define uma nova dimensão da gestão do meio ambiente, na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos. O não respeito a este princípio, ou seja, o não afastamento do perigo que um conjunto de atividades possa vir a causar, tanto para as gerações presentes quanto para as gerações futuras, comprometendo o direito de todos ao meio ambiente 55 Idem, ibidem. TRF 1ª Região – 29.03.2001 – rel. Tourinho Neto – PETIÇÃO 2001.01.00.001517-0/MT – Processo na Origem: 200036000106495 56 ecologicamente equilibrado, constitui flagrante descumprimento ao mandamento constitucional. Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. ANDRIANTSIMBAZOVINA Joel : « Le Conseil d’Etat et le principe de précaution: l’affaire du maïs transgénique », Droit Administratif – Editions du Juris-classeur nº 6, junho de 1999 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 1999 AYALA, Patryck de Araújo e LEITE, José Rubens Morato. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002 BECK, Ulrich. La société du risque. Sur la voie d'une autre modernité (trad. de l'allemand par L. Bernardi). Paris : Aubier, 2001. BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo : Martins Fontes, 2001, p. 109. BEURIER Jean-Pierre e KISS, Alexandre. 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Um grande número de traços o caracterizam: capacidade de criar riscos irreversíveis em série, cujos efeitos são sentidos muito tempo depois da causa; vontade do público de gozar de toda sua esperança de vida, afirmação da saúde pública como “interesse público peremptório”2; aversão ao risco criado por outrem, apesar do gosto pelas “condutas arriscadas”. Deste conjunto ainda desorganizado, saiu a idéia de que a preservação da saúde e as técnicas de gestão dos riscos tornaram-se um elemento importante da ação política. Certos autores vêem na sociedade "um sistema de distribuição de risco", espantosa recomposição do suum cuique tribuere de Aristóteles3. Quando a precaução é acrescentada à prevenção, tenta-se não somente reduzir os riscos, mas também assegurar uma partilha mais imparcial, assim como achar as técnicas políticas que permitem decidir se vale a pena correr tais riscos e sob quais condições. * A presente contribuição, que vai além de uma simples transcrição da conferência de Marie-Angèle Hermitte, é o fruto de um trabalho, efetuado no âmbito de uma pesquisa financiada pelo programa do CNRS, Riscos coletivos e situações de crises , sob a direção de C. Gilbert. M.-A. Hermitte é Diretora de Pesquisa no CNRS, Diretora de Estudos no EHESS; V. David prepara uma tese sobre “o conceito de autorização de comercialização de acordo com o princípio de livre empreendimento”. NDA : Originalmente, parecia simples evocar o que o direito poderia dizer da avaliação dos riscos. Ao longo do processo de trabalho, o assunto mostrava-se muito abrangente e tudo parecia estar ainda em andamento. É a razão pela qual este artigo só pode ter a ambição de abrir caminhos, embora cada um deles merecesse um estudo próprio. Agradecemos a G. Canselier, D. Degroote, J.-M. Legay, V. Leroy e C. Noiville suas releituras críticas do texto. [As autoras, neste texto, fazem referência a várias instituições públicas. Deve-se levar em consideração que se tratam de instituições francesas]. 1 B. Wynne mostra que o período em que os criadores do programa nuclear do Reino Unido admitiram ter corrido riscos importantes permanece em suas memórias como “uma das idades de ouro do espírito de decisão” in. Godard (dir.), Le principe de précaution dans la conduite des affaires humaines. Paris: MSH e INRA, p. 152. 2 Decisão do Tribunal de Primeira Instância C.E, 15 de setembro de 1998, INFRISA, caso T-136/95, Rec. II-3303 ; a saúde como imperativo é quase sempre ligada à proteção do meio ambiente, cuja diferenciação é complicada. Ver M.-A. Hermitte. “Santé, environnement. Pour une deuxième révolution hygiéniste” in Les hommes et l’environnement, Hommage à Alexandre Kiss, ed. Frison-Roche, 1998, p. 23. 3 G. Hériard-Dubreuil. “Action distribuée et risque”, Revue Risques, setembro de 1995. O princípio da precaução é muito provavelmente a conseqüência jurídica de quatro influências intelectuais. Referindo-se a H. Jonas, insiste-se sobre o princípio moral de responsabilidade frente às futuras gerações, percebido, de acordo com J. Patocka, tanto como um mecanismo que releva o Estado, quanto um mecanismo que implica o cidadãoindivíduo. J. Habermas está muito presente, na filosofia do debate público e permanente4 ; finalmente, num plano epistemológico, insiste-se sobre a parte de incerteza que permanece, apesar do desenvolvimento dos conhecimentos científicos, e também sobre a contestação em detrimento da idéia de verdade científica e objetiva5. A partir dali, tornava-se lógico perguntar-se como fundamentar uma decisão política que envolve a vida das pessoas, num contexto de incerteza científica. Disso resultou uma reorganização das instituições políticas ligadas a diversos comitês, comissões, agências, cujo papel é de assegurar a preparação técnica da decisão política. Essas novas instituições exercem com certeza uma atividade científica a serviço da decisão política, mas seu próprio funcionamento é estruturado para escolhas políticas, das quais não se fala: modalidades de designação dos peritos, regras de produção, difusão e conservação dos dados, definição mais ou menos ampla do que vai ser avaliado. Mais precisamente, o risco de transmissão do gene de uma planta geneticamente modificada para seus parentes naturais, as conseqüências dessa transmissão sobre o uso de herbicidas, inseticidas, o impacto sobre os lençóis freáticos, a liberdade dos agricultores em cultivar o que querem, sua autonomia em relação à agroquímica6? 4 Sobre a função da argumentação, ver P. Breton e G. Gauthier, Histoires des théories de l’argumentation, La Découverte, Repères, 2000 ; J. Elster, Argumenter et négocier dans deux Assemblées constituantes, Rev. Fr. De sc. Pol., 44 no 4-1994, p. 579. Sobre a permanência do debate e o caráter sempre aberto das decisões, pensar que todas as regulamentações que organizam a avaliação dos riscos institucionalizam “a adaptação à mudança técnica” por um lado; por outro, a obrigação de levar ao conhecimento todo e qualquer elemento novo e pertinente, uma vez que o produto foi colocado no mercado (sobre a análise incorreta desta obrigação pela Corte Européia de Justiça, ver CJCE, 21 de janeiro de 1998, caso C-120/97, Upjohn v. LCA, Rec. I-223). Enfim, a evolução da percepção dos riscos pelo público é outro fator de não encerramento dos debates. Ver. M.Callon, Des différentes formes de démocratie technique, Annales des mines, janeiro de 1998, p.63 ; O. Godard, Le principe de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et démocratie, in. Philosophie politique, PUF, maio de 2000, p. 17, V e VI partes. 5 J.-M. Legay, L’expérience et le modèle, ed. INRA, 1997. Ele lembra como K. Popper obriga a sair “do otimismo epistemológico de Descartes”, p. 14, ver também La vérité est-elle scientifique ? Seminário interdisciplinar do Collège de France, Paris, 1991, Ed. Universitaires. 6 Foi assim que as reflexões, no que diz respeito à epidemia de listeriose, de janeiro de 2000, abordaram superficialmente uma questão importante. Os operários acusados de terem feito greve no momento em que o germe começou a desenvolver-se responderam que a falta de segurança podia muito bem ter vindo dos cortes de pessoal que haviam sido decididos pela direção (de 135 para 90), assim como da terceirização de Vamos discutir aqui o que se considera geralmente como a parte científica da avaliação, para mostrar que, mesmo nessa aceitação reduzida, a avaliação dos riscos num contexto de incerteza é uma questão política e jurídica e não tão somente uma problemática de método e de ontologia científica. Aliás, foi o que afirmou o Órgão de Solução das Controvérsias (OSC) da OMC, na questão dos hormônios: enquanto a competência do OSC limita-se às questões de direito, estatuiu sobre a objetividade da avaliação dos riscos conduzida pelas autoridades européias, fazendo da objetividade uma questão de direito. Em relação à questão, ele estabelece que o problema é de saber se a adoção desta ou daquela norma pelo Codex é uma questão de fato, assim como a credibilidade de um elemento de prova e a importância que se deve dar-lhe. Mas a “compatibilidade ou incompatibilidade de um fato ou de um determinado conjunto de fatos com as prescrições de uma determinada disposição convencional é, entretanto, uma questão de qualificação jurídica ou trata-se de uma questão de direito. A questão de saber se um grupo especial procedeu ou não a uma avaliação objetiva dos fatos (…) é também uma questão de direito” 7. O sistema político, pois, está diante da necessidade de reconstruir um mecanismo que permita avaliar os fatos científicos e técnicos, para que a avaliação possa permitir uma decisão política conforme os padrões democráticos. É preciso chegar ao “conteúdo decisório dos conhecimentos”8, produzir os conhecimentos científicos com 9 procedimentos que permitam o julgamento de terceiros . Em seu livro sobre a perícia judicial, D. Bourcier e M. de Bernis observaram até que ponto suas perguntas sobre esta mistura da ciência com o direito pareceram certos serviços, L’Humanité, de 11 de janeiro de 2000. Sabe-se que a terceirização de certas tarefas é considerada como fator de insegurança. 7 Ponto 132. OSC, 16 de janeiro de 1998, WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R. Aliás, a OSC vai além, afirmando “Ignorar, falsificar e deformar os elementos de prova (…) implica um erro fundamental que coloca em dúvida a boa-fé de um grupo especial (…) ; (isto equivale) a alegar que o grupo especial recusou para a parte que forneceu os elementos de prova a eqüidade elementar, ou o que é conhecido em muitos sistemas jurídicos como os direitos de defesa ou justiça natural” ponto 133. 8 W. Dab, La décision en santé publique, ENSP ed., 1993. 9 Ver a maneira com a qual E. Cadeau constituiu, em sua tese, o medicamento como “objeto da ordem pública”, in. Le médicament en droit public. Sur le paradigme de l’apothicaire, Tese, Nantes, 1997. Ele fala, com justa razão, “de objetivação jurídica de um produto científico” e mostra que foi por causa da existência do risco que o direito interveio. subversivas e provocadoras para seus interlocutores10. Entretanto, o direito positivo já consagrou a passagem do conhecimento de uma esfera metajurídica para uma esfera jurídica. Os textos que organizam a avaliação dos riscos têm, em sua integralidade, um valor jurídico obrigatório enquanto os aspectos técnicos estavam, há muito tempo, contidos em textos sem valor jurídico: o direito francês era assim, pois estava inserido em instruções ministeriais que estabeleciam que não podiam ser consideradas como textos normativos, “os campos científicos, técnicos e tecnológicos, não podendo, por natureza, ser objeto de regras rígidas e absolutas”11. Os anexos técnicos encontram-se hoje no centro da obrigação jurídica. É por isto que a avaliação dos riscos, que é em princípio um momento essencialmente científico, se fundamenta no princípio da precaução e em um raciocínio jurídico. No entanto, o movimento não acabou: se a avaliação está por toda a parte, ela não é muito bem definida e as escolhas que ela fundamenta repousam sobre bases que permanecem freqüentemente implícitas12. Além do mais, ela supõe a existência de dados considerados “disponíveis e confiáveis”, ainda que a produção desses dados esteja pouco organizada, o que provoca vieses e lacunas que o tomador de decisões não perceberá. 1. A avaliação dos riscos como elemento do sistema político O dicionário define a avaliação como “a atribuição de um valor”, originalmente em dinheiro, e estende-se à apreciação de uma quantia, distância, qualidade ou oportunidade. A palavra aplica-se a operações que implicam uma aproximação, uma subjetividade, um risco de erro ou um julgamento. A avaliação contemporânea dos riscos permanece presa a esta subjetividade. Por causa desta parte incompreensível de julgamento, distinta do ato político que constitui a decisão de correr riscos, não é estranho que a avaliação dos riscos seja uma atividade de serviço público, mesmo que ela possa ser repassada, em parte, para a iniciativa privada. E. Cadeau enuncia a idéia de que a reorganização dessa atividade cria novas relações entre os cidadãos, os operadores, os 10 D. Bourcier e M. de Bernis, op. cit., p. 97 ; ver também, num formato mais técnico, G. Bourgeois, P. Julien e M. Zavaro, La pratique de l’expertise judiciaire, Litec, 1999. 11 Instrução de 1978 sobre as práticas corretas em matéria de medicamentos, citada por C. Maurain e G. Viala, in Droit Pharmaceutique, fasc. 31-10. 12 O raciocínio sobre esta parte implícita encontra-se no centro do pré-citado artigo de B. Wynne. poderes públicos e as mídias, levando a um novo “contrato social”13. A responsabilidade da avaliação e da gestão dos riscos é, efetivamente, da responsabilidade dos poderes executivos que se apóiam, para isto, sobre várias instituições técnicas e científicas, públicas e privadas, o que permite assegurar a preparação da decisão14. Após ter mostrado a diversidade das funções, atribuída à avaliação dos riscos em relação ao princípio da precaução e seu posicionamento ambíguo em relação à gestão, observar-se-á que os textos evitam, muitas vezes, tomar posição frente às escolhas políticas que estruturam a operação e contentam-se em enumerar os elementos que devem ser caracterizados para proceder à avaliação. i) Avaliação e precaução Se o princípio da precaução é um modo de decisão que pesa sobre o cálculo de risco em situação de incerteza científica, parece razoável apoiá-lo sobre uma avaliação prévia da situação, avaliação teórica e experimental que permite reduzir a incerteza, assim como situar a incerteza residual de forma a calculá-la. A idéia de que o princípio da precaução implica um “princípio prévio de avaliação” é objeto de um acordo bastante amplo15. Todavia, as funções atribuídas a este princípio prévio são diversas, até mesmo divergentes. Com efeito, para alguns, é uma exigência de racionalidade de uma decisão que pode permanecer elitista; para outros, a evidência das incertezas permite efetuar uma escolha clara, consciente, talvez democrática. Enfim, para outros ainda é um simples meio de confiar a uma instância científica a resolução dos conflitos ligados ao desenvolvimento do livre comércio, sendo que essas funções não excluem umas às outras. (a) Avaliação e racionalidade da decisão 13 É um ponto importante, tanto em relação à organização do sistema que contrata os serviços de empresas públicas e, cada vez mais, do modelo da Agência, quanto ao regime jurídico de direito público ao qual são submetidos aqueles que colaboram nesta tarefa, assim como ao particularismo do direito da responsabilidade que resulta dele. Ver J.-F. Narbonne, Evaluation et gestion des risques pour la sécurité des aliments, in Préventique, março-abril de 2000, p.42, Guide de fonctionnement de l’AFSSPS, junho de 2000. 14 Se estamos falando “dos” poderes executivos é porque há uma complexidade de articulação dos níveis nacional, regional e internacional da decisão. 15 D. Tabuteau, La sécurité sanitaire, une obligation collective, un droit nouveau, Rev. Fr. des aff. soc., número 3-4-1997 ; M.-A. Hermitte, in O. Godard, p. 189 e s. ; D. Bourcier e M. de Bonis dizem, de forma bonita, que a colaboração entre o perito e o juiz, longe de resolver as “as falhas a julgar”, tem por efeito “estigmatizar as controvérsias em torno do que seria a verdade. Neste jogo, a justiça procurou manter sua verdade por meio das incertezas do saber”. O relatório Kourilsky-Viney resume bem uma opinião comumente compartilhada: a avaliação dos riscos é “a etapa essencial da racionalização dos riscos que deve levar a separar os riscos potenciais do delírio e da simples apreensão”16. Com um ponto de vista mais crítico que aquele de Kourilsky, M. Callon e P. Lascoumes observam também que o princípio da precaução leva a um retorno ao racionalismo por causa da solidificação do modelo da avaliação clássica dos riscos, da perícia e da contraperícia17. Entretanto, a ligação entre atividade científica e racionalidade não é evidente, como o sugerem D. Bourcier e M. de Bonis, para as quais a perícia, no caso judiciária, seria somente um ato de interpretação, enquanto o magistrado solicitaria, sobretudo, uma “formatação científica de suas intuições”. A observação é exagerada, mas não é incorreta. Em sua essência, o direito positivo não vai além da idéia de que o conhecimento é, de forma geral, a fundamentação da decisão racional. A OMC, cujo objeto é proibir as medidas de estado que visam restringir a liberdade do comércio, reconhece que tais medidas podem ser legítimas, caso se apóiem “sobre a base de uma avaliação dos riscos”18. Para o Órgão de Solução das Controvérsias (OSC) da OMC, “os resultados da avaliação dos riscos justificam suficientemente – quer dizer que sustentam de forma razoável – a medida SPS que está em jogo. A prescrição que pretende que uma medida SPS seja estabelecida sobre a base de uma avaliação dos riscos é uma prescrição relacionada com a substância, pois deve haver uma relação lógica entre a medida e a avaliação dos riscos19. Com a mesma lógica, afirma que o risco sobre o qual se quer 16 P. Kourilsky e G. Viney, Le principe de précaution, rapport au Premier ministre, O. Jacob et la Documentation française, p. 41 ; mede-se o caminho percorrido desde o apelo de Heidelberg (Natures, Sciences, sociétés, número 1-1993, p. 70), mesmo se o conjunto da ciência oficial está longe de compartilhar a idéia de que este princípio possa ser racional ; ver C. Hervé que afirma, sem esforço demonstrativo, preferir o “princípio de vigilância” no lugar do princípio da precaução, que levaria “à paralisia. Pois se tem medo de um risco que não se pode anular, então decide-se não corrê-lo. É irracional (…). Mais vale adotar o princípio de vigilância baseado na racionalidade: sabe-se que o controle não é total, calculam-se os riscos, então instalam-se pontos de referência, sistemas de vigilância…”. Assim, ele descreve bem o que é instalado em nome do princípio da precaução! L’Usine Nouvelle, hors série, junho de 2000. O debate entre a ciência e a racionalidade é melhor esclarecido por E. Husserl, La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale, Paris, Gallimard, 1976, e J. Habermas, La technique et la science comme idéologie, Paris, Gallimard, 1973. 17 M. Callon e P. Lascoumes, Décider sans trancher, incertitudes et contreverses, Seuil, 2000 ; O. Thébault, Les choix collectifs de conservation des ressources marines vivantes – récifs coralliens et grands cétacés – These EHESS, 1998. O autor questiona o modelo de gestão científica das pescas como representação pertinente da realidade dos processos de decisão e mostra como, de fato, a decisão é construída. 18 Ver, por exemplo, os artigos 2-2 e 5 do acordo SPS sobre as medidas fitossanitárias. 19 OSC, Japão – Medida visando aos produtos agrícolas, WT/DS18/AB/R, 22 de fevereiro de 1999. apoiar uma medida restritiva para importações deve ser um risco “averiguável, não sendo a incerteza teórica um tipo de risco que deva ser avaliado nos termos do artigo 5-1”20. Entretanto, é possível mostrar que não existe equivalência entre risco teórico, que resulta de uma modalidade científica, e risco ‘fantasmagórico’21. A adesão das jurisdições, em virtude da avaliação científica dos riscos, levou-as a suspender certas atividades enquanto a lei não instalasse procedimentos de avaliação. Foi o caso da construção de uma fábrica de produtos geneticamente modificados, na Alemanha22, assim como a realização de testes a respeito do algodão geneticamente modificado da Monsanto, na Índia (decisão do 23 de fevereiro de 1999). Da mesma forma, ter o conhecimento e não tomar as medidas necessárias constitui um erro; a lógica da jurisprudência da transfusão de sangue afirma esta responsabilidade do Estado, caso haja um atraso na publicação de uma norma de saúde pública (tratava-se, então, de um conhecimento já estabelecido, mesmo que parcial)23. Na oportunidade do caso do amianto, o Tribunal Administrativo de Marselha acaba de confirmar esta jurisprudência, embora sua explanação não tenha sido plenamente convincente. De fato, a culpa do Estado parece limitada ao período que passou entre o voto das diretrizes européias e sua transposição para o direito francês. Durante este período, o Tribunal admite que: “considerada a existência das ditas diretrizes, não pode ser sustentado que (…) os poderes públicos franceses não tinham conhecimento do risco que corriam as pessoas expostas, em razão da permanência da regulamentação em vigor”. Sendo o conhecimento do risco, de fato, o elemento que gera a responsabilidade do Estado, esta apreciação parece significar que a única fonte de informação do Estado francês era constituída pelas diretrizes européias. Ora, elas só foram votadas em razão da disponibilidade de conhecimentos científicos que confirmavam incessantemente o caráter perigoso do amianto. Os funcionários franceses dispunham desses conhecimentos, no mínimo, desde a fase de negociação e até antes. O Tribunal esclarece ainda que, “apesar do caráter vital do referido risco, a defesa não comunicou, antes de 1995, data da 20 Decisão Austrália – medidas que visam às importações de salmões, WT/DS18/AB/R, 20 de outubro de 1998, ponto 125. Esta afirmação é criticável pois, na ocasião de inúmeras crises, dentre as quais a da transfusão de sangue é o melhor exemplo, a possibilidade de contaminação pelo vírus da AIDS, percebido numa época em que não existia teste, pareceu, durante um certo tempo, ser um risco teórico. 21 M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p, 349 e s. 22 C. Noiville, Ressources génétiques et droit, Pédone, 1997, p. 57 e s. 23 M.-A. Hermitte, Le sang et le droit – Essai sur la transfusion sanguine, Le Seuil, 1996, p. 306 e s. solicitação pelo INSERM de um relatório de perícia, nenhum estudo que teria sido solicitado aos serviços competentes do Estado ou a autoridades científicas, com o objetivo de averiguar a existência do elo de causalidade entre o câncer e a inalação das fibras de amianto; resulta disto que, pelo menos durante os períodos citados (entre o voto das diretrizes e sua transposição), o atraso do Estado quanto à adaptação da regulamentação de proteção dos assalariados, relacionada com os riscos corridos, é culposo e capaz de responsabilizá-lo a partir do momento em que compete a ele não tão somente tomar as medidas necessárias para a indenização das doenças de origem profissional, mas também tomar todas as medidas úteis para prevenir as referidas doenças”. A referência ao relatório do INSERM é de difícil interpretação. O fato de não ter solicitado estudos antes de 1995, levaria a compartilhar da responsabilidade do Estado por não ter procurado informar ou, ao contrário, implicaria sua responsabilidade somente a partir do momento em que Bruxelas o informa, via voto da diretriz? Parece que a segunda interpretação está mais em conformidade com o texto do julgamento e, obviamente, isto é muito simplista. Os conhecimentos publicados existiam há muito tempo. A primeira crise do amianto em Jussieu data do ano de 1977 e o Tribunal não examinou esses dados, nem seu andamento na Direção Geral da Saúde (DGS) ou o comportamento muito criticado do Comitê permanente do amianto, estrutura paritária garantindo um papel de conselheiro junto ao Estado24. Resta dizer que o conhecimento – já bastante consolidado no caso – e a avaliação dos riscos são realmente, para o direito positivo, o fundamento das escolhas coletivas cuja legitimidade pode ser contestada nos tribunais. (b) Avaliação, livre escolha e aceitabilidade dos riscos O Protocolo de Cartagena sobre a prevenção dos riscos biotecnológicos, nos movimentos internacionais de OGM, analisa as coisas de forma diferente : “a avaliação dos riscos deve permitir uma decisão de acordo com o conhecimento” (Anexo III) ; 24 Para maior análise, ver F. Chateauraynaud e D. Torny, Les sombres précurseurs, ed. Da EHESS, 1999, p. 101 e s., e J.-Y. Le Déaut e H. Revol, L’amiante dans l’environnement de l’homme : ses conséquences et son avenir, OPECST, números 329 e 41, 1997. então, não há mais certeza da racionalidade da decisão, porém existirá informação, nos limites dos conhecimentos disponíveis25. O ponto de vista conforma-se com a idéia de que o público aceita correr riscos com a condição de ser informado, de tirar uma vantagem considerada como importante e de conservar uma liberdade de escolha26, idéia explorada pelo direito do consumidor, no quadro da obrigação de etiquetagem ou, sob outra forma, no quadro do contrato médico; decerto é a livre escolha do paciente, no que diz respeito ao cálculo de risco, que impõe ao médico a obrigação da informação que inclui, de agora em diante, os riscos mais incomuns e até, de acordo com uma decisão da Corte de Apelação de Paris, os riscos cuja realidade é objeto de debate27. Saiu-se da idéia de racionalidade da decisão e trata-se antes de permitir que se corra o risco que, para ser livre e consciente, implica uma avaliação prévia. Se for seguido o raciocínio sobre a avaliação, chega-se a um questionamento cuja resposta permanece pouco clara, mas que tem mais a ver com a gestão : quem deve ser informado e quem pode aceitar o risco para a coletividade? D. Mac Namee, que publicou um glossário da avaliação dos riscos, define a aceitação do risco como “uma decisão clara de sofrer as conseqüências de acontecimentos prováveis”, e esclarece que as 25 Este conceito de “decisão de acordo com o conhecimento” ampliou seu espaço, no direito internacional público, onde se estão estruturando campos tão diferentes quanto os movimentos internacionais de lixos e as transferências de recursos biológicos. Ele regulamenta as relações entre os Estados e as pessoas físicas, de acordo com o modelo do consumidor informado. 26 Então, causa espanto a afirmação do COMETS, Comitê de Ética para as Ciências do CNRS : “A sociedade está preparada para escutar certos discursos e outros menos. Em vez das interrogações, ela prefere as certezas, em vez das dúvidas, as afirmações, em vez das declarações incertas, as notícias tranqüilizantes…”, in Communication et diffusion du savoir scientifique, número 1, janeiro de 1997. Ao contrário, nos campos jurídicos mais clássicos, a ligação entre a liberdade de escolha e a informação está bem protegida. Pode pensar-se no exemplo das obras de arte. Um comprador, tendo pedido a anulação de uma venda por falta de autenticação da obra, o juiz nomeou um perito que reconheceu a impossibilidade de concluir por um lado ou por outro. Isto levou a Corte de Apelação a deixar as coisas como estavam e a recusar-se a anular a venda. A Corte de Cassação informou a decisão de acordo com os seguintes termos: “sendo que é decidido sem pesquisa se a autenticidade da obra não constituía uma qualidade substancial e se a Sociedade D. não havia firmado o contrato, na convicção errônea desta autenticidade, a Corte de Apelação não deu base legal para esta decisão”, Cass., 13 de janeiro de 1998, D.2000, número 3, 54. Se esta decisão aplica-se ao caso que nos interessa, pode-se perguntar se o direito de responsabilidade do fabricante não é concebido com o mesmo embasamento intelectual, a certeza da inocuidade de um produto que é a base de qualquer compra de produtos que não são perigosos por natureza. Isto merece ser considerado para poder raciocinar sobre a maneira pela qual o direito pensa a aceitabilidade dos riscos, no sentido da sociologia. 27 Christine Noiville, Petites affiches n. 89 de 5 de maio de 1999; M.-A. Hermitte e C. Noiville, L’obligation d’information en matière de santé publique à la lumière de la loi du 1 juillet 1998, Gazzette du Palais., 23-24 de outubro de 1998, p. 42 e s. técnicas de gestão do risco devem “permitir à direção de uma empresa ponderar o custo da gestão dos riscos em relação às vantagens de suas reduções; aceitar o risco é uma questão que concerne à cúpula dirigente dos executivos superiores”. Ele deixa a decisão recair sobre os únicos grupos dirigentes cuja legitimidade para aceitar o risco em lugar do outro é implicitamente reconhecida28. Transpondo para a coletividade, este ponto de vista refere-se ao Estado, sem a participação do público. No entanto, já mais adiante, a aposta aparece claramente: a informação, o conhecimento são realmente as ferramentas de um cálculo de risco consciente; ainda é preciso saber como o conhecimento é compartilhado, quem dispõe dele, quem participa da avaliação? (ver II) (c) Avaliação e resolução dos conflitos no quadro do livre comércio29 No contexto do livre comércio, intra-europeu ou internacional, estima-se que os produtos devem circular sem que os Estados possam instalar barreiras técnicas, a pretexto da saúde pública ou da proteção do meio ambiente; as “medidas” nacionais são encaradas, às vezes com razão, como armas da guerra econômica, que também é uma guerra de normas, sendo esta uma guerra das culturas jurídicas e das escolhas políticas. Neste contexto, o exercício da soberania tende a mudar, posto em evidência pelo acordo sobre as medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS) da OMC, quando estabeleceu um “direito dos Estados-membros no que diz respeito à fabricação das normas internacionais”, sob vigilância, claro, do Comitê das Medidas Sanitárias (artigo 3-4)30. A realização do livre comércio implicaria, de forma idealizada, que todos os Estados tivessem a mesma visão da segurança dos produtos, do que é a saúde dos homens e do meio ambiente, do nível de proteção que convém assegurar-lhes. Juridicamente isto se traduz por um esforço parcial de harmonização das regulamentações e dos níveis de proteção, articulado com o postulado do reconhecimento mútuo da validade dos sistemas de proteção instalados pelos Estados expedidores. Esses dois métodos, harmonização e 28 Entretanto, começa-se a admitir que a participação dos assalariados, no que diz respeito à prevenção dos riscos, é pertinente. Ver C. Lagabrielle e J. Vannereau, Évaluation des risques et management (psychologie du travail), Préventique, março-abril de 2000, p. 32. 29 M.-A. Hermitte, Droit du marché, territoire et précaution, in La Communauté Européenne et l’environnement, Colloque d’Anger sob a direção de J.-C. Masclet, La Documentation française, 1997, et L’illicite dans le commerce des marchandises, in L’illicite dans le commerce international, sob a dir. de P. Kahn, Litec, trabalhos do CREDIMI, 1996. 30 Sobre este tema, ver L. Thévenot, Un gouvernement par les normes. Pratiques et politiques des formats d’information, in B. Conein et L. Thévenot (ed), Cognition et information en société, Paris, EHESS, 1997. reconhecimento mútuo, baseiam-se, um como o outro, sobre procedimentos de avaliação dos riscos. Se, no entanto, surgir um conflito, a análise científica é convocada como meio de resolução. Assim, o texto fundador da Agência Européia de Medicamentos prevê que, em “caso de desacordo entre Estados-membros quanto à qualidade, segurança ou eficácia do medicamento (…), o problema seja resolvido por meio de uma decisão comunitária obrigatória, baseada em uma avaliação científica das referidas questões”31. Para a OMC, os métodos de avaliação dos riscos fazem parte das medidas nacionais passíveis de constituir bloqueios dos fluxos, o que é suficiente para mostrar a função jurídica da fase de avaliação (Anexo A do Acordo SPS). Um Estado-membro não pode prolongar eternamente uma proibição de importação se for incapaz de fornecer uma justificação científica para isto32. A incerteza científica oficialmente reconhecida refere-se à avaliação discricionária e à soberania nacional33; o consenso da comunidade científica internacional e a ausência de justificativa científica dos Estados-membros restabelecem o livre comércio (ou melhor, as sanções econômicas). Mesmo assim, é a instância científica que arbitra o texto da OMC, não permitindo que se considerem escolhas econômicas e sociais como a estrutura das propriedades agrícolas que, mais que as considerações relativas à saúde, originaram a recusa de importação da carne com hormônios. ii) Avaliação e gestão Conforme a comunicação da Comissão34, “o princípio da precaução deveria ser considerado no quadro de um enfoque da análise do risco, baseado em três elementos: a avaliação do risco, a gestão do risco e a comunicação do risco”. A precaução seria o conceito pertinente no quadro da gestão do risco e não deveria ser confundida com “o 31 Regulamentação n. 2309/93/CEE do Conselho do 22 de julho de 1993, JOCE, n. L. 214 do 24 de agosto de 1993. 32 P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 159 e s., sobretudo a idéia de “lugar justo” a ser dado para o princípio da precaução, nos relatórios internacionais, e C. Noiville, Principe de précaution et OMC, Le cas du commerce alimentaire, Clunet n. 2, 2000. 33 Aliás, não se trata somente da controvérsia científica. É possível referir-se à decisão da CEDH que declara o direito inglês que, em razão da controvérsia sobre este assunto, está recusando o acesso à procriação artificial para um transexual, compatível com a Convenção Européia dos Direitos Humanos. 34 COM (2000), 2 de fevereiro de 2000 ; trata-se de uma afirmação clássica, conforme os princípios colocados pela OMC e, particularmente, o Codex Alimentarius; sobre a passagem da cultura da prevenção para a cultura da precaução, ver os artigos de F. Ewald, Le retour du malin génie, in O. Godard e J.-J. Salomon, Pour une éthique de la science. De la prudence au principe de précaution, Futuribles, n. 246, setembro de 1999, p. 5. No que diz respeito à ordem jurídica, ver a tese de N. De Sadeleer, Essai sur la genèse et la portée juridique de quelques principes du droit de l’environnement, Tese da Faculdade de Direito de Saint Louis, setembro de 1998. elemento de prudência que os cientistas aplicam na avaliação dos dados científicos”. Assim, a Comissão distingue claramente a gestão, momento político e jurídico que implica a “responsabilidade eminentemente política” de fixar o nível de risco aceitável para a sociedade e se apóia sobre o princípio da precaução, da avaliação, atividade científica que obedece às regras de prudência definidas pela comunidade científica35. Do mesmo modo, o quadro de peritos, tendo analisado o caso dos hormônios para o Órgão de Solução das Controvérsias da OMC tentara destacar esta ruptura entre a gestão, momento político, e a avaliação dos riscos, definida como uma “análise científica dos dados e dos estudos factuais; não é um modo político que se refere a julgamentos de valores de caráter social que seriam estabelecidos por organismos políticos” (ponto 8-94). Essas afirmações são passíveis de crítica. Distinguir a avaliação e a gestão dos riscos é prático, mas o exercício deixa a desejar. Não há como separar essas atividade no tempo – a avaliação é permanente e a gestão também36. Por outro lado, não seria necessário acreditar que, de fato, a avaliação concerne a dados científicos “objetivos”e a gestão considera os aspectos políticos, econômicos e sociais: o risco que se deve avaliar, sendo definido como “interação entre um perigo e uma exposição a este perigo”, é permeável aos elementos sociais, como mostra o exemplo de um risco de contaminação radioativa; os hábitos alimentares ou os lugares de passeio são aspectos sociais que determinam a exposição ao perigo, própria de cada indivíduo. As modalidades são as mesmas no que diz respeito às obrigações econômicas ou aos procedimentos de fabricação: trata-se de fatos que precisam ser integrados à avaliação. O acordo sobre os riscos fitossanitários da OMC o reconhece em seu artigo 5-3, pois estabelece que “para avaliar o risco (…) e determinar a medida a ser aplicada para obter o nível apropriado de proteção sanitária ou fitossanitária contra este risco, os membros deverão calcular, como fatores econômicos pertinentes: o dano potencial em termos de perda de produção ou de vendas, no caso da entrada, a instalação ou a disseminação de um parasita ou de uma doença; custos da luta ou da erradicação no território do importador; e a relação custo-eficácia de outras possibilidades que 35 R. Encinas de Munagorri, La communauté scientifique est-elle un ordre juridique ? RTD Civ. 2-1998 e La recevabilité d’une expertise scientifique aux Etats-Unis, RIDC 3-1999. 36 M. Callon e P. Lascoumes tornam evidentes as constantes idas e voltas entre os dois, op. cit. permitiriam limitar os riscos”. No caso dos hormônios, o Órgão de Apelação justificou esta visão mais sutil das coisas: por um lado, afirma que o estudo dos riscos deve ser um “processo caracterizado por uma análise e um exame rigorosos, sistemáticos e objetivos”, mas que isto não deve levar à exclusão das questões que não permitem “uma análise quantitativa por intermédio dos métodos laboratoriais empíricos ou experimentais geralmente associados às ciências físicas”. O OSC acrescenta que é fundamental “não perder de vista que o risco que deve ser avaliado (…) não é apenas o risco verificável num laboratório científico, funcionando sob condições rigorosamente controladas, mas também o risco para as sociedades humanas em condições de existência real. Dito de outra forma, os efeitos negativos que poderiam efetivamente existir em relação à saúde humana, num mundo real onde as pessoas vivem, trabalham e morrem”37. A avaliação é uma operação que se realiza num contexto social, econômico e político. Além disso, esquece-se freqüentemente de que a avaliação não concerne somente aos riscos, mas também às vantagens, à eficácia de um produto ou de uma técnica frente aos problemas a serem resolvidos. Enfim, a avaliação produz efeitos sobre a gestão e vice-versa. Assim, a incerteza recorrente que está afetando certas avaliações, a partir do momento em que se aproxima dos efeitos ditos estocásticos, quando ligada à filosofia da ação que leva a “minimizar o arrependimento”, no caso da possível resolução da dúvida, conduz a uma estratégia de redução das exposições, cujo caráter potencialmente excessivo é considerado como “a pedra angular do edifício da radioproteção” em relação à gestão38. De outra forma, a incerteza persistente evidenciada pela avaliação implicaria uma estratégia de gestão específica. Ao contrário, as regras de gestão do risco influenciam o conteúdo da avaliação. De fato, a prática da avaliação comparativa que obriga a comparar os riscos associados a um produto com aqueles do produto que se pretende substituir, não seria uma regra de gestão39. Finalmente, mais a decisão entende calcular o contexto do perigo, mais os elementos a serem avaliados são diversos e numerosos. 37 Ponto 187. J. Lochard, Évolution de la notion de limite en radioprotection, Annales des mines, julho de 1996, p. 89. 39 A escolha favorável ao escapamento catalítico tinha como objeto a supressão do chumbo, que já é muito prejudicial, nos controles realizados na atmosfera das cidades. No entanto, assiste-se ao aumento das taxas de metais pesados, como o cádmio. O impacto dessas escolhas sobre a saúde teria sido avaliado de forma correta? 38 Todavia, é preciso ir mais além: mesmo em relação aos aspectos mais rigorosamente técnicos da avaliação, como a produção dos dados, a forma de obtenção e difusão dos resultados está diretamente ligada ao princípio da precaução e modifica as regras de “prudência” que os cientistas aplicam para seus próprios fins. De fato, os “resultados científicos” aqui servem finalidades que não são as mesmas da ciência – uma decisão – dentro de uma temporalidade que não é a mesma desenvolvida pela ciência, visto que não se deixa tempo para terminar a demonstração científica. A implementação do princípio da precaução provocará pesquisas que não teriam sido feitas sem ele, de acordo com métodos que teriam sido diferentes e, sobretudo, apresentará resultados que permitem que os responsáveis entendam as limitações. A precaução tem por vocação a produção de regras de um sistema coerente que se aplica tanto à fase de avaliação quanto à fase de gestão. Entretanto, é preciso resguardar o princípio da precaução de uma distinção entre avaliação e gestão, pois se limita precisamente à escolha da medida. Assim, as instâncias de avaliação devem analisar o risco, colocando em evidência diferentes cenários que incluem diferentes decisões de gestão, cujas conseqüências devem ser avaliadas. Mas, ao contrário do que está previsto em numerosos textos, não deveriam “propor medidas a serem tomadas pelas autoridades”40 e somente transmitir esses diferentes cenários avaliados; a instância política permanece no controle da escolha, desde que represente o nível de risco aceito. iii) Definição da avaliação dos riscos Os textos que prevêem uma avaliação dos riscos não permitem estabelecer uma ou várias definições para esta operação. Trata-se, evidentemente, de identificar características nocivas para o homem ou o meio ambiente, assim como avaliar os impactos. Todavia, será que existem princípios diretores comuns que permitiriam determinar a extensão, a metodologia e o contexto de estudo da análise do risco, qualquer que fosse o perigo a ser analisado? Não. Cada objeto é avaliado em função de suas próprias características. Na melhor das hipóteses, pode-se mostrar a existência dos diferentes tipos de avaliação, às vezes alguns critérios que ajudam o avaliador a definir os 40 Consoante a fórmula utilizada ainda num texto recente, o Decreto 99-841, de 28 de setembro de 1999, sobre a toxicovigilância. contornos de seu trabalho, outras vezes um tipo de escala dos perigos, e, ao que parece, uma série de etapas idênticas a todos os tipos de perigos. (a) Os tipos de políticas de avaliação Sem dúvida, seria interessante tentar estabelecer uma tipologia completa das políticas de avaliação aplicadas a cada tipo de produto. No entanto, isto iria além dos objetivos deste trabalho41. Aqui, serão apenas confrontados os sistemas em que uma real autorização de comercialização foi dada por uma instância política, após avaliação prévia e complexa realizada por instâncias científicas independentes, com sistemas mais corporativistas, onde os industriais avaliam por eles mesmos e atestam ter avaliado seus produtos de acordo com as normas preestabelecidas. Essas diferenças trazem uma conseqüência importante, pois elas se calculam em termos de números de produtos existentes no mercado e, então, em termos de capacidade do sistema em acompanhá-los e em avaliar as conseqüências. No primeiro caso, cujo tipo está sendo ilustrado pelo regime do medicamento, a indústria realiza uma avaliação (mobilização dos conhecimentos adquiridos e experimentações novas), sendo este trabalho reavaliado por uma autoridade central. O número de produtos colocados à venda é importante, apesar do custo do procedimento e da limitação de tempo. Quando o produto é comercializado, ele é bastante conhecido e as informações são relativamente transparentes. No segundo caso, o dos produtos químicos, muitos produtos já presentes no mercado nunca foram avaliados. Para os outros, a indústria faz uma auto-avaliação, de acordo com regras precisas fixadas pela lei, e notifica, mas a autoridade central, após ter analisado o trabalho, dá a autorização de comercialização num prazo muito curto, equivalente a uma presunção de licitude, salvo a exercer seu direito de oposição. Estimase que somente 7 % dos produtos químicos tenham sido objeto de uma avaliação. A diferença em relação ao medicamento permanece no que concerne à vigilância. O efeito a 41 Por exemplo, podem ser confrontados os sistemas que organizam uma avaliação interna dos riscos, realizada pela agência ou pela comissão dispondo de funcionários próprios, com sistemas que contratam peritos independentes. Ver D. Tabuteau que dá muita ênfase para esta distinção em termos de independência da perícia, o que ainda deve ser demonstrado. Por uma parte, os avaliadores internos não são insensíveis; em relação à cultura industrial; por outra parte, os peritos independentes são submetidos a diferentes sistemas de declaração de interesses. Ver ainda, Renforcer la sécurité sanitaire en France, Claude Huriet, Les rapports du Sénat, n. 196, 1996-1997, p. 97. longo prazo de um medicamento termina sempre por ser conhecido enquanto as coisas continuam mais incertas com os produtos químicos. Eles são classificados em função do tipo de perigo que podem representar : substâncias inflamáveis, tóxicas, nocivas, corrosivas, irritantes, etc.42; a classificação do produto numa categoria ou em outra implicará condições de utilização e uma etiquetagem, de forma mais rara, a retirada do mercado e, há alguns anos, a implementação de estratégias denominadas de redução dos riscos. Mas as conseqüências difusas dos produtos químicos permanecem vagas. Decerto, foi constatada uma deterioração da qualidade dos solos, do ar e das águas por causa do produtos químicos presentes no meio ambiente. Obviamente, existe a suposição de que o aumento mundial da mortalidade por câncer poderia ter uma relação com este fato; no entanto, a ligação de causalidade entre os dois não foi estabelecida e parece pouco pesquisada. Esta incerteza e a importância econômica da indústria química, que já existe há muito tempo, levaram para o mercado dezenas de milhares de produtos químicos não avaliados por autoridades independentes. Conseqüentemente, este número traz a impossibilidade material de uma avaliação43 e a incerteza sobre seus efeitos, o que fecha o círculo. A avaliação realizada, seja ela pesada ou leve, tem uma conseqüência direta sobre o número de produtos presentes no mercado e sobre o conhecimento que se pode ter quanto a seus efeitos. Do mesmo modo, as formas de avaliação podem estar em oposição em função do lugar que dão à demonstração das vantagens do produto em questão. De fato, certas avaliações vêm acompanhas de um cálculo dos riscos e das vantagens, o produto sendo comercializado somente se demonstrar eficácia (é o caso das sementes ou dos medicamentos). Em outros casos, o fabricante pode colocar seu produto no mercado se a autoridade competente estimar que não há riscos, e isto sem se preocupar com sua utilidade. É o caso dos OGM e é certamente o que originou a dificuldade encontrada por este setor. De fato, os opositores recebem apoio de grupos maiores, que concordariam em correr certos riscos se houvesse alguma vantagem; enquanto estas não se destacarem, o 42 Diretriz do Conselho n. 67/548 CEE, de 27 de junho de 1967, modificada em 1992 e 1996. Ver Code permanent environnement et nuisances. 43 As autoridades sanitárias estão cientes da situação, porém uma evolução imediata é pouco provável. A estratégia utilizada consiste em trabalhar para a elaboração de uma lista de produtos muito suspeitos que, então, serão indicados como produtos prioritários para uma avaliação. Na Europa, isto levou à designação de um país como responsável para a avaliação de vários produtos. Depois, as informações são compartilhadas e uma estratégia de retirada do comércio ou de redução do risco é iniciada, infra, p. 30. risco é dificilmente justificável. A princípio, nos setores que não precisam demonstrar nada, as comercializações são mais numerosas, o que leva às dificuldades de fiscalizações já encontradas. Aliás, o sistema implementado para os OGM é pouco coerente; a obrigação de assegurar a biovigilância e o acompanhamento dos produtos foi finalmente imposto, o que se tornaria impensável com a multiplicação das comercializações originalmente previstas. Então, existe um paradoxo assumido entre o sistema de produção que, por natureza, leva ao aumento dos produtos colocados no mercado e uma certa perda de controle que o sistema de gestão dos riscos procura recuperar, impondo avaliações prévias e vigilâncias. (b) As linhas diretrizes da avaliação Em certos casos, a análise dos riscos está sendo feita num contexto científico já bastante estabelecido ou considerado como tal: os textos, então, fixam as “normas e protocolos”, lista dos elementos a serem obrigatoriamente analisados, natureza dos riscos esperados, métodos de testes obrigatórios. Uma escala de gravidade é fixada, com atenção particular para os riscos de câncer e de mutações genéticas ou para a patogênese conhecida dos organismos biológicos. Este sistema tem eficácia dentro de seus próprios limites, mas oferece uma falsa segurança. A primeira limitação vem da determinação dos perigos. No caso dos hormônios, a atenção foi direcionada para o câncer, existindo a preocupação com uma possível feminização ou baixa fertilidade dos homens por causa da presença de estrogênios, na alimentação. No caso das radiações ionizantes, Franco Romerio observa que as instâncias de avaliação só haviam inicialmente calculado leucemias, câncer e malformações genéticas, enquanto outros elementos foram considerados posteriormente, como tumores benignos, problemas gastrointestinais, respiratórios e cardíacos; esta ampliação das observações transformou profundamente a análise do risco, neste ramo da ciência44. Em segundo lugar, os perigos levados em conta são aqueles revelados por experimentações bastante simples (dosagem letal mediana, concentração letal média, dosagem sem efeitos indesejáveis observados,…) que não autorizam um relato das poluições difusas, das adições de produtos, dos efeitos de sinergia, etc. 44 F. Romerio, Gérer les risques des radiations ionisantes, Librairie Droz, Genève, Paris 2000, p.33, 147. Em outros casos, o contexto científico mais recente torna o objeto da avaliação ainda mais vago. É o caso dos OGM, embora importantes progressos tenham sido realizados em relação ao texto da Diretriz 90/220, que está atualmente revisado. Além da lista dos pontos a serem analisados, os textos trazem a identificação “de efeitos negativos” de forma mais ampla que aqueles que tinham sido imaginados originalmente, como a alteração da sensibilidade a agentes patógenos, diminuição da eficácia dos tratamentos médicos, modificação das práticas agrícolas…(Anexo II, C, JOCE. C 64/20). Todavia, nenhuma identificação de gravidade está sendo fornecida, assim como nenhum método de avaliação, sugerido. Entretanto, o Parlamento europeu acaba de inovar, solicitando que “uma avaliação específica” seja efetuada, tendo em vista o grau de risco existente para o meio ambiente. O mínimo que se pode dizer é que a proposta não é precisa; no entanto, aponta para uma falha importante, que é a das indicações sobre o que é considerado como nocivo45. Até o momento, a posição comunitária, assim como a Diretriz 90-220 sobre a disseminação dos OGM no meio ambiente obrigavam a fornecer múltiplas informações sobre o OGM, como a disseminação, o ambiente de receptação, as interações entre eles, mas não era preciso dar nenhum elemento de avaliação da nocividade dos efeitos levados em conta. Enfim, é preciso observar que a avaliação dos riscos se complica mais ainda, pois ela deve realizar-se, calculando os efeitos das medidas de gestão levadas em conta, visto que estas devem ser avaliadas para apreciar a proporcionalidade entre os riscos e as vantagens de cada solução possível46. É muito difícil, a partir dos textos atuais, mostrar as falhas que tornam a gestão tão controvertida. Ora, várias oposições aos OGM mostraram as conseqüências de avaliações insuficientes: a possibilidade de que o consumo de uma planta geneticamente modificada aumente a resistência contra um antibiótico seria um perigo? Para alguns é um perigo não averiguado e, sobretudo, sem gravidade, visto que as bactérias do intestino já são suficientemente resistentes. Além do mais, são sensíveis a outros antibióticos existentes e o impacto deste consumo está muito aquém dos problemas bem reais trazidos pelo uso desordenado de antibióticos. Para outros, tudo isto está correto, mas não vale a 45 Artigo 4, parágrafo 2 bis novo, modificando o posicionamento comunitário (C.E) no 12/2000, ainda não publicado. 46 OSC, Austrália, Medidas visando às importações de salmões, WT/DS18/AB/R, 20 de outubro de 1998. pena continuar num caminho errado enquanto a utilização desse gene pode ser evitada e a planta não tem uma utilidade evidente47. O ataque a um inseto é prejudicial para alguns, não para aqueles que questionam que são igualmente atacados pelos inseticidas químicos. Para uns, a transferência de um gene de resistência a herbicidas para as plantas naturais tem efeito grave, enquanto a Comissão estima que isto não pode ser definido assim, visto que existem outros herbicidas capazes de eliminar essas plantas resistentes. Vários desses questionamentos foram resolvidos (num sentido favorável à comercialização) pelo princípio da avaliação comparada. Conforme ela, “as características identificadas do OGM e de sua utilização que podem ter efeitos negativos deveriam ser comparadas àquelas apresentadas pelo organismo não modificado que o originou, assim como à utilização deste em situações semelhantes” (Anexo II, B)48. Nem todos os produtos se encontram nesta situação. Os grandes princípios da avaliação dos medicamentos são claros: deve fornecer a prova (válida, amparada cientificamente) do efeito terapêutico e da inocuidade de uso em condições normais de utilização, além de revelar os efeitos indesejáveis associados; a avaliação concerne a três critérios: eficácia, qualidade, segurança. Isto traz uma relação risco-benefício que não é estática e poderá modificar-se em função dos efeitos indesejáveis constatados ulteriormente, levando à suspensão ou ao fim da comercialização do medicamento. Pelo menos na teoria, existe um balanço relativamente simples das vantagens e desvantagens: para tratar de uma doença grave, efeitos colaterais importantes serão tolerados, o que não será o caso em uma doença sem gravidade. O guia das boas práticas clínicas da International Conference on Harmonisation (ICH) prevê que nenhum teste será aplicado em seres humanos, se não houver a antecipação dos benefícios susceptíveis de justificar os riscos potenciais (ponto 2.2). Inúmeras dificuldades permanecem, como as associações imprevistas de medicamentos, os efeitos colaterais cumulativos e coletivos ou a aparição de resistências aos antibióticos. 47 Mas acabaria sendo demonstrado experimentalmente, Le Monde, 30 de maio de 2000. A Diretriz 98/81, modificando a 90/219 relativa à utilização em confinamento dos microorganismos geneticamente modificados, está mais adiantada. O artigo 5 prevê uma avaliação que deve levar à classificação em classes de riscos, implicando níveis de confinamento adaptados. O Anexo III, intitulado “Princípios a serem seguidos para a avaliação,…” fornece uma lista dos “efeitos potencialmente nocivos”. Da mesma forma, estabelece um procedimento (identificação das propriedades nocivas, identificação do nível de risco, escolha da medida de confinamento). Esses elementos, ainda sumários, devem ser completados. 48 De fato, a principal falha dos textos vem de sua indiferença quanto ao caráter implícito das opiniões. Todavia, é importante que as escolhas feitas por instâncias de gestão não sejam baseadas em critérios implícitos, como no exemplo tirado do grupo das sementes. Uma semente só pode ser comercializada se for inscrita no Catálogo das Variedades (trata-se de proteger os agricultores contra a má qualidade das sementes que prejudicam a safra anual). Para fazer a inscrição, o avaliador deve constatar que o produto é “superior” àqueles que já estão comercializados. Os critérios desta superioridade estão cuidadosamente descritos em termos de “valor agronômico e técnico” (VAT) e são muito influenciados pelo caráter intensivo da agricultura (rendimento, prematuridade, resistência às pragas, etc.). O sistema teve efeitos perversos, pois levou à proibição de venda de antigas variedades procuradas por suas qualidades gustativas ou ornamentais, mas que não cumpriam os critérios do VAT. Então, foi preciso criar outro catálogo que incluísse outros critérios de avaliação; o que era relativamente simples, uma vez que a opinião original não estava implícita. A reflexão mais evoluída no que diz respeito a isso veio do Escritório Americano de Administração e Orçamento que, no Executive Order 12866, de 11 de janeiro de 1996, forneceu uma metodologia para conduzir a avaliação econômica e científica de um problema. A avaliação, que é caracterizada pela incerteza, precisa dar um motivo às escolhas efetuadas. Além do princípio clássico do uso dos melhores conhecimentos científicos e técnicos, a avaliação deve ser guiada por princípios de transparência, divulgação e justificação das escolhas (que, de fato, se tornam discutíveis, no momento da decisão). O resultado é que todas as informações, modelos, hipóteses, convicções devem ser identificados como tais, assim como devem ser avaliadas as conseqüências das escolhas efetuadas. As teorias e hipóteses divergentes ou alternativas devem ser expostas, avaliadas e discutidas, todas as incertezas devem ser identificadas e explanadas. Esses são os elementos que permitem tornar evidente o que M. Callon e M. Lascoumes estabelecem como sendo a segunda etapa da avaliação dos riscos, o “momento de apreciação objetiva e completa da ameaça, levando à construção racionalizada do risco”49. Entretanto, até o momento atual, a maioria dos textos permanece muda e os organismos franceses 49 Op. cit. envolvidos na avaliação dos riscos são incapazes de descrever as escolhas fundamentais que estruturam seus parâmetros de análise dos riscos. (c) As definições disponíveis “Fazer a perícia de um objeto, um produto ou um procedimento equivale a atribuir um valor global, positivo ou negativo, de acordo com uma escala pré-determinada e no quadro de princípios independentes e razoáveis que são respeitados”50. Para D. Mc Namee, a identificação do risco, sua medição e o processo de “priorização dos riscos” permitem entender a avaliação. Essas duas definições podem ser criticadas, mas têm a vantagem de colocar em evidência o lado contextual da operação científica de avaliação, as escolhas de valores que ela implica. Mesmo assim, os textos jurídicos não estão muito interessados em definir as prioridades, destacar esses valores. Entretanto, deveria ser seu papel. Todavia, a Comissão da União Européia, em sua comunicação sobre o recurso para o princípio da precaução, esforçou-se para dar uma definição, o que poderia surtir importantes efeitos se fosse sistematicamente respeitada. Inspirando-se em sua própria prática, na experiência do Codex Alimentarius, nas reflexões da OSC51, retoma a idéia dos “quatro itens da avaliação do risco”. O primeiro tem a ver com a identificação do perigo e consiste em descobrir os agentes de toda e qualquer natureza52 suscetíveis de ter efeitos, reais ou potenciais, sobre a população ou o meio ambiente; ou, ao contrário, em identificar um efeito negativo e procurar suas causas, a caracterização do perigo (natureza e gravidade dos efeitos desfavoráveis53), a avaliação da exposição54, assim como a 50 P. Mainguy, Réflexions à propos de l’expertise dans le domaine agroalimentaire, documento não publicado e destinado à Academia de Ciências. 51 Ela retoma amplamente os ganhos da doutrina, das instituições técnicas como a do Codex Alimentarius, assim como seus próprios esforços anteriores. Um exemplo entre outros, a Diretriz 93/67 da Comissão, de 20 de julho de 1993, estabeleceu os princípios de avaliação dos riscos, para o homem e para o meio ambiente, das substâncias notificadas conforme a Diretriz 67/548 do Conselho. A avaliação inclui a identificação dos perigos (efeitos indesejáveis que uma substância pode intrinsecamente provocar), a medição da relação dosagem-resposta, da exposição e caracterização dos riscos (estimativa da incidência e da gravidade dos efeitos indesejáveis). 52 A Comissão parece restringir-se às substâncias químicas, físicas ou biológicas, o que é um pouco limitativo. Os campos magnéticos podem ser suspeitos, ou ainda, pode-se suspeitar do barulho, e eles não são substâncias. 53 Os efeitos das fortes dosagens de radiações iônicas são bem conhecidos, porém os efeitos das leves dosagens são objeto de debates, pois parecem distribuídos de forma aleatória, dependendo dos modelos utilizados, etc. 54 B. Wynne fornece vários exemplos de erros de avaliação dos riscos quanto às radiações iônicas ligadas a uma análise incorreta da exposição efetiva: em se tratando da contaminação aérea ou do consumo de carne caracterização do risco (probabilidade, freqüência, gravidade dos efeitos)55. No entanto, alguns desses elementos – a definição do que deve ser considerado um perigo, de sua gravidade, da maneira como deve ser considerado – são precisamente os elementos-chave da avaliação que, geralmente, não é tratada nos textos jurídicos. O recente Acordo de Cartagena, sobre os movimentos transfronteiriços de OGM, é decepcionante, pois deveria apresentar um interesse peculiar, visto que foi afirmado que se baseava no princípio da precaução e incluía um anexo especificamente direcionado para a análise do risco. Mas a idéia é muito clássica: a avaliação deve ser feita “segundo métodos comprovados” e seguir “métodos de avaliação dos riscos reconhecidos” (artigo 15 e Anexo III) e “outras provas científicas disponíveis” (artigo 15), assim como opiniões técnicas e diretrizes das organizações internacionais competentes (Anexo III), o que é conforme a estrutura dos acordos da OMC. O protocolo requer a identificação das “novas características” que podem ter efeitos indesejáveis. Requer também a avaliação da probabilidade para que esses efeitos indesejáveis aconteçam de acordo com o grau e o tipo de exposição do meio receptor, a avaliação das conseqüências desses efeitos, a estimativa do risco global. Aqui, não há nada de original, pois não existe nenhuma indicação a respeito do que é um efeito indesejável ou grave, quando, na verdade, é sobre este ponto que surgirão conflitos. Talvez, em outros tipos de documentos em que se notem esforços para caracterizar a hierarquia dos perigos, por exemplo, do “documento de consenso”, elaborado pela direção do meio ambiente da OCDE sobre as plantas resistentes aos vírus. De imediato, ele indica que seu trabalho vai focalizar os dois core issues – a criação de dois novos vírus por mecanismos de recombinação genética, a possibilidade de sinergias involuntárias quando a planta geneticamente modificada está infectada por vírus não controlados. Tal documento designa dois riscos como particularmente graves. Este tipo de exercício não é muito comum, nos textos jurídicos. de ovelha contaminada, “as vias de contaminação” não foram entendidas no Reino Unido, in O. Godard, p.156 e s. 55 Observa-se que, em certos sistemas de organização total da segurança, a idéia de avaliação dos riscos termina por permitir a organização obrigatória dos procedimentos destinados à contenção. É o caso, por exemplo, da decisão do 16 de dezembro de 1998 (J. O. de 30 de dezembro de 1998), que trata da homologação das regras de uso correto das células-troncos hematoporéticas, tiradas do corpo humano. Encontra-se aqui num sistema de segurança de qualidade que organiza totalmente cada gesto de coleta, transformação e controle. Então, não é mais a atividade quotidiana que está submetida à avaliação dos riscos, mas a organização desta atividade que está sendo avaliada e regularmente validada ou modificada. Quanto ao Acordo de Cartagena, ele suspeita, de forma mais geral, da simples novidade56, das novas características e dos indícios de riscos (ver as definições do artigo 3). Além disso, deixa claro que a ausência de conhecimentos ou de consenso científico não significa que há ausência de risco ou que existe um risco aceitável : esta afirmação é dificilmente conciliável com a maior parte dos textos jurídicos que fazem da ciência uma instância de solução dos conflitos. Enfim, o protocolo obriga a respeitar o princípio da avaliação comparativa, que implica uma comparação dos riscos associados com o produto litigioso, no caso um OGM, e dos riscos associados com os mesmos organismos não modificados. Então, é preciso fazer não apenas uma avaliação, mas avaliações comparadas. Este princípio, também chamado de princípio da coerência, deve ser visto com circunspecção. Por um lado, ele é indispensável, pois haveria o risco de não se usar qualquer produto novo sob pretexto de que ele apresenta um risco potencial, nunca avaliado totalmente por causa de sua própria novidade; além do mais, é indispensável para evitar a substituição de um produto cujo risco é conhecido por outro produto que, na realidade, é mais perigoso que o primeiro. Entretanto, seu manuseio parece delicado. De fato, é talvez possível comparar os efeitos de dois produtos químicos que são utilizados há muito tempo. Ao contrário, comparar um risco químico conhecido com um risco genético, apenas potencial, é mais complicado, pois eles não têm a mesma natureza. Se uma comparação bruta é feita, será decidido sempre a favor do risco que é potencial. Então, é preciso ponderar – mas como? Se o critério da irreversibilidade for aplicado, a química sempre sairá como campeã. A idéia de coerência não é mais fácil de se manusear em nível global. Para ser coerente, seria preciso arbitrar a difícil questão dos meios: é necessário aplicar tanto o recurso na avaliação dos riscos dos 100.000 produtos químicos quanto em algumas centenas de OGM? Se a coerência fosse procurada, seria possível tratar os OGM como os produtos químicos, o que equivaleria a avaliar apenas alguns produtos prioritários por causa de sua 56 A novidade como elemento de equivalência de um fator de risco tem uma correspondência no que diz respeito à noção de familiaridade ou de uso médico estabelecido, que permitem avaliações simplificadas. A decisão de 3 de março de 2000 (J. O. de 9 de março de 2000) fornece os critérios de uso estabelecido : grau de uso de uma substância, grau de interesse científico do uso de acordo com seu reflexo na literatura científica publicada, coerência das avaliações científicas e, pelo menos, dez anos documentados de uso sistemático. periculosidade. Mas, fazendo isto, o sistema de gestão dos riscos estaria estagnando no nível em que se encontrava no início do século XX! 2. O regime jurídico dos dados científicos Embora esta exigência seja encontrada na maioria dos textos, para a Comissão da União cada uma das etapas da avaliação implica o uso de dados “disponíveis” e “confiáveis”. Às vezes vai-se além, exigindo que a expressão desses conhecimentos mostre o estado das incertezas ainda existentes e os limites dos conhecimentos. Descobre-se aqui a principal utilidade da intervenção do direito, na organização da avaliação dos riscos: ela concerne à forma de produção e circulação dos dados, não para assegurar o desenvolvimento científico57, mas para que a decisão política seja facilitada. Desta forma, constata-se que o esforço de racionalização e pluralismo decorrente leva, ao mesmo tempo, a uma melhoria de qualidade da produção científica. i) Dados disponíveis A existência de dados58 é a condição da avaliação dos riscos; a limitação de sua disponibilidade é um instrumento de poder: para assuntos militares ou econômicos é a “inteligência”. Sua difusão condiciona a eficácia da avaliação, mas também a renovação das formas de democracia59 – foi por causa da divulgação do estado de saúde em que se encontrava o proletariado urbano que o direito social nasceu. Em se tratando do direito econômico, a obrigação de informação é reconhecida sem dificuldade como estratégia política, amplamente utilizada para reduzir as desigualdades (direito do consumo) ou evitar abusos de poder (uso indevido de informações sigilosas)60. Ora, no campo da avaliação dos riscos, os textos falam muito freqüentemente dos dados “disponíveis”, sem realmente precisar em que estado se encontra essa disponibilidade. 57 Sobre a distinção duvidosa entre normas técnicas e normas jurídicas, ver A. Supiot e I. Vacarie, Santé, sécurité et libre circulation des marchandises, règles juridiques et normes techniques, Droit social n. 11993, p. 38. Poderão ser consultadas, com muito proveito, as análises de E. Cadeau sobre a criação das agências, vistas como modelo conceitual, tendo por objeto assegurar uma ponte entre técnica e política, Tese, p. 281. 58 Aqui, a palavra está sendo utilizada no sentido mais abrangente possível, que compreende simples indicadores, resultados de experimentações, conhecimentos teóricos e publicações. Um trabalho mais cuidadoso seria necessário para dissociá-los. 59 Secret et démocratie, Association Droit et démocratie, La Documentation française, 1997. 60 C. Kieff-Verbaere, Les obligations d’information dans le droit penal des affaires, l’information vecteur d’égalité et principe actif de la fraternité, RTD Com., n o 3-1999. (a) A insuficiente organização da produção dos dados A expressão “dados disponíveis” engana, pois a produção de dados não é espontânea61. Um Estado deve criar uma rede de instituições capazes, tendo por obrigação a produção de informações sob forma utilizável para a decisão pública. i. A origem dos dados Os dados úteis à avaliação dos riscos não são espontaneamente produzidos por aqueles que engendram o risco. O industrial trabalhará para lançar um produto cuja venda vai assegurar a volta de seus investimentos; a pesquisa sobre a segurança do produto não faz parte de seus cálculos. Então, precisa-se de instituições sem fins lucrativos, com orçamento para adquirir esses conhecimentos ou que uma obrigação seja imposta ao industrial que integrará o custo da segurança no preço final: a implementação do princípio da precaução pelo Estado passa por uma organização de produção dos dados. Mesmo assim, se o Estado cria múltiplas comissões e agências encarregadas da avaliação dos riscos, muitas vezes deixa no escuro a questão de saber quem vai produzir os dados a serem avaliados e quem vai financiar tal produção. Na realidade, as situações são muito diversas, pois os dados provêm de três fontes: instituições acadêmicas, instituições especializadas e produtores de riscos62. As instituições acadêmicas têm por missão ensinar e pesquisar. De fato, seu papel na produção e conservação dos dados é essencial, mas não faz parte da missão que o Estado lhes confiou. Para elas, a produção de dados é somente uma ferramenta a serviço de uma determinada pesquisa. Logo, existem regras de produção e coleta de dados reforçadas pela comunidade científica e pelas exigências de novas avaliações, mas é 61 Sabendo que o Voluntariado tem seus limites. Assim, W. Dab observa que a possibilidade de um impacto negativo dos campos eletromagnéticos foi suspeitada pela primeira vez após pesquisas sobre as reações psicológicas em famílias onde havia crianças gravemente doentes. Assim mesmo, os epidemiologistas céticos começaram pesquisas que não conseguiram até hoje fornecer uma avaliação coerente, in O. Godard, p. 201. 62 Todos são profissionais; entretanto, os sociólogos insistem sobre a importância das observações espontâneas, mas nada está previsto para calculá-las. No sistema de vigilância dos efeitos das plantas geneticamente modificadas, o artigo 364 bis do Código de Direito Rural prevê, entretanto, que “toda e qualquer pessoa que constate uma anomalia ou efeitos indesejáveis suscetíveis de serem ligados à disseminação ou à comercialização dos produtos mencionados, no presente artigo, informe imediatamente os serviços encarregados da proteção dos vegetais”. preciso dizer que elas são menos respeitadas do que se poderia pensar, o que cria problemas de coerência quando alguém quer reuni-las e usá-las para uma perícia63. Certos institutos de pesquisa estão diretamente implicados na produção de dados. O INSERM tem, entre outras missões, o papel de “recolher e centralizar as informações que tratam de seu campo de atividade, informar o governo e poderes públicos sobre os conhecimentos adquiridos” (artigo 3, do Decreto de 10 de novembro de 1983). O Instituto desenvolveu um pólo de pesquisas em epidemiologia e por isto mantém bases de dados sobre várias doenças ou causas da morbidade e mortalidade; tem ainda uma missão oficial de perícia e pode ser ativado no que diz respeito à avaliação de certos riscos. Neste quadro, não produz dados, mas especializou-se na mobilização deles, a partir das bases de dados existentes. A situação se repete com o Instituto Pasteur que, tradicionalmente, é responsável pela produção de dados e de perícias sobre vários assuntos. Isto vai da gripe (GROG) até a listeriose (responsabilidade do acervo das fontes de comparação). Em todas essas hipóteses, a produção de dados é muito mais profissional, porque é realizada com objetivo preciso, bem próximo da perícia, da qual os poderes públicos necessitam. Certas instituições que não têm diretamente como objeto a produção e ou a reunião de dados devem, entretanto, utilizá-los para ter êxito em sua missão. Assim é que os centros de luta contra os venenos têm por principal missão responder às situações de urgência, em cooperação com os estabelecimentos de saúde (artigo L. 711-9 do Código da Saúde Pública, CSP), mas, para isto, gerenciam um banco de dados que é uma fonte importante no que diz respeito à toxicologia e serve para as investigações de vigilância toxicológica (artigo D. 711-9-11 do CSP)64. Entretanto, comissões especialmente encarregadas da avaliação dos riscos não têm suporte particular que lhes permita dispor de dados, o que é uma grave falha da regulamentação. Por exemplo, a Comissão de Engenharia Biomolecular, encarregada dos riscos de disseminação dos OGM, não recebeu até agora a verba que permitiria 63 J.-J. Duby mostra os elos, mas também as diferenças, entre pesquisa e perícia, in L’expertise scientifique, une nouvelle mission pour les chercheurs et les organismes? Annales des mines, janeiro de 1998, p. 80 ; sobre essas dificuldades no momento da crise da vaca louca, ver D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit. e G. Mégie, sobre as dificuldades que resultam da localização das equipes de detecção do ozônio, somente no hemisfério norte, In O. Godard, p. 231. 64 Foi, ao que tudo indica, um centro deste tipo que indicou que o petróleo do Érika era cancerígeno; isto permite constatar que a disponibilidade de um dado não leva automaticamente à comunicação para o público. centralizar os dados disponíveis, num banco de dados65. Esta situação deveria resolver-se racionalmente com as reformas da segurança sanitária que estão empurrando as múltiplas comissões, criadas no decorrer dos anos, para organismos mais centrais. De agora em diante, existe o Comitê Nacional de Segurança Sanitária que está encabeçando tudo. Analisa os acontecimentos suscetíveis de afetar a população, compara as informações disponíveis e coordena as políticas do Instituto de Vigilância Sanitária dos Produtos da Saúde que, atualmente, agrupa todos os produtos ligados à saúde66 e as da Agência de Segurança Alimentar que está, por sua vez, dirigindo várias comissões preexistentes67. As novas agências têm tarefas mais definidas e bem mais hierarquizadas, desde os servidores locais passando pela Rede Nacional de Saúde Pública, até o topo da pirâmide com o Instituto de Vigilância Sanitária que é, a princípio, um elemento central que deve “participar da coleta e tratamento dos dados sobre o estado de saúde da população para fins epidemiológicos; agrupar, analisar e atualizar os conhecimentos sobre os riscos sanitários, suas causas e evoluções; detectar todo e qualquer evento que modifica ou é suscetível de alterar o estado de saúde da população; alertar os poderes públicos (…); concluir com sucesso toda e qualquer ação necessária para identificar as causas de uma modificação do estado de saúde da população, sobretudo numa situação de urgência”. Trata-se aqui de um exemplo perfeito da articulação entre produção e coleta dos dados, análise dos conhecimentos, função de alerta e gestão do risco sanitário (ver também o artigo L. 792-2-I sobre o sistema de informação nacional e internacional e L. 792-2-II prevendo que o Instituto é o destinatário das perícias e outros relatórios). Com concepção recente, o Instituto de Vigilância Sanitária dispõe, em virtude do artigo L. 792-2-III, de 65 Apesar da circulação das informações entre as autoridades competentes e a Comissão, o projeto de diretriz sobre a disseminação dos OGM não consegue ser organizado em verdadeira base de dados (artigo 10). 66 A Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Produtos da Saúde está encarregada da “avaliação dos benefícios e dos riscos ligados à utilização destes produtos” (artigo L. 793-I do CSP). Para isto, cuida da perícia e de informações diversas, além de poder fazer perícias ou mandar fazê-las ( artigo 793-2-2o do CSP). Então, tem o poder de produzir ou mandar produzir novos dados. 67 A Agência Francesa de Vigilância Sanitária dos Alimentos “avalia os riscos sanitários e nutricionais que podem apresentar os alimentos destinados aos homens ou animais…” (artigo L. 794-1), “2) fornece para o governo a perícia e apoio científico e técnico necessários…3) coordena a cooperação científica européia e internacional da França, 4) faz a coleta dos dados científicos e técnicos necessários para o cumprimento das missões; 5) tem acesso aos dados coletados pelos serviços do Estado ou pelos estabelecimentos públicos sob tutela. Além do mais, recebe seus relatórios de perícia no que diz respeito…a seu campo de atuação; faz ou manda fazer todas as perícias, análises ou estudos necessários (…) 6) (…) conduz programas de pesquisas” (artigo L. 794-2). um raro poder de injunção que lhe permite obrigar toda e qualquer pessoa a fornecer dados pertinentes: “a pedido do Instituto, quando houver necessidade de prevenir ou dominar riscos para a saúde humana, toda e qualquer pessoa física ou jurídica tem por obrigação comunicar todas as informações relativas a tal ou qual risco das quais tenha posse”. Um poder um pouco semelhante é encontrado com a Comissão de Biovigilância, que assegura a “vigilância biológica do território” com a ajuda de agentes habilitados. O responsável pela comercialização de um OGM deve comunicar todas as informações e materiais necessários para a identificação e acompanhamento de eventuais efeitos não intencionais desses organismos, dentro dos ecossistemas agrícolas ou naturais; além do mais, a autoridade administrativa pode sob decisão “tomar todas as previdências para coletar os dados e informações…”. Assegura também que os agentes têm acesso às instalações e a todos os lugares de disseminação (artigo 364 bis e ter do Código Rural). Então, o poder político está começando a entender a distância que existe entre as pesadas tarefas de avaliação e a fragilidade dos meios disponíveis, nas comissões encarregadas do assunto. Múltiplos organismos públicos ou encarregados de missões de serviço público produzem dados, desde a meteorologia nacional até o Instituto Francês do Meio Ambiente (IFEN) ou o Instituto Nacional do Meio Ambiente Industrial e dos Riscos (INERIS). Apesar de sua extensão, o sistema tem várias falhas: não existe uma organização sistemática dos registros do câncer, quando isto deveria ser uma operação prioritária, tendo em vista a importância da doença. Outro exemplo foi na ocasião de uma crise como aquela do excesso eventual de leucemia ao redor de Hague, em que os epidemiologistas constataram uma ausência de acompanhamento epidemiológico nas proximidades de um equipamento que era objeto de contestação há muitos anos68! Enfim, os dados estão sendo fornecidos pela iniciativa privada, que tem por obrigação produzi-los no quadro dos procedimentos de autorização de comercialização, estudos de impacto, de periculosidade, de prevenção dos riscos, etc. De fato, o fabricante deve fornecer um dossiê, recapitulando o estado dos conhecimentos existentes a partir da literatura publicada e os novos resultados que vêm das experimentações que a 68 A. Spira e O. Bouton, Rayonnements ionisants et santé : mesure des expositions à la radioactivité et suivi de la santé, Relatórios oficiais, La Documentation française, 1999. regulamentação está impondo. Os sistemas são muito diversos. De modo geral, o fabricante só deve fornecer um dossiê em que houver “todos os elementos que permitam avaliar o impacto desta disseminação sobre a saúde pública e o meio ambiente”, sabendo que várias informações devem ser obrigatoriamente fornecidas e que a comissão encarregada da avaliação pode pedir informações complementares69. De outra forma, o fabricante propõe dados e sua visão de avaliação dos riscos. Em alguns sistemas, a comissão apenas verifica a conformidade formal da avaliação do fabricante; em outros, realiza sua própria avaliação a partir de dados fornecidos. As regulamentações sobre os produtos farmacêuticos, os produtos fitossanitários ou os produtos químicos oferecem, de fato, uma grande quantidade de dados toxicológicos70, os procedimentos necessários para colocar no mercado um carro ou um avião trazem inúmeros dados sobre os materiais, a resistência, os choques, etc. Apesar de toda essa parafernália, constata-se que, em caso de grave crise, não existem, muitas vezes, dados disponíveis ou utilizáveis (caso de Hague) ou as revelações são feitas pelas ONGs e pela mídia: após o naufrágio do Érika, em 12 de dezembro, a Total deveria ter comunicado de imediato para os Ministérios do Meio Ambiente e da Saúde o conteúdo exato da carga. Estes deveriam ter pedido uma análise dos riscos para o meio ambiente e a saúde. Todavia, em 27 de dezembro, foi a associação Robin des Bois que chama a atenção, extrapolando o caráter perigoso do petróleo a partir de um estudo britânico que fora efetuado após um naufrágio, datando de 1980! Esta primeira extrapolação teórica foi confirmada por um pesquisador do Muséum, em 19 de janeiro, e foi amplificada por um laboratório privado. Somente em 11 de fevereiro, ou seja, dois meses depois do naufrágio, o Ministério do Meio Ambiente acionou a comissão de perícia, INERIS, que confirmou o caráter cancerígeno do produto e avaliou o risco como sendo muito pequeno. ii. A obrigação de aquisição de novos dados Existe um amplo consenso para dizer que um risco reconhecido como plausível, apesar da ausência de provas experimentais, deveria, em virtude do princípio da 69 A exemplo do Decreto de 28 de abril de 1998 (J.O. de 29), relativo ao controle dos produtos fertilizantes e dos suportes compostos inteiramente ou em parte de OGM, para cultivo. 70 Em seu relatório para um reforço da segurança sanitária ambiental, O. Grzegrzulka e A. Aschiéri deploram, com razão, o fato desses conhecimentos não serem constituídos como ciências que são objeto de ensino. precaução, levar a uma obrigação de pesquisa, ou melhor, a uma obrigação de produção de dados. Aliás, o fato de conceber um programa de pesquisas que traz uma melhor avaliação deveria ser a primeira decisão de gestão do risco71. O procedimento de AMM72 tem como objeto obrigar o solicitante a experimentar e, então, a produzir novos dados. O direito de responsabilidade tem também uma incidência quanto à produção dos dados. De fato, o caráter defeituoso de um produto se mede em relação à segurança legitimamente esperada pelo consumidor. Esta esperança legítima remete, no caso dos medicamentos que não são isentos de riscos, aos efeitos indesejáveis que foram detectados no momento do procedimento AMM e durante a fase de farmacovigilância73. De fato, se o fabricante74 conhece bem seus produtos e informou satisfatoriamente o usuário com um rótulo bem feito, poderá ser exonerado da responsabilidade. A. Laude cita várias decisões da justiça que exoneraram da responsabilidade o fabricante que informara os riscos conhecidos ou possíveis (bula e dicionário Vidal), enquanto, em caso contrário, a responsabilidade é reconhecida. Além do mais, pode recair sobre o Estado se o fabricante informou às autoridades sanitárias que existiam elementos novos e que a agência não autorizara ainda a modificação dos rótulos75. Este sistema de responsabilidade regulamenta a aceitação, pela vítima, dos riscos de um produto, 71 P. Kourilsky e G. Viney, op. cit. p. 43. Além do mais, é preciso que a preocupação em produzir dados não leve a criar o risco. B. Wynne afirma que o Chefe do Serviço de Física Médica da fábrica de Windscale teria admitido que “os níveis de rejeição de inúmeros isótopos radioativos haviam sido escolhidos com valor muito elevado, de modo a realizar uma experiência real” in O. Godard, p. 201. 72 Autorização de Comercialização 73 J.-M. Aubry, F. Coustou, C. Mamain, M. Baumevieille, Droit pharmaceutique, fasc. 33; questiona-se se a seriedade dos estudos clínicos realizados sob a responsabilidade dos grandes grupos farmacêuticos continuaram com as pequenas start-up que prestam serviços de pesquisa para esses grandes grupos. Ver Le Monde, de 29 de novembro de 1997. 74 Aqui, estamos falando do fabricante no que se refere a sua responsabilidade. No entanto, no direito de autorização de comercialização aplicável aos produtos, o pedido de AMM é freqüentemente feito por uma pessoa física que não é o fabricante. Por exemplo, o importador para a União Européia, pois ele “é o responsável pela comercialização”. Ver, por exemplo, a definição dos dados na Diretriz n. 92/32/CEE, de 30 de abril de 1992, artigo 2.1.d). 75 A. Laude, Droit pharmaceutique, fasc. 44; Rennes, 12 de abril de 1994, Juris-data no 053394 e Versailles, 25 de junho de 1992, Juris-data 0442381; J. Calvo, La responsabilité du fait des effets secondaires des produits de santé, Petites affiches de 16 de fevereiro de 1999. Por outro lado, os conhecimentos disponíveis são constituídos por verdadeiras obrigações do direito da responsabilidade. É o caso de quando uma Corte de Apelação considera a responsabilidade de um hospital por falta de organização, afirmando que um médico não poderia, nessas condições, estar presente em menos de três minutos depois do nascimento de uma criança, quando depois deste prazo o recém-nascido sofre de graves seqüelas. Este prazo foi fixado de acordo com o estado dos conhecimentos e das técnicas. Ele fixa também o conteúdo da obrigação do hospital, Cass. Civ., 15 de dezembro de 1999, D. 1999, no 4, inf. rap. 28. reconhecido como hipoteticamente perigoso e, conseqüentemente, obriga a produzir e difundir dados precisos sobre o risco de um produto. Quanto à avaliação dos riscos, pode levar ao pedido de produção de novos dados. É o caso, por exemplo, da avaliação das substâncias químicas ditas prioritárias. Após ter sido avaliado, o produto torna-se objeto de uma “estratégia de redução dos riscos”, que estuda os casos peculiares dos trabalhadores expostos, do consumidor e do meio ambiente. Segundo os casos, os avaliadores estimam que não é necessário ter conhecimentos suplementares ou, então, que uma pesquisa é necessária76. (b) Os obstáculos jurídicos quanto à disponibilidade dos dados O fato do conhecimento existir não é suficiente. É preciso ainda que esteja disponível. O problema é saber: para quem ? Certos dados são públicos – mas não são necessariamente mobilizados – outros são privativos e, por fim, outros são disponíveis somente para as instâncias de avaliação77. Nem é preciso falar da questão específica da transmissão dos dados para o público, pois ela se refere mais a uma decisão de gestão do risco. i. Os dados de vocação pública Em primeiro lugar, pensa-se em todas as pesquisas acadêmicas78. Efetivamente, os universitários e os pesquisadores têm por missão publicar: a lei de orientação para a programação da pesquisa prevê que os estatutos dos servidores trabalhando na pesquisa “devem favorecer a livre circulação das idéias” (Lei nº 82-610 de 15 de julho de 1982, e para o ensino superior, Lei nº 84-52 de 26 de janeiro de 1984 e Decreto de 6 de julho de 1984). Mas são eles que devem decidir se sua pesquisa está baseada em resultados 76 Ver, por exemplo, o caso dos alcanos n C 10 (minus) 13, cloro. O Reino Unido, como avaliador, recomenda uma continuação das pesquisas sobre os riscos para os sedimentos resultantes da produção da substância e de seu uso nas borrachas, nos fluidos de tratamento dos metais e nos produtos de acabamento do couro. Ele afirma que “as necessidades em matéria de informação têm a ver com a determinação experimental do Koc, o controle do estado do solo e dos sedimentos, a proximidade das fontes de emissão, dos testes de toxicidade sobre os organismos que vivem no solo”, Recomendação da Comissão de 12 de outubro de 1999, JOCE no L. 292 de 13 de novembro de 1999, p.42. 77 Sobre este assunto, ver X. Strubel, La protection des oeuvres scientifiques en droit français, CNRS Droit, 1997. 78 C. Blaizot-Hazard, Les droits de propriété intelectuelle des personnes publiques en droit français, LGDJ, 1991; ver as análises de M. Vivant, in Le travail du chercheur – Les institutions scientifiques et les associations, in Cahiers du Comets – CNRS, junho de 1997. M. Vivant dá muita importância ao elo de dependência entre o CNRS e os pesquisadores e pouca, ao princípio de liberdade da pesquisa. Talvez isto se explique pelo fato de que ele se interessa, sobretudo, pela questão das patentes, muito pouco pela liberdade de expressão e, de maneira alguma, pela proteção da saúde pública. suficientemente abalizados para que um artigo possa ser publicado. Eles têm um tipo de direito de divulgação comparável ao direito do autor em relação a sua obra. A partir deste ponto, surgem vários problemas. O primeiro tem a ver com o conflito que poderia existir entre o público, que exige algo como um direito de publicação dos resultados de uma pesquisa contra a vontade de seu autor, que poderia querer não publicá-la, baseado no direito de divulgação amparado pelos direitos autorais. Ora, o direito de divulgação, proveniente do direito de propriedade literária e artística, é um conceito pouco adaptado às produções científicas que divulgam os dados, resultados brutos que revelam um fato de natureza, um trabalho, mas também, às vezes, uma abordagem original de um problema ou, no caso de um artigo, que é quase sempre sem nenhuma originalidade : observa-se aqui quase uma inversão de categorias do direito autoral – é o conteúdo que pode ser original, a forma que tem a ver com um exercício obrigatório. Então, talvez não se justifique atribuir ao direito de divulgação do científico o mesmo caráter discricionário que tem o direito autoral79. De fato, tensões surgiram no quadro dos testes de moléculas ativas contra Aids. Frente à urgência, pesquisadores e revistas admitiram publicar resultados de testes clínicos pela metade, quando deixavam presumir que poderia haver um progresso terapêutico importante. Isto levou, seguindo a mesma lógica, à disponibilidade das moléculas enquanto o procedimento AMM não estava concluído. O princípio da precaução impõe um prazo demorado para colocar um produto no mercado. No entanto, isto atrasa a disponibilidade de produtos essenciais para a saúde. É a razão pela qual um procedimento dito de autorização temporária de utilização pode vir temperar esse efeito perverso80. 79 Na seqüência de outros autores, X. Strubel afirma que “os fatos ou os dados experimentais necessários para o trabalho do cientista só podem ser apropriados como bens pertencentes ao domínio público. O tratamento pode ser diferente com os trabalhos científicos ou a fortiori com as explicações teóricas sobre os ditos trabalhos, a partir do momento em que o autor for capaz de apresentá-los de forma original”, p. 55. Não se pode colocar no mesmo plano os fatos, que são de livre acesso para todos, as observações que refletem esses fatos, mas que existem no mundo somente depois de terem sido divulgadas pelo observador, os resultados provenientes de um trabalho que vem da experimentação, ou pelo menos da perspectiva de várias observações e, finalmente, os artigos, hipóteses que subentendem um trabalho intelectual como sendo em parte criativo. 80 D. Degroote, as ATU, Dissertação de mestrado da Universidade Paris I. Ao contrário, acontece de o pesquisador encontrar empecilhos ao querer publicar. As revistas podem recusar publicações, alegando que os dados ou o protocolo de pesquisa não estão em conformidade com as normas da disciplina. Este argumento é indispensável, mas complica a publicação de resultados espantosos, sem explicação, e pode sofrer pressões variadas81. Também podem existir conflitos com o empregador, público ou privado, e o assalariado. Em todos os casos em que um dado litígio interessa à saúde pública e à proteção do meio ambiente, uma proteção deveria ser assegurada para o assalariado que decidiu revelar o fato, que vai contra a vontade de seu empregador. Por exemplo, o direito belga reconhece, a partir de uma decisão de abril de 1994, que o responsável pelos lixos tóxicos de uma empresa tem um status de assalariado protegido. O direito americano reconhece um regime geral de proteção para quem deu o alerta e leis especiais para a atividade nuclear, por um lado, e aeronáutica, por outro82. O direito trabalhista francês, que ignora essa instituição83, tornou uma decisão da Corte de Apelação de Nancy, confirmada pela Corte de Cassação, particularmente interessante. A. Cicolella, servidor do INRS, fora suspenso por insubordinação após um conflito quanto à divulgação de resultados que mostravam o caráter teratogênico e cancerígeno dos éteres de glicol, família de produtos encontrados em produtos de consumo de massa, como as pinturas ou produtos de limpeza para os vidros, assim como em várias técnicas de 81 Poderia ser citada a publicação feita pelo Le Lancet (16 de outubro de 1999) sobre a experiência de A. Puztsaï que dava resultados preliminares quanto à baixa do sistema imunológico de ratos que consumiram batatas inglesas geneticamente modificadas. Embora a revista tenha julgado a pesquisa em inconformidade com as regras do gênero, ela a publicou para não ser acusada de ter ocultado resultados que interessam à saúde pública. É preciso dizer que o pesquisador perdeu de imediato seu laboratório e que as experiências não parecem ter sido repetidas! Podem também ser citados os resultados provisórios sobre o uso dos telefones celulares de Sir W. Stewart, responsável pela pesquisa encomendada pelo governo inglês. Julgou interessante aconselhar, de imediato, que era preferível que as crianças não usassem esse tipo de aparelhos. 82 Esta proteção estende-se para todos os assalariados das prestadoras de serviços, o que é muito importante. 83 Ver a proposta de A. Aschieri, em seu relatório parlamentar sobre a segurança ambiental, de 16 de novembro de 1998 ; M.-A. Hermitte e C. Noiville, L’Obligation d’information en matière de santé publique, op. cit ; e M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit. p. 375. X. Strubel considera que o pesquisador da iniciativa privada deve manter o sigilo, de acordo com seu contrato de trabalho, mas que poderia chocarse com a liberdade de expressão se não estivesse limitado no tempo. Infelizmente não existe jurisprudência sobre este assunto. A única coisa que poderia ser dita é que os autores que contestam o eletronuclear não perderam seus empregos. Os pesquisadores públicos podem, de acordo com o Decreto de 1984, “publicar os resultados de seus trabalhos, sob reserva dos interesses da coletividade nacional e do respeito dos direitos de terceiros que participaram desses trabalhos”. Neste caso, a sanção aparece mais pelo intermediário do “afastamento”, supressão de grupos de pesquisa ou de créditos. fabricação. A Corte declarou a demissão como sendo abusiva, pois, “apesar de uma relação de subordinação inerente a todo e qualquer contrato de trabalho, o empregador deveria, no caso, exercer seu poder de hierarquia nos limites compatíveis com a natureza das responsabilidades confiadas ao interessado e dentro do respeito à independência dos profissionais da saúde, em seu ambiente de trabalho”84. De fato, o alerta por razão de saúde pública deveria ser objeto de uma verdadeira obrigação de denúncia, como ocorre em outros setores85. Publicada, uma pesquisa deve proporcionar livre acesso para todos. Mas é preciso deixar claro que isto não resolve totalmente a problemática da disponibilidade. O volume dos artigos científicos publicados é tão grande que é necessário ter meios importantes para poder mobilizá-los para fins de avaliação: reunir os artigos pertinentes, apreciá-los, tendo em vista os diferentes protocolos, analisá-los. Por outra parte, a publicação em revistas científicas não implica necessariamente uma transferência de dados para as autoridades sanitárias. No caso da transfusão de sangue, o Conselho de Estado só reconheceu a responsabilidade do Estado a partir do momento em que os dados publicados foram oficialmente transmitidos à DGS. Enfim, é preciso insistir sobre a diferença que existe entre resultados, que são dados construídos dentro dos limites que isto implica, e a disponibilidade de dados brutos que permitem uma discussão quanto à avaliação de outros organismos, que poderia ser feita a partir deles86. Ora, é cada vez mais freqüente o não fornecimento desses dados intermediários (economia de papel, de espaço nas revistas, sentimento de propriedade…). ii. Os dados privativos 84 Caso Cicollella, Nancy, 17 de junho de 1998, e Cass. Soc., 11 de outubro de 2000. Depois, a questão foi objeto de uma perícia coletiva realizada pelo INSERM, a pedido do Ministério do Emprego. Ela mostra claramente a pouca vontade de estudar a toxicidade dessas moléculas bastante difundidas. Enquanto estavam sob suspeita há muito tempo, a toxicidade de duas dentre elas foi estudada e estabelecida nos anos 1980, apenas. A França só reagiu em 1997, com decisões de proibições e com uma solicitação de perícia sobre as outras moléculas. Esta perícia é disponibilizada pelo INSERM , sob pedido ou em sua página da internet. 85 Na lei sobre a segurança sanitária, o Instituto de Vigilância Sanitária tem o poder de solicitar informações a qualquer um, então obrigado a fornecê-las, mas não há nada previsto no que diz respeito à obrigação de denúncia espontânea. Se ela existisse, seria preciso controlar os inevitáveis deslizes! O direito já conhece o equilíbrio entre a obrigação de denúncia e a denúncia caluniosa, Paris, 15 de maio de 1996, D. 1998. II. 196, e Cass. Crim., 3 de fevereiro de 1998, inf. rap. 107. 86 Este ponto é muito importante para a gestão do risco. Um industrial pode informar quanto à qualidade ecológica de seu funcionamento ou transmitir dados brutos que podem ser trabalhados pelas associações. Eles podem ser produzidos pela iniciativa privada ou pelo serviço público, agindo sob contrato de pesquisa, na medida em que o contrato prevê, na maioria das vezes, uma cláusula de confidencialidade que atribui ao responsável pelo financiamento da operação o poder de controlar e de proibir a divulgação dos resultados87. Em princípio, os conhecimentos produzidos por uma empresa pertencem-lhe a título de propriedade privada. Além do mais, certos dados técnicos têm a ver com o segredo industrial, certos dados econômicos com o segredo das finanças, e todos os que têm acesso a esses dados por causa de suas profissões (desde o contador até o cientista que avalia os riscos) estão obrigados a guardar segredo profissional. Entretanto, o direito de segurança dos produtos fixa limites quanto a essas afirmações. Em primeiro lugar, existe a obrigação de etiquetagem que fornece um certo número de informações. Há, sobretudo, a obrigação, para o industrial, de produzir e transmitir certos dados para as autoridades encarregadas da avaliação e da gestão dos riscos (e, em certos casos, torná-los públicos: em matéria de OGM existem informações sumárias proibidas de continuarem secretas, por ordem do legislador, e o relatório público deve ser transmitido ao público em virtude do artigo 23 da posição comum, mas nada diz o que ele deve conter). Esses dados não foram produzidos de forma espontânea pelo industrial, para seu interesse pessoal, mas elaborados a suas custas, sob obrigação, para assegurar a proteção da saúde pública. Então, têm uma dupla natureza: são de interesse geral, o que levaria a pensar que deveriam ser públicos ou amplamente compartilhados, porém têm valor econômico, o que obriga a proteger o produtor contra a concorrência desleal. Isto foi inscrito no artigo 39-3 do Acordo ADPIC, que considera que esses dados só devem ser divulgados em caso de necessidade para proteger o público, sob condição de serem resguardados contra uma exploração desleal. Então, não se trata aqui da proteção de uma propriedade, mas da proteção de um investimento, de uma posição de concorrente88, o 87 Uma cláusula-padrão foi publicada por M. Fontaine, in Les clauses de confidentialité dans les contrats internationaux, Rev. De la dir. des aff. Internationales, n. 1-1991, p.41. Observa-se nas revistas científicas a freqüência de queixas contra as proibições de publicação e as recusas de defesa de tese, que resultam do elo cada vez mais estreito entre a pesquisa pública e a iniciativa privada. Consoante um estudo feito em 1997 por D. Blumenthal, as empresas que financiam pesquisas exigem, em 58% dos casos, que os resultados permaneçam secretos durante seis meses. Este prazo é necessário para que se escolha o que pode ser publicado, o que deve permanecer secreto e o que deve ser patenteado. 88 Federal disclosure statute and the fifth amendment, the new statues of trade secrets, The University of Chicago Law Review, 1987, vol. 57, 334, e P.O Mc Garty e S. Shapiro, The trade secret status of health que foi confirmado pela jurisprudência da Corte de Justiça de Luxemburgo, que vê “um direito exclusivo de explorar os resultados dos testes farmacológicos, toxicológicos e clínicos contidos no dossiê durante um período de seis ou dez anos, a partir da primeira AMM deste produto, dentro da Comunidade”89. Pode-se pensar esta questão a partir do exemplo de dados produzidos no quadro dos procedimentos de AMM, seja no momento do teste de inocuidade do produto, seja quando executa sua obrigação de vigilância, sendo esses dois regimes jurídicos bem distintos. Os dados provenientes dos testes clínicos são custeados pelo promotor do teste. Em princípio, são propriedade do industrial90 que, quando os transmite para as agências de avaliação dos riscos, o faz amparado pelo segredo profissional, aplicado a toda uma cadeia de interventores em aplicação do artigo R. 5120 : “(…) os experimentadores, os investigadores e todas as pessoas chamadas para colaborar com os testes devem manter o segredo profissional no que diz respeito, notadamente, à natureza dos produtos testados, aos testes, às pessoas que os fazem, assim como aos resultados obtidos. Eles podem, sem a anuência do promotor, dar informações relativas aos testes somente para o ministro encarregado da pasta da saúde, para os fiscais da farmácia, para o diretor geral e fiscais da Agência de Medicamentos. Os testes não podem ser objeto de nenhum comentário escrito ou oral sem a anuência conjunta do experimentador ou do investigador e do promotor”. As informações privativas sobem na pirâmide da vigilância sanitária, mas não têm por vocação chegar até o público, salvo os procedimentos de alerta. Então, existe uma produção clara de dados, pela indústria, que participam efetivamente da busca de segurança, mas que só garantem a segurança de um produto sem tornar-se um conhecimento comum ou reutilizável, o que pode prejudicar a eficácia and safety testing information, reforming agency disclosure policies, Harvard Law review, vol. 93 march 80, n. 5, p. 837. 89 CJCE, 3 de dezembro de 1998, caso C-368/96, The Queen v. LSA, ex parte Generics UK, rec. I 8028; esta expressão de direito exclusivo temporário deixa dúvida, pois trata-se da definição dos direitos de propriedade intelectual! 90 Aliás, são fragmentados e somente a AFSSPS dispõe da totalidade deles. De fato, o solicitante de AMM, muitas vezes, não é o fabricante do princípio ativo. Em sua solicitação, refere-se aos dados ditos DMF, produzidos por esse fabricante, mas não tem domínio sobre eles. Da mesma forma, os dados obtidos pelo investigador são transmitidos para o industrial em envelope lacrado para arquivamento, de maneira a proteger o segredo médico, assim como os dados de laboratório, que foram obtidos pelo próprio industrial, sob cobertura do segredo médico. do objetivo de proteção procurado pela saúde pública91. Existem diferentes mecanismos de divulgação desses dados. O primeiro deles consiste na publicação dos resultados dos estudos clínicos realizados pelos investigadores, no quadro hospitalar universitário, o que requer a autorização do proprietário dos dados. No entanto, existe outro mecanismo, não desprovido de interesse, que vem do procedimento simplificado de solicitação de AMM. Com o duplo objetivo de facilitar a tarefa dos fabricantes de genéricos e de “economizar” sujeitos de experimentação, homens e animais, as agências encarregadas da avaliação foram convidadas, por meio da Diretriz 87/21 a reutilizar os dados fornecidos pelo titular de AMM originário, para o beneficio do segundo solicitante, com a condição de que os dois produtos sejam semelhantes. De imediato, violentos conflitos opuseram fabricantes de genéricos e “inovadores”, que se encontram em posição delicada uns em relação aos outros. Os inovadores são indispensáveis para assegurar o progresso técnico. Eles patenteiam suas invenções, o que lhes assegura uma primeira proteção contra a concorrência; a duração desta proteção é prorrogada por um certificado complementar, tendo por objeto uma compensação do tempo perdido por causa dos testes clínicos. Durante este período, os inovadores podem fixar preços muito elevados. Depois, dispõem não mais da invenção, mas dos dados AMM por um prazo de 6 a 10 anos, de acordo com cada caso, dos quais eles são os únicos que se beneficiam, embora a invenção possa ser reproduzida. O fabricante de um genérico, com a patente sendo de domínio público, gostaria de lançar-se nessa fabricação; deveria recomeçar os testes para não beneficiar-se de forma desleal do trabalho feito por seu concorrente. Teria que vender o produto incluindo no preço final o custo da fabricação aumentado pelos custos dos testes clínicos. Ao contrário, no final desse prazo, ele poderia começar a fabricação sem precisar refazer os testes; só incluiria os custos de fabricação em seu preço final. A saúde pública se beneficiaria da inovação a custos elevados, enquanto a generalização do medicamento seria feita a preços muito menores. No caso, não existe nem divulgação da informação no meio do público, nem compartilhamento da informação entre os concorrentes, mas 91 Será notado, por exemplo, o esforço da Comissão da União Européia para autorizar os industriais a usarem os conhecimentos coletivos disponíveis nas publicações, assim como nas fontes de dados, para evitar a repetição de experimentações, de fato inúteis, mas nada está especificado para que os resultados de tais experimentações ou da farmacovigilância estejam incluídos numa base de dados coletiva e acessível para todos, uma vez que as patentes são obtidas e os remédios, comercializados; ver Diretriz n. 1999/83/CE, de 8 de setembro de 1999. apenas o uso pela autoridade nacional dos dados fornecidos por um concorrente para o beneficio de outro. Em contrapartida, os conhecimentos em matéria de toxicologia, que são compartilhados no âmbito do grupo informal, criado na Europa em 1995 (MRFG), tendo como objetivo a melhoria da coordenação do procedimento de reconhecimento mútuo entre os Estados-membros, têm um tratamento diferenciado. Para isto, este grupo emite recomendações resultantes de posicionamentos consensuais, não em relação a assuntos precisos, mas sobre sínteses (break out sessions), o que é uma maneira de compartilhar o conhecimento entre as autoridades competentes. Quanto ao público, terá somente uma “síntese dos dossiês de autorização do novo medicamento” e da organização de “reuniões regulares de informação com as associações de pacientes e usuários da medicina sobre os problemas de vigilância sanitária” (artigo L. 793-1). No quadro do procedimento europeu centralizado de avaliação dos medicamentos, o relatório de avaliação encontra-se disponível na página da internet da agência européia, uma vez que a AMM foi atribuída. No entanto, este relatório é uma versão especial, destinada à publicação, diferente do relatório interno92. O esquema é um pouco diferente com os dados provenientes do desenvolvimento das “vigilâncias”, com o acompanhamento a longo prazo da evolução dos produtos e dos efeitos indesejáveis criados por eles: farmacovigilância para os remédios, hemovigilância para os derivados do sangue, vigilância sobre as instalações médicas, reatovigilância para os reativos dos laboratórios de análise, biovigilância para os organismos geneticamente modificados… De novo, não existe neste caso reflexão jurídica geral. As soluções são diferentes para cada caso. No que diz respeito aos medicamentos, trata-se de dados privativos que tramitam por um duplo circuito. Por um lado, partem do corpo médico para as instituições de Estado, européias e depois internacionais, entre as quais existe uma troca de informações (Comissões Regionais e Nacional de Farmacovigilância, Agência Européia, OMS). Por outro lado, vão das mais diversas fontes, incluindo os próprios pacientes, até a indústria que os integra em sua base de dados e os transmite para as agências habilitadas, a Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Produtos da Saúde (AFSSPS), no caso da 92 Regulamento 2309/93 CE, artigo 12-4. França; a Agência Européia do Medicamento para a Europa; a Federal Drug Administration (FDA) para os Estados Unidos. Ora, de um lado esses dados têm um status privativo e são protegidos pelo segredo profissional; do outro, toda e qualquer pessoa pode solicitar à FDA que transmita essas informações em virtude do Freedom Information Act. Além do mais, guides lines exigem estudos sintéticos regulares desses efeitos, que se tornarão públicos, e a Agência Européia do Medicamento tem, dentre suas missões, a de fornecer uma assistência técnica para o funcionamento de uma base de dados de informação sobre os efeitos indesejáveis dos remédios (artigo 51-c). No caso da toxicovigilância, os produtores de dados são os profissionais da saúde e os centros de luta contra os venenos. Esses dados são confidenciais, embora sintetizados e colocados em comum no nível de um comitê técnico de toxicovigilância (Decreto 99-841, de 28 de setembro de 1999). Os dados recolhidos no âmbito da Comissão de Biovigilância dos OGM são, ao contrário, públicos e compartilhados por todos os membros da comissão, o que inclui representantes das ONGs. Então, o direito positivo está tentando conciliar a tradição do segredo e do caráter privativo com a reivindicação de transparência. Algumas empresas têm por escolha a publicação de dados que, até então, diziam respeito a sua esfera privativa. É o caso, por exemplo, das medidas de radioatividade da região de Hague, famosa zona de conflitos. A nova diretora da empresa criou uma página na internet (www.cogemalahague.fr) na qual se encontra uma rubrica “Tudo sobre o meio ambiente”, onde são publicados a cada dia para alguns, a cada mês para outros, dados sobre o meio ambiente. Eles são classificados em níveis de rejeições, níveis de medidas e níveis de impactos, resultados que são publicados após amostragens, medições, verificações e cálculos específicos. Tal iniciativa permite que os grupos de oposição discutam a apresentação das medições, o que é um progresso considerável. Pergunta-se se esta iniciativa não é uma prefiguração do que se poderiam tornar, daqui para a frente, os dados sobre o meio ambiente e a saúde, que são obtidos na esfera pública ou na esfera privada da empresa. O sistema institucionalizado das auditorias voluntárias é também uma prefiguração93. 93 Sobre a vigilância sanitária e a transmissão dos dados individuais de certos pacientes, ver J.-S. Cayla, Revue de droit sanitaire et social, 1999, p. 718. Para E. Derieux, o direito à informação, nascido no âmbito do direito da imprensa, é uma extensão da liberdade de expressão e de comunicação. No entanto, ele não se O que é transmitido para as únicas instâncias de avaliação situa-se entre o que é público e o que privado. iii. Os dados mobilizáveis para as instâncias de avaliação As autoridades competentes, submetidas ao segredo profissional, detêm os dados produzidos pelas empresas para e no interesse do público, o que explica que possam tornar pública uma informação em caso de alerta (protegendo na medida do possível os dados resguardados pelo segredo). Para isto, elas têm acesso a todos os dados publicados, com a condição de ter os meios de mobilizá-los e de organizá-los, o que é um trabalho considerável e para o qual nem sempre há meios materiais. Além do mais, beneficiam-se de um trânsito de informações especialmente organizado no quadro da lei sobre a segurança sanitária, dados, perícias94. É difícil saber se os industriais cumprem sua tarefa com todo o rigor necessário. Parece que não é o caso, no âmbito dos produtos fitossanitários, consoante o grupo Monsanto, julgado nos Estados Unidos, onde a lei obriga o industrial a assinalar os efeitos cancerígenos de seus produtos e prevê uma multa significativa para cada dia que passa entre a disponibilidade do conhecimento e sua divulgação para as autoridades, no caso a Agência de Proteção Ambiental (EPA). Ora, o Monsanto soube em 1981 que seu pesticida Santogard provocava câncer em ratos. Foi somente em 1986 que a EPA entrou na justiça e, em 1990, que o Monsanto foi condenado a pagar uma multa por não ter respeitado a obrigação de repassar os dados científicos em questão. Infelizmente, a multa foi consideravelmente reduzida após negociatas. A rodada de negociações realizadas pela EPA com o conjunto das empresas químicas parece ter levado à conclusão de que há uma subdeclaração realmente dramática95. satisfaz mais com opiniões e pontos de vista. O público reivindica um “direito dos fatos, dos dados, do conhecimento”, Bases de données et droit à l’information, Petites Affiches, de 18 de fevereiro de 1998. 94 M.-A. Hermitte e C. Noiville, L’obligation d’information en matière de santé publique, Gazzette du Palais, outubro de 1998, número especial de Droit de la Santé. 95 Neste caso, ver M. Lavelle, EPA’s amnesty has become a mixed blessing, The national law journal, 24 de fevereiro de 1997; tais acontecimentos raramente são revelados embora ocorram freqüentemente. Convém lembrar de um pesquisador da Universidade da Pensilvânia que não dera resultados desfavoráveis num protocolo de teste de terapia genética em ratos. Isto acabou de forma suficientemente lógica com a morte de pacientes que aceitaram a experimentação! L’Usine Nouvelle, junho de 2000, hors serie, p. 9. No plano internacional, esse trânsito de informação em direção às autoridades, de uma forma ou de outra encarregadas da segurança, gera também um problema. O que pensar, por exemplo, do testemunho de um perito na questão dos hormônios, visto que afirmou que se limitara aos dados publicados, mas que citou os “dados privativos”, dizendo não ter intenção de usá-los96! Uma instância como o Instituto de Vigilância Sanitária da França tem o poder de solicitar todos os dados úteis à saúde pública, qualquer que seja o regime jurídico do dado: “a pedido do Instituto, quando houver necessidade de prevenir ou controlar riscos para a saúde humana, toda e qualquer pessoa física ou jurídica tem por obrigação comunicar-lhe todas as informações referentes a tais riscos que estão a seu alcance. O Instituto, após a solicitação, terá acesso às informações protegidas pelo segredo médico ou industrial, dentro de condições que preservam o caráter confidencial desses dados, quando relacionados a terceiros. Essas condições são definidas pelo Conselho de Estado” (artigo L. 792-III). Então, existem os dados públicos para todos, os dados privativos obrigatoriamente transferidos e os dados privativos transferidos, após injunção especial. Em relação a isto, as comissões ad hoc, encarregadas da gestão de uma crise, encontram-se em situação bem menos confortável, visto que elas não têm nenhum poder para pedir informações, nem junto à iniciativa privada, nem mesmo junto aos pesquisadores antes que publiquem seus resultados. Isto criou certas dificuldades no caso da Comissão Dormont, na perícia do caso da vaca louca. Essas dificuldades foram maiores pelo fato de a maior parte do material biológico encontrar-se na Grã-Bretanha97. Então, é possível constatar que a questão da disponibilidade dos dados nunca foi pensada de forma global, no intuito de permitir uma avaliação racional dos riscos. Quando, como, sob qual forma e em quais limites produzir dados? Para quem devem ser disponibilizados – para as instâncias de avaliação sob condição de sigilo, para a contraperícia que deve também manter o sigilo, deveriam ser públicos para serem discutidos em fóruns interativos? São tais perguntas que a divisão canadense de avaliação 96 Grupo especial WT/DS26/R/USA, 18 de agosto de 1997, testemunha de M. Ritter, p. 332. Propositions pour le principe de précaution à la lumière de l’affaire de la vache folle, M.-A. Hermitte et D. Dormont, in P. Kourilsky et G. Viney. Le principe de précaution, Odile Jacab. La Documentation française, 2000. 97 dos produtos químicos tenta responder quando ela nomeia um “responsável” para cada substância química e o encarrega da organização das relações com “o grupo de contato”, composto pelos representantes dos ministérios que nomeiam os peritos, com o “grupo de recursos”, que reúne os peritos, e com o “grupo de ligação”, que reúne pessoas interessadas no procedimento de avaliação. O esboço da avaliação torna-se, então, objeto de um exame público que permite que qualquer pessoa alheia ao processo traga novos dados científicos. ii) A organização jurídica da confiabilidade dos dados Parece evidente que a avaliação deva ser realizada a partir de dados exatos. Todavia, D. Bourcier e M. de Bonis observam que, em muitos casos, a questão do certo e do errado permanece insolúvel na ciência, sobretudo se este saber não avalia nem as relações de dependência, nem as formas de criação dos conceitos98. Conseqüentemente, o trabalho dessas relações de dependência e essas criações constituem uma tarefa considerável e serão dados, aqui, apenas alguns elementos necessários para iniciar-se uma reflexão em nível jurídico. Em primeiro lugar, é preciso que os dados tenham sido obtidos de forma leal, sem fraude ou sem negligências culposas. Depois, é necessário que a produção respeite várias regras de prática correta, que assegurem a qualidade dos resultados99. Esses dois elementos fazem parte da deontologia científica. No entanto, quando uma produção científica é levada para a avaliação dos riscos, deve além do mais permitir que terceiros debatam e decidam sobre ela. Esses objetivos, alheios ao objetivo científico clássico, constituem uma obrigação suplementar que recai sobre o trabalho científico. (a) A lealdade dos resultados Um certo número de falsos documentos mostraram que alguns cientistas falsificavam seus resultados. Isto pode ir de uma falsificação pura e simples, constitutiva de uma verdadeira fraude, até o descuido com os diários laboratoriais. Entretanto, um trabalho rigoroso implica que tudo deve ser anotado, o que se torna obrigatório no direito farmacêutico, por causa das práticas laboratoriais ou práticas de boa conduta que exigem 98 Op.cit. , p. 86. Ver circular sobre as práticas clínicas corretas que datam de 1987. O artigo L. 513 do CSP considera que as práticas laboratoriais corretas devem garantir a integridade dos resultados dos testes. 99 anotações e discussões não somente sobre os acontecimentos indesejáveis, mas também sobre os simplesmente “anormais”. Embora este fenômeno seja antigo, as reações são recentes. Os Estados Unidos começaram a implementar uma “polícia científica” ao instituir o Office of Research Integrity, assim como alguns países europeus, a Grã-Bretanha e a Alemanha em particular. A França adotou uma recente missão do INSERM, que delineou um tipo de programa de trabalho, que se tornou público, em 17 de julho de 1998. Nele afirma-se que “as agressões à integridade prejudicam a ciência”. Então, é importante detectá-las, tratálas e, eventualmente, sancioná-las. A missão descreve os vários níveis de agressão à integridade, desde “a falta de rigor na estimativa das condições de aquisição ou de apresentação dos dados” até a “vontade deliberada de esconder os fatos científicos ou as condições de suas descobertas”. Em seguida, afirma-se que “se uma agressão importante à integridade não se deu de forma deliberada; ela é reveladora de uma incapacidade que deve ser analisada e tratada”. Observa-se que a missão encontrou de maneira espontânea as categorias jurídicas, fraude, negligência, caráter voluntário ou involuntário; aliás, afirma a importância do diário laboratorial, “meio de controle interno dos erros ou fraudes, fundamento de toda e qualquer instrução de presunção de fraude” e insiste sobre a enorme importância da conversão dos dados brutos e da estratégia escolhida. Da mesma forma, esses problemas são abordados pelos códigos de ética elaborados pelos cientistas de um determinado ramo e nas cartas de enquadramento dos estudantes de doutorado, por exemplo100 ; lê-se no Manual de Ética do Microbiologista que “a integridade implica a integridade científica, a ausência de ingerência nas decisões profissionais (…); em todas as circunstâncias, a realidade do fato científico deve ser respeitada. Na produção científica ter certeza da qualidade dos dados utilizados e permitir que outros verifiquem esta qualidade constituem o fundamento da ética cientifica (…) A falsificação é o erro mais grave”. O direito farmacêutico procura responsabilizar os produtores de dados, obrigando-os a registrar os dados “de forma indelével”, datando-os e assinando-os. A instrução de 1983 prevê que qualquer modificação dos dados crus deve ser feita de forma a não esconder o registro original. 100 Ver Carta da Sociedade Francesa de Microbiologia, disponível na Internet, GPCharte Ethique.htlm Sem dúvida, não é preciso exagerar quanto à originalidade da questão da falsificação dos resultados científicos em relação à fraude em geral. Entretanto, nos campos referentes à saúde pública e ao meio ambiente, o direito francês talvez não tenha definido um delito específico que vise à falsificação dos dados ou até mesmo à omissão voluntária dos mesmos101. De fato, a disposição do Código Penal, que parece ser a mais apropriada, consiste no artigo 434-20, cuja formulação muito geral parece poder ser aplicada aos peritos que agem no âmbito da decisão política: “É punido o fato de um perito falsificar de qualquer forma seus relatórios escritos ou orais, os dados ou os resultados da perícia (…)”. Todavia, o artigo encontra-se num título do Código Penal que trata do desrespeito à autoridade do Estado, no Capítulo IV, sobre o desrespeito à ação da justiça, e foi concebido apenas para os peritos judiciais ; ora, o princípio da legalidade dos delitos e das penas traz uma interpretação restritiva da disposição. Pode-se pensar, em caso de divulgação na imprensa, no artigo 27 da Lei de 29 de julho de 1881. No entanto, ele só reprime a divulgação de fatos concretos, ainda não divulgados, cuja inexatidão é certa. Isto acontecerá raramente nos campos que nos interessam. O caráter restritivo da disposição protege a quem deu o alerta, como o perito imprudente que, passando por cima das incertezas, apresentou uma verdade truncada em vez de uma mentira. O direito apresenta uma lacuna, a deontologia coloca-se em seu lugar. É preciso parabenizar o Protocolo de Cartagena; ele prevê que o Estado-membro da parte exportadora do OGM fique com a responsabilidade jurídica quanto à inexatidão das informações comunicadas pelo exportador (artigo 8), e o Anexo I obriga-o a declarar que as informações que forneceu são exatas. (b) A qualidade dos resultados A qualidade dos resultados depende da pessoa que os produziu e das condições de suas produções. Ela deve ser independente, dispor de bons equipamentos, respeitar protocolos pertinentes de pesquisa. Objetividade e independência102 A objetividade, noção denegrida, situa-se entre os objetivos de lealdade e qualidade. Em primeiro lugar, depende da neutralização dos elos de dependência nos 101 D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 365 e 386. Este ponto foi desenvolvido por M.-A. Hermitte, in L’expertise scientifique à finalité politique, réflexions sur l’organisation et la responsabilité des experts, Revue Justices, n. 8, outubro de 1997, p. 79. 102 quais se encontram os avaliadores. No campo da farmácia, as precauções foram organizadas com maior cuidado. Em matéria de OGM, a quarta emenda à disposição comum integrou uma consideração, segundo a qual “é necessário que seja efetuada uma avaliação sistemática e independente dos riscos; recursos suficientes devem ser previstos para este fim e os pesquisadores independentes devem poder dispor de todo o material necessário”. Em direito farmacêutico, tanto no nível europeu quanto no nível francês103, a idéia é de afastar, na medida do possível, o perito que está tendo interesse no que diz respeito ao produto a ser analisado, embora se reconheça que é impossível afastar os peritos mais competentes, sabendo que, freqüentemente, eles têm vínculos com a indústria. O instrumento que permite administrar a dependência é a declaração de interesse que torna públicos os vínculos do perito, de forma a excluí-lo ou a situar o contexto de seus posicionamentos. Ela se refere ao perito e aos membros de sua família, e visa a todos os elos diretos ou indiretos que ele possa ter com o objeto da perícia, modulando soluções em função do “posicionamento arbitrário” que pode resultar do conflito de interesse104. Assim, tentar-se-á conhecer tudo que poderia influenciar o perito, participação no capital de uma empresa, remuneração pessoal, vínculos resultantes de uma participação em testes clínicos ou em qualquer forma de trabalhos científicos, perícia científica ou atividades de assessoria para uma empresa, pagamento para o grupo de pesquisa da qual o perito faz parte, financiamento da tese, etc. A declaração de interesse público permite, de acordo com os casos, proibir que um perito participe das deliberações e debates, da votação, da realização de um relatório de avaliação, até mesmo obriga um perito a sair da sessão. 103 É a lei de 1o de julho de 1998 sobre a segurança sanitária que previu, para os membros das comissões e conselhos da AFFSSPS e seus peritos, a obrigação de endereçar uma declaração de interesse, pública e regularmente atualizada (artigo L. 793-8 do CSP). Todas as declarações de interesse estão consignadas num processo verbal de relato de sessão. 104 Será consultado, para maior proveito, o recente Guide de fonctionnement des comissions et conseils, estabelecido pela AFSSPS, que se tornou público, em junho de 2000. A definição anglo-saxã do posicionamento arbitrário é, sem dúvida, a mais convincente. Trata-se de uma opinião pré-concebida, uma escolha arbitrária ou, ainda para alguns, “uma inclinação do temperamento ou uma maneira de encarar as coisas, uma distorção do julgamento muito pessoal e não racional” (p. 5). Na França, a versão mais severa da repressão desses comportamentos encontra-se na tomada ilegal de interesse dos artigos 432-12 e 13 do Código Penal. Entretanto, todas essas precauções parecem insuficientes, consoante o New England Journal of Medecine, de 18 de maio de 2000105. Ele denuncia os vieses dos estudos clínicos de certos medicamentos e cita uma pesquisa que teria mostrado que 38% dos estudos não financiados pela indústria apresentavam efeitos indesejáveis de anticancerígeno, enquanto só se encontrava menção desses efeitos em 5% dos estudos financiados pela indústria. Da mesma forma, a Direção da Prevenção à Poluição e aos Riscos do Ministério do Meio Ambiente francês apresentou, no dia 11 de maio de 2000, relatório bastante negativo, no que diz respeito ao direito das instalações registradas: “pressionados pelos políticos locais e chantageados pelos pecuaristas, os inspetores são freqüentemente responsáveis por setores incompatíveis com seu papel de fiscal; muitas vezes, um inspetor é encarregado ao mesmo tempo da promoção da pecuária e da fiscalização dos lixos de matadouros”106. Então, cogita-se redigir um código de deontologia para garantir a independência e a transparência. Qualidade técnica dos dados Não é suficiente resolver os problemas de dependência. Ainda é preciso acertar a metodologia que permite obter uma boa qualidade técnica dos resultados. A reflexão sobre este tema já é antiga, mas ela tende a aprofundar-se, alguns até propondo que o registros de laboratórios estejam conforme as normas internacionais, como, por exemplo, a norma de qualidade ISO 9002107. Ela é sintetizada no conceito das práticas corretas, essencialmente nas práticas laboratoriais corretas e testes clínicos, duas fases do sistema de experimentação, integradas num dispositivo mais amplo, que compreende também as práticas de fabricação e vigilância corretas108. No direito farmacêutico, a Instrução de 31 de maio de 1983 já indicava com clareza os objetivos das práticas laboratoriais corretas: “assegurar-se da qualidade dos estudos de toxicologia experimental”, garantir “a 105 www.jama.ama-assn.org Le Monde, quinta-feira, 13 de maio de 2000. 107 As jurisdições americanas trabalham a questão de saber sob quais condições um conhecimento científico produzido no momento de um processo poderia ser considerado como científico ou não. Ver as análises de R. Munagorri, p. 628 e, mais particularmente, o papel da publicação e da avaliação pelos pares. Observarse-á que a contribuição essencial dos últimos julgamentos é a de ter dissociado o caráter científico de uma perícia da possibilidade de afirmar que há certeza quanto ao resultado. 108 Poderia citar-se também o Guide des Bonnes Pratiques de Publication, fornecido pela Agence du Médicament para aqueles que publicam estudos sobre os efeitos indesejáveis dos medicamentos, no quadro da farmacovigilância; este se destina também aos responsáveis editoriais das revistas médicas “afim de assegurar, numa visão de saúde pública, uma qualidade otimizada dessas publicações”. 106 qualidade e a integridade dos resultados” (artigos L. 51301 e R. 5118 do CSP). São a “tradução moderna da pesquisa de qualidade, constante preocupação para qualquer experimentador competente”. Apresentam-se como um conjunto de recomendações de “procedimentos” que criam um padrão capaz de garantir a concepção e realização dos testes clínicos, de tal forma a tornarem os dados válidos, precisos e fiéis (guia do ICH). O respeito a estas regras permite assegurar a qualidade dos resultados109, uma proteção mínima para os sujeitos de experimentação e a harmonização internacional das obrigações que pesam sobre a indústria (é o objeto da tripartite guideline do ICH, acordo entre os Estados Unidos, o Japão e a União Européia sobre as práticas corretas em matéria farmacêutica, que “facilita o reconhecimento mútuo dos dados clínicos pelas autoridades competentes”, nessas três regiões do mundo e, de fato, muito além delas)110. As regras do ICH não têm nenhum valor jurídico dentro de um plano formal ; entretanto, na medida em que são as diferentes autoridades que autorizam a comercialização e que exigem seu respeito, sua efetividade é importante111. Um dos pontos mais importantes para a avaliação reside nas condições de extrapolação de um resultado. O poder político, as mídias, o público raciocinam a partir de resultados que utilizam de forma bruta, sem precisar o contexto de hipóteses que os validam e os limitam. Ora, freqüentemente é neste nível que os erros são cometidos. Então, torna-se importante verificá-los constantemente. De certa forma é o que sugere o relatório do Conselho Superior de Higiene Pública da França sobre o impacto das instalações nucleares, quando em funcionamento normal112. Faz um certo numero de recomendações no intuito de melhorar a qualidade dos dados que precedem a avaliação do impacto dessas instalações sobre a saúde. Por exemplo, preconiza verificar a representatividade das populações testemunhas, escolhidas para avaliar o impacto da 109 Aliás, a empresa pode integrá-los num verdadeiro sistema de controle de qualidade, garantindo que a implementação do teste, a obtenção dos dados e seus registros estejam conforme as exigências dos guias de boas práticas, reconhecidos por tal ou tal regulamentação. 110 O acordo está estabelecendo as condições de qualidade dos testes, a integridade científica, a duplicação dos testes aleatórios, as estatísticas aleatórias, os procedimentos de dosagem, etc., pt 6-4. As mesmas idéias encontram-se no Manual de Ética do Microbiologista em que a negligência é definida pela ausência de reação de amostras-bases, de controle dos reativos, de reprodução dos resultados, todos conceitos que certos cientistas consideram como ultrapassados, em alguns campos. 111 M. Sanson, L’expérimentation sur l’homme en situation internationale, le pluralisme des sources, Dissertação de mestrado de direito internacional Paris II, 1999. 112 Estudo sobre o impacto radiológico das instalações nucleares sobre o público, quando funcionam normalmente, Ed. Tec & Doc, 1999. exposição; de fato, um viés nesta escolha prejudica a comparação. Pede que as diferentes fontes radioativas, artificiais ou naturais, sejam melhor estabelecidas. É importante, pois as reflexões sobre as dosagens “admissíveis” são sempre organizadas ao redor das comparações entre fontes, sem que os autores pareçam imaginar que, na realidade, elas se cumulam. Também, é preciso conseguir enquadrar os preconceitos intelectuais que estão presidindo a orientação inicial das pesquisas e podem originar importantes vieses. M. Bonneau mostra claramente, num artigo sobre o papel das “chuvas ácidas”, na degradação do estado das florestas, como os pesquisadores partiram das hipóteses alemãs quanto à responsabilidade da poluição atmosférica (preconceitos) para, finalmente, definir um conjunto de causas que interagem umas com as outras. Para chegar a este resultado, utilizou-se a doutrina alemã como hipótese de encontrar outras pistas113. A qualidade dos resultados é, então, organizada de maneira a tornar obrigatórios certos procedimentos técnicos. Lastima-se que nenhuma síntese jurídica tenha sido feita, uma vez que essas questões de métodos surgem regularmente diante dos tribunais, como mostra o direito do meio ambiente que estigmatiza a insuficiência dos estudos de impacto, quando não integram uma análise dos métodos utilizados para avaliar os efeitos do projeto sobre o meio ambiente, citando “as eventuais dificuldades de natureza científica ou técnica encontradas para estabelecer esta avaliação”114. Entretanto, o direito não está totalmente ausente. Assim, o direito farmacêutico atribui responsabilidades específicas para cada um dos atores da experiência, tendo todos por obrigação atestar e assinar sua contribuição. Esta responsabilidade individual não impede a responsabilidade global do realizador do teste; mesmo que o promotor possa confiar a responsabilidade e a realização do teste a um terceiro, fica com “a última responsabilidade” da qualidade e integridade dos dados provenientes do teste115. Boa organização científica e técnica, autonomia ou independência dos interventores são as bases da qualidade dos dados úteis para a avaliação. Diante das dificuldades para obter a independência da perícia, existe hoje uma tendência de deslocar 113 M. Bonneau, D’une problématique sociale à une problématique scientifique, le cas des pluies acides, NSS n. 1-1993, p. 221; entretanto, nota-se que quando evoca de forma rápida as influências que podem recair sobre os peritos, sustenta que a França foi poupada, ao contrário de outros países. 114 Trib. Adm. Nice, 29 de janeiro de 1997, JCP 1998, n. 26, p. 1153. 115 ICH, pontos 5-2. O Guia de Funcionamento das Comissões e dos Conselhos da AFSSPS analisa de forma interessante a responsabilidade dos peritos e do Estado, quando este não conseguiu organizar de forma decente o procedimento da perícia, p. 35 e seguintes. o problema e pedir que certos procedimentos possam ser conduzidos de forma contraditória ou, no mínimo, que os procedimentos de aquisição dos dados possam ser objeto de discussões. 3. A necessária contestação dos dados116 Nos casos que interessam ao princípio da precaução, o caráter central das incertezas traz duas conseqüências: por um lado, um perito deverá saber relatar o estado das controvérsias existentes117; por outro, a perícia deve ser organizada de tal forma que as controvérsias e contradições apareçam e que o responsável pela decisão possa trabalhar com elas. Ora, isto não é feito naturalmente. Se a contestação e a dúvida encontram-se no centro da estratégia científica interna, os cientistas que trabalham nas “proximidades da decisão” aprenderam a funcionar de forma consensual, a vulgarizar seus discursos, a apagar suas incertezas, a omitir os debates, quando estão falando com os políticos ou com o público. Da mesma forma, alguns admitem que os riscos potenciais amparados deveriam ser expostos para os políticos, ao contrário do que é somente plausível, o que deveria apenas levar a uma obrigação de pesquisa118. Tal atitude protege as políticas e fragiliza os peritos e a administração, que serão acusados de não terem transmitido os elementos necessários à tomada de decisão. É mais razoável transmitir o conjunto desses elementos junto com os elementos contextuais. Entretanto, a importância da contradição no debate científico é reconhecida pelo direito científico. No quadro do procedimento centralizado organizado pela Agência Européia de Medicamentos, existe somente, e de forma geral, apenas um único relator por assunto, mas é possível nomear um co-relator, quando o caso implica debates científicos119. Da mesma forma, a jurisprudência reconhece que, em caso de perigo, 116 B. Latour, Le métier de chercheur. Le regard d’un anthropologue, Paris, INRA ed. 1995; a Academia das Ciências, em sua função pericial, admite esta necessidade de pluralismo, mas sob forma multidisciplinar, NSS n. 1-1993, p. 234. 117 É o ponto 17 do Código de Deontologia dos Peritos Judiciais. 118 B. Chevassus-au Louis, L’analyse du risque alimentaire: quels principes, quels modèles, quelles organisations pour demain? Conferência da OCDE sobre a segurança sanitária dos alimentos provenientes de OGM, Edimburgo, 1o de março de 2000. 119 Na mesma ordem de idéias, o guia ICH promove o sistema da auditoria, exame sistemático e independente das atividades e documentos provenientes dos testes, para determinar sua boa condução e se os dados foram obtidos, assim como analisados corretamente. Ele prevê também a possibilidade de implementar um IDMC, Comitê Independente de Vigilância e Aquisição de Dados. aqueles que são favoráveis a uma das duas opiniões científicas divergentes estão cometendo delito de imprudência ao não consultarem um terceiro perito120. Enfim, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC destacou o pluralismo científico, reconhecendo que a avaliação dos riscos não deve necessariamente levar a “uma conclusão monolítica que coincide com a conclusão ou opinião científica que subentende implicitamente a medida SPS. A avaliação dos riscos poderia priorizar, ao mesmo tempo, a opinião mais comum, que representa a corrente científica dominante, assim como as opiniões de cientistas que têm um ponto de vista divergente (…). Às vezes, a própria existência de opiniões dissidentes, expostas por cientistas competentes que pesquisaram sobre o assunto, pode revelar uma incerteza da comunidade científica (…). Na maioria dos casos, os governos responsáveis e representativos tendem a basear suas medidas legislativas e administrativas sobre a opinião científica dominante. Em outros casos, governos tão representativos e responsáveis quanto os outros podem agir de boa-fé sobre a base do que, num determinado momento, pode ser uma opinião divergente que vem de fontes competentes e respeitadas. Por si mesmo, isto não demonstra necessariamente a ausência de uma relação razoável entre a medida SPS e a avaliação dos riscos, notadamente quando o risco em questão pode ser mortal e está sendo percebido como uma ameaça evidente e iminente para a saúde e a segurança pública”121. Não se pode reconhecer mais claramente o pluralismo científico, mesmo se, no caso, o Órgão de Solução de Controvérsias não chegou a uma conclusão, as opiniões marginais foram julgadas insuficientes para fundamentar a decisão européia, na recusa da carne com hormônios. No entanto, esta idéia não está sendo levada até o fim. Para que o debate contraditório possa nascer, é preciso que os dados sejam compartilhados entre os cientistas de forma mais livre do que aquela que é praticada hoje. Deve ocorrer não somente sobre os resultados, mas sobre os dados brutos e os protocolos de pesquisa. Por exemplo, pode ser constatado que, em matéria de ESB, experimentações que só podiam ser feitas na Grã-Bretanha, pois exigiam o acompanhamento de um grande numero de animais doentes, tinham sido concebidas de forma incorreta desde o início; nenhuma 120 121 Dalloz 1998, n o 18, II, 236. Decisão Hormônios, pré-citada, ponto 194. conclusão firme podia ser tirada a partir dos resultados registrados, o protocolo de pesquisa tendo sido criticado. Então, em caso de crise, seria oportuno que os cientistas juntassem seus protocolos antes de começar a pesquisa, de forma a abrir um debate para melhorar sua qualidade122. De um modo geral, constata-se que uma comissão de avaliação composta de forma muito disciplinar e estreita emite opiniões diferentes do que aquelas que podem ser elaboradas num contexto mais democrático. O estudo de Y. Barthe e G. Decrop a respeito das conseqüências da lei Bataille (1991) sobre a percepção científica da questão do aterramento do lixo nuclear, nas camadas profundas da terra, demonstra de forma contundente este fenômeno. Tornando obrigatório o acompanhamento de pistas de pesquisas abandonadas pelos primeiros peritos, a lei deu chance para outsiders na pesquisa sobre o lixo nuclear que, tendo atingido progressivamente os cargos de comando, após uma decisão de François Mitterrand em 1981, dispuseram de financiamentos abertos às comunidades científicas, geólogos, físicos e químicos do CNRS que, até aquele momento, não haviam trabalhado sobre o assunto. “A abertura do círculo dos atores” levará à recomposição das vias de pesquisa e à produção de novos conhecimentos123. A comunidade dos geólogos que se envolveu maciçamente (200 pessoas) reformulara suas questões e problemáticas de pesquisa. Questionou o dogma inicial segundo o qual as “barreiras naturais”, em oposição aos critérios técnicos restritos, eram confiáveis e mostra que a geologia não tem capacidade de predição, porque sempre é construída ao redor de uma explicação do passado. A controvérsia sobre o destino do lixo, que tinha acabado, volta à tona numa perspectiva estrutural que, em termos de gestão, leva a encarar o armazenamento debaixo da superfície como uma opção que permite esperar e, conseqüentemente, empreender novas pesquisas ligadas a esta opção. Esta abertura da perícia pode ser concebida em termos disciplinares, mas também na relação com as ONGs e o público. B. Wynne observa que as experimentações realizadas em Sellafield não criaram mudança dos níveis de rejeições autorizadas, até o momento do “aparecimento das controvérsias externas, a realização de contraperícias e a 122 D. Dormont e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 367; uma página na internet, como aquela do Doutor P. Lavie, sobre a vaca louca pode revelar-se de preciosa ajuda, perso.infonie.fr/vetolavie/bse.htm, Le Monde, de 24 de junho de 2000. 123 II parte do relatório; ver a respeito do tema as análises de P. Roqueplo sobre as controvérsias intra e interdisciplinares ao redor do efeito estufa, in Climat sous surveillance, Economica, 1993, p. 61 e seguintes. formação de movimentos públicos de oposição”, pois a primeira análise experimental “havia se transformado rapidamente em uma defesa cognitiva e prática de uma hipótese que se tornara dogma”; então, não foram a análise cientifica interna e a aprendizagem experimental que, finalmente, impuseram a realização de investimentos destinados a reduzir consideravelmente a taxa de rejeição (p. 154). Constata-se que o Canadá pratica cada vez mais uma articulação da avaliação – gestão que permite uma ampliação máxima do leque dos autores de dados. Um exemplo, entre outros, pode ser constatado na gestão das conseqüências da existência da mina Giant, que libera, entre outros, resíduos de arsênio. Uma primeira avaliação “não invasiva” (sem perfuração) fora feita por peritos e seus resultados levados a público. Ela levou à criação de uma lista de prioridades para a limpeza, assim como possibilitou as pesquisas a serem empreendidas e as avaliações aprofundadas. Além do mais, duas pessoas “responsáveis” foram nomeadas, encarregadas de reunir todas as sugestões vindas de fora do processo, para que participassem das fases seguintes, tanto de avaliação quanto de gestão. É preciso ainda definir a real função deste pluralismo, pois me parece dupla. Por um lado, é uma garantia na constituição dos saberes, por outro, um fator de democracia124. A primeira conscientização da necessidade de discutir os dados oficiais data, na França, da criação do CRII-Rad, associação fundada por M. Rivasi, após a catástrofe de Tchernobyl. Hoje, ela é incrementada pelo CRII-Gen que deverá ocupar a mesma posição no que diz respeito à engenharia genética. Trata-se de dispor de dados obtidos de forma autônoma ou de dispor de competências científicas necessárias para discutir os dados obtidos por outros meios. Esta necessidade do contraditório, no âmbito da perícia, está no centro do pensamento jurídico, como o mostram as decisões de justiça que obrigam um empregador a financiar contraperícias para que o Comitê de Higiene e Segurança possa ter uma opinião própria, no que diz respeito ao risco que os trabalhadores correm. Isto foi reconhecido pela Corte de Apelação de Paris, no dia 13 de fevereiro de 1998, na ocasião do conflito entre assalariados e GEC Alsthom quanto à presença de amianto, nas 124 Não confundir isto com um meio de levar à aceitação do risco, como o assinalam M. Callon e P. Lascoumes, p. 31. instalações da empresa. Alsthom refutava, com o pretexto de que uma perícia fora feita e trabalhos de reforma tinham começado. A Corte de Apelação reconheceu a legitimidade de um ponto de vista independente, assim como admitiu que os trabalhadores continuavam a ser expostos a um risco de inalação e levou em consideração “a complexidade do problema”, assim como reconheceu a impossibilidade de fixar um limite para o perigo, “no atual estado dos dados da ciência”125. Quaisquer que sejam os esforços dispendidos para conseguir dados de qualidade, incertezas e debates continuam. Então, o método da apresentação substitui as técnicas de produção dos dados para que ocorra uma decisão abalizada. De fato, não é suficiente que os dados sejam confiáveis, do ponto de vista técnico. É preciso que eles sejam utilizáveis para fins de avaliação e de gestão e, então, de decisão: “as informações fornecidas por ocasião de cada teste clínico devem ser apresentadas para permitir um julgamento objetivo”126. Então, é preciso trazer à tona o contexto da produção dos dados para que surjam seus limites. O primeiro limite vem das hipóteses que, inelutavelmente, presidiram a concepção do método de observação ou de produção dos dados. No quadro de seu léxico de avaliação dos riscos, D. Mc Namee definiu a hipótese como “crença ou conceito lógico subjacente em relação a um plano ou uma decisão. Muitas vezes as hipóteses são implícitas. Os cenários estratégicos tentam tornar todas as hipóteses explícitas”. Vários outros limites afetam os resultados ou até mesmo as medições: confiabilidade dos equipamentos, níveis de detecção, localização dos aparelhos de detecção127, escolha dos objetos a serem medidos128, coerência das medições129, limites dos cenários constitutivos 125 Não publicado. Ver também Cass. Soc., 12 de janeiro de 1999, EDF v. CNHST, Dalloz 1999, n. 9, inf. rel. 64, e comparar com Cass. Soc., 1o de dezembro de 1993, D. 1994, inf. rel., p. 20. 126 Droit Pharmaceutique, fasc. 33-05. 127 G. Mégie in O Godard, op. cit, p. 231. 128 O Laboratório interuniversitário dos sistemas atmosféricos, tendo analisado um pedaço de rede nas árvores dos Champs-Elysées, no período natalino, mostrou uma poluição totalmente anormal em relação ao esperado, tanto na qualidade quanto na quantidade das medições, pois partículas muito finas encontravamse nas redes. Isto ia contra o diagnóstico de Airparif (Le Monde, de 21 de dezembro de 1999); ver também a observação de A. Tauveron; São bem e sistematicamente medidos certos efluentes gasosos vindos de incineradores, mas não necessariamente as dioxinas e metais pesados (NSS, n o 1-1992, p. 247). Ora, os pediatras aconselham que as mulheres amamentem seus filhos, quando a concentração de dioxina no leite materno é muitas vezes superior às taxas autorizadas, e bem superior àquelas dos leites artificiais. 129 O exemplo do amianto. A OMS fixou um método único de medição das concentrações de amianto no ar, sem o qual nenhuma comparação é possível. do eixo dos acontecimentos130, reconhecimento imprudente de uma correlação imaginária entre dois elementos não contestáveis, modelos demasiadamente simplificados, em relação à realidade, extrapolações lineares131. O protocolo do estudo é um elemento determinante do alcance dos resultados132. Deveria ser discutido e, então, ser público. Esta incerteza constitutiva sobre o alcance de um resultado implica uma grande prudência, no momento de sua transmissão a terceiros. É o que reconhece o Manual de Ética do Microbiologista que estabelece que “todo e qualquer resultado de perícia deve indicar o método utilizado e ajudar a interpretação dos resultados. Se, por razões técnicas, o resultado for duvidoso ou de interpretação ambígua, esta dúvida aparecerá na resposta escrita”; o tratamento é o mesmo numa publicação, devendo o pesquisador, na teoria, fornecer detalhes experimentais suficientes para permitir que o leitor avalie o trabalho intelectual, reproduza as experiências e aprecie a interpretação, assim como as conclusões. Algumas autoridades esforçam-se de forma significativa para se adaptar a essas regras, como o mostra o exemplo da mina Giant, no Canadá, caso em que os resultados foram apresentados com os limites de sua obtenção: não houve nenhuma pesquisa invasiva, nenhuma análise química. Utilizaram-se somente documentos escritos e testemunhos. 130 Método de identificação do risco e de avaliação das conseqüências em que todos os eventos ulteriores possíveis são avaliados quanto a seus riscos. Eles são utilizados nos cenários de riscos, D. Mc Namee, précitado. 131 J.-M. Legay, L’expérience et le modèle, un discours sur la méthode, INRA ed 1997. Sobre a escolha de um modelo experimental, p. 44 ; sobre os pontos diversos quanto a um mesmo objeto, ver o exemplo da bilharziose que pode ser encarada num contexto exclusivamente médico ou zoológico ou ecológico, p. 48; sobre os limites, p. 53 ; ver também P. Roqueplo, Climats sous surveillance, p. 107 e seguintes. 132 O direito farmacêutico o reconhece, pois assimila o protocolo a um dado bruto que deve ser arquivado para poder ser consultado em caso de problema (Instrução de 31 de maio de 1983, ponto 8.1.2). Capítulo 7 O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais Lições de método decorrentes do caso da vaca louca Olivier Godard* O que é fascinante, em se tratando do princípio da precaução, é acompanhar a evolução de um conjunto de idéias constitutivas de uma nova atitude intelectual e moral, quando elas penetram o campo das normas sociais e dos ordenamentos jurídicos. As transcrições normativas, processuais e práticas que, aos poucos, permeiam essas idéias, continuam fiéis a elas, enriquecendo-as? Ou observa-se um fenômeno de deformação, de esmagamento e de redução de equilíbrios sutis em proveito de exageros cuidadosos, porém arbitrariamente seletivos, de proibições securitárias e medidas mais protecionistas que protetoras para a saúde e o meio ambiente ? As idéias que fundamentam o princípio da precaução não vêm de um mundo indeterminado. Num texto desafiador, Isabelle Stengers sublinha com vigor tal fato, pedindo que a história das idéias seja inscrita de uma forma melhor em sua história social conflituosa e não se deixe levar pelas ilusões de uma reconstrução posterior que veria nas transformações do direito somente um movimento endógeno da razão: Esta questão dos riscos corresponde, no passado, a uma história ritmada muito mais por lutas que por demonstrações. (…) entretanto, o caráter conflituoso desta história é freqüentemente esquecido: quando a exatidão de uma preocupação é finalmente reconhecida, as medidas tomadas são, na maioria das vezes, apresentadas como o resultado dedutível e consensual de um progresso do saber racional (como na história do direito, em que os novos direitos e outras mutações são apresentados como ‘desenvolvimento’ e ‘aprofundamento’ e não como repercussão, no âmbito dos textos jurídicos de eventos que obrigaram à * Diretor de Pesquisa no CNRS, Laboratório de Econometria, unidade mista 7657 do CNRS e da Escola Politécnica, Paris. e-mail: [email protected] . Publicado em C. Leben e J. Verhoeven (dir.) O princípio da precaução : aspectos de direito internacional e de direito comunitário. Paris: Panthéon-Assas, 2002, p. 29-63. mudança, freqüentemente forçada e tendo enfrentado inicialmente a oposição dos melhores argumentos doutrinários).2 Mas conhecedora das problemáticas da complexidade e da autoorganização, Isabelle Stengers não crê que o sistema das normas jurídicas possa ser apenas um local de registros dos conflitos sociopolíticos, ignorando o trabalho de elaboração, próprio da reflexão acadêmica ou perita em prevenção dos riscos e o trabalho que caracteriza as transformações do direito. Com o intuito de compreender o processo de elaboração intelectual do princípio da precaução é, pois, útil distinguir três momentos lógicos que, juntos, desenham o que se pode chamar de triângulo da precaução: (a) o surgimento de expectativas, no seio da coletividade frente à gestão pública dos riscos; essas expectativas expressam-se, então, sob forma de idéias básicas, em estado bruto; eu as chamarei de “idéias brutas”; (b) aquilo em que se torna o princípio da precaução após a intervenção da reflexão crítica, da lapidação das idéias e da elaboração doutrinária em textos oficiais, como um relatório para o Primeiro Ministro francês, um Comunicado da Comissão Européia ou uma Resolução do Conselho Europeu; (c) os modos de tradução na ordem jurídica que são propostos, provenientes de diferentes lados, indo ao encontro de implicações variadas e de uma mobilização dos recursos da doutrina ou dos costumes jurídicos. O Triângulo do princípio da precaução Idéias brutas provenientes do público 2 Idéias apuradas Idéias fixadas e colocadas pela reflexão doutrinal em prática pela ordem jurídica I. Stengers, ‘‘Et si l’opinion avait parfois raison?” in Zaccaï e J.-N. Missa (dir.). Le principe de précaution. Signification et conséquences. Bruxelles: Universidade de Bruxelas, 2000, p. 197. O dilema posto pela inscrição jurídica do princípio da precaução é de saber se ela será mais fiel à concepção apurada e reflexiva do princípio da precaução que as idéias brutas que levaram a sua aceitação pelo público. A posição de Stengers, lembrada anteriormente, permite entrever a possibilidade de conflitos, dando uma expressão jurídica normativa a idéias que, embora recebendo momentaneamente uma ampla adesão da opinião pública, não correspondem às idéias testadas no momento da elaboração doutrinária em articulação com as instituições políticas. Tais disfunções podem, entre outras coisas, ocorrer quando essas idéias brutas têm uma estrutura formal mais próxima das formas usuais da intervenção jurídica que as idéias apuradas, cuja tradução jurídica pareceria mais delicada em promover. É o caso da vaca louca que servirá de ponto de partida para uma reflexão sobre o posicionamento a ser dado ao princípio da precaução. Isto se justifica de várias maneiras. A Corte de Justiça Européia, com relação a um dos episódios desse caso, a contestação das decisões de embargo tomadas em março de 1996 pela Comissão Européia, contra os produtos bovinos provenientes do Reino Unido, estendeu de forma espetacular o campo de aplicação do princípio da precaução em relação à saúde pública e à segurança alimentar. Em sua decisão de maio de 1998, contra os queixosos britânicos, considerava com efeito que: “quando as incertezas subsistem quanto à existência ou extensão dos riscos para a saúde das pessoas, as instituições podem3 tomar medidas sem ter de esperar que a realidade e a gravidade destes riscos sejam plenamente demonstradas” (decisão 99, caso C 180/96). Por outro lado, para muitos observadores, alheios ao mundo médico, este caso simboliza um conjunto de erros aos quais o princípio da precaução deverá supostamente pôr fim, no futuro. Aliás, dispõe-se de distanciamento suficiente para se iniciarem análises retrospectivas, porém as análises começam num momento em que esses conhecimentos ainda não estão nem completos, nem estabilizados. Esta situação permite colocar o problema daquilo que se pode chamar de ilusão retrospectiva, consistindo em uma releitura dos momentos cruciais da história, a partir dos conhecimentos adquiridos ex post sobre as ligações de causa e efeito e, sobretudo, a partir da rejeição de seu desfecho. Um dos caminhos, com base na 3 Sublinhado pelo autor. experiência, consiste, por exemplo, em procurar identificar como o princípio da precaução poderia ter evitado a propagação dessa epidemia. Este caminho é instrutivo. Entretanto, eu o submeteria a uma questão. Não está ele, apesar de tudo, contra sua própria vontade, exposto a essa ilusão retrospectiva? A análise crítica não invalida a justificação do princípio da precaução, mas seria ingênuo esperar que este consiga impedir toda e qualquer evolução nociva. Mais ainda, não é porque acontecimentos nefastos são constatados ex post, que as decisões tomadas, na incerteza, ex ante podem ser consideradas ruins ou culposas, mesmo num caminho de precaução. A precaução tem suas próprias exigências, porém seu objetivo não é fazer com que toda evolução prejudicial, historicamente constatada, não aconteça. Sem entender tal fato com clareza suficiente, aqueles que gostariam de mobilizar o princípio da precaução para identificar as responsabilidades e caracterizações dos erros passados se arriscariam a cair em uma ou outra forma de ilusão retrospectiva. Faço questão, antes de tudo, de especificar o contexto histórico no qual o princípio da precaução emergiu e encontrou um amplo respaldo no meio do público, das organizações da sociedade civil e dos meios dirigentes. Depois, procuro dar uma forma explícita a certas “idéias brutas” sobre o princípio da precaução, que afloram nas fases de crise ou de casos relacionados à gestão pública dos riscos coletivos. Em contrapartida, defino os contornos do núcleo intelectual que, elaborado pela reflexão doutrinária, foi institucionalmente validado pelas instâncias dirigentes. Este núcleo se distingue, ao mesmo tempo, das “idéias brutas” em circulação e da tradução operacional que o direito pode dar ao princípio da precaução, sob a forma de conceitos e regras jurídicas. A seção seguinte procura tirar certas lições de método do caso da vaca louca. Estudo inicialmente as diferentes formas de ilusão retrospectiva a respeito dos fatores de propagação dessa epidemia e a maneira de qualificar as ações dos administradores do assunto. Em seguida, abordo o conflito entre a França, a Comissão e o Reino Unido, por ocasião da recusa francesa em levantar o embargo sobre o boi britânico, no outono de 1999. A reflexão termina num questionamento no que diz respeito às formas mais apropriadas de tradução jurídica que podem ser dadas ao princípio da precaução. 1. Elementos do contexto histórico O princípio da precaução não vem do planeta Marte. Está enraizado na experiência histórica da modernidade contemporânea. Casos dramáticos abalaram as instituições de saúde pública: sangue contaminado, amianto, entre outros. Após duas guerras mundiais e a descolonização, conflitos passados ressurgiram na Europa, embora as aspirações tenham se fixado na idéia de “guerra nunca mais”. Acidentes industriais (Seveso, Bhopal, Chernobyl), acidentes de navegação marítima (do Torrey-Canyon em 1967 ao Érika em 2000), catástrofes naturais (a tempestade de dezembro de 1999, que assolou as florestas francesas e destruiu inúmeros telhados) e evoluções inquietantes a longo prazo (a mudança do clima, a rápida erosão da biodiversidade) mostram tanto o poder destruidor dos fenômenos que envolvem as forças da natureza, quanto o peso do desenvolvimento humano sobre as condições físicas do planeta. Um amplo desencanto tomou conta do público, frente aos grandes temas que formavam a massa ideológica do funcionamento da sociedade francesa desde que ela forjara para si um futuro industrial: o progresso econômico e social para todos; a modernidade libertadora graças ao progresso científico e técnico; um estado forte garantindo interesses superiores e, a longo prazo, da nação, a igualdade dos cidadãos e a solidariedade em relação aos mais pobres; um quadro político de alta qualidade, preocupado, antes de tudo, com o bem comum; uma paz civilizada entre as nações. O princípio da precaução surge num panorama de crenças abaladas, de temores renovados, no âmbito do qual se difunde o sentimento de que todas estas coisas vão transcorrer com dificuldade e que isto vai acabar mal. Com efeito, os anúncios das novas proezas da pesquisa científica são sacudidos enquanto as técnicas são submetidas a mudanças contínuas. Os vendedores de sonhos tecnológicos redobram as promessas quanto à potência e à facilidade advindas das perspectivas de biotecnologias e novas tecnologias da informação e da automação. Entretanto, com o passar dos anos, cada um vê o surgimento crescente, lento e regular, quase que inelutável, de problemas considerados de sociedade (precariedade de emprego e exclusão social, insegurança urbana, violência nas escolas, crise do ensino, etc.) e de perigos de natureza distinta (o integralismo islâmico expande sua zona de influência geográfica; a AIDS não pára de crescer e de afligir, em primeiro lugar, as populações africanas; a pressão das organizações mafiosas aumenta, nutrindo-se da miséria e do desespero que reinam em certas regiões da Europa e em vários outros países do mundo e da corrupção das elites dirigentes; tempestades e inundações catastróficas pairam, como a espada de Dámocles, acima das cabeças, em numerosas regiões habituadas a um clima relativamente temperado, etc.). Tudo isto, tanto para o melhor como para o pior, testemunha a crescente impotência política para dominar o curso das coisas, sejam as inovações científicas que se difundem em larga escala antes que se tenha tempo para analisá-las, seja o surgimento, que parece inexorável, dos problemas que afetam o “viver junto”. Nenhum elo forte está firmado entre os dois fenômenos: nenhum discurso verdadeiramente consistente mostra como os progressos técnicos anunciados vão resolver os mais graves problemas da sociedade, aqueles que dizem respeito à cobertura das necessidades essenciais das populações, nos quatro cantos do mundo, a manutenção dos laços sociais e a preservação da máquina ecológica do planeta. Ao contrário, as novas tecnologias são amplamente percebidas, às vezes com excesso, como fatores de transtorno que, longe de resolver os problemas, vão ampliá-los ou criar novos, ainda desconhecidos. A perplexidade aumenta e a confiança tranqüila se esvanece (em quem confiar hoje em dia?). A crença de que a técnica resolveria os problemas da sociedade desmoronou em meio ao público, o que, no entanto, não apaga seus encantos; não há como garantir que a técnica do amanhã será capaz de resolver os problemas criados pela técnica de ontem e de hoje! Apenas a comédia do poder procura ainda dar crédito a uma mitologia da bondade da técnica, enaltecendo suas incontestáveis vantagens, porém parciais do ponto de vista do bem-estar material e da produtividade econômica. Além do mais, nos tempos de hoje, a preocupação voltase muito rápido para a suspeita e a denúncia. Quando as coisas vão mal é preciso achar responsáveis, melhor, culpados e sanções. Não é por acaso que o princípio da precaução foi inscrito na ordem jurídica, mesmo sem saber muito bem ainda com que status! Muitos são aqueles que querem ver no princípio da precaução uma nova cartada da responsabilidade jurídica, trunfo da revanche dos que foram deixados de lado pelo progresso e das vítimas da arrogância dos dirigentes. 2. As idéias brutas que circulam sobre a precaução No buquê da precaução, crescendo sobre este húmus social que fede a decomposição, existem flores belas e sãs, mas também plantas venenosas, das quais é preciso preservar o espaço democrático da decisão pública. A vontade de reencontrar ou preservar as condições de um controle próprio, não delegado, da estrutura do quotidiano, parece forte. Isto vem acompanhado por um questionamento sobre as relações dos poderes e dos mecanismos existentes de distribuição dos riscos. Segue-se, então, em decorrência disto, uma recusa crescente em delegar, sem o controle de uma elite dirigente política e econômica, as decisões que levam à criação de riscos coletivos que podem ter conseqüências identificáveis sobre as pessoas. Além do mais, cada vez que há uma controvérsia em relação a um projeto, a uma preocupação ou a um problema sanitário surge uma forte demanda, formulada por organizações da sociedade civil ou de coletivos ad hoc, quanto a uma perícia independente e transparente que não sirva somente aos tomadores de decisões ou administradores, mas que seja organizada e concebida para dirigir-se, de maneira prática e efetiva, ao público. A demanda pede também novas formas de associação quanto à decisão, com grupos que se constituíram no âmbito da sociedade civil, com o intuito de compartilhar preocupações ou defender interesses coletivos considerados como mal solucionados pelo funcionamento usual da democracia representativa. Querer dominar os riscos, assim como a experiência ensinou para cada um de nós, implica dominar o momento de correr riscos. O princípio da precaução traz, antes de tudo, uma exigência de cálculo precoce dos potenciais perigos para a saúde ou para a atividade de cada um, quando o essencial ainda não surgiu. Esta demanda opõe-se frontalmente à lógica da ação tardia ou do balanço estabelecido a posteriori, com certeza cientificamente rigoroso, mas de impotência avassaladora. Aliás, durante muito tempo, a exigência do rigor científico que, por si mesmo, não está nem mesmo em questão, fora interpretada como uma exigência de provas garantidas da existência dos perigos antes de os responsáveis assumirem o controle. Assim camuflada, ela serviu de cortina para todos aqueles que apostam no desenvolvimento das situações para tornar inelutáveis as evoluções que lhes convêm ou das quais tiram algum proveito, mas que não seriam escolhidas conscientemente pelos cidadãos, se a escolha lhes tivesse sido oferecida ex ante, de forma clara. Entretanto, querer agir de forma antecipada sobre riscos cuja existência não está nem comprovada e cujas conseqüências potenciais são ainda mal compreendidas, equivale a defrontar-se com um difícil exercício de julgamento, que está sob a ameaça de dois riscos: (a) comprometer inutilmente custos elevados e impor um considerável desgaste para as pessoas, os grupos particulares e, ainda, para a coletividade inteira; ou, simples variável, fechar as portas a vias de desenvolvimento, que podem trazer uma notável contribuição para a resolução dos problemas ou do bem-estar; é o caso da renúncia a uma técnica capaz de curar um certo tipo de doença ou de outra, obtendo economias necessárias de energia fóssil a fim de aproximar-se, de maneira geral, de um desenvolvimento sustentável; (b) deixar evoluir de maneira pouco reversível situações lastimáveis, até mesmo catastróficas, objeto de todas as lamentações ulteriores, como o ilustram os temores suscitados pela epidemia de encefalopatia espongiforme bovina (ESB), suscetível de afetar a espécie humana sob forma de uma nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob. Ora, algumas das idéias que germinaram no terreno precedentemente descrito poderiam conduzir a precaução, que se tornou princípio, para impasses ainda mais temíveis que entrariam em sinergia uns com os outros. Eis alguns deles: • A novidade do princípio da precaução viria da imposição de novas obrigações de resultado, pressionando as autoridades e todas as pessoas públicas e privadas que criam riscos para os outros; o princípio da precaução pediria que “todas as precauções” fossem tomadas para evitar a realização de um dano e se definiria por uma escalada nas medidas precautórias4; todo e qualquer deslize deveria ser sancionado pelos tribunais e responsabilizaria os faltosos e o Estado; os responsáveis pela prevenção dos riscos deveriam prestar contas de sua gestão diante dos tribunais; tratar-se-ia de acabar com o estado de irresponsabilidade dos dirigentes e de castigar violentamente aqueles que expõem outrem a perigos, fossem eles potenciais, no momento dos fatos. 4 Esta interpretação manifestou-se na língua por meio da adjunção de diversos adjetivos. Assim, a precaução será dita alternativamente estrita, absoluta ou extrema. • O princípio da precaução seria uma nova arma jurídica, permitindo às vítimas estigmatizar as escolhas ou ações passadas dos dirigentes públicos e privados – ou melhor, suas inações – julgados como culpados; seria para o direito um novo princípio de busca retrospectiva de responsabilidade em situações em que os danos já ocorreram; contrariamente às aparências, o princípio da precaução seria mais uma ferramenta para uma melhor busca no passado e para a descoberta dos culpados do que uma ferramenta de gestão atenta às potencialidades do futuro. • A precaução consistiria em reler os encadeamentos passados de decisões e de acontecimentos à luz dos conhecimentos obtidos ex post quanto a suas conseqüências danosas e em caracterizar como faltas os atos e decisões que contribuíram objetivamente para a produção dessas conseqüências, embora se saiba que, no momento dos fatos, aquele conhecimento não estava disponível. • O princípio da precaução instauraria uma leitura binária das atividades lícitas: só autorizaria atividades e produtos “seguros”; a partir do momento em que houvesse uma dúvida sobre sua segurança ambiental ou sanitária (a prova da inocuidade não fora trazida), ele os proibiria5; a redução binária é realmente dupla, visto que a precaução se situaria na divisória da alternativa autorização/proibição e segurança (entendida como ausência total de risco)/insegurança (qualquer risco coletivo potencial não nulo, sendo julgado como inaceitável). Obviamente, explicadas de maneira clara, essas idéias serão julgadas como inaceitáveis por numerosos analistas que protestarão com razão: mas o princípio da 5 Esta interpretação do princípio da precaução, como uma exigência da prova da inocuidade, antecipando-se a toda e qualquer autorização, fora regularmente alegada pela associação Greenpeace, tanto para os lixos industriais no mar do Norte quanto para os OGM. Ela não pode ser razoavelmente defendida: num universo de conhecimentos científicos imperfeitos e em mudança, a exigência da prova científica da inocuidade definitiva, a longo prazo, de um produto ou de uma técnica, é uma demanda logicamente inconsistente, sobre a qual nenhuma comissão de peritos consegue opinar. Os cientistas podem somente mostrar os resultados de seus trabalhos e dos conhecimentos disponíveis. Isto não elimina nem todas as possibilidades de danos ainda desconhecidos, nem todas as incertezas. A demanda de prova da inocuidade é um passo retórico que, tomado ao pé da letra, levaria a impor moratórias reconduzidas periodicamente, até transformar-se de fato em proibição definitiva. Ver O. Godard, “L’ambivalence de la précaution et la transformation des rapports entre science et décision” in O. Godard (dir.). Le Principe de precaution dans la conduite des affaires humaines. Paris: Maison des Sciences de l’Homme e Inra, 1997, p. 37-83, e “ De l’usage du principe de précaution en univers controversé », Futurtbles, n. 239-240, fevereiro-março de 1999, p. 37-60. precaução não se resume a isto! Claro, mas será que não podemos reconhecer essas idéias, implementadas de maneira mais ou menos explícita, no posicionamento deste ou daquele agente (militante de ONG, ministro, jornalista, perito…)? Assim, cada um alegará a seu favor que o risco zero não existe; no entanto, em certos casos comentados de forma exagerada, os responsáveis serão vistos, comportando-se como se fosse necessário fazer de tudo para alcançá-lo de forma assintomática, como se fosse a obrigação decorrente do princípio da precaução. Não foi um jornalista do Le Monde, Rafaël Rivais, que, num comentário sobre a decisão suspensiva do Conselho de Estado em relação à autorização de plantar milho geneticamente modificado da sociedade Novartis, definia o princípio da precaução nos seguintes termos: “princípio que leva um responsável a tomar uma atitude política somente se tiver certeza da ausência absoluta de risco ambiental ou sanitário”6? Não foram os relatores do Conselho de Estado que, em suas reflexões sobre o direito da saúde, apresentadas no Relatório Anual do Conselho em 1998, caracterizavam o princípio da seguinte maneira: “este novo conceito define-se pela obrigação, que recai sobre o responsável público ou privado, obrigando-o a se decidir ou não por uma ação em função do risco possível. Neste sentido, adequar sua conduta ao cálculo dos riscos conhecidos não é suficiente. Além disso, ele deve, tendo em vista o atual desenvolvimento científico, trazer a prova da ausência de risco”7? A exigência de “prova da ausência de risco” é aqui definida como constitutiva do princípio da precaução! Ora, trata-se de uma formulação característica do que chamei de regra da abstenção, bem diferente do princípio da precaução8. O fato de que esta infeliz formulação tenha sido escolhida pelos Conselheiros de Estado como repulsiva, levandoos à conclusão de que não havia lugar para que o direito, no que dizia respeito à responsabilidade, se enriquecesse com um novo fundamento - “a ausência de precaução” - colocado ao lado da falta e do risco, não modifica nada o fato de se ter oficialmente pego uma falsa pista quanto à compreensão coletiva das exigências desse princípio. 6 R. Rivais, ‘‘Le commerce de maïs transgénique suspendu au nom du principe de précaution” , Le Monde, 27-28 de setembro de 1998. 7 Conseil d’Etat, Rapport public 1998. Réflexions sur le droit de la santé. Paris: La documentation française, (coll. “ Etudes et documents n°49 »), 1998. p.256. 8 O. Godard, op. cit., 1997. Em contrapartida, ainda há tempo para caracterizar o núcleo intelectual da precaução para a reflexão doutrinária que foi validada institucionalmente pelos órgãos dirigentes. 3. O núcleo intelectual do princípio da precaução para a reflexão doutrinária institucionalmente validada Mediante a pluralidade das definições dadas ao princípio da precaução, nos textos de direito internacional ou nos comentários que os acompanharam, pode-se identificar um núcleo de temas comuns: (a) o comprometimento prematuro de uma prevenção frente aos riscos cuja existência não está cientificamente comprovada, sem esperar certezas sobre a existência do perigo, da extensão dos danos ou das relações de causa-efeito que estão em jogo; (b) a gravidade dos riscos visados freqüentemente, completada pela irreversibilidade dos danos; qualquer perigo potencial não é visado por este princípio; (c) a modificação das obrigações dos diferentes agentes para o aporte das informações científicas necessárias para o bom exercício da gestão pública dos riscos, o que não pode ser confundido com a chamada inversão do ônus da prova9. A extensão jurisprudencial do princípio para o campo da saúde pública, dada pela Corte de Justiça Européia, complicou certamente o debate no que diz respeito a seu conteúdo. No direito francês, seu alcance e seu significado exato neste novo campo não podem apoiar-se sobre um texto de lei equivalente àquele da Lei 95-101, chamada lei Barnier para o meio ambiente, que tornava mais clara a definição seguinte: “princípio segundo o qual a ausência de certezas, levando em consideração os conhecimentos científicos e técnicos do momento, não deve postergar a adoção de medidas efetivas e proporcionais, visando prevenir um risco de danos graves e irreversíveis para o meio ambiente, com um custo economicamente aceitável”. Serão destacados dois pontos-chave desta definição. Inicialmente, o princípio da precaução consiste, sobretudo, em modificar o momento do cálculo dos riscos, em pedir um controle antecipado sem esperar a obtenção de certezas científicas. Em segundo lugar, longe de exigir um excesso de 9 Nos contextos de decisórios marcados ao mesmo tempo pela preconização da incerteza científica e por um novo olhar menos positivista sobre os conhecimentos científicos, o princípio da precaução não consiste em inverter o ônus da prova, concepção paradoxalmente marcada por um cientificismo arcaico, mas em organizar a prevenção dos riscos em relação à evidência de prova, esta podendo ser a favor ou contra. medidas precautórias extremas, faz da procura da proporcionalidade das medidas sua referência central. Para orientar a reflexão das autoridades públicas e dos cidadãos sobre a implementação deste princípio, dispõe-se de três textos de referência que, embora sem alcance jurídico direto, propõem uma doutrina geral com legitimidade institucional. Trata-se do relatório preparado por Philippe Kourilsky, professor no Colégio da França, e Geneviève Viney, professora de Direito Privado na Universidade de Paris I, entregue ao Primeiro Ministro, em novembro de 199910; da Comunicação da Comissão Européia sobre o princípio da precaução, publicado em fevereiro de 200011, e da Resolução do Conselho Europeu de Nice, de dezembro de 200012, especificamente dedicada ao princípio da precaução. Estes textos (ver o quadro 1) têm vários aspectos em comum. O princípio da precaução procede da gestão prospectiva dos riscos e é introduzido a longo prazo, o que marca particularmente a referência do desenvolvimento sustentável. O papel indispensável da identificação e da análise científica dos riscos, assim como o necessário reexame das medidas em função da evolução dos conhecimentos são destacados. Isto significa claramente que não se poderia esperar do princípio da precaução que ele levasse a tomar, logo no início, as medidas que pareceriam como as mais justificadas, tendo em vista os conhecimentos que serão adquiridos ulteriormente: os conhecimentos são evolutivos e o curso da ação deve ser concebido de maneira que possa sofrer revisão, numa perspectiva de aprendizagem que associe experiência e desenvolvimento dos conhecimentos. A cada momento, um conjunto de exigências pesa sobre as medidas a serem tomadas. Elas devem ser proporcionais ao nível de proteção desejado, no estado dos conhecimentos disponíveis e reversíveis para que as autoridades estejam em condições de 10 P. Kourilsky e G. Viney. Le principe de précaution. Rapport au Premier Ministre. Paris: Odile Jacob, 2000. 11 Comissão das Comunidades Européias, Comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução. Bruxelas, 02 de fevereiro de 2000, COM (2000)1. 12 Conselho Europeu, Resolução do Conselho sobre o princípio da precaução, Anexo III das Conclusões da Presidência, Conselho Europeu de Nice, 7 a 9 de dezembro de 2000. calcular a evolução dos conhecimentos. Devem também ser coerentes com aquelas que foram adotadas para a gestão de riscos similares, o que implica a adoção de avaliações comparativas. Ao contrário do que se diz às vezes, esta última exigência não é um obstáculo para o progresso das iniciativas de precaução. Uma vez definido, como o fez a Resolução de Nice, este princípio de coerência deve entender-se, considerando a evolução do nível de proteção procurado entre as diferentes datas em que decisões de prevenção dos riscos foram tomadas. A avaliação das medidas deve incluir um quadro completo sobre as vantagens e os custos de qualquer natureza das ações geradoras dos riscos e medidas de precaução concebidas, reconhecendo também o caráter prioritário das exigências de proteção da saúde pública. Trata-se, então, de um leque de medidas que pode ou deve ser considerado a título da precaução, sem reduzir-se às únicas medidas de proibição. No plano político, esses textos trazem de forma mais clara a responsabilidade específica das autoridades públicas. O princípio da precaução é seu problema13. Isto leva a várias afirmações: (a) o princípio da precaução concerne à ação das autoridades públicas, sejam elas comunitárias ou nacionais; (b) essas autoridades devem adotar um quadro de pesquisa apropriado para avaliar os riscos, sendo também responsáveis pela organização dessa avaliação; (c) as autoridades devem implicar a sociedade civil e consultar as partes interessadas; (d) as medidas de gestão do risco devem ser tomadas pelas autoridades públicas responsáveis, com base numa apreciação política do nível de proteção procurado. Quadro 1: As exigências do princípio da precaução para a doutrina validada 1° Os dez mandamentos do relatório Kourilsky-Viney (2000, p.56) 1. Todo risco deve ser definido, avaliado e graduado. 2. A análise dos riscos deve comparar as diferentes hipóteses de ação e inação. 13 Para uma apresentação dos argumentos favoráveis a uma concepção que preserva a responsabilidade política dos governantes, na efetivação do princípio da precaução, Ver O. Godard “O princípio da precaução, um princípio político de ação” Revue juridique de l’environnement, Número especial 2000 ‘O princípio da precaução’, maio de 2001, p. 127-144. 3. Toda análise de risco deve comportar uma análise econômica que leve a um estudo custo/benefício (no sentido amplo), previamente à decisão. 4. As estruturas de avaliação do risco devem ser independentes, porém coordenadas. 5. As decisões devem, na medida do possível, ser revisáveis e as soluções adotadas, reversíveis e proporcionais. 6. Sair da incerteza impõe uma obrigação de pesquisa. 7. Os circuitos de decisão e os dispositivos de segurança devem ser, ao mesmo tempo, apropriados, coerentes e eficazes. 8. Os circuitos de decisão e os dispositivos de segurança devem ser confiáveis. 9. As avaliações, as decisões e seus acompanhamentos, assim como os dispositivos que contribuem para isto devem ser transparentes, o que impõe a etiquetagem e o rastreamento. 10. O público deve ser informado da melhor forma possível e seu grau de participação, ajustado pelo poder político.” 2° As orientações da Comissão Européia (2000)14 1. O princípio da precaução deveria ser considerado no contexto de um tratamento estruturado da análise do risco (avaliação, gestão, comunicação), e se revela particularmente pertinente para a gestão do risco. 2. O recurso ao princípio da precaução pressupõe que os efeitos potencialmente perigosos foram identificados, mas a avaliação científica não permite determinar o risco com suficiente certeza. 14 Não se trata aqui do texto em sua íntegra, nem de citações, mas de uma apresentação resumida, mostrando a substância da obra original. 3. Seria preciso começar pela mais completa das avaliações possíveis, mencionando para cada estágio o grau de incerteza científica. 4. Julgar o nível “aceitável” do risco para a sociedade é uma responsabilidade eminentemente política. 5. Um amplo leque de iniciativas é disponível em caso de ação, desde uma medida de obrigação legal até um projeto de pesquisa ou uma recomendação. 6. O procedimento da decisão deveria ser transparente e envolver, desde o início, a totalidade das partes interessadas. 7. As medidas fundadas sobre o princípio da precaução deveriam: • ser proporcionais ao nível de proteção procurado (o risco é raramente o risco zero; em certos casos, uma proibição total pode tornar-se a única resposta possível para um determinado risco); • não introduzir discriminação em suas aplicações (situações comparáveis não tratadas de forma diferente); • ser coerentes com medidas similares já adotadas (as medidas deveriam ter um alcance e uma natureza comparáveis às medidas já tomadas em campos equivalentes, em que todos os dados científicos estão disponíveis); • estar baseadas num exame das vantagens e das implicações potenciais da ação e da ausência de ação (este exame é mais amplo que uma análise de rentabilidade econômica e inclui, por exemplo, a aceitabilidade pela população; deve levar em consideração a prioridade dada à proteção da saúde em relação às considerações econômicas); • ser reexaminadas à luz de novos dados científicos; • ser capazes de atribuir a responsabilidade de produzir provas científicas necessárias para permitir uma avaliação mais completa do risco (a responsabilidade recai sobre as empresas nas quais existem procedimentos de autorização prévia; no caso da inexistência destas, pode recair sobre os poderes públicos ou sobre os usuários, mas também sobre o produtor ou importador, sem que isto se torne regra geral). 3° A Resolução do Conselho Europeu de Nice sobre o princípio da precaução (2000) (Esta Resolução compartilha as principais orientações da comunicação da Comissão. Apenas os pontos de destaque foram aqui retomados para a continuação do estudo) 1. O princípio da precaução é aplicável no âmbito do meio ambiente e também no da saúde humana; assim como nos campos zoo e fitossanitários; coloca-se na perspectiva do desenvolvimento sustentável. 2. O princípio da precaução aplica-se às políticas e à ação da Comunidade e de seus Estados-membros; refere-se à ação das autoridades públicas, tanto na esfera das instituições comunitárias quanto na dos Estados-membros. 3. Vale recorrer ao princípio da precaução, logo que a possibilidade de efeitos nocivos sobre a saúde ou o meio ambiente estiver identificada e que uma avaliação científica preliminar, embasada em dados disponíveis, não permita concluir, com total certeza, o nível de risco. 4. Para proceder à avaliação dos riscos, a autoridade pública deve dotar-se de um quadro de pesquisa apropriado, apoiando-se notadamente sobre comitês e trabalhos científicos pertinentes; a autoridade pública é responsável pela organização e avaliação do risco, que deve ser conduzida de forma multidisciplinar, contraditória, independente e transparente. 5. A avaliação dos riscos deve ressaltar as eventuais posições minoritárias. 6. As medidas de gestão do risco devem ser tomadas pelas autoridades responsáveis, com base numa apreciação política do nível de proteção procurado. 7. No momento da escolha das medidas a serem tomadas para a gestão do risco, deve-se estudar todo o leque das medidas que permitem que o nível de proteção procurado seja atingido. 8. A sociedade civil deve ser envolvida e um cuidado especial deve ser dado à opinião de todas as partes interessadas, no estágio mais prematuro possível. 9. As medidas tomadas devem respeitar o princípio de proporcionalidade, calculando os riscos a curto e longo prazos, assim como visando a um nível elevado da proteção procurada. 10. Quando há várias possibilidades de atingir o mesmo nível de proteção da saúde ou do meio ambiente, as medidas menos restritivas para os fluxos devem ser buscadas. 11. As medidas deveriam ser coerentes com medidas já tomadas em situações similares ou usar enfoques similares, considerando os mais recentes desenvolvimentos científicos e a evolução do nível de proteção procurado. 12. As decisões tomadas a título do princípio da precaução devem ser revisadas em função da evolução dos conhecimentos científicos. Para este fim, o acompanhamento dos efeitos dessas decisões deve ser assegurado e pesquisas complementares devem ser conduzidas para reduzir o nível de incerteza. As implicações destas reivindicações são importantes. A princípio, os agentes da sociedade civil, empresas ou pessoas físicas não têm por obrigação procurar por si mesmos as interpretações do que poderiam ser as exigências que lhes caberiam diretamente, a título do princípio da precaução. Apesar de tudo, esses agentes devem trazer com diligência sua contribuição para uma política de precaução definida pelas autoridades, no contexto normativo que estas autoridades definirão e respeitar estas regras. Em seguida, tratando-se da apreciação das medidas a serem tomadas em função da idéia central de proporcionalidade, o tipo de responsabilidade reivindicada para o benefício das autoridades públicas está explicitamente definido como uma responsabilidade política. Se estas palavras têm um sentido, significam que esta responsabilidade só pode ser sancionada pelos meios políticos e não pelos tribunais. A competência do juiz concerne, como de praxe, às faltas e falhas na aplicação das medidas decididas (procedimentos, regulamentos) e aos prejuízos e danos atribuídos à ação de outrem, no quadro dos regimes de responsabilidade existentes. Para usar um exemplo tirado do caso da vaca louca, decidir ou não pela comercialização de farinhas animais ou autorizá-las apenas sob condições restritivas devidamente especificadas releva a responsabilidade política do governo; ao contrário, o exame das falhas do cumprimento das proibições editadas, dos casos de fraudes ou da falta de respeito das incumbências é da competência do juiz. É, pelo menos, o conceito doutrinário colocado em prática pelos órgãos políticos europeus. Tudo isto bate de frente com as “idéias brutas”, mencionadas na seção 2. O princípio da precaução não inclui uma obrigação de resultado, tampouco uma exigência de redobramento de precauções, mas pede o empenho precoce de diferentes procedimentos de cálculo dos riscos potenciais, principalmente no que diz respeito à pesquisa científica e à avaliação dos riscos. Longe de aceitar uma redução binária do universo das escolhas, estes procedimentos devem guiar a busca de medidas apropriadas num leque de ações possíveis, indo da vigília científica, passando por recomendações, até chegar às medidas provisórias de proibição. A responsabilidade da apreciação final das medidas é política. No essencial, o princípio da precaução não modifica os regimes de responsabilidade jurídica em vigor. A contrapartida de um cálculo precoce em relação aos riscos potenciais é o reconhecimento da necessidade de ajustar as medidas em função da evolução dos conhecimentos. Isto afeta a maneira de entender a exigência de proporcionalidade que deve calcular, ao mesmo tempo, o leque dos cenários possíveis e o grau de consistência científica das hipóteses que as subentendem. Exigir dos tomadores de decisões que eles decidam o que apareceria ex post como o melhor, em função de um conhecimento mais completo dos riscos ou da constatação ulterior de danos causados, seria contrariar a lógica da precaução. O princípio da precaução não tem por objetivo garantir o impedimento último de todo e qualquer dano, mas contribuir para o estabelecimento ex ante de um alto nível de proteção. Em particular, deve-se evitar tornálo instrumento de ilusão retrospectiva. 4. O caso da vaca louca: lições para a precaução Do ponto de vista da gestão pública, a doença da vaca louca começa em 1985, no Reino Unido, com a identificação de animais atingidos por uma nova patologia cuja natureza seria identificada um ano mais tarde: a ESB, vinculada à família das encefalopatias espongiformes subagudas transmissíveis (ESST). Seu desenvolvimento depende de agentes de transmissão não convencionais (ATNC). No caso, um papel ativo é majoritariamente atribuído pelos cientistas a uma proteína, o príon, cuja deformação da estrutura molecular, transmitida gradualmente, teria o efeito patológico que se sabe sobre o sistema nervoso central. Desde dezembro de 1987, o principal fator de transmissão da doença entre os bovinos é identificado: trata-se das farinhas de carne e de osso fabricadas a partir do reaproveitamento dos restos de vários animais (cavalos, ovelhas, porcos e também bois). De 1986 a 1996, essa doença vai ser vista pelos meios profissionais e pelas autoridades como uma epizootia e não como um problema de saúde pública, embora o risco teórico de afetar o homem não estivesse descartado, ainda que parecesse pouco provável. Durante esses dez anos, o governo do Reino Unido articulou seu discurso ao redor de três idéias: não havia nenhuma prova da transmissão da ESB para o homem; era altamente improvável que a ESB causasse qualquer risco para os humanos; o boi era um alimento seguro. Todavia, as autoridades britânicas tomaram desde logo, antes mesmo que fosse julgada a hipótese da possível transmissão para o homem, as mais importantes medidas para proteger o público do risco que a ESB podia representar para a saúde humana: abate obrigatório e destruição dos animais doentes, decisão de agosto de 1988; retirada total da cadeia alimentar humana as partes dos animais suscetíveis de conter o agente infeccioso (os materiais com riscos específicos), em novembro de 1989. Melhor dizendo, trata-se aqui de uma autêntica política da precaução, ou melhor, de um cálculo antecipado dos riscos potenciais não confirmados, mesmo que várias falhas e erros tenham maculado sua aplicação. Apenas a partir de 1996 a probabilidade de conseqüências para a saúde humana, sob forma de uma nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob, foi anunciada pelas autoridades britânicas, gerando, então, de 1996 até 2001, uma série de crises econômicas e políticas, baseadas no medo dos consumidores em relação a sua saúde. Em sua contribuição para o relatório Kourilsky-Viney15, que foi redigido em 1998-1999, Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont fazem uma releitura precisa e estimulante desse caso, tendo em vista uma reflexão sobre a precaução. Desde então, dispõe-se de um importante acervo de documentos sobre o caso: o relatório da comissão de investigação, nomeada no Reino Unido para esclarecer a gestão do caso entre 1986 e 1996. Presidida por Lord Phillips, um dos magistrados mais importantes do país, a comissão tornou público seu relatório em outubro de 200016. Dispõe-se também do relatório da comissão de inquérito do senado francês, de maio de 200117, sem falar de outras obras18. Não é possível citar aqui, mesmo em suas linhas gerais, as diferentes etapas da gestão desse caso. Gostaria apenas de fazer duas coisas: de um lado, introduzir uma reflexão que mostra os diferentes caminhos que levam a uma análise retrospectiva, em seu princípio inteiramente essencial à realização de uma aprendizagem coletiva, talvez vítima de ilusões e de viés – seria perigoso que eles contaminassem as providências jurídicas quando recorressem ao princípio da precaução; de outro, gostaria também de voltar a um acontecimento peculiar do caso: o embargo, pelo governo francês, sobre a carne de boi britânico, no outono de 1999, que permitiu medir na prática o alcance operacional do princípio, num contexto onde a soberania nacional foi colocada em oposição às regras comunitárias. 15 M.-A. Hermitte e D. Dormont, “Annexe 3,. Proposition pour le principe de précaution à la lumière de l’affaire de la vache folle” in P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 341-386. 16 Lord Phillips of Worth Matravers, Mrs June Bridgeman and Professor Malcom Ferguson-Smith, The BSE Inquitry. Vol. I Findings and Conclusions. London: The Stationery Office, October 2000. 17 Comissão de Inquérito do Senado, “Relatório sobre as condições de uso das farinhas animais na alimentação dos animais na pecuária e as conseqüências resultantes para a saúde dos consumidores”, Relatório 321, Diário Oficial, 11 de maio de 2001. 18 Ver, por exemplo, P.-M Lledo, Histoire de la vache folle. Paris: PUF, Coll. “Science, histoire et société”, 2001. As armadilhas das leituras retrospectivas Se fosse necessário utilizar o princípio da precaução como uma nova marca para apreciar os eventuais erros cometidos no passado pelos diferentes gestores do risco, a medida ficaria muito exposta aos diferentes vieses da ilusão retrospectiva. As tentações são grandes, como observam Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont: Diante das imperfeições da gestão da crise relativa a essas farinhas, fica-se evidentemente tentado a querer voltar às decisões que levaram a alimentar os bovinos com proteínas vindas de cadáveres animais – tomando-se o cuidado de evitar anacronismos: não se trata de identificar os responsáveis de uma época em que a idéia da precaução não estava ainda formulada, mas de compreender hoje como conceber e pôr em prática este princípio19. A ilusão retrospectiva pode tomar várias formas, algumas grosseiras, outras mais sutis, porém igualmente errôneas. Querer julgar erros do passado à luz de conhecimentos posteriores A mais grosseira das ilusões consiste evidentemente em julgar o caráter falível de decisões passadas em função dos conhecimentos que só foram obtidos posteriormente. Não apenas injusto, este caminho é perigoso, pois amarra a qualificação das ações passadas à evolução dos conhecimentos ulteriores, o que pode reservar inúmeras surpresas. Assim, no caso da vaca louca, os interesses estavam voltados para o Reino Unido e, depois, para a França, quanto à mudança dos procedimentos da fabricação das farinhas animais destinadas aos ruminantes, como se essa mudança tivesse sido o principal fator de surgimento e aumento da ESB. Os príons eram destruídos nos antigos procedimentos por meio da temperatura utilizada. Nos novos procedimentos, não mais ocorria tal destruição, conforme explicação dada. Esta explicação tinha sido reformulada no final de 1987 por John Wilesmith, chefe do departamento de epidemiologia do laboratório veterinário central das autoridades britânicas. Foi retomada ainda por Marie19 M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 355. Angèle Hermitte e Dominique Dormont, em 1999, por Pierre-Marie Lledo em 200120, assim como pelo relatório de inquérito senatorial de 2001. Ora, esta explicação foi firmemente descartada pelo relatório Phillips, o inquérito mais bem documentado já conduzido e cujos resultados estavam disponíveis a partir de outubro de 2000, após três anos de investigações21. O relatório diz o seguinte: As conclusões propostas pelo Sr. Wilesmith eram razoáveis, considerando os dados de que ele dispunha naquela época, mas estavam distantes da verdade. [parágrafo 189] (…) As mudanças nos procedimentos de fabricação das farinhas puderam ter um efeito sobre a inativação do agente da ESB, mas não foram nem decisivas, nem mesmo significativas. [parágrafo 190] (…) As conclusões propostas pelo Sr. Wilesmith foram amplamente aceitas. Levaram a concepções equivocadas, algumas das quais sobreviveram até hoje [parágrafo 191]. Essas conclusões são indiscutíveis: os antigos procedimentos de fabricação das farinhas teriam também difundido a ESB, no rebanho bovino, pois não tinham propriedade de inativação dos príons significativamente e diversas dos novos procedimentos majoritariamente utilizados. Tais conclusões invalidam toda e qualquer ação que visa imputar aos donos de fábricas dessas farinhas a responsabilidade de terem procedido a essas mudanças que teriam deslanchado a epidemia. A atribuição aos agentes do passado de uma visão clara dos conhecimentos aceitos que só será obtida posteriormente Mais sutil é a imputação retrospectiva de uma visão clara e comumente compartilhada dos conhecimentos que ainda estavam trilhando um caminho e que, embora tenham sido objeto de publicação científica, não eram, de modo geral, conhecidos e aceitos por todos os cientistas e, muito menos, pelos gestores. Depois de 20 Este último afirma, em seu capítulo de conclusão: “Esta epidemia foi claramente provocada, como se sabe, por uma modificação imprudente dos modos de transformação dos restos de ovelhas em alimentos assimiláveis pelos bovinos” (p.145). 21 Como comparação, a Comissão de Inquérito senatorial francesa teve, por razões estatutárias, que pôr fim a sua missão em menos de seis meses. tudo, a teoria do príon patológico pode parecer muito evidente e certa para a opinião pública. Ela foi e ainda é objeto de severas controvérsias redobradas em razão de conflitos pessoais muito difíceis e com conseqüências financeiras22. De fato, depois de tudo ter passado, observações ou resultados, vindos de diferentes campos geográficos ou temáticos, são considerados como se fizessem parte do mesmo contexto depois que certas aproximações se revelaram como pertinentes em meio a outras tentativas menos proveitosas. Assim, hoje, considera-se como evidente ligar uma espécie de tremedeira ∗ dos visons do Wisconsin à doença do kuru que atinge tribos de antropófagos da Nova Guiné à ESB, que afeta o rebanho bovino do Reino Unido, e à doença de CreutzfeldtJakob. A evidência desta aproximação é o fruto da ilusão retrospectiva que cria o desenvolvimento dos conhecimentos. A releitura seletiva dos eventos e ações passadas a partir de seu desfecho histórico Outra ilusão cognitiva resulta de uma releitura dos acontecimentos e ações passadas a partir de seu ponto de desfecho histórico. Este procedimento lhes confere o status do momento, num desenvolvimento singular cujo significado é dado por seu desfecho. Obviamente, este significado não estava presente quando tais fatos ocorreram e as ações começaram: no momento em que as coisas acontecem, a situação mergulha num conjunto de virtualidades, das quais a maior parte permanece escondida, sem ser atraída por um desfecho único. A releitura dos acontecimentos a partir dos temores da saúde pública em relação à ESB molda o olhar retrospectivo quanto às decisões tecnológicas e industriais tomadas no passado (utilização das farinhas animais para alimentar os bovinos; extensão de práticas de reciclagem endógena para uma mesma espécie; mudança dos procedimentos de fabricação, etc.). Neste caso, existe um princípio de 22 Em seu prefácio à obra de P.-M Lledo, op. Cit., D. Carleton Gajdusek, que recebeu o premio Nobel em 1976, por ter resolvido a doença do kuru na Nova Guiné e por suas descobertas sobre a transmissibilidade dessas neuropatologias de uma espécie para outra, evoca “a amplidão dos conflitos, tanto no que concerne às pessoas quanto no que concerne à política científica, que dominaram o campo das encefalopatologias espongiformes transmissíveis. (…) não houve realmente controvérsias científicas em relação aos resultados experimentais e suas interpretações (…) A história da pesquisa sobre a doença gira muito mais em torno de ambições, créditos e ciúmes que em volta de observações e idéias.” E Gajdusek conclui : “ infelizmente, fui apenas testemunha da lenta deterioração das relações entre os especialistas da época e de uma relativa cegueira frente à verdade histórica. Então, tudo acontece como se essa doença neurodegenerativa, caracterizada por uma lenta, porém irreversível deterioração das faculdades mentais, houvesse encontrado seu correlato nas sociedades científicas” (p. XVI). Em francês, tremblante. No Brasil, esta doença denomina-se hipocalcemia, nos ovinos e febre vitular, nos bovinos. (Nota da revisora). ∗ hierarquização da importância dos acontecimentos que não podia ocorrer na época, mesmo numa cultura de decisão que teria tido toda sua importância para o princípio da precaução. Na época, os gestores teriam de considerar ao mesmo tempo milhares de outros riscos potenciais. Assim, quando as técnicas de fabricação de farinhas foram modificadas, no início dos anos 1980, na maioria das vezes em benefício do procedimento americano Anderson Carver-Greenfield, foi para economizar produtos, como os solventes utilizados para extrair as gorduras, caros demais depois dos dois choques do petróleo. Além da economia dos produtos, outros fatores significativos para tal mudança foram os acidentes de trabalho que ocorreram em decorrência da utilização desses solventes e o fato de as medidas de segurança do trabalho terem sido reforçadas23; a eliminação desses solventes suscitaria também problemas relativos à luta contra a poluição. Em outros termos, os solventes eram portadores de diferentes riscos potenciais e a adoção de um procedimento que os eliminava melhorava objetivamente a segurança de todos os trabalhadores e do meio ambiente. Se o recurso ao princípio da precaução tivesse sido prioritariamente direcionado para essa perspectiva, teria confirmado e acelerado o movimento de mudança de procedimentos. Eis a razão para examinar com atenção a idéia, defendida por MarieAngèle Hermitte e Dominique Dormont, segundo a qual uma avaliação científica mais completa dessa mudança de procedimento teria permitido identificar o novo risco ligado à ESB e evitar seu desenvolvimento: Utilizando matérias-primas parcialmente tiradas de animais doentes, teria sido necessário efetuar um balanço dos riscos e das vantagens. Se isto tivesse sido feito, o conjunto dos conhecimentos que acabam de ser descritos teria sido descoberto. Seria possível calcular o fato de que, reciclando-se deste modo animais atingidos pela tremedeira, a via oral poderia ser um 23 Esta indicação contradiz formalmente uma idéia, comum na França, segundo a qual o governo Thatcher teria imposto um desrespeito geral às normas de segurança na fabricação das farinhas, o que seria a origem da epidemia. caminho eficaz de contaminação, de que os ATNC não estavam desativados pelos novos procedimentos e de que, em certas circunstâncias, uma doença a princípio limitada a uma espécie poderia passar para outra.24 Tudo isto continua sendo muito hipotético e pede uma análise detalhada. Teria sido plausível imaginar e levar em conta esse cenário? É preciso pensar na pior das situações, de forma totalmente especulativa, construída a partir das hipóteses mais desfavoráveis, em relação a cada um dos elementos citados (transmissão da tremedeira dos ovinos para os bovinos, por via oral, por intermediário das farinhas; falha de inativação dos agentes patológicos pelas técnicas; transmissão para o homem da “tremedeira do bovino” por via oral) para dar consistência a um risco potencial junto à saúde pública. Teria sido possível prever este cenário antes mesmo da identificação empírica de uma nova patologia chamada ESB? Isto teria ido contra o fato de que a tremedeira da ovelha era conhecida desde o século XVIII, que ovinos e bovinos com essa doença coexistiam desde então sem nenhuma transmissão observada, que as farinhas animais foram regularmente utilizadas para alimentação animal, no Reino Unido, desde os anos 20 e que a tremedeira da ovelha não se transmite para o homem por via oral, entretanto. Admitindo-se que tal cenário tenha sido imaginado, o que teria pedido uma abordagem de precaução? Que seja colocado na balança, com outros cenários de riscos, com suas infinitas vantagens excluídas, sob vários aspectos, no que diz respeito à modernização da fabricação das farinhas. Mesmo num enfoque de precaução, não teria tido razões válidas para concentrar-se no cenário indicado, indo contra uma aproximação de prevenção de outros riscos, cujas conseqüências, em termos de saúde humana, eram menos especulativas. Tudo isto leva a duas conclusões que não impedem de aprovar a idéia geral, proposta por Hermitte e Dormont, segundo a qual as mudanças técnicas dos procedimentos de fabricação devem ser avaliadas sob o ponto de vista de seus impactos sanitários e ambientais. Primeiramente, pode-se duvidar de que a adoção do princípio da precaução, no início dos anos 1980, tenha razoavelmente levado os tomadores de decisão 24 M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit. , p.348. da época a decidir exclusivamente enfocados sobre um cenário extremo, construído a partir de hipóteses que não eram comprovadas por nenhum elemento empírico proveniente do campo interessado, ou seja, o da pecuária e o da indústria agroalimentar, que está a ele ligada. Se porventura o cenário científico indicado tivesse refletido a realidade que iria confirmar-se, o princípio da precaução não teria impedido a propagação da epidemia! Todavia, o cenário indicado não é aquele que se delineou, ao contrário do que se acreditava em 1998-1999. A avaliação científica da mudança de técnicas, feita no início dos anos 1980, normalmente deveria ter levado a validar os novos procedimentos, tendo em vista as vantagens criadas sob o ponto de vista do meio ambiente, das economias de energia, do crescimento da segurança do trabalho e da diminuição dos custos de produção ou deveria ter levado a conservar os antigos procedimentos. Em ambos os casos, a epidemia de ESB se teria propagado e a abordagem de precaução, fundamentada nesse cenário, teria sido inoperante e não a deteria. Para que tivesse sido diferente, teria sido necessário ir além da delimitação do problema, circunscrito à escolha dos procedimentos de fabricação das farinhas, e discutir outras opções, até o próprio fato da utilização das farinhas animais. Ademais, teria sido necessário considerar outras hipóteses de risco, além da possibilidade de transmissão da tremedeira da ovelha para os bovinos. Trata-se aqui da segunda importante asserção do relatório Phillips: contrariamente às conclusões provisórias de M. Wilesmith, a origem da ESB não é atribuível à contaminação oral dos bovinos pela tremedeira da ovelha. A origem exata é certamente desconhecida, mas a nova doença provavelmente vem, segundo o relatório, de uma mutação genética que se produziu num animal, no início dos anos 1970. Desde o início, a ESB é uma doença típica da espécie bovina, o que não exclui que ela seja transmissível para outras espécies. No entanto, a prática da reciclagem dos restos bovinos na alimentação dos mesmos tem sido o principal fator de propagação da epidemia. Continuaremos nosso exercício de prospecção retroativa, baseados nisto. No início dos anos 1980, numa perspectiva de precaução, o eventual cálculo da hipótese de transmissão da tremedeira da ovelha para os bovinos por via das farinhas poderia ter gerado várias medidas de exclusão dos produtos ovinos, na fabricação das farinhas destinadas aos bovinos. Essas medidas de precaução teriam, elas também, errado de alvo e não teriam impedido a propagação da epidemia. De um modo geral, o princípio da precaução não teria, com eficácia, detido nem o cenário de propagação da epidemia, que foi definido por Hermitte e Dormont e do qual pensam que poderia ter sido imaginado e calculado, no início dos anos 1980, nem o cenário real de desenvolvimento dessa epidemia, cujas causas eram de fato diferentes. Uma única ação teria sido totalmente eficiente: teria sido necessário tomar medidas tão extremas e radicais quanto repentinas, consistindo em proibir totalmente as farinhas animais, antes mesmo que a nova patologia tivesse sido descoberta e identificada. É o paradoxo observado por Hermitte e Dormont: o princípio da precaução implica, sempre que for possível, uma ação ainda mais extensa que a força da incerteza, mesmo que isto obrigue a afrouxá-la à medida que os resultados científicos o permitirem – embora sem ilusões – nas crises que implicam fortes inércias. A ação prematura é tardia, a epidemia já está correndo. Todavia, ao agir com largueza, portanto, de forma custosa, quando os indícios de desregramento ainda são muito frágeis, corre-se o risco de ser mal interpretado por aqueles que terão de aplicar estas medidas e que podem começar a resistir25. Entende-se o interesse deste preceito “Agir de forma mais extensa que a grandeza da incerteza”, pois ele é, do ponto de vista retrospectivo, o único que poderia ter sido operante, atacando a raiz comum da classe de riscos sobre a qual a atenção se fixou. No entanto, este preceito também sofre de ilusão retrospectiva: ex ante ele não teria de ser aplicado somente às bases de riscos as quais se sabe ex post levaram a evoluções nefastas e lastimáveis, mas também ao conjunto dos riscos potenciais para a saúde e o meio ambiente ligado a uma tecnologia ou atividade. Seria preciso agir amplamente sobre todas as bases de riscos virtuais, visto que não se sabe antecipadamente quais delas 25 M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit. , p.350. poderiam concretizar-se. Afinal de contas, a palavra de ordem levaria à paralisia geral da atividade ou tropeçaria, da forma mais prosaica, sobre impossíveis26 arbitragens de “riscos contra riscos”. Em ambos os casos, a idéia de ação ampla deve ser contida, limitada, relativizada por um princípio superior que é o princípio da proporcionalidade. Mas ela perde, então, uma boa parte de seu interesse, que era de dar a segurança da eliminação preventiva do risco. Essas conclusões, um tanto devastadoras em relação à possibilidade que uma política de precaução teria tido em impedir o desenvolvimento da ESB, são ligadas às mais formais conclusões do relatório Phillips. É possível que sejam, por sua vez, questionadas no futuro. Então, um novo quadro apareceria e modificaria ainda mais os cenários que os responsáveis dos anos 1980 deveriam ter considerado, numa perspectiva de precaução, para impedir o surgimento da ESB. De fato, uma reviravolta aparente na questão da origem da ESB aconteceu na primavera de 2001, como conseqüência dos trabalhos experimentais realizados sob a direção do professor Mattews. Eles provaram que a tremedeira da ovelha era transmissível para os bovinos após injeção intracerebral de tecidos cerebrais de ovelhas mortas, em decorrência da doença. Entretanto, esses trabalhos não são suficientes para que as conclusões do relatório Phillips sejam colocadas em dúvida, visto que a via de contaminação comprovada não é a da contaminação oral. Ora, outros trabalhos sobre outras espécies, como o porco, revelaram a coexistência de uma transmissibilidade da infecção por injeção direta no sistema nervoso e de uma ausência de contaminação por via oral. Há de se esperar, então, os resultados das tentativas de contaminação dos bovinos por via oral, antes de revisar mais uma vez a compreensão que se pode ter da origem da doença. Tudo isto torna ainda mais necessária a prudência com a qual estratégias de pesquisa retrospectiva de responsabilidades pretendiam mobilizar o princípio da precaução, no intuito de caracterizar os erros cometidos. Os anacronismos ligados às mudanças de ponderação dos valores normativos e ao jogo do sentimento de lástima 26 Impossíveis de se realizar numa cultura de eliminação do risco, não numa cultura de prevenção pensada sobre os riscos coletivos, que aceita como referência um nível de risco aceitável, tendo em vista as vantagens de toda e qualquer natureza fornecidas pelas atividades geradoras de risco. A ilusão retrospectiva pode também afetar a estrutura normativa do julgamento. É o que acontece com a projeção sobre o passado do estado presente das sensibilidades, de preferência coletivas, e das normas sociais que não correspondiam aos equilíbrios que prevaleciam na época das decisões examinadas. Ora, é legítimo que diferentes preferências manifestem-se sob a forma de diferentes arbitragens: os responsáveis públicos do ano de 1980 não precisavam determinar-se em função das preferências coletivas e das inquietações da opinião pública que prevalece em 200027. Então, o que se pode dizer sobre aquelas que teriam sido as “boas” decisões de precaução, tendo em vista os equilíbrios normativos, os conhecimentos e informações disponíveis no momento da consideração dessas decisões? É preciso aceitar a idéia de que, sob o ponto de vista da precaução, decisões possam ser julgadas como “boas”, embora se perceba mais tarde que contribuíram para uma evolução prejudicial dos fatos, de tal modo que essas decisões possam levar posteriormente à lástima em função do conhecimento ex post de suas conseqüências: num universo de incerteza, as melhores arbitragens podem, no final das contas, levar a conseqüências prejudiciais que se queria evitar, escolhendo outra decisão, se fosse possível saber por meio da ciência que isto levaria a tal desfecho. Todavia, seria infantilidade transformar este sentimento de lástima, que aparece à medida que uma história singular revela o que a decisão inicial podia conter, o princípio de julgamento de decisões que tiveram de ser tomadas, num contexto diferente. Isto porque tal princípio teria que englobar uma diversidade de possibilidades. O princípio da precaução não pode ser entendido como a escolha da lástima, no decorrer peculiar dos acontecimentos, como princípio de decisão, visto que, precisamente ex ante, os responsáveis não poderiam ter evitado a ponderação de inúmeras lástimas, reflexos de encadeamentos diversos e variados, julgados como possíveis28. 27 Eu não quero dizer que os responsáveis de 1980 eram indiferentes aos interesses da população de 2000 e do destino das gerações futuras. Entretanto, seus interesses só podiam ser levados em conta por meio da mediação dos julgamentos e preferências provenientes do sistema de decisão e do governo atuando no momento em que as decisões foram tomadas. A responsabilidade política se exerce diante dos cidadãos “aqui e agora”. 28 Um dos critérios-padrão identificado pela teoria da decisão frente à incerteza é aquele do minimax regret : escolher a decisão que, diante das conseqüências possíveis, permitiria tornar mínima a lástima de tê-la escolhido, em vez de outra, se o pior dos resultados potencialmente ligado a esta decisão viesse a realizarse. Este critério, inventado pelo estatístico L. Savage em 1951, é muito sensível à descrição exaustiva das Há que, a partir desse ponto de vista, interrogar-se quanto à estratégia escolhida pela Comissão de Inquérito senatorial sobre as condições de utilização das farinhas animais, na alimentação dos animais, em 2001. A Comissão estava totalmente consciente dos riscos de ilusão retrospectiva, visto que escreveu: “julgar as decisões tomadas no passado de acordo com as certezas científicas do momento presente é uma exercício particularmente difícil (…) Também a Comissão de Inquérito não deseja posicionar-se como censora do passado”29. Isto não foi suficiente para impedir que a tal Comissão agenciasse uma releitura da ação pública passada a partir de um julgamento normativo ex post, dando suporte à posição adotada pelo Presidente de República, no outono de 2000, e colocada como evidência política: as farinhas animais deviam ser totalmente proibidas para a alimentação de todas as espécies de animais. Como esta decisão pareceu ser boa para a mais alta autoridade do Estado, em 2000, será que ela era boa antes e deveria ter sido tomada de maneira antecipada! Esta é uma das linhas diretivas deste relatório, junto com a denúncia da pérfída Inglaterra, da inércia culposa das autoridades de Bruxelas e do comportamento muito pouco europeu de vários Estadosmembros que se opuseram, até outubro de 2000, às medidas de segurança mais importantes, como a retirada completa dos materiais de riscos específicos. Assim, o relatório começa seu processo das farinhas animais afirmando, após uma análise sumária, “no plano nutricional, o uso das farinhas animais na alimentação dos ruminantes não era justificado”30, pois existiam substitutos de origem vegetal. Estranha concepção da justificação. As diversas opiniões de peritos convergem para o fato de as vacas leiteiras precisarem de complementos protéicos para atingirem os rendimentos para os quais foram selecionadas e, além de qualquer consideração sobre a ESB, as proteínas animais serem de melhor qualidade ( de equilíbrio mais fácil na composição dos aminoácidos, de digestão mais fácil e mais ricas, entre outras coisas, em fósforo) e de baixo custo. O fato de que as tortas oleaginosas ou de proteínas possam também ser utilizadas (importadas, tratando-se da soja) não basta em si para anular a ações possíveis e às conseqüências que podem ter : retirar uma ação dominada, em toda e qualquer circunstância, pode modificar a classificação relativa das outras ações. Ora, o exaurimento da descrição é uma condição difícil de satisfazer em circunstâncias onde a incerteza científica pesa sobre inúmeros aspectos dos problemas estudados. 29 Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p.131. 30 Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p.49. justificação do uso das farinhas animais, na alimentação animal, inclusive no caso dos ruminantes, uma vez que tal prática remonta ao início do século XX. Além do mais, é preciso contar com elementos próprios ao contexto histórico recente no âmbito das relações entre os Estados Unidos e a Europa. Conforme Daniel Sauvant: No momento do embargo das exportações de soja pelos Estados Unidos, em 1973, a Europa tomou consciência da fragilidade de suas estruturas pecuaristas e decidiu criar uma política que visasse à redução de sua dependência protéica. Em inúmeros relatórios publicados naquela época, a produção das farinhas animais era considerada como uma das principais formas de melhorar essa autonomia31. Mais adiante, o relatório do Senado julga a abordagem da Comissão como sendo “minimalista”, porque a proibição comunitária em relação às farinhas, decidida em 2000, era apenas temporária – ora, ao contrário, isto pode ser visto como uma decisão em conformidade total com o espírito do princípio da precaução – e também porque a Comissão faz questão de relembrar, em seus documentos, que uma proibição permanente aplicável para outras espécies além dos ruminantes (porcos, aves, peixes) seria “cientificamente injustificada”, pois essas espécies não são sensíveis à ESB. Diante disso, um dos argumentos curiosamente usado pelos senadores é o seguinte: “os cidadãos não entenderiam, por causa da imagem muito negativa das farinhas animais, na opinião pública, que se autorize novamente seu uso. Isto não contribuiria para tranqüilizar o consumidor”32! Assim, uma decisão política de suma importância, como a da proibição total das farinhas animais, até então apresentada como inscrita nas necessidades da saúde pública, teria somente como justificativa o desejo de tranqüilizar o consumidor, espelhando-se nas imagens negativas ou positivas que teria criado? O reinado da precaução razoável seria apenas o quebra-vento do reinado da opinião?33 31 D. Sauvant, “ Les pratiques de l’alimentation animale au ban de la société », Le courrier de l’environnement de l’INRA, n. 42, fevereiro de 2001, p.72. 32 Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 130. 33 Preocupei-me em identificar os principais regimes políticos da precaução para caracterizar seus traços essenciais, girando em torno das categorias do Príncipe esclarecido, do reino da opinião, do governo dos profetas e do regime da deliberação. Apenas este último parece-me dar uma base satisfatória para o princípio da precaução, como vetor da gestão dos riscos coletivos potenciais. Ver O. Godard, “Le principe Mais adiante, os relatores interrogam-se quanto ao calendário das decisões francesas “sobre as razões que levaram a esperar quase quatro anos para proibir totalmente o uso de farinhas animais, na alimentação animal, enquanto o risco de contaminação entre espécies era conhecido, identificado, averiguado”34, como se o reconhecimento de um risco de funcionamento imperfeito de uma decisão regulamentar devesse, sozinho, deslanchar uma estratégia de erradicação, sem passar por uma análise do próprio risco sanitário ou por uma avaliação das implicações práticas de uma proibição total35! E a Comissão de Inquérito revelou seus sentimentos e seu andamento teórico: “A Comissão de Inquérito faz questão de insistir sobre o fato de vários ‘agentes’, e dos mais importantes, terem exagerado as conseqüências e a proibição de farinhas animais e de terem contribuído para o atraso de uma decisão inelutável36 37 . Para que ninguém duvide da necessidade da medida em 2000, não há nada melhor do que apresentá-la como inelutável desde 1989 e analisar as medidas tomadas como atrasos em relação a sua instalação, enquanto o relatório da Comissão de Inquérito da Assembléia Nacional, sobre a transparência e a segurança sanitária do ramo alimentício na França38, publicado em março de 2000, tinha a opinião de que a proibição total das farinhas teria mais desvantagens que vantagens. Esta forma de raciocinar e de qualificar ações e atitudes torna os responsáveis por decisões culpados presumíveis, não importa o que se diga, isto porque não tomaram a medida de proibição mais cedo. Ora, o argumento pode ser contestado de duas maneiras: (a) a justificativa da medida em 2000 para a França, país em que a de précaution, une nouvelle logique de l’action entre science et démocratie”, Philosophie politique, ‘Le risque’, n. 11, PUF, 2000, p. 17-56, e O. Godard, op. cit., RJE, 2001. 34 Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 143. 35 Se as farinhas animais comercializadas são confiáveis, o fato de haver ligeiras contaminações cruzadas entre farinhas destinadas para os ruminantes e outras destinadas a outros animais não é em si um fator de risco sanitário. Desde 1996, os materiais de riscos especificados e os restos duvidosos são retirados da fabricação das farinhas; desde 1998, a França transpôs a diretiva européia de harmonização das condições de tratamento térmico aplicável à fabricação das farinhas para melhorar a segurança : tratamento a 133 C e 3 bars durante 20 minutos, ou qualquer tratamento equivalente. Isto dá duas proteções, o que racionalmente deve ser levado em conta quanto aos efeitos sobre os riscos decorrentes das farinhas : não se trata mais das mesmas farinhas de 1989, quando importadores franceses multiplicaram suas importações de farinhas britânicas que podiam estar contaminadas, mas de um produto de uso exclusivo dos não-ruminantes, insensíveis à ESB. 36 Sublinhado pelo autor. 37 Comissão de Inquérito do Senado, op. cit., p. 143. 38 Relatório n 2297, março de 2000, p. 101-102. prevalência da ESB no rebanho está muito mais fraca que no Reino Unido39, não foi estabelecida pela Comissão senatorial que a vê como evidência; como decorrência do conjunto das medidas de precaução já tomadas, esta decisão chegou no momento em que a medida era a menos justificada, no período começado em 1985, visto que essas farinhas atingiram um grau de segurança nunca alcançado; cria também custos e riscos novos, obrigando ao mesmo tempo a recorrer, de forma improvisada, a novas soluções de transporte, armazenamento e destruição de quantidades maciças de farinhas e a substituir as proteínas animais por outros aportes; (b) o fato desta decisão ser boa ou não, em 2000, não quer dizer que tinha a mesma qualidade há cinco, dez ou quinze anos. Julgar ações passadas com base num a priori normativo, mas não discutido e colocado no momento do desfecho histórico, é ainda menos defensável, no caso específico em que os senadores tornam sua a estimativa apresentada como a mais pessimista quanto ao risco sanitário para a França, de 300 casos de doentes portadores da nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob, nos próximos 60 anos. Nesse período, quase 40 milhões de franceses terão morrido por diferentes causas, inclusive naturais. Seria melhor dizer que não se trata de um verdadeiro problema de saúde pública! O que aconteceu, então, com a idéia de proporcionalidade ?40 O episódio da permanência do embargo francês sobre o boi britânico, no outono de 1999 39 A prevalência média conhecida no rebanho francês era, em 1999, trezentas vezes inferior àquela do rebanho britânico. Atenção: este número não reflete a incidência relativa do risco para os consumidores, pois estes dependem sobretudo do conjunto das medidas tomadas para garantir a segurança da carne (retirada dos materiais de riscos especificados, retirada dos animais de mais de trinta meses, etc.). Eis a razão pela qual, apesar desta diferença, o Reino Unido estava, em 1999, em condições de apresentar para a exportação uma carne com um risco “na pior das hipóteses comparável” aos produtos bovinos consumidos em outros países europeus, como a Alemanha, a Espanha ou a Itália, que não haviam tomado as mesmas medidas ou, até mesmo, em certos casos, nenhuma medida. 40 O professor Claude Got, especialista em saúde pública, comentava nos seguintes termos o episódio da crise de desconfiança do outono de 2000 : “No país onde a esperança de vida é uma das mais altas do mundo, a loucura das vacas e dos homens leva ao regresso de nossa capacidade de gerência dos riscos. Neste tipo de crise de segurança sanitária, um déficit antigo nas decisões (bloqueio tardio da importação de carnes e de farinhas inglesas), não pode ser recuperado, pois, como no caso do amianto, os futuros doentes já estão, em sua maioria, sofrendo. Os responsáveis perderam uma batalha e estão tentados a adotar novas decisões para recuperar sua credibilidade (…). Na gestão do risco local, é preciso ter prudência, mas conservar uma racionalidade mínima na relação entre os custos e a eficácia. O último encontro interministerial relacionado à segurança rodoviária anunciou recursos suplementares de algumas centenas de milhões, destinados ao equipamento da policia civil e militar. Se são destinados entre 12 e 18 bilhões para a retirada das vacas da cadeia alimentar, é preciso que eu mude de profissão. De um lado, a primeira causa de mortalidade entre os jovens, milhares de famílias na tristeza a cada ano e um sistema de controle-sanção que está indo à falência por falta de recursos; por outro, um risco frágil para o qual se destinam bilhões!”, Libération, 15 de novembro de 2000. Freqüentemente, prevalece a idéia de que as autoridades francesas aplicaram, de forma exemplar, o princípio da precaução quando resolveram, no outono de 1999, manter o embargo sobre o boi britânico, que fora decidido no dia 27 de março de 1996, após o anúncio da transmissibilidade da doença para o homem. Aplicando uma decisão do Conselho dos Ministros Europeus sobre as condições do fim do embargo, a Comissão Européia pedira aos membros, em julho de 1999, que pusessem fim ao embargo a partir do dia 1º de agosto, considerando que a última versão do plano inglês (Date-based Export Scheme) satisfazia, em seu princípio assim como na prática, as condições postas. A reforma da perícia em matéria sanitária, adotada pela França em 1998, com a criação da AFSSA, na primavera de 1999, obrigava o governo a seguir um procedimento, solicitando uma opinião pública para essa agência, o que foi feito. O diretor da agência dirigiu-se ao Comitê Interministerial sobre os ESST, presidido por Dominique Dormont, que estava funcionando desde 1996, para realizar a perícia científica que iria esclarecer a opinião com relação ao projeto de decreto que autorizava a retomada das importações. Esse comitê expôs diferentes hipóteses e conjecturas (ver mais adiante) que não foram formalmente descartadas sob o ponto de vista científico, mas que não eram fortalecidas por elementos empíricos precisos e dos quais o grupo não propunha avaliação quantificada. Concluía, considerando que o risco de que a carne importada da Grã-Bretanha viesse de um animal portador da ESB não parecia “totalmente dominado”. Diante dessa apreciação, o diretor da AFSSA emitia, no dia 30 de setembro de 1999, uma opinião negativa em relação ao fim do embargo. O governo seguia essa opinião, recusando-se a obtemperar a decisão comunitária, provocando uma crise política tanto com as autoridades britânicas quanto com as autoridades comunitárias. Com efeito, as regras referentes à circulação dos animais vivos e da carne no território da União, tendo sido objeto de uma harmonização européia, era da competência exclusiva da Comissão tomar medidas de restrição. A priori, a França não tinha o direito de tomar medidas unilaterais. Entretanto, uma negociação começou entre as três partes. Nas semanas que se seguiram, as garantias suplementares propostas pelo governo britânico foram objeto de uma segunda decisão da AFSSA, no dia 6 de dezembro, que permanecia reservada, e o embargo foi mantido. A Comissão entrou com uma ação contra a França, na Corte de Justiça Européia, em janeiro de 2000… Estava-se diante de uma atitude exemplar de responsabilidade e de firmeza da parte das autoridades francesas, no que diz respeito à precaução? Talvez fosse difícil para o governo reagir de outra forma, a partir do momento em que a nova AFSSA tomara uma decisão negativa, a despeito da reafirmação ulterior da doutrina segundo a qual a opinião dos peritos não implicava as autoridades gestoras e era preciso separar muito bem as responsabilidades da avaliação do risco e de sua gestão. Entretanto, essa solução involuntariamente preparou as condições da crise de desconfiança, no mercado da carne bovina, no outono de 2000, apresentando a ameaça ligada à ESB como sendo externa ao país (o boi britânico estando nas fronteiras francesas desde o outono de 1999), enquanto a doença já era interna há mais de dez anos, certamente em proporções muito mais modestas que no Reino Unido. Isto é mais uma razão para se considerar a maneira como as coisas ocorreram, no campo da perícia. Nesse campo, tudo aconteceu para que a decisão a ser tomada pelo governo41 ficasse mais clara. Foi o que mostrou a divergência que se manifestou entre o grupo francês e o Comitê Científico Diretor Europeu (CSD). Para não responder às perguntas precisas das autoridades francesas, os peritos consultados pela AFSSA escolheram, de fato, responder à seguinte pergunta: existia um risco residual ligado ao consumo de boi britânico ? A resposta foi afirmativa. Mas o risco ligado à ESB não era totalmente controlado nem na França, nem nos outros países da Europa, como cada um sabia e como disse o CDS, em outubro de 1999, que julgou que o risco ligado à carne britânica seria “o pior comparável” àquele que prevalecia nos diferentes países europeus, caso o plano inglês fosse perfeitamente aplicado. De fato, mesmo se fosse mais fácil de tratar, a questão examinada pelos peritos franceses não era a mais indicada, tendo em vista o problema de decisão. Para dar uma opinião que ajudasse as autoridades públicas, esses peritos deveriam ter considerado 41 Propus uma análise completa em: “Embargo or not embargo?”, La Recherche, n. 339, fevereiro de 2001, p.50-55. outra questão: o nível de risco relacionado ao consumo de boi britânico, colocado no mercado de exportação, era significativamente diverso daquele resultante do consumo de produtos bovinos, na França? Se o risco tivesse sido julgado comparável, a permanência do embargo não podia mais ser justificada sob o ponto de vista da segurança alimentar. Então, o princípio da precaução não teria passado de um álibi. Além disso, a divergência não deixa de ser instrutiva quanto às dificuldades da perícia, num contexto de incerteza, e quanto aos papéis assumidos por tais comitês. Os peritos franceses deram sua opinião sob a forma de um conjunto de argumentos relativos a hipóteses que não podiam ser descartadas, pois não tinham sido invalidadas por trabalhos científicos. Essas hipóteses diziam respeito à epidemiologia da doença: - a possibilidade de encontrar príons infecciosos em outros tecidos além dos tecidos nervosos e glândulas linfáticas dos animais não estava descartada; a localização da infecção no organismo continuava bastante desconhecida “para que as medidas adotadas pudessem ser consideradas a priori como totalmente eficazes”; - a transmissão da infecção poderia tomar rumos diferentes das duas formas que haviam sido identificadas; as farinhas contaminadas de origem animal e transmissão da vaca para o bezerro; uma diminuição mais lenta da epidemia no Reino Unido, em 1997-1998, poderia ser o indício da presença de uma terceira forma; - a ausência de casos entre os bezerros recentemente nascidos, após dezembro de 1995, não significava que alguns deles não estivessem infestados, pois o prazo admitido de incubação média era de 54 a 60 meses. Ora, o plano de controle britânico negociado com a Comissão Européia só autorizava a exportação de animais com mais de 30 meses. O fato destes não estarem doentes podia ser explicado pelo fato de estarem sadios, mas estarem em período de incubação, sem que sua infecciosidade latente estivesse se manifestando. - enfim, a confiabilidade do sistema de identificação e de acompanhamento no Reino Unido não fora demonstrado; este acompanhamento seria particularmente impraticável para produtos derivados da carne bovina, o que devia provocar a exclusão desses produtos do regime de exportação. O CSD adotou uma postura inversa quanto à maneira de argumentar sobre os riscos: - a eventual presença não confirmada de príons no caso dos bovinos, numa pequena proporção, em outros tecidos além daqueles identificados até então, não seria um elemento suficiente para concluir sua infecciosidade (problema da dose mínima); apesar de inúmeras experiências, jamais foi possível comprovar experimentalmente que tecidos musculares provenientes de animais doentes pudessem contaminar; - uma terceira via de contaminação não podia ser descartada a priori, mas a hipótese de sua existência, tratando-se dos bovinos, não se baseava sobre nenhum elemento empírico disponível; mesmo que fosse confirmada, só poderia ter uma incidência pouco significativa, tendo em vista a estimativa razoável da diminuição da epidemia, obtida por modelos de previsões, baseados nas duas formas admitidas (farinhas contaminadas e transmissão materna); - a diminuição da epidemia ocorria certamente, de acordo com o valor máximo dos modelos de previsão utilizados, mas não estava fora dos limites; portanto, um questionamento dos modelos de previsão não se justificava; - considerando o risco apresentado pelas farinhas animais contaminadas sendo regulado de forma segura pelas medidas de proibição total do uso destas farinhas, decidida em março de 1996, para os ruminantes assim como para outros animais (porcos, aves, peixes), o estudo epidemiológico de risco máximo por eventual transmissão da vaca para o bezerro fazia aparecer, para um volume anual previsto de 75 000 unidades exportadas, um risco máximo de 1,3 animal em incubação indo para o matadouro, em vias de exportação; mesmo neste caso, esses animais seriam submetidos às medidas de proteção no momento de seu corte (separação dos materiais de riscos especificados, etc.); - a organização dos controles e do acompanhamento não era uma questão científica, mas tinha a ver com a gestão dos riscos; desta forma, esta questão não era da competência do Comitê. Em conclusão, fora a discussão sobre a avaliação estatística da evolução da epidemia no Reino Unido que, depois, se teria esgotado no âmbito do Grupo ad hoc Europeu sobre a ESB, do qual participava o presidente do Comitê Francês, não existiam divergências científicas significativas quanto à apreciação do estado dos conhecimentos e dos fatos epidemiológicos. As diferenças eram de outra natureza e encontravam-se num campo que poderia ser denominado como normativo: os pontos de vista adotados, tanto de um lado como do outro, sobre as hipóteses e as incertezas eram opostos; além do mais, o trabalho dos peritos e a forma de argumentação foram estruturados por questões que não eram as mesmas. O Comitê Francês apegou-se às incertezas residuais e hipóteses ainda não invalidadas, enquanto o Comitê Europeu se recusou a dar um crédito prático a hipóteses que não podiam apoiar-se sobre um esquema teórico admitido, em se tratando do modo de contaminação, nem sobre elementos científicos de natureza experimental ou estatística. Este debate indireto em relação às provas a serem reunidas (é preciso tratar como averiguadas todas as hipóteses que ainda não foram invalidadas por um trabalho científico, ou é preciso reter apenas aquelas cuja plausibilidade – e não validade – é suficientemente amparada por trabalhos científicos? Como determinar uma graduação dentro da plausibilidade?) não pode ser, evidentemente, decidido apenas num único plano científico. Isto tem a ver com uma orientação especificamente normativa que, em seu princípio, releva uma responsabilidade política. Os peritos do CSD explicaram seu método de abordagem: de acordo com a demanda da Comissão, analisaram os riscos a partir de uma hipótese de aplicação “meticulosa” do plano definido pelo governo britânico para garantir a qualidade da carne exportada. Foi em função dessa hipótese que o Comitê concluiu que o risco sanitário ligado às exportações de boi britânico era “no pior dos casos, comparável àquele dos outros países europeus”. Então, o CSD resolveu avaliar o risco assintomático42, aquele que está associado à aplicação sem falhas de um plano de ação determinado, o que não lhe permitiria pronunciar-se quanto aos níveis de riscos ligados às diferentes hipóteses em vigor para a realização do plano. Ao contrário, os peritos franceses estavam muito sensibilizados com as condições reais de realização do plano britânico e com a possível incidência de negligências, falhas e fraudes variadas nos níveis de riscos, sem dispor, entretanto, de meios de investigação a respeito das questões. A estratégia do CSD era coerente, ajustando o modo de raciocínio escolhido de acordo com as competências reunidas, mas precisava ser completada por outra perícia, implicando outros tipos de peritos, para que fossem entendidos os níveis de risco associados a diferentes tipos de eventuais falhas práticas do plano de ação. A postura do Comitê Francês era justificada pela natureza do problema submetido pelas autoridades francesas (a aprovação ou desaprovação de uma medida regulamentar do fim do embargo), mas era deslocada em relação à natureza das competências e das informações reunidas pelo Comitê. Enfim, a perícia prestada pelos dois Comitês não pretendia responder às mesmas perguntas. A Comissão Européia fizera três perguntas ao CSD: (1) Havia novos elementos científicos entre os elementos fornecidos pela AFSSA? (2) Esses eventuais elementos novos eram válidos a ponto de levar ao requerimento de reexame das decisões anteriores do CSD? (3) O CSD podia confirmar o caráter satisfatório das condições formuladas no plano de exportação inglês, a respeito da segurança da carne, se tais condições eram respeitadas? Acionado apenas para um projeto de decisão, o Comitê 42 A expressão é de B. Chevassus-au-Louis, presidente da AFSSA, “L’analyse du risque alimentaire : quels príncipes, quels modèles, quelles organisations pour demain?”, Conferência da OCDE sobre a segurança alimentar dos alimentos provenientes de OMG, Edimburgo, 28 de fevereiro a 1º de março de 2000. Francês respondeu à seguinte pergunta: existe um risco residual associado à importação da carne britânica? E respondeu afirmativamente, considerando que o risco “não estava totalmente dominado”. Primeira conclusão: as conseqüências práticas provenientes das duas opiniões de peritos e usadas pelas respectivas autoridades foram, com certeza, totalmente opostas; entretanto, apesar da história de um importante conflito entre peritos, foi a ausência de contradição formal entre suas respectivas conclusões que espantou o observador: sim, o risco associado à carne britânica colocada para exportação não era nulo, mas era comparável àquele dos outros países europeus! Se não era a ciência que separava os dois Comitês e as duas decisões, européia e francesa, seria o princípio da precaução? Os franceses o teriam considerado, ao contrário dos britânicos e da Comissão? Esta questão teria a vantagem de ser simples, porém é equivocada. A opinião desfavorável dada pela AFSSA podia, com todo o direito, valer-se do princípio da precaução, visto que o risco residual não aparecia para os peritos, nem nulo, nem totalmente dominado. Todavia, a Comissão Européia estava em seu direito de estimar como suficientes as medidas de precaução tomadas, pois o risco residual de entrada de carne contaminada na cadeia alimentar (1,3 casos por ano para as exportações para a França), para uma carne cujo caráter contaminador jamais pôde ser demonstrado, parecia-lhe tão frágil que deveria poder ser aceito. Ora, o princípio da precaução não poderia ser confundido com a chegada ao risco zero, visto que ele pede “medidas proporcionais para um custo econômico aceitável”. Apesar de tudo, o princípio da precaução pode aclarar a maneira de exercer a perícia? Em seu relatório para o Primeiro Ministro a respeito deste princípio, Philippe Kourilsky e Geneviève Viney43 sublinharam a necessidade de graduar as respostas de precaução em função do grau de consistência científica das hipóteses sobre o risco. A idéia-chave a seus olhos é a plausibilidade científica e eles definiram suas condições: a simples suspeita não pode ser suficiente para deslanchar a prevenção; somente as hipóteses plausíveis que resultam de um método científico amplamente aceito podem 43 P. Kourilsky e G. Viney, op. cit., p. 41-43 e 61-63. legitimamente ser consideradas para definir o que são os riscos potenciais. Entre estes últimos, seria preciso ainda distinguir os riscos potenciais plausíveis e os riscos potenciais sustentados, cuja plausibilidade se apóia na experiência. De maneira geral, os primeiros deveriam levar para ações de pesquisa enquanto os segundos deveriam ser resolvidos por medidas de precaução que visam a produtos ou técnicas. A validade geral deste critério da prova experimental pode ser obviamente colocada em dúvida, como sugere, por exemplo, o caso de risco climático planetário ligado ao aumento do efeito estufa, tendo em vista a considerável inércia dos fenômenos em jogo, tanto do lado do sistema climático quanto do lado dos determinantes tecnológicos e econômicos das emissões de gases causadores do efeito estufa44. Todavia, a idéia de uma plausibilidade amparada permanece como uma referência essencial. Sobre este critério de plausibilidade, os dois Comitês adotaram atitudes muito diferentes. O CSD permaneceu ligado às recomendações do relatório Kourilsky-Viney enquanto o Comitê Francês se afastou sensivelmente dele quando pediu às autoridades para que tomassem medidas draconianas (a proibição), tendo em vista as suspeitas especulativas de infecciosidade que não estão amparadas por resultados experimentais. Segunda conclusão: o princípio da precaução não permite decidir entre as duas decisões (retomada das importações ou manutenção do embargo), nem a prática dos dois Comitês, visto que a linha divisória se estabelece entre duas maneiras de conceber as exigências desse princípio. Daí a interrogação final: era da competência de peritos científicos escolher uma ou outra dessas interpretações e decidir indiretamente sobre o nível de risco que a coletividade quer assumir? Com certeza, compete a esses Comitês de peritos implementar o tipo de graduação desejada pelo relatório Kourilsky-Viney, afim de qualificar a plausibilidade das hipóteses, mas a própria definição dos pontos de referência dessa graduação e a determinação dos tipos de decisões que podem corresponder-lhes (vigília científica, programas de pesquisa, programas de vigilância e de retorno de experiência, informação dos profissionais, informação para o público, instrumentos 44 Ver O.Godard, “ Les enjeux économiques des politiques de prévention du risque climatique », Revista La Météorologie, 8 serie, n. 24, dezembro de 1998, p. 54-66. incitativos, restrições de praxe, suspensões de autorizações, proibições ou renúncias definitivas) têm uma dimensão normativa que não lhes compete decidir. A responsabilidade política, no desencadear do princípio da precaução, não termina no julgamento sobre a natureza das medidas a serem tomadas. Ela se estende à forma de qualificação dos diferentes estados de conhecimentos suscetíveis de justificar a adoção de um ou outro tipo de medida de precaução. Por exemplo, seria conveniente dar conseqüências práticas mais extremas (a proibição de atividades ou de técnicas) para hipóteses de perigo não invalidadas, porém não confirmadas, ainda que sustentadas não sobre uma compreensão teórica precisa, nem sobre um modelo, nem sobre elementos empíricos ou experimentais? Hoje, olhando os conhecimentos disponíveis e as incertezas científicas disponíveis, seria preciso proibir totalmente os telefones celulares, regulamentar os lugares admissíveis de implantação para as antenas necessárias a uma boa cobertura do território em relação a esse serviço, ou somente financiar programas de pesquisa e vigilância sanitária? Obviamente, para elaborar tal análise, os políticos precisam estabelecer um estreito diálogo com os cientistas e precisam apoiar-se sobre a participação de peritos especialistas em disciplinas com orientação normativa (ciências morais, ciências econômicas, ciências jurídicas e políticas). Mas a definição de tal controle e o estabelecimento de escalas de correspondência entre diferentes estados dos saberes e diferentes modos de ação têm realmente a ver com uma responsabilidade política, no sentido reivindicado pela resolução do Conselho Europeu de Nice. 5. Conclusão: uma tradução jurídica em questão De forma unânime, os comentaristas da matéria jurídica sublinharam a importância da jurisprudência da Corte de Justiça Européia, estendendo o campo de aplicação do princípio da precaução para a saúde pública. A resolução de maio de 1998, suscitada pelo conflito intracomunitário sobre a justificativa do embargo sobre o boi britânico, decretado pela Comissão, em março de 1996, deveria “acabar de vez com a discussão sobre a ausência de caráter jurídico do princípio, no direito europeu”45: o princípio pode ser de aplicação direta e pôr legitimamente em xeque, por exemplo, o 45 M.-A Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 343. princípio da liberdade de circulação das mercadorias. Todavia, resta determinar quem pode aproveitar-se disso legitimamente. Na Europa, quais são as autoridades habilitadas para tomar medidas de precaução? Quais são as instituições politicamente legitimadas para aplicar um regime de precaução e proceder às arbitragens normativas, cujas várias faces acabam de ser destacadas? O conflito do outono de 1999, que concerne à manutenção do embargo pela França, não foi arbitrado pela Corte de Justiça Européia e esta não pode, então, responder às perguntas. É significativo que a resolução do Conselho Europeu de Nice tenha atribuído a responsabilidade do início da aplicação do princípio da precaução ao mesmo tempo à Comunidade Européia e Estados-membros (ponto 2) e reivindica o direito, tanto destes quanto daquela, em estabelecer o nível de proteção que estimam como apropriado no quadro da gestão do risco (ponto 5). É melhor dizer que as possibilidades de conflito entre as iniciativas dos Estados e as da Comissão Européia não foram resumidas por este texto. Aliás, haveria alguma incoerência para a Comissão em defender, diante das instâncias internacionais, como a OMC, o direito soberano das comunidades políticas de escolher o nível de proteção que desejam e contestá-lo aos Estados-membros da União Européia. Então, é preciso esperar, na Europa, um regime misto de precaução, combinando procedimentos e gestões comunitárias assim como procedimentos e gestões nacionais, sem um contexto uniforme de implantação. O problema colocado atinge os liames entre precaução e soberania política. O paradoxo do período vem do fato de serem instituições que não se encontram no topo da hierarquia da legitimidade democrática. Tais instituições querem delimitar, até mesmo contestar, o direito daquelas que ocupam o topo dessa hierarquia, isto é, os governos dos Estados nacionais, que tomam as medidas que estimam necessárias para assegurar o nível de proteção para suas populações. Este controle do “pequeno” sobre o “grande”, na ordem da legitimidade, causa um abalo para o qual, logicamente, só se podem encontrar duas saídas: (a) elevar o grau democrático das instâncias que pretendem exercer uma regulação e um controle sobre as decisões dos Estados soberanos; (b) reconhecer o direito soberano desses Estados, no que diz respeito à gestão dos riscos coletivos, organizando-o de forma a evitar desvios manifestos de seu objeto e submetendo-o a regras mínimas comumente aceitas quanto aos procedimentos a serem seguidos para atestar a seriedade das solicitações, particularmente em matéria de perícia dos riscos. Enquanto a opção (a) não progredir o suficiente, é a opção (b) que se impõe. Tratava-se, ainda, nestas observações, de apreciar somente os poderes de precaução de diferentes instituições políticas nacionais ou supranacionais. Como ficam as obrigações que incumbem a estas instituições? A resolução da Corte Européia, de maio de 1998, tem uma forma viável: afirma que as instituições podem tomar medidas (…); não disse nada além e, sobretudo, que as instituições devem tomar medidas de proteção identificadas com precisão. Entretanto, uma indicação geral é fornecida pela consideração K da Resolução de Nice, reforçando as formulações dos Tratados de Maastricht e de Amsterdã: “As autoridades públicas têm a responsabilidade de assegurar um alto nível de proteção da saúde e do meio ambiente”. Todavia, esta obrigação geral de proteção é traduzida nesta Resolução por obrigação de procedimentos: dotar-se de um quadro de pesquisa; organizar a avaliação do risco; considerar um leque de medidas; apreciar politicamente as medidas a serem tomadas, e outros procedimentos. Neste pano de fundo, alguns comentaristas46 acreditam discernir na jurisprudência comunitária uma evolução suplementar: de agora em diante, o princípio da precaução seria uma regra jurídica de aplicação direta e geral, tanto para as pessoas físicas quanto para as pessoas jurídicas, na totalidade do território europeu. Entendem por isto que o princípio da precaução seria gerador de obrigações novas para todas as pessoas, qualquer que seja sua situação, fora de toda e qualquer prescrição legal e regulamentar particular, a partir do momento em que estes atores – todos pensam nas empresas, mas por que limitar-se a elas? – poderiam contribuir para a criação de riscos potenciais, podendo causar danos à saúde e ao meio ambiente. De fato e desde já, o juiz poderia sancionar desrespeitos às obrigações gerais instituídas pelo princípio da precaução. Se me permitirem, queria dizer que espero com impaciência o primeiro processo contra a empresa de Cimentos Lafarge, grande emissora de gases de efeito estufa diante do ETERNO, – ou a outra empresa da indústria da construção civil – por não ter tomado de 46 Ver L. Boy, “La nature juridique du principe de précaution”, Natures, Sciences, Sociétés, 7, n. 3, 1999, pp 5-11. forma preventiva medidas que visam cessar essas emissões que, ao que tudo indica, prejudicam o clima do planeta (a demonstração científica do risco não foi feita ainda, embora exista um feixe convergente de elementos teóricos e factuais que abalizam a hipótese), e por ter esperado que o governo francês queira realmente taxar essas emissões ou fixar um limite… Ou aquele motorista qualquer, usuário de um veículo a gasolina ou óleo diesel, e culpado deste fato, ainda que em escala menor, culpado do mesmo crime. Não escapa a ninguém que a tese da aplicação direta e geral opõe-se frontalmente às reivindicações contidas na Resolução do Conselho Europeu de Nice, que fez do princípio da precaução uma responsabilidade e uma prerrogativa das autoridades públicas nacionais e comunitárias. Sem retomar aqui uma argumentação sobre os fundamentos, apresentada em outras obras47, as análises desenvolvidas no presente artigo, enriquecidas pelo estudo do caso emblemático da vaca louca, só podem confortar-me na extrema reserva que é a minha, tanto no que diz respeito a esta tese da aplicação direta e geral48 quanto às ações que confiam ao juiz o cuidado de dizer ex post quais eram ex ante as obrigações dessas pessoas, enquanto os poderes públicos não teriam criado nenhuma organização e nenhum quadro regulamentar e não teriam, por hipótese, fixado nenhuma referência precisa para uma gestão, sob a proteção da precaução, dos riscos coletivos em causa. Não seria melhor satisfazer-se em confiar ao juiz o controle do respeito dos procedimentos decididos pelas autoridades responsáveis, mantendo-se nos limites do erro manifesto de apreciação, sem aventurar-se a querer traduzir em termos de falta de decisões ou ausência de decisões por parte das autoridades, quando se tratou de apreciar o que era para ser feito ou não? Entretanto, em seu comentário do caso da vaca louca, Marie-Angèle Hermitte e Dominique Dormont acreditaram encontrar “uma oposição cultural entre o princípio da precaução e a limitação do controle de legalidade para o erro manifesto de apreciação”49. Conseqüentemente, posicionaram-se a favor de um controle reforçado das decisões da administração pelo juiz, levando-o a sondar os motivos das decisões e a pesar a proporcionalidade das medidas de precaução. Maneira 47 O.Godard, op. cit., RJE, 2001. Ao contrário, não contesto a tese da aplicação direta para as únicas autoridades públicas responsáveis. 49 M.-A. Hermitte e D. Dormont, op. cit., p. 382. 48 curiosa de reforçar a autonomia do político do qual disseram estes autores que “serve justamente para integrar os diferentes pontos de vista e para separar a função de identificação e avaliação dos riscos daquela que consiste em determinar qual é o risco aceitável, tendo em vista as diferentes obrigações que são exercidas sobre este setor”50. Ousaremos uma conjectura: se porventura a evolução jurídica andasse no sentido de um controle pleno e completo do juiz sobre a oportunidade das medidas de gestão dos riscos potenciais, a vaga ameaça que plana sobre os tomadores de decisões os levaria rapidamente a posicionarem-se sobre critérios simples, assegurando sua própria proteção jurídica contra o exercício das liberdades individuais, os recursos públicos e a melhoria da saúde pública, o que passa freqüentemente por um cálculo de riscos razoáveis. Não se importando com as sutilezas da elaboração doutrinal, a tradução jurídica do princípio da precaução levaria este belo princípio para o lado dessas “idéias brutas” que a razão não defende, mas que têm a virtude de uma simplicidade binária. Referências Bibliográficas BOY, L. “La nature juridique du principe de précaution”, Nature , Sciences, Sociétés, v. 7, n. 3, 1999, p 5-‐11. COMISSÃO das Comunidades Européias, Comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução. Bruxelas, 02 de fevereiro de 2000, COM (2000)1. CONSEIL d’Etat, Rapport public 1998. Réflexions sur le droit de la santé. Paris: La documentation française, coll. Etudes et documents n. 49, 1998. p.256. GODARD, O. “De l’usage du principe de précaution en univers controversé”, Futurtbles, (239-‐240), fevereiro-‐março de 1999, p. 37-‐60. GODARD, O. “Embargo or not embargo?”, La Recherche, n. 339, fevereiro de 2001, p.50-‐55. 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Bruxelles: Universidade de Bruxelas, 2000 Capítulo 8 Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e Oportunidades David Freestone e Ellen Hey* Como ponto de partida para este livro, é evidente que, como princípio de política ambiental, o princípio da precaução veio para ficar. Emergindo como o fez com tamanha rapidez, no contexto internacional das deliberações das Conferências Internacionais sobre a Proteção do Mar do Norte, tem sido tão amplamente aceito em instrumentos internacionais e, de forma crescente, em nacionais, que poucos, atualmente, tentariam negar sua importância. Ainda é uma questão em debate entre os juristas internacionais se ele adentrou os portais sagrados do direito costumeiro internacional1. Mas, para a maioria das intenções e propósitos, este debate não é mais de fundamental importância. Como nós e outros autores já demonstramos detalhadamente, ele já é um dos princípios norteadores de um grande número de instrumentos ambientais globais e regionais, e suas principais diretrizes são cada vez mais utilizadas, nos regimes legais nacionais e internacionais. Este livro buscou colocar o debate um passo adiante, fornecer uma contribuição para o que nós estamos chamando de “segunda geração” de pesquisas sobre o princípio da precaução, mediante o exame de alguns dos temas mais complexos acerca de sua implementação2. É verdadeiramente o desafio da implementação. Como muitos artigos demonstraram, o desafio é modificar as instituições e os mecanismos técnicos. É um desafio para nosso modo de ver o mundo e para nosso entendimento sobre o papel da ciência e do ônus da prova. * David Freestone é professor de direito internacional e diretor da Unidade de Direito Internacional do Banco Mundial, nos Estados Unidos. Ellen Hey é professora de direito internacional dos recursos naturais, na Universidade de Erasmus, Holanda. 1 Ver, por exemplo, P. W. Birnie e A.E. Boyle. International Law and the Environment. Oxford: Claredon Press, 1992, p. 98, que questionam o seu estatuto no direito internacional costumeiro. Ver. Cameron e Abouchar. “The status of the precautionary principle in international law”, In Freestone, David e Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995; Freestone. “The Road from Rio: International Environmental Law after the Earth Summit”, Journal of Environmental Law, n. 6, 1994, p. 193-218; H. Hohmann, Precautionary Legal Duties and Principles of Modern International Environmental Law, The Precautionary Principle: International Environmental Law Between Exploitation and Protection, 1994. 2 Ver tambem T. O'Riordan and J. Cameron. Interpreting the Precautionary Principle, 1993, p. 3. Handl frisou que nossas preocupações ambientais globais modificaram nossa percepção sobre a natureza da soberania e nosso entendimento sobre a vulnerabilidade de nosso planeta3. Os rápidos avanços em ciência e tecnologia podem ter-nos dado o motor de combustão interna, o condicionamento do ar e a viagem espacial, assim como avanços incomparáveis em medicina, mas esses avanços têm seu custo. O buraco na camada de ozônio, a poluição marítima, a destruição de habitats e possivelmente (ou talvez, provavelmente) a mudança climática global são os custos que nós pagamos ou ainda teremos que pagar. O paradoxo adicional é que são também os cientistas que nos estão alertando sobre os novos riscos. E estes novos riscos para os sistemas globais que mantêm a vida nos conduzem a uma visão diferente das demandas que a humanidade pode legitimamente fazer ao planeta. Também não é fácil aceitar que os Estados podem fazer o que bem entenderem em seus próprios territórios ou em alto-mar, quando sabemos que certos tipos de atividades (como os químicos que empobrecem a camada de ozônio ou a queima de combustíveis fósseis) causarão danos adicionais aos sistemas ambientais globais. Portanto, cada vez mais o direito internacional ambiental admite que uma visão rígida do território e da soberania estatal, ou seja, que as atividades de um Estado são incontestáveis por outros Estados, não podem mais ser compatíveis com as tentativas de abordar os problemas ambientais globais. Como Handl diz, “a soberania não implica mais um status negativus, uma base legal para a exclusão, mas tornou-se uma base legal para a inclusão, ou um comprometimento para cooperar, visando ao bem da comunidade internacional como um todo; souveraineté oblige”4. A emergência do princípio da precaução é parte desse movimento. Aliado a conceitos como desenvolvimento sustentável e eqüidade intergeracional, seu endosso por organismos nacionais e internacionais implica aceitar que restrições sejam impostas a todas as atividades que tenham impactos negativos significativos, no meio ambiente. De fato, o princípio da precaução coloca restrições a atividades que podem ter “impactos negativos significativos”, mesmo quando a ciência não pode prever precisamente se eles 3 Gunther Handl. “Environmental Security and Global Change: the Challenge to International Law”, 1990, n. 1 Yearbook of International Environmental Law p. 3-33, p. 32. 4 Ibid. ocorrerão ou como serão. No entanto, como Fleming5 afirma, o conceito de impactos negativos significativos não é absoluto, pois a “conseqüência inaceitável” de uma pessoa pode ser uma “necessidade vital” para outra. 1. Problemas Conceituais Apresentados pelo Princípio da Precaução Uma vez que o princípio da precaução é visto em termos "não absolutistas", não como uma regra dogmática absoluta de regulação, sua implementação e conseqüências trazem problemas nos níveis conceitual e prático. Conceitualmente, um princípio que pretende fornecer uma agenda para reagir a incertezas cria um grande número de problemas para o pensamento jurídico tradicional. Abouchar e Cameron6 oferecem uma análise detalhada de até que ponto o princípio da precaução, em forma e conteúdo, começou a passar para o direito costumeiro internacional, mediante a prática dos Estados. Kiss7 relaciona o princípio com os direitos humanos emergentes das gerações futuras, destacando as formas pelas quais alguns sistemas nacionais, especificamente França e Filipinas, tiveram um papel pioneiro em chegar a conclusões jurídicas, com as incertezas filosóficas e práticas sustentando ambas as idéias. Dada a natureza de longo alcance das ameaças ambientais que o princípio da precaução busca evitar e os tipos de soluções que as políticas precautórias podem abarcar, é claro que os temas não podem ser satisfatoriamente avaliados exclusivamente pelos juristas. Assim como muitas das abordagens políticas, Konrad von Moltke nos lembra que as contribuições dos cientistas, tecnólogos e economistas, bem como a dos juristas, são fundamentais para o desenvolvimento de estratégias de implementação de sucesso. Também é verdade que, em sua formulação mais extrema, o princípio da precaução pode ser usado para justificar a prevenção de qualquer forma de atividade que não possa ser comprovadamente considerada inofensiva – o que é uma impossibilidade científica virtual. Todavia, uma vez que o conceito de equilíbrio e outros fatores são introduzidos 5 J. S. Gray. “The economics of taking care: an evaluation of the precautionary principle”. In Freestone, David e Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. 6 K. von Moltke. “The relationship between policy, science, technology, economics and law in the implementation of the precautionary principle”; J. Gupta. “Glocalization: the precautionary principle and public participation, with special reference to the UN framework convention on climate change”. In Freestone, David e Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995, p. 236. 7 Ver o artigo de Alexandre Kiss, neste livro. no princípio, a ação precautória pode ser vista como uma escala de opções – algumas mais precautórias que outras. Não se procura controlar o impacto da precaução, pois o principal fator desencadeador é a incerteza e as conseqüências prováveis. Se estas últimas são conhecidas, deve ser tomada uma medida preventiva e não, precautória. Entretanto, o princípio por ele mesmo não dita necessariamente qual forma de medida precautória deve ser tomada. Se este enfoque for adotado, a ciência e os cientistas não serão adversários dos tomadores de decisão; ainda que somente como aliados, eles têm um papel essencial no processo de busca e aplicação das opções políticas “apropriadas”. A questão de desenvolver uma resposta precautória apropriada, de achar um equilíbrio político apropriado está também no cerne do artigo de Nollkaemper, refletido em seu título8. A análise econômica de Fleming, destaca, entre outras coisas, o valor do pressentimento na avaliação dos valores envolvidos na proteção do meio ambiente, complementa bem a discussão de Nollkaemper sobre o modo pelo qual temas políticos podem ser, têm sido e devem continuar sendo utilizados para mitigar as tendências “absolutistas” do princípio da precaução. O simples fato de o princípio da precaução ser um princípio, significa que não implica obrigações absolutas. Simplesmente estabelece uma política para a implementação por outros meios regulatórios. Portanto, a questão sobre o que se quer dizer com “significativo” ou ainda “negativo” ou “impacto” em avaliar um “impacto negativo significativo” é tão incerto quanto a introdução de fatores de equilíbrio como questões de viabilidade econômica (como aqueles inscritos no princípio da Declaração do Rio)9. O artigo de Nollkaemper demonstra as várias formas pelas quais a prática pode mitigar a abordagem “absolutista” da aplicação mais extrema do princípio da precaução, cruamente satirizado como “na dúvida, não o faça”, mas obviamente visto em procedimentos, tais como o procedimento de justificação prévia (PJP) da comissão de Oslo.10 8 “What you risk reveals what you value', and other dilemmas encountered in the legal assaults on risks”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995. 9 O texto do Princípio 15 foi citado por Freestone e Hey em “Origins and development of the precautionary principle”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. 10 Decisão da OSCOM 89/1, 14 de junho de 1989, reimpressa em David Freestone e Ton Ijlstra (eds.). The North Sea: Basic Legal Documents on Regional Environmental Co-operation. London: Graham & Trotman A necessidade de um equilíbrio dos interesses envolvidos é também um tema que deve ser discutido. Von Moltke salienta que o princípio da precaução não é em si mesmo um mandato juridicamente vinculante; ele é o que Von Moltke chama de “um guia para o desenvolvimento de políticas” e Moltke ainda cita a necessidade de introduzir alguma forma de avaliação econômica, na equação. Na Holanda, por exemplo, as políticas de controle da poluição atmosférica vêm há muito incluindo um elemento de equilíbrio entre o que é ecologicamente necessário e o que é economicamente possível. Os fatores econômicos são apenas uma parte da equação, mas não a dominante – por exemplo, no caso do Clean Air Act, subsídios são fornecidos às empresas que necessitam adotar medidas particularmente onerosas. Todavia, como Moltke argumenta, sem as condições econômicas limitadoras, o princípio da precaução não faz sentido: “Apenas com a introdução da dimensão econômica é criada a tensão apropriada entre as demandas humanas sobre o meio ambiente e a necessidade de o meio ambiente ser protegido contra tais demandas”.11 Em nível local, o conceito desafiador de Gupta de “glocalização” faz sentido para a mitigação e substituição de políticas “de cima para baixo” por agendas desenvolvidas em nível local, para o envolvimento de comunidades locais em avaliação de valores. Assim, como ela diz, “evidência científica só pode gerar autoridade social para a ação política em problemas ambientais complexos, quando há um consenso cultural no seio da sociedade sobre a natureza do problema”.12 O problema de equilibrar os valores e as exigências políticas também implica a tentativa de aplicar o princípio da precaução diretamente, no campo da responsabilidade do Estado. Como Tinker13 demonstra, a incerteza que está no cerne do princípio da precaução parece chocar-se com a necessidade de certeza que a lei exige para o estabelecimento da responsabilidade. Ltd., 1990, p. 119. O PJP consiste em um procedimento prévio de consulta que requer que o Estado desejoso de emitir uma permissão para o despejo de dejetos industriais no mar deve demonstrar à Comissão que não há alternativas de descarga em terra e que nenhum dano será causado ao ambiente marinho (parágrafo 1). O PJP reverte, assim, o ônus da prova. 11 op. cit., p. 107. 12 Gupta, J. “Glocalization: The Precautionary Principle and Public Participation, with special reference to the UN Framework Convention on Climate Change”. In Freestone, David and Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995, p. 236. 13 C. Tinker. “State responsibility and the precautionary principle”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995, p. 71. Entretanto, conforme defendemos em outra ocasião,14 nestes setores em que a precaução se tornou obrigatória, o conceito de “dano previsível” pode incluir um conceito mais amplo de risco com o passar do tempo. Então, qualquer Estado que falhar em sua obrigação de adotar uma ação precautória reparadora, quando o dano possível é definido, o risco de ser responsabilizado é assumido exclusivamente por ele e não pela Comunidade Internacional. Entretanto, Tinker prefere enxergar o significado do princípio como fornecendo um vínculo procedimental entre as regras materiais do direito ambiental e o direito sobre responsabilidade do Estado. A relevância do princípio da precaução, pois, seria no desenvolvimento de um conjunto de normas relacionadas às regras procedimentais, caracterizadas por Cameron e Abouchar como medidas precautórias “indiretas”15. Estas incluiriam normas como as que exigem a avaliação prévia de impacto ambiental, o dever de alertar ou notificar outros Estados, o papel de mitigar e socorrer em emergências, bem como o de facilitar o acesso à informação. Tinker sugere que a nãoobservância destas normas procedimentais pode então suscitar responsabilidade estatal.16 Entretanto, é importante frisar que, na definição de Von Moltke, o princípio da precaução é mais um guia para o desenvolvimento de políticas que um mandato juridicamente vinculante. É importante de se ter em mente a diferença em nível legal entre uma regra e um princípio, desenvolvida por Tinker e Nollkaemper17, entre outros. Como um princípio, ele tem sido reconhecido por muitos instrumentos jurídicos e os observadores começaram a discutir as formas pelas quais cada conjunto normativo pode ser desenvolvido para implementar a filosofia do princípio. Ao lado do princípio da ação preventiva, o princípio da precaução insiste em que o dano deveria, como uma prioridade, ser reparado na fonte e o poluidor, pagar, de acordo com o Tratado de Maastricht da União Européia de 1992.18 Como Hancher19 destaca, e eventos subseqüentes parecem ter confirmado sua visão preliminar:20 14 Ver D. Freestone, “The Precautionary Principle”; Robin Churchill e David Freestone (Eds.). International law and global climate change. London : Graham & Trotman/Nijhoff, 1991, p.21-39, p.37. 15 op. cit. , p. 50-51. 16 op. cit., p. 71. 17 op.cit. 18 Ver Artigo 130r do Tratado da União Européia, 1991. 19 L. Hancher. “EC Environmental policy – a pre-cautionary tale?”. In Freestone, David and Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston: Kluwer Law International, 1995. 20 Ver o caso de Duddridge, infra, nota 36. É improvável que (...) aos princípios ambientais (...) serão atribuídos efeitos diretos (...), de modo que um indivíduo poderia peticionar perante uma corte nacional que a ação de um Estadomembro ou legislação em conflito com o artigo de um tratado seja ignorada ou declarada inaplicável. Entretanto, o princípio poderia ser confiado aos Estados-membros para justificar uma medida nacional, tanto em procedimentos colocados contra ele pela Comissão como em uma ação local, envolvendo um desafio para a validade de uma regra do Direito Comunitário.21 No entanto, fora da União Européia, um grande número de Estados endossou o princípio da precaução como direito nacional22. Em 1993, por exemplo, foi considerado como um princípio constitucional na Lei Colombiana no 99.23 Em um nível legal prático, há uma diferença importante entre um princípio e uma regra. Enquanto aplicar uma regra aparenta ser superficialmente uma ação mecânica, direta e justa (como, por exemplo, a aplicação pelas Cortes de regras de direito penal relacionadas ao furto), um princípio, ao contrário, tem um conteúdo mais aberto e informa como as regras serão aplicadas.24 A simples incorporação do princípio da precaução no direito nacional – ou ainda sua incorporação como um princípio para políticas, como no Reino Unido, com a publicação do relatório de políticas Our Common Inheritance25, pelo Governo em 1990 – não quer dizer que o princípio terá grande influência sobre outras normas conflituosas e mais precisas. Todavia, a partir do momento em que o princípio é formulado como um direito, os tribunais se sentem mais confortáveis em aplicá-lo. Certamente, na tradição do direito continental, os tribunais estão mais acostumados ao desenvolvimento e à aplicação de tais direitos de grande alcance. Kiss cita a importante decisão do Minors Oposa vs 21 L. Hancher, op. cit.,1995, p. 202-203. Por exemplo, o Australian Protection of the Environment Administration Act, 1991, e os casos citados baixo. 23 Ver Manuel Rodriguez Becerra. La Politica Ambiental del Fin de Siglo, Cerec: Bogota, 1994, p. 63-64. 24 A falta de definição não é um obstáculo insuperável para a emergência de um princípio legal. Por exemplo, trinta anos após a Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre autodeterminação (Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples, UN Gen. Ass Res. 1514 (XV), 14 de dezembro de 1960. G.A.O.R. 15th Sess., Suppl 16, p. 66.), os juristas internacionais e os juízes da Corte Internacional de Justiça continuam debatendo seu conteúdo e definição exatos. Poucos, todavia, duvidaram que a autodeterminação era um princípio de direito internacional. 25 Our Common Inheritance: Britain's Environmental Strategy, HMSO, 1990, Cm. 1200. No Reino Unido, os White Papers (Livros Brancos) são elaborados como posições para futuras políticas governamentais. 22 Secretary of the Department of Environment and Natural Resources26, na qual um tribunal nas Filipinas levantou o princípio dos direitos das gerações futuras. Como Cameron e Abouchar salientam, decisões importantes também foram tomadas sobre o direito a um meio ambiente sadio por uma gama de cortes nacionais, incluindo Colômbia27, Costa Rica28, Argentina29, Chile30, Equador31, Peru32, Índia33 e Paquistão34. Processos também foram iniciados sobre direitos humanos, em níveis local e global, e Kamminga mostra claramente a importante contribuição fornecida pelos direitos humanos ao desenvolvimento de princípios jurídicos ambientais, incluindo o da precaução, assim como as lições que os casos de direitos humanos podem fornecer ao “errar para o lado da cautela”, quando lidam com a incerteza.35 Nos países do common law a situação é muito diferente. Os legisladores, particularmente na tradição inglesa, tradicionalmente procuraram evitar interpretações amplas do princípio, e é digno de nota que as Cortes inglesas ainda têm dificuldade em aplicar princípios, particularmente para se sobreporem a regras claras. Na Inglaterra, por exemplo, requisitou-se à Suprema Corte a aplicação do princípio da precaução para o embargo da construção de um cabo de energia suspenso em uma área residencial, em 26 G.R. No 101083 ,30 de julho de 1993, reproduzido em, 1994, International Legal Materials 33, 168. Note-se que um número de tribunais nacionais na América Latina e em outros lugares reconheceram direitos ambientais executáveis. Ver Cameron e Abouchar, op. cit., e também J. Cameron, P. Pevato e J. Abouchar. Sustainability - Principle to Practice, Background Paper on the International Implementation of Principles for the Fenner Conference on the Environment, Canberra, 13 a 16 de novembro de 1994. 27 Fundepublico v Mayor of Bugalagradne e outros, Corte Constitucional, Expediente T-1O1, junho de 1992, Cameron et al., ibid. 28 Sala Constitutional de la Corte Suprema, Voto. No. 3705, 30 de julho de 1993, ibid. 29 Bustos Miguel y otros y Dirección de Fabricas Militares, S/Acción de Amparo o Juzgado Federal de Primera Instancia No 2, La Plata, 30 de dezembro de 1986. 30 Juan Pablo Orrego Siva et al. y Empresa Electrica Pangue S. A., 29 de setembro de 1992. 31 Arco Iris y Instituto Ecuatoriano de Minaria Ministerio de Agricultura y Ganaderia, Tribunal de Garantias Constitucionales Caso No 224/90, Resolución No.054-93-CP. 32 Sociedad Peruana de Derecho Ambiental y Direción Regional del Ministerio de Pesqueria Unidad Agraria Departmental de Tumbes del Ministerio de Agricultura y Concejos Provinciales de Zarumilla y Tumbes, Corte Suprema de Justicia, expediente No. 1058-92, Dictamen Fiscal No 1476-92, 17 de fevereiro de 1993. 33 Rural Litigation and Entitlement Kendra and Others v State of Uttar Pradesh and Others, Supreme Court Journal 337, 1987, ; M. C. Mehta v Union of India and Others, 1988, All India Reports 1037 (SC); Subhash Kumar v State of Bihar, citado em Human Rights and the Environment: Second Progress Report (by Mrs Fatma Zohra Ksentini: Special Rapporteur) UN Doc.E/CN/Sub.2/l993/7, 26 de julho de 1993, p. 18. 34 Cameron et al, op. cit., nota 26, p. 70. 35 M.T. Kamminga. “The precautionary approach in international human rights law: how it can benefit the environment”. In Freestone, David and Ellen Hey. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995, p. 184. virtude do risco (ainda não comprovado) que tais cabos causariam câncer, nas crianças. Apesar de a Corte ter reconhecido que o Tratado de Maastricht continha o princípio da precaução e que o direito da União Européia era vinculante para o Reino Unido e superior ao direito inglês, não se sentiu capaz de utilizar o princípio para impedir uma atividade outrora legal.36 Isso contrasta nitidamente com a decisão de uma Corte na Austrália, na qual o princípio da precaução foi utilizado para recusar a aprovação do projeto de uma estrada que teria destruído o habitat de espécies ameaçadas e poderia contribuir para sua extinção.37 Isto não significa, é claro, que os tribunais nacionais não estão acostumados com o tema da incerteza científica. Conforme Shelton38 demonstra, quanto à prática, nos Estados Unidos, tanto os agentes públicos como os tribunais têm feito avaliações de risco em face da incerteza científica: o agente público, com o objetivo de equilibrar o benefício público contra o risco (ainda que remoto) de dano privado, e os tribunais “de forma a determinar quem deveria arcar com o custo do dano causado”.39 Estas práticas demonstram que não é incomum aplicar a abordagem precautória ainda que o termo “precaução” possa não ter sido utilizado.40 Muito tempo antes de ser sacramentada em princípio ambiental, a precaução já era importante. Como Freestone observou em outra ocasião, quanto mais alguém analisa o conceito de precaução, mais nota - como Monsieur Jourdain, o mercador da peça Le Bourgeois Gentilhomme, de Molière, que descobriu que, por mais de quarenta anos, ele utilizou a prosa sem sabê-lo41 - que a precaução esteve presente por muitos anos, como 36 R v Sec of State for Trade and Industry, ex parte Duddridge and others, 9 de outubro de 1994. Leach v National Parks and Wildlife Service [1994] 81 LGERA 270 (NSW). Em uma decisão mais recente, entretanto, outro tribunal australiano levantou dúvidas sobre esta decisão, Nicholls v Director General, National Parks and Wildlife Service, the Forestry Commission of New South Wales and the Minister for Planning, decisão de 29 de setembro de 1994 Land and Environment Court of New South Wales (NSW). Nós somos gratos ao Dr Ronnie Harding, da University of NSW, por trazer este caso para nossa apreciação. 38 Shelton? 39 L. Hancher, op. cit., 1995, p. 213. 40 Notar que a importante exceção, à qual Shelton se refere, de um clássico julgamento do Juiz Learned Hand que, em 1847, se referiu ao “ao ônus de precauções adequadas”. US v Carroll Towing C, 159 F. 2d 173,173, ibid. 41 “Par ma foi! II y a plus de quarante ans que je dis de la prose sans que j'en susse rien” Le Bourgeois Gentilhomme, Ato II, cena IV. Citado em Freestone, op. cit., n. 1, p. 215. 37 parte da gestão ambiental informal e do comportamento humano.42 De fato, isto pode ser facilmente relacionado a um número de conceitos e obrigações legais existentes. Em seu comentário quanto ao código proposto sobre “princípios legais para a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável”, o Grupo de Especialistas em Direito Ambiental da Comissão Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (o Grupo de Especialistas da WCED) sugere, em relação a uma obrigação geral para prevenir e combater a interferência ambiental transfronteiriça, que a obrigação (...) existe apenas na medida em que é razoavelmente observável que o dano substancial [itálicos originais] é causado, ou que há risco significativo [ênfase adicionada] que tal dano será causado (...) à natureza e o alcance das medidas a serem tomadas, é claro, dependem da natureza e do grau do dano extraterritorial que deve ser prevenido ou reduzido.”43 O Grupo de Especialistas da WCED concluiu que o direito internacional existente exige atenção, precaução e empenho, indo além da simples prevenção onde há um “risco significativo” de dano extraterritorial. Quanto maior o dano potencial, mais rigorosas devem ser as exigências de alerta, precaução e empenho. De forma similar, a exigência de previsão ou de avaliação se o risco é ou não significativo não é uma obrigação passiva. A investigação da probabilidade do dano, de forma justa e diligente, deve ser uma exigência objetiva imposta ao Estado. Isto deve incluir investigação dentro do contexto do princípio de desenvolvimento sustentável, dos possíveis impactos ambientais, da notificação prévia aos Estados envolvidos sobre as atividades planejadas e da troca de informação ambiental.44 42 Kaminga comenta também que isto aconteceu durante anos, “muito embora os ambientalistas acreditem que foram eles que inventaram o princípio da precaução”. op. cit., 1995, p. 184. 43 Relatório do Grupo de Especialistas de Direito Ambiental da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Experts Group on Environmental Law of the World Commission on Environment and Development, WCED), publicado como MUNRO, R. D. e LAMMERS, J. G. (ed.). Environmental Protection and Sustainable Development: Legal Principles and Recommendation. London e Boston: Martinus Nijhoff, 1987. p. 80. 44 Estas obrigações e outras estão dispostas nos Artigos 15-17 dos princípios desenvolvidos pelo Grupo de Especialistas da WCED, ibid. Também não deve ser nenhuma novidade a descoberta que já existem diversas regras e procedimentos, tanto em nível nacional quanto internacional, que podem contribuir para a implementação do princípio da precaução. Podem-se distinguir instrumentos que se referem especificamente ao princípio e outros que simplesmente reconhecem seu conteúdo.45 De forma similar, em nível procedimental, pode-se distinguir entre o que Cameron e Abouchar chamaram de medidas precautórias “diretas”, que impõem padrões precautórios de jure, e medidas “indiretas” que “criam um ambiente de incentivos e desincentivos que tenderão a gerar adesão comportamental ao princípio da precaução.”46 Um exemplo do primeiro pode ser a decisão sobre Estados Costeiros do Mar do Norte em 1990, na Conferência de Haia, para reduzir em 50% os insumos das substâncias perigosas (isto é, aquelas que são “persistentes, tóxicas ou passíveis de bioacumulação”).47 Também cobririam quaisquer restrições sobre certas atividades ou produtos, tais como aqueles proibidos pelo Protocolo de Montréal ou pela ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Um exemplo de precaução indireta pode ser a exigência do estudo de impacto ambiental ou certos tipos de processos de tomada de decisão que encorajariam abordagens precautórias, a serem discutidas mais adiante. Os dois autores estiveram envolvidos na preparação de relatórios para organizações internacionais, explorando as implicações da adoção do princípio da precaução.48 Certos temas comuns emergiram de suas considerações, como as formas pelas quais o princípio poderia ser implementado, no contexto de uma organização internacional ou em nível setorial ou regional. Em seu relatório para o Secretariado da 45 Ver a discussão das ações “operacionais” precautórias de facto in L. Gündling. “The Status in International Law of the Principle of Precautionary Action”. In David Freestone e Ton Ijlstra (eds.), The North Sea: Perspectives on Regional Environmental Co-operation, 1990, p. 23-30 e Freestone op. cit. n. 9, p. 33. 46 op. cit., 1995, p. 50-51. 47 Ver a Declaração da Haia, parágrafos 1 e 2, reproduzida em Freestone e Ijlstra, op. cit. n. 6, p. 3. 48 Ellen Hey foi a consultora que preparou o relatório para a Convenção de Londres (Despejo): The Application of the Precautionary Approach to Environmental Protection within the Framework of the Convention: Dealing with Uncertainty,10 de outubro de 1991, Doc. LDC 14/INF.9, 1991. David Freestone (com a assistência de Kristina Gjerde) forneceu um papel similar para o UNEP Caribbean Environment Programme: The Relevance and Application of the Principle of Precautionary Action to the Caribbean Environment Programme, UNEP (OCA)/CAR WG.IO/INF.4, 9 de novembro de 1992. Ver também Freestone. The Burden of Proof for Conservation in High Seas Fisheries, paper para o escritório jurídico da UN FAO, 1992 e Hey. “The Precautionary Principle: where does it come from and where does it lead in case of Radioactive Releases to the Environment?”, IAEA Symposium on the EnvironmentalImpact of Radioactive Releases, Viena, 8 a 12 de maio de 1995. Convenção de Londres, Hey iniciou, buscando identificar um número de elementos comuns que podem ser encontrados virtualmente em quase todos os instrumentos que endossam o princípio da precaução. Esses fatores, que tem sido utilizados por outros,49 foram a vulnerabilidade do meio ambiente, as limitações da ciência em predizer de forma precisa ameaças ao meio ambiente e as medidas necessárias para prevenir tais ameaças, a disponibilidade de alternativas práticas (ambos métodos de produção e produtos) que tornam possível o extermínio ou minimização dos impactos negativos no meio ambiente; a necessidade de considerações econômico-holísticas de longo prazo, que internalizam, entre outras coisas, o custo real da degradação ambiental e os custos de tratamento do lixo. Resumindo, quando esses fatores foram agrupados pareceu que a abordagem precautória poderia ser caracterizada pela suposição de que a ciência nem sempre fornece a a informação necessária para proteger o meio ambiente de forma efetiva e efeitos indesejáveis podem ser causados se medidas forem tomadas apenas quando a ciência propicia tais informações. Ressalte-se a necessidade de alternativas práticas para pesquisas complexas e procedimentos de monitoramento que nem sempre captam os sinais da degradação ambiental, em virtude da dificuldade técnica e do custo de monitorar mais do que um número limitado de parâmetros. Além disto, constatou-se que os custos das medidas de reconstituição do meio ambiente podem ser proibitivos, ou que os serviços biológicos essenciais de suporte à vida podem ser insubstituíveis se a ação para proteger o meio ambiente é desencadeada apenas quando a certeza científica está disponível. Deve-se argumentar ainda que os métodos de cálculo econômico não reconhecem adequadamente os verdadeiros custos de exaurimento dos recursos, freqüentemente subestimando os custos ambientais futuros da substituição dos sistemas naturais danificados pelos sistemas artificiais criados pelo homem e enfatizando por demais os custos econômicos das medidas de recuperação, a curto prazo. Revisando os instrumentos internacionais para determinar como tal abordagem poderia ser percebida a partir das evidências nacionais, ficou claro, como os autores neste 49 Ver UNEP(OCA)/CAR WG.lO/INF.4, 9 de novembro de 1992. Ver também Bob Earl (ed.), The Precautionary Principle: Putting it into Practice, 1993. livro amplamente demonstraram, que a implementação desta abordagem envolve um número de escolhas políticas: mais importante, a escolha do nível de perigo ao meio ambiente, antes que as medidas precautórias sejam levadas a cabo. As diferentes abordagens assumidas para esta questão crucial estão refletidas nas várias formulações adotadas pelos diferentes instrumentos: os Estados “não devem esperar por provas de efeitos danosos”,50 eles devem tomar “ação (...) mesmo antes que um nexo causal seja estabelecido por evidência científica clara e absoluta”;51 ou “quando há razão para assumir que certos danos ou efeitos danosos (...) podem ser causados (...) mesmo quando não haja evidência científica para provar um nexo causal (...)”;52 eles devem “evitar efeitos potencialmente danosos (...) mesmo quando não há evidência científica para provar um nexo causal”;53 e estão comprometidos em “eliminar e prevenir emissões onde não há razão para acreditar que o dano ou efeitos danosos são prováveis, mesmo quando há evidência científica inconclusiva ou inadequada para provar o nexo causal”54 e “prevenir o lançamento no meio ambiente de substâncias que podem causar dano aos humanos ou ao meio ambiente, sem esperar provas científicas a respeito de tal dano”.55 2. O Desenvolvimento dos Procedimentos e Técnicas Precautórias A implementação material pode, portanto, ser abordada nos níveis institucional e procedimental. Em nível procedimental, a idéia-chave será a inversão do tradicional ônus da prova. Se o conceito de sustentação é que a falta de certeza científica não deve ser utilizada como razão para o adiamento de medidas para prevenir o dano ao meio ambiente, então, as abordagens tradicionais, que presumem um nível aceitável de atividades potencialmente danosas até que o dano seja de fato demonstrado, requerem reavaliação e mudança. Desta forma, o desenvolvimento do pensamento precautório, em relação ao direito internacional da pesca, pode ser utilizado. Ainda que específico, fornece um exemplo 50 Declaração de Bremen de 1984 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em Freestone e Ijlstra, op.cit. n.6, p. 61. 51 Declaração de Londres de 1987 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em ibid, p. 40. 52 Para XVI. 1, Parcom Recommendation 89/1, reimpressa em ibid, p. 119. 53 Declaração de Haia de 1990 sobre a Proteção do Mar do Norte, reimpressa em ibid, p. 3. (Nota 47) 54 Declaração de Copenhague de 1989, da Conferência Parlamentar, citada em Freestone, op. cit., n. 9, p. 27. 55 A Convenção de Bamako sobre a Proibição da Importação para a África e o Controle do Movimento Transfronteriço e Gerenciamento de Materiais Perigosos na África, de 29 de janeiro de 1991, 1991, International Legal Materials 773. interessante da forma pela qual a abordagem precautória, originalmente desenvolvida no contexto do controle da poluição antropogênica, pode ser estendida para uma área totalmente diferente, a de exploração de recursos vivos. Pode-se afirmar também que, como princípio, ele é passível de aplicação em todos os temas ambientais. O princípio da precaução foi inicialmente introduzido no setor de pesca em relação ao debate sobre a alegada não seletividade das técnicas de pesca, como a pesca de arrasto. A imposição de uma moratória na pesca de arrasto em alto-mar foi discutida em outro capítulo, neste livro56. Convém lembrar que a resolução 44/225 da ONU, intitulada “Pesca pelágica de arrasto de larga escala e seu impacto nos recursos marinhos vivos dos oceanos e mares do mundo”57, convoca a “todos aqueles envolvidos na pesca pelágica de arrasto de larga escala para cooperarem no aumento da coleta e compartilhamento de dados científicos estatisticamente concretos (...) ” e recomenda uma série de medidas para eliminar a prática, incluindo uma moratória sobre toda pesca de arrasto de larga escala, nos altos oceanos, até junho de 1992. Foi, entretanto, acordado que a moratória: (...) não irá ser imposta a uma região ou, se implementada, pode ser retirada; medidas de gestão e conservação efetiva devem ser tomadas com base em análises estatisticamente concretas .. .para prevenir o impacto inaceitável de tais práticas de pesca naquela região e para assegurar a conservação dos recursos marinhos vivos, na região.58 Esta medida é precautória em dois sentidos: em primeiro lugar, porque propõe uma ação para abordar uma ameaça grave ao meio ambiente, enquanto há alguma incerteza científica relacionada ao impacto da pesca de arrasto e, por último, porque ela inverte o ônus da prova para aqueles que continuam a prática para demonstrar, utilizando “análise estatística concreta”, que medidas foram tomadas “para prevenir o impacto inaceitável” da pesca de arrasto e para “assegurar a conservação dos recursos marinhos vivos”. Esta medida tem sido fortemente criticada como sendo uma das piores aplicações 56 Ver capítulo de David Freestone, neste livro. Reimpressa em The Regulation of Drift Net Fishing on the High Seas: Legal Issues, FAO Legislative Study, n 47, Rome 1991, Anexo 2. Note-se que o cronograma para a moratória foi revisado pela AGNU Res. 46/215, 20 de dezembro de 1991. 58 Ver, por exemplo, os argumentos citados pelo Professor Kazuo Sumi. “International legal issues concerning the use of drift nets with special emphasis on Japanese practices and responses”. In FAO Legislative Study No. 47, ibid. 57 da abordagem absolutista do princípio da precaução.59 Há naturalmente elementos altamente subjetivos nos conceitos de “impactos inaceitáveis” e de “análise concreta”; entretanto, como nossa discussão prévia já alertou, os temas de avaliação e risco e de juízo de valor são dificuldades intrínsecas na implementação da abordagem precautória. Muitos dos problemas do desenvolvimento de tal abordagem no contexto global se cristalizam em torno da dificuldade de alcançar consenso, nesses mesmos temas. O exemplo da pesca de arrasto representa um fato interessante, porque é exemplo de uma aplicação da precaução fora do tema poluição. É tão interessante quanto alguns cuidados para a transferência da abordagem precautória em bloco para um novo setor. Ficou claro que muitos dos instrumentos existentes podem ser repensados ou reinterpretados à luz de tal abordagem. Para analisar o exemplo da pesca de arrasto é possível utilizar alguns dos argumentos relacionados a outras áreas muito próximas da questão em causa, especificamente o da utilização do princípio da precaução, no campo geral da conservação e manejo de peixes e, particularmente, sua aplicação para a captura de peixes em alto-mar. Os artigos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), de 1982, impõem uma obrigação primária de conservação para um Estado pescar em altomar60 e a UNCLOS propõe que, quando “determinado o limite permissível e estabelecidas outras medidas de conservação para os recursos vivos do alto mar”61, tal Estado dever agir “de acordo com a melhor evidência científica disponível”. Enquanto uma interpretação tradicional de tal frase poderia sugerir que, na ausência de prova de que há um “excesso de pesca”, a pesca deve continuar, em contraste com uma interpretação precautória derivada da obrigação principal de conservação, exige-se que a evidência científica deve estar disponível para que os estoques atuais de peixe possam sustentar a continuidade da pesca, antes que se continue pescando. Portanto, o tema 59 Ver W.M. Burke. “Unregulated High Sea Fishing and Ocean Governance”; James Carr e Matthew Gianni. “High Sea Fisheries, Large Scale Driftnets and the Law of the Sea” ambos na obra de Jon Van Dyke, Durwood Zaelke e G. Hewison (eds.). Freedom for the Seas in the 21st Century: Ocean Governance and Environmental Harmony, 1993, ; e Kazua Sumi, ibid. Ver também G. Hewison. “The Precautionary Approach to Fisheries Management: an Environmental Perspective”, 1996, 11 IJMCL (em lançamento); S. M. Garcia. “The Precautionary Principle: its Implications in Capture Fisheries Management”, Ocean and Coastal Management. 1994, n.22, p. 99-125, p. 108. 60 Artigo 116, UNCLOS. 61 Artigo 119, UNCLOS. central seria que, na ausência de evidência científica convincente (isto é, utilizar a melhor evidência científica disponível – mesmo se ela continuar não convincente)62, medidas devem ser definidas para assegurar exploração contínua ou assegurar a conservação. Deve o ônus da prova ser a favor da exploração ou da conservação? Deve o requisito de evidência científica atuar em favor da conservação, ao invés de, como possivelmente ocorreria no passado, ir contra ela. Uma abordagem similar, talvez para as exigências modernas de Melhor Tecnologia Disponível (MTD), é encontrada em muitas legislações nacionais sobre poluição, em vigor. Na pesca, assim como em áreas de monitoramento ambiental, os cientistas trabalham com base em probabilidades. Portanto, em casos de incerteza científica, se a obrigação primária é a conservação e manutenção dos estoques, a exigência de utilizar a melhor evidência científica disponível parece ser uma regra em vez de um padrão de prova. Assim como a palavra “melhor” não pode realisticamente ser usada para significar que a evidência para uma visão ou outra é intrinsicamente melhor, então também parece difícil sugerir que a palavra “científica” seja usada de uma forma partidária. Deve ser correto dizer que a palavra “científica” significa a coleta de dados de acordo com um critério rigoroso – o que daria a ela um “padrão mínimo” requerido. “Disponibilidade”, entretanto, continua um conceito essencialmente pragmático. Como conseqüência, se a evidência adequada não está simplesmente disponível, as obrigações gerais da Convenção ainda permanecem e a obrigação primária é aquela da conservação. Em tal situação, portanto, o pensamento precautório utiliza os procedimentos existentes. Mas será provavelmente necessário que novas técnicas e procedimentos sejam desenvolvidos. Alguns já podem ser identificados. A Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártida (CCRMVA), que coordena as pesquisas sobre esses recursos e adota medidas de conservação e gestão,63 tem desenvolvido limites precautórios para as populações de peixe, dentro de sua jurisdição, para garantir que o aumento da pesca não danifique a cadeia alimentar. Em 1991, por exemplo, a Comissão 62 Ver Garcia, op. cit. n. 59, p. 106. Ver também R.R. Churchill. EEC fisheries law Dordrecht; Lancaster: Nijhoff, 1987, p. 188. Seus poderes incluem o estabelecimento das quantidades a serem produzidas, designação das espécies protegidas e estações de defeso, assim como a regulação de equipamentos. 63 estabeleceu uma limitação da pesca de Euphasia superba64; um grupo de trabalho e um comitê científico foram estabelecidos para desenvolver “medidas precautórias para a pesca do Krill”, de forma a prevenir a “expansão desregulada da pesca em um momento em que a informação disponível para prever o potencial dano [era] muito limitada.”65 Outro exemplo é a abordagem adotada em 1994 pela Convenção sobre Conservação e Gerenciamento de Recursos de Euphasia superba, no Mar Central de Bering.66 Este tratado foi concluído para tratar da superexploração de Euphasia superba aleutiano, no enclave da região central do Mar de Bering (conhecido como o donut hole). No início dos anos 90, a pesca desregulada nesses enclaves causou um colapso da pesca de Euphasia superba.67 Esta Convenção altamente inovadora dispõe que os Estados signatários se encontrarão anualmente para decidir os níveis permissíveis de produção e para estabelecer as quotas de pesca. Endossa uma abordagem precautória de facto para a conservação das populações de peixe, segundo a qual nenhuma pesca irá ser permitida ao menos que a biomassa da Bacia Aleutiana esteja apta a exceder os 1,67 milhões de toneladas métricas.68 Esta determinação deve ser feita pelas partes em conjunto ou, 64 CCAMLR Conservation Measure 32/X on Precautionary Catch Limitations on Euphasia superba in Statistical Area 48. 65 Relatório do Grupo de Trabalho, parágrafo. 6.34. O ímpeto para este trabalho foi a declaração no Nono Encontro da Comissão pela URSS, Japão e Coréia que eles não eram, a princípio, opostos à idéia de um limite precautório de pesca de krill, mas que “the quantitative basis for such a precautionary limit on fishing should have scientific justification based on assessments performed by the Scientific Committee” (CCAMLR-lX, para. 8.7). 66 Reproduzido em, IJMCL, 1995, n.10, p. 127, como um apêndice para William V. Dunlap. “The Donut Hole Agreement”, ibid., p. 114-126. Ele foi assinado em Washington DC em 16 de junho de 1994, pela China, Coréia, Federação Russa, Estados Unidos. Japão (em 4 de agosto) e Polônia (em 25 de agosto) assinaram depois. O acordo entrará em vigor 30 dias depois que ambos os estados costeiros e dois estados pesqueiros distantes o ratificarem (Art XVI(2). 67 Em 1989, foi relatado que 1.447.614 toneladas foram pescadas no donut hole; em 1990, 917.371 e em 1991 apenas 293.399. Os Estados costeiros: os Estados Unidos e (o que é agora) a Federação Russa foram capazes de utilizar esta evidência para estabelecer uma série de Conferências sobre Conservação e Gerenciamento dos Recursos Marinhos Vivos do Mar Central de Bering, no qual ambos os Estados costeiros participaram, assim como o Japão, Coréia do Sul, a República Popular da China e a Polônia. Cinco edições da Conferência ocorreram entre fevereiro de 1991 e agosto de 1992, na época em que o colapso da pesca de Euphasia superba era aparente. No encontro de agosto de 1992, a Conferência concordou em uma moratória na pesca de Euphasia superba na Bacia Aleutiana em regiões centrais do Mar de Bering, para 1993 e 1994. Ver mais detalhes em David Freestone. “The Effective Conservation and Management of High Seas Living Resources: Towards a New Regime?”, Canterbury Law Review, 1994, n.5, p. 341-362. 68 Ver Alex G. Oude Elferink. Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: Towards a Special Legal Regime. London: Martinus Nijhoff: 1994; Gerald H. Blake, William J. Hildesley, Martin A. Pratt, Rebecca J. Ridley e Clive H. Schofield (eds.). The Peaceful Management of Transboundary Resources, Haya: Kluwer Law International, 1995, p. 467. Ver anexo para a Convenção de 1994, reimpresso como um apêndice em Dunlap. op. cit., n. 66, p. 134. quando não for possível, pelos EUA e Federação Russa conjuntamente, ou quando ainda não for possível, pelos EUA unilateralmente. Os EUA e a Federação Russa aparentemente concordaram (como mostra uma gravação da discussão, analisada em conjunto com o anteprojeto da Convenção)69 que se a biomassa não atingisse a meta de 1,67 milhões de toneladas, eles também suspenderiam a pesca em suas próprias Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) de 200 milhas e iriam levar em consideração o nível de pesca no enclave, para estabelecer suas quotas anuais de pesca em suas ZEEs. Um exemplo final é retirado das negociações da Conferência das Nações Unidas de sobre Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, realizada em resposta a uma demanda do Capítulo 17 da Agenda 21 da Convenção das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (1992) que, em termos gerais, pediu “novas abordagens para a gestão e desenvolvimento de áreas marinhas e costeiras (...) abordagens que fossem integradas em conteúdo e que fossem precautórias e antecipatórias em natureza.”70 Em 1994, o Secretário-Geral preparou um acordo preliminar,71 revisto em 1995,72 que endossa a abordagem precautória (no Artigo 6) para o gerenciamento de tais estoques e fornece como Apêndice orientações para o estabelecimento de pontos de referência precautória para conservação e gerenciamento de tais estoques.73 O acordo dispõe que os Estados levem em consideração “a melhor informação científica disponível”, que sejam cautelosos quando a informação for pobre e que não utilizem a falta de uma adequada informação científica como razão para o adiamento ou a não adoção de medidas de conservação e gestão. Dispõe também sobre a melhoria no processo de tomada de decisão, a coleta e disseminação da melhor 69 Dunlap, op. cit., n. 66. Parágrafo 17.3 da Agenda 21. Reimpresso em Stanley P. Johnson. The Earth Summit : the United Nations Conference on Environment and Development (UNCED). London : Graham & Trotman/Nijhoff, 1993, p. 307. Parágrafos 17.44-69, especialmente 17.50, relembra a Conferência das Nações Unidas de sobre Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios. A Conferência foi autorizada pela Resolução 47/192, da Assembléia Geral das Nações Unidas. 71 Acordo preliminar para a Implementação das Provisões da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982, relacionada à Conservação e Gerenciamento de Estoques de Peixe Tranzonais e Populações de Peixes Altamente Migratórios (Draft Agreement on Straddling and Highly Migratory Fish Stocks). (preparado pelo Presidente da Conferência) A/CONF.164/22, 23 de agosto de 1994. 72 Ver A/Conf/164/22/Rev.l, 11 de abril de 1995. 73 O Anexo 2 visa a dois tipos de pontos de referência precautória: pontos de referência e gestão para a conservação ou limite, pontos de referência relativos a objetivos. Os primeiros pontos determinam limites em função das populações para manter a produção dentro de limites biológicos seguros, onde se almeja que os pontos-alvo de referência atinjam os objetivos de administração. Ver também Justin Cooke and Michael Earle. “Towards a Precautionary Approach to Fisheries Management”, RECEIL, 1993, n. 2 p. 252-259. 70 informação científica e o desenvolvimento de técnicas melhoradas para lidar com o risco e a incerteza, o estabelecimento de pontos precautórios de referência em função de cada população de peixes, a consideração do impacto da pesca nos ecossistemas e as espécies ecologicamente relacionadas. Em relação à pesca nova ou exploratória, medidas conservacionistas relacionadas à coleta e limites de esforços serão estabelecidas o quanto antes e continuarão em vigor até que haja dados suficientes para permitir a avaliação, fundamentada na sustentabilidade das populações de peixes, a longo prazo. Este exemplo do “transbordamento” da abordagem precautória para novos setores de gestão da pesca demonstra de forma clara a idéia levantada anteriormente, de que o conceito precautório está tão relacionado à forma de pensar quanto à forma de agir. Alguns dos procedimentos examinados implementam mudanças no ônus da prova, mas também visam a um papel mais pró-ativo para a informação científica, assim como mudanças nos processos de tomada de decisão. A implementação em nível procedimental envolverá essas modificações técnicas, mas também podem estar representadas em desenvolvimentos procedimentais mais gerais. Um exemplo óbvio é que os juristas ambientais internacionais freqüentemente argumentaram que as decisões técnicas deveriam ser tomadas por voto majoritário em vez de consenso.74 Isto evitaria o que foi chamado de “regra do retardatário”, no sentido de que um regime convencional tem que se desenvolver no ritmo da parte mais relutante. Muitos regimes ambientais já refletem esta abordagem75, apesar de ter havido um movimento geral em nível procedimental, no sentido de adotarem procedimentos consensuais, mesmo quando não estritamente requeridos. É notório que o Protocolo de Montreal, de 1987, sobre Substâncias que Exaurem a Camada de Ozônio – amplamente considerado como um dos regimes ambientais mais dinâmicos e inovadores e cuja postura precautória sobre o exaurimento do ozônio foi mais que justificada – prevê que, se não se conseguir chegar a um consenso, a decisão sobre a emissão de substâncias que exaurem o ozônio será decidida 74 Peter H. Sand. Lessons Learned in Global Environmental Governance. Washington: World Ressources Institute, 1990; Ellen Hey. “The Precautionary Concept in Environmental Law and Policy: Institutionalizing Caution”, Georgetown International Environmental Law Review, 1992, n.4, p. 303-318, 312-314. 75 Por exemplo, o procedimento da Emenda Anexa da UNEP Regional Sea Conventions, geralmente visando ao voto da maioria. Ver, por exemplo, como no Artigo 19 da Convenção de Cartagena. por dois terços dos Estados-partes.76 Uma estrutura institucional que reflita uma abordagem precautória deve ser desenhada para permitir um papel privilegiado para a informação científica, talvez por meio da criação de um comitê científico e de um conselho ou algo similar. Para assegurar, por exemplo, que decisões de gestão sejam tomadas com base na melhor informação científica disponível em vez de critérios políticos, as decisões originadas de recomendações científicas podem exigir uma maioria menos qualificada que aquela proposta pelos próprios Estados.77 Outros procedimentos, que talvez distorçam o sistema de tomada de decisão em favor da conservação quando a informação científica é incerta, podem ser precautórios. O exemplo do Procedimento de Justificação Prévia, dentro da Convenção de Oslo, já foi citado: tais procedimentos invertem o ônus da prova tradicional em casos de poluição ambiental, para que o ônus seja sobre aquele que propõe uma atividade possivelmente danosa, que deve demonstrar que nenhum dano será causado. A incerteza científica, portanto, trabalha a favor e não contra o meio ambiente. Um resultado similar também pode ser obtido de outras formas, como, por exemplo, o uso da “lista reversa”. Na abordagem tradicional, as atividades proibidas são listadas; uma lista reversa, por sua vez, dispõe que as atividades permitidas sejam listadas, e todas as outras atividades sejam proibidas. O procedimento pode ser utilizado para regulação de despejo de lixo, isto é, somente podem ser despejados detritos, no meio ambiente, se eles estiverem listados; todos os outros estão proibidos. Cameron e Abouchar relatam que, na Resolução das partes da Convenção CITES, a listagem precautória é explicitamente reconhecida,78 mas a proteção somente pode ser reduzida às espécies listadas se a parte que requer a mudança puder justificar à Conferência das Partes que as espécies não serão comercializadas ou colocadas em risco com a mudança.79 76 Artigo 2 (9). Reproduzido em Churchill e Freestone, op. cit. n. 14. p. 224. Por analogia, no Tratado da CE, as propostas da Comissão que têm o papel de promover a integração entre os Estados-Membros gozam do benefício de uma maioria menor do que as propostas feitas por membros do próprio Conselho, na estrutura de votos de maioria ponderada do Conselho da União. Ver Artigo 149 do Tratado da Comunidade Européia. 78 Cameron e Abouchar, op. cit., 1995, p. 59-50. Notar também que sobre o “Berne Criteria”, há muito foi permitido listar as espécies semelhantes como medidas precautórias “if some of their species are threatened and identification of individual species within the genus is difficult”. Simon Lyster. International wildlife law : an analysis of international treaties concerned with the conservation of wildlife. Cambridge : Grotius, 1985, p. 384-406. 79 Cameron e Abouchar, op. cit., 1995, p. 59-50. 77 Considerações similares se aplicam a procedimentos, tais como as auditorias para a prevenção contra resíduos, sob as quais todos os novos pedidos de permissão para despejo de lixo serão negados e as permissões em vigor serão revisadas a menos que o requerente tenha explicitamente abordado a questão da redução dos resíduos. Mais familiar são as exigências impostas pelo órgãos de licença ou planejamento sobre o uso da Melhor Tecnologia Disponível (MTD) ou Melhor Prática Ambiental (MPA), em todos os novos avanços industriais para implementar tecnologias limpas. Em algumas regiões, um qualificador econômico é geralmente adicionado a essas exigências. Melhor Tecnologia Disponível Não Acarretando em Custos Excessivos (a tão falada MTDNACE). Este qualificativo, imposto na União Européia pela Grã-Bretanha, ainda que tente adicionar um caráter de proporcionalidade à exigência em debate, pode ser difícil de ser demonstrado em um litígio, em função da subjetividade da expressão “custos excessivos”, e muitos advogados experientes aconselham as empresas que seria difícil defender sua visão sobre o que é ou não excessivo para utilização da melhor tecnologia disponível em um determinado empreendimento. Em um nível de planejamento mais amplo, O’Riordan desenvolveu o conceito de “espaço ecológico” derivado da precaução: o conceito básico é que, no gerenciamento de recursos ambientais, sempre deverá haver certa margem de manobra. O papel do planejador, portanto, é o de estabelecer padrões mínimos de segurança para que se possa dar “espaço à natureza, não a compelindo para os limites da tolerância ecológica”. Ele reconhece que a mudança das formas de uso da terra ou de outros recursos naturais pode requerer outras medidas, incluindo a possível compensação para aqueles cujos atuais direitos de propriedade permitem a exploração até os (ou além dos) limites ecológicos.80 Para completar este conceito, também cria um outro, que chama de “poder da vítima”. Este conceito reconhece que os empreendedores81 precisam apenas demonstrar que adotaram medidas de salvaguarda razoáveis no delineamento de seus projetos de desenvolvimento. Na verdade, este requisito pode ser satisfeito com um bom estudo de impacto ambiental. Uma abordagem precautória sugere que a vítima potencial dos efeitos prejudiciais de um desenvolvimento deveria ter o direito de levantar questões sobre as 80 81 T. O'Riordan. The Politics ofthe Precautionary Principle, CSERGE Working Paper, 1993. O autor utiliza a expressão developers. [nota dos organizadores]. possibilidades de dano – mesmo se estão relacionadas a incertezas científicas. Poder-se-ia requerer dos empreendeores que os mesmos criassem fundos de compensação como uma garantia para lidar com danos ambientais adversos não previstos e para cobrir o custo potencial da reconstituição. Tal sistema já demonstrou sua eficácia em pequena escala, na Austrália, na grande área coberta pela Autoridade Marinha do Parque da Grande Barreira de Corais (GMPGBC). Os empreendedores que desejam construir instalações tanto na terra quanto na água, no Parque Marinho, devem obter uma permissão. Os portadores de permissão devem contribuir para um seguro de desempenho a fim de cobrir os custos de manutenção das estruturas e instalações, custos de prêmios de seguros, custos de remoção das estruturas do local, que deve ser reconstituído. O seguro, neste caso, é uma garantia de uma instituição financeira aprovada (coberta por seguro) ou simplesmente um depósito em dinheiro. Isto garante que os fundos estarão disponíveis para a limpeza e remoção se os operadores falharem por alguma razão, no cumprimento de suas obrigações (por exemplo, por falência). Eles também garantem os custos dos programas ambientais de monitoramento e do programa do código de práticas ambientais. Podem, além disso, ter autorização de considerar o custo de sobrevida do seguro, após a permissão ter expirado. Os valores das apólices vão de A$1.000 para pequenos locais de mergulho até A$1.000.000 para a construção de um hotel flutuante.82 O que está sendo feito, de fato, é a criação de um procedimento explícito para internalizar os custos ambientais mais amplos do desenvolvimento, para que se estendam aos danos a sistemas ecológicos em vez da simples exploração humana desses sistemas.83 Tal abordagem é também implicitamente precautória na medida em que busca impor um valor ecológico 82 O sistema parece dar certo. Em 1988 a Townsville Entrepreneur construiu uma nova instalação chamada de Ilha da Fantasia – um barco largo de concreto em forma de anel. Era um hotel flutuante grande o bastante para fornecer serviços diários para 600 pessoas, bares, restaurantes e observatórios submarinos bem como uma área central para natação. Ele foi construído para o Brewer Reef; mas, após dez dias, ele foi afundado por fortes ventos e ondas. O GBRMPA requereu remoção de acordo com a permissão. Quando isto não foi feito, o seguro forneceu o financiamento para a companhia seguradora limpar os destroços. J. Craik. Resorting to Tourism: Cultural Policies for Tourist Development in Australia, 1990. Para mais exemplos, ver David Freestone. “International and National Legal Instruments Required to Regulate Land Based Sources of Marine Pollution in the Wider Caribbean and to Facilitate Socio-Economic Assistance to Sustainable Tourism in the Region”, UNEP/ACOPS Conference on Sustainable Tourism in the Wider Caribbean, Cidade do México, abril de 1995. 83 Ver também o exemplo fornecido por J. S. Gray. “Integrating precautionary scientific methods into decision-making”. In Freestone, David e Ellen Hey, The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995. sobre os procedimentos introduzidos no processo decisório para a construção de uma ponte em volta do Great Belt, na Dinamarca. sobre os recursos tradicionalmente considerados como gratuitos. Isto nos traz de volta ao artigo de Nollkaemper – “Quanto mais você valoriza algo, tanto menos você o põe em risco”. Se é dado um valor ecológico aos recursos naturais em lugar de um valor de exploração, simplesmente, então os empreendedores e os exploradores terão que incluir os custos de tais riscos no capital de seu empreendimento. O que nós buscamos demonstrar é que, apesar do princípio da precaução ser novo como imperativo de política ambiental, para nós ele não é um novo conceito humano. Earll coloca isto de forma mais contextual: A ação precautória para evitar eventos perigosos é uma faceta universal facilmente entendida e amplamente praticada do comportamento humano. Nós tomamos todas as precauções em nossa vida diária: checamos nossos espelhos do carro antes de dirigir; usamos preservativos para evitar infecções de HIV; colocamos o cinto de segurança para evitar lesões em acidentes. A precaução toca um acorde comum, se não surgir uma outra forma que facilite o entendimento, é provável que nós continuemos a discutir o princípio da precaução.84 Da mesma forma, ainda que um grande número de novas técnicas e instrumentos tenha exigido e continue a exigir legalmente a implementação das políticas e regras precautórias, já existe um vasto corpo de técnicas que podem ser facilmente adaptadas. Nos sistemas normativos nacionais, o desenvolvimento das regras de direito criminal de responsabilidade estrita e absoluta, desencadeadas para a proteção da saúde e segurança, tem sido facilmente adaptado tanto para a proteção ambiental85 como para a proteção de recursos.86 A legislação nacional altera o ônus da prova por razões similares de políticas 84 R.C. Earll. “Common-sense and the Precautionary Principle - an Environmentalist's Perspective”, 1992, 24 Marine Pollution Bulletin, 1992, n.24, p. 182. 85 O caso principal na Grã-Bretanha é Alphacell v Woodward, [1972] 2 All ER 475, no qual a House of Lords (a mais alta Corte Inglesa de apelação) se posicionou que o réu poderia ser culpado pela ofensa de “causing poisonous, noxious and polluting matter to enter a stream” (contrário ao s. 2(1) Rivers Act (Prevention of Pollution) sem o requerimento normal do mens rea ou da intenção culposa. 86 Um grande número de exemplos são estudados por David Freestone. The Burden of Proof in Natural Resources Legislatian UN FAO Legal Office, 1995. públicas com mais freqüência do que se poderia esperar.87 Dentro dos sistemas de direito privado, deveres legais e padrões relevantes de cuidado podem também ser modificados para considerarem frágeis os ecossistemas, da mesma forma que, no passado, levaram em consideração os indivíduos frágeis.88 Concluindo, o fato de que muitas dessas técnicas e procedimentos são familiares e podem ser adaptados, a abordagem precautória não deve cegar-nos para o fato de que o impacto do princípio da precaução sobre regimes internacionais de regulação tem sido de fundamental importância. Como os capítulos deste livro demonstraram, o princípio nos levou a reexaminar muitos dos diversos conceitos básicos de política de gestão ambiental assim como muitos daqueles do sistema internacional legal. A emergência do princípio da precaução modificou definitivamente a face do direito e da política internacional ambiental. O desafio de implementar o princípio da precaução com a força de sua visão original não pode ser facilmente subestimado. Acreditamos que as consideráveis idéias coletadas nos artigos deste livro contribuíram para nosso entendimento desse processo. Referências Bibliográficas BIRNIE, P. W. e BOYLE, A.E. International Law and the Environment. Oxford: Claredon Press, 1992 BLAKE, Gerald H. et alii (eds). The Peaceful Management of Transboundary Resour-‐ ces. Haya: Kluwer Law International, 1995 87 Ver, por exemplo, Indian Forestry Act de 1927que determina que qualquer procedimento legal no qual se uma questão emerge como a propriedade da produção florestal, é presumido (até que o contrário seja provado) que a produção é propriedade do Governo; o Canadian Fisheries Act de 1979, s. 25 determina que em todos os julgamentos sobre o ato, o ônus da prova recaia sobre a pessoa que compra, obtém ou tem posse sobre o peixe à mostra: onde os peixes foram capturados; por quem eles foram capturados; como eles foram capturados; e de quem eles foram comprados ou obtidos. 88 Notar os tão falados casos egg-shell skull, envolvendo obrigações para queixosos altamente sensitivos na lei inglesa. Nos Estados Unidos, as Cortes estão começando a levar em consideração o dano aos ecossistemas em litígios privados. Veja Commonwealth of Puerto Rico v Zoe Colocotroni, 456 F.Supp 1327, 1978, ; 628 F. 2d 652, 1980. Em primeira instância, a Corte permitiu a alegação de perda de organismos marinhos, bem como o replantio de um mangue atingido por um derramamento de óleo; a alegação foi reduzida no apelo a medidas “razoáveis” de restauração. Para uma discussão mais ampla, ver Birnie e Boyle op. cit., n. 1, p. 205. CAMERON e ABOUCHAR. “The status of the precautionary principle in international law”, In FREESTONE, David e HEY, Ellen. The Precautionary Principle and International Law: The Challenge of Implementation. Boston : Kluwer Law International, 1995 EARLL, R. C. “Common-‐sense and the Precautionary Principle -‐ an Environmentalist's Perspective”, Marine Pollution Bulletin, 1992, n.24 , p. 182-‐186. ELFERINK, Alex G. Oude. Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: Towards a Special Legal Regime. London e Boston: Martinus Nijhoff, 1994 FREESTONE, D. e HEY, E. “Origins and development of the precautionary principle”. 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Introdução O artigo 6 do Acordo para a Implementação das Cláusulas da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982, relacionado com o Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais1 e de Populações de Peixes Altamente Migratórios exige o uso de uma abordagem cautelosa na gestão das populações de peixes tranzonais e de populações de peixes altamente migratórios. O Anexo II determina uma metodologia para a aplicação de tal abordagem de precaução. O significado da introdução da precaução na agenda reguladora da pesca global não deve ser subestimado. Como sugerimos em outro artigo, esta característica, juntamente com outras do Acordo, pode ser compreendida como a primeira introdução de uma dimensão verdadeiramente ambiental, na lei internacional da pesca2. O final do século XX, especialmente a última década, foi extremamente turbulento para a gestão da pesca e, conseqüentemente, para os regimes legais que procuram regular a pesca3. Em 1994, a Organização das Nações Unidas para a * David Freestone é professor de direito internacional e diretor da Unidade de Direito Internacional do Banco Mundial, nos Estados Unidos 1 Trata-se de populações de peixes que se deslocam entre as zonas de exploração exclusivas dos Estados e as águas internacionais [nota dos organizadores]. O texto pode ser encontrado em International Legal Materials (1995) 34 ILM1542. [utilizaremos o acrônimo ILM para o periódico International Legal Materials – nota dos organizadores] 2 Ver D. Freestone and Z. Makuch. “The International Environmental Law of Fisheries: The 1995 Straddling Stocks Agreement”. Yearbook of International Environmental Law, 1996, n. 7, p. 3-49. Como complemento à introdução da metodologia da precaução, ver em especial as referências a espécies dependentes e conservação ecossistêmica, assim como o uso de procedimentos de aumento da eficácia, como as relacionadas à jurisdição estatal dos portos, desenvolvida para o aumento da eficácia das obrigações ambientais, na Parte 11 da Convenção sobre o Direito do Mar. 3 Ver, por exemplo, B. Kwiatkowska. “The High Seas Fisheries Regime: At a Point of No Return?”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1993, n. 8, p. 327-358 and D. Freestone. “The Effective Conservation and Gestão of High Seas Living Resources: Towards a New Regime?”. The Canterbury Law Review, 1994, n. 5, p. 341-362. Alimentação e Agricultura (FAO) constatou que, nos anos 90, houve o primeiro declínio da pesca global, à exceção de uma pequena queda ocorrida nos anos 70.4 A pesca anual de mais de 80 milhões Mt ao ano representou um aumento de 400% em relação aos anos 50. Os cientistas sugeriram que o limite ecológico da pesca mundial poderia ser de 100 milhões Mt. ao ano, havendo margens de erro consideráveis em todos esses dados (podendo chegar a 20%). O declínio deve ser visto como resultado dos altos investimentos de capital na atividade pesqueira e da introdução de novas tecnologias. A FAO sugeriu que, talvez tenhamos alcançado os limites de produção da “pesca selvagem” e que o desenvolvimento sustentável do setor de pesca não pode, parece, ser atingido com os regimes atuais de “acesso aberto”.5 O resultado foi uma abundância de novos instrumentos internacionais que tentam considerar a nova realidade. Como Hey salientou, esses instrumentos tentaram direcionar quatro questões legais cruciais que não foram tradicionalmente consideradas precauções do direito internacional, mas questões sob a jurisdição dos Estados. As questões são: o exercício da jurisdição efetiva sobre as populações de peixes; o exercício de jurisdição sobre as populações de peixes dentro de zonas econômicas exclusivas que sofreram declínios súbitos (como, por exemplo, do Atlântico Noroeste e Mar do Norte); o exercício efetivo de jurisdição dos Estados sobre as embarcações com suas próprias bandeiras e pescando em alto-mar e até que ponto os regimes legais devem incorporar questões sobre a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica marinha.6 Dentre os novos instrumentos, o mais importante é o Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais7 e de Populações de Peixes Altamente Migratórios. Cabe ressaltar também: o Capítulo 17 da Agenda 218; o Acordo de 1993, que promove a Eficácia das Medidas de Gestão e 4 FAO. “Review of the state of world marine fishery resources”. FAO Technical Paper, Roma, 1994, n.355. FAO. “Review of the state of world marine fishery resources”. FAO Technical Paper, Roma, 1994, n. 355. 6 E. Hey. “Global Fisheries Regulations in the first half of the 1990s”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 459-490. 7 United Nations, Report ofthe United Nations Conference on Environment and Desenvolvimento, UN Doc A/CONF/151/26, 1992, n. 2. 8 (1994) 33 ILM 968. Especificamente sobre o Acordo sobre a eficácia ver D. A. Balton. The Compliance Agreement. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. and G. Moore. “The Food and Agriculture Organisation of theUnited Nations Compliance 5 Conservação Internacional pelos Barcos Pesqueiros em alto-mar9 (Acordo de Submissão); o Código de Conduta de 1995 para a Pesca Responsável (Código de Conduta) e o Mandato da Convenção de Jacarta sobre Diversidade Biológica10. Esses textos adicionaram uma série de novos comentários interpretativos para a Convenção sobre o Direito do Mar das Nações Unidas, de 1982 11 (UNCLOS).12 Essa Convenção confere poderes exclusivos aos Estados costeiros para controlar a pesca dentro de zonas econômicas exclusivas de 200 milhas náuticas, mas pouco contribui para regular efetivamente aqueles recursos que não são ou nem sempre são encontrados, dentro daquelas zonas jurisdicionais. Na verdade, como já foi mencionado, a evidência sugere que mesmo os cardumes que estão dentro das zonas de 200 milhas sofreram superexploração. O futuro dos recursos pesqueiros mundiais tem-se tornado progressivamente uma questão de preocupação da comunidade internacional, não simplesmente por causa do impacto econômico da diminuição desses recursos, mas em função do potencial significado ecológico de tal diminuição para os ecossistemas marinhos.13 A rápida evolução do direito de pesca internacional, nos anos 90, trouxe em contraste mais forte o regime legal que existia antes da Convenção sobre o Direito do Mar. Outros salientaram que as Convenções de Genebra de 1958 refletiam a visão geral de que a pesca era um recurso ilimitado e que a grande maioria da pesca acontecia em alto-mar, fora, portanto, das três milhas de mar territorial.14 O interesse público em Agreement”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 412-426. (Annexing the text of the Agreement.) 9 Especificamente sobre o Código de Conduta, ver G. Moore. The Code of Conduct for Responsible Fisheries. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995 and W. M. Edeson. “The Code of Conduct for Responsible Fisheries: An Introduction”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 233-238. 10 Further discussion ver E. Hey, a este livro nota 6, p. 485; e também M. Goote. “The Jakarta Mandate”. The International Journal ofMarine and Coastal Law, 1997, n. 12, p. 377-395 which reproduces the text of the SBSTTA Recommendation 1/8 (parágrafos. 10-19) assim como o seu apêndice . 11 (1982) 21 ILM 1261 . Especificamente sobre as profissões da Convenção sobre o Direito do Mar sobre Pesca, ver E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. 12 A importância de novas espécies e da pesca regional em certos acordos internacionais será discutida adiante. 13 Ver, por exemplo. D. Freestone. “The Conservation of Marine Ecosystems under International Law”. in M. Bowman and C. Redgwell (eds.). International Law and the Conservation of Biological Diversity, 1996. p. 91-107, assim como as fontes citadas nele. 14 D.H. Anderson. “The Straddling Stocks Agreement of 1995 - An Initial Assessment”. International and Comparative Law Quarterly, 1996, n. 45, p. 463-475. relação aos recursos pesqueiros era simplesmente para exigir o exercício do direito à pesca – uma das liberdades fundamentais do alto-mar – que deveria ser exercido com uma “atenção equilibrada em relação aos interesses dos outros Estados sobre o exercício da liberdade em alto-mar”.15 Este teste de “atenção equilibrada” foi, de certa forma, concretizado nas obrigações gerais da Convenção de 1958 sobre Pesca e Conservação dos Recursos Marinhos em Alto-Mar16 (Convenção de Pesca de 1958), exigindo que um Estado que pesque em alto-mar leve em consideração as obrigações desse tratado, os interesses e direitos dos Estados costeiros e (de maneira limitada) as exigências de conservação.17 Impôs também uma taxa para os Estados adotarem ou para cooperarem adotando de medidas de conservação da pesca para seus nacionais.18 Todavia, a definição de “conservação”, na Convenção de Pesca de 1958, tem um caráter inteiramente antropocêntrico e relacionado com a garantia do máximo fornecimento de alimentos e outros produtos marinhos para o consumo humano.19 A Convenção sobre o Direito do Mar reflete uma preocupação mais ampla com a dimensão regulatória do ambiente marinho. Contudo, a mudança primária introduzida no regime de pesca foi permitir a inclusão de zonas de 200 milhas e boa parte da energia despendida nas negociações parece ter sido direcionada para assegurar que os Estados costeiros gerenciem esse recurso, de maneira efetiva. Em compensação, o regime de pesca em alto-mar está muito menos desenvolvido. Brown resume seu principal objetivo como o de “produzir o máximo de rendimento sustentável definido por uma grande quantidade de fatores vagos.”20 Da mesma forma, o regime que trata das populações de peixes que transitam entre zonas econômicas exclusivas e em alto-mar é tão vago quanto a Convenção. Suas cláusulas são essencialmente incitativas e foram caracterizadas como 15 Art. 2 da Convenção sobre o Alto-Mar, HMSO, de 1958 (CMND, 584) Idem. 17 Art. 1(1) da Convenção sobre a Pesca, de 1958. Para uma definição de “conservação de recursos vivos no alto-mar”. ver art. 2 da mesma Convenção, como indicado abaixo, na nota 19 18 Art. 1(2), da Convenção sobre a Pesca, de 1958. 19 A definição no artigo 2° da Convenção sobre a Pesca, de 1958 é “o agregado de medidas que tornam possível o uso máximo sustentável destes recursos, para garantir o máximo de alimento e outros produtos marinhos. Os programas de conservação devem ser formulados com o objetivo de assegurar em primeiro lugar o suprimento de alimento para o consumo humano”. Comparar este com as exigências ambientais do artigo 119 da Convenção, conforme discutido no texto da nota 56, mais adiante. 20 E.D. Brown. “The International Law of the Sea, Dartmouth”. 1994, n. 1, p. 319. 16 parte da “agenda incompleta” da Convenção sobre o Direito do Mar.21 Esses dispositivos refletem uma visão tradicional, segundo a qual o interesse comunitário é alcançado com a mínima interferência nos direitos em alto-mar. A emergência de um conjunto normativo de direito jurídico internacional ambiental revela uma preocupação um tanto diferente. Isto está refletido no argumento de que a comunidade internacional tem um interesse na proteção de certos recursoschave compartilhados – o então chamado patrimônio comum da humanidade - as pescas em alto-mar, a atmosfera, a camada de ozônio e alguns aspectos da diversidade biológica, que não podem simplesmente se defender por si próprios. Como nós discutimos em outros textos, “cada vez mais, o direito internacional ambiental está ... aceitando que a tradicional visão rígida de soberania do Estado, na qual as atividades sob controle estatal são imutáveis, não pode ser compatível com as tentativas sérias de abordar problemas globais.”22 O princípio da precaução é parte desse desenvolvimento. Tem sido respaldado por um grande número de órgãos nacionais e internacionais, que o definem como um conceito-chave, a que o juiz Weeramantry chamou recentemente de princípio jurídico de desenvolvimento sustentável.23 A aceitação do princípio da precaução vincula à aceitação do fato de que restrições devem ser impostas a atividades que têm impactos negativos significativos no ambiente, mesmo que a ciência seja incapaz de prever de maneira exata quais serão essas conseqüências. Não é ou necessariamente não é uma doutrina absolutista, visto que o próprio conceito de “impactos negativos significativos” envolve um julgamento de valor considerável24, assim como o termo “restrições”. No entanto, a inclusão da precaução no Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, assim como o reconhecimento da importância da conservação dos ecossistemas e da 21 Ver B. Kwiatkowska, e D. Freestone, nota 3. D. Freestone and E. Hey. “Implementando o Princípio da Precaução: desafios e oportunidades” in M. D. Varella; A. F. Platiau. Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. This develops the argument by G. Handl. “Environmental Security and Global Change: the Challenge to International Law”. Yearbook of International Environmental Law, 1990, n.1, p. 3-33. 23 Opinião em separado no caso Gabcikovo-Nagymaros (Hungria v. Eslováquia), julgado em 5 de setembro de 1997, ICJ Reports, 1997. 24 Como D. Fleming colocou: “one person's `unacceptable consequence' is another person's `regrettable necessity”' ver “The Economics of Taking Care: an Evaluation of the Precautionary Principle” in Freestone e Hey (eds.), p. 147. 22 biodiversidade são partes de um reconhecimento legal importante de que existem interesses comuns mais amplos, na questão da conservação e gestão dos recursos pesqueiros. Enquanto a Convenção de Pesca de 1958 fixou o objetivo primário de pesca em alto-mar como a maximização de alimentos para o consumo humano, a Convenção sobre o Direito do Mar instituiu um conceito de rendimento máximo sustentável, qualificado por uma variedade ampla de “fatores vagos”, entre os quais alguns ambientais25. O Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios completa estes fatores ambientais, colocando-os como importantes para a defesa do meio ambiente per se.26 Com a abordagem da precaução, também introduz uma metodologia para lidar com a questão da informação científica.27 As exigências do uso de informação científica sempre estiveram presentes28; a questão tem sido o que fazer quando mesmo a melhor evidência científica é incompleta ou não é conclusiva. Apesar dos piores temores de alguns negociadores do Acordo, uma abordagem de precaução não impõe uma moratória completa sobre as operações de pesca em tais situações, mas o que se pode fazer é transferir o ônus da prova ou mesmo as exigências de prova (isto é, os padrões ou princípios), antes que determinadas medidas de conservação sejam colocadas em prática. O significado disto é que, em vez do ônus da prova recair sobre aqueles que defendem a conservação, que deveriam de forma absoluta provar que as populações de peixes estão ameaçadas para que depois medidas de conservação fossem implementadas (como foi no passado), um número de parâmetros de gestão de populações de peixes é estabelecido ab initio e, se houver desrespeito a esses parâmetros, as medidas de conservação serão automaticamente aplicadas. Aqueles que desejarem continuar a pescar nos mesmos níveis de exploração, devem provar, usando a 25 E.D. Brown, supra nota 20. Os fatores vagos são que as medidas devem ser fundamentadas na “melhor evidência científica disponível” e devem acomodar tanto fatores econômicos como ambientais”. Estes fatores são listados, de forma não-exaustiva, para incluir as exigências especiais dos Estados em desenvolvimento e devem levar em consideração padrões de pesca, interdependência das populações de peixes e qualquer recomendação geral para padrões mínimos internacionais. 26 Ver em particular art. 5, Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. 27 J. Cooke and M. Earle. “Towards a Precautionary Approach to Fisheries Gestion”. RECIEL, 1993, n. 2, p. 252-259. 28 Por exemplo, art. 7 da Convenção de Genebra de 1958, obriga os Estados costeiros a tomarem atitudes se “existir uma necessidade para as medidas de conservação, com base no conhecimento existente sobre a pesca” e se elas forem “fundamentadas nos conhecimentos científicos apropriados”. Ver também o artigo 119 da Convenção sobre o Direito do Mar. melhor evidência científica disponível, que suas atividades não trarão impactos inaceitáveis sobre os cardumes. Isto constitui a inversão do ônus da prova, como concebida normalmente, em favor da conservação e em detrimento da exploração, mas essa inversão apenas se aplica quando se excedem os parâmetros de gestão predeterminados. De fato, como será discutido a seguir, essa metodologia e as medidas de resposta determinadas pelo Anexo II certamente não são draconianas e podem ser dadas como exemplo de uma aplicação relativamente cautelosa da abordagem precautória. Somente o tempo irá dizer se elas são suficientes, mas é importante não subestimar o significado de tal mudança para a abordagem conservacionista. Este capítulo examinará a evolução do princípio da precaução, abordagem mais importante de uma nova política, na cooperação ambiental internacional.29 Será apresentada a maneira pela qual o conceito foi desenvolvido desde suas origens, no controle da poluição até na esfera do controle da pesca, nas negociações que levaram à Convenção sobre Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. Descreveremos em seguida a maneira pela qual o conceito foi incorporado nesse tratado e a importância disto para a utilização do princípio, no futuro. 2. A Evolução do Princípio da Precaução O Princípio 15 da Declaração do Rio 1992, adotado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), afirma que: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.30 As origens e o desenvolvimento do princípio da precaução foram bem documentados e analisados em outros artigos.31 Todavia, algumas breves determinações 29 D. Freestone. “The Precautionary Principle” in R. Churchill and D. Freestone (eds.). International Law and Global Climate Change. Boston: Kluwer Law International. 1991, p. 36. 30 Sobre os documentos adotados na CNUMAD ver UN Doc. A/Conf.151/26 (v. 1-5), 12 de agosto de 1992. 31 Freestone, supra nota 29, p. 22-23; P. Ehlers. The History of the International North Sea Conferences. in D. Freestone and T. Ijltra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation, podem ser úteis para identificar a maneira pela qual o princípio se tornou um princípioguia na maioria das normas e jurisprudência modernas, nacionais e internacionais, relacionadas à conservação de recursos naturais e ambientais. Quando o princípio surgiu no contexto da poluição marinha, nos últimos dez anos, observou-se que foi aplicado em diversos temas relacionados à exploração de recursos naturais e ambientais: da diminuição da camada de ozônio e mudanças climáticas à conservação da diversidade biológica, ao transporte de resíduos tóxicos e às modalidades de pesca em escala comercial. O princípio da precaução iniciou seu caminho na política e no direito internacional, a partir dos resultados obtidos pelas propostas alemãs feitas nas Conferências Interministeriais Internacionais do Mar do Norte.32 As propostas baseavam-se no Vorsorgeprinzip do direito alemão. Do Fórum Ministerial do Mar do Norte, o conceito encontrou seu caminho nos trabalhos das Comissões de Paris e Oslo33, nos regimes ambientais marinhos globais, tais como foram desenvolvidos na Convenção de Prevenção da Poluição Marinha por Operações de Imersão de Resíduos e outros Produtos34 (Convenção de Londres, 1972)35, nos regimes ambientais globais e, a partir 1990, p. 3-14. Lothar Giindling. The Status in International Law of the Principle of Precautionary Action. in Freestone and Ijlstra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation, p. 24; D. Freestone and E. Hey. Origins and Development of the Precautionary Principle¸ op. cit. 32 O texto alemão da Declaração da primeira Conferência Internacional do Mar do Norte, realizada em Bremen, em 1984, contém o termo Vorsorgemassnahmen, enquanto o texto em inglês faz referência as “medidas tempestivamente preventivas”. Para o texto da Declaração de Bremen, ver D. Freestone and T. Ijltra (eds.). The North Sea: Basic Legal Documents on Regional Environmental Co-operation. 1991, p. 61. A primeira referência explícita ao conceito precautório surgiu na Declaração da Segunda Conferência do Mar do Norte, realizada em Londres, em 1987. Os participantes declararam que eles aceitavam que “com o objetivo de proteger o Mar do Norte de possíveis efeitos danosos de substâncias mais perigosas, um enfoque precautório é necessário, que deve requerer ações para controlar os lançamentos dessas substâncias, mesmo antes da prova do nexo causal por evidências científicas claras”. Parágrafo VII, Declaração de Londres. Sobre o texto da Declaração de Londres, ver Freestone and Ijlstra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation. 1991, p. 3. 33 Ver, por exemplo, Recomendação 89/1 da PARCOM, 22 de junho de 1989, sobre o princípio da ação precautória, e Decisão 98/1 da OSCOM, de 14 de junho de 1989, sobre o procedimento de justificação prévia, reimpresso em Freestone and Ijlstra (eds.). The North Sea Perspectives on Regional Environmental Co-operation, respectivamente nas páginas 152 e 119. 34 (1972) 11 ILM 1291 . 35 Resolução LDC 44(14) sobre a Aplicação da Abordagem Precautória na Proteção Ambiental, no quadro legal da Convenção de Londres, em seu anexo 2, ,doc. LDC 14/16, de 30 de dezembro de 1990. Ver também o relatório de E. Hey. The Precautionary Approach and the London Dumping Convention, de 4 de setembro de 1991, LDC 14/4. daí, continuou em um amplo leque de negociações internacionais36 , incluindo aquelas sobre a Convenção de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. O princípio básico da abordagem da precaução37, que a distingue das abordagens de “prevenção” mais tradicionais é que a ação positiva para proteger o ambiente deve ser exigida antes que a prova científica de dano seja fornecida.38 Está claro que o princípio da precaução (pensamento ou ação precautória) cobre uma ampla variedade de obrigações e ações possíveis.39 Numa formulação mais sutil,40 seria difícil distinguir do 36 Em novembro de 1990, o Secretário-Geral da ONU, em seu Relatório sobre o Direito do Mar expressamente reconheceu o “significado importante” do princípio da precaução para os futuros enfoques sobre a proteção do meio ambiente marinho e a conservação dos recursos; ele relatou que o princípio tem sido endossado “por todos os fóruns recentes” (UN Doc. A/45/721, 19 de novembro de 1990, p. 20, parágrafo 60) Exemplos específicos de instrumentos recentes endossando o princípio ou enfoque da precaução incluem os seguintes: Declaração Ministerial para a Proteção do Mar Negro de 1993 Environmental Policy and Law, p. 235 (para maiores informações ver E. Hey and L. D. Mee. “Black Sea, The Ministerial Declaration: An Important Step” id., p. 215-220); Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 1992, Convenção sobre a Diversidade Biológica, Convenção sobre a Proteção da Região do Mar Báltico, de 1992, Yearbook of International Environmental Law; The International Journal of Marine and Coastal Law, p. 215, com comentários de P. Ehlers, p. 191; A Convenção sobre a Proteção e o Uso de Rios Transfronteiriços (Watercourses and Lakes, (1992) 31 ILM 1312); o Tratado de Maastricht da Comunidade Européia 31 1141247, 1992; o Protocolo da Convenção sobre a Prevenção da Poluição Marinha pelo dejetos de lixos e outras matérias, de 1992., 36 ILM 1 (1997) (para maiores informações, ver René Coenen. “Dumping of Wastes at Sea: Adoption of the 1996 Protocol to the London Convention 1972”. RECIEL, 1997, n.6, p. 54-61); A Convenção para a Proteção do Ambiente Marinho no Nordeste do Atlântico, de 1992, International Journal of Marine and Coastal Law, p. 50 (para maiores informações ver E. Hey, T. Ijlstra and A. Nollkaemper. “The 1992 Paris Convention for the Proteção of the Marine Environment of the North-East Atlantic: A Critical Analysis”. International Journal of Marine and Coastal Law, 1993, n.8, p. 1-49). 37 Para estudos mais profundos, ver, por exemplo, Gundling, supra nota 31; J. Cameron and Juli Abouchar. “The Precautionary Principle: A Fundamental Principle of Law and Policy for the Proteção of the Global Environment”. Boston College International Law Review, 1991, n. 14, p. 1-27; Freestone, supra nota 29, p. 21-40; E. Hey. “The Precautionary Approach : Implications of the Revision of the Oslo and Paris Conventions” Marine Policy, 1991, n. 15, p. 244-254; E. Hey. “The Precautionary Concept in Environmental Law and Policy: Institutionalizing Caution”. Georgetown International Environmental Law Review, 1992, n. 4, p. 303-318; Timothy O'Riordan and J. Cameron (eds.). Interpreting the Precautionary Principle. Earthscan, 1994. 38 Para uma discussão mais ampla, ver o artigo de Freestone e Hey, neste livro. 39 O conceito pode ser encontrado em documentos legais sobre conceitos e obrigações preexistentes. Ver, por exemplo, Report of Experts Group on Environmental Law of the World Commission on Environment and Development (WCED), published as Environmental Protection and Sustainable Desenvolvimento: Legal Principles and Recommendations, R. D. Monroe and J.G. Lammers (eds.). Graham &Trotman/Martinus Nijhoff, 1987. O grupo de peritos sugeriu que: “a obrigação do Estado de prevenir ou evitar a interferência ambiental transfronteiriça existe apenas se for razoavelmente previsível [itálicos originais] que o dano substancial [ênfase nossa] seja causado, ou que exista um risco significativo (ênfases nossa) que tal dano seja causado a natureza e a extensão das medidas a serem tomadas, logicamente, dependem da natureza e da extensão do dano extraterritorial que deve ser prevenido ou evitado” (p. 79-80). De forma similar, a exigência da previsibilidade, ou a avaliação de quanto um risco é ou não significativo não é uma obrigação passiva. É preciso que seja uma exigência objetiva que o Estado deva ter o devido cuidado nas suas investigações independentemente se o dano está ou não prestes a ser gerado. Isso deve incluir a investigação dentro da lógica do princípio do desenvolvimento sustentável, ,dos impactos princípio da prevenção que é bem conhecido pelo direito internacional ambiental.41 Numa formulação mais consistente, poderia ser visto como uma inversão do ônus da prova, tal como concebido normalmente,42 para que um agente potencial deva provar que a atividade proposta não causará danos antes que a atividade seja aprovada. O entendimento mais comum do princípio parece estar em algum lugar entre esses extremos. Apesar de sua ampla aceitação, um número de problemas operacionais importantes permanecem: o que constitui um caso onde prima facie um dano significativo é provável? Que nível de risco é significativo para esses propósitos? Algum tipo de teste de equilíbrio está implícito na formulação discutida: quanto maior for o risco possível para o meio ambiente, maior será o nível de incerteza científica que pode ser aceitável para que se reclame o princípio da precaução. Como Nollkaemper salientou: “o fato de que o princípio da precaução é um princípio significa também que não impõe obrigações absolutas. Princípios servem como guias de conduta em vez de imposição de obrigações concretas. O princípio da precaução estabelece racionalidades que levam a uma conduta com precaução, ainda que não garanta que uma decisão particular assegure proteção total.”43 Assim, muitas questões somente podem ser resolvidas em nível de tratados, ou em um nível regional ou setorial, empregando uma variedade de métodos, mas sem desvirtuar a essência fundamental do princípio. Todavia, se a análise for aceita como o ambientais possíveis, da notificação prévia das atividades planejadas aos Estados interessados e a troca de informação ambiental. Art. 15-17 of WCED Experts Principles in id. 40 bem como a Declaração Ministerial sobre Desenvolvimento Sustentável na Comunidade Econômica Européia (Declaração de Bergen), Conferência sobre a Ação para um Futuro Comum da UNECE, Bergen, 15 de maio de 1990 A/CONF.151/PG10. 40 Ver a Declaração Ministerial sobre Desenvolvimento Sustentável na Declaração Ministerial sobre Desenvolvimento Sustentável na Comunidade Econômica Européia (Declaração de Bergen), Bergen, 15 de maior de 1990. A/CONF.151/PG10 41 O princípio da prevenção, que impõe a obrigação dos Estados de prevenir um dano previsível fora do seu território, está presente no princípio 2 da Declaração do Rio e no mais conhecido princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, ,assim como em um grande número de tratados. Esta obrigação não é geralmente observada de forma estrita, mas depende de um conceito de previsibilidade. Então, o princípio da prevenção é visto como a prevenção dos danos e riscos que são conhecidos e foram provados cientificamente. 42 Como no Procedimento de Justificação Prévia da Convenção de Oslo, ver OSCom Decision 89/1, nota 33 . 43 A. Nollkaemper. What you risk reveals what you value', and Other Dilemmas Encountered in the Legal Assaults on Risk. in Freestone e Hey (eds.). The Precautionary Principle and International Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. p. 73-94. núcleo do princípio da precaução, então pode-se constatar que não somente foi aceito explicitamente em um número de afirmações políticas e instrumentos legais internacionais importantes,44 mas foi aceito implícita ou operacionalmente em uma variedade ampla de instrumentos internacionais45 existentes, incluindo alguns relativos à pesca em alto-mar.46 Os juristas discordam ainda se esse princípio, já aceito pela ampla maioria das nações em diversos fóruns, constitui um princípio obrigatório do direito internacional ambiental.47 Foram levantados argumentos questionando que a falta de precisão do princípio acarreta um padrão tão alto de cuidado com o meio ambiente, que o torna impraticável.48 Todavia, nós argumentamos que: O reconhecimento internacional e o endosso do princípio da precaução pode ter começado a mudar as exigências puramente preventivas de diligência e de previsibilidade que existiam. No presente momento, isto será provavelmente discutido em uma análise caso a caso, mas, se a evolução atual [da precaução] continuar, ele se tornará uma exigência geral do direito ambiental em um futuro não muito distante.49 Todavia, como Nollkaemper sugere50 e outros reconhecem,51 a característica distintiva da abordagem / princípio da precaução não é que dita medidas regulatórias específicas. Muitos tipos diferentes de medidas podem ser usados para implementá-lo. A característica distintiva é a maneira pela qual e o tempo no qual as medidas são adotadas. Como dissemos em outro artigo, “é um desafio para o modo de ver o mundo tanto quanto 44 Incluindo aquelas citadas nas notas 32 a 36, acima como em muitas outras; para fontes, ver a literatura citada na nota 37, anterior. 45 Ver, por exemplo, Freestone, supra nota 29; isso inclui vários tratados sobre a vida selvagem: Convenção de RAMSAR de 1971, Convenção de Bonn, de 1979 sobre Conservação de Espécies Migratórias, Convenção de Berna de 1979, sobre a Conservação da Vida Selvagem Européia e os Protocolos sobre Habitats Naturais e Mares Regionais, em áreas especialmente protegidas e vida selvagem (Protocolo de Genebra de 1982, Protocolo de Nairobi, de 1985, Protocolo de Kingston, de 1990). O pensamento precautório tem sido encontrado no Ato Unido Europeu, de 1986, bem como nas decisões da Convenção de Londres, na Comissão sobre Pesca à Baleia, e na CITES 46 Notoriamente a Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre pesca de arrasto, ver nota 106. 47 Ver fontes em Cameron and Abouchard, nota 37. 48 D. Bodansky. “Scientific Uncertainty and the Precautionary Principle” Environment, 1991, n.33, p. 4. 49 Freestone, nota 29, p. 37. 50 Nota 43 . 51 Freestone, nota 29, p. 37; ver Freestone e Hey, neste livro. para nossa percepção sobre o papel da ciência ou do ônus da prova.”52 Justamente por isso, também surge uma nova ótica pela qual identificamos as obrigações existentes. É instrutivo reexaminar a linguagem cautelosa da Convenção sobre o Direito do Mar em suas cláusulas de pesca para ver como os elementos essenciais de uma abordagem precautória podem ser encontrados de forma relativamente fácil. 3. Gestão e Conservação da Pesca em Alto-mar na Convenção sobre o Direito do Mar Apesar da existência de um certo número de medidas radicais que podem ser encontradas no Acordo sobre as Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios, é importante ter em mente que o acordo objetiva essencialmente implementar a Convenção sobre o Direito do Mar.53 Por esta razão, a Convenção deve ser vista como a base para o Acordo. A seção seguinte procura mostrar que, embora não sejam sempre explícitos, muitos valores realçados e desenvolvidos no regime de 1995 podem estar enraizados na Convenção sobre o Direito do Mar. A Seção 2 da Parte VII da Convenção intitula-se “Conservação e Gestão dos Recursos Vivos de Alto-Mar.” O artigo 116 reconhece que todos os Estados têm o direito de que seus cidadãos pesquem em alto-mar. Todavia, o artigo submete especificamente o direito a três fatores: obrigações existentes em tratados, direitos e deveres, assim como interesses dos Estados costeiros (como disposto inter alia nos artigos 63 (2) e 64-67) e artigos da Parte VII, Seção 2, da Convenção sobre o Direito do Mar.54 O artigo 117 impõe a todos os Estados o dever individual e coletivo de tomar as medidas necessárias para a conservação de recursos vivos do alto-mar. O artigo 118 impõe aos Estados o dever de cooperar na conservação e na gestão dos recursos vivos de alto-mar. Pode ser argumentado que a posição do dever de conservação na seção tanto quanto sua natureza inequívoca tornam-no um dever primário.55 A partir disso, o 52 Freestone e Hey, neste livro Ver, por exemplo, M. Hayashi. “The 1995 Agreement on Straddling Stocks and Highly Migratory Fish Stocks: Significance for the Law of the Sea Convention”. Ocean and Coastal Gestão,1995, n. 29, p. 51-69. 54 Deveríamos ressaltar que estes fatores diferem daqueles contidos na Convenção sobre a Pesca de 1958 ver texto na nota 17. 55 Esta visão é apoiada claramente pelos títulos da Seção 2, da Parte VII, da Convenção sobre o Direito do Mar. Em seu artigo 199, Seção 2, intitulado “Conservação e Gestão dos Recursos Vivos em Alto- mar”. Art, 119. “Conservação dos Recursos Marinhos em Alto-mar”. 53 artigo 119 pode ser considerado como provedor dos meios e das modalidades para que os Estados cumpram essa obrigação primária. Embora o artigo 119 estabeleça a implementação de medidas para “manter ou restaurar as populações das espécies dizimadas, em níveis que possam produzir o rendimento máximo sustentável”, são medidas que devem ser baseadas “na melhor evidência científica disponível” e nos fatores um tanto vagos56 do professor Brown, ou seja, “nos relevantes fatores ambientais e econômicos”, incluindo as exigências especiais de Estados desenvolvidos, de padrões de pesca, de interdependência de populações de peixes e de padrões57 mínimos internacionais geralmente recomendados. De forma similar, ao fixar tais medidas, o artigo 119 (1) (b) obriga os Estados a levarem em consideração “os efeitos sobre as espécies associadas ou dependentes de espécies pescadas, objetivando a manutenção ou restauração de tais espécies associadas ou dependentes em níveis que a reprodução delas não possa tornar-se seriamente ameaçada. Esta medida pode ser considerada como puramente ambiental, uma vez que tais espécies não são pescadas ou mesmo passíveis de pesca. A formulação do artigo 119 do rendimento máximo sustentável como qualificado por fatores econômicos e ambientais tem sido considerada como uma descrição do conceito de “utilização ótima” e as expressões “manter e restaurar populações de espécies capturadas em níveis que possam produzir [tal utilização] ...” têm sido interpretadas como possibilidades em lugar de obrigações. Em outras palavras, isto significa que, embora os Estados cujos cidadãos estejam pescando em alto-mar não estejam ativamente obrigados a observar o objetivo de utilização ótima para eles mesmos, são obrigados a não impedir o alcance deste objetivo por outros Estados.58 Na verdade, em contraste com o artigo 62 da Convenção sobre o Direito do Mar, que obriga os Estados costeiros a promoverem o objetivo de utilização ótima de recursos vivos 56 Brown, nota 20. Art. 119(1)(a), da Convenção sobre o Direito do Mar. 58 E. Hey. “The Provisions of the United Nations Law of the Sea Convention on Fisheries Resources and Current International Fisheries Gestão Needs”. FAO, The Regulation of Driftnet Fishing on the High Seas: Legal Issues, FAO Legislative Study 47, 1991, p. 4. Isto contrasta com a obrigação de Estados costeiros em relação aos recursos vivos nas suas zonas econômicas exclusivas “para promover o objetivo de utilização ótimo”. no artigo 62(1), a Convenção do Direito do Mar, ver também artigo 61(3), da Convenção sobre o Direito do Mar. Ver também E. Hey. “The Regime for the Exploitation of Transboundary Marine Fisheries Resources”. Martinus Nijhoff, 1989, p. 50. 57 dentro de suas próprias zonas econômicas exclusivas, as cláusulas de alto-mar não parecem exigir que a pesca em alto-mar seja realizada em níveis máximos de rendimento sustentável, mas simplesmente exige que os Estados engajados na pesca em alto-mar assegurem que as populações de peixes sejam mantidas ou restauradas em níveis que possam produzir (isto é, com potencial de produzir) o rendimento máximo sustentável. A não obrigatoriedade para os Estados de explorar esses recursos em alto-mar, visando ao rendimento máximo sustentável, contrasta dolorosamente com a obrigação inequívoca e primária de conservação de tais populações, imposta aos mesmos Estados, pelo artigo 117. Outras cláusulas da Convenção sobre o Direito do Mar que se relacionam com a pesca de populações de peixes tranzonais e espécies altamente migratórias tratam a conservação da mesma forma, embora como já foi constatado, as obrigações sejam amplamente incitativas – impondo obrigações de negociar de boa-fé mais do que de se chegar a um acordo.59 O artigo 63 (2) que trata das populações de peixes tranzonais, stricto sensu, que ocorrem dentro de uma ou mais zonas econômicas exclusivas e áreas adjacentes ao alto-mar, dispõe que “o Estado costeiro e os Estados que pescam tais peixes em áreas adjacentes devem procurar, tanto diretamente como por meio de organizações sub-regionais ou regionais apropriadas, aplicar as medidas necessárias para a conservação dessas populações de peixes, nas áreas adjacentes”.60 O artigo 64 sobre espécies altamente migratórias como o atum, também impõe uma obrigação incitativa de cooperação. Embora tenha havido uma certa controvérsia sobre a interpretação do artigo 6461, não se referiu ao seu objetivo geral, que é “cooperar ... com vistas a assegurar a conservação e promover o objetivo de utilização ótima de tais espécies em toda a região, tanto dentro como fora da zona econômica exclusiva.”62 59 Ver ainda Freestone, nota 3 . Ênfases nossas. Ver também D. Ponzoni. “The International Legal Framework for the Conservation and Gestão of Living Marine Resources” FAO Legislative Study 47, nota 58, p. 34-37. 61 Ver W.T. Burke. “Highly Migratory Species in the New Law of the Sea”. Ocean Development and International Law, 1984, n. 14, p. 281 62 Em relação aos mamíferos marinhos, o regime tratado pelos art.. 65 e 120 é sui generis, porque a utilização não aparece no texto em nenhum lugar. Conservação e gestão são as únicas obrigações. Não apenas não existe nenhuma obrigação de utilização ótima nem na zona econômica exclusiva nem no altomar, mas em ambas as áreas a sua exploração pode ser proibida, ou delimitada ou regulada em função de outras espécies. Em complemento, os Estados são obrigados a “cooperar com o objetivo de conservação das populações de mamíferos marinhos e, no caso de cetáceos, obrigados a cooperar em particular com o 60 Normalmente, a pesca de cardumes anádromos63 não pode ocorrer em alto-mar. O artigo 66 (2) da Convenção sobre o Direito do Mar impõe ao Estado de origem a obrigação de “assegurar sua conservação mediante a adoção de medidas apropriadas” e proíbe a pesca de tais cardumes, fora da zona econômica exclusiva, “nos casos em que esta disposição possa acarretar perturbações econômicas para outro Estado que não o Estado de origem”. Em tais casos excepcionais, onde a pesca em alto-mar é permitida, deve ser precedida por “os Estados interessados procederão a consultas com vista a chegarem a um acordo sobre modalidades e condições de tal pesca, levando em devida consideração as exigências da conservação e as necessidades do Estado de origem no que se refere a tais populações.”64 Um ponto de partida alternativo para essa discussão também podem ser as normas da Convenção sobre o Direito do Mar, relacionadas à proteção do ambiente marinho, encontradas na Parte XII da Convenção. O artigo 192 dessa Convenção impõe a todos os Estados a obrigação geral de “proteger e preservar o meio ambiente marinho”. Esta obrigação vai além do que simplesmente evitar o dano óbvio e ou deliberado, e visa incluir medidas ativas para manter ou melhorar a condição atual do meio ambiente marinho65 e cooperar para isto.66 Ainda que seja verdade afirmar que os dispositvos do artigo 192 e dos artigos seguintes trazem tanto a responsabilidade para conservar os ecossistemas marinhos quanto para prevenir a poluição no mar, é preciso também admitir que a Convenção sobre o Direito do Mar contém menos instrumentos detalhados para a trabalho desenvolvido pelas organizações internacionais competentes pela sua conservação, gestão e estudo” (art. 65, Convenção sobre o Direito do Mar). Enquanto a Comissão Internacional da Pesca à Baleia é a organização primária para este objetivo, ,é notório que a Convenção sobre o Direito do Mar usa o termo “organizações”. ver P.W. Birnie. “The International Regulation of Whaling”. Oceana Publications, 1985, n.2. Especificamente sobre este tópico ver P. W. Birnie. The Conservation and Managment of Marine Mammals and Anadromous and Catadromous Species. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. 63 I.e. . populacões que vivem no mar e se reproduzem em água fresca. Especialmente populações anádromas P. W. Birnie. The Conservation and Managment of Marine Mammals and Anadromous and Catadromous Species. in E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. 64 Art. 66(3)(a), ver também (b), Convenção sobre o Direito do Mar. Note-se que, mesmo nestes casos, o Estado de origem ainda mantém o direito de estabelecer o nível total de captura. 65 M. Nordquist (gen. ed .). “The 1982 Law of the Sea Convention: A Commentary”. V. iv, S. Rosenne and B . Yankov (eds.), Martinus Nijhoff, 1990, p. 40. 66 Art. 197, Convenção sobre o Direito do Mar. conservação de ecossistemas marinhos do que para a prevenção da poluição.67 Hey defendeu que, na falta de instrumentos detalhados para a conservação de ecossistemas marinhos68, pode-se pressupor que medidas relevantes serão implementadas por meio de outros instrumentos legais existentes ou ainda a serem criados. Especificamente, a base legal para as medidas necessárias para a conservação de ecossistemas marinhos devem ser os dispositivos sobre a pesca da Convenção sobre o Direito do Mar. Assim, os objetivos das normas de pesca devem ser elaborados em função das obrigações de proteger e preservar o meio ambiente marinho.69 Como já foi discutido, o direito internacional ambiental impõe obrigações cada vez mais rígidas aos Estados para impedir o dano sobre áreas de patrimônio comum da humanidade e sobre recursos de interesse de toda a comunidade. Tais obrigações incluem os recursos de alto-mar.70 Por essa razão, a obrigação primária de conservação por esses Estados que estão envolvidos em pescas em alto-mar, como o disposto no artigo 117 e nos dispositivos relacionados da Convenção sobre o Direito do Mar, tem uma dimensão ambiental importante. Por exemplo, isto é reconhecido no texto do artigo 119.71 Todavia, tanto para as pescas em alto-mar tanto quanto para outras atividades que influenciam o meio ambiente marinho, as obrigações e conceitos de direito internacional ambiental têm um significado considerável para o desempenho de outros direitos e deveres, dentro do regime da Convenção sobre o Direito do Mar. Como já foi visto, uma parte intrínseca desse corpus envolvente do direito internacional ambiental consiste claramente no princípio da precaução. A forma pela qual o princípio da precaução foi aplicado às questões de gestão da pesca serão discutidos na seção seguinte. 4. O Desenvolvimento de uma Abordagem Precautória na Conservação e Gestão das Pescas Esta seção considerará a maneira pela qual a abordagem precautória – mesmo que seja essencialmente implícita - pode ser vista em um número de regimes de pesca existentes, anteriores ao Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente 67 A única referência do significado está no artigo. 194 (5) que convida os Estados a adotarem essas medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros ou frágeis assim como os habitats destruídos, ameaçados e outras formas de vida marinha” 68 Hey in FAO Legislative Study 47, nota 58 69 Idem. 70 Ver princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, agora princípio 2 da Declaração do Rio, nota 41 . 71 Ver art. 119(1)(a) and (b), Convenção sobre o Direito do Mar. Migratórios. Como mostrará a seção subseqüente, alguns desses desenvolvimentos abriram o caminho para a metodologia adotada após as negociações da CNUMAD (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992). Um exemplo interessante, realizado relativamente cedo, pode ser encontrado na Convenção Internacional para Pesca em alto-mar do Oceano Pacífico Norte - Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte72, de 1952, que estabeleceu um sistema fundamentado ostensivamente nos critérios de conservação, baseados no princípio da abstenção73. A Comissão do Pacífico Norte, estabelecida pelo tratado, foi um dos poucos órgãos de pesca internacionais com poder de monitorar os cardumes designados, para decidir as medidas de conservação e alocar a Captura Permitida Total (para eles)74. Para apoiar o regime, desenvolveu-se o conceito que um ou dois Estados-partes se absteriam de pescar as espécies designadas75, enquanto a Comissão não fosse capaz de determinar três condições a serem alcançadas anualmente76, com base em evidência científica. De acordo com esses mesmos critérios, a Comissão recebeu também poderes para determinar se os Estados deveriam ou não se abster da pesca de novas espécies de peixes.77 O significado mais amplo da doutrina de abstenção, para a qual os Estados Unidos, por um tempo, procurou obter suporte da comunidade internacional a fim de elevá-la ao status de lei geral, é que sua implementação está apoiado em aspectos 72 9 de maio de 1952, 205 UNTS 80. A Convenção tem sido muito criticada como um veículo para perpetuar a noção de que o “primeiro a chegar tem a vantagem especial de reclamar os recursos pesqueiros que já foram pescados, no nível ótimo de pesca” Ver H.N . Scheiber. “Origins of the Abstention Doctrine in Ocean Law: Japanese-US Relations and Pacific Fisheries 1937- 1958”. Ecology Law Quarterly, 1989, n. 16, p. 23-99. 74 A.W. Koers. “International Regulation of Marine Fisheries”. Fishing News, 1973, p. 97-100. 75 Parágrafo 1 do Anexo dispõe que os japoneses irão se abster da pesca de halibute, arenque e salmão em áreas específicas do alto-mar, em troca de um entendimento com os Estados Unidos e o Canadá de que eles irão “continuar a adotar as medidas necessárias de conservação”. Com base no parágrafo 2 do Anexo, Japão e Canadá concordaram de se absterem da pesca do salmão em regiões determinadas em troca de um compromisso dos Estados Unidos de adotar as medidas de conservação necessárias. 76 “(i) Prova baseada em pesquisa científica indica que uma exploração mais intensa dos cardumes não acarretará um aumento substancial na produção que pode ser sustentada ano após ano; (ii) Que a exploração dos cardumes é limitada ou então regulada por meio de medidas jurídicas por cada parte que está comprometida com sua exploração, com vistas à manutenção ou ao aumento da sua produtividade máxima sustentável. Essa limitações e regulações estão de acordo com os programas de conservação baseados na pesquisa científica; e (iii) Os cardumes serão estudados por cientistas para se descobrir se estão sendo totalmente utilizados e têm as condições necessárias para a manutenção de sua produtividade máxima sustentável.” (Art IV (1), Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte). 77 Art. III(1)(b) da Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte. 73 científicos. Para que a pesca de certos peixes fosse liberada, a evidência “baseada na pesquisa científica” deveria estar disponível.78 Assim, o ônus da prova deveria ser da parte a favor da pesca, estando-se, portanto, a favor da conservação. Na falta de tal evidência científica, não seria possível autorizar qualquer exploração. Virtualmente, todos os tratados de pesca em alto-mar têm a conservação como objetivo, mas nenhum parece elevar o status da evidência científica à posição que foi dada na Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte, de 1952. Por exemplo, a Convenção Internacional de 1966 para a Conservação de Atum79 do Atlântico simplesmente dá poder à Comissão para fazer recomendações “com base em evidências científicas” para manter os níveis máximos sustentáveis de exploração da pesca.80 A Comissão Interamericana de Atum Tropical (IATTC) somente teve poder para recomendar a captura permitida total com base em pesquisas científicas.81 A Comissão Internacional sobre Baleias, que foi estabelecida pela Convenção Internacional para a Regulamentação da Pesca à Baleia (ICRW)82, desenvolveu um sistema de classificação de Populações de Baleias, baseado em evidências científicas e em conselhos do Comitê Científico.83 Todavia, a decisão de 1982 da Comissão para impor uma moratória indefinida na pesca de baleia comercial84 tornou a conservação o objetivo primário da Convenção (ICRW). De fato, embora haja evidência de declínio da população, levando algumas espécies maiores de baleias ao status de espécies ameaçadas de extinção, a moratória para algumas espécies menores (incluindo a controvertida Minke) pode ser vista como uma medida operacional de precaução. A Comissão 78 Para manter o sistema de abstenção funcionando, o beneficiário tinha que manter o programa de conservação “baseado em pesquisa científica” art. w(1)(b)(i) e (ii), Convenção sobre a Pesca no Pacífico Norte. 79 UN/LEG/SER.B/16, p. 483. A expressão original é blue fin tuna (atum de nadadeiras azuis), que se trata de uma espécie de atum [nota dos organizadores]. 80 Art. VIII(1)(a), Convenção Internacional para a Conservação do Atum no Atlântico. 81 80 UNTS 4, ver Também Koers, nota 74, p. 95-97 e Hey, 1989, nota. 58, p. 217-219. 82 161 UNTS 72, reproduzido em Birnie, 1985, nota 62, n. 11, p. 689. 83 Art. 10(2), ICRW e Art. 10, Schedule ICRW, Birnie, supra nota 82, p. 713 and Hey, 1989, nota 58, p. 241-242. 84 Isso foi feito com uma emenda ao cronograma, no art. V da Convenção para incluir que “os limites da pesca comercial da baleia para a estação costeira de 1986 e pelágica de 1985/6 e as subseqüentes deverão ser zero.” S. Lyster. “International Wildlife Law”. Grotius, 1985, p.19. estabeleceu recentemente novos procedimentos que incorporam os limites precautórios de captura para algumas espécies.85 Há também evidência de que, na interpretação da obrigação geral de conservar e gerenciar recursos vivos em alto-mar, o pensamento precautório está sendo mais amplamente aceito como o verdadeiro caminho a ser seguido, em caso de falta de evidências científicas adequadas. Por exemplo, a Comissão para a Conservação de Recursos Vivos Marinhos da Antártica (CCAMRL), criada no âmbito da Convenção86 de 1980, para coordenar a pesquisa de recursos marinhos antárticos e para adotar medidas apropriadas de conservação e gestão87, tem desenvolvido limites “precautórios” de captura de populações de peixes, dentro de sua jurisdição.88 De forma clara, o pensamento precautório também pode ser detectado nas Resoluções da Assembléia Geral de 1989, sobre Pesca com Redes de Arrasto, na Resolução da Assembléia Geral da ONU 44/225, intitulada “Pesca oceânica com rede de arrasto em grande escala e seu impacto nos recursos marinhos vivos dos oceanos e mares mundiais89” que invoca a “todos aqueles envolvidos na pesca pelágica em grande escala para cooperar para o aumento da coleta e da divulgação de dados científicos estatísticos ...” A Resolução recomenda um número de medidas para eliminar a prática, incluindo 85 Para uma discussão detalhada, ver M. C. Maffei. “The International Convention for the Regulation of Whaling” The International Journal of Marine and Coastal Law, 1997, n.12, p. 287-305 e Patricia Birnie. “Are Twentieth-Century Marine Conservation Conventions Adaptable to Twenty-First Century Goals and Principles?” The International Journal of Marine and Coastal Law, 1997, n.12, parte 1, p. 307-340 e parte 2 p. 488-532 . 86 Convenção para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos da Antártida, Camberra, 20 de maio de 1980, (1980) 19 ILM 837. 87 Essa é uma das mais novas comissões internacionais de pesca, e de acordo com R.R. Churchill, EEC Fisheries Law, 1987, p. 188, uma das mais avançadas em função de sua abordagem por ecossistema. Seus poderes incluem a fixação de quantidades a serem pescadas, designação das espécies a serem protegidas, temporadas de defesa, bem como regulamentação dos equipamentos. 88 Em 1991 ele estabeleceu, por precaução, um limite de pesca para Euphausia superba (CCAMLR Conservation Measure 32/X on Precautionary Catch Limitations on Euphasia superba in Statistical Area 48.) Um Grupo de Trabalho do Comitê Científico foi estabelecido para desenvolver “medidas precautórias para pesca do krill” com vistas a evitar a “expansão desregulada da pesca quando a informação disponível para a previsão da produção potencial era muito limitada”.Relatório do Grupo de Trabalho, para. 6.34. A iniciativa para esse trabalho foi a afirmação, na nona reunião da Comissão, pelo Japão, Coréia e a União Soviética que eles não se opunham, em princípio, à idéia de um limite precautório para a pesca do krill, mas que “a base quantitativa para um limite precautório sobre a pesca deveria ter justificativa científica baseada em estudos do Comitê Científico” (CCAMLR-IX, para. 8.7). 89 Reproduzido no texto FAO Legislative Study, No 47, supra nota 58, Anexo 2. Isso também condiz com o texto de outras Resoluções da Assembléia Geral da ONU e ações regionais contra redes de arrasto, incluindo a Convenção de Wellington. Ver também UNGA Res.46/215; Hey, nota 6, p. 465-467, e Brown, nota 20, p. 323-325. moratória em toda a pesca de arrasto em grande escala, a partir de 30 de junho de 1992. Todavia, tal medida: “não será imposta em uma região ou, se implementada, poderá ser revogada, sendo que as medidas de conservação efetiva e gestão devem ser tomadas sob análise de dados estatísticos. . . para prevenir o impacto inaceitável de tais práticas de pesca nessas regiões e assegurar a conservação dos recursos marinhos vivos dessas regiões.” Esta medida é precautória no sentido de que propõe ação para uma ameaça séria para o meio ambiente, enquanto existe ainda alguma incerteza científica como os impactos da pesca com rede de arrasto90. Mas é também precautória porque inverte o ônus da prova sobre aqueles que procurariam continuar a prática para demonstrar, usando uma “análise examinada estatisticamente”, que as medidas foram tomadas “para prevenir o impacto inaceitável” da pesca com redes de arrasto e para “assegurar a conservação de recursos marinhos vivos”. Neste sentido, seu efeito não é diferente do princípio da abstenção discutido anteriormente, no qual inverte o ônus de prova e também as exigências de prova (isto é, “usando análises estatísticas” em favor da conservação). Um grande marco na evolução de tais medidas foi a conclusão da Convenção de 1994 sobre Conservação e Gestão de “Recursos de Bacalhau”, no Mar de Bering Central (Convenção sobre o Mar de Bering)91. Esta convenção altamente inovadora provê que as partes se encontrarão anualmente para decidir os níveis de pesca permitidos e estabelecer quotas de captura. Também endossa uma abordagem precautória para a conservação da pesca, pois não permite pesca a não ser que a biomassa de Bacalhau da Bacia Aleutiana 90 Ver, por exemplo, os argumentos usados pelo Professor K. Sumi, no artigo “International Legal Issues Concerning the Use of Driftnets with Special Emphasis on Japanese Practices and Responses”. no FAO Legislative Study n. 47, id. Também W. Burke, M. Freeberg e E. Miles. “United Nations Resolutions on Driftnet Fishing: An Unsustainable Precedent for High Seas and Coastal Fisheries Gestão” Ocean Develpment and International Law, 1994, n.25, p. 127-186. 91 Assinada em Washington DC , em 16 de junho de 1994 pela China, Coréia, Federação Russa e os Estados Unidos. Japão(4 de Agosto) e Polônia (25 de Agosto) assinaram depois. Entrou em vigor no dia 08 de dezembro para a federação Russa, Polônia, China e Estados Unidos. Em 21 de dezembro de 1995, para o Japão e 04 de janeiro de 1996, para a Coréia. Para ver o texto, buscar The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 127. Para saber o contexto e comentários, ver também W.V. Dunlap. “The Donut Hole Agreement”. The International Journal ofMarine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 114-135. exceda 1.67 milhões Mt.92 Esta determinação deve ser cumprida conjuntamente pelas partes; será cumprida pelos Estados Unidos e a Federação Russa e, caso não seja assim, pelos Estados Unidos unilateralmente. Aparentemente, os Estados Unidos e a Federação Russa também concordaram, segundo o registro de uma discussão acompanhando o Plano da Convenção93 que, se a biomassa não chegar à meta de 1,67 Mt., eles também suspenderão a pesca em suas próprias zonas econômicas exclusivas e, de qualquer modo, levarão em consideração o nível de pesca no enclave ao estabelecer suas quotas de capturas anuais para as zonas econômicas exclusivas deles. 5. O desenvolvimento da precaução dentro das negociações sobre populações de peixes tranzonais e altamente migratórios Apesar dos exemplos isolados de regimes existentes, incorporando a precaução já discutida, o grande avanço para a inclusão de uma abordagem precautória para a conservação e gestão da pesca pode ser relacionado ao processo da CNUMAD94. Hewison mapeou habilmente a maneira pela qual a abordagem precautória chegou até a agenda de pesca, focalizando a forte oposição que encontrou em certos momentos.95 A FAO realizou uma Consultoria Técnica sobre Pesca em Alto-Mar, em setembro de 1992, após o endosso da abordagem precautória para a pesca com redes de arrasto pela Assembléia Geral, bem como sua inclusão explícita na Declaração da Rio 1992 e no capítulo 17 da Agenda 21. A conservação e a gestão da pesca em alto-mar foram questões conflituosas, nas negociações do CNUMAD96. Logo após a CNUMAD, uma 92 Ver Anexo à Convenção do Mar de Bering reproduzido por Dunlap, id., p. 134. Ver também A. O. Elferink. “Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: The Russian Federation's Attempts at Coastal State Control”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 1-18, p. 14. 93 A. O. Elferink. “Fisheries in the Sea of Okhotsk High Seas Enclave: The Russian Federation's Attempts at Coastal State Control”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1995, n. 10, p. 14. 94 Para a opinião do autor sobre o processo diplomático que conduziu à CNUMAD e uma análise preliminar do seu significado, ver D. Freestone. “The Road from Rio : International Environmental Law after the Earth Summit”. Journal of Environmental Law, 1994, n. 6, p. 193-218. Para uma análise mais detalhada do processo que levou ao Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Populações Altamente Migratórias, ver Freestone, nota 3. 95 G. J. Hewison. “The Precautionary Approach to Fisheries Gestão: an Environmental Perspective”. The International Journal of Marine and Coastal Law, 1996, n. 11, p. 301-332. 96 Para um debate geral sobre as questões pertinentes, ver Kwiatkowska, nota 3 . Kwiatkowska diz que as questões de populações tranzonais e altamente migratórias foram colocadas, após sua inclusão na agenda da CNUMAD, pela Resolução 44/228 de 1989 da Assembléia Geral da ONU, sob a competência do Grupo de Trabalho II do Comitê Preparatório da CNUMAD. Em sua Decisão 1/20 de 1990, por exemplo, o Comitê Preparatório da CNUMAD esclareceu áreas de ação relativas aos problemas da pesca em alto-mar, incluindo a necessidade de identificação de lacunas nos mecanismos existentes para a proteção e desenvolvimento de recursos marinhos vivos, mas também o impacto de novas tecnologias de pesca e Conferência Internacional sobre Pesca Responsável, com a presença de representantes, de aproximadamente, 49 Estados com 70% da capacidade de pesca mundial, foi presidida pelo Governo do México em Cancún, em maio de 1992. A Declaração de Cancún sobre Pesca Responsável97 solicitou que a FAO começasse o trabalho de desenvolvimento de um Código de Conduta Internacional para a Pesca Responsável. Apelou também para os Estados resolverem suas diferenças sobre uma proposta feita na quarta Prepcom da CNUMAD, em relação a uma Conferência internacional sobre pesca em alto-mar. Essa proposta tornou-se efetivamente o Parágrafo 17.49 do Capítulo 17 da Agenda 21, delegando a convocação de uma Conferência das Nações Unidas sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. A consultoria técnica da FAO deveria preparar os papéis técnicos para a Conferência98 e isto iniciou as discussões sobre o papel da precaução, na gestão da pesca em alto-mar. Depois de vigoroso debate99 e apesar do fato de a FAO considerar a posição que a abordagem precautória para a gestão da pesca estava compatível com a UNCLOS100, o Relatório do Projeto da Consultoria Técnica101 adotou uma interpretação mais modesta da abordagem precautória do que a que foi advogada, por exemplo, pelas ONGs..102 Ao fazer isto, refletiu as preocupações de Estados pesqueiros que estavam com medo de que um endosso indiscriminado do princípio da precaução levaria à suspensão de muitas atividades de pesca até que elas se mostrassem sustentáveis. Embora repleto de sofismas, o Relatório realmente mostrou que a Consultoria concordara em que a pesca deveria ser gerenciada com precaução, que a superexploração de recursos renováveis poderia ter sérias conseqüências sobre a população de peixes e sobre os ecossistemas oceânicos e técnicas de pesca em larga escala. Tratava do desenvolvimento de medidas apropriadas para a conservação, uso racional e desenvolvimento sustentável de pesca em alto mar. Em julho de 1991, uma reunião do Grupo de Peritos Técnicos sobre Pescas em Alto-Mar, sob os auspícios do Oficial da ONU para Questões Oceânicas e Direito do Mar (UNOALOS), produziu algumas orientações para ajudar os Estados a melhorarem o nível de cooperação, na conservação e gestão dessa atividade. 97 Anexo 2 dos Papers apresentados na Consulta Técnica sobre Pesca em Alto-Mar, FAO Fisheries Report, Roma, 1992, n. 484, p. 70. 98 Ver UN Docs. FAO F1/HSF/I'C/92/INF1-2 e TC/92/1-8, 1992. 99 No qual, por exemplo, Japão, Coréia, Noruega e a Federação Russa apresentaram “graves reservas sobre o uso de precaução como um instrumento de gestão da pesca” enquanto a Suécia ressaltou que ela tinha sido adotada na CNUMAD. Citado com referências detalhadas Hewison, nota 95. 100 “Legal Issues Concerning High Seas Fishing” FI/HSF/fC/92/8, FAO, June 1992. 101 Draft Report II, Consultas Técnicas sobre Pesca em Alto-Mar, FAO, 7-15 de setembro 1992. 102 Por exemplo, Hewison relatou que o Greenpeace recomendou que o Draft Report fosse rejeitado, pois não refletia a evolução das práticas dos Estados, nota 95, p 310. que a gestão precautória poderia incluir, mas não necessariamente exigir, uma moratória sobre a pesca. Aceitou-se, também, que as decisões de gestão deveriam ser baseadas nas melhores informações científicas, como foi determinado pela Convenção sobre o Direito do Mar, e que as medidas precautórias de gestão tomadas sem dados científicos suficientes deveriam ser revisadas ou revogadas, quando novas informações se tornassem disponíveis.103 Após as primeiras sessões de negociação sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, em julho de 1993, ficou mais claro que seria possível adotar uma visão da abordagem precautória, o que não significaria a imposição de moratória às operações de pesca, exceto em circunstâncias excepcionais. Esta visão refletiu-se nas considerações finais do diretor, embaixador Satya Nandam104, tanto quanto no texto da negociação, que surgiu da reunião. Como resultado, a FAO foi incumbida de preparar um Relatório sobre a aplicação da abordagem precautória para a segunda sessão da Conferência, realizada em março de 1994. O documento da FAO, “Abordagem Precautória para a Pesca com Referência às Populações de Peixes Tranzonais e Populações de Peixes Altamente Migratórios105 formou a base para as discussões subseqüentes. Apesar do teor real ter sido continuamente atualizado, até a aprovação do acordo em agosto de 1995, fundamentou a abordagem precautória, como contida no artigo 6 e Anexo II do Acordo. 6. O Acordo sobre as Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios de 1995 O texto final do Acordo tem 50 artigos e dois anexos.106 Como foi visto, o Acordo é relevante para a interpretação e a aplicação de um número de cláusulas-chave da Convenção sobre o Direito do Mar, principalmente seus artigos 63 (2), 64 e 116-120. Todavia, como Anderson salienta, o Acordo é um documento “independente” no sentido de que o Estado pode tornar-se uma parte do Acordo sem se tornar uma parte da 103 Draft Report, nota 101, parágrafo. 65-67. Declaração Final, 30 de julho de 1993, citada por Hewison, nota 95, p. 310. 105 A/CONF.164/INF/8, 26 de janeiro de 1994, mencionado por Jean-Pierre Levy e Gunnar G. Schram (eds.) “United Nations Conference on Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks, Selected Documents”. 1996, p. 555. 106 O Acordo foi adotado pelas partes negociadoras sem votação (ou seja, por consenso) no dia 4 de agosto de 1995 . 104 Convenção sobre o Direito do Mar e vice-versa107 Todavia, o Acordo e a Convenção sobre o Direito do Mar estão fundamentalmente inter-relacionados, de forma que um pode ser usado para informar a interpretação do outro.108 De fato, a conclusão do Acordo constitui uma vitória diplomática considerável para aqueles Estados que pressionaram por um tratado cogente em vez de uma declaração ou código109. Contudo, embora o Acordo formule princípios básicos e introduza um número de conceitos inovadores importantes, seu sucesso ainda dependerá de como e até que ponto será implementado por regimes de pesca regionais e de espécies específicas.’ 7. As Novas Abordagens no Acordo As novas abordagens do Acordo são claras no Preâmbulo tanto quanto as cláusulas iniciais relacionadas à conservação e gestão (Partes I e II). A linguagem do preâmbulo liga sua origem não apenas à Convenção sobre o Direito do Mar110, mas ao capítulo 17 da Agenda 21.111 Essa última é essencial para a análise atual porque o caput para todo o capítulo 17 e o parágrafo 17.1, inter alia, exigem abordagens que estão “integradas no conteúdo e são precautórias e antecipatórias no âmbito”. Após reconhecer a necessidade de mais medidas efetivas para a conservação e gestão de populações de peixes tranzonais e altamente migratórios, o Preâmbulo indica que a gestão de pescas em alto-mar é inadequada em muitas áreas: alguns recursos são superexplorados, existem problemas de pesca não regularizada, problemas de supercapitalização, frotas excessivamente grandes, uso de bandeiras diferentes para escapar do controle, equipamentos insuficientes de pesca seletiva, banco de dados não confiável (e, presumidamente, os dados também) e uma cooperação insuficiente entre os Estados. Embora uma discussão detalhada de cada uma dessas questões já tenha sido tratada por outros textos, uma abordagem de questões mais amplas é necessária para apreciar o contexto no qual uma abordagem precatória poderia ser examinada. Como já 107 Ver Anderson, nota 14. Todas as referências abaixo são do Acordo de 1995 sobre Populações Tranzonais e Altamente Migratórias, exceto nos casos indicados. O Art. 4 confirma que o Acordo deve ser interpretado e aplicado de maneira consistente com o Direito do Mar e, portanto, não enfraquece a Convenção sobre o Direito do Mar. 109 Houve pressões para adotar esta posição até a sessão final 110 Parágrafo 1°, Preâmbulo. 111 Parágrafo 5°, Preâmbulo. 108 foi discutido, e como também indica a evolução da abordagem no contexto da Conferência de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios, a precaução não é um conceito independente. Ele exige o estabelecimento de certos parâmetros definidos e a identificação de riscos definitivos e de valores.112 Em particular, é importante lembrar que os objetivos do Acordo não estão definidos em termos da maximização do alimento para consumo humano, mas, pela primeira vez em um Acordo internacional desse tipo, a conservação está definida em termos de proteção do ecossistema e proteção da diversidade biológica. Na exposição número sete foi encontrada a primeira e mais significativa afirmação da importância ambiental das questões de pesca internacional. Declara uma aspiração para melhorar os tratados prévios de gestão da pesca, reconhecendo a necessidade independente de proteger o meio ambiente marinho por meio da proteção de sua biodiversidade, manutenção da integridade de ecossistemas marinhos e minimização de risco de longo prazo ou os efeitos irreversíveis de atividades de pesca. Esta afirmação, embora preambular, de que o Acordo de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios é o primeiro acordo de pesca global a reconhecer, em nível primário, o significado ambiental de atividades de pesca: não como uma questão para ser considerada, por exemplo, o cálculo de Pesca Total Permitida (TACs), mas uma questão independente em seu direito próprio. As implicações do reconhecimento desses conceitos-chave são detalhadas no Acordo. Todavia, é esta afirmação e o desenvolvimento das obrigações substantivas do Acordo que fornecem o contexto para nossa compreensão da maneira pela qual a abordagem precautória será aplicada pelo Acordo. O artigo 2 indica que o objetivo do Acordo é “assegurar a conservação a longo prazo e o uso sustentável de Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios por meio da implementação efetiva das cláusulas relevantes da Convenção”. O uso sustentável – consoante a Agenda 21 – é um desenvolvimento significativo do “rendimento ótimo sustentável”, no artigo 2 da Convenção sobre a Pesca em alto-mar, de 112 Essa idéia foi muito bem elaborada por Nollkaemper, nota 43. 1958, e pode ser visto como uma leve modificação do termo “rendimento máximo sustentável”, no artigo 119 (1) (1) da Convenção sobre o Direito do Mar113 . Essencialmente, no curso de uma abordagem holística do ecossistema, o artigo 3 indica não somente que o Acordo se aplica à conservação e à gestão de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios em Alto-Mar, mas também que os artigos 6 e 7 serão aplicados para a conservação e a gestão das medidas relacionadas a tais populações de peixes, enquanto estiverem em águas sob jurisdição nacional. Os Estados costeiros também são obrigados a utilizar os princípios do Acordo, como foi fixado no artigo 5, quando estiverem gerenciando os cardumes dentro de tais águas. O artigo 5 contém os princípios gerais de gestão de populações de peixes; o artigo 6, o princípio da precaução e o artigo 7 estabelece as exigências para a compreensão entre os Estados costeiros e Estados pesqueiros em águas distantes sobre a implementação de metodologias de conservação e gestão dentro das áreas de jurisdição nacionais e, além delas, em todas as pescas regionais. O artigo 5 identifica a estrutura de princípios gerais que os Estados costeiros e Estados pesqueiros em águas distantes (DWFNs), pescando em alto-mar, devem respeitar, agindo em base cooperativa. Aqui, a ênfase está em um equilíbrio próprio entre a sustentabilidade e a utilização dos recursos. O que é importante sobre esta cláusula central do Acordo é que, como pode ser visto a partir do texto114, sete dos doze parágrafos se relacionam com a sustentabilidade ambiental e a proteção do ecossistema, baseados na precaução e na melhor evidência científica, enquanto um parágrafo lida com 113 Embora isso não seja tão importante, pois o máximo de pesca sustentável é usado no art. 5 do Acordo, como uma “utilização ótima.” 114 Conforme art. 5 do Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórias, é exigido dos Estados: (a) adotar medidas para assegurar a sustentabilidade a longo prazo e promover o objetivo de sua utilização ótima; (b) assegurar que tais medidas sejam baseadas na melhor evidência científica disponível e sejam estabelecidas para restaurar os níveis da população capazes de trazer a melhor produção sustentável, definida em função de fatores econômicos e ambientais relevantes; (c) aplicar o princípio da precaução; (d) adotar, quando necessário, medidas de conservação e de gestão para outras espécies do mesmo ecossistema, ou dependentes ou associadas com as populações em questão, com vistas a manter ou restaurar populações dessas espécies acima dos níveis nos quais sua reprodução pode ser seriamente ameaçada; (e) adotar, quando necessário, medidas de conservação e gestão para espécies do mesmo ecossistema; (f) desenvolver e usar equipamento e técnicas seletivas e medidas que sejam seguras em termos ambientais economicamente viáveis; (g) proteger a biodiversidade marinha; (h) tomar medidas para prevenir ou eliminar a superpesca e a capacidade de exercer a superpesca e assegurar que os níveis da atividade pesqueira não excedam os níveis do uso sustentável de recursos da pesca; (1) implementar medidas de conservação e gestão mediante um monitoramento de controle efetivo e vigilante. pescadores de subsistência e artesanais, dois, com coleta de dados e apenas um trata da implementação. A preocupação central deixou de ser o consumo humano, tão fortemente expresso na Convenção sobre a Pesca, de 1958.115 O artigo 6 elabora o princípio da precaução, ou, como é chamada, a “abordagem precautória”116. Como foi observado, é a primeira vez em que a precaução foi especificamente mencionada em uma Convenção sobre a pesca internacional ou aplicada à Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios. O conceito já foi bem aceito em uma ampla variedade de tratados ambientais marinhos117. Foi aceito, na prática, em acordos recentes, tais como no Acordo do Mar de Bering de 1994118 e na implementação de Acordos, tais como CCAMRL119 e a Comissão Internacional de Baleias120. O teor do artigo 6 é coerente com a aplicação do princípio conforme a Agenda 21 e a Declaração do Rio, embora represente um compromisso das exigências iniciais de alguns Estados costeiros. O artigo 6 exige que a abordagem precautória seja aplicada às medidas de conservação, gestão e exploração, com vistas a preservar o meio ambiente marinho e a proteger seus recursos vivos. Por razões anteriormente discutidas, não pode ser dito, como numa interpretação121 mais extrema, que a invocação da precaução no artigo 6 conduz à inversão do ônus da prova em favor da conservação. Seria politicamente inaceitável para os Estados pesqueiros acatar uma definição de precaução que vincula a suspensão da pesca até que os dados científicos permitam uma exploração dos recursos em questão. O temor de certos Estados pesqueiros de que a aceitação do princípio da precaução resultasse numa moratória ficou patente nas discussões das Consultas Técnicas da FAO em 1992 e nas Rodadas de Negociação da Conferência. A formulação existente 115 Art. 2, 1958 Convenção sobre a Pesca, nota 19. O texto usa a palavra “abordagem” e não “princípio”. Isso segue a terminologia do Princípio 15 da Declaração do Rio de1992. Ver E. Hey, supra nota 37, que sugere que a abordagem só pode ser definida com relação ao Princípio. Essa opinião foi defendida por outros autores, incluindo A.C. Kiss, em “Will the Necessity To Protect the Global Environment Transform the Law of International Relations?” Josephine Onoh Memorial Lecture, University of Hull Press, 1993. Para o histórico dessa questão, ver Freestone, nota 94. 117 Para um debate sobre a importância disso, ver, por exemplo, Freestone e Hey, neste livro. Ver também Hewison, nota 95, e as demais fontes citadas por ele. 118 Ver texto nota 91 . 119 Ver texto nota 86. 120 Ver texto supra nota 82. 121 Ver, por exemplo, o Procedimento de Justificação Prévia, da Convenção de Oslo, analisado em Freestone, nota 29, p. 30-33 . 116 estabelece, entretanto, que os “Estados devem ser mais cautelosos quando a informação for vaga, não confiável ou inadequada” e que “a falta de informação científica adequada não deve ser usada como uma razão para adiar ou deixar de tomar medidas de conservação e gestão.”122 O artigo 6(3) do Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios fixa a maneira como os Estados implementarão a abordagem precautória. Devem: (a) melhorar o processo decisório para a conservação e gestão da pesca, obtendo e compartilhando as melhores informações científicas e implementando as técnicas melhoradas para lidar com riscos e incertezas; (b) aplicar as diretrizes fixadas no Anexo II e determinar, com base nas melhores informações científicas disponíveis, pontos referenciais específicos ao cardume e à ação a ser tomada, se eles aumentarem demais; (c) levar em consideração, inter alia, incertezas relacionadas ao tamanho e produtividade das populações de peixes, pontos referenciais, condição do cardume em relação a esses pontos, níveis e distribuição da mortalidade dos peixes, e o impacto das atividades sobre outras espécies não desejadas e associadas ou dependentes, tanto quanto as condições socioeconômicas, oceânicas e ambientais existentes ou previstas; (d) desenvolver os programas de coleta de dados e pesquisa para determinar o impacto da pesca sobre outras espécies não desejadas e associadas ou dependentes e seu meio ambiente, e adotar os planos necessários para assegurar a conservação de tais espécies e proteger os habitats que merecem preocupação especial. Estas exigências, mesmo que não anulem o ônus normal da prova, têm um impacto considerável na maneira que tais questões serão percebidas no futuro. É útil explorar algumas das questões de prova que surgem. Os artigos 61 (2) e 119 (1) (a) da Convenção sobre o Direito do Mar demandam o uso da “melhor evidência científica disponível”, enquanto o artigo 6 (2) refere-se à “melhor informação científica disponível” e o artigo 6 (3) (b) utiliza a expressão “melhor informação científica 122 Art. 6(2), Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. disponível”. Existem claramente alguns desejos deliberados de evitar o uso do termo “evidência”, talvez para evitar uma abordagem de ônus da prova. Todavia, visto que o Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios declara estar preocupado com a implementação das cláusulas da Convenção sobre o Direito do Mar 123, de que modo as cláusulas do novo Acordo mudam nossa percepção sobre como as cláusulas de conservação e gestão da pesca em alto-mar, nessa Convenção, deveriam ser interpretadas? Argumentou-se que a obrigação primária de conservação está presente no artigo 116 da Convenção sobre o Direito do Mar. Essa obrigação de conservação deve ser relembrada na análise do artigo 119 da mesma Convenção, segundo a qual um Estado está individual ou conjuntamente “determinando a pesca permitida e estabelecendo outras medidas de conservação para os recursos vivos de alto-mar”. Então, a obrigação correspondente para agir “com a melhor evidência científica disponível124 não pode realmente operar como um padrão de prova, pois a “disponibilidade” é um conceito muito flexível. Entretanto, pode operar como uma exigência de prova para assegurar que as decisões sejam guiadas pela ciência. Essa exigência talvez seja similar às exigências modernas da Melhor Tecnologia Disponível, na legislação sobre poluição. No passado, uma questão-chave da interpretação foi se, na falta de evidência científica convincente (ou seja, usando a melhor evidência científica disponível – que pode não ser convincente), as medidas deveriam ser elaboradas para assegurar a continuação da exploração ou a conservação. Deveria o ônus da prova estar a favor da exploração ou da conservação? Argumentei no passado que uma análise dos artigos da Convenção sobre o Direito do Mar, que ditam que a obrigação primária é a conservação, mostra que as cláusulas dessa Convenção deveriam ser lidas para colocar o ônus da prova sobre o agente125. Conseqüentemente, os Estados seriam obrigados a tomar medidas para manter ou restaurar populações em níveis que possam produzir o máximo rendimento sustentável. Então, a evidência científica deve ser usada para mostrar que a pesca satisfaz esses objetivos e não o contrário. 123 O título refere-se explicitamente à natureza implementatória do Acordo frente a frente com a Convenção sobre o Direito do Mar. 124 Art 119(1)(a), Convenção sobre o Direito do Mar. 125 D. Freestone. “Requirements of Proof for Conservation in High Seas Fisheries”. Paper for Legal Office, FAO, 1992; Freestone e Hey, neste livro Na pesca, como em áreas de monitoramento ambiental, os cientistas trabalham com base em probabilidades. Todavia, em casos de incerteza científica, se a obrigação primária for a conservação e a manutenção de populações de peixes em lugar da simples exploração não-sustentável, então a exigência para utilizar a melhor evidência científica disponível parece ser uma regra de evidência e não de um padrão de prova – haja vista que a palavra “melhor” não pode significar que a evidência por uma visão ou outra é intrinsecamente melhor. 126 Também parece difícil sugerir que a palavra “científico” seja usada de maneira parcial. Deve ser correto dizer que a palavra “científico” significa a coleta de dados, de acordo com critérios objetivos rigorosos que corresponderiam a uma exigência de “padrão mínimo”. A “disponibilidade”, todavia, permanece um conceito essencialmente pragmático. Conseqüentemente, mesmo se a evidência adequada não for disponível, as obrigações gerais da Convenção sobre o Direito do Mar permanecem e a obrigação primária aplicável seria a conservação. Como podemos ver agora com o Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios, é mais do que um interesse acadêmico que tal posição esteja independentemente sustentada, com base no teor do texto da própria Convenção sobre o Direito do Mar. Pode ser argumentado que a própria Convenção já forneceu apoio significativo para a crescente e ampla aceitação do princípio da precaução, em questões de pesca em altomar. Todavia, o impacto do Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios pode ser questionado por ser uma confirmação dessa interpretação de cláusulas relevantes da Convenção sobre o Direito do Mar. No entanto, seria difícil argumentar que as cláusulas existentes na Convenção detectariam um curso particular da ação precautória.126 Então, concluímos também que o Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios não adota uma abordagem “absolutista” para a precaução (nenhuma atividade seria permitida até que a ciência fosse clara). Ela apresenta, no entanto, uma agenda precautória na qual o sistema 126 Claro que a exceção pode ser uma decisão de impor uma moratória onde um colapso total de uma população específica já ocorreu. Mas tal ação deve ser discutida para ser preventiva, antes de ser precautória. de valores está explicitamente determinado (artigo 6) e uma metodologia, para estabelecer as estratégias precautórias de gestão (Anexo II). Todavia, o significado da introdução da precaução, mesmo não estando em sua acepção mais forte, não deve ser menosprezado. Existe a obrigação para que os Estadospartes sejam cautelosos e utilizem os procedimentos presentes no Anexo II. Isto representa uma mudança maior na abordagem tradicional da gestão da pesca que até recentemente era reativa, quando os problemas atingiam níveis sérios.127 O novo regime permitirá aos Estados pesqueiros, organizações de pesca regionais e internacionais justificarem mais facilmente medidas pró-ativas. Na verdade, a partir daí, tais medidas seriam embutidas no sistema deles. Os padrões de gestão de cardumes devem ser tratados com precaução, levando em conta fatores, como incertezas relativas ao tamanho e produtividade de cardumes, níveis e distribuição da mortalidade de peixes e o impacto de atividade de pesca em espécies associadas ou dependentes, incluindo condições128 oceânicas socioeconômicas e ambientais, existentes e previstas. A aplicação da abordagem precautória para capturar peixes representa um verdadeiro desafio129. A metodologia de precaução no Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios está centrada no uso de pontos de referência. Os pontos referenciais estão identificados como necessários para assegurar a conservação e a gestão de espécies e estão baseados na coleta de dados e nos programas de pesquisa mencionados no artigo 6º (3) (d) e nas Diretrizes para Aplicação dos Pontos Referenciais Precautórios na Conservação e Gestão de Populações de Peixes Tranzonais e Populações de Peixes Altamente Migratórios, presentes no Anexo II do Acordo. Essas estratégias que prescrevem os limites biológicos para a pesca reduzem o risco de que tais limites sejam ultrapassados e lidam com situações nas quais a informação sobre espécies específicas é insuficiente, mediante pontos referenciais provisórios. Caso os pontos de precaução sejam alcançados, não devem ser excedidos. Se forem excedidos, então os Estados devem adotar ação imediata de acordo com o Anexo II do Acordo de Conservação e 127 Freestone e Hey, neste livro Art. 6(3)(c), Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórias. 129 Ver, por exemplo, S. Garcia. “The Precautionary Principle: Its Implications in Capture Fisheries Management”. Ocean and Coastal Management, 1994, n.22, p. 99-126; Hewison, nota 95 128 Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios. À luz desses critérios, se a pesca for realizada acima do limite da precaução, quando a informação for vaga ou inadequada, então deve ser caracterizada como superpesca.130 O mesmo se aplica quando os pontos referenciais da precaução forem alcançados e a pesca não for interrompida. Naturalmente, até que sérios esforços sejam envidados para estabelecer e implementar tais pontos de referência, será difícil estimar a utilidade prática do Anexo II. Todavia, a especificidade da linguagem do Anexo II e a variedade de circunstâncias nas quais ele poderia teoricamente ser aplicado dão razão para o otimismo que o regime do Anexo II trará melhoras significativas para regimes comparáveis existentes, a partir de uma perspectiva de gestão e conservação. Deve ser dito, no entanto, que o Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios não esclarece as implicações quando os pontos referenciais são excedidos; tais questões, juntamente com a fixação dos pontos referenciais, são deixadas para que o Estado aja por meio de organizações regionais de pesca. As duas questões devem ser consideradas como sérias críticas para a inovadora metodologia da precaução que o Acordo apresenta. Davies e Redgwell131 retrataram a metodologia como semáforos. Dá sinal verde e amarelo, mas não dá sinal vermelho – ou seja, o sistema indica quando tudo vai bem ou quando os perigos são ameaçadores, mas não proíbe automaticamente a pesca quando os pontos referenciais são alcançados. A interrupção ou suspensão das operações de pesca – a ação com “sinal vermelho” - ainda tem de ser determinada em uma base ad hoc pelo Órgão132 regional próprio da pesca. As razões disso são baseadas na preocupação de alguns negociadores de que o reconhecimento da abordagem precautória resulte em moratória automática em alguns casos de pesca, como já foi discutido. Em relação ao estabelecimento dos pontos referenciais da precaução, o Anexo II deixa uma grande parte para ser definida pelo Órgão regional da pesca. Além da abordagem da FAO apresentada, diversos autores desenvolveram estruturas teóricas para 130 Esta é a opinião de Freestone e Makuch, nota 2. P.R. Davies e C . Redgwell. “To Conserve or to Exploit: The International Regulation of Straddling Fish Stocks”. British Yearbook of International Law, 1996, n. 67, p. 199-275. 132 As agências regionais têm liberdade para adicionar esse elemento. 131 abordagens precautórias para a pesca.133 Hewison analisou os principais pontos de contraste. Eles relacionam um número de questões-chave para as quais Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios provê uma metodologia básica. Incluem: a ação para ser adotada na falta de dados134 suficientes, um procedimento135 de gestão baseado cientificamente, o cálculo de níveis136 referenciais de populações de peixes, cláusulas137 ecológicas protetoras (safeguards) e processos138 decisórios abertos e participativos. Trabalhos de cooperação entre a FAO e a Comissão de Pesca Sueca para o Desenvolvimento de Diretrizes na Abordagem Precautória Para Pescas139 desenvolveram uma abordagem de gestão compatível com as cláusulas do Acordo. 8. Conclusão Pode-se argumentar que o maior significado do Acordo de Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios é sua aceitação inequívoca de uma dimensão ambiental para o direito de pesca internacional. Isso já foi defendido aqui, como em outros textos.140 A metodologia da precaução que o Acordo desenvolve é uma parte importante dessa agenda. Tal metodologia também é extremamente importante para a operacionalização do próprio princípio da precaução. Escrevendo, três anos atrás, Freestone e Hey defenderam que depois da ampla aceitação do princípio, o maior desafio para o direito ambiental seria operacionalizar o princípio em metodologias operacionais e que “o desafio de 133 Ver Garcia, supra nota 129; Cooke e Earle, nota 27 . Ver o debate no texto nota 122. Também o art. 6(2): “A ausência de informação científica adequada não deve ser usada como razão para adiar ou deixar de tomar medidas de conservação e gestão” e o art. 6(3) (d) sobre o desenvolvimento da coleta de dados e de programas de pesquisa. Note-se também que o art. 6(6) “Para pescas novas ou exploratórias, os Estados devem adotar, o mais cedo possível, medidas cautelosas de conservação e gestão [as quais] devem vigorar até que haja dados suficientes para permitir análise do impacto das pescarias na sustentabilidade das populações a longo prazo ” 135 Ver Hewison, nota 95, p. 323-325 .O Art. 6(3) procura exigir o uso da melhor informação científica. Ver também art. 14 e o FAO Guidelines citado nota 139. 136 Aqui também há uma certa discrepância entre aqueles que defendem uma produção dentro da “variação natural” da abundância e a abordagem tradicional da “produção máxima sustentável”. consagrada no parágrafo 7 do Anexo II, mas outras espécies dependentes e fatores do ecossistema também são parte da equação. (ver art. 6(3) (c)). 137 Ver arts. 6(1) e 6(5), e também os impactos de um “fenômeno natural”. no art. 6(7) . 138 Aqui o Acordo traz inovações; ver art. 12 sobre “Transparency in activities of sub-regional and regional fisheries management organisations and arrangements” 139 Abordagem Precautória para a Pesca. FAO Fisheries Technical Paper 350/1, 1995. 140 Freestone e Makuch, nota 2. 134 implementar o princípio da precaução com a mesma força de sua visão original não pode ser facilmente subestimado”141 A metodologia da precaução do Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios é um passo importante na expansão do princípio e se aplica a um novo campo da atividade humana. Não é a precaução em sua forma mais radical e absolutista.142 Não proíbe a atividade até que a ciência seja clara nem transfere o ônus da prova da exploração para a conservação. Pelas razões políticas que já foram discutidas, o Acordo nem mesmo menciona o uso de moratória como resposta quando os pontos referenciais de gestão são ultrapassados. Na verdade, talvez esteja aberto a críticas por não fazê-lo. Todavia, isso significaria não ter entendido a natureza radical da metodologia que adota. Em vez de ser puramente reativo, tornou-se pró-ativo. Os pontos referenciais foram estabelecidos de antemão (e ajustados à luz da melhor informação científica). As estratégias de gestão de pesca foram então fixadas, para assegurar que os pontos referenciais não serão excedidos.143 Se forem alcançados, medidas de conservação serão adotadas “para facilitar a recuperação144 dos cardumes. Estas poderiam, é claro, incluir a moratória (como aconteceu no Mar de Bering e do Noroeste Atlântico), mas não estão limitadas por nenhuma medida específica ou nenhum outro tipo de medida. O desafio último para o sistema prescrito no Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios é o fato de que deve ser implementado por organizações das espécies de peixes e regionais, bem como em acordos em todo o mundo. Se houver uma falha no Acordo, será uma falha endêmica em todo o sistema para a regulação de populações de peixes em alto-mar. A este respeito, o Acordo fornece uma orientação importante para o futuro. O reconhecimento da importância da dimensão ambiental nas questões de pesca em alto-mar pode ser vista como um reconhecimento do interesse da comunidade ambiental, na manutenção de ecossistemas marinhos e de sua diversidade biológica. O direito internacional evoluiu muito desde a década de 1950, quando a maximização do 141 Freestone e Hey, neste livro, p. 268 . “Absolutista” no sentido que Nollkaemper usou o termo, ver nota 43. 143 Ver Anexo II, Acordo sobre Populações de Peixes Tranzonais e Altamente Migratórios. 144 Para 5, Anexo II, idem. 142 alimento foi vista como uma questão-chave para o reconhecimento da importância dos ecossistemas marinhos e de sua diversidade biológica. Essas preocupações refletem os verdadeiros interesses da comunidade. Seria irreal afirmar que a conservação e a gestão atual de populações de peixes poderiam ser formalmente classificadas como questões de “preocupação comum da humanidade”, como, por exemplo, foram consideradas as mudanças climáticas globais em 1988, pela Resolução145 da Assembléia Geral das Nações Unidas. Todavia, como Boyle salientou em relação à atmosfera, a importância dessa designação foi por ter sido assinalada como uma área “sobre cuja proteção todos os Estados têm um interesse legal e todos os Estados têm um dever de preservar contra qualquer dano sério146 e sobre um regime com base no tratado precisava ser desenvolvido. Num sentido mais restrito, o Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios assumiu essa importância porque redefiniu o papel dos interesses de comunidades nas populações de peixes em alto-mar ou, pelo menos, expandiu os interesses que a Convenção sobre o Direito do Mar conjeturou. A liberdade de pesca não é mais o interesse dominante da comunidade, sujeito a certas condições ambientais mal definidas. A conservação de ecossistemas marinhos assumiu agora o status independente como uma consideração básica, nas atividades de pesca.147 A abordagem precautória é um componente essencial desse novo paradigma. Ela permanecerá se os órgãos regionais encarregados de sua implementação forem capazes de “manter a força de sua visão original”. Todavia, esse novo instrumento constitui um avanço significativo nas modalidades disponíveis para equilibrar as exigências conflitantes de utilização e conservação. A própria sobrevivência de muitas pescas comerciais pode depender disso. Embora muitos argumentem que uma formulação mais radical da abordagem seria mais apropriada148, o mais importante é que as orientações básicas da abordagem acontecem na prática de regimes de gestão de pesca em todo o mundo, para que estes regimes possam reagir adequadamente às ameaças presentes e 145 Assembléia Geral da ONU Res. 43/53 “Protection of Global Climate For Present and Future Generations of Mankind”. reproduzido por Churchill e Freestone (eds .). nota 29, p. 240 146 Alan E. Boyle. “International Law and the Proteção of the Global Atmosphere: Concepts, Categories and Principles”. in Churchill e Freestone (eds.). nota 29, p. 7-19, p. 19. 147 Essa opinião foi melhor desenvolvida em Freestone e Makuch, nota 2. 148 Ver argumentos acima e de Hewison, nota 95. futuras. Tal objetivo não seria talvez mais bem servido por um regime global excessivamente proibitivo, que poderia excluir a participação de muitos Estados. Decisões firmes terão ainda de ser tomadas, mas isto acontecerá dentro das organizações regionais de pesca. Há, contudo, mais do que uma simetria intelectual no fato de que, no texto do instrumento global, os negociadores do Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios decidiram esboçar a abordagem precautória, cautelosamente. Referências Bibliográficas ANDERSON, D. H. The Straddling Stocks Agreement of 1995 -‐ An Initial Assessment, International and Comparative Law Quarterly, n. 45, 1996, p. 463-‐475. BALTON, D. A. The Compliance Agreement. In: E. Hey. Developments in International Fisheries Law. Boston: Kluwer Law International, 1995. BIRNIE, P. W. Are Twentieth-‐Century Marine Conservation Conventions Adaptable to Twenty-‐First Century Goals and Principles? The International Journal of Marine and Coastal Law, n.12, 1997, Part 1, p. 307-‐340 e Part 2 p. 488-‐532 . BIRNIE, P. W. 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Como Kiss, Freestone e Hey, Sadeleer e outros demonstraram em seus capítulos neste livro, o princípio da precaução não é uma norma dogmática, imposta diretamente, mas um princípio, que guia formas de agir, tanto dos administradores públicos, quanto dos operadores jurídicos. Além de ser um princípio, é um princípio recente do direito ambiental, que está em processo de expansão e consolidação rápida, já tendo sido inclusive positivado em diversas normas nacionais e internacionais, mas que ainda luta por sua aceitação nas mais diversas esferas de ação jurídica e política.1 Como vimos, certos tratados internacionais o consideram apenas como uma “abordagem”. Ainda que não existe uma definição precisa de abordagem ou enfoque, estes seriam conceitos mais amenos em relação ao de princípio. O princípio precaução, que trataremos por princípio ambiental, existente tanto na ordem jurídica brasileira, está ainda em consolidação no direito internacional público. Ele está inserido no princípio do desenvolvimento sustentável, como bem afirma Kiss2. Ele se apresenta como um instrumento conciliador entre o direito internaiconal ambiental e o direito internacional econômico. É um ponto de resistência e de embates entre os diversos atores internacionais, principalmente entre os países exportadores de alimentos e de produtos para o consumo humano, como o Brasil e os Estados e a União Européia. Sua implementação no plano jurisdicional mostra o quanto a conciliação entre estes dois ramos praticamente herméticos do direito internaiconal é espinhosa do ponto de vista material. A análise da sua consideração por diferentes atores contribui para a identificação da evolução do seus status jurídico, assim como da sua concretização em diferentes * Marcelo Varella é Doutor em Direito da Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne. É professor do Centro Universitário de Brasília, onde coordena o Curso de Mestrado em Direito das Relações Internacionais. Pesquisador do CNPq. 1 Ver os capítulos de Ana Platiau e Olivier Godard ao presente livro. 2 Ver o capítulo de Alexandre Kiss ao presente livro. tribunais. O objetivo do presente capítulo é portanto analisar comparativamente a construção jurisdicional do conteúdo do princípio da precaução em diferentes instâncias internacionais. A questão da aceitabilidade do princípio da precaução pela Organização Mundial do Comércio é um bom indicador, quando se pretende comparar a coerência entre as normas comerciais e ambientais, sobretudo se nós a confrontamos com a interpretação que se dá ao mesmo princípio pela Corte Internacional de Justiça, pela Corte de Justiça das Comunidades Européias e pelo direito de países mais resistentes à implementação do princípio no direito internacional ambiental, como os Estados Unidos3. A Organização Mundial do Comércio, a Corte Internacional de Justiça e a Corte de Justiça das Comunidades Européias já tiveram a oportunidade de se pronunciarem sobre a aplicabilidade do princípio da precaução. Interessante dizer que os objetos discutidos são perfeitamente comparáveis. O que se pretende analisar neste capítulo é saber se as três organizações internacionais incluíram ou não o princípio na sua interpretação do direito internacional e, em caso positivo, como se considera o princípio da precaução. Em seguida, pretendemos observar como os Estados Unidos entendem o princípio da precaução, para observar que muito embora este país seja resistente ao avanço do princípio da precaução no direito internacional econômico, no direito norteamericano, ele é um princípio que vem se consolidando há vários anos. Com este propósito, nós examinaremos algumas decisões das organizações internacionais, começando pela Organização Mundial do Comércio, para em seguida analisar a Corte Internacional de Justiça, estudando em seguida a Corte de Justiça das Comunidades Européias, buscando uma análise comparativa. Em uma segunda etapa, veremos alguns casos do direito norte-americano, nos quais o princípio da precaução é claramente reconhecido, para então tecer algumas considerações sobre a implementação do princípio no direito internacional4. 1. O princípio da precaução no direito internacional 3 Uma análise da situação brasileira é feita neste livro por Rios. Poderíamos também tratar de outros princípios ambientais, como o princípio da prevenção ou poluidorpagador. No entanto, estes outros princípios já estão consolidados na teoria jurídica, assim como nos tratados e na jurisprudência internacional, logo, não são interessantes para uma análise jurisprudencial comparativa. 4 1.1. O Órgão de Apelações da Organização Mundial do Comércio O Órgão de Apelações teve três ocasiões para emitir suas considerações sobre o princípio da precaução, nos casos: Austrália – medidas que afetam a importação de salmão (salmão)5; Comunidades Européias – medidas concernentes à carne e aos produtos da carne (hormônios)6e Japão - medidas que afetam os produtos agrícolas (produtos agrícolas).7 A evolução da percepção deste princípio pela Organização Mundial do Comércio pode ser encontrada no interessante capítulo de Hélène Ruiz-Fabri neste livro. O princípo de precaução foi invocado, a cada vez, no âmbito do acordo sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias (Acordo SPS).8 Para analisar estas decisões, nós vamos distinguir dois problemas, o reconhecimento do princípio da precaução e o seu conteúdo. i) O reconhecimento indireto do princípio da precaução As primeiras discussões trataram do reconhecimento ou não do princípio da precaução como princípio jurídico, depois como princípio presente nos textos da Organização Mundial do Comércio.9 No caso salmão, o Brasil foi um dos países que sustentou a inexistência do princípio no direito internacional. No caso hormônios, que opôs a Comunidade Européia aos Estados Unidos e ao Canadá, a Comunidade Européia defendeu que o princípio da precaução fazia parte do direito internacional público, enquanto regra costumeira geral, ou, ao menos, que ele era um princípio geral do direito. Os Estados Unidos defendiam a teoria da inexistência do princípio da precaução no direito costumeiro10 e eram apoiados pela posição do Canadá, que introduziram uma idéia de princípio em emergência (mas não consolidado), logo não ainda válido para ser aplicado a uma situação concreta. O Órgão de Apelações absteve-se de tecer comentários sobre o estatuto do princípio da precaução, alegando que se tratava de um tema ainda controverso, objeto de 5 WT/DS18/AB/R WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R 7 WT/DS76/AB/R 8 Ver também o capítulo de Hélène RUIZ FABRI, neste livro 9 WT/DS18/AB/R, parágrafo 56 10 P. SANDS “Environmental protection in the twenty-first century : sustainable development and international law”. In : Revesz, Sands e Stewart. Environmental law, the economy and sustainable development. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.385-386. 6 debate entre os universitários, os profissionais do direito, os homens de leis e os juízes,11 mas ele não hesitou em considerar que o conteúdo do princípio da precaução também está presente no acordo SPS e deveria ser observado, ainda que seja insuficiente para justificar, por si só, medidas SPS definitivas, conforme o que prescreve o Acordo.12 O princípio da precaução estaria portanto, de acordo com o Órgão de Apelações, presente nos artigos 2.2., 3.3. e 5.7: Artigo 2.2. Os membros se comprometem a que qualquer medida sanitária ou fitossanitária somente seja aplicada quando for necessária para proteger a saúde e a vida das pessoas e dos animais ou para preservar os vegetais, que ela seja fundamentada nos princípio científicos e que não seja mantida sem os testemunhos científicos suficientes, salvo o disposto no parágrafo 7º do artigo 5º. (...) Artigo 3.3. Os Membros podem introduzir ou manter medidas sanitárias ou fitossanitárias que resultem num nível de proteção sanitária ou fitossanitária mais elevado que o que seria conseguido por meio de medidas baseadas nas normas, diretrizes ou recomendações internacionais aplicáveis, se existir uma justificação científica ou se tal for conseqüência do nível de proteção sanitária ou fitossanitária que um Membro considere adequado em conformidade com as disposições aplicáveis dos nºs 1 a 8 do artigo 5.º (ver nota 2). Não obstante o que precede, nenhuma medida que resulte num nível de proteção sanitária ou fitossanitária diferente do que seria conseguido por meio de medidas baseadas nas normas, diretrizes ou recomendações internacionais será incompatível com qualquer outra disposição do presente Acordo (...) Artigo 5.7. Quando as provas científicas pertinentes foram insuficientes, um Membro pode adotar provisoriamente medidas sanitárias ou fitossanitárias com base nas informações pertinentes disponíveis, incluindo as provenientes das organizações internacionais competentes e as que resultem das medidas sanitárias ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Nessas circunstâncias, os 11 12 WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 123. WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 124. Membros esforçar-se-ão por obter as informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco e examinarão, em conseqüência, a medida sanitária ou fitossanitária num prazo razoável. A mesma intepretação do texto do acordo foi apresentada nos casos salmão e produtos agrícolas, o que demonstra a formação de uma linha jurisprudencial pela OMC. É interessante notar que a OMC tem a forte tendência de repetir suas interpretações anteriores sobre os mesmos pontos jurídicos analisados, o que pode justificar a afirmação de que há uma posição consolidada sobre o assunto. É sobretudo no último caso analisado – produtos agrícolas – que o Órgão de Solução de Controvérsias detalha melhor sua interpretação de aplicação do princípio. O que faz o Órgão de Apelações, a propósito do reconhecimento do princípio da precaução nos acordos, é internalisar a discussão sobre o princípio e dar-lhe um conteúdo. Uma vez identificada a existência deste princípio e uma vez precisados os dispositivos legais sobre o tema, torna-se mais fácil preencher o seu conteúdo. De acordo com o próprio Órgão de Apelações: Parece-nos importante, contudo, ressaltar certos aspectos da relação entre o princípio da precaução e o Acordo SPS. Primeiramente, o princípio não foi ainda incorporado ao Acordo SPS como motivo justificador de uma medida SPS, o que é ainda incompatível com as obrigações dos membros enunciadas em disposições específicas do referido acordo. Em segundo lugar, o princípio da precaução é efetivamente considerado no artigo 5:7 do Acordo SPS. Ao mesmo tempo, nós compartilhamos a posição das Comunidades Européias, segundo a qual não é necessário discutir a priori se o artigo 5:7 é exaustivo no tocante à pertinência do princípio da precaução. Este princípio é igualmente considerado na sexta alínea do preâmbulo e no artigo 3:3. O princípio da precaução é reconhecido, porque ele permite a um país-membro adotar restrições sanitárias e fitossanitárias mais elevadas, ainda que sem provas concretas sobre a necessidade da medida restritiva. Então, cada país pode fixar seu “nível zero” de aceitabilidade.13 Todavia, a margem de manobra dos países-membros é limitada por condições de implementação da medida, previstas pelos artigos 2º, 3º e 5º do Acordo SPS. Este tema foi objeto de discussões pelo órgão de solução de controvérsias, que confirma a possibilidade de adoção de um risco nulo, mas exige a demonstração concreta do risco: O “risco” avaliado no contexto de uma avaliação de riscos deve ser um risco verificável; a incerteza teórica não é sobre o gênero de risco que deve ser avaliado de acordo com os termos do artigo 5:1. Isso não significa, no entanto, que um Membro não possa determinar se seu nível de proteção apropriado corresponde a um “risco zero”14 ii) O conteúdo do princípio da precaução, conforme o Órgão de Apelações O artigo 2.2 prevê que um país-membro não pode tomar uma medida de proteção sem ter “provas científicas suficientes”. A primeira dificuldade reside na necessidade de identificar o conteúdo da expressão “suficiente”, encontrada no artigo. Conforme o Órgão de Apelações, no caso produtos agrícolas, suficiente é um palavra relacional. Ela deve ser interpretada de acordo com a relação entre o nível de restrição imposto pela medida tomada pelo país e a evidência científica. Assim, o grau de consolidação do nexo causal entre a medida e as provas científicas torna-se o aspecto mais importante do debate. Por conseqüência, é uma expressão que deve ser verificada caso a caso. Ela refere-se também à última frase do artigo, então, a palavra suficiente inclui os artigos 3.3 e 5.7.15 Para a concretização do princípio da precaução, o Órgão de Apelações, fundamentando-se no artigo 5.7, coloca condições. A medida deve ser : 1. imposta em uma condição onde as informações científicas pertinentes são insuficientes ; 2. baseada na informação científica disponível ; 13 WT/DS18/AB/R, parágrafo 125. De acordo com o Anexo A, do Acordo SPS, parágrafo 5:“o nível de proteção considerado como apropriado por um Membro que estabelece uma medida sanitária ou fitosanitária para proteger a saúde, a vida das pessoas e dos animais ou preservar os vegetais sobre o seu território.” 14 WT/DS18/AB/R, parágrafo 125. Ver também WT/DS26/AB/R-WT/DS48/AB/R, parágrafo 186 15 O artigo 3.3. é também citado em função da sua relação estreita com o artigo 5.7, ainda que ele não seja citado pelo artigo 2.2. WT/DS76/AB/R, parágrafos 73 e 74 3. seguida de um esforço para obter informações adicionais necessárias a uma avaliação mais objetiva do risco ; 4. condicionada a um reexame dentro de um prazo razoável. Identificamos uma quinta condição, enquanto o Órgão de Apelações explicita apenas quatro, considerando que ele exige também que a medida seja provisória e não considera seu critério provisional como uma condição de análise, com o que nós discordamos. Se ele exige que a medida seja considerada condição, esta é, na prática, uma condição de aceitabilidade da medida. Transcorrido determinado período de tempo, caso sejam encontradas provas científicas, a medida se consolida, tornando-se definitiva. Caso contrário, descobrindo-se que a medida não tinha razão de existir, ela é cancelada. Essas condições são cumulativas e igualmente importantes para determinar a consistência do dispositivo. Como indica o Órgão de Apelações, no caso produtos agrícolas, se faltar uma destas condições, a medida de proteção será considerada contrária ao direito da OMC.16 A determinação da insuficiência de provas científicas disponíveis é feita pelos países, de forma separada. Embora não seja necessário unanimidade científica em favor da medida, é preciso pelo menos haver uma dúvida, ou melhor, uma controvérsia científica. Se não há controvérsia, não há base que permita a adoção de uma medida SPS.17 A periodicidade da revisão do exame é determinada caso a caso, de acordo com a natureza da medida, os produtos em questão e os avanços científicos. Pela análise realizada, percebe-se então que a OMC reconhece o princípio da precaução e da-lhe um conteúdo concreto, ainda que esta análise limite a margem de manobra dos Estados. 1.2 Corte Internacional de Justiça A Corte Internacional de Justiça teve igualmente a oportunidade de avaliar a aplicação do princípio da precaução, no caso relativo ao Projeto Gabcíkovo-Nagymaros, que opôs a Eslováquia à Hungria, e cujo veredito foi dado em 25 de setembro de 1997.18 16 WT/DS76/AB/R, parágrafo 89 Ver Relatório do Grupo Especial : Estados Unidos, parágrafos 8.157 et 8.158 ; relatório do Grupo Especial Canadá, parágrafos 8.160 et 8161, citados também por WT/DS26/AB/R e WT/DS48/AB/R, parágrafo 120 18 Sobre a consideração das questões ambientais pela Corte Internacional de Justiça, ver também P. Sands. “Cour internationale de justice”. Bulletin de droit nucléaire, 1996, 58 (décembre), p.56-72. e P. Sands. 17 Trata-se de uma decisão recente, posterior a um grande número de normas internacionais estabelecidas sobre a existência do princípio da precaução. Ela é apenas dois meses anterior à decisão emitida no caso hormônios da OMC. Embora a relação entre os dois temas seja quase inexistente, eles se aproximam precisamente no tocante à consideração do princípio da precaução. Estudaremos, portanto, a alegação do princípio da precaução em face da CIJ e a interpretação desta sobre a aplicação do princípio. i) A alegação do princípio da precaução A Hungria evocou o princípio da precaução e a defesa do meio ambiente para romper com um tratado internacional, a saber o acordo bilateral para a construção de um sistema de barragens Gabcíkovo-Nagymaros. Conforme a Hungria, as normas do direito internacional emergentes após a conclusão do acordo, como as normas de direito ambiental, e justamente a emergência do princípio da precaução como princípio geral do direito, tornavam impossível a execução do tratado: 97. A Hungria sustentou, enfim, que as normas do direito internacional que se impuseram posteriormente, em matéria de proteção do meio ambiente, tornavam impossível a execução do tratado. A obrigação que existia previamente de não causar dano substancial ao território de um outro Estado tornou-se com o tempo, nas palavras da Hungria, uma obrigação erga omnes de prevenção de danos conforme o “princípio da precaução”. Sobre esta base, a Hungria defende que ela foi obrigada a terminar o tratado ‘em função da recusa da outra parte de suspender os trabalhos relativos à variante C. A Eslováquia, por sua vez, defendeu que os novos desenvolvimentos do direito internacional ambiental não constituiam normas cogentes ao ponto de criar uma obrigação para a Hungria de não cumprir seus compromissos contratuais. Identificam-se, assim, duas formas de compreender a questão: a) De acordo com uma primeira interpretação, as normas posteriores do direito internacional ambiental instituindo o princípio da precaução, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica, seriam convergentes a tal ponto Enforcing environmental security. In : P. Sands. Greening international law. London, Earthscan, 1993, p. 61-62. Outros casos ambientais importantes podem ser lembrados como o parecer sobre o emprego ou ameaça de emprego de armas nucleares. que o tratado em questão poderia ser considerado revogado e as obrigações da Hungria estariam anuladas. Existe, então, uma anulação de obrigações, em relação à construção da barragem em função dos efeitos potencialmente desfavoráveis ao meio ambiente; b) De acordo com uma segunda hipótese, a proteção do meio ambiente, ainda que fundamentada sobre a incerteza científica (princípio da precaução), era uma razão suficiente para justificar o não-cumprimento pela Hungria de suas obrigações internacionais. Existe, então, uma razão para o não-cumprimento do acordo. ii) A interpretação pela Corte internacional de Justiça A Corte Internacional de Justiça preferiu julgar o caso inscrevendo-o na teoria da responsabilidade civil e, mais especificamente, no tocante à consideração do estado de necessidade como uma causa de não-cumprimento das obrigações da Hungria na execução de um tratado internacional, e não no direito ambiental propriamente dito, muito embora a Corte tenha feito diversas considerações sobre as diversas convenções internacionais de direito ambiental aplicáveis ao caso concreto. Utilizando a teoria avançada pela Corte, existiria, segundo a Hungria, um estado de necessidade ambiental, fundamentado no princípio da precaução. O objeto do tratado seria a realização de um investimento econômico compatível com a proteção ambiental e explorado conjuntamente pelas duas partes contratantes. Uma vez que a compatibilidade com a proteção ambiental não mais existia, a realização do objeto do tratado era impossível, de acordo com os artigos 61 e 62 da Convenção de Viena.19 19 Art. 61. Impossibilidade Superveniente de Cumprimento. 1. Uma parte pode invocar a impossibilidade de cumprir um tratado como causa para extinguir o tratado ou dele retirar-se, se esta possibilidade resultar da destruição ou do desaparecimento definitivo de um objeto indispensável ao cumprimento do tratado. Art. 62. Mudança Fundamental de Circunstâncias 1. Uma mudança fundamental de circunstâncias, ocorrida em relação às existentes no momento da conclusão de um tratado, e não prevista pelas partes, não pode ser invocada como causa para extinguir um tratado ou dele retirar-se, salvo se: a) a existência dessas circunstâncias tiver constituído uma condição essencial do consentimento das partes em obrigarem-se pelo tratado; e b) essa mudança tiver por efeito a modificação radical do alcance das obrigações ainda pendentes de cumprimento em virtude do tratado. A Corte20 não considerou que os avanços em matéria ambiental eram um elemento imprevisível, inscrevendo o processo no contexto da teoria da imprevisibilidade. Logo, os impactos ambientais eram previsíveis, e o fato de o ambiente ter se tornado um elemento mais importante para a sociedade mundial nos anos 90 do que quando o tratado foi firmado não era um elemento que devesse ser levado em consideração. Ela mesmo reconheceu que os impactos ambientais dos projetos eram consideráveis.21 A evolução científica, tanto quanto o desenvolvimento sustentável, são citados como elementos importantes da discussão.22 Todavia, a partir do momento em que a Corte Internacional de Justiça julga a matéria sob a ótica do direito da responsabilidade, ela exige que o perigo seja “grave e iminente” e completa afirmando que as dúvidas evocadas pela Hungria não eram suficientes para caracterizar um perigo. Além do mais, não havia provas do caráter grave e iminente da situação concreta, e, ao exigir um perigo grave e iminente, a Corte impede a aplicação do princípio da precaução, o qual por definição é incapaz de demonstrar perigos graves e iminentes, sob a ótica tradicional do direito civil. O texto da decisão é claro: A Corte considera, no entanto, que, por mais sérias que sejam as incertezas, elas não seriam, por si só, suficientes para determinar a existência objetiva de um “perigo” enquanto elemento constitutivo de um Estado de Necessidade. A palavra “perigo” evoca certamente a idéia de ‘risco’ ; é precisamente nisso que o “perigo” se distingua do dano materializado, mas não houve um estado de necessidade sem um ‘perigo’ claramente identificado no momento pertinente; a única apreensão de um “perigo” 20 Parágrafo 104 Ver parágrafo 140 22 “ Ao longo dos anos, o homem nunca cessou de intervir sobre a natureza por razões de ordem econômica ou outra. No passado, ele sempre o fez, sem considerar os efeitos sobre o meio ambiente. Graças as novas perspectivas que a ciência oferece e a uma consciência crescente dos riscos que a busca destas intervenções a um ritmo impensado e duradouro podem representar para a humanidade – seja em relação às gerações presentes ou futuras -, novas formas [de agir] e exigências foram aperfeiçoadas, e foram enunciadas por um grande número de normas jurídicas nos decorrer das duas últimas décadas. Estas novas normas devem ser levadas em consideração e estas novas exigências apreciadas de forma adequada, não apenas quando os Estados procuram realizar novas atividades, mas também quando eles procuram realizar as atividades a que eles se comprometeram no passado. O conceito de desenvolvimento sustentável traduz bem esta necessidade de conciliar o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente”, in parágrafo 140 21 possível não seria, para tanto, suficiente. Além disso, dificilmente poderia ser de outra forma, uma vez que o ‘perigo’ constitutivo do estado de necessidade deve ser ao mesmo tempo “grave” e “iminente”.23 A “iminência” é sinônima de “imediação” ou de “proximidade” e ultrapassa em muito o conceito de eventualidade. Como ressaltou a Comissão de Direito Internacional no seu comentário, o perigo “extremamente grave e iminente” deve ser encontrado no momento exato do interesse ameaçado”. Em resumo, a Corte Internacional de Justiça não considerou, no caso GabcíkovoNagyramros, que o princípio da precaução era suficiente para permitir o reconhecimento dos elementos para demonstrar o estado de necessidade em uma situação concreta. Ela perdeu, assim, uma oportunidade importante de fazer avançar o direito internacional, por meio da incorporação do princípio da precaução na doutrina do estado de necessidade.24 1.3. A Corte de Justiça das Comunidades Européias O princípio da precaução foi evocado em vários casos ante à Corte de Justiça das Comunidades Européias (CJCE). As posições da Corte Européia, sobre o tema, não são tão vagas quanto a posição da Corte Internacional de Justiça nem tão rígidas quanto a posição do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio.25 Esta terceira postura em face do princíio de precaução contribui para a elaboração de uma conclusão construída a partir de diferentes interpretações a propósito da implementação do princípio da precaução. Entre os diferentes casos pertinentes, notamos Safety Hi-Tech Srl26 contra S&T Srl., Gianni Bettati contra Safety Hi-Tech Srl e o caso da vaca louca, 23 Grifos nossos. Ver sobre este ponto P. SANDS, P. Vers une transformation du droit international? Institutionnaliser le doute. Paris, Pedone, 2000, p.211 et ss. 25 A CJCE começou cedo a se preocupar com a proteção ambiental, desde o início dos anos oitenta. 26 Casos C-284/95 e C-341/95. A discussão do princípio da precaução é presente na medida em que se discute a necessidade da medida restritita de CFC, na qual a Corte aceita a adoção do princípio. A discussão do princípio da proporcionalidade é também importante, porque o Conselho da Europa havia tomado medidas restritivas para determinadas substâncias e não para outras, mais perigosas. A argumentação do Conselho se fundamentava que não havia substâncias para substituir aquelas utilizadas e que o uso das substâncias ditas perigosas era em pequena escala e que, portanto, não havia riscos globais se estas substâncias continuassem a ser permitidas. O argumento foi aceito pela Corte. Ver também NOIVILLE, C. “Principe de précaution et gestion des risques en droit de l'environnement et en droit de la santé.” Petites affiches, 2000, 239 (30 de novembro), p.46. 24 que opôs a França à Comissão européia,27 sobre a suspensão do embargo da carne inglesa; eles são interessantes com relação aos princípios de precaução e da proporcionalidade, mas é o caso Mondiet (C-405/92) que se mostra o mais ilustrativo da posição da Corte. i) Alegação do princípio da precaução pelo Conselho de Ministros Em 1983, o Conselho da Europa publicou um regulamento sobre o controle da pesca, o regulamento 170/83, que foi modificado várias vezes, interessando-nos o regulamento (CEE) 3094/96 e o regulamento (CEE) 345/02, que previram certas medidas técnicas de conservação dos recursos pesqueiros. O regulamento de 1992 interditava a pesca com certos tipos de redes, cujo comprimento individual ou acumulado fosse superior a 2,5 km. Somente os pescadores que utilizavam redes maiores nos dois anos imediatamente anteriores à norma poderiam continuar a utilizá-las durante mais dois anos, com a condição que estas redes não ultrapassassem 5 Km. Logo antes da edição da norma, um grupo de pescadores franceses tinha comprado redes de 7 km de um fabricante, mas por causa da nova norma, eles queriam anular a compra, fundamentando-se em fato princípe e em questão de força maior, o que foi a base jurídica inicial do processo. O juiz francês pediu então a análise da legalidade da medida tomada pelo Conselho, perante a Corte de Justiça das Comunidades Européias. Um dos argumentos avançados junto à Corte questionava o poder do Conselho de Ministros de estabelecer uma norma jurídica, sem base científica concreta, indo mesmo contra certos pareceres científicos favoráveis à continuidade da pesca. O argumento dos pescadores era que o Conselho havia ultrapassado seu poder discricionário, com desvio de poder e, se quisesse utilizar o princípio da precaução, ele deveria fixar quotas de pesca, de forma a tornar possível a atividade produtiva, ainda que de maneira limitada, mas preservando o meio ambiente. O advogado-geral defendia a posição do Conselho, afirmando que os artigos científicos já publicados sobre o tema não estavam diretamente ligados à proteção de 27 Casos C-157/96, C-180/96 e principalmente o caso C-1/00. Neste último processo, a França recusou-se de aceitar a comercialização de carnes bovinas originárias do Reino Unido, mesmo com o posicionamento científico favorável à comercialização, do Comitê Científico Diretor da Comunidade Européia. A França foi condenada a aceitar a posição do órgão científico comunitário, em detrimento da posição científica das autoridades francesas. Este processo é interessante por tratar da imposição comunitária de padrões de segurança alimentar aos Estados membros. todas as espécies afetadas, e também que ainda não existiam estudos sobre as espécies específicas que se pretendia proteger, como sobre a mortalidade dos golfinhos. Havia, portanto, uma falta de certeza científica que não poderia ser utilizada como justificativa para a ausência de medidas concretas, configurando-se o princípio da precaução. Segundo o Conselho, a dúvida que subsistia sobre o efeito que poderia ter a utilização de grandes redes sobre as outras espécies serviu de base para a utilização do princípio da precaução e, então, fundamentava o poder discricionário do Conselho de produzir normas, justamente o que se havia feito. A segunda questão que interessa à presente análise tratava da necessidade de uma revisão periódica desta decisão do Conselho, quando estudos mais concretos fossem realizados e concluíssem pela desnecessidade da medida de proteção. Este ponto é particularmente importante, para fins comparativos, se compararmos a presente decisão com a decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, que exige uma revisão periódica, condição sine qua non para a implementação do princípio da precaução. Nesse caso preciso, o Conselho havia arguido, para se defender, que tinha acordado um prazo de dois anos a certos pescadores para a implementação da resolução. Ainda que esta medida fosse muito restritiva, e ainda que ela se limitasse a redes com até 5 km de cumprimento, em vez dos 7 km utilizados até então pelos pescadores, já se tornava possível a utilização de redes com um comprimento superior a 2,5 km, nos dois anos seguintes. Este prazo seria justamente utilizado para realizar os estudos científicos desejados. Se, no fim deste prazo, estudos científicos se mostrassem favoráveis à anulação da medida, o Conselho poderia estabelecer uma outra norma jurídica, modificar a restrição e seguir a posição científica concreta. Percebia-se então, na prática, que uma medida restritiva estava em vigor desde a publicação da norma, ou seja, uma redução máxima de 5 km para alguns pescadores e a 2,5 km para todos os outros pescadores, que não utilizavam este instrumento nos dois anos anteriores à norma. O princípio da precaução seria utilizado desde já e mantido enquanto não houvesse um estudo científico concreto contrário à medida aplicada. Uma vez transcorridos os dois anos, se não houvesse ainda um estudo, mesmo os pescadores que podiam utilizar redes de até 5 km perderiam o direito de utilizá-las. Na verdade, não se tratava de um prazo estabelecido para permitir uma investigação científica, mas para implementar gradualmente uma norma jurídica em defesa do ambiente. ii) A posição da Corte A corte analisou o caso à luz do princípio da precaução. Ela compreendeu que não havia verdadeiros estudos científicos precisos sobre as conseqüências da utilização das redes sobre todas as espécies ameaçadas e que, portanto, o Conselho havia agido na esfera do seu poder discricionário, sem ter cometido o excesso invocado, apoiando-se no princípio da precaução. A Corte considerou então que não havia desvio de poder, como argumentavam os pescadores. 28 31. Resulta da interpretação desta disposição que as medidas de conservação dos recursos pesqueiros não devem ser plenamente conformes os pareceres científicos e que a ausência ou o caráter não-conclusivo de um tal parecer não deve impedir o Conselho de adotar as medidas que ele julgue indispensáveis para realizar os objetivos da política comum de pesca. 32. É o momento de acrescentar que a Corte já julgou (ver decisão de 13 de novembro de 1990, Fedesa, C-331/88 Rec. P. I-4023, ponto 8), a propósito da consideração pelo Conselho de dados científicos, que o controle jurisdicional deve se limitar, considerando o poder discricionário reconhecido ao Conselho na implementação da medida da política agrícola comum, à verificação se a medida em questão não está viciada por um erro claro ou por desvio de poder, ou se a autoridade em questão não ultrapassou os limites do seu poder de apreciação. 33. Tratando-se da regulamentação em causa, importa constatar, antes de tudo, que os pareceres científicos disponíveis se limitaram a examinar os estoques de atum branco, assim como a interação entre os diferentes materiais de pesca, sem no entanto se preocupar com o problema da exploração equilibrada 28 Para uma análise da posição restritiva da CIJ ver DUPUY, P.-M. “Où en est le droit international de l'environnement à la fin du siècle?” Revue Générale de Droit International Public, 1997, 101(4), p.890, nota de rodapé 54. do conjunto de recursos biológicos marítimos, de forma sustentável, e em condições econômicas e sociais apropriadas, que constitui um dos objetivos da política comum da pesca, mencionado no artigo 1o. do regulamento 170/83, pré-citado. No tocante ao segundo ponto, a Corte também aceitou a posição do Conselho, que defendia o poder de mudar a norma jurídica no caso em que houvesse novos estudos contrários à restrição adotada. Isso torna a posição da Corte de Justiça das Comunidades Européias completamente distinta da decisão conferida pelo Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, porque nenhuma obrigação foi colocada ao Conselho, como a de realizar estudos científicos posteriores para justificar a medida restritiva ou a de praticar novas análises periódicas sobre a medida. A posição da Corte mantém o Conselho em uma posição confortável e fortalece seu poder discricionário de utilizar o princípio da precaução, sem obrigações concretas futuras em relação à manutenção de uma norma restritiva. 2. Estados Unidos Entre os diversos processos interessantes que reconhecem o princípio da precaução, preferimos escolher um específico, que trata da saúde humana e animal. O processo é interessante porque alega claramente o princípio da precaução, mostrando a interface entre a proteção da saúde humana, compreendida na proteção dos ecossistemas. O processo é também valioso porque demonstra as dificuldades das organizações nãogovernamentais norte-americanas de agir em juízo, no caso específico o Sierra Club, uma das maiores e mais antigas organizações não-governamentais do planeta, sendo obrigada a demonstrar o seu interesse de agir específico por meio de seus membros. i) A alegação do princípio da precaução pelo Sierra Club e a posição contrária No processo Sierra Club c. Environment protection agency29 (EPA) e General Eletric e outros c. EPA, na Corte de Apelações do 5o Circuito, o que estava em disputa era a interpretação da norma sobre substâncias perigosas. No mesmo processo havia a defesa de três posições distintas. As empresas General Eletric e diversas outras grandes 29 98-60804. Este processo deu origem a outros processos em instâncias superiores, como o processo 9860642, The General Electric company c. United States Environment Protection Agency e o processo 9860495 Central and South West Services, Inc.; Entergy Services Inc.; Mississippi Power Company; Utility Solid Waste Activities Group c. United States Environment Protection Agency. empresas argumentavam que a norma da EPA era muito restritiva e impediria o seu direito de livre comércio. Sierra Club considerava que a norma não era suficientemente restritiva para a proteção da saúde humana e do meio ambiente. A EPA, por sua vez, defendia que a sua norma era suficiente para proteger o meio ambiente e a saúde humana, e que estava no seu direito de restringir o livre comércio, ainda que sem provas científicas claras. O tema central do processo era a utilização de policlorinato bifenil (PCB). A organização não-governamental Sierra Club considerava o alto grau de periculosidade do produto e que a agência pública deveria proibir a sua utilização. O silêncio sobre a restrição dada ao uso de certos tipos de PCB era, de fato, uma autorização ao seu uso. Uma vez que o direito americano não dispõe de uma modalidade de ação similar à ação civil pública brasileira, a ONG não foi admitida no processo por falta de interesse de agir. No entanto, dois de seus membros foram aceitos, porque demonstraram que podiam ser afetados, devido à possibilidade de contaminação. Segundo a ONG, os PCBs eram utilizados na fabricação de estradas, em particular na 71 e 290 West, no Texas. A água da chuvas era contaminada quando caía sobre as estradas e em seguida infiltrava no solo e entrava em contato com o lençol freático que dá origem ao lago que abastece a cidade de Austin. Os membros da ONG bebiam esta água e às vezes nadavam em um lago que ficava próximo destas estradas onde o material havia sido empregado. A General Eletric e as outras empresas, por sua vez, defendiam que não havia estudos demonstrando onde o material havia sido utilizado ou ainda qualquer prova que demonstrasse que os produtos podiam causar danos ao meio ambiente. No entanto, por conseqüência, a falta de informação científica deveria servir de justificativa para a inércia do Poder Público. Os membros do Sierra Club, por sua vez, argumentavam que a agência ambiental deveria demonstrar que os produtos autorizados eram inofensivos para a saúde humana, exigindo uma inversão do ônus da prova, em favor do princípio da precaução. A agência ambiental argumentava que não precisava demonstrar que o produto causava mal a saúde e ao meio ambiente, cabendo às empresas apresentar tais provas. ii) A consideração do enfoque precaucionário pela Corte A corte aceitou a arguição do enfoque de precaução, como um princípio racional de condução das atividades humanas. Neste caso, a abordagem precaucionária foi utilizada em defesa não apenas do meio ambiente, mas principalmente em proteção à saúde humana. A migração do princípio entre as normas de proteção da saúde e dos direitos humanos para o direito ambiental é freqüentemente observada em vários direitos nacionais, como lembra Freestone30. Além de aceitar a inversão do ônus da prova, a Corte exigiu também a interdição dos produtos até que fosse demonstrado que não havia impactos negativos ao meio ambiente. Não se impõe um nível de risco sempre zero, mas um risco em função do bem jurídico tutelado e dos perigos de dano, ainda que não-demonstrados. Como bem salientam Freestone, Hermitte e David,31 o cálculo do nível de aplicação do princípio de precaução varia de acordo com o bem jurídico tutelado, não sendo princípio jurídico absoluto. Como os bens em questão eram a vida de milhares de pessoas e o meio ambiente, os níveis de exigência deveriam ser estabelecidos em um patamar elevado. A Corte centrou sua resposta na disputa entre a agência ambiental e as empresas, analisando a obrigatoriedade legal de proibir produtos perigosos, ainda que sem base científica concreta (TSCA), posicionando-se a favor de uma abordagem precaucionária. Na posição da Corte: As partes discordam sobre como o padrão de evidência substancial se aplica ao legislador neste caso. De acordo com a EPA, o único elemento do TSCA, § 6(e) que geralmente proíbe a fabricação ou o uso de PCB, a menos que a EPA tenha autorizado o seu uso, reflete o pensamento do legislador de que os PCBs impõm um risco não-razoável de dano à saúde. No entanto, EPA arguementa que o TSCA, § 6(e) cria um presunção duvidosa de que todos os usos de PCBs representam um risco não-razoável de dano ao meio ambiente. Então de acordo com EPA, ainda que um requerente como o USWAG ou a GE [General Eletric] aleguem que EPA recusou de forma indevida a permissão de uso de um tipo de PCB em particular, a EPA [considera que] não precisa provar com evidências científicas que os o uso desejável dos requerentes expõe a saúde ou o meio ambiente a um risco excessivo. Nós concordamos” 30 31 Ver o texto de Freestone ao presente livro Ver capítulos dos autores neste livro. 3. Considerações finais O Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio aceita uma forma de princípio da precaução, o que é deveras positivo, mas sua compreensão do que é o princípio da precaução não é ampla o bastante, para que seja possível inserirmos as concepções do princípio presentes em outros tratados internacionais importantes, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a Declaração da Conferência do Mar do Norte de 1987, dentre outros. O princípio da precaução é aceito no âmbito da OMC de forma genérica, semelhante às disposições da Convenção sobre a Diversidade Biológica, descrito na fórmula “a incerteza científica não pode servir de base para uma omissão”, mas a OMC adiciona outras cinco condições específicas e restritivas, estudadas acima, que limitam bastante o princípio, a ponto de poder tirar sua importância no julgamento de um caso concreto. A Corte Internacional de Justiça não é objeto de críticas das organizações ambientalistas. Por pertencer ao sistema onusiano, que por sua vez é mais susceptível de participação popular do que a OMC, sua antiguidade lhe garante, em face das organizações ambientais, uma legitimidade superior àquela da OMC. Todavia, no tocante ao meio ambiente, e sobreudo ao princípio da precaução, constata-se um paradoxo: a Corte Internacional de Justiça revelou-se mais fechada do que o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. No único caso em que foram discutidos a proteção ambiental e o princípio da precaução, a Corte Internacional de Justiça não reconheu a eficácia do princípio e a falta de provas científicas concretas foi uma das causas para a recusa em considerar lícitos os atos de proteção ambiental efetuados por um país contratante. Em outras palavras, muito embora o reconhecimento a priori do princípio da precaução no texto do processo, sua aplicação foi considerada inoportuna. A Corte de Justiça das Comunidades Européias, por sua vez, aceita o princípio da precaução no caso de incerteza científica e quando se trata da preservação ambiental. Estas são as duas condições identificadas para a implementação do princípio pelas autoridades européias. Ela é importante, na medida em que a Europa representa o grupo de países mais aberto à adoção do princípio da precaução, mesmo se a decisão discutida tratava de uma norma comunitária, portanto já uniformizada. Todavia, contrariamente ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, ela não impõe à autoridade pública o dever de realizar estudos científicos constantes, para dar respostas mais objetivas sobre a avaliação do risco, nem mesmo de condicionar a restrição da atividade a reexame em um prazo razoável. Estas organizações internacionais baseiam-se, portanto, em normas e princípios do direito internacional. O reconhecimento do princípio da precaução como um princípio internacional, ou uma regra de direito costumeiro, ainda não está consolidado. A posição de diversos países nos fóruns internacionais, sobretudo a dos Estados Unidos, principais atores econômicos e Estado ativo em todas as negociações internacionais relevantes – ainda que não seja parte legítima em muitos casos, como nas negociações sobre a Convenção sobre a Diversidade Biológica, na qual, mesmo sem terem ratificado, foram atores importantes nas negociações internacionais dos textos derivados32 _ contribue bastante para o reconhecimento ou não-reconhecimento do princípio da precaução no direito internacional. Como vimos, os Estados Unidos alegaram na OMC que este princípio não existia no cenário internacional. No entanto, internamente, o princípio parece estar bem consolidado internamente nos Estados Unidos. A posição estadunidense é antagônica até mesmo entre suas posições em diferentes fóruns de negociação internacional. Nas negociações do regime das mudanças climáticas, o princípio da precaução foi amplamente defendido pelos Estados Unidos e por outros países desenvolvidos. A divergência de posições de um mesmo Estado demonstra que, além das diferenças de interpretação jurídica que normalmente existem na construção de um novo princípio jurídico, elementos de ordem política são muito relevantes, e podem variar conforme os interesses específicos em adotar ou não um acordo internacional ou uma determinada interpretação jurídica. As diferentes posições dos tribunais internacionais revelam as diferenças técnico-jurídicas sobre o reconhecimento do princípio da precaução. As diferentes posições de um mesmo país – os Estados Unidos –, entre o seu direito nacional e suas posições internacionais demonstram o elemento político do reconhecimento deste novo princípio, de acordo com os interesses econômicos e ambientais norte-americanos. 32 Como o Protocolo de Cartagena, sobre organismos geneticamente modificados. A concretização rápida deste princípio, que estreou no direito internacional no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, demonstra que as preocupações ambientais globais crescentes estão sendo suficientes para contornar os obstáculos jurídicos e políticos que têm sido encontrados. No entanto, como analisado nos diversos capítulos deste livro, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Referências bibliográficas DUPUY, P.-M. “Où en est le droit international de l'environnement à la fin du siècle?” Revue Générale de Droit International Public, 1997, 101(4) NOIVILLE, C. “Principe de précaution et gestion des risques en droit de l'environnement et en droit de la santé.” Petites affiches, 2000, 239 (30 de novembro), p.46. SANDS, P. “Cour internationale de justice”. Bulletin de droit nucléaire, 1996, 58 (décembre), p.56-72. e P. Sands. Enforcing environmental security. In : P. Sands. Greening international law. London, Earthscan, 1993, p. 61-62. SANDS, P. “Environmental protection in the twenty-first century : sustainable development and international law”. In : Revesz, Sands e Stewart. Environmental law, the economy and sustainable development. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. SANDS, P. Vers une transformation du droit international? Institutionnaliser le doute. Paris, Pedone, 2000, p.211 et ss. Capítulo 11 A adoção do princípio da precaução pela OMC Hélène Ruiz Fabri1 O princípio da precaução está na moda. A Organização Mundial do Comércio (OMC) também. Os dois não podiam deixar de se encontrar. Um desses encontros foi bastante relatado pela mídia: trata-se do caso da Carne com hormônios1 e poderia-se deduzir que o princípio da precaução não tem muitas possibilidades de expandir-se no quadro da OMC. Mas é preciso, sem dúvida, não fazer julgamentos precipitados e calcular, mais particularmente, a inversão de perspectiva em relação a outras análises, visto que não se trata de encarar a precaução como princípio de ação da OMC, mas de avaliar o policiamento que a organização exerce sobre o uso desse princípio pelos Estados-membros em relação a fluxos comerciais normalmente liberalizados. Além do mais, a questão é ambivalente. Por um lado, o princípio da precaução, ou seja, um princípio em nome do qual podem ser tomadas medidas que visam prevenir um risco mesmo que esse não seja ainda cientificamente comprovado (portanto não há certeza científica), não é mencionado em nenhum lugar nos textos que formam o direito da OMC. Por outro lado, o uso do princípio da precaução inscreve-se em uma problemática mais global, que já era conhecida do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e, em conseqüência, não é novidade para a OMC. Ela corresponde à idéia de que podem existir preocupações que levam a tomar medidas de precaução onde o GATT (e agora a OMC) queria a livre circulação. O GATT sempre admitiu que existia um certo número de objetivos não comerciais que deviam ser considerados preocupações legítimas dos Estados e que podiam justificar medidas de proteção. Para isso, implementara um regime de exceções (artigos XX e XXI) que substitui e forma, por assim dizer, a interface entre o direito da 1 Professora da Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne. Membro do Institut Universitaire de France. Agradecemos à Revue Juridique de l’Environnement, na pessoa do Professor Michel Prieur, pela autorização para publicar esse artigo. 1 Comunidade Européia – Mesures concernant les viandes et les produits carnés (hormones) (WT/DS26/AB/R ; WT/DS48/AB/R). Relatório de apelação comum aos dois casos introduzidos pelo Canadá e pelos Estados Unidos, posto em circulação em 16 de janeiro de 1998 e adotado em 13 de fevereiro de 1998. Ver Ruiz Fabri, «Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.», J.D.I. 1999/2. OMC e as preocupações não comerciais. É um regime que impõe, evidentemente, um certo número de condições, visando beneficiar-se com elas. Essas condições foram precisadas no tratamento contencioso de dois casos: o da Gasolina e o dos Camarões. Trata-se de garantir que as medidas tomadas não visem, na realidade, um objetivo protecionista e que elas não sejam aplicadas de forma discriminatória. Porém, não foi simultaneamente a essas oportunidades que o princípio da precaução apareceu no contencioso (seria possível e concebível, mas não aconteceu ainda). Ele foi citado em controvérsias, colocando em causa um novo acordo do direito da OMC, o Acordo sobre as medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), o que não é muito surpreendente, na medida em que esse acordo atinge um dos domínios prediletos do princípio da precaução: a segurança sanitária2. Esse acordo funciona segundo a mesma lógica que o regime das exceções. Com efeito, foi negociado por causa do medo de ver os Estados abusarem do artigo XX no que tange à agricultura. Ele teve, notadamente, como objetivo, desenvolver critérios para facilitar a avaliação da necessidade de uma medida do ponto de vista sanitário. As obrigações de forma e de matéria que pesam sobre os Estados são, de fato, maiores. Porém, esse acordo só atinge as medidas necessárias para proteger a saúde e para evitar graves danos, e não todas as medidas que dizem respeito aos consumidores, o que leva a duas deduções. Surgido em casos do Acordo SPS, o princípio da precaução poderia, sem dúvida, ser invocado em outros acordos (por exemplo no Acordo sobre os obstáculos técnicos ao comércio - Acordo OTC - citado no caso do amianto3). Mas, na medida em que o acordo SPS é particularmente exigente, o estudo do espaço criado para o princípio da precaução pode, sem dúvida, ser considerado indicativo de um nível mínimo para ele (que é sem dúvida bastante baixo)4. Mais precisamente, o princípio da precaução foi invocado em dois casos (conhecidos como da Carne com hormônios e dos Produtos agrícolas5), e o Acordo SPS 2 Ver o artigo de Christine Noiville, nesse livro. Entretanto, o caso foi essencialmente tratado no campo do artigo XX b) do GATT pelo Grupo Especial. Comunidades Européias - , WT/DS 135. O caso está atualmente em apelação. 4 G. Goh, A.R. Ziegler, « A Real World Where People Live and Work and Die – Australian Measures After the WTO Appellate Body’s Decision in the Hormones Case », J.W.T. 1998/5, pp. 271-290. 5 Japão – Medidas visando os produtos agrícolas (WT/DS76/1/AB/R). Relatório de apelação do 22 de fevereiro de 1999. Ver H. Ruiz Fabri, « Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.», J.D.I. 2000/2, pp. 392-396. 3 foi aplicado em três (os dois citados e o caso dos Salmões6). O interesse, nesses casos,7 vem do fato de eles fazerem referência a medidas anteriores à OMC, algumas delas muito antigas, ou seja, a resistências muito sedimentadas. É particularmente o caso dos Salmões e Produtos agrícolas nos quais medidas tomadas há mais de 20 anos foram questionadas. O caso da Carne com hormônios é simbólico do que se poderia chamar de “novas recusas” de métodos amadores, justificados por uma preocupação de produção de uma sociedade superabastecida. Além do mais, esses casos atingem quase todo o leque das medidas sanitárias, visto que o caso da Carne com hormônios concerne à saúde dos homens, o caso dos Salmões à dos animais e o caso dos Produtos agrícolas à dos vegetais. Nesses diferentes casos, as medidas questionadas foram consideradas incompatíveis com as obrigações da OMC. Quais conclusões podem ser tiradas no que diz respeito à implementação do princípio da precaução? É impossível, proteger-se em uma situação de incerteza? É, sem dúvida, inútil pensar no quadro da implementação do princípio da precaução sem antes ter avaliado seu alcance. 1. O contexto da consideração do princípio da precaução Em que circustância o princípio da precaução é ou pode ser implementado pela OMC? Na medida em que ele não é, por si próprio, objeto de nenhuma afirmação, são possíveis três opções. Uma delas consistiria em solicitar uma interpretação autêntica da Conferência Ministerial ou do Conselho Geral sobre a fundamentação do artigo IX da Carta da OMC, mas esse caminho, que implicaria em conseguir uma maioria de três quartos ou um consenso, nunca foi praticado até o presente momento. Ele supõe uma vontade política, idéias suficientemente claras, e suas chances de realização são hipotéticas. A perspectiva do seu uso é apenas teórica. As duas outras possibilidades são aquelas que foram submetidas ao Grupo Especial e ao Órgão de Apelação no caso da Carne com hormônios. Uma consiste em uma regra autônoma, a outra, em uma regra incorporada materialmente no direito da 6 Austrália – Medidas visando as importações de salmão (WT/DS18/AB/R). Relatório de apelação de 20 de outubro de 1998, adotado em 6 de novembro de 1998. Ver H. Ruiz Fabri, « Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.», J.D.I. 1999/2, pp. 7 J. Pauwelyn, « The WTO Agreement on Sanitary and Phytosanitary (SPS) Measures as Applied in the First Three SPS Disputes, EC – Hormones, Australia – Salmons and Japan – Varietals », J.I.E.L. 1999, pp. 641-664. OMC. Porém, a ausência de regra autônoma aparece rapidamente na análise, e a análise se remete em definitivo para a consideração material do princípio no texto dos acordos. i) A ausência de autonomia do princípio da precaução A avaliação da implementação do princípio da precaução supõe como ponto de partida o direito aplicável aos órgãos de solução de controvérsias: consoante o artigo 3: 2 do Memorando de entendimento sobre as regras e procedimentos relativos à solução de controvérsias (Memorando), eles devem decidir as controvérsias baseadas nos “acordos visados”, por conseqüência de diferentes textos que compõem o direito da OMC. Segundo tais acordos, não se trata de aplicar o conjunto do direito internacional. Um Estado que faz uma reclamação deve invocar uma violação do direito da OMC (ou de uma regra para qual um acordo da OMC remete, como no caso do Acordo sobre os direitos de propriedade intelectual ou do Acordo SPS que se refere às normas internacionais, como aquelas tiradas do Codex Alimentarius). Contudo, os órgãos que intervêm na decisão das controvérsias têm também como tarefa esclarecer as disposições desses acordos conforme as regras costumeiras de interpretação do direito internacional público. É nesse contexto que regras do direito internacional de origem externa podem ser implementadas. Então, não se trata de uma aplicação direta, mas de uma aplicação mediada. Assim, a título de regra de interpretação do Acordo SPS, o princípio da precaução fora invocado pela Comunidade Européia no caso da Carne com hormônios: ela defendia que se tratava de uma regra consuetudinária, ou pelo menos, de um princípio geral do direito, à luz do qual era preciso interpretar as obrigações contidas no Acordo SPS. Ela desejava que essas medidas de proibição de importação de carne bovina com hormônios, provenientes dos Estados Unidos e do Canadá, fossem consideradas medidas de precaução. O desafio desse argumento era a autonomia do princípio da precaução em relação ao Acordo SPS; o objetivo de influenciar a determinação do alcance das obrigações contidas nesse acordo. O dilema era evidente: era impossível desconsiderar esse princípio, por razões políticas, mas então como implementá-lo?8 8 O Órgão de Apelação mostrou sua preocupação em relação “ao equilíbrio frágil...cuidadosamente negociado no Acordo SPS, entre os interesses compartilhados, embora às vezes divergentes, que consistem em promover o comércio internacional e em proteger a vida e a saúde dos seres humanos” (par. 177). Assim, o Órgão de Apelação foi levado a estabelecer sobre essa autonomia. O Grupo Especial a evitara usando um raciocínio duplo. De acordo com o Grupo Especial, não era necessário pronunciar-se, pois, admitindo uma autonomia do princípio da precaução, esse não teria o propósito de se sobrepor ao enunciado explícito das disposições do Acordo SPS. O Grupo Especial fundamentava notadamente sua asserção sobre a consideração de que esse princípio estava incorporado, num sentido específico, a um dispositivo do Acordo SPS (não invocado no caso), o que significava que, quando quiseram, os negociadores souberam muito bem recorrer a tal princípio. Deduzira que, no momento em que não fora incorporado no dispositivo em causa, não podia prevalecer sobre o texto do Acordo9. O Órgão de Apelação aprofundou o raciocínio sem colocá-lo em questão e, com isso, negou-se a classificar o princípio da precaução como regra de interpretação. Sua recusa é prudente, pois a questão parecia mesmo uma armadilha. De fato, esse caso mostra que os órgãos de solução de controvérsias, em particular o Órgão de Apelação, podem ser confrontados com questionamentos jurídicos fundamentais e não definidos como esse caso do princípio da precaução. A sensibilidade dos Estados corre então o risco de se expressar diretamente contra os rigores do mecanismo de solução das controvérsiass e a questão do alcance do controle encontra-se presente. Isso explica, sem dúvida, a prudência do Órgão de Apelação que deve dosar as obrigações tanto procedimentais, quanto materiais10. Quando o princípio da precaução é proposto como referência de interpretação, a sua utilização pelo Órgão de Apelação esbarra no estatuto jurídico desse princípio. Em primeiro lugar, ele sublinha que esse princípio é atualmente objeto de debates. Depois, após lembrar diversos pontos de vista, e estudar as qualificações de regra consuetudinária ou de princípio geral, e interrogar-se de forma dubitativa sobre a existência de uma opinio juris, constata que esse princípio, “pelo menos fora do direito internacional do meio ambiente, não foi ainda objeto de uma formulação que se imponha”11. Aliás, referese, para confortar sua posição, ao fato da Corte Internacional de Justiça não mencionar Trata-se claramente de conjurar os riscos de deturpações protecionistas sem desconhecer as finalidades legítimas das medidas visadas. 9 Relatório do Grupo Especial, parágrafo 8.157. 10 Ruiz Fabri, «L'appel dans le règlement des différends de l'O.M.C., trois ans après, quinze rapports plus tard...», Revue Générale de Droit International Public, 1999/1, pp. 49-127. 11 Relatório Carne com hormônios, parágrafo 125. esse princípio entre as novas normas do direito ambiental, conforme a sua decisão então recente no caso Gabcikovo-Nagymaros e que, no mesmo, não declarou que tal princípio devia sobrepor-se às obrigações convencionais que ligam os Estados-partes12. O Órgão de Apelação explora também abundantemente a doutrina. A partir do momento que considera não poder dar conclusões quanto à positividade do princípio, o jogo está quase decido. O princípio da precaução não é mais visto como princípio geral nem como regra autônoma. Ele não tem a “força” suficiente para substituir as regras consuetudinárias de interpretação consolidadas, o que o Órgão de Apelação qualifica como “princípios normais”13. Remete-se então para a segunda solução, ou seja, considerar que o princípio da precaução está implementado no conteúdo do Acordo SPS, porém sem se sobrepor às disposições desse acordo14. ii) A presença ou a articulação do princípio da precaução com o Acordo SPS O Órgão de Apelação estima “importante… observar certos aspectos da relação entre o princípio da precaução e o Acordo SPS”15. A respeito disso, ele faz sucessivas considerações: a) O princípio não foi incorporado ao Acordo como um motivo que justifica medidas por outras partes incompatíveis com o dito acordo. Então, ele não pode ter como efeito a exoneração do respeito às obrigações fundamentais ou de procedimentos que o Acordo enuncia. É a réplica à argumentação européia segundo a qual, mesmo na ausência de provas científicas suficientes, ela conservaria o direito de tomar uma medida de proibição. A mesma afirmação está presente no caso dos Produtos agrícolas. b) O Princípio “está efetivamente computado no artigo 5:7 do Acordo SPS”. Porém, o Órgão de Apelação concorda em considerar “que não é necessário pôr em princípio que o artigo 5:7 é exaustivo no que tange à pertinência do princípio da precaução”. De fato, estima que o princípio está “também previsto na sexta alínea do caput do artigo 3:3”. Esse posicionamento corresponde a uma concepção extensiva da precaução, essas últimas disposições se aproximando mais da obrigação de segurança e da lógica de prevenção. 12 H . Ruiz Fabri, J.-M. Sorel, « Chronique de jurisprudence de la Cour internationale de Justice », J.D.I. 1998/3, pp. 773-801. 13 Relatório Carne com hormônios, parágrafo 124. 14 Idem, § 125. 15 Idem, § 124. c) O Órgão de Apelação indica que o Grupo Especial deveria ter lembrado que os governos agem por precaução. O conjunto é bastante ambíguo: não é um princípio geral, mas deve-se partir do princípio de que os Estados agem por precaução. Para entender, é importante explicitar os mecanismos visados do Acordo SPS. O artigo 5:716 autoriza os Estados a tomarem medidas provisórias. Trata-se notadamente de permitir que se encarem situações de urgência ou de crise, no momento em que “as provas científicas serão insuficientes”. Os Estados podem adotar suas medidas provisórias “com base nas informações pertinentes disponíveis,”mas, então, devem se esforçar “para obter informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco” e reexaminar, conseqüentemente, suas medidas. Entende-se que esse mecanismo possa ser considerado o campo de atuação preferido do princípio da precaução, visto que dá lugar à incerteza científica. Aliás, o Grupo Especial do caso da Carne com hormônios considerou que essa expressão específica do princípio da precaução era a única presente no Acordo SPS. O Órgão de Apelação tem uma visão mais flexível. Além do sistema das medidas provisórias, considera que o princípio da precaução está também incluído no artigo 3:3 do Acordo e no seu preâmbulo. Essas disposições colocam em questão o princípio da livre escolha, pelos Estados, do nível de proteção que julgam apropriado. Decerto, a idéiadiretora do Acordo SPS é a de obter uma harmonização internacional das normas de referências no que tange à matéria. É verdadeiramente o caminho para transpor as dificuldades. Mas sabe-se, também, que qualquer empreendimento de harmonização leva alguns atores a temer um nivelamento por baixo, e outros ao medo de níveis demasiadamente elevados. O preâmbulo17 traz, nesse contexto, uma bolha de ar no 16 “7 - Quando as provas científicas pertinentes forem insuficientes, um Membro pode adotar provisoriamente medidas sanitárias ou fitossanitárias com base nas informações pertinentes disponíveis, incluindo as provenientes das organizações internacionais competentes e as que resultem das medidas sanitárias ou fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Nessas circunstâncias, os Membros esforçar-seão para obter as informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco e examinarão, em conseqüência, a medida sanitária ou fitossanitária num prazo razoável.” 17 “Os Membros, reafirmando que nenhum Membro deveria impedir a adoção ou aplicação das medidas necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e animais ou à preservação dos vegetais, sob reserva de que essas medidas não sejam aplicadas de maneira a constituir ou um meio de discriminação arbitrária ou injustificável entre os Membros onde as mesmas condições existem, ou, uma restrição disfarçada contra o comércio internacional., almejando melhorar a saúde das pessoas e dos animais, assim como a situação fito-sanitária entre todos os seus Membros; sistema, colocando o princípio da livre escolha, pelos Estados, do nível de proteção que julgam apropriado. O artigo 3:318 vê a possibilidade de um nível de proteção mais elevado que aquele alcançado pelo viés das normas internacionais, na ocorrência do Codex Alimentarius.19 Essa possibilidade está aberta “se há uma justificativa científica” e se for “a conseqüência do nível de proteção” que o Estado julga “apropriado”conforme o artigo 5:1. Esse artigo é relativo à avaliação dos riscos e à determinação do nível apropriado de proteção.20 O Órgão de Apelação é, claramente, o elo entre a livre escolha do nível de proteção e a precaução. Finalmente, uma vez que as disposições do Acordo SPS fazem muitas referências umas às outras e se complementam, o conjunto como um todo deve ser considerado observando que as medidas sanitárias e fitossanitárias são freqüentemente aplicadas na base de acordos ou protocolos bilaterais; almejando ver estabelecer-se um quadro multilateral de regras e disciplinas para orientar a elaboração, a adoção e a aplicação das medidas sanitárias e fito-sanitárias, a fim de reduzir para o mínimo seus efeitos negativos sobre o comércio; reconhecendo a contribuição importante que as normas, diretivas e recomendações internacionais podem trazer em relação a isso; almejando favorecer a utilização de medidas sanitárias e fitossanitárias harmonizadas entre os Membros, sobre a base de normas, diretivas e recomendações internacionais elaboradas pelas organizações internacionais competentes, entre as quais a Comissão do Codex Alimentarius, o Escritório Internacional das Epizootias, e as organizações internacionais e regionais competentes operando no quadro da Convenção internacional para a proteção dos vegetais, sem exigir de nenhum membro que modifique o nível de proteção da saúde e da vida das pessoas e animais ou de preservação dos vegetais que considera como apropriado; reconhecendo que os países Membros em desenvolvimento podem encontrar dificuldades especiais para conformar-se às medidas sanitárias ou fitossanitárias dos Membros importadores e, conseqüentemente, para aceder aos mercados, assim como formular e aplicar medidas sanitárias ou fitossanitárias em seus próprios territórios, e desejando ajudá-los nos seus esforços em relação a isso; em conseqüência, almejando elaborar regras para aplicação das disposições de 1994 do GATT, que se referem à utilização das medidas sanitárias ou fitosanitárias, em particular das disposições do artigo XX b) (1), decidem o seguinte…”. (tradução não oficial). 18 “3 - Os Membros podem introduzir ou manter medidas sanitárias ou fitossanitárias que resultem num nível de proteção sanitária ou fitossanitária mais elevado que o que seria conseguido através de medidas baseadas nas normas, diretrizes ou recomendações internacionais aplicáveis, se existir uma justificação científica ou se tal for conseqüência do nível de proteção sanitária ou fitossanitária que um Membro considere adequado em conformidade com as disposições aplicáveis dos n.os 1 a 8 do artigo 5.º (ver nota 2). Não obstante o que precede, nenhuma medida que resulte num nível de proteção sanitária ou fitossanitária diferente do que seria obtido por meio de medidas baseadas nas normas, diretrizes ou recomendações internacionais será incompatível com qualquer outra disposição do presente Acordo”. (tradução não oficial). 19 Comissão comum da FAO e OMS elaborando normas no campo alimentício. 20 “1 - Os Membros assegurarão que as suas medidas sanitárias ou fitossanitárias sejam estabelecidas com base numa avaliação, realizada de forma adequada às circunstâncias, dos riscos para a saúde e a vida das pessoas e dos animais ou para a proteção vegetal, tendo em conta as técnicas de avaliação de riscos desenvolvidas pelas organizações internacionais competentes”. (tradução não oficial). (como se desenrolassemos um novelo de lã). Então, é preciso adotar uma perspectiva sistêmica para verificar a verdadeira brecha aberta para o princípio da precaução. 2. O conteúdo da consideração do princípio da precaução O Acordo SPS foi inteiramente desenvolvido em torno da idéia de prova ou de justificativa científica. Desse ponto de vista, é muito mais exigente que todos os outros dispositivos suscetíveis de fundamentar medidas de proteção e, então, no âmbito do qual o princípio da precaução pode ser invocado, como o acordo OTC ou o artigo XX. Na medida em que o Acordo SPS é, até o momento presente, o único que foi analisado pelo Órgão de Solução de Controvérsias, pode-se chegar à hipótese de que o que é admitido no seu contexto valeria a fortiori para sistemas menos exigentes. A avaliação do alcance da implementação do princípio da precaução nesse acordo supõe o exame do espaço deixado para a incerteza científica e os efeitos jurídicos que ela pode produzir. É nesse nível que será identificado o que foi considerado vitórias da Comunidade Européia no caso da Carne com hormônios. Com efeito, o Órgão de Apelação escolheu uma interpretação do Acordo SPS que deixa uma certa margem de manobra aos Estados, notadamente no que tange a um certo número de noções-chave, como aquela de risco ou de prova científica e sobre o alcance das obrigações que pesam efetivamente sobre os Estados. Todavia, a margem de manobra não é ilimitada. O Acordo SPS mistura obrigações materiais com obrigações procedimentais e é de acordo com essas combinações que será avaliado o verdadeiro espaço deixado para o princípio da precaução. i) As noções-chave O domínio de ação do princípio é o dispositivo relativo às medidas provisórias. Com efeito, é ele que deixa o maior espaço para a incerteza científica, visto que se refere à hipótese em que as provas científicas pertinentes são insuficientes. Porém, como também foi analisado, o Órgão de Apelação considerou que o princípio da precaução não se esgotava nesse único dispositivo do acordo. Então, convém examinar também outras informações a serem deduzidas do acordo como um sistema geral. Nos dois casos, encontra-se uma referência à prova científica (suficiente num caso, insuficiente no outro) e à avaliação do risco. O espaço deixado para a prova científica não significa ipso facto uma exclusão do princípio da precaução, da mesma maneira que a invocação do princípio da precaução não exclui ou não justifica a ausência de trabalho científico. Ao contrário, supõe freqüentemente a multiplicação das investigações científicas para apreciar o risco. Isso vem do próprio funcionamento dos mecanismos. No contexto do sistema geral, os Estados têm a livre escolha do nível de proteção. Então, esse pode ser superior em relação àquele implicado pelas normas internacionais. Simplesmente, isso conduz a obrigações materiais e procedimentais. De fato, enquanto um Estado cumpre somente as normas internacionais, as medidas que adota beneficiam de uma presunção de compatibilidade com o Acordo SPS. Ao contrário, logo que ele quer ir além delas, deve justificar sua escolha trazendo provas científicas suficientes, o que supõe que tenha procedido a uma avaliação dos riscos. Trata-se de uma obrigação, antes de tudo, de procedimento. No entanto, é importante revelar que o direito de escolher o nível de proteção apropriado (ou o nível aceitável de risco de acordo com o anexo A do Acordo SPS) é, segundo o Órgão de Apelação, “um direito autônomo e não uma ‘exceção’ de uma ‘obrigação geral’consoante o artigo 3:1.”21 As implicações dessa afirmação situam-se notadamente no campo do ônus da prova, tendo o Estado-autor que, pelo menos, fornecer um início de prova de violação do Acordo SPS. No sistema das medidas provisórias, o Estado deve, mesmo assim, apoiar-se sobre as informações disponíveis. Além do mais, ele deve esforçar-se para obter informações complementares para desenvolver uma avaliação mais objetiva do risco e poder reexaminar a medida provisória dentro de um prazo razoável. Sobre as noções-chave de risco e de prova científica, o Órgão de Apelação trouxe um certo número de precisões que tornam relativo o teor do Acordo SPS. No que tange à noção de risco, tal Órgão considera que o Acordo não contém indicação quantitativa mínima, mas somente indicações qualitativas. Assim, infirma o raciocínio do Grupo Especial, que parecia indicar que a avaliação dos riscos devia permitir “estabelecer para o risco uma ordem de grandeza mínima”. Para ele, “a imposição de tal prescrição quantitativa não se apóia sobre nenhuma disposição do Acordo SPS.”22 As implicações dessa precisão são claras. Não se trata de refazer a avaliação do risco e de procurar se o risco estabelecido pelo Estado existe realmente. Em outros termos, o Grupo Especial não 21 22 Relatório do caso da Carne com hormônios, parágrafo 172. Id., § 186. se pode questionar se teria feito a mesma avaliação e não pode, nem deve, sobre esse ponto, substituir sua apreciação por aquela do Estado. Isso não é o objeto de controle. Esse é a medida colocada em causa e trata de apreciar não se o Estado fez a avaliação certa, mas se a avaliação que fez pode, de forma válida e razoável, fundamentar a medida que ele tomou. A exigência de provas “suficientes” não remete à idéia de que as provas sejam em si suficientes para amparar o risco, mas se refere à relação entre a medida SPS e as provas (o caráter “suficiente” é um “conceito relacional”23). A avaliação dos riscos é, por assim dizer, o passaporte que permite estabelecer e manter uma medida SPS. No caso dos Produtos agrícolas, o Órgão de Apelação confirmou que essa avaliação não deve ser necessariamente fundada sobre um ponto de vista científico majoritário (muitos pontos de vista visionários são inicialmente minoritários, por uma parte, e, por outra, o Órgão de Apelação quer situar seu raciocínio na realidade, cuja prova laboratorial pode não ser suficiente). Todavia, deve tratar-se de uma verdadeira avaliação, quer dizer, de uma avaliação que não estabelece somente a possibilidade de um risco, mas que mede a sua probabilidade e traduz, então, esse famoso nexo entre provas científicas e medida SPS. Essa idéia, segundo a qual trata-se de avaliar a “probabilidade” do risco e não simplesmente sua possibilidade, já aparecera no caso dos Salmões.24 Em outros termos, a tarefa do Grupo Especial consiste em avaliar a qualidade da ligação entre a avaliação dos riscos e a medida tomada para preveni-los e determinar se essa medida está “suficientemente amparada ou razoavelmente justificada” pela avaliação dos riscos. É precisamente a prova que faltava, da parte da Comunidade Européia, no caso da Carne com hormônios, pois essa avaliação dos riscos cobria substâncias não dispostas em causas no caso enquanto hormônios não incluídos na proibição foram objeto de uma análise científica. Trata-se do que o Órgão de Apelação qualifica de “relação lógica” ou ainda de “elo racional,”25 o qual só pode ser apreciado caso a caso. Esse ângulo de análise é bem entendido quando relacionado à posição tomada que concerne à prova científica, cujo Órgão de Apelação torna relativo tanto o lugar quanto o alcance. Em primeiro lugar, tratando-se dos elementos de prova necessários, o Acordo SPS visa, a um certo número de métodos e meios que remetam todos a uma avaliação de 23 Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 73. Relatório, parágrafo 123. 25 Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 79. 24 tipo científico (art. 5:226). Entretanto, o Órgão de Apelação torna relativo, precisando que é essencial não perder de vista que o risco que deve ser avaliado (consoante o artigo 5:1) não se restringe unicamente ao risco verificável num laboratório científico que funciona em condições rigorosamente sob controle, mas também torna relativo o risco para as sociedades humanas tais como existem na realidade, ou para dizê-lo de outra forma, os efeitos negativos que poderiam efetivamente existir quanto à saúde das pessoas no mundo real, onde as pessoas vivem, trabalham e morrem.”27 Podemos considerar que os produtos não serão necessariamente consumidos em condições laboratoriais. É uma resposta à posição que os Estados Unidos queriam ter visto prevalecer. Ou seja, só são calculadas provas científicas (ponto de vista que já haviam sustentado no momento da negociação do Acordo SPS e que retomaram frente ao Grupo Especial). O Órgão de Apelação deixou muito claro: a prova laboratorial não é a prova real. É uma maneira de afirmar a contingência da prova científica. Segundo alguns, pode-se ver outra expressão da precaução. Ao menos ela realça uma relativação do recurso à perícia científica.28 Em segundo lugar, essa afirmação é completada por uma análise profundamente relativista da prova científica, tomando posição de que ela não traz automaticamente uma certeza absoluta.29 As incidências sobre a própria concepção de avaliação dos riscos, obrigatória para o Estado, são evidentes. Essa avaliação não reflete necessariamente um ponto de vista monolítico, nem mesmo majoritário. Se os governos têm a tendência de se fundamentar mais sobre a opinião majoritária, também pode-se conceber que eles escolhem, de boa fé, basear-se sobre um ponto de vista minoritário. O fato de que um ponto de vista seja minoritário não cria obstáculo para que uma avaliação, apoiada sobre esse ponto de vista, possa razoavelmente fundamentar a medida tomada. O Órgão de Apelação nota que é particularmente o caso “quando o risco em questão pode ser mortal e que é percebido como criando uma ameaça evidente ou iminente para a saúde e a 26 “2 - Na avaliação dos riscos, os Membros terão em conta provas científicas disponíveis, processos e métodos de produção pertinentes, métodos de inspecção, amostragem e ensaio aplicáveis, ocorrência de doenças ou parasitas específicos, existência de zonas indenes de parasitas ou doenças, condições ecológicas e ambientais pertinentes e regimes de quarentena ou outros.” (tradução não oficial). 27 Relatório Carne com hormônios, parágrafo 187. 28 O problema da imparcialidade dos peritos aparece em outros lugares. Ficou claro no caso do amianto no qual, tendo em vista o pequeno número de peritos na matéria, tornou-se bastante complicado designar peritos que não fossem suspeitos de ligações com as indústrias envolvidas. 29 Relatório Carne com hormônios, parágrafo 194. segurança pública.”30 Não se pode admitir de forma melhor uma certa subjetividade na escolha. A própria existência de opiniões dissidentes pode ser reveladora e pode haver matéria para medida SPS, se não houver unanimidade dos peritos. Então, por que os Estados, cujas medidas eram colocadas em causa nos casos julgados, perderam sistematicamente? Será que o desfecho não se encontra em outro lugar ? ii) Os limites Eles resultam de princípios gerais que valem para toda situação de gestão dos riscos. As medidas de precaução são, na verdade, apreciadas de vários pontos de vista, e é aqui que se encontra a lógica comercial e os “desfechos”. a) Em primeiro lugar, a constatação de que a ciência não resolve tudo tem duas reservas. Por uma parte, essa relatividade tem um “mínimo”, mesmo que isso deva ser apreciado caso a caso. Nesse “mínimo” deduz-se, no Acordo SPS, dois sistemas, um das medidas provisórias e outro das medidas permanentes. Cada um deles tem sua razão de ser e deve conservá-la. Na visão do Órgão de Apelação, “uma interpretação ampla e flexível demais” do dever de não fazer uso de medidas SPS sem provas científicas suficientes “privaria de sentido o artigo 5:7”, tornando inócuo um sistema de medidas provisórias.31 Em outros termos, para que esse mecanismo tenha um efeito útil e o recurso a medidas provisórias tenha um sentido, não é preciso uma interpretação demasiado laxista das obrigações gerais. Por outra parte, o Acordo SPS não permite calcular outras considerações, além de considerações científicas, como justificativa das medidas restritivas. b) Em segundo lugar, a aplicação do conceito de nível apropriado das proteções está submetida a uma exigência de coerência. Essa é colocada pelo artigo 5:5 do Acordo SPS, que prevê que cada Estado-membro há de evitar “criar distinções arbitrárias ou injustificáveis em níveis que considera apropriados em situações diferentes, se tais distinções levam a uma discriminação ou uma restrição disfarçada para o comércio internacional.” Trata-se, aqui, de detectar a ‘instrumentalização’ das normas sanitárias para fins protecionistas, comparando o comportamento do Estado na situação em causa 30 31 Idem, § 194. Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 80. com aquele adotado em campos diferentes, mas onde existe um risco do mesmo tipo. Consoante a lógica inerente ao direito da OMC, procura-se o uso de discriminações injustificadas. Assim, a exigência de coerência não foi considerada satisfatória no caso dos Salmões. É verdade que a Austrália aplicava suas medidas SPS para o salmão, mas não para o peixe dourado*, mesmo se a situação desses peixes é tida como semelhante. O comportamento australiano não foi então considerado coerente e resultou numa dúvida quanto às suas intenções. A problemática dessa apreciação reside evidentemente na escolha do âmbito de apreciação da coerência e na determinação das comparações possíveis. Se o Órgão de Apelação admite que situações devem ser comparáveis, ele, no entanto, ficou com uma análise compreensiva da comparação. Assim, no caso da Carne com Hormônios, estima que situações são comparáveis quando apresentam um ou vários elementos comuns suficientes para torná-los comparáveis32. Não é necessário que todos os elementos sejam idênticos. No caso dos Salmões, a Austrália sustentava que as situações comparáveis deviam comportar, ao mesmo tempo, um risco de entrada, de estabelecimento ou de disseminação de uma doença idêntica ou similar, assim como um risco de conseqüências biológicas e econômicas idênticas ou similares. De acordo com o Órgão de Apelação, basta que uma situação apresente um ou outro risco para tornar-se comparável. Entretanto, permanece-se com uma visão estritamente “sanitária”, enquanto pode haver outros motivos para a diferença de tratamento entre situações consideradas comparáveis. Assim, o aspecto “cultural” não é suscetível de ser implementado no quadro dessa apreciação de coerência. É ainda menos surpreendente que a receptividade para essa variável seja, de forma geral, muito fraca.33 Contudo, o debate está sendo reativado pelos movimentos anti-OMC ou anti-globalização, com, notadamente, a denúncia da “comida ruim.” c) Em terceiro lugar, as medidas de precaução estão submetidas a uma exigência de proporcionalidade. Esse debate, que trata da ponderação das controvérsias imperativas * A comparação no painel é feito com o arenque e com peixes ornamentais. [nota dos organizadores] Relatório parágrafo 217, confirmado no Relatório Salmões, parágrafo 146. 33 Ver, por exemplo, o caso Canadá – Certas medidas concernindo os periódicos (WT/DS31/AB/R), Relatório de apelação do 30 de junho de 1997, e caso Coréia - Taxas sobre as bebidas alcoólicas (WT/DS75/1, WT/DS84/1), Relatório de apelação de 18 de janeiro de 1999. 32 presentes, é inerente ao princípio da precaução. A análise feita na OMC não apresenta, então, antinomia em relação à visão habitual. A exigência de proporcionalidade significa que as decisões escolhidas só devem ser aplicadas “na medida necessária para proteger a saúde e a vida das pessoas e dos animais ou preservar os vegetais” (art. 2:234 do Acordo SPS). A indicação vale também para as medidas provisórias. Ela pode, nesse último caso, parecer complicada de se aplicar, visto que, por definição, encontra-se numa situação na qual o risco não pode ser avaliado com precisão. Porém, é preciso ir atrás das intenções discriminatórias. Para isso, há de se verificar se não existia uma medida de substituição que fosse ao mesmo tempo: - razoavelmente aplicável, tendo em vista as possibilidades técnicas e econômicas, - que permitisse obter o nível de proteção julgado apropriado; e - que seja sensivelmente menos restritiva para o comércio. Em todos os casos julgados até o presente momento, as medidas de proibição em estudo mostraram-se das mais draconianas possíveis. Como tais, elas suscitaram a desconfiança. d) Enfim, se é possível ler a lógica da precaução nos dispositivos do Acordo SPS, ela funciona dentro sentido das obrigações impostas por este acordo. Em outras palavras, ela se ajusta à filosofia do acordo. A proteção é essencialmente de procedimento, com obrigações rigorosas. Vale aqui relembrar que o Acordo SPS abrange também as medidas que já estavam sendo aplicadas quando ele entrou em vigor. Isso significa que os Estados envolvidos deveriam ter implementado os procedimentos requeridos para suas medidas já em curso, o que não fizeram. Assim, no caso da Carne com hormônios, a Europa não perdeu pelo fato de que os hormônios não eram considerados perigosos. Ela perdeu porque não tinha feito uma avaliação do perigo para todos os produtos que ela colocou em causa. No caso dos Produtos agrícolas, o Japão tropeçou nas exigências de procedimentos em matéria de medidas provisórias. O benefício desse regime supõe que quatro condições cumulativas sejam satisfeitas: 34 “2 - Os Membros assegurarão que qualquer medida sanitária ou fitossanitária só seja aplicada na medida necessária à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais ou à proteção vegetal, seja baseada em princípios científicos, e não seja mantida sem provas científicas suficientes, com exceção do previsto no número 7 do artigo 5.º” (tradução não oficial). - as informações científicas pertinentes devem ser insuficientes; - a medida deve ser adotada com base nas informações pertinentes disponíveis; - o Estado deve esforçar-se para obter informações complementares a fim de proceder a uma avaliação mais objetiva do risco; e - em conseqüência, deve examinar a medida num prazo razoável. Essas condições indicam que prevalece uma concepção dinâmica. Em outros termos, não se pode ficar no provisório. O Órgão de Apelação considera que essas quatro condições são “cumulativas por natureza e…de igual importância.”35 Em outros termos, elas não são hierarquizadas, nem suas verificações submetidas a qualquer ordem. A falta de uma é suficiente para excluir a aplicabilidade do artigo 5:7. A averiguação para qual procede o Grupo Especial pode então, conseqüentemente, ser limitada, como o fez em espécie, o que é uma forma de economia jurisprudencial (bastou constatar que uma condição não era satisfeita). Na ocasião, o Grupo Especial interessou-se pela condição segundo a qual o Estado envolvido deve esforçar-se para obter, num prazo razoável, informações complementares para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco. Tendo em vista a interpretação escolhida, trata-se aqui de uma obrigação de meios, ou seja, sem precisão dos “resultados efetivos a serem obtidos.” O Estado deve provar que pelo menos tentou obter informações adicionais, mesmo não conseguindo-as. Entretanto, é preciso que as informações buscadas estejam adequadas ao objetivo de avaliação dos riscos, o que não era o caso relativo ao Grupo Especial. Em outros termos, foi a passividade do Japão que foi condenada. Ela é suspeita, ainda mais por ter durado 20 anos. Esse prazo não é, no entanto, qualificado como fora do razoável. Trata-se, aqui também, do caso a caso. Deve-se, notadamente, computar as dificuldades de obtenção das informações adicionais necessárias.36 Além do mais, a obrigação procedimental começou a existir em 1995. Contudo, mesmo com essas considerações, o Japão não respeitou o prazo razoável. O Órgão de Apelação estimou, em particular, que as informações requeridas eram facilmente averiguáveis e que a ausência de qualquer esforço, nesse caso, é significativa. 35 36 Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 89. Relatório Produtos agrícolas, parágrafo 92. Isso excluiria a possibilidade de utilização desse procedimento para incertezas duradouras? A pergunta poderia, notoriamente, ser feita em relação aos organismos geneticamente modificados (OGM). É difícil concluir com certeza, o que explica porque os Estados mais reticentes preferem tentar resolver o problema fora da OMC. Contudo, os textos recentemente negociados em nível internacional não excluem expressamente que a OMC possa tomar medidas de proibição ou de restrição. Ora, no seu âmbito, para justificar tais medidas, é preciso, no mínimo, assumir duas obrigações. A primeira é uma obrigação de comportamento, que consiste em ajustar a medida em função do conhecimento científico sobre o risco. E a segunda é uma obrigação de procedimento, que implica reexaminar a medida num prazo razoável e, se quisermos que ela seja prolongada, analisá-la periodicamente. Então, não se pode concluir nem que seja uma antinomia, nem que se trata de um desconhecimento da precaução pela OMC. As limitações das quais é objeto não são nada além do reflexo da desconfiança dos Estados no que diz respeito a um uso abusivo de um princípio tão facilmente conversível para a legitimação do protecionismo. Referências bibliográficas GOH, G., ZIEGLER, A. R. “A Real World Where People Live and Work and Die – Australian Measures After the WTO Appellate Body’s Decision in the Hormones Case” in Journal of World Trade, 1998, n. 5, pp. 271-‐290. RUIZ FABRI, H. “Chronique du règlement des différends de l'O.M.C.” in Journal du Droit International. 1999, n. 2. RUIZ FABRI, H. “L'appel dans le règlement des différends de l'O.M.C., trois ans après, quinze rapports plus tard...” in Revue Générale de Droit International Public, 1999, n.1, pp. 49-‐127. RUIZ FABRI, H. E SOREL, J.-M. “Chronique de jurisprudence de la Cour internationale de Justice” in Journal de Droit International, 1998, n.3, pp. 773-801. PAUWELYN, J. “The WTO Agreement on Sanitary and Phytosanitary (SPS) Measures as Applied in the First Three SPS Disputes, EC – Hormones, Australia – Salmons and Japan – Varietals” in Journal of International Economic Law, 1999, p. 641-‐ 664. Capítulo 12 Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio: da oposição filosófica para os ajustes técnicos? Christine Noiville* Em se tratando do meio ambiente e da saúde, o risco ecológico e sanitário nunca dividiu tanto os Estados. Mesmo que o risco os una em uma mesma “comunidade de destino” e os leve, às vezes, a construir um direito comum1, este aparece como um motivo de tensão crescente nas relações internacionais, de um modo geral2, e comerciais, em particular. Analisemos melhor: em cinco anos, o direito do comércio internacional foi o palco de quatro processos baseados na mesma preocupação de um Estado – ou grupo de Estados – em restringir o comércio de um produto para prevenir o risco sanitário ou ecológico a ele relacionado3. Os contenciosos relativos às proibições comunitárias de importação de produtos de amianto ou de carne bovina norte-americana tratada com hormônios foram apenas os primeiros de uma longa série prevista. Para certos Estados, a segurança desses produtos para o consumidor não está comprovada. Os alimentos geneticamente modificados ou outros hormônios de aumento de produção do leite são de fato objeto de medidas restritivas ao comércio4, sendo também consideradas passíveis de serem levadas ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do * Pesquisadora do CNRS. Co-coordenadora do Centro de Pesquisa em Direito das Ciências e Técnicas, UMR 8056, Universidade Paris I, Panthéon-Sorbonne. 1 M. Delmas-Marty e M.-L. Izorche, “Marge nationale d’appréciation et internationalisation du droit : réflexions sur la validité formelle d’un droit commun pluraliste”, Revue de Droit de McGill, agosto de 2001, v. 46, n. 4, p. 926. 2 Ver, por exemplo, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, Irlanda v. Reino-Unido, caso da fábrica MOX, 3, dezembro de 2001. 3 Comunidades Européias – Medidas sobre a carne e produtos contendo carne, relatório do Grupo Especial, 18 de agosto de 1997 e relatório do Órgão de Apelação, 16 de janeiro de 1998 ; Austrália – Medidas visando às importações de salmão, relatório do Grupo especial, 12 de junho de 1998 e relatório do Órgão de Apelação, 20 de outubro de 1998 ; Japão – Medidas visando aos produtos agrícolas, relatório do Grupo especial, 27 de outubro de 1998 e relatório do Órgão Especial, 22 de fevereiro de 1999 ; Comunidades Européias – medidas afetando o amianto e os produtos contendo amianto, relatório do Grupo Especial, 18 de setembro de 2000 e relatório do Órgão de Apelação, 12 de março de 2001. A respeito destes casos citados como hormônios, salmão, produtos agrícolas, e amianto, ver infra. 4 A proibição da comercialização deste produto na União, Com (99) 544 final do 27 de outubro de 1999, JOCE C21 E/70, 25 de janeiro de 2000. Comércio (OMC)5. Como esses produtos são mercadorias destinadas a circular no mercado internacional, a maior parte dos contenciosos comerciais que suscitam também será resolvida no mesmo mercado internacional6. Então, é na OMC que, por sua vez, será decidido o confronto entre duas “filosofias de risco”. Existem duas lógicas opostas de consideração do risco que colocam em questão cada uma dessas controvérsias. Uma delas encontra-se traduzida, na ordem jurídica, pelo princípio da prevenção: somente obriga a se preocupar com os riscos e a procurar preveni-los se sua existência for constatada7. O risco não é estabelecido pela experiência ou pela demonstração científica. Então, a liberdade de pesquisa e a de empreendimento ficam com a razão. A outra lógica provém do famoso princípio da precaução. A ausência de certezas científicas não constitui uma razão para adiar a adoção de medidas que poderiam permitir a prevenção de um eventual dano8. Assim, o princípio autoriza, até mesmo obriga, a não esperar que um risco se confirme para retirar do mercado ou proibir a comercialização de um produto cuja segurança é duvidosa. Prevenção por um lado, precaução pelo outro: o precipício entre estes dois “modelos” de gestão dos riscos ecológicos e sanitários, lamentava o Delegado europeu Pascal Lamy, é um dos mais graves que já existiram entre o direito norte-americano e o direito comunitário9. A afirmação é exagerada10, mas concordemos em uma evidência: no 5 Sobre esta jurisdição da qual se sabe que as decisões são de agora em diante executórias, ver J. Cameron e K. Campbell, Dispute Resolution in the WTO, Cameron May, Londres, 1998 e E. Canal-Forgues, “La procédure d’examen en appel de l’OMC”, Annuaire Français de Droit International, XIII, 1996, p. 845 e seguintes. 6 Incluindo, sem dúvida, para certos produtos como os OGM, cujo comércio internacional é, no entanto, regulamentado por um acordo multilateral de meio específico, o Protocolo de Cartagena. Sobre este ponto, atualmente debatido no âmbito do “Comitê Comércio e Meio Ambiente” da OMC, ver M.-A. Hermitte e C. Noiville, “Marrakech et Carthagène comme figures opposées du commerce international”, in J. Bourrinet e S. Maljean-Dubois (dir.), Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, 2002, p. 317 e seguintes, E.-U. Petersman, International and European trade Law after The Uruguay Round, Kluwer Law, 1997, e J.-L. Nissen, “Achieving a balance between trade and the environment : the need to amend WTO/GATT to include multilateral environmental agreements”, Law and Policy in International Business, 1997, v. 28, n. 3, p. 901 e seguintes. 7 Ver M.-A. Hermitte (dir.), La liberté de la recherche et ses limites. Approches juridiques, Romillat, droit et technologie, Paris, 2001, p. 19 e seguinte e Ch. Noiville, Ressources génétiques et droit, op. cit., p. 27 e seguintes e 199 e seguintes. 8 Sobre a variação das definições de um texto para outro, ver infra. 9 Ver sobre este ponto S. Charnovitz, “The supervision of Health and Biosafety Regulation by World Trade Rules”, Tulane Environmental Law Journal, 2000, n 13, p. 295. 10 Com efeito, devemos evitar a oposição de dois “modelos” exclusivos, característicos do único direito americano e europeu. Quem, além das autoridades americanas, decidia recentemente “por razões de precaução”, excluir das doações de sangue todos os indivíduos que permaneceram mais de seis meses no direito comunitário, o princípio da precaução não pára de ganhar terreno11, constituindo uma fonte inegável de medidas restritivas ao comércio e, conseqüentemente, de contenciosos comerciais que podem ser levados diante da OMC. Ora, de acordo com um discurso dominante, o direito da OMC e o princípio da precaução seriam inconciliáveis. Os Órgãos de Solução de Controvérsias se recusaram a considerar o princípio como de direito costumeiro internacional, no caso dos hormônios bovinos, porque não havia uma definição jurídica consolidada, e a doutrina ainda batalhava em relação a seu valor normativo. 12 Assim, julgam as medidas de precaução em litígio, fundamentados apenas sobre as regras do comércio internacional. Todavia, movidas por um reforço da lógica de expansão do comércio internacional, estas regras foram reforçadas, em 1994, por novos acordos cujo objetivo prioritário é o de conseguir evitar, particularmente em matéria de segurança sanitária, o uso de medidas unilaterais, escondendo barreiras disfarçadas contra as trocas comerciais13. Assim, nasce a idéia de que a OMC consideraria qualquer tentativa de precaução como uma nova forma disfarçada de protecionismo, o que, de fato, pode ser verdade. Não admitiria que o princípio da precaução pudesse produzir o menor efeito jurídico e, por sua vez, imporia ao consumidor europeu correr riscos alimentares, confiscando-lhe a faculdade de escolher o nível de risco que ele julga como aceitável. Tal constatação tornaria mais urgente do Reino-Unido, durante a crise da vaca louca ? Ver para isto M. Setbon e B. Dufour, “Sécurité virale en transfusion saguine. Du test de l’antigène p24 au dépistage génomique viral” in Comité national de la sécurité sanitaire, Risque et sécurité sanitaire. Critères, méthodes et procédures utilisés dans les processus de décision de sécurité sanitaire, Relatório para o Diretor geral da saúde, Paris, novembro de 2001, p. 15 e seguintes. 11 Progressivamente ampliado, do campo do meio ambiente (art. 174 do Tratado C. E.), para aqueles da saúde e da alimentação (ver a jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades Européias, em particular National farmers’Union, caso C-157/96 de 5 de maio de 1998, Recurso 1998-5, I-2236 ; Reino-Unido v. Comissão européia, caso C-180/96 de 5 de maio de 1998 , Recurso 1998-5, I-2269 ; Pfizer Animal Health S.A, caso T 13/99 do dia 11 de setembro de 2002 e Alpharma Inc., caso T 70/99 do dia 11 de setembro de 2002), hoje não seria mais permitido duvidar de seu valor como princípio geral do direito comunitário. Ver, notadamente Artegadon v. Comissão, caso T 74/00 do dia 26 de novembro de 2002, pontos 182 e seguintes. “Embora seja somente mencionado no tratado com a política do meio ambiente, o princípio da precaução tem (…) um campo de aplicação mais amplo. Tem por vocação aplicar-se, visando assegurar um nível de proteção elevado da saúde, da segurança dos consumidores e do meio ambiente, no conjunto dos campos de ação da Comunidade Européia. (…) Disso resulta o fato de que o princípio da precaução pode ser definido como um princípio geral do direito comunitário”. 12 Ch. Noiville, “Principe de précaution et Organisation mondiale du commerce. Le cas du commerce alimentaire”, Journal du Droit Internatonal, 2000/2, p. 263 e seguintes. 13 Campo fértil em medidas potencialmente protecionistas, como o mostram D. Bureau e J.-C Bureau, Agriculture et négociations commerciales, relatório para o Primeiro Ministro, Conselho de Análise Econômica, 1999. que nunca o necessário retorno a uma escolha democrática, seja por meio de um novo legislativo planetário, que deveria ser instituído de forma urgente14, seja pelo viés da soberania nacional15, quadro mais clássico, reforçado na ocasião, por um “direito dos povos de escolher livremente seus modos alimentares”16. Hoje, entretanto, a questão das ligações entre o princípio da precaução e o direito da OMC deve ser formulada de forma mais sutil. De fato, quem negaria hoje que, com o passar do tempo, uma nova articulação se estabelece, na qual as modalidades “técnicas” estão em fase de ajuste? Pois ela é evidente, sobretudo em se tratando do Acordo sobre as medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), que discutiremos aqui. (I). Nessas condições, não se trata mais de observar para deplorar a oposição filosófica entre os princípios da precaução e de livre comércio; trata-se de se concentrar nas modalidades técnicas concretas das combinações entre estes dois princípios e de se aprender a dominar, até mesmo a modelar, o uso destas combinações, pois é a partir delas que, de agora em diante, depende o alcance da articulação, que trataremos na segunda parte do capítulo (II). 1. Uma certeza : a possível articulação do livre comércio e da precaução É importante partir do acordo sobre medidas sanitárias e fitossanitárias, porque a jurisprudência fundamentada neste acordo demonstra claramente a amplitude dos ajustes realizados e, em última análise, do caminho percorrido: a possibilidade, ao menos teórica, de uma conciliação entre o livre comércio e a precaução não parece mais ser colocada em dúvida (B), ainda que um conflito lógico pareça ser intransponível, à primeira vista (A). 14 J. Attali, Libération, 4-5 de dezembro de 1999, p. 4. « William Abitbol e José Bové, deux visions du souverainisme », Le Monde, 17 de novembro de 1999, p. 14 e Courrier International, n° 75, 9-15 de dezembro de 1999, p. 13. Ver ainda os artigos de M. Chemillier-Gendreau e S. George em « Jusqu’où démanteler la souveraineté des Etats ? », Le Monde Diplomatique, 8 de julho de 1999. 16 Le Monde, 4 de setembro de 1999. Se este direito, remetendo ao famoso direito dos povos a disporem deles mesmos, é entendido por alguns como o direito para um Estado de apresentar suas posições no concerto internacional, outros o vêem em sua vertente “direito de secessão” e defendem, por meio dele, a auto-suficiência alimentar, até mesmo a renúncia da filosofia do livre comércio. Ver, por exemplo, os artigos de P. Nicholson e Y. Jadot em La sécurité alimentaire face à l’OMC, Coopération internationale pour la démocratie, n°8, dezembro de 1998, p. 99 e s. e 105 e s. Ver mais em geral o medo, ancestral, mas de agora em diante nutrido pela ideologia antiamericana, de depender de países estrangeiros no campo da alimentação, assim como a negação do desafio que constitui para Europa a exportação de produtos agroalimentares. Ver Scherrer, Le Monde, 3 de dezembro de 1999, p. 18. 15 i) Um conflito de lógica aparentemente intransponível Lembremos como se inicia exatamente tal conflito: de um lado, o princípio da precaução autoriza a adoção de medidas protetoras em caso de incerteza cientifica (1a ); do outro, o teor do acordo SPS só parece admitir tais medidas se estiverem amparadas pela prova científica (2a), realidade que torna a articulação, a priori, impossível (3a). 1a) Precaução e incerteza científica Se seus contornos exatos sempre foram objeto de debates múltiplos17, pelo menos o projeto geral do princípio da precaução é sem ambigüidades: em caso de risco potencial para a saúde, a precaução preconiza a ação, sem esperar que a existência do risco seja confirmada pela prova científica. O objetivo é ir além da lógica clássica, por meio do princípio da prevenção, inscrito há muito em nosso direito positivo, em favor de uma nova cultura do risco. Na lógica clássica, apenas um risco provado justifica a adoção de medidas de prudência: somente após a produção do dano ou que o mesmo se tenha tornado muito provável, é que se torna legítimo buscar os meios de canalizá-lo e prevenir sua realização. Ora, como se sabe, o princípio da precaução visa justamente inverter esta proposição. A experiência mostrou que, no que diz respeito aos campos científico e técnico, os balanços a longo prazo, às vezes, são contraditos pelo progresso a curto prazo. Trata-se de se criarem os meios de antecipar o surgimento de eventuais danos antes mesmo de se ter certeza de que correm o risco de serem produzidos. A dúvida e a incerteza sobre a segurança de um produto provocam, de agora em diante, efeitos jurídicos e justificam a adoção de medidas protetoras18. Compreende-se, então, que, na lógica da precaução, a incerteza científica suponha ou pelo menos autorize a restrição para o comércio sob forma de proibição de comercialização, de retirada do mercado ou de avaliação obrigatória dos efeitos de um produto sobre a saúde. 2a) Acordo SPS e prova científica Se se considera o acordo SPS, parece que a incerteza científica, em vez de autorizar a restrição do comércio, justifica a manutenção da livre circulação dos produtos. É preciso refletir alguns instantes sobre a arquitetura geral do texto para entendê-lo. 17 18 Ou constitui, em si, uma regra de direito de aplicação direta ? No que concerne a estas questões, ver Ch. Noiville, Ressources génétiques et droit, Pédone, Paris, 1997. Seu objetivo é claro: trata-se de desenvolver, em nível mundial,19 a harmonização das medidas sanitárias e fitossanitárias. A forma de conseguir isto também é clara, uma vez que um certo número de organizações internacionais de normalização já contribui consideravelmente para isto; convém incitar os Estados a se ajustarem às normas dessas organizações. Assim, no campo dos alimentos, qualquer medida sanitária conforme as normas do Codex Alimentarius – organização competente para a normalização do comércio alimentar – está presumidamente compatível com as regras da livre circulação. Com certeza, é bom não se enganar sobre os objetivos do acordo SPS: não se trata de nivelar por baixo as políticas sanitárias e, assim, impedir os Estados de adotarem todas as medidas de proteção da saúde que julgariam necessárias, no plano interno. Então, os Estados têm a reconhecida liberdade de escolher o nível de proteção sanitária que julgam apropriado e podem, conseqüentemente, “introduzir ou manter medidas sanitárias (…) que levam a um nível de proteção mais elevado (…)”20. Assim, as Comunidades Européias que queiram, de agora em diante, tornar a segurança alimentar uma prioridade absoluta, podem escolher, neste campo, a aplicação de regulamentações mais severas que as normas do Codex21. Contudo, se estas regulamentações conduzem a um conflito comercial frente aos órgãos de solução de controvérsias da OMC, as Comunidades deverão justificar sua severidade pela prova científica: a medida sanitária deve ser “fundada sobre princípios científicos” e não deve ser “mantida sem provas científicas suficientes”22. 19 Preâmbulo, 6o alínea e art. 3(1). O acordo SPS aplica-se para toda medida definida em função de seu objetivo (proteger a vida ou a saúde das plantas, animais e homens), do tipo de produtos para o qual se aplica (animais, plantas, aditivos, contaminadores, alimentos, etc.) e de sua natureza (lei, decreto, regulamentação, procedimento de AMM, etc.). 20 Art. 3(3). 21 Ver a respeito o Art. 13 do regulamento 178/2002/CE pré-citado : “Sem prejuízo dos seus direitos e obrigações, a Comunidade e os Estados membros (…) contribuem para elaboração das normas técnicas internacionais relativas aos produtos alimentares e alimentos para os animais, e das normas sanitárias e fitosanitárias (…), promovem a coerência entre as normas técnicas internacionais e a legislação alimentar fazendo com que o nível elevado de proteção adotado na Comunidade não seja abaixado”. 22 Art. 2 (2) e 3(3) Se a carga de prova incumbir primeiramente a parte requerente, ela é rapidamente transferida, na realidade, para o Estado que adotou a medida. Pois o que se espera do Estado requerente é um ou vários elementos de natureza a levar a presumida contrariedade da medida frente ao acordo SPS (é a regra prima facie), obrigação fácil de satisfazer num contexto científico pouco claro, figura que aqui nos interessa. Ver os relatórios de Órgão de Apelação em Hormônios, § 98 e seguintes, Salmões, § 8.40 e Produtos Agrícolas, § 118 e seguintes e J. Pauwelyn, « Evidence, proof and persuasion in WTO dispute settlement. Who bears the burden?», Journal of International Economic Law, n° 1, 1998, p. 227 e seguintes. O conceito de “princípio científico”, pouco familiar para os juristas, remete para duas exigências ligadas entre si. Em primeiro lugar, o Estado tem por obrigação, antes de adotar uma medida sanitária, avaliar o risco que está em jogo. Determinada substância química, presente num alimento, é fonte de perigo? Qual é a dosagem de consumo a partir da qual pode ser causado um efeito nefasto para o consumidor? Todo e qualquer questionamento deste tipo deve ser objeto de uma avaliação específica23. Em segundo lugar, a avaliação deve ter confirmado que o risco existe realmente e, depois, ter confirmado a necessidade de uma medida de proteção. Somente a existência de “provas científicas suficientes” do risco torna legítima a medida sanitária. Entretanto, os redatores do acordo SPS sabiam que era difícil manter essa interpretação rígida. Pois, quando uma epidemia começa, quando surge uma doença que parece estar ligada ao consumo de um alimento específico ou à importação de um tipo de gado, o Estado deve agir rapidamente. Antes mesmo de ter diligenciado as perícias necessárias e ter a certeza de que o incidente sanitário está realmente ligado a tal alimento, deve poder retirar provisoriamente o produto do mercado ou bloquear sua entrada, nas fronteiras. Neste caso, o tempo é, antes de tudo, usado para a adoção de medidas de urgência. É a razão pela qual, em seu artigo 5 (7), o Acordo autoriza os países, mesmo que “as provas científicas (sejam) insuficientes”, a adotar “provisoriamente” uma medida sanitária “com base nas informações pertinentes disponíveis”. No entanto, o texto determina que eles deverão esforçar-se “em obter as informações adicionais necessárias para proceder a uma avaliação mais objetiva do risco” e reexaminar a medida adotada na urgência, “num prazo razoável”. O artigo 5 (7) reconhece que os Estados têm a capacidade de restringir o comércio de um alimento quando, mesmo sem provas contundentes, duvidam de sua segurança. Mas esta capacidade, que remete ao que nosso direito interno conhece sob a forma de deixar de quarentena, de consignações ou de retiradas de produtos do mercado24, é apenas provisória. Além disso, a exigência de uma prova científica retoma a frente. Portanto, adotar uma medida na incerteza é possível; todavia, mantê-la por mais que um “prazo 23 Art. 5(1) Cada medida sanitária deve ser estabelecida “sobre a base de uma avaliação (…) dos riscos para a saúde e a vida das pessoas (…)”. A avaliação deve ser “suficientemente específica” (ver, por exemplo, Hormônios, Órgão de Apelação, § 201) e tomar conta “das técnicas de avaliação dos riscos elaboradas pelas organizações internacionais competentes”. 24 Ver, por exemplo, Art. L. 221-1 e seguintes do Código do consumo. razoável” supõe que a existência de um risco seja estabelecida por meio de provas suficientes. No entanto, o teor do acordo SPS não traz nenhuma dúvida: a justificativa científica impõe-se como a espinha dorsal do texto25. Aliás, é interessante constatar que ela constitui também uma especificidade dele. Com efeito, de todos aqueles que foram regulamentados em 1994 pelos novos acordos do GATT, somente o campo sanitário e fitossanitário foi pensado, tendo em vista essa exigência de racionalidade científica. O acordo sobre os obstáculos técnicos para o comércio, por exemplo, no que concerne ao conjunto dos regulamentos técnicos que não são sanitários ou fitossanitários26 – normas de segurança para os brinquedos, motores, etc. – prevê, embora as medidas adotadas pelos Estados-membros não sejam mais restritivas para o comércio, o que é necessário para que se proteja a saúde ou o meio ambiente. Por outro lado, constituem a alternativa menos restritiva para o comércio, o que implica, é claro, que estas regras não sejam arbitrárias e tenham uma justificativa científica. Mas, enquanto o acordo SPS é inteiramente construído sobre esta lógica, o acordo sobre os obstáculos técnicos ao comércio insiste mais sobre os objetivos perseguidos, sobre as circunstâncias que levaram à medida. A exigência de prova científica parece ser ainda menor no contexto do Acordo Geral (GATT): baseado nesse texto, um Estado pode teoricamente proibir a importação de um produto que considera ser potencialmente perigoso, se o tratamento severo for dado também aos produtos nacionais similares; sobretudo, beneficia-se de uma última exceção de saúde pública, permitindo-lhe restringir o livre comércio27. Se esta condição levar o Estado a ter de reforçar seu posicionamento, nenhum teste de validade científica é expressamente requerido. Caso se saia do campo de aplicação do acordo SPS, caso uma restrição nacional vise não a um alimento ou a uma bebida, mas, por exemplo, a um brinquedo ou ao amianto, a prova científica deixa manifestamente de constituir um 25 Ver para isto W.-H. Maruyama, « A new pilar of WTO : sound science », The International Lawyer, 1998, vol.32, n°3, p.651 e seguintes, assim como D. Wirth, op.cit. e M. Iynedjian, L’Accord de l’Organisation Mondiale du Commerce sur l’application des mesures sanitaires et phytosanitaires : une analyse juridique, L.G.D.J., Paris, 2002. 26 O acordo OTC, que visa ao combate às “entravas técnicas ao comércio”, é aplicável a todas as mercadorias. Então, os produtos do setor agroalimentício entram em seu campo de aplicação (tratando-se das normas e regulamentos técnicos relativos à informação dos consumidores ou aos aspetos nutricionais dos alimentos), com a exclusão, todavia, dos aspectos de segurança sanitária, que são ligados ao acordo SPS. 27 GATT, art. III. 4 e XX b). conceito tão decisivo. Por sua vez, a precaução parece a priori encontrar, nos outros acordos da OMC, maior ressonância que no acordo SPS. É que no campo no qual intervém a segurança sanitária e fitossanitária, a experiência mostrou, nestas últimas décadas, que as medidas sanitárias adotadas pelos Estados divergiam até chegarem a constituir o terreno preferido de obstáculos à livre circulação das mercadorias, no mercado internacional. Isto justifica a arquitetura do Acordo, inteiramente construído em torno do conceito de prova científica, critério julgado como o mais universal e mais confiável para criar a divisão das águas entre, de um lado, as medidas sanitárias necessárias e legítimas e, do outro, aquelas que dificultam de maneira ilegítima o comércio. Mas, de repente, a oposição entre livre comércio e precaução parece ainda mais intransponível. 3a) Os termos da oposição É necessário, logo de início, destacar esta oposição. Assim, as disposições relativas à avaliação dos riscos não são diretamente antinômicas com a lógica da precaução. Tais disposições, no acordo SPS, convidam os Estados a sistematizarem as perícias e, definitivamente, a assentarem sua política sanitária sobre o rigor científico e não sobre o empirismo. Nascido realmente das crises ecológicas ou sanitárias, das dúvidas sobre a aptidão da ciência em trazer respostas certas, o princípio da precaução trata com uma certa restrição os dados científicos, não esperando certezas totais. Mesmo assim, não quer dizer que desconsidera a ciência. Colocar em ação o princípio da precaução é, ao contrário, não se contentar com investigações científicas sumárias. É também multiplicar os controles e perícias, rodearse do máximo de opiniões antes de colocar este ou aquele outro produto no mercado ou quando uma dúvida existe sobre a segurança do outro28. Então, a exigência de rigor científico requerido pelo acordo SPS não constitui em si um problema. Outro conceito que ocupa um lugar de destaque neste texto é a noção de medida de urgência, que também constitui um aspecto da precaução. Viu-se que, na urgência, quando existe uma dúvida e faltam os dados científicos objetivos, o acordo SPS autoriza 28 Ponto de partida amplamente compartilhado em direito interno pela doutrina. Ver Ph. Kourilsky e G. Viney, Le principe de précaution, Odile Jacob/La Documentation Française, Paris, 2000. Ver também as contribuições de M.-A. Hermitte, O. Godard et Ch. Noiville in « Le principe de précaution », Les Petites Affiches, n° especial, 30 novembro de 2000. os países a procederem à retirada de um produto do mercado ou ao fechamento provisório de suas fronteiras. Ora, é evidente que tais medidas de polícia sanitária constituem fragmentos do princípio da precaução. Quando aparecem indícios de contaminação das aves, da carne bovina ou da Coca-Cola, o fato de um Estado adotar tais medidas sem esperar ter certezas, conforme a autorização do artigo 5 (7) do acordo SPS, denota claramente uma cultura de precaução e confirma, se preciso, que tal cultura já subtende certas disposições jurídicas antigas. Convém, portanto, matizar a oposição. Trata-se, ao mesmo tempo, de compreender que a precaução não poderia ser reduzida às medidas provisórias de urgência, adotadas num contexto de crise. Tratando-se das aves ou da Coca-Cola, separar os produtos, retirá-los do mercado ou realizar perícias paralelas destinadas a identificar as causas da contaminação constituem, afinal, medidas clássicas de policiamento administrativo, que revelam uma concepção não menos clássica que a noção de interesse geral. Vale insistir sobre o fato de que uma gestão de precaução engloba e ultrapassa essas medidas provisórias. Inicialmente, existem incertezas duradouras quanto aos efeitos de certos produtos. Estas incertezas não são dissipadas em apenas alguns meses de pesquisas e necessitam, então, de uma manutenção das medidas, além do prazo provisório. Basta pensar simplesmente na encefalopatia espongiforme bovina : quase quatro anos depois da adoção das primeiras medidas de urgência, a ligação entre esta patologia e a doença de Creutzfeldt-Jacob ainda não foi estabelecida com segurança e sabemos até que ponto durou a controvérsia sobre ser conveniente e em que condições suspender o embargo sobre a carne britânica29. No entanto, uma vez passada a crise sanitária, uma incerteza sanitária deve ser gerenciada. Além disso, e de forma mais profunda, o princípio da precaução supõe não esperar as crises, e sim preveni-las e, então, agir antes que se chegue a uma situação de urgência. As regras de desenvolvimento de alimentos geneticamente modificados constituem, por este lado, um exemplo emblemático dessa estratégia. Antes mesmo de terem causado o menor dano, mas com o único motivo de serem advindos de técnicas inéditas e esta novidade gerar uma incerteza sanitária, a Comissão Européia escolheu esperar antes de difundir os produtos em grande 29 Ver, por exemplo, Corte de Justiça das Comunidades Européias, Comissão v. França, caso C-1/00 do 13 de dezembro de 2001, Rec. p. 9989. escala, no meio ambiente e na alimentação30. A precaução não está aqui reduzida à gestão de uma crise ou de uma urgência. É concebida como uma ferramenta de acompanhamento de um novo desenvolvimento tecnológico: trata-se de avaliar os produtos antes de sua colocação no mercado, de acompanhar seus efeitos, de constituir um tipo de “jurisprudência científica” e, conseqüentemente, de estabelecer um prazo para uma reflexão prévia e para uma aprendizagem obrigatoriamente progressiva sobre os efeitos de um novo modo de produção. Mais de dez anos depois dos primeiros desenvolvimentos das plantas geneticamente modificadas, uma parte da comunidade científica diz que precisa ainda aprender a formular as questões de segurança pertinentes. Incertezas ligadas não a uma crise, mas à novidade de um produto, incertezas duradouras; no que diz respeito ao teor do acordo SPS, não existem incertezas deste tipo, que duram e necessitam da gestão de um risco a longo prazo, mas somente situações temporárias de incerteza, rapidamente redutíveis, se houver um aprimoramento de pesquisa. Em suma, vê-se muito bem onde se encontra, pelo menos aparentemente, o principal ponto de conflito entre o acordo SPS e o princípio da precaução. No acordo SPS, a precaução parece reduzir-se ao regime jurídico único das medidas provisórias adotadas em caráter de urgência. Uma vez passado o prazo, a alternativa é simples: os dados científicos objetivos confirmam claramente a necessidade de manter as medidas ou estas não são amparadas por “provas científicas suficientes” e, portanto, devem desaparecer . A este ponto do conflito é preciso acrescentar outro, não tão obviamente perceptível, que se origina na exigência de proporcionalidade das medidas de precaução. Com efeito, o acordo SPS impõe que toda regulamentação sanitária seja aplicada apenas para proteger a saúde e a vida das pessoas e que não seja restritiva ao comércio mais do que o necessário para a obtenção do nível de proteção sanitário apropriado31. Esta exigência é clássica no que concerne ao direito do comércio internacional. Ora, o princípio da precaução pode articular-se com esta exigência? Como estabelecer a 30 31 Ver as diretivas e regulamentações pré-citadas. Acordo SPS, art. 2(2) e 5(6). necessidade de uma medida de precaução para um risco vago e, conseqüentemente, dificilmente quantificado ? Prova científica e proporcionalidade: eis duas exigências que, aparentemente, tornam intransponível o conflito da lógica entre o princípio da precaução e o acordo SPS. É, pois, ainda mais notável que apareça, de agora em diante, uma possibilidade de articulação real. ii) Uma articulação Tal articulação, da qual se tornou possível definir os termos principais, é fruto de um duplo caminhar: por um lado, as Comunidades Européias não pararam de precisar o sentido do princípio da precaução e de submeter sua aplicação a uma série de referências parcialmente inspiradas no acordo SPS (1o) ; quanto à jurisprudência da OMC, ela entendeu, de forma clara, que devia deixar difundir-se, em sua interpretação deste acordo, uma idéia real de precaução (2o). 1o) As referências trazidas para o princípio da precaução O princípio da precaução deve ser “considerado no contexto de uma aproximação estruturada da análise dos riscos (…)”. Sua aplicação necessita de “dados confiáveis e raciocínio lógico”, segundo o enunciado da Comunicação da Comissão Européia sobre o recurso para o princípio da precaução32. O princípio da precaução somente tem futuro, acrescenta o advogado-geral J. Mischo, se “longe de abrir um espaço imenso para a irracionalidade, ele se afirma como elemento de uma gestão racional dos riscos, visando não a chegar ao risco zero, como se pensasse que ele não existe, mas a limitar os riscos aos quais estão expostos os cidadãos, no menor nível razoavelmente possível”33. O conjunto resume bem a idéia essencial que se sobressai em direito comunitário e que pode resumir-se da seguinte forma: se for necessário que a incerteza científica produza efeitos jurídicos, convém ainda estabelecer referências, de forma a não diluir o princípio da precaução em aplicações que poderiam mostrar-se inúteis, até mesmo perigosas, multiplicando os atrasos de inovação, paralisando as atividades econômicas e o comércio internacional. Selecionar os esforços de precaução para fazer com que a 32 Ver a Communication de la Commission sur le recours au principe de précaution, Com(2000)1 final, do qual um dos objetivos consiste em evitar todo e qualquer recurso injustificado para o princípio da precaução, como forma disfarçada de protecionismo. 33 National Farmers’ Union c. Secrétariat Général du Gouvernement, caso C-241/01, conclusões J. Mischo, 2 de julho de 2002, n° 76. aplicação do princípio não seja nem perigosa, nem tão limitada a ponto de toda utilidade ser reduzida, leva a concordar, por uma parte, com as condições de adoção das medidas de precaução e, por outra, com critérios de concepção e de aplicação destas mesmas medidas34. Lembrar-se-á, entre essas condições e critérios, apenas aqueles que são realmente suscetíveis de criar problema, no âmbito de um contencioso comercial para a OMC. A princípio, trata-se, evidentemente, da condição relativa ao próprio risco. Que tipo de risco justifica exatamente a adoção de uma medida de precaução? Uma simples dúvida é suficiente ou é preciso que o risco seja muito provável? Certamente neste ponto se concentra uma grande parte dos debates doutrinários ou judiciários. Todavia, num plano comunitário, uma lógica de pensamento se destaca ao redor de dois critérios: somente um risco plausível, posto em relevo por uma avaliação científica séria, justifica a adoção de uma medida de precaução35. Primeiramente, o recurso para o princípio da precaução pressupõe que os efeitos potencialmente perigosos de um fenômeno, de um produto ou de procedimento tenham sido identificados por uma avaliação científica. Em seguida (e acima de tudo), uma medida de precaução só pode ser tomada se o risco for “suficientemente documentado sobre base de dados científicos disponíveis”. Não poderia ser motivada por uma abordagem puramente hipotética, baseada em simples suposições, ainda não verificadas, de um ponto de vista científico36. Aqui, já há uma indicação importante : a incerteza científica deve ter o poder de produzir efeitos jurídicos, mas com a condição de não residir num simples fantasma de risco, numa construção puramente intelectual. Ela não dispensa a necessidade de uma avaliação séria dos riscos temidos; muito ao contrário, reforça-a e obriga, por esta razão, as Comunidades Européias e os 34 Ch. Noiville, « Principe de précaution et gestion du risque en droit de l’environnement et en droit de la santé », Les Petites Affiches, n° especial, 30 de novembro de 2000, p. 39 e seguintes. 35 Ver la Communication sur le recours au principe de précaution : “ O recurso para o princípio da precaução pressupõe que os efeitos potencialmente perigosos de um fenômeno, de um produto ou de um procedimento foram identificados e que a avaliação cieníifica não permite determinar o risco com certeza suficiente. A aplicação de uma aproximação fundada sobre o princípio da precaução deveria começar por uma avaliação científica tão completa quanto possível e, se for possível, determinando para cada estágio o grau de incerteza científica (…). O apelo ou não para o princípio da precaução é uma decisão tomada quando as informações científicas estão incompletas, pouco conclusivas ou vagas e quando indícios levam a pensar que os efeitos possíveis sobre o meio ambiente ou a saúde humana, animal ou vegetal poderiam ser perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido” ( introdução e ponto 5.1). 36 Comunicação da Comissão sobre o recurso para o princípio da precaução, Ponto 4 do exposto sobre os motivos e, sobretudo, decisão Pfizer Animal Health pré-citado, pontos 143 e 144. Estados a saírem do modo muitas vezes informal, às vezes empírico, dispensado por muito tempo ao tratamento dos riscos37. Se as Comunidades Européias, na questão da carne com hormônios – como também o Japão, no caso dos produtos agrícolas e a Austrália, no conflito concernente ao salmão – foram condenadas, em parte foi por causa de suas posturas, geralmente de espera, em relação à prova: a medida tinha sido adotada sem avaliação científica séria38, sem procurar “documentar o risco sobre base de dados científicos”. Uma outra referência afirma-se ainda como essencial e concerne, desta vez, à concepção das medidas de precaução. Como toda medida adotada pela autoridade pública, deve ser proporcional em relação ao que se sabe do risco. De fato, quaisquer que sejam as formulações do princípio da precaução, enuncia o advogado-geral Jean Mischo, a aplicação deste princípio não tem como efeito o afastamento de outros princípios essenciais, entre os quais o princípio da proporcionalidade, “do qual pode afirmar-se que é inseparável do princípio da precaução”39. De fato, é nessa perspectiva que se colocam o juiz e o legislador comunitários40. Assim, o princípio da precaução não tem por vocação ser aplicado da mesma forma se o caso tenha uma hipótese de risco rigorosa, mas ainda amplamente teórica, ou haja indícios de risco corroborados por um certo número de dados científicos confiáveis. Há diferenças consideráveis entre as situações. Daí a necessidade da proporcionalidade: menos a hipótese de um risco é plausível, menos é justificado tomar medidas severas de precaução. No leque dos meios a sua disposição – 37 Ver a respeito deste ponto Heyvaert, « The Changing Role of Science in Environmental DecisionMaking in the European Union », Law and European Affairs, 1999/3 & 4, p. 426 e seguintes. Ver também Ch. Noiville e N. de Sadeleer, « La gestion des risques écologiques et sanitaires à l’épreuve des chiffres. Le droit, entre enjeux scientifiques et politiques », Revue du Droit de l’Union Européenne, 2/2001, p. 389 e seguintes. 38 Ver, por exemplo, Salmões, Órgão de apelação, § 119 e seguintes. 39 Caso C-241/01, conclusões pré-citadas, n°78. 40 Ver, por exemplo, Pfizer Animal Health, pré-citado, pontos 411 e seguintes : quando uma escolha aparece entre várias medidas apropriadas, convém recorrer para a menos constrangedora e fazer com que os inconvenientes causados não sejam desproporcionais em relação aos objetivos almejados. Também, “o Tribunal examinará (…), primeiramente, se o regulamento colocado em questão constitui uma medida manifestamente inapropriada em relação ao objetivo desejado; segundamente, se medidas alternativas menos constrangedoras poderiam ter sido tomadas; depois, se os inconvenientes causados pelo regulamento questionado estão desproporcionais em relação ao objetivo desejado e, enfim, se, no contexto de uma avaliação custos/benefícios, estes inconvenientes estariam excessivos em relação às vantagens que resultariam de uma ausência de ação (e)”. Ver também o regulamento 178/2002/CE pré-citado que, no seu artigo 7(2), disse que as medidas de precaução estão proporcionais e não impõem mais restrições para o comércio do que o necessário para obter o nível de proteção da saúde, escolhido pela Comunidade. avaliações prévias, informação às populações, moratória, proibição definitiva, etc. – o Estado deve escolher aquele que permita chegar ao objetivo e que seja o menos restritivo possível para o comércio41. Então, não se trata, na primeira dúvida, de retirar definitivamente um produto do mercado, mas de submetê-lo a uma obrigação de avaliação prévia ou de retirá-lo por um tempo, acompanhando esta retirada com pesquisas que, progressivamente, vão levar à redução das incertezas e à adaptação da medida, em direção a maior severidade ou maior flexibilidade42. O desafio é importante em relação ao direito do comércio internacional: a configuração geral da decisão do Órgão de apelação no caso Hormônios deixa perceber que um elemento essencial da condenação foi, de um lado, a desproporção entre a medida geral e definitiva de proibição da carne com hormônios na Europa e, do outro, a fragilidade da argumentação científica desenvolvida pelas Comunidades Européias43. Caráter verificável de risco, proporcionalidade das medidas de precaução: esses critérios, consignados na Comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução, constituem de agora em diante uma codificação do estado de direito comunitário44, do qual a Corte de Justiça das Comunidades Européias fiscaliza o cumprimento. Fazendo isto, tenta também prevenir todo e qualquer contencioso, no âmbito da OMC. Pois, examinando cuidadosamente as três decisões tomadas pelos Órgãos de Solução de Controvérsias sobre o fundamento do acordo SPS, parecem ter avalizado, por sua vez, as referências que acabam de ser expostas. 2a ) Uma interpretação do acordo sanitário favorável à precaução Tal afirmação pode, sem dúvida, surpreender, pois entre estas três decisões – Hormônios, Salmões e Produtos Agrícolas - nenhuma admite que o risco, sempre 41 Ibid : a implementação do princípio pode traduzir-se por um vasto leque de iniciativas, indo da adoção de medidas legalmente obrigatórias até um projeto de pesquisa ou um simples aviso, a exigência sendo de reter a alternativa ao mesmo tempo menos restritiva para o comércio e que permita atingir um nível de proteção equivalente (ponto 6.3). 42 Ver a Communication de la Commission sur le recours au principe de précaution : “(As) vantagens cientificas devem ser perseguidas, visando a uma avaliação cientifica mais avançada ou mais completa. Neste contexto, é importante também que as medidas sejam submetidas a um acompanhamento (monitoramento) cientifico regular, permitindo a reavaliação destas medidas frente a novas informações cientificas” (ponto 6.3.5). 43 Neste sentido, P. Doussin, « L’accord sur les mesures sanitaires et phytosanitaires. Etat des lieux cinq ans après les accords de Marrakech », coloque Des espaces aux produits, regards croisés du Mercosur et d’Europe, Nantes, 3-5 de novembro de 1999. 44 Ver a decisão Pfizer pré-citado, pontos 118 e seguintes e 149. alegado, justifique a restrição ao comércio. Então, do que se tratava? Em cada uma dessas três questões, a medida restritiva tinha sido adotada contra produtos com suspeita de provocar intoxicações ou epidemias. A carne bovina com hormônios, definitivamente proibida pelas Comunidades Européias por causa dos riscos de câncer que lhe eram imputados; o salmão canadense, submetido pela Austrália a uma exigência de tratamento severo para prevenir risco de patogenicidade para os salmonídeos australianos; as frutas americanas rejeitadas nas fronteiras do Japão, exceto se os exportadores americanos garantissem, variedade por variedade, a ausência de pragas. Unicamente as Comunidades européias, no caso Hormônios, invocavam expressamente o princípio da precaução para sustentar sua proibição; entretanto, cada um desses três litígios tentava, mesmo assim, responder à mesma pergunta: as medidas sanitárias litigiosas eram fundadas sobre “princípios científicos”, conforme exigência do acordo SPS? Embora o Órgão de Apelação tenha sempre respondido negativamente, conserva uma interpretação do conceito de “princípios científicos” sensivelmente diferente daquela que a leitura do acordo propõe. Se cada uma das três medidas – comunitária européia, australiana, japonesa – foi julgada como incompatível com as regras do comércio internacional, foi muito mais por razões formais – notadamente o empirismo ou inexistência das avaliações, o que conferiu um caráter arbitrário às medidas adotadas – do que por algum fundamento que tem a ver com a ausência de prova científica do risco temido. Porque, no que concerne a esse conceito-chave do acordo SPS, a jurisprudência da OMC se distancia consideravelmente, a respeito do teor do texto. Na realidade, tudo vem da concepção que o Órgão de Apelação diz conservar da ciência, que se afasta um pouco daquela, quase idílica, que expressa a priori o acordo SPS : se a ciência constitui a principal ferramenta de solução dos conflitos comerciais é porque ela é portadora de verdades, capaz de trazer provas objetivas. No caso Hormônios e depois, nas duas decisões Salmões e Produtos Agrícolas, o Órgão de Apelação constrói, ao contrário, sua estratégia sobre um raciocínio bem distinto: raramente a ciência reduz totalmente as incertezas. Quando um país se confronta com uma epidemia ou teme os efeitos alergênicos de um alimento, deve com certeza começar a fazer pesquisas científicas, pois constituem o necessário acompanhamento de sua política sanitária. No entanto, estas pesquisas não levam necessariamente a um resultado preciso, nem mesmo a uma conclusão monolítica. Podem deixar incertezas perdurarem ou apresentar, além de uma corrente científica dominante, opiniões divergentes. Tendo em vista que a avaliação científica não constitui uma ferramenta de confiabilidade absoluta ou o meio de obter respostas universais, não se pode esperar que os resultados predeterminem por si só a política sanitária dos Estados. Então, uma medida sanitária não tem de ser “conforme” os resultados de avaliação. Assim, quando “certos governos (terão) a tendência de criar suas medidas legislativas e administrativas sobre a opinião científica dominante, (outros), tão responsáveis e representativos, (poderão) agir de boa-fé, baseados no que pode ser, num dado momento, uma opinião divergente, proveniente de fontes competentes e respeitadas”45. A ausência de força jurídica de imposição das normas do Codex Alimentarius e a liberdade reconhecida para os Estados em derrogar e, de modo mais geral, fixar de forma autônoma o nível de proteção que lhes parece apropriado encontram-se mais que reforçadas. Mais concretamente, todo esse desenvolvimento sobre os limites da análise científica leva a modificar o alcance de certas disposições-chave do acordo SPS e, mais particularmente, o conteúdo de duas delas : primeiramente a obrigação da “justificação científica”, requerida pelos artigos 2 (2) e 3 (3), e o artigo 5 (7) , relativo às medidas provisórias. Se a ciência nem sempre puder trazer respostas confiáveis e universais, a noção da prova científica torna-se eminentemente contingente. Assim, a jurisprudência da OMC contribui para desestabilizar essa noção a tal ponto que seu teor se encontra modificado. De fato, o conceito de prova científica é substituído por outro, aquele do “vínculo razoável” ou de “relação lógica” : a exigência requerida não é a prova de uma ligação de causalidade certa, de uma correlação científica comprovada entre o produto regulamentado e o dano temido, segundo enunciado do Órgão de Apelação, mas aquela de uma ligação razoável, de uma relação lógica entre os resultados da avaliação e a medida finalmente adotada46. Não é preciso, para adotar uma medida sanitária, demonstrar pela prova científica que um produto apresenta um risco sanitário. Isto significa que seu consumo constitui, sem nenhuma dúvida, um risco. É preciso, na 45 46 Sobre esses diferentes pontos, Hormônios, Órgão de apelação, § 172, 194 nota 12 e § 213. Ibid, § 192 e s. verdade, que os resultados da avaliação “justifiquem de forma suficiente”. Quer dizer, “amparem razoavelmente” a medida SPS47. Então, se convier, há de se verificar a possibilidade ou a probabilidade do risco pelo método científico48 – ou o Estado poderia sustentar que um risco é sempre possível, visto que o risco zero não existe49 – nenhum consenso, nem mesmo de “grau mínimo” de risco50 é requerido a partir do momento em que uma corrente científica séria, mesmo que minoritária, formule a hipótese de um risco. O que se encontra aqui, a não ser o que, em direito comunitário, mostra-se precisamente como uma das condições essenciais de adoção de medidas de precaução ? Em seguida, a jurisprudência traz uma indicação fundamental no que diz respeito às medidas provisórias. Sabe-se que, na incerteza científica, o acordo SPS autoriza os Estados a adotarem provisoriamente medidas restritas, impondo, todavia, adaptá-las “num prazo razoável” à luz de uma avaliação científica objetiva. Ora, a decisão relativa aos produtos agrícolas traz indicações preciosas sobre essa noção de “prazo razoável”. É preciso relembrar que, no caso, o Japão tinha adotado, provisoriamente, uma regulamentação destinada a limitar os efeitos potencialmente nefastos de um inseto geralmente presente nas frutas importadas. Mas, na realidade, esta medida estava em vigor há mais de 20 anos51. Então, foi declarada contrária ao acordo SPS, por duas razões. De um lado, a postura de espera do Japão, que não buscara saber mais sobre os riscos reais em jogo e contentava-se em esperar que os exportadores de frutas fizessem por si mesmos a demonstração da inocuidade de seus produtos. De outro, a duração da aplicação da medida sanitária, datando de mais de 20 anos. Embora a aplicação de examiná-lo num prazo razoável date somente de 1o de janeiro de 1995, data de entrada em vigor do acordo SPS, o Órgão de Apelação considerou que esse prazo razoável estava, no caso, ultrapassado. Entretanto, simultaneamente o Órgão de Apelação enunciou que “o que constitui um prazo razoável deve ser estabelecido para cada caso e depende das circunstâncias próprias para cada tipo de caso, incluindo a dificuldade de 47 Ibid, § 193. O Órgão de Apelação prende-se, com efeito, à formulação do acordo SPS que, em se tratando de alimentos, fala de “possibilidade de risco” e não de “probabilidade”, ver anexo A § 4. 49 Ver em particular Salmões, Órgão de apelação, § 125: o risco puramente teórico não justifica a adoção de uma medida de precaução. 50 Salmões, Órgão de Apelação, ponto 124 e Hormônios, Órgão de Apelação, ponto 186. 51 Para este ponto ver Produtos Agrícolas, Grupo Especial, § 8.57. 48 obter as informações adicionais para o exame e as características da medida SPS”52. No caso do Japão, era fácil recolher as informações pois, como observavam todos os peritos convidados pela OMC, existiam numerosos estudos sobre o assunto53. Mas, numa situação em que informações pertinentes só podem ser obtidas depois de longas avaliações ou com experiência progressiva sobre um produto54, o prazo razoável parece poder durar além de um prazo considerado curto, para o qual remete a priori. Portanto, é permitido pensar que, nessas condições, a novidade de um alimento ou das técnicas pelas quais ele é obtido poderia justificar a manutenção do tempo necessário para obter dados epidemiológicos confiáveis de uma medida sanitária, tal é a obrigação de avaliação sistemática dos riscos. Justificação científica, prazo razoável: não é preciso insistir mais sobre a importância de que se revestem as precisões trazidas sobre o sentido desses dois conceitos, núcleos do acordo SPS. Obrigam a admitir que a precaução não se limita à versão muito simplificada que o teor do texto conserva. Enquanto o acordo se dedica a buscar a prova científica do risco, único critério de derrogação para o livre comércio, a jurisprudência parece resistir à tentação de tal comodidade e substituir suas condições mais sutis. Mas a sutileza tem reversos, com os quais é preciso contar de agora em diante. 2. Uma questão aberta: as modalidades técnicas de ajuste Podemos afirmar concretamente: logo que as condições binárias de derrogação para o comércio – prova/ausência de prova, certo/incerto – são substituídas por critérios mais sutis, porém menos fixos – plausível, lógico, razoável, etc. – a perenidade do sistema e também seu alcance cabem mais do que nunca nas modalidades precisas de controle das medidas de precaução pela OMC. Dois desafios parecem decisivos em relação a isso. Primeiramente, o controle de perícia científica, cuja utilização e interpretação no contexto dos contenciosos comerciais permanecem como um pontochave: uma coisa é contentar-se com uma “ligação lógica” entre a avaliação do risco e a medida litigiosa, outra é saber o que encobre tal noção. Em seguida, o controle de oportunidade política das medidas: tal controle é uma apreciação pertencente, em 52 Produtos Agrícolas, Órgão de Apelação, § 93. Produtos Agrícolas, Grupo Especial, §. 8.56. 54 Ver sobre este ponto ibid, § 8.60 onde o Grupo Especial enuncia que a experiência é um meio legítimo de juntar informações, assim como a decisão do Órgão de Apelação, neste mesmo caso, § 93. 53 princípio, ao único julgamento do Estado, mas que a OMC, em situação de incerteza científica, parece estar querendo controlar de forma intrusiva. Perícia científica (A), oportunidade política (B): é ao redor desses dois pólos que a vigilância deve aplicar-se, pois é ali que reside, de facto, a possibilidade de limitar o alcance de uma estratégia de precaução, no campo do comércio internacional. i) A perícia científica em questão Aparentemente a exigência parece simples : a medida sanitária deve, como se sabe, ser “razoavelmente amparada” pela avaliação dos riscos. Mas cada um entenderá que este critério, por ser uma referência mais que um limiar preciso, dá margem a uma discussão sem fim (1a). Tal fato é uma realidade que exacerba a questão das regras e métodos de perícia, no contexto dos contenciosos comerciais internacionais (2a). 1a) Que “limiar” de risco? Toda faculdade de derrogação para uma norma internacional depende necessariamente, na prática, de um “limiar”. Para o que nos interessa aqui, será preciso determinar o grau de persuasão requerido para derrogar ao livre comércio a quantidade e a qualidade dos indícios do risco. Qual é exatamente o “grau mínimo de risco” aquém do qual uma medida sanitária seria, por princípio, julgada como ilegítima ? Enquanto expõe que a existência de um risco estritamente teórico não poderia justificar a adoção de uma medida de precaução, o Órgão de Apelação tem o cuidado de estabelecer que nenhum limiar predeterminado seja requerido55 e que o Grupo especial fique mais atento, por meio de uma avaliação objetiva dos fatos, para verificar se o Estado pode razoavelmente adotar a medida litigiosa. Então, o Grupo Especial fica com a apreciação, caso a caso, do peso, do valor, da credibilidade dos elementos científicos que lhe são submetidos, alguns podendo hipoteticamente parecer-lhe mais importantes e mais convincentes que outros56. Por sua vez, a questão do conteúdo da prova ou do nível de prova – isso é, o que deve ser demonstrado em cada um dos casos para convencer o grupo especial – aparece como sendo mais importante. Ora, as coisas ficam bem pouco claras em relação a isto. Com efeito, que a medida seja “suficientemente amparada” pelos dados científicos disponíveis remete a uma graduação possível do estado dos conhecimentos : certos riscos 55 Salmões, Órgão de Apelação, § 124 e Hormônios, Órgão de Apelação, § 186. Com efeito, a apreciação dos elementos de prova consiste nisso. Ver Amianto, Órgão de Apelação, précitado, § 161. 56 serão no mínimo amparados pela experiência, enquanto em outros casos a hipótese do risco terá sido objeto de uma modelação teórica, mas de nenhuma confirmação empírica. Poderá ela ser recebida no contexto da OMC ? Notar-se-á que uma mesma incerteza caracteriza o sentido do termo “temporário”. O temporário pode certamente durar, mas até quando? A manutenção de uma medida de precaução depende, é claro, da evolução dos conhecimentos científicos, mas em que condições serão julgados como conclusivos? Enfim, uma boa parte dos contenciosos vai inicialmente ser analisada sob este ponto crucial. Daí a importância da perícia científica, no contexto desses contenciosos. 2a) Organização da perícia e controvérsias comerciais internacionais A aposta é dupla. A princípio tem a ver com a utilização e interpretação da perícia, no âmbito da solução de controvérsias, visto que cabe aos Grupos especiais decidirem os litígios nos quais a dimensão científica é, ao mesmo tempo, decisiva e em movimento. Em segundo lugar, concerne à montagem da perícia no contexto dos organismos internacionais de normalização cujas normas técnicas são, de agora em diante, oponíveis aos Estados- membros da OMC. Em relação a esses dois pontos, parecem necessários os importantes meios de controle, essencialmente processuais. Primeiramente, no que trata da utilização e da interpretação da perícia científica pelos Órgãos de Solução de Controvérsias da OMC, cada um concorda com algumas evidências. Certamente, em primeiro lugar, convém garantir a imparcialidade desses órgãos: não somente devem ser compostos por cidadãos de Estados que não fazem parte do litígio e que não têm os mesmos interesses comerciais de uma ou outra das partes, mas em relação aos procedimentos de seleção e recusa das personalidades vistas como peritos científicos que devem ser chamados57. Por enquanto, são os próprios Grupos Especiais (após consulta – e não acordo – das Partes), que decidem a respeito do número, da qualidade e da nacionalidade dos peritos a serem chamados58. Acrescentemos que, visto que qualquer opinião científica pode ser solicitada pelos Grupos Especiais, tornar-se-á 57 Ph. Kourilsky, G. Viney, Le principe de précaution, op. cit., p. 163. Ver a liberdade relativa que lhes é de fato deixada pelo art. 11.2 do Acordo SPS e pelos art. 12 e 13 do Memorando do Acordo de Solução de Controvérsias. Sobre essas questões, ver também T. Christoforou, «Science, Law and Precaution in Dispute Resolution on Health and Environmental Protection : What Role for Scientific Experts ? », in J. Bourrinet e S. Maljean-Dubois (dir.), Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, op. cit., p. 312 e s., especialmente p. 254 e s. Ver também J. Pauwelyn, « The Use of Experts in WTO Dispute Resolutions », International and Comparative Law Quarterly, n°51, 2002 p. 325 e s. 58 inevitável definir para onde remete a qualificação “científica”, num sistema de liberdade da prova. É o caso da jurisprudência americana, que foi obrigada a adaptar-se59. Enfim, é essencial que um forte controle se exerça sobre a apreciação dos elementos científicos pelos Grupos Especiais: autorizaram a si mesmos refazer sua avaliação ou afastar certos dados, quando deveriam apenas avaliar objetivamente os fatos60? Tudo isto deve ser incluído no campo do exame de apelação, o que hoje não está claro61. Mas a aposta da perícia científica não se reduz à solução de controvérsias. Concerne também, como já foi dito, à montagem da perícia científica, no âmbito dos organismos internacionais de normalização técnica, por exemplo, o Codex Alimentarius62. Pois, se tais normas só tinham, até então, valor jurídico se o Estado manifestasse expressamente sua vontade de adaptar-se a elas, hoje podem ser contrapostas umas às outras, tendo ou não sido aceitas pelo Estado63. O acordo SPS reconhece a elas o valor de normas de referência, tendo sido adotadas com ampla ou pequena maioria64. Assim que a norma foi adotada “por um organismo reconhecido da 59 R. Encinas de Munagorri, « La recevabilité d’une expertise scientifique aux Etats-Unis », Revue Internationale de Droit Comparé, 1999/3, p. 621 e s. 60 Ver Hormônios, Órgãos de Apelação, § 100 até 119, 133 e s. E 253 b), assim como Produtos Agrícolas, § 129 e s. Nesses dois casos, o Grupo Especial tinha-se auto-autorizado, num caso de afastar de vez certos elementos científicos, no outro, de constatar fatos cuja existência não era alegada pela parte autora, dispensando esta em dar o início da prova. Em ambos os casos, o Órgão de Apelação considera que, fazendo isso, o Grupo Especial cometeu um erro e deve, no futuro, proceder a um “exame objetivo dos fatos”. 61 Ver Hormônios, Órgão de Apelação, § 132 e s., Salmões, Órgão de Apelação, § 117 e s., 141 e s. e 261 e Produtos Agrícolas, Órgão de Apelação, § 98. A questão de saber se o Grupo Especial fez uma avaliação objetiva dos fatos é uma questão de direito – cujo Órgão de Apelação pode conhecer – mas a questão da credibilidade de um elemento de prova e da importância que lhe deve ser acordada releva os fatos. 62 Sobre esta organização, J.-P. Dobbert, « Le Codex Alimentarius. Vers une nouvelle méthode de réglementation internationale », Annuaire Français de Droit International, 1969, p.701. Ver sobretudo o Manuel de procédure, 10 a edição, Rome, 1997. Muitas vezes foi a própria indústria alimentar que interveio para suscitar o desenvolvimento de estandartes para o Codex , ou elaborando anteprojetos de normas, ou intervindo na qualidade de conselheiro técnico, no âmbito das delegações governamentais. Um estudo realizado em 1993 indicava que 80% das participações não governamentais para o Codex vinham da indústria, somente 1% de organizações de interesse público. Ver L. Sikes, « FDA’s consideration of Codex Alimentarius standards », Food and Drug Law Journal, 1998, vol. 53, n°2, p.330. 63 Neste ponto, G. Stanton, « Codex standards in the context of SPS and TBT – how it may be expected to work», Bulletin of the IDF, n°310, p.8 e s. ; J.-L. Angot, « Le Codex Alimentarius dans le nouveau contexte international », Revue Française des Affaires Sociales, n°1, janeiro – março de 1999. Sobre a normalização técnica, ver L. Bois, « La valeur juridique de la normalisation », in Les transformations de la régulation juridique, LGDJ, Droit et Société, n°5, 1998, p. 183 e s. 64 Ver ,por exemplo, as normas adotadas no âmbito do Codex Alimentarius, autorizando o uso, na carne, de certos hormônios proibidos pela União Européia: uma dentre elas tinha sido adotada por 35 votos a favor, 27 contra e 9 abstenções. Ver D.-E. McNeil, « The first case under the WTO’s SPS agreement », Virginia Journal of International Law, 1998, vol. 39, n°1, p. 122. Ver também os debates suscitados pela avaliação comunidade internacional com atividade normativa”, conforme enunciado do Órgão de Apelação, não há por que questionar-se até que ponto ela é fruto de um consenso ou se ela teria suscitado conturbados debates científicos65. Por serem apenas normas técnicas, as normas do Codex Alimentarius predeterminam não só o resultante, mas também a existência dos conflitos comerciais. Daí a necessidade de enquadrar também a perícia científica, neste nível de elaboração das normas. Isto só foi percebido há muito pouco tempo pelos autores – sendo que não diz respeito aos trabalhos do Codex a ausência de força jurídica que obriga a aplicar as normas e a natureza técnica dos assuntos tratados66 – e pelos Estados – para quem o princípio da precaução é um princípio de decisão política. Tais trabalhos consistem em realizar avaliações científicas sobre assuntos determinados (água, queijos, OGM, etc.) e em transcrever os resultados sob forma de normas técnicas67. Ora, trata-se aqui de um grave erro de perspectiva, visto que o objetivo da precaução é de melhor prevenir os riscos, sendo que as recentes crises sanitárias têm, se não revelado, pelo menos confirmado a importância da perícia para a qualidade das decisões políticas que constituem um desafio para a coletividade pública. É grande a necessidade de reorganizar esta atividade para que ela seja independente, rigorosa ou, ainda, que ela não negue as opiniões científicas minoritárias. Em resumo, que não vá contra os princípios de independência, de excelência, de transparência e de objetividade que devem, de agora em diante, guiar a perícia científica no direito comunitário68. da somatotropina bovina pelo JEFCA, um dos comitês de peritos do Codex. Doc. « Point 7.2, CRD 9 », Comité des principes généraux, Paris, 19-20 abril de 1999. 65 Communautés européennes - désignation commerciale des sardines, Rapport de l’Organe d’appel, 26 de setembro de 2002, WT/DS31/AB/R, ponto 227. Notar-se-á mesmo assim que o Órgão de Apelação se pronuncia aqui sobre o fundamento do acordo sobre os obstáculos técnicos para o comércio e não do acordo SPS. 66 No entanto, ver J.-P. Doussin, « Le Codex Alimentarius à l’heure de l’Organisation Mondiale du Commerce », Annales de Falsification de l’Expertise Chimique et Toxicologique, 1995, 88, n°933, p.281 e s., assim como Ph. Kourilsky e G. Viney, op.cit. 67 Os Estados tendo, além do mais, a faculdade de demarcarem as normas do Codex, é no plano nacional que seria conveniente restringir as aplicações do princípio da precaução. Ver, neste ramo, Comitê do Codex Alimentarius sobre os princípios gerais, 14a sessão, Paris, 19-23 de abril de 1999, Alinorm 99/33A, ponto 30 e U.S. Council for Responsible Nutrition, Statement on the Precautionary Principle, Comitê dos princípios Gerais, Paris, 19-23 abril de 1999. 68 Ver, por exemplo, a decisão n°97/579/CE do 23 julho de 1997, o regulamento 178/2002/CE pré-citado (art. 6.2) e decisão Pfizer Animal Health precitado, (ponto 158). Mas é preciso ir além, pois o alcance do princípio da precaução na ordem comercial internacional não se reduz à perícia científica e técnica. Também depende diretamente do controle da OMC sobre a escolha política, operada pelo Estado. ii) A escolha política “sob controle” Toda medida de gestão dos riscos sanitários compromete irredutivelmente escolhas políticas : uma vez os dados científicos na mão, a esfera política deve necessariamente cumprir sua parte. Assim, o Estado-membro deve posicionar-se melhor para decidir entre os riscos que lhe parecem aceitáveis e aqueles que quer prevenir a qualquer custo. Eis a razão pela qual o acordo SPS reconhece ao Estado o direito de fixar, de forma autônoma, o “nível de proteção sanitária” que considera apropriado. Aparentemente, as coisas parecem delinear-se de forma mais clara. O Estado, uma vez identificado o risco, tem de decidir a aceitabilidade de tal risco, ainda que manifeste uma atitude de “tolerância zero” em relação a ele. Os Órgãos de Solução de Controvérsias hão de controlar a justificativa científica. Ciência e técnica, de um lado, arbitragem política, de outro: resta saber se esta dissociação essencial (1a) pode ser cumprida, quer dizer, se a OMC conseguirá verdadeiramente tornar o risco sanitário stricto sensu o único arbítrio do livre comércio (2a). (1a) A gestão dos riscos como escolha política É quase um clichê. Qualquer regulamentação do risco supõe uma escolha política. Isso porque os cálculos, não podendo ser substituídos em seu contexto político, econômico e social, não são necessariamente significativos. Uma vez os dados científicos na mão, o responsável não está livre do compromisso de medir, arbitrar e, então, escolher entre hipóteses mais ou menos aceitáveis69. O risco envolve arbitragens complexas, tem várias vezes enunciado a Corte de Justiça das Comunidades Européias. Supõe as autoridades de decisão que fazem escolhas rápidas, mas também delicadas, colocando os riscos em perspectiva com considerações muito diversas e fixando prioridades70. Arbitrar, 69 Neste ponto ver Ch. Noiville, « Du bon gouvernement des risques. Le droit et la question du ‘risque acceptable’ », Les Voies du droit, P.U.F., lançamento previsto em 2003. 70 Sobre esses diferentes pontos ver as decisões J.C.E. Denkavit, aff. C-14/78, 5 de dezembro de 1978, Rec. p. 2897, Roquette Frères, caso C-138/79, 29 de outubro de 1980, Rec. p. 3333, Laboratoires Norbrook, caso C-127/95, 2 de abril de 1998, Rec. 1998 p. I-1531, Upjohn Ltd, caso C-120/97, 21 de janeiro de 1999, Rec. p. I-223 e as conclusões do Advogado geral Léger. Ver sobretudo Fedesa, caso C-331/88, 13 de pesar, hierarquizar: esta tarefa política vai necessariamente além das opiniões científicas71. Ora, a escolha política é ainda mais inevitável quando a dimensão objetiva, que pode ser medida, é móvel e contestável. A partir do momento em que os dados científicos estão vagos e incompletos, não podem ocupar uma situação de monopólio na decisão política, a qual necessariamente tira uma parte de sua racionalidade em campos que vão além dos únicos dados científicos72. O risco potencial ligado à utilização de antibióticos na pecuária, ao consumo de alimentos geneticamente modificados é aceitável, útil, necessário ? Merece ser conhecido? Como um incentivo, o princípio da precaução interroga-se, não tão somente sobre o risco, mas, de forma mais ampla, sobre a possibilidade de expor-se a ele, assim como sobre a aceitabilidade dos produtos. Daí a fisionomia particular das controvérsias comerciais relativas à segurança alimentar, onde se misturam tanto as considerações políticas quanto os dados estritamente científicos73. Levado pela filosofia da precaução a se interrogar não só sobre os riscos – ligados ao consumo dos alimentos, disseminação dos OGM, etc. – mas, de forma mais geral, sobre a aceitabilidade de um modo de desenvolvimento, o Estado não se preocupa apenas, no caso de contencioso na OMC, em justificar o uso de seu poder repressor por razões estritamente sanitárias, mas também pela preferência de seus consumidores, por imperativos econômicos e pela defesa de um modelo cultural nacional. novembro de 1990, Rec. p. I-4023 e as conclusões do Advogado geral Mischo, assim como Bettati, caso C341/95, 14 de julho de 1998, Rec. I-4358 e as conclusões do Advogado geral Léger : “o termo ‘político’utilizado no artigo 130 R ( que se tornou desde então o artigo 174.3) supõe tomar conta de um conjunto de fatos, práticas ou ações. Razão pela qual se a escolha de uma ação pontual pode às vezes mostrar-se delicada, a escolha de uma política implica necessariamente a avaliação de situações complexas e geralmente antagonistas”. 71 Ver assim Fedesa, caso pré-citado : “tendo em vista (…) as divergências de apreciação que se tinham manifestado (tratando-se da regulamentação dos hormônios pelas comunidades européias), os operadores econômicos não estavam no direito de esperar que uma proibição administrativa das substâncias em causa, para animais, pudesse ser fundada sobre dados científicos”. Era normal que a autoridade tomasse conta da angústia dos consumidores ou os riscos de desabamento dos mercados. Da mesma forma, ver National Farmer’Union, caso pré-citado : a Corte justifica a decisão comunitária de embargo sobre a carne de boi britânica, pelo cuidado em evitar o risco e as preocupações ligadas a este caso, sendo essencial que ela não tenha como único objetivo ou determinação tranqüilizar os consumidores. 72 O. Godard, « Principe de précaution et responsabilité », in Qu’est-ce qu’être responsable ?, Carré SeitaSciences humaines, J.-C. Ruano-Barbolan (Dir.), p. 97 e seguintes. 73 Ver sobre este ponto Agence Europe, n° 7145, 24 de janeiro de 1998, p.7. Em situação de precaução, conforme a Comunicação da Comissão sobre o recurso para o princípio da precaução, “a escolha da resposta de dar prosseguimento a uma situação de risco resulta de uma decisão eminentemente política, função que é aceitável pela sociedade”74. Uma coisa é a legitimidade científica do comitê consultado, acrescenta o Tribunal de Primeira Instância da Corte de Justiça das Comunidades Européias, em sua recente decisão Pfizer, outra é a responsabilidade política e a legitimidade democrática que supõem necessariamente o exercício da autoridade pública75. O problema todo é saber se esta escolha política que, teoricamente, pertence a cada Estado-membro, não está na prática, sob efeito de um controle intrusivo feito pelos órgãos da OMC, mantida sob estreita vigilância. 2a) O risco “plausível”, único arbítrio do livre comércio? Daremos dois exemplos: Primeiramente, qualquer proibição de importação, qualquer regulamentação de um produto potencialmente perigoso é submetida a um “teste de necessidade”, tanto pelo Acordo SPS, como pelo acordo do GATT. Tradicionalmente, esta exigência geral encobre duas outras: é preciso assegurar-se, por um lado, que a natureza da medida permita atingir o objetivo procurado – a proteção à saúde; por outro, que o objetivo sanitário perseguido não possa ser atingido por outra medida menos restritiva do comércio internacional76. Ora, qual é aqui o lugar deixado pelos valores de toda a ordem que levaram à escolha política? Parece, na realidade, muito reduzido. Uma medida severa só é justificável se houver obrigações técnicas ou econômicas77: por exemplo, os europeus são grandes consumidores de doces e comem grande quantidade de queijo; isto justifica que a “dose admissível” de aditivos nesses produtos seja reduzida nesses países, fique aquém do previsto pelas normas internacionais; ou ainda, um sistema de controle de determinado hormônio usado na pecuária não permitiria evitar, por si só, as fraudes; daí a 74 Comunicado da Comissão sobre o recurso para o princípio da precaução, ponto 5. Ver também a Resolução do Conselho Europeu de Nice sobre o recurso para o princípio da precaução, 8 de dezembro de 2000, anexo III, ponto 19 e decisão Pfizer, pré-citado, ponto 161. 75 PfizerAnimal Health precitado, ponto 201. 76 Acordo SPS, art. 2(1), 2(2) e 5(6), que enuncia que a medida não deve ser mais restritiva para o comércio que o requerido para obter o nível de proteção sanitária e fitossanitária julgado como apropriado. 77 A nota de rodapé da página 3 que precisa o artigo 5(6), enuncia que, para julgar se uma medida não está mais restritiva para o comércio que o requerido, é preciso considerar a possibilidade de realização técnica ou econômica. necessidade de proibir o produto, em vez de administrar o risco. Além desse tipo de considerações, a dimensão cultural e social não parece ser muito suscetível a cálculos. O fato de os OGM serem culturalmente mal aceitos e suscitarem reticência da parte dos consumidores é uma coisa; no entanto, enquanto seu perigo não for comprovado, em que essa realidade justifica a decisão do embargo? Sobretudo outra etapa deve ser realizada, deve ser ultrapassada, em que aparece como um poderoso instrumento de requalificação das escolhas políticas nacionais. Trata-se do “teste de coerência”, presente no artigo 5 (5) do Acordo SPS78 e do qual um simples caso de figura permitirá sua existência. Admitamos que as autoridades belgas sobretaxem severamente o vinho em nome da proteção à saúde, sem taxar a cerveja. Desta forma, regulamentariam diferentemente dois produtos, apresentando, entretanto, riscos semelhantes. Tal diferença não é arbitrária ou injustificável ? Sem dúvida, visto que, do ponto de vista da saúde, o vinho é menos prejudicial que a cerveja. Sobretaxando severamente o vinho, a Bélgica não procurou o favorecimento dos produtores nacionais de cerveja, prejudicando os exportadores estrangeiros de vinho? Isto não seria improvável. Nota-se assim que, comparando a medida litigiosa com as outras medidas nacionais, aparece um meio suplementar de descobrir as contradições e, por trás delas, surgem as medidas de protecionismo disfarçadas. Por isso torna-se necessário o teste de coerência: complementar da não discriminação79, ele visa evitar que os Membros fixem um nível de proteção muito elevado, num caso, e muito baixo em outro, apresentando riscos, no entanto, comparáveis80, sem outra justificativa que a preocupação de proteger seus próprios interesses comerciais. Toda a questão é, evidentemente, saber como esta comparação necessária pode ser utilizada pelos Órgãos de Solução de Controvérsias. Primeiramente, o que se entenderá exatamente por “situações 78 Artigo 5(5) do Acordo SPS: “tendo em vista assegurar a coerência na aplicação do conceito do nível apropriado de proteção sanitária ou fitossanitária contra os riscos pela saúde ou a vida das pessoas, para a dos animais ou para a preservação dos vegetais, cada Membro evitará fazer distinções arbitrárias ou injustificáveis nos níveis que ele considera apropriados em situações diferentes, se tais distinções levarem para uma discriminação ou a restrição camuflada para o comércio internacional. Os Membros cooperarão com o comitê, conforme § 1, 2 e 3, do artigo 12, para elaborar diretivas favorecendo a realização desta disposição, na prática. Para elaborar essas diretivas, o comitê tomará conta de todos os fatores pertinentes, inclusive o caráter excepcional dos riscos para a saúde das pessoas expostas voluntariamente”. 79 Com efeito, o artigo 2(3) proíbe as medidas SPS que estabelecem desigualdades arbitrárias ou injustificáveis entre países onde condições idênticas ou similares existem. 80 Hormônios, Órgão de Apelação, § 217. comparáveis”? As Comunidades Européias fazem uma distinção arbitrária ou injustificável entre “situações comparáveis”, ao regulamentarem a comercialização da soja transgênica modificada de forma mais rígida que a comercialização da soja convencional? Os indícios de risco apresentados pela soja transgênica serão suficientes para impedir toda e qualquer comparação com a soja convencional? Depois, e sobretudo, a comparabilidade das situações impõe uma similaridade das regulamentações? Talvez não. Não é necessariamente incoerente o fato de que dois riscos comparáveis, em termos de mortalidade ou de morbidade, sejam regulamentados de forma diferente. Queijos de leite cru, álcool, vaca louca, hormônios, etc.: toda uma série de dados técnicos, sociais, culturais pode levar ao não-tratamento destes riscos de forma idêntica. Por exemplo, não se vê muito bem como poderiam ser os perigos do álcool ou do famoso peixe japonês tóxico, o fugu, se fossem colocados em perspectiva com os riscos apresentados pela adjunção de antibióticos para a pecuária. O fato de que os primeiros sejam voluntariamente aceitos pelos consumidores e os segundos, apenas suportados, impede qualquer comparação razoável das regulamentações. Sobretudo, e da mesma forma, a evolução das mentalidades pode explicar como dois riscos comparáveis são tratados de maneira distinta. Os riscos de um hormônio hoje utilizado na pecuária poderão parecer inaceitáveis, enquanto, há dez anos, outro hormônio que apresentasse riscos comparáveis teria sido colocado no mercado. A harmonização das duas normas será necessária, com certeza, mas não pode ser feita da noite para o dia. Manifestadamente receptivos a este tipo de realidades, os órgãos da OMC parecem querer proibir-se de fazer qualquer tipo de comparação muito binária82. Todavia, o conteúdo exato da obrigação de coerência deve ainda ficar mais preciso e, por meio dele, constatar-se até que ponto os Órgãos de Solução de Controvérsias dispõem de uma potente ferramenta de interpretação e de hierarquização dos julgamentos de valores nacionais. Do risco plausível até a derrogação admissível, o caminho a ser percorrido continua repleto de empecilhos. Perícia científica, necessidade, coerência: por esses 82 Primeiramente, o artigo 5(5) não proíbe todas as incoerências, mas apenas aquelas que são “arbitrárias ou injustificáveis” e que “causam uma discriminação ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional”, as três condições sendo cumulativas. Depois, a comparação só é possível após preencher certas condições, tendo a ver com as substâncias e seus efeitos sobre a saúde. Ver notadamente OMC, Comitê SPS, “Diretivas para o favorecimento da aplicação prática do artigo 5(5)”, G/SPS/15, 18 de julho de 2000. diversos vieses, a OMC dispõe de uma margem ampla para implicar-se nos julgamentos com valores nacionais, decifrar as razões pelas quais um Estado considera este ou aquele risco como inaceitável e até mesmo hierarquizar ou eliminar os argumentos que o levaram à qualificação. Então, é ali, no que poderia parecer uma simples série de “detalhes técnicos”, no que concerne ao direito do comércio internacional, que se realizará o verdadeiro alcance do princípio da precaução. Referências Bibliográficas ANGOT, J.-‐L. Le Codex Alimentarius dans le nouveau contexte international, Revue Française des Affaires Sociales, n.1, janeiro – março de 1999. BOIS, L. La valeur juridique de la normalisation, in Les transformations de la régulation juridique, LGDJ, Droit et Société, n.5, 1998,. BUREAU, D; BUREAU, J.-‐C, Agriculture et négociations commerciales, relatório para o Primeiro Ministro, Conselho de Análise Econômica, La Documentation Française, 1999. CAMERON J.; CAMPBELL, K. Dispute Resolution in the WTO, Cameron May, Londres, 1998 CANAL-‐FORGUES, E. La procédure d’examen en appel de l’OMC, Annuaire Français de Droit International, XIII, 1996 CHARNOVITZ, S. The supervision of Health and Biosafety Regulation by World Trade Rules. 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Não se criaram todas as regras de proteção ao ambiente humano e natural nesse período. A preocupação com a higiene urbana, um certo controle sobre as florestas e a caça já datam de séculos. Inovou-se no tratamento jurídico dessas questões, procurando interligá-las e sistematizá-las, evitando-se a fragmentação e até o antagonismo de leis, decretos e portarias. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente no Brasil (Lei 6.938, de 31.8.1981) inseriu como objetivos dessa política pública a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico e a preservação dos recursos ambientais, com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente (art. 4o, I e VI). Entre os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente colocou-se a “avaliação dos impactos ambientais” (art. 9o, III). A prevenção passa a ter fundamento no Direito Positivo nessa lei pioneira na América Latina. Incontestável tornou-se a obrigação de prevenir ou evitar o dano ambiental quando o mesmo pudesse ser detectado antecipadamente. Contudo, no Brasil, em 1981, ainda não havíamos chegado expressamente a introduzir o princípio da precaução. O princípio da precaução (vorsorgeprinzip) está presente no Direito alemão desde os anos 70, ao lado do princípio da cooperação e do princípio poluidor-pagador. Eckard Rehbinder acentua que “a Política Ambiental não se limita à eliminação ou redução da poluição já existente ou iminente (proteção contra o perigo), mas faz com que a poluição * Professor de Direito Ambiental na Universidade Metodista de Piracicaba e na Universidade Estadual Paulista. Professor Convidado na Universidade de Limoges (França). Autor dos livros Direito Ambiental Brasileiro e Recursos Hídricos – direito brasileiro e internacional. Prêmio Internacional de Direito Ambiental Elizabeth Haub (1985). seja combatida desde o início (proteção contra o simples risco) e que o recurso natural seja desfrutado sobre a base de um rendimento duradouro”.1 Gerd Winter diferencia perigo ambiental de risco ambiental. Diz que, “se os perigos são geralmente proibidos, o mesmo não acontece com os riscos. Os riscos não podem ser excluídos, porque sempre permanece a probabilidade de um dano menor. Os riscos podem ser minimizados. Se a legislação proíbe ações perigosas, mas possibilita a mitigação dos riscos, aplica-se o ‘princípio da precaução’, o qual requer a redução da extensão, da freqüência ou da incerteza do dano”.2 Os riscos são “reais e irreais ao mesmo tempo. De um lado, existem ameaças e destruições que são já bem reais: a poluição ou a morte das águas, a desparição de florestas, a existências de novas doenças, etc. Do outro lado, a verdadeira força social do argumento do risco reside justamente nos perigos que se projeta para o futuro. Na sociedade do risco, o passado perde sua função determinante para o presente. É o futuro que vem substituí-lo e é, então, alguma coisa de inexistente, de construído, que se torna a “causa” da experiência e da ação no presente” assinala Ulrich Beck.3 “O princípio da precaução é atualmente uma referência indispensável em todos as abordagens relativas aos riscos” afirma Michel Prieur.4 A implementação do princípio da precaução não tem por finalidade imobilizar as atividades humanas. Não se trata da precaução que tudo impede ou que em tudo vê catástrofes ou males. O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente no planeta. 2. Princípio da precaução na Declaração do Rio de Janeiro/92 A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, reunida no Rio de Janeiro em 1992, votou, por unanimidade, a chamada “Declaração do Rio de Janeiro”, com 27 princípios. 1 . REHBINDER, Eckard. Ambiente, Economia, Diritto. Rimini: Maggioli, 1988.p. 205-221. . WINTER, Gerd. European Environmental Law: A Comparative Perspective. Aldershot: Dartmouth, 1996. p. 41. 3 BECK, Ulrich. La Société du Risque: sur la voie d´une autre modernité. Paris: Auto-Aubier, 2001. p.61. 4 PRIEUR, MICHEL. Droit de l’Environnement, 4 .Ed., Paris: Dalloz, 2001. p. 145. 2 O Princípio 15 diz: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.5 O Princípio 15 utiliza expressões como “precaução” e “ameaça de danos sérios e irreversíveis”, que merecem conceituação, como, também, a pesquisa dos termos empregados em diferentes línguas. Precaução é “cautela antecipada”, do Latim precautioonis.6 “Precaution: 1. An action taken in advance to protect against possible failure or danger; a safeguard. 2. Caution practiced in advance; forethought; circunspection”.7 “Precaution: Action de prendre garde. Disposition prise par prevoyance pour eviter un mal. Circonspection, ménagement, prudence”.8 “Precaución: Reserva, cautela para evitar o prevenir los inconvenientes, dificultades o daños que pueden temerse”.9 “Precauzione: Atto e comportamento diretto ad evitare un pericolo imminente o possibile”.10 Não há divergência de conceituação nas cinco línguas mencionadas: a precaução caracteriza-se pela ação antecipada diante do risco ou do perigo. O mundo da precaução é um mundo onde há a interrogação, onde os saberes são colocados em questão. No mundo da precaução há uma dupla fonte de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de conhecimentos científicos sobre o perigo. A precaução visa a gerir a espera da informação. Ela nasce da diferença temporal entre a necessidade 5 BRASIL. Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente: Relatório da Delegação Brasileira, 1992. Brasil: FUNAG, 1993. No original : “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according of their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing costeffective measures to prevent environmental degradation”. 6 . CUNHA, Antônio G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. No mesmo sentido: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.; SILVA, António M. Diccionário da Língua Portugueza. v. II. Lisboa: Joaquim Germano de Sousa Neves, 1878. 7 . The American Heritage Dictionary of The English Language. Nova Cork: American Heritage, 1970. 8 . Petit Larousse Illustré. Paris: Larousse, 1978. 9 . Real Academía Española. Diccionario de la Lengua Española. Madri: Espasa Calpe, 1997. 10 . DEVOTTO, Giacomo;OLI, Gian Carlo. Vocabolario della Lingua Italiana. Florezca: Felice Le Monnier,1994. imediata de ação e o momento onde nossos conhecimentos científicos vão modificar-se.11 A versão em língua portuguesa da Declaração do Rio de Janeiro/92 deve ter tomado por base o texto em Inglês quando escreveu “ameaça” de danos. Em Inglês empregou-se threat. Na versão francesa empregou-se risque;12 e na versão espanhola, peligro.13 Os termos “precaução” e “prevenção” guardam semelhanças nas definições dos dicionários consultados. Contudo, há características próprias para o princípio da precaução, conforme o texto da Declaração do Rio de Janeiro/92 e de convenções internacionais que mencionaremos abaixo. A Declaração do Rio de Janeiro/92 foi menos exigente em relação à Carta Mundial da Natureza, oriunda da Resolução 37/7, de 1982, da Assembléia Geral das Nações Unidas, como nota Tullio Scovazzi. Afirma também que, “diante das atividades humanas, dois comportamentos são tomados: ou se privilegia a prevenção do risco – se eu não sei que coisa sucederá, não devo agir; ou se privilegia (de modo francamente excessivo) o risco e a aquisição de conhecimento a qualquer preço – se eu não sei que coisa acontecerá, posso agir, e, dessa forma, no final, saberei o que fiz”. Acrescenta o acatado internacionalista: “Um desenvolvimento muito interessante do moderno Direito Internacional do Meio Ambiente está representado no princípio da precaução. Este princípio não se apresenta como uma genérica exortação à precaução com o fim de proteger o ambiente. Ao invés, ele tem um significado mais específico, querendo fornecer indicação sobre as decisões a tomar nos casos em que os efeitos sobre o meio ambiente de uma determinada atividade não sejam ainda plenamente conhecidos sob o plano científico”.14 As declarações internacionais, ainda que oriundas das Nações Unidas, não são transpostas automaticamente para o Direito interno dos países, pois não passam pelo 11 . TREICH, Nicolas; GREMAQ. Vers une théorie économique de la précaution? Acesso em: 28 de abril de 1997. 12 . Revue Juridique de l’Environnement 1/112, Limoges, 1993. 13 .MATEO, Ramón Martín. Tratado de Derecho Ambiental. v. II. Madri: Trivium, 1992, p. 770. 14 . SCOVAZZI, Tullio. Sul il pricipio precauzionale nell Diritto Internazionale dell’Ambiente. Rivista di Diritto Internazionale v. 3. Milão: Giuffrè, 1992. procedimento de ratificação perante o Poder Legislativo. Diferentemente, as convenções ou tratados passam a ser obrigatórios no Direito interno após sua ratificação e entrada em vigor. 3. O Brasil e o princípio da precaução nas convenções internacionais Duas convenções internacionais assinadas, ratificadas e promulgadas pelo Brasil inseriram o “princípio da precaução”. A Convenção da Diversidade Biológica15 diz, entre os considerandos de seu “Preâmbulo”: “Observando também que, quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça .”...16 A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima17 diz em seu art. 3o: “Princípios – 3. As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”.18 Vemos que as duas Convenções mencionadas diferem na redação do princípio da precaução. Na Convenção da Diversidade Biológica, basta haver ameaça de sensível redução de diversidade biológica ou ameaça sensível de perda de diversidade biológica. Não se exigiu que a ameaça fosse de dano sério ou irreversível, como na Convenção de Mudança do Clima. A exigência fundamental para a conservação da diversidade biológica é a conservação in situ dos ecossistemas e dos habitats naturais e a manutenção de populações viáveis de espécies no seu meio natural. 15 Assinada no Rio de Janeiro em 5.6.92, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº2 de 3.2.94, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29.5.94. 16 .BRASIL. Decreto n. 2.519, de 16.3.98, promulgando a Convenção (DOU 17.3.98). 17 Assinada em Nova York em 9.5.92, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n. 1, de 3.2.94, passou a vigorar para o Brasil em 29.5.94. 18 .BRASIL, Decreto n. 2.652, de 1.7.98, promulgando a Convenção (DOU 2.7.98). A Convenção da Mudança do Clima preconiza que as medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos. A Convenção da Diversidade Biológica silencia acerca dos custos das medidas. As duas Convenções apontam, da mesma forma, as finalidades do emprego do princípio da precaução: evitar ou minimizar os danos ao meio ambiente. Do mesmo modo, as duas Convenções são aplicáveis quando houver incerteza científica diante da ameaça de redução ou de perda da diversidade biológica ou ameaça de danos causadores de mudança do clima. É interessante trazer ao conhecimento uma convenção de que o Brasil não faz parte, mas que conceitua o princípio da precaução. Trata-se da Convenção de Paris para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste de 22 de setembro de 1992. Para essa Convenção, em consonância com o princípio de precaução, “medidas de prevenção devem ser tomadas quando existam motivos razoáveis de se inquietar do fato de a introdução, no meio marinho, de substâncias ou energia, direta ou indiretamente poder acarretar riscos para a saúde humana, prejuízo aos recursos biológicos e aos ecossistemas marinhos, representar atentado contra os valores de lazer ou entravar outras utilizações legítimas do mar, mesmo se não existam provas indicando relação de causalidade entre as causas e os efeitos”.19 4. O princípio da precaução na jurisprudência 4.1 O princípio da precaução e as radiações nucleares Na vizinhança da usina nuclear Krümmel, perto de Hamburgo, na Alemanha, foi constada a doença conhecida como leucemia. Quando nova e suplementar autorização foi solicitada, uma pessoa, vivendo a 20km, apresentou queixa dizendo que foi atingida pela doença referida, provavelmente, pela radiação da usina nuclear. A Administração Pública contestou, afirmando que os limites e condições de funcionamento da instalação nuclear tinham sido cumpridos. O Tribunal Administrativo de Schleswig-Holstein rejeitou a queixa. Houve recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que deu provimento ao recurso. O Supremo Tribunal determinou que a Administração Pública constatasse se a 19 .CANS, Chantal. Grande et petite histoire des principes généraux du Droit de l’Environnment dans la Loi du 2 février 1995. Revue Juridique de l’Environnement 2, 1995. radiação da usina nuclear estava ou não nos limites da “precaução” exigida pela Lei de Energia Atômica. Se as novas descobertas científicas indicarem que as normas fixadas anteriormente não são mais suficientes, a Administração deve fixar padrões de precaução mais altos. A investigação e a ponderação dos riscos é tarefa da Administração.20 4.2 O princípio da precaução e a captura e caça ou a extinção de habitats de animais em perigo de extinção Na Austrália pediu-se autorização para a captura e caça de espécies em extinção.21 O Juiz J. Stein decidiu que “o princípio de precaução é uma avaliação de bom senso e ela sempre foi aplicada pelos que tomam as decisões nas circunstâncias apropriadas, antes de o princípio ser descoberto. O princípio está voltado para a prevenção de prejuízo ambiental sério ou irreversível nas situações de incerteza. A premissa é de que, onde exista incerteza ou ignorância concernente à natureza ou extensão do prejuízo ambiental (se isto resulta de políticas, decisões ou atividades), os que decidem devem ser cautelosos”. A autorização foi negada, afirmando o Juiz que o princípio da precaução deveria ser aplicado, pois no caso havia “escassez de conhecimentos científicos sobre a população das espécies, sobre o habitat e sobre os impactos”. “O Juiz, ao fazer a aplicação do princípio da precaução, enfatizou a insuficiente análise das rãs no Estudo de Impacto Ambiental”.22 Nos EUA a Suprema Corte decidiu impedir a continuidade da construção de uma hidrelétrica porque poderia haver a destruição do habitat do molusco snail darter. Disse o Tribunal: “O valor desse patrimônio genético é incalculável (...). É interesse da humanidade limitar as perdas das variações genéticas. A razão é simples: aí se encontram as chaves dos enigmas que somos incapazes de resolver e elas podem fornecer as 20 . Bundesverwaltungsgericht, 21.8.1996 (BverwG 11 C 9.95), apud DOUMA, Wybe Th., “The precautionary principle”, T.M.C. Asser Institute, The Hague, Netherlands (o artigo consta da Internet, no arquivo Principle of Precaution, sendo que seu autor o publicou, de forma semelhante, no Iceland Legal Journal. Úlfjótur 49/417-430, ns. 3 e 4, 1996). 21 . “Leatch vs. National Parks and Wildlife Service and Shoalhaven City Council (1993) 81 LGERA 270 at 281-285 Stein J. of Land and Environment Court”, apud Wybe Th. Douma, “The precautionary principle”, cit. As espécies em questão são the yellow-bellied glider and the giant burrowing. 22 . GIRAUD, Catherine. Le Droit et le principe de precaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de l’Environnment. v.1. Limoges: SFDE, 1997. p. 21-36. respostas às questões que nós não aprendemos a colocar. O mais simples egocentrismo nos ensina a sermos prudentes”.23 4.3 O princípio da precaução e a Engenharia Genética Na França, o Conselho de Estado24 concedeu medida liminar (sursis à exécution) em processo movido pela Association Greenpeace France contra a empresa Norvartis, suspendendo a portaria do Ministro da Agricultura de 5 de fevereiro de 1998 que permitia o cultivo do “milho transgênico” ou obtido através de manipulação genética. O Tribunal francês acolheu a argumentação de que o processo estava incompleto no referente “à avaliação de impacto sobre a saúde pública do gene de resistência à ampicilina contido nas variedades de milho transgênico”, como, também, o não-respeito ao “princípio da precaução”, enunciado no art. L. 200-1 do Código Rural. A ex-Ministra do Meio Ambiente, jurista Corinne Lepage, afirmou que o posicionamento do Conselho de Estado “ultrapassa o caso do milho transgênico, pois o princípio deverá ser aplicado para todos os organismos geneticamente modificados (OGMs)”.25 O art. L. 200-1 do Código Rural, mencionado no julgado, diz que o princípio da precaução é aquele “segundo o qual a ausência de certeza, levando em conta os conhecimentos científicos e técnicos do momento, não deve retardar a adoção de medidas efetivas e proporcionais visando a prevenir o risco de danos graves e irreversíveis ao meio ambiente, a um custo economicamente aceitável”. Martine Remond-Gouillod, comentando a referida decisão, afirma: “Longe de paralisar o progresso, a precaução disciplina a inovação, assegurando-lhe um lugar legítimo em nossa civilização tecnológica. A precaução ensina a resistir à pressão da conjuntura imediata, podendo-se extrair-se da decisão do Conselho de Estado a seguinte mensagem: pode ser urgente esperar”.26 23 . MACHADO, Paulo A. L. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros,.1994. p. 98. A decisão da Suprema Corte norte-americana é a “Tenessee Valley Authorithy vs. Hill, 98, S.Ct 2279 (1978)”. 24 . Seção contenciosa do Conselho de Estado da França (julgamento 194.348, relator M. Derepas, leitura do julgado em 25.9.98 ). Jornal O Estado de S. Paulo, ed. 26.9.1998. 25 . Jornal Le Figaro, 26.9.1998, p. 10. 26 .REMOND-GOUILLOD, Martine, Les OGMs au Conseil d’État. Gazette du Palais, 22.1.99, p. 13- 14. No Brasil intentou-se medida cautelar, ajuizada27 pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor-IDEC contra a União Federal, Monsanto do Brasil Ltda. e Monsoy Ltda. visando a impedir a autorização para qualquer pedido de plantio da soja transgênica round up ready antes que se proceda à devida regulamentação da matéria e ao prévio Estudo de Impacto Ambiental. O parecer do Ministério Público Federal é da autoria do Dr. Aurélio Veiga Rios. O Juiz Federal titular da 6a Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, Antônio Souza Prudente, decidiu,28 entre outras medidas, que: 1) as empresas rés, Monsanto do Brasil Ltda. e Monsoy Ltda., apresentem Estudo Prévio de Impacto Ambiental como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja round up ready; 2) ficam impedidas as referidas empresas de comercializar as sementes da soja geneticamente modificada até que sejam regulamentadas e definidas, pelo Poder Público competente, as normas de biossegurança e de rotulagem de OGMs; 3) sejam intimados, pessoalmente, os Sr. Ministros da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Saúde, para que não expeçam qualquer autorização às promovidas antes de serem cumpridas as determinações judiciais, ficando suspensas as autorizações que, porventura, tenham sido expedidas nesse sentido. O Juiz do processo acolheu expressamente o princípio da precaução. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, em erudito e independente julgamento manteve a decisão de primeira instância, sendo Relatora Juíza Assusete Magalhães, participando os Juiz Jirair Aram Meguerian e Carlos Fernando Mathias.29 5. Intervenção do Poder Público aplicando o princípio da precaução O Governo da França, com relação à alimentação e à fabricação de alimentos destinados aos animais das espécies, cuja carne ou produtos sejam destinados ao consumo humano, suspendeu a fabricação e a utilização das “farinhas de carne, farinhas de osso, farinha de carne com osso e todas as proteínas de origem animal, com exceção 27 Advogadas Andrea Lazzarini Salazar e Flávia Lefèvre Guimarães .Brasília (DF), 18 de junho de 1999. 29 Tribunal Regional da 1° Região -AC 2000.01.00.014661-1. Julgamento aos 08.8.2000. 28 das proteínas oriundas do leite e de ovos e o uso das gorduras oriundas da transformação de ossos destinados à produção de gelatina”.30 O Governo solicitara o parecer da Agência francesa de segurança sanitária alimentar, em 31.10. 2000 sobre os riscos eventualmente ligados ao uso dessas farinhas. Antes da apresentação do referido parecer, aos 14.11.2000, foram determinadas por ele “medidas de precaução”.31 Há indícios de que o uso dessas farinhas provoque o surgimento de “encefalopatia espongiforme bovina”, chamada vulgarmente de doença da “vaca louca”. A ingestão pelos seres humanos de carne, oriunda de animal atacado por essa doença, tem provocado o surgimento da moléstia chamada “Creutzfeldt-Jakob”.32 Na incerteza científica e, mesmo tendo que fazer grandes despesas na apreensão das farinhas animais e sua posterior incineração, o Governo francês foi levado a proceder à interdição referida, na tentativa de evitar a propagação da moléstia e a generalização do pânico. 6. Características do princípio da precaução 6.1 Incerteza do dano ambiental “Durante muito tempo, os instrumentos jurídicos internacionais limitavam-se a enunciar que as medidas ambientais a serem adotadas deveriam basear-se em posições científicas, supondo que este tributo à Ciência bastava para assegurar a idoneidade dos resultados. Esta filosofia inspirou a maioria dos convênios internacionais celebrados até o final da década de 80, momento em que o pensamento sobre a matéria começou a mudar para uma atitude mais cautelosa e também mais severa, que levasse em conta as incertezas científicas e os danos às vezes irreversíveis que poderiam decorrer de atuação fundada em premissas científicas, que logo poderiam mostrar-se errôneas”.33 A primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de dano ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza científica do risco 30 Le Journal Officiel, França, Lois et Décrets. n. 264. 15.11.2000. p. 18081. Le Journal Officiel. Ob.cit. 32 A doença “Creutzfeldt-Jakob” é geralmente mortal. É uma doença cerebral, transmissível, sem ser contagiosa, de longa incubação, mas de desenvolvimento rápido, quando os sinais clínicos aparecem. De 1985 a 2000 já morreram 80 pessoas na Inglaterra, com essa doença. (La vache folle:le mea-culpa britannique. Le Monde eléctronique, França, 27.10.2000). 33 .JUSTE RUIZ. José. Derecho Internacional del Medio Ambiente. Madri: McGraw, 1999. p.479. 31 ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos especialistas? Devem, portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e estrangeiras sobre a matéria. Chegouse a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental? A existência de certeza necessita ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção. “O princípio da precaução consiste em dizer que não somente somos responsáveis sobre o que nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também, sobre o que nós deveríamos duvidar”34 Aplica-se o princípio da precaução ainda quando existe a incerteza, não se aguardando que esta se torne certeza. 6.2 Tipologia do risco ou da ameaça O risco ou o perigo serão analisados conforme o setor que puder ser atingido pela atividade ou obra projetada. Por exemplo, como já se mencionou, a Convenção da Diversidade Biológica não exige que a ameaça seja “séria ou irreversível”, mas que a ameaça seja “sensível”, quanto à possível redução ou perda da diversidade biológica. Ameaça sensível é aquela revestida de perceptibilidade ou aquela considerável ou apreciável. A Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima refere-se à ameaça de danos “sérios ou irreversíveis”. A seriedade no dano possível é medida pela sua importância ou gravidade. A irreversibilidade no dano potencial pode ser entendida como a impossibilidade de volta ao estado ou condição anterior (constatado o dano, não se recupera o bem atingido). 6.3 Da obrigatoriedade do controle do risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente O risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente não é matéria que possa ser relegada pelo Poder Público. A Constituição Federal foi expressa no art.225, § 34 . LAVIEILLE, Jean-Marc .Droit International de l’Environnement. Paris: Ellipses, 1998 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. A Constituição Federal manda que o Poder Público não se omita no exame das técnicas e métodos utilizadas nas atividades humanas que ensejem risco para a saúde humana e o meio ambiente. O inciso V do §1º necessita ser levado em conta, juntamente com o próprio enunciado do art. 225 da Constituição Federal, onde o meio ambiente é considerado “essencial à sadia qualidade de vida”. Controlar o risco é não aceitar qualquer risco. Há risco inaceitável, como aquele que coloca em perigo os valores constitucionais protegidos, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, os processos ecológicos essenciais, o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, a diversidade e a integridade do patrimônio biológico, incluído o genético e a função ecológica da fauna e da flora. 6.4 O custo das medidas de prevenção A terceira questão a ser enfrentada é o custo das medidas de prevenção em relação ao país, à região ou ao local. A Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima preconiza que “as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”. A lei francesa também aponta que as medidas de prevenção, aplicadas em razão do princípio da precaução, devam ser tomadas “a um custo economicamente aceitável”. O Reino Unido tem adotado a abordagem “BAT” (Best Available Technology” – melhor tecnologia disponível), inserida na Lei de Proteção do Meio Ambiente de 1990 (seção 7, § 4), se bem que balizada pelas considerações de custo (Best Available Technology not entailing excessive cost).35 O custo excessivo deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada país, pois a responsabilidade ambiental é comum a todos os países, mas diferenciada. “As opiniões dos cientistas e dos economistas são freqüentemente divergentes na matéria, especialmente quando se trata de avaliar os danos evitados e aqueles que ficam 35 WINTER, Gerd. European Environmental Law: A Comparative Perspective. Aldershot: Dartmouth, 1996. p. 41. sob a responsabilidade das gerações futuras, como, por exemplo, no caso do aumento possível do número de câncer, devido ao empobrecimento da camada de ozônio”.36 “A participação do Poder Público não se direcionaria exatamente à identificação e posterior afastamento dos riscos de determinada atividade. À pergunta ‘causaria A um dano?’ seria contraposta a indagação ‘precisamos de A?’. Não é o risco, cuja identificação torna-se escorregadia no campo político e técnico-científico, causado por uma atividade que deve provocar alterações no desenvolvimento linear da atividade econômica. Porém, o esclarecimento da razão final do que se produz seria o ponto de partida de uma política que tenha em vista o bem-estar de uma comunidade. No questionamento sobre a própria razão de existir de uma determinada atividade colocar-seia o início da prática do princípio da precaução”.37 6.5. Implementação imediata das medidas de prevenção: o não-adiamento Os documentos internacionais citados entendem que as medidas de prevenção não devem ser “postergadas” (Declaração do Rio de Janeiro/92, Convenção da Diversidade Biológica e Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima). “Postergar” é adiar, é deixar para depois, é não fazer agora, é esperar acontecer. A precaução age no presente para não se ter que chorar e lastimar no futuro. A precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo incerto, que possa resultar das ações ou omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo. O princípio da precaução, para ser aplicado efetivamente, tem que suplantar a pressa, a precipitação, a improvisação, a rapidez insensata e a vontade de resultado imediato. Não é fácil superar esses comportamentos, porque eles estão corroendo a sociedade contemporânea. Olhando-se o mundo das Bolsas, aquilata-se o quanto a “cultura do risco” contamina os setores financeiros e os governos, jogando, na maior parte das vezes, com os bens alheios. O princípio da precaução não significa a prostração 36 KISS, Alexandre-Charles; SHELTON Dinah. Traité de Droit Européen de l’Environnmen. Paris:FrisonRoche,1995, p. 554. 37 WINTER, Gerd. Brauchen wir das? – Von der Riskominimierung zur Bedarfsprüfung, p 390. Apud: DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 171. diante do medo, não elimina a audácia saudável, mas se materializa na busca da segurança do meio ambiente e da continuidade da vida. A necessidade do adiamento das medidas de precaução em acordos administrativos ou em acordos efetuados pelo Ministério Público deve ser exaustivamente provada pelo órgão público ambiental ou pelo próprio Ministério Público. Na dúvida, opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura). 6.6. O princípio da precaução e os princípios constitucionais da Administração Pública brasileira O princípio da precaução, abraçado pelo Brasil com a adesão, ratificação e promulgação das Convenções internacionais mencionadas, com a adoção do art. 225 da Constituição Federal e com o advento do art. 54, § 3o, da Lei 9.605, de 12.2.1998, deverá ser implementado pela Administração Pública, no cumprimento dos princípios expostos no art. 37, caput, da CF. Contraria a moralidade e a legalidade administrativas o adiamento de medidas de precaução que devam ser tomadas imediatamente. Violam o princípio da publicidade e o da impessoalidade administrativas os acordos e/ou licenciamentos em que o cronograma da execução de projetos ou a execução de obras não são apresentados previamente ao público, possibilitando que os setores interessados possam participar do procedimento das decisões.38 “O princípio da precaução entra no domínio do direito público que se chama “poder de polícia” da administração. O Estado que, tradicionalmente, encarrega-se da salubridade, da tranqüilidade, da segurança, pode e deve para este fim tomar medidas que contradigam, reduzam, limitem, suspendam algumas das grandes liberdades do homem e do cidadão: expressão, manifestação, comércio, empresa. O princípio da precaução estende este poder de polícia. Em nome desse princípio, o Estado pode suspender uma grande liberdade, ainda mesmo que ele não possa apoiar sua decisão em uma certeza 38 .Ao aplicar-se a Medida Provisória 1.710/98 poderemos encontrar a concessão de prazos administrativos sem a devida motivação, o que provocará adiamento da implementação de medidas de prevenção e de precaução. Cresce a necessidade de o Ministério Público, as pessoas e as associações ambientais fiscalizarem esses acordos e buscarem junto ao Poder Judiciário a anulação das ilegalidades cometidas. científica” afirma François Ewald.39 Acrescenta o autor, que o legislador, segundo a lógica do balanço custo-vantagem, abre a possibilidade para a interposição de recurso por excesso de poder (desde que as disposições tomadas pela administração tenham sido desproporcionais). . Ao aplicar o princípio da precaução, “os governos encarregam-se de organizar a repartição da carga dos riscos tecnológicos, tanto no espaço como no tempo. Numa sociedade moderna, o Estado será julgado pela sua capacidade de gerir os riscos”40 Deixa de buscar eficiência a Administração Pública que, não procurando prever danos para o ser humano e o meio ambiente, omite-se no exigir e no praticar medidas de precaução, ocasionando prejuízos, pelos quais será co-responsável. 6.7. A inversão do ônus da prova Em certos casos, em face da incerteza científica, a relação de causalidade é presumida com o objetivo de evitar a ocorrência de dano. Então, uma aplicação estrita do princípio da precaução inverte o ônus normal da prova e impõe ao autor potencial provar, com anterioridade, que sua ação não causará danos ao meio ambiente. Ensinam Alexandre Kiss e Dinah Shelton.41 Citam o exemplo da Lei alemã sobre Responsabilidade Ambiental. No Brasil, pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente aplica-se a responsabilidade civil objetiva (art. 14, § 1o). Jean Malafosse diz que “a dúvida aproveita ao ‘poluído’. O princípio da precaução traduz-se por um inversão do ônus da prova em proveito da proteção do meio ambiente”.42 Cita Christian Huglo, que afirma: “Quando a prova da inocuidade de uma substância não é demonstrada, é necessário abster-se de agir”.43 Sérgio Marchisiso afirma que “o princípio da precaução emergiu nos últimos anos como um instrumento de política 39 La précaution, une responsabilité de L’ État. Le Monde, França. 10. 3. 2000. EWALD, François et KESSLER. Les noces du risque et de la politique. Le Débat:Gallimard. n.109. mar/abril, 2000 41 . KISS, Alexandre-Charles; SHELTON Dinah. Traité de Droit Européen de l’Environnmen. Paris:FrisonRoche,1995, p. 42 42 . MALAFOSSE, Jean. Sursis `a l’exécution de l’arrêté ministériel introduisant en France trois variétés de ‘maïs génétiquement modifié. JCP-La Semaine Juridique- Générale n. 52, 23.12.1998, p. 2273-2276. 43 . La Lettre Juris-Classeur de l’Environnment 3/1, setembro de 1997. 40 ambiental baseado na inversão do ônus da prova: para não adotar medida preventiva ou corretiva é necessário demonstrar que certa atividade não danifica seriamente o ambiente e que essa atividade não causa dano irreversível”.44 “A inversão do ônus da prova tem como conseqüência que os empreendedores de um projeto devem necessariamente implementar as medidas de proteção do meio ambiente, salvo se trouxerem a prova de que os limites do risco e da incerteza não foram ultrapassados” – afirma Cathérine Giraud. Essa autora cita D. Freestone, “que focaliza o procedimento de justificação prévia (prior justification procedure) como uma expressão da inversão do ônus da prova. Aplicado ao problema específico da imersão dos rejeitos industriais no mar do Norte, este procedimento exige a prova de que nenhum efeito nefasto será causado ao meio ambiente, como condição para a expedição da autorização de imersão”.45 7. A Lei 9.605/98 e a incriminação da ausência de precaução A Lei 9.605, de 12.2.1998, diz, no art. 54: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”. O § 3o do referido art. 54 diz: “Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”. A conceituação de “medidas de precaução” não é dada pela lei penal, devendo-se procurá-la nos entendimentos referidos nos textos internacionais, aqui interpretados, e na doutrina. Não se trata de outro tipo de precaução senão aquele inserido no princípio ora estudado, tanto que as medidas a serem exigidas serão cabíveis “em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”. 8. O Estudo de Impacto Ambiental e a aplicação do princípio da precaução: diagnóstico do risco ambiental 44 . MARCHISISO, Sérgio. Gli atti di Rio nel Diritto Internazionale. Rivista di Diritto Internazionale v.3. Milão: Giuffrè,1992. 45 . GIRAUD, Cathérine, Le Droit et le principe de péecaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de l’Environnmen. Limoges: SFDE, 1997. p. 33. A aplicação do princípio da precaução relaciona-se intensamente com a avaliação prévia das atividades humanas. O “Estudo de Impacto Ambiental” insere na sua metodologia a prevenção e a precaução da degradação ambiental. Diagnosticado o risco, pondera-se sobre os meios de evitar o prejuízo. Aí entra o exame da oportunidade do emprego dos meios de prevenção. A Declaração do Rio de Janeiro/92 preconizou também o referido Estudo de Impacto Ambiental, dizendo no Princípio 17: “A avaliação de impacto ambiental, como instrumento nacional, deve ser empreendida para atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma decisão de uma autoridade nacional competente”. Na Austrália, as recomendações do Relatório Young de 199346 contêm mecanismos de aplicação do princípio de precaução. “O instrumento especial proposto é o Estudo de Impacto Ambiental. Este instrumento deverá, segundo o relatório, ser adaptado e conter uma etapa de fiscalização mais importante, como, da mesma forma, os padrões a serem respeitados devem ser mais estritos, levando-se em conta os fenômenos da irreversibilidade”.47 O Brasil já havia adotado em sua legislação esse instrumento jurídico de prevenção do dano ambiental. A Constituição Federal diz no § 1o do art. 225: “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, a que se dará publicidade”.. Nesse estudo avaliam-se todas as obras e todas as atividades que possam causar degradação significativa ao meio ambiente. A palavra “potencialmente”48 abrange não só o dano de que não se duvida, como o dano incerto e o dano provável. 46 YOUNG, M. “For our children’s children: some pratical implications of inter-generational equity and the precaucionary principle”, Resource Assesment Commission Commonwelth of Australia, occasional publication 6, november 1993. 47 GIRAUD, Cathérine. Le Droit et le principe de precaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de l’Environnment. Limoges: SFDE, 1997. p. 33. 48 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. e Dicionário de Lingua Portugesa, Mirador Internacional, 1976. “A implementação do princípio de precaução pode ser olhada como exigências que os Estados incorporam, entre outras, no planejamento e na legislação, através do procedimento do estudo de impacto ambiental” afirma Catherine Tinker.49 A Resolução 1/86-CONAMA diz que o Estudo de Impacto Ambiental desenvolverá “a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: ... os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo; temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais” (art. 6o, II). Determinar o grau de perigo, ou seja, apontar a extensão ou a magnitude do impacto, é uma das tarefas do Estudo de Impacto Ambiental, como se vê da regulamentação acima referida. É também objeto da avaliação o grau de reversibilidade do impacto ou sua irreversibilidade. Como se constata, a legislação do Estudo de Impacto Ambiental contempla, também, uma avaliação de risco. É preciso ressaltar a necessidade de os consultores do Estudo de Impacto Ambiental serem “competentes e independentes para avaliar os riscos”.50 Falando da “crise da perícia”, diz Axel Kahn: “Assiste-se, às vezes, ao fenômeno singular e humano da confusão entre perícia e promoção da técnica examinada, pela razão de que os peritos (ou especialistas), sendo experientes no terreno que examinam, são levados, às vezes, a defendê-lo em vez de avaliar verdadeiramente”.51 No caso da aplicação do princípio da precaução, é imprescindível que se use um procedimento de prévia avaliação, diante da incerteza do dano, sendo este procedimento o já referido Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Outras análises, por mais aprofundadas que sejam, não podem substituir esse procedimento. 49 TINKER, Catherine. State Responsability and the Precautionary Principle. In: FREESTONE, David; HEY, Ellem. International Environmental Law and Policiy. Boston: Kluwer International, 1996. 50 . Conférence de Citoyens sur l’Utilisation des OGMs en Agriculture et dans l’Alimentation Office Parlemantaire d’Évaluation des Choix Scientifiques et Téchnologiques, Paris. Communiquès à la Presse., 20-21.6.98. 51 . KAHN, Axel. Le progrès de la Génétique,Futuribles, 27.9.97, p. 5. Decidiu o egrégio TRF da 5a Região, com sede em Pernambuco, que “o Relatório de Viabilidade Ambiental não é idôneo e suficiente para substituir o Estudo de Impacto Ambiental e respectivo relatório”.52 Muito acertada a decisão judicial, pois a multiplicidade de procedimentos não só geraria confusão, como enfraqueceria as garantias jurídicas de seriedade, de amplitude e de publicidade já inseridas no Estudo de Impacto Ambiental. A prática dos princípios da informação ampla e da participação ininterrupta das pessoas e organizações sociais no processo das decisões dos aparelhos burocráticos é que alicerça e torna possível viabilizar a implementação da prevenção e da precaução para a defesa do ser humano e do meio ambiente. Referências Bibliográficas BECK, Ulrich. La Société du Risque: sur la voie d´une autre modernité. Paris: Auto-‐ Aubier, 2001 CANS, Chantal. Grande et petite histoire des principes généraux du Droit de l’Environnment dans la Loi du 2 février 1995. Revue Juridique de l’Environnement 2, 1995 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001 DOUMA, Wybe Th. “The precautionary principle”, T.M.C. Asser Institute, The Hague, Netherlands EWALD, François et KESSLER. Les noces du risque et de la politique. Le Débat:Gallimard. n.109. mar/abril, 2000 GIRAUD, Catherine. Le Droit et le principe de precaution: leçons d’Australie. Revue Juridique de l’Environnment. v. 1. Limoges: SFDE, 1997. JUSTE RUIZ. José. Derecho Internacional del Medio Ambiente. Madri: McGraw Hill, 1999. KAHN, Axel. Le progrès de la Génétique,Futuribles, 27.9.97 KISS, Alexandre-Charles; SHELTON Dinah. Traité de Droit Européen de l’Environnment. Paris: Frison-Roche, 1995. LAVIEILLE, Jean-Marc .Droit International de l’Environnement. Paris: Ellipses, 1998 52 .Tribunal Regional da 5° Região Ap. cível 5.173.820-CE, Relator. Juiz José Delgado, 2.8.1994, DJU 23.9.1994. MACHADO, Paulo A. L. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994. MALAFOSSE, Jean. Sursis `a l’exécution de l’arrêté ministériel introduisant en France trois variétés de ‘maïs génétiquement modifié. JCP-La Semaine Juridique- Générale n. 52, 23.12.1998, p. 2273-2276 MARCHISISO, Sérgio. Gli atti di Rio nel Diritto Internazionale. Rivista di Diritto Internazionale v.3. Milão: Giuffrè Editore, 1992. MATEO, Ramón Martín. Tratado de Derecho Ambiental. v. 2. Madri: Trivium, 1992. PRIEUR, MICHEL. 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YOUNG, M. “For our children’s children: some pratical implications of intergenerational equity and the precaucionary principle”, Resource Assesment Commission Commonwelth of Australia, occasional publication 6, november 1993. Capítulo 14 O Princípio da Precaução e a sua aplicação na Justiça Brasileira: Estudo de Casos Aurélio Virgilio Veiga Rios* 1. Introdução Este artigo pretende abordar o conteúdo político e jurídico do Princípio da Precaução e sua efetividade junto aos tribunais, a partir da análise de casos concretos, que permitem algumas conclusões a respeito das dificuldades de se dar a um princípio internacional do meio ambiente1 a importância que ele merece em situações específicas levadas à apreciação da Justiça Brasileira, mais precisamente da Justiça Federal. Não é intenção deste texto arrolar todos os casos em que o princípio da precaução foi invocado na Justiça Brasileira, mas algumas ações paradigmáticas referentes à biossegurança, com repercussão política e jurídica no meio ambiente, com o propósito de fazer um exame, ainda que precário e provisório, da eficácia do princípio da precaução, quando questionadas, na via judicial, as ações de governo na área ambiental. Por igual, neste trabalho se buscará checar como o princípio da precaução vêm sendo aplicado pelo Poder Judiciário, quando confrontado com a política ambiental a ser adotada pelo governo federal, especialmente com relação à biodiversidade e à biossegurança, de modo a verificar se as medidas de prevenção a danos ambientais incertos estão, de fato, sendo aplicadas pelo poder público, para que não sejam apenas retórica vazia, sem conteúdo prático. Dito de outro modo, este estudo visa perquirir em * Procurador Regional da República, lotado em Brasília, Mestre em Direito Público pela Universidade de Bristol – Inglaterra e Professor da Universidade do Distrito Federal. 1 Este autor assume que o princípio da precaução faz parte do direito internacional do meio ambiente e que não é uma simples declaração de intenção, uma soft law dirigida aos Estados e sem eficácia quanto a sua incidência, mas que, ao contrário, dele derivam conseqüências legais para os Estados e, em particular, para a ação governamental. Por suposto, não se aceita aqui a expressão “abordagem precautória” como substituta ou similar àquela destinada ao princípio da precaução, pelo direito internacional. No entanto, há vários e renomados autores que preferem considerar que o princípio da precaução é norma de direito internacional não cogente e que, sozinho, não seria capaz de gerar um princípio internacional (como Sadeleer). Outros consideram um princípio em construção (Freestone). A propósito dessa controvérsia quanto ao sentido e ao alcance do princípio da precaução, recomenda-se a leitura dos capítulos de Kiss, Freestone e Varella, publicados neste livro. que extensão pode o princípio da precaução ser usado eficazmente, como instrumento de proteção ambiental perante o Poder Judiciário. Para enfrentar esses dois objetivos, aqui se tratará dos casos judiciais em que se discute a delicada questão dos transgênicos, com ênfase ao processo de liberação, em escala comercial, da soja round up ready; os experimentos autorizados pela CTNBio em relação ao arroz liberty link, no Rio Grande Sul, e às plantas que funcionam como bioinseticidas, sem o Registro Especial Temporário (RET); por último, o caso da importação de milho da Argentina, sem os testes de detecção de transgenia e sem prévio licenciamento ambiental. 2. O Princípio da Precaução De início, convém lembrar em poucas palavras o que vem a ser o princípio da precaução e sua importância crescente para o direito internacional do meio ambiente, mais precisamente para a biossegurança. O princípio da precaução não nasceu do nada. Ele é conseqüência e também uma derivação do princípio da prevenção ao dano ambiental, que sugere sejam tomadas pelos Estados e empreendedores as medidas necessárias para se evitar a ocorrência de danos ambientais. Ele é fruto da urgência e da prudência, numa combinação de instrumentos para se lidar com as causas e conseqüências dos danos ambientais causados pelos mais diversos fatores: contaminação dos recursos naturais, poluição do ar, desmatamento etc. O princípio da precaução difere do da prevenção, quando os riscos e danos que se quer evitar são incertos e o conhecimento científico, escasso ou controvertido sobre os efeitos de um dado produto ou substância no meio ambiente. Sabe-se que nem todos os malefícios causados ao meio ambiente são conhecidos, mensurados e certos quanto a suas conseqüências. Alguns danos podem ser hoje medidos em relação a sua intensidade, como aqueles ocasionados pelo enchimento de uma barragem para aproveitamento hidrelétrico, em um determinado curso d’água, mas outros permanecem incertos quanto a seus efeitos a médio e longo prazo no ambiente ou em relação à saúde humana, como é o caso dos organismos geneticamente modificados. Ulrich Beck, ao analisar a sociedade de risco, afirma que “a velha sociedade industrial, baseada na distribuição de bens, foi sendo substituída por uma nova sociedade de risco, estruturada na distribuição de males”2. De fato, na sociedade de risco a distribuição dos danos ambientais causados aflora indistintamente, sem discriminação geográfica ou social, e também não está delimitada no tempo, acentuando essa incerteza quanto aos efeitos da incorporação de novas tecnologias na agricultura, na indústria e na produção de medicamentos. A transição de uma era industrial para uma época de riscos ocorre de forma invisível e inconsciente, no curso do processo de modernização. Neste sentido, a sociedade de risco não pode ser vista como uma opção que poderia ser escolhida ou rejeitada, no curso do debate político. Os riscos que acompanham as novas tecnologias decorrem automaticamente da modernização, em um processo autônomo que é surdo e mudo quanto a suas conseqüências e perigos3. Em razão da inevitabilidade dos riscos que acompanham a sociedade moderna e como medida essencial de prevenção quanto a danos ambientais ainda incertos, o princípio da precaução foi elevado à categoria de regra do direito internacional, ao ser incluído na Declaração do Rio, como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento-RIO/92, sendo considerado por muitos autores como um princípio fundamental do direito ambiental internacional4, assim redigido: Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados devem aplicar amplamente o critério da precaução conforme suas capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de uma certeza absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental. As duas convenções internacionais, nascidas da Conferência do Rio, também fazem menção explícita à importância do princípio da precaução como norma balizadora da atuação dos Estados-partes, na defesa do meio ambiente. A Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas expressamente adere ao princípio da precaução, ainda que de forma limitada, conclamando os países a tomarem as medidas de prevenção para se evitar a 2 Ulrick Beck. “Risk Society and the Provident State” in Risk, Environment and Modernity - Towards a New Ecology. London : Scott Lash, Branislaw Szersynsky and Brian Wynne, Sage Publications, 1996. Tradução livre do texto em inglês. 3 Op. cit, p. 15. 4 Entre os autores que consideram a importância do princípio da precaução para o direito internacional do meio ambiente estão Sands, Machado e Rios, entre outros. emissão de gases que possam provocar o aquecimento do planeta, conhecido como efeito estufa. A Convenção da Diversidade Biológica recomenda às partes, como medida para a conservação ìn situ dos recursos naturais, que estabeleçam ou mantenham os meios para regulamentar, administrar ou controlar os riscos associados à utilização e liberação de organismos vivos modificados, resultantes da biotecnologia que, provavelmente, provoquem impacto ambiental negativo que possa afetar a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana (art. 8, alínea g). Recentemente e de modo mais enfático, o princípio da precaução foi incorporado ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, firmado em Montreal, Canadá, em 28 de janeiro de 2000, dentro da Convenção sobre Diversidade Biológica. O Protocolo representa um avanço significativo na tentativa de se fixarem normas-padrão de biossegurança, servindo como referência internacional para a proteção da diversidade biológica e da saúde humana, em relação a eventuais danos que possam advir da liberação no meio de OGM ou da ingestão de produtos ou alimentos transgênicos. A definição do princípio da precaução, como base para a tomada de decisões sobre importação de sementes, alimentos ou produtos transgênicos, protege por igual todos os países importadores contra possíveis acusações de discriminação comercial ou de imposição de barreiras não alfandegárias e, em tese, até mesmo de eventuais reclamações por parte dos países exportadores de biotecnologia junto à Organização Mundial do Comércio – OMC 5. Assim, parece fácil a conclusão de que, em relação à biossegurança, nenhum princípio é tão importante quanto o princípio da precaução. Ele é a base que sustenta o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que torna obrigatória a análise de risco de qualquer OGM, é ele que obriga o empreendedor a realizar o prévio Estudo de Impacto Ambiental – EIA/RIMA, previsto no art. 225, inciso IV, da Constituição Federal, e também serviu como fundamento para a sentença judicial que determinou a rotulagem de 5 Sem embargo da importância do princípio da precaução, no Protocolo de Cartagena, há fundada divergência quanto a sua aplicação junto à OMC. Ver os capítulos de Noiville e Varella, publicados neste livro. produtos transgênicos, proibindo o plantio, em escala comercial, da soja round up ready 6, que veremos a seguir. 3. Estudo de Casos 3.1 O caso da soja transgênica O caso em questão é certamente o processo judicial mais importante, ocorrido no país, relacionado com a aplicação in concreto do princípio da precaução. Trata-se de uma ação civil pública, precedida de medida cautelar, em que o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC questionou o “Parecer Técnico Prévio Conclusivo” (sic) da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio 7, que aprovou o plantio, em escala comercial, pela CTNBio, da soja geneticamente modificada round up ready, que torna o grão naturalmente resistente ao glifosato, princípio ativo largamente utilizado como herbicida, nas mais diversas lavouras. A autorização dada pela CTNBio, encarregada pela Lei nº 8974/95 de examinar os aspectos de biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGM) para a desregulamentação (liberação) da soja round up ready, por ser o primeiro OGM a obter um Parecer Técnico favorável a sua comercialização pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio, revelou-se um bom teste para verificar o cumprimento da Constituição e das normas regulamentares de biossegurança, em concreto. Como a controvérsia entre ambientalistas, cientistas e a indústria foi judicializada, torna-se relevante confrontar o referido Parecer da CTNBio com o objeto de duas ações civis públicas ajuizadas, respectivamente pela associação civil Greenpeace, em dezembro de 1997, e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC, em junho de 19988. As referidas ações têm em comum a mesma argumentação contrária à introdução de organismo geneticamente modificado no país, baseada no princípio da precaução e na aplicação do código de defesa do consumidor. Ambas pretendem impedir o ingresso de soja transgênica no país. Na primeira delas, iniciada pelo Greenpeace, pediu-se a proibição da importação de soja round up norte-americana pela empresa Monsanto e, 6 Processo nº 1998.34.00027682-0/DF, referente à ação civil pública proposta pelo IDEC contra a Monsanto e a União, que tramitou perante a 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. 7 Comunicado nº 54/1998 da CTNBio. 8 Processo nº 97.34.00036170-4 (Greenpeace v. Presidente da CTNBio) e 98.34.00027681-8 (Medida Cautelar) e 98.00.027682-0 (ação civil pública), ambas propostas pelo IDEC contra a União Federal. alternativamente, caso admitida a importação, que fosse ordenada a rotulagem dos produtos derivados de OGM. Na outra ação civil pública, ajuizada pelo IDEC, pleiteia-se a suspensão da autorização para o cultivo da soja geneticamente modificada, com base na ausência de prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para autorizar a liberação da soja transgênica e na falta de norma específica sobre segurança alimentar e de informação adequada do novo produto aos consumidores. Observa-se que o princípio da precaução foi firmemente invocado nas duas ações para dar fundamento aos pedidos de suspensão e ou proibição do plantio, em escala comercial, da soja geneticamente modificada, sob o argumento de que não havia estudos e pesquisas científicas suficientes para embasar o Parecer Técnico expedido pelo órgão responsável pela condução da política nacional de biossegurança. Paulo Affonso Leme Machado, que foi advogado do IDEC neste caso, sustentou a inconstitucionalidade do ato de dispensa do EIA/RIMA pela CTNBio ou por qualquer outro órgão do governo. Aliás, o mencionado mestre do direito ambiental teve a oportunidade de se expressar nos autos, por meio de artigo juntado às fls. 498/512, onde destaca o seguinte trecho 9: No caso da aplicação do princípio da precaução, é imprescindível que se use o procedimento de prévia avaliação, diante da incerteza do dano, sendo este procedimento o já referido prévio Estudo de Impacto Ambiental. Outras análises, por mais apropriadas que sejam, não podem substituir esse procedimento. Em junho de 1999, o Juiz Federal da 6ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, Antônio de Souza Prudente, concedeu a liminar requerida pelo IDEC, ao acolher o pedido formulado pelo Ministério Público Federal, para determinar em caráter mandamental inibitório, sem prejuízo das medidas de natureza cautelar já adotadas pelo ilustre Juiz Substituto da 6ª Vara, que: I - as empresas promovidas MONSANTO DO BRASIL LTDA e MONSOY LTDA apresentem prévio Estudo de Impacto Ambiental, na forma preconizada pelo art. 225, IV, da Constituição Federal, como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja round up ready; 9 Paulo Affonso de Leme Machado. “ O princípio da Precaução e o Direito Ambiental”, artigo doutrinário juntado às fls. 498/512 dos autos do « Caso da soja transgênica ”. II - ficam impedidas as referidas empresas de comercializarem as sementes da soja geneticamente modificada, até que sejam regulamentadas e definidas pelo poder público competente as normas de biossegurança e de rotulagem de organismos geneticamente modificados; III - fica suspenso o cultivo, em escala comercial, do referido produto, sem que sejam suficientemente esclarecidas, no curso da instrução processual, as questões técnicas suscitadas por pesquisadores de renome, a respeito das possíveis falhas apresentadas pela CNTBio em relação ao exame do pedido de desregulamentação da soja round up ready; (...) VI - sejam intimados pessoalmente os Sr. Ministros da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Saúde, para que não expeçam qualquer autorização às promovidas, antes de serem cumpridas as determinações judiciais aqui contidas, ficando suspensas as autorizações que, porventura, tenham sido expedidas nesse sentido; VII - fica estabelecida a multa pecuniária de 10 (dez) salários-mínimos por dia, a partir da data do descumprimento destas medidas, a ser aplicada aos agentes infratores, públicos ou privados (Lei nº 7.347/85, art. 11). Posteriormente, em agosto de 1999, a 6ª Vara Federal de Brasília-DF julgou procedente a Medida Cautelar ajuizada pelo IDEC, determinando que as empresas Monsanto do Brasil Ltda e Monsoy Ltda apresentassem prévio Estudo de Impacto Ambiental, como condição indispensável para o plantio, em escala comercial, da soja round up ready, ficando impedidas de comercializarem as sementes de soja transgênica, até que sejam regulamentadas e definidas pelo poder público competente as normas de biossegurança e de rotulagem de OGM. O Juiz Federal de Brasília, Souza Prudente10, também determinou a suspensão do cultivo do referido produto até que fossem suficientemente esclarecidas, no curso da instrução processual, as questões técnicas suscitadas por pesquisadores de renome a respeito das possíveis falhas apresentadas pela CTNBio em relação ao exame do pedido de liberação da soja round up ready. Enquanto não for concluído tal Estudo, o plantio da soja transgênica será restrito ao necessário, para realização de testes e do próprio 10 Atualmente exercendo o cargo de desembargador federal junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. EIA/RIMA, em regime monitorado e em área de contenção, delimitada e demarcada, com a proibição de serem comercializados os frutos obtidos com os aludidos testes, nas diversas fases que integram a feitura do EIA/RIMA. Verifica-se da leitura da sentença proferida na ação civil pública que o Juiz Souza Prudente visualizou no princípio da precaução a base teórica para exigir estudos complementares da CTNBio, além do EIA/RIMA, como condição essencial à liberação, em escala comercial, de toda e qualquer semente geneticamente modificada no país, por entender que havia perguntas sem respostas apropriadas quanto ao risco de uma liberação ampla, geral e irrestrita de OGMs no país, e sem o processo regular de licenciamento ambiental e sem prévias audiências públicas que atestassem a legitimidade do processo decisório que aprovou a desregulamentação da soja round up ready. Contra a sentença proferida na Medida Cautelar acima mencionada, a União Federal e a empresa Monsanto recorreram, pleiteando a suspensão de seus efeitos, não tendo elas obtido, até então, êxito junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região que, ao julgar o mérito das apelações da União e da empresa interessada, negou provimento aos recursos e manteve intacta a notável sentença da 6ª Vara Federal do Distrito Federal, que determinou a obrigatoriedade do EIA/RIMA como condição indispensável para a liberação da soja transgênica no meio ambiente ou para seu plantio, em escala comercial, e também a necessidade de se proceder à rotulagem plena de todos os produtos oriundos de OGM. Paralelamente foi julgada procedente pela 6ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília a ação civil pública ajuizada pelo IDEC, cuja parte dispositiva está assim lavrada: Com estas considerações, julgo procedente a presente ação para condenar a União Federal a exigir a realização de prévio Estudo de Impacto Ambiental da MONSANTO DO BRASIL LTDA, nos moldes preconizados nesta sentença, para liberação de espécies geneticamente modificadas e de todos os outros pedidos formulados à CTNBio, nesse sentido; declaro, em conseqüência, a inconstitucionalidade do inciso XIV do art. 2º do Decreto nº 1.752/95, bem assim a das Instruções Normativas nº 03 e 10 CTNBio, no que possibilitam a dispensa do EIA/RIMA, na espécie dos autos. Condeno, ainda, a União Federal a exigir da CTNBio, no prazo de 90 (noventa) dias, a elaboração de normas relativas à segurança alimentar, comercialização e consumo dos alimentos transgênicos, em conformidade com as disposições vinculantes da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor ( Lei nº 8.078/90) e da legislação ambiental, na espécie, ficando obrigada a CTNBio a não emitir qualquer parecer técnico conclusivo a nenhum pedido que lhe for formulado, antes do cumprimento das exigências legais aqui expostas. (....) Desta decisão, a Monsanto e a União apelaram ao TRF da 1ª Região, tendo a União interposto a suspensão de segurança, que foi indeferida pelo Presidente do Tribunal em 6/7/2000. Posteriormente, em fevereiro de 2003, a desembargadora federal Selene Maria de Almeida proferiu extenso voto, dando provimento aos apelos da União e da Monsanto. Atualmente, encontram-se os autos aguardando os votos dos demais juízes que compõem a 5ª Turma do TRF da 1ª Região. Convém ressaltar que esta decisão judicial inovadora provocou o primeiro caso, de que se tem notícia no Brasil, de suspensão judicial do plantio de sementes transgênicas, sendo um teste importante para verificar em concreto o descumprimento da legislação em vigor e também para apontar a inconstitucionalidade do Art. 2º, inciso XIV, do Decreto nº 1752, que regulamenta a Lei nº 8974/95, que permitia à CTNBio dispensar a seu alvedrio o EIA, no processo de liberação de sementes geneticamente modificadas, no meio ambiente. Além disso, é importante notar que todos os pressupostos jurídicos apontados pelo Ministério Público Federal - e expressamente afirmados na sentença de lavra do eminente Juiz Dr. Antônio de Souza Prudente - foram posteriormente incorporados ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, a saber: a) obrigatoriedade de Estudos de Impacto Ambiental ou Estudos de Avaliação de Riscos como condição à liberação de OGM, no meio ambiente; b) identificação e rotulagem de organismos transgênicos; e c) respeito ao direito dos Estados soberanos (como é o caso do Brasil) de fixarem normas ambientais de prevenção de riscos mais rígidas do que aquelas admitidas no Protocolo. Mais ainda. Ao julgar as apelações da Monsanto e da União Federal contra a sentença da 6ª Vara de Brasília, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou provimento aos recursos, em que se destaca o seguinte trecho da ementa: (...) V – A existência do fumus boni iuris ou da probabilidade de tutela, no processo principal do direito material invocado, encontra-se demonstrada especialmente: a) pelas disposições dos arts. 8º, 9º e 10, § 4º, da Lei nº 6.938, de 31/08/81 – recepcionada pela CF/88 – e dos arts. 1º, 2º, caput e § 1º, 3º, 4º e Anexo I da Resolução CONAMA nº 237/97, à luz das quais se infere que a definição de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”, a que se refere o art. 225, § 1º, IV, da CF/88, compreende “a introdução de espécies exóticas e ou geneticamente modificadas”, tal como consta do Anexo I da aludida Resolução CONAMA nº 237/97, para a qual, por via de conseqüência, é necessário o estudo prévio de impacto ambiental; b) pela relevância da tese de que o parecer conclusivo da CTNBio não tem o condão de dispensar o prévio Estudo de Impacto Ambiental para o plantio, em escala comercial, e a comercialização de sementes de soja geneticamente modificadas. Precedente do STF (ADin nº 1.086-7/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, in DJU de 16/09/94, pág. 24.279); c) pela vedação contida no art. 8º, VI, da Lei nº 8.974/95, diante da qual se conclui que a CTNBio deve expedir previamente a regulamentação relativa à liberação e descarte, no meio ambiente, de organismos geneticamente modificados, pelo que, até o momento presente, juridicamente relevante é a tese de impossibilidade de autorização de qualquer atividade relativa à introdução de OGM no meio ambiente (...); VI – A existência de uma situação de perigo recomenda a tutela cautelar, no intuito de se evitar – em homenagem aos princípios da precaução e da instrumentalidade do processo cautelar – até o deslinde da ação principal, o risco de dano irreversível e irreparável ao meio ambiente e à saúde pública, pela utilização de engenharia genética no meio ambiente e em produtos alimentícios, sem a adoção de rigorosos critérios de segurança (grifamos). (...) Da leitura atenta do referido acórdão, constata-se que, no dia 08 de agosto de 2000, a 2ª Turma do TRF da 1ª Região, em inspirado voto da Juíza relatora Assusete Magalhães, criou um precedente extraordinário para a invocação do princípio da precaução junto aos tribunais brasileiros. A importância do precedente foi de tal ordem que o governo federal, à época, editou a Medida Provisória nº 2137-1, modificando o art. 7º da Lei nº 8974/95, que atribuía equivocadamente à CTNBio o poder de dispensar o EIA/RIMA do processo de liberação de OGM no país. Sobre esse ponto, vale ponderar o seguinte: em primeiro lugar, a Medida Provisória aludida não introduziu nenhuma alteração substancial no que já tinha sido exaustivamente discutido nos autos; depois, ainda que ela contivesse tal alteração, tal fato não produziria o efeito de modificar o acórdão embargado, na medida em que o fundamento constitucional nele adotado afasta qualquer possibilidade de se admitir a dispensa do Estudo Prévio de Impacto Ambiental da soja transgênica pela CTNBio, que não faz parte do SISNAMA e não tinha - e não tem - atribuição legal para tanto. Posteriormente, a Lei nº 9.960, de 28/01/2000, veio colocar uma pá de cal sobre a matéria relativa à competência do órgão ambiental para licenciamento de sementes transgênicas, quando acrescentou à Lei nº 6.938/81 o art. 17-L, que estabelece: Art. 17-L. As ações de licenciamento, registro, autorizações, concessões e permissões relacionadas à fauna, à flora e ao controle ambiental são de competência exclusiva dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente. (AC) Como argumentou a sentença, em face das disposições da Lei nº 6.938/81 e da Resolução CONAMA nº 237/97, a definição de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação no meio ambiente”, a que se refere o art. 225, § 1º, IV, da CF/88, compreende a introdução de espécies geneticamente modificadas, para a qual, por via de conseqüência, é necessário o estudo prévio de impacto ambiental (Anexo I da Resolução CONAMA nº 237/97). O plantio da soja round up ready, no Brasil, insere-se no conceito de “atividade” e a rigor estaria submetido às regras da legislação ambiental, que exige a obtenção do competente licenciamento ambiental junto aos órgãos federais de meio ambiente, mediante apresentação de prévio estudo de impacto ambiental, apto a permitir o deferimento ou não do pedido, nos termos da Lei nº 6.938/81 e da Resolução CONAMA nº 237/97, sem prejuízo das demais atribuições previstas no art. 7º da Lei nº 8.974/95 e de competência dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Abastecimento, do Meio Ambiente e da Amazônia Legal”. Mais recentemente, em junho de 2002, foi finalmente editada pelo CONAMA a Resolução nº 305/2002, que cuida especificamente do processo de licenciamento de OGM, tanto em caráter experimental como em escala comercial, exigindo o EIA como condição de validade do processo administrativo de liberação de sementes transgênicas, no meio ambiente. Essa resolução significou um grande passo do governo federal, notadamente do Ministério do Meio Ambiente, em favor da efetivação das medidas de controle de OGMs, de modo a dar eficácia e conteúdo substantivo ao princípio da precaução. É imperioso ressaltar que, tanto a sentença judicial de primeira instância, no caso da soja transgênica, como o acórdão do TRF da 1ª Região que a confirmou, foram elementos fundamentais no processo de decisão política, que resultou na edição da Resolução nº 305 do CONAMA. Ainda que a polêmica a respeito da soja transgênica esteja longe de acabar e que o atual governo continue a tratar o tema com uma notável ambigüidade, como se constata da leitura do texto da Medida Provisória nº 113/200311, o certo é que cada vez menos vozes discordantes se levantam contra a aplicação do princípio da precaução na biossegurança, embora não esteja claro o que cada um dos atores envolvidos nesta controvérsia entende como medidas necessárias para a aplicação efetiva do princípio. Hoje, não há dúvida de que foi, na melhor das hipóteses, precipitada a aprovação pela CTNBIO do plantio, em escala comercial, da soja round up ready, sem as normas de segurança alimentar e de rotulagem, sem um regime de segregação dos grãos orgânicos, convencionais e geneticamente modificados e sem licenciamento ambiental. 3.2 O caso dos experimentos com plantas bioinseticidas Outro caso judicial de grande significação para o princípio da precaução foi apresentado pelo Ministério Público Federal, em Brasília, por meio de ação civil pública contra a União Federal por não exigir o Registro Especial Temporário (RET) das empresas de biotecnologia, autorizadas a realizar plantio, em regime de contenção ou caráter experimental, de OGMs que funcionem como bioinseticidas 12. 11 12 A MP nº 113/2003 foi convertida na Lei nº 10688/03. Processo nº 2001.34.00.010329-1/DF – 14ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília/DF A Procuradoria da República, no Distrito Federal13, questionou à Justiça Federal se as plantas que metabolizam, por meio da engenharia genética, bacilo, bactéria ou fungo e, com isso, adquirem características novas que possam exterminar insetos considerados nocivos à lavoura, como o bacilus thurigiensis (BT), poderiam ou não ser consideradas como bioinseticidas, nos termos da Lei 7.802/8914. No curso da instrução do processo, foi juntado ofício do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), entendendo que o milho guardian caracteriza-se como um afim “por constituir um agente de processo biológico destinado a preservar uma cultura agrícola da ação danosa de seres vivos considerados nocivos”, informação esta ratificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). No entanto, a Coordenação de Fiscalização de Agrotóxicos, do Ministério da Agricultura e Abastecimento, em resposta a ofício do Ministério Público, afirma nos autos que o milho transgênico guardian, resistente a insetos, não possui Registro Especial Temporário para pesquisa e experimentação em campo, conforme exigência constante no Decreto 98.816/90 15, ressaltando o próprio Órgão que o “milho transgênico com ação bioinseticida deverá sofrer o mesmo processo de análise e registro dos agrotóxicos e afins”. O mais interessante desse caso é que o Ministério Público Federal não sugeriu ou interpretou nada de novo para exigir o RET das empresas interessadas em realizar experimentos com plantas bioinseticidas. De fato, ao instruir um Inquérito Civil Público (ICP), foram requisitadas informações ao IBAMA, Secretaria de Defesa Agropecuária e à ANVISA, a respeito de dois pontos: a) se o milho guardian ou qualquer planta que funcione como bioinseticida poderia ser considerado um agrotóxico ou afim, na forma da 13 A ação civil pública foi proposta pelos Procuradores da República Aurélio Virgílio Veiga Rios e Alexandre Camanho de Assis. 14 A lei define, em seu artigo 2º, inciso I, alínea a, como agrotóxicos e afins “os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos” (grifamos). 15 Art.18. “O Registro Especial Temporário será exigido para novos agrotóxicos, seus componentes e afins destinados à pesquisa e experimentação, quando ainda não registrados para os fins de produção, comercialização e utilização no País." Lei nº 7802/89 e Decreto nº 98816/90; b) e, em caso positivo, se era ou não obrigatório o RET como condição para liberação dessas plantas geneticamente modificadas. Em razão dos três Órgãos terem respondido SIM às duas questões apresentadas pelo Ministério Público Federal, foi enviada Recomendação à CTNBio, a fim de que somente expedisse, editasse e publicasse Comunicado ou Parecer Conclusivo sobre a liberação planejada de organismos geneticamente modificados que pudessem ser considerados biopesticidas, após o pesquisador ou entidade proponente demonstrar possuir o Registro Especial Temporário. Além disso, foi solicitado na recomendação que a Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA) e o IBAMA promovessem a interdição dos cultivos experimentais em andamento, até sua regularização. Como não foi atendida a recomendação do parquet, nem houve qualquer justificativa por parte da CTNBio para não cumpri-la, tornou-se indispensável a proposição da ação civil pública para sanar as irregularidades identificadas nos cultivos de sementes transgênicas que funcionam como agentes biológicos para controle de pragas, tendo sido expressamente requerida a condenação da União, por meio da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, a proceder o imediato cancelamento das autorizações de cultivos já expedidas em caráter experimental, no país, que tenham sido ou não autorizadas pela CTNBio, de sementes geneticamente modificadas que pudessem ser consideradas agrotóxicos ou afins, sem que o pesquisador ou entidade proponente estejam de posse do Registro Especial Temporário. Sob a alegação de que tais plantas geneticamente alteradas produziam riscos incertos a uma grande variedade de insetos, que não necessariamente sejam considerados nocivos a lavouras ou que poderiam criar resistência a bacilos e bactérias, tornando-se superpragas, novamente evocou-se o princípio da precaução para fundamentar as medidas necessárias para exigir mais estudos para se conhecer melhor os efeitos dessas plantas, no meio ambiente e na saúde humana, mediante exigência de registro especial para utilização de bioinseticidas, considerados pela lei brasileira como agrotóxicos. O Ministério Público Federal requereu que fosse determinado à CTNBio que não procedesse a nenhuma análise referente à biossegurança de cultivares geneticamente modificados (entre outros, milho, soja, algodão e cana-de-açúcar) que receberam o gene de resistência a insetos, transportado da bactéria denominada Bacillus thurigiensis, que pudessem ser assim considerados agrotóxicos ou afins, segundo os ditames estabelecidos pela Lei 7.802/89 e pelo Decreto 98.816/90, sem que tenham previamente obtido o Registro Especial Temporário, sob pena de multa diária de dez mil reais. Por fim, foi solicitado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA que procedesse à fiscalização dos locais que contivessem cultivares geneticamente modificados (entre outros, milho, soja, algodão e cana-deaçúcar), adotando as medidas administrativas de sua alçada, nos termos da Lei nº. 9.605/98 e do Decreto nº. 3.179/99, àqueles plantios sem o devido registro. Ao examinar a ação civil pública, o Juiz Federal Charles Renaud Frazão de Moraes deferiu a liminar e depois julgou-a procedente em parte, condenando a União Federal a suspender todas as autorizações para cultivo de quaisquer sementes geneticamente modificadas, com características de agrotóxicos ou afins, em que os interessados não detenham o RET, bem como não sejam mais emitidos Pareceres por parte da CTNBio sobre a biossegurança de cultivares que receberam o gene de resistência a insetos, transportado da bactéria Bacillus thurigiensis. Para que não haja dúvida de que o Juiz Charles Frazão de Moraes, ao apreciar o pedido de liminar, invocou o princípio da precaução como fundamento de sua decisão,. deve ser lembrada a seguinte passagem de seu despacho: Igualmente faz-se presente o periculum in mora, ainda mais quando a questão subjacente ao objeto do processo tenha relação direta com a incolumidade física dos seres humanos e a salvaguarda do meio ambiente, já que não se sabe a real dimensão dos efeitos advindos da manipulação de organismos geneticamente modificados na saúde das pessoas e seu efeito nos demais organismos vivos. Nota-se que a referida sentença judicial, que incorpora ao direito aplicado o caso do princípio da precaução, encontra-se ainda em vigor, em que pese a existência de recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região por parte da União e da empresa Monsanto, esta na qualidade de assistente. No caso em questão foi levantada a polêmica sobre a natureza jurídica do “parecer técnico prévio conclusivo”, emitido pela CTNBio 16 16 , quando da apreciação do A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança é um órgão composto por especialistas de notório saber científico, criada como instância colegiada multidisciplinar, com a finalidade de prestar apoio técnico agravo de instrumento que a União Federal interpôs contra o despacho que concedeu a liminar solicitada pelo Ministério Público. O Tribunal Regional Federal de Brasília teve, então, a oportunidade de enfrentar a nova MP 2137/2000 e suas reedições, por meio de decisão monocrática do Dr. João Batista Moreira 17 , que ratificou a posição do Ministério Público Federal, no sentido de que a CTNBio é um órgão consultivo que não integra o SISNAMA, sendo apenas porta de entrada dos pedidos de autorização de cultivo de sementes transgênicas: (...) Não se vê como o parecer técnico da CTNBio (indispensável, aliás, para a emissão, pelo órgão competente, do Registro Especial Temporário) possa em si mesmo constituir ilegalidade. O parecer técnico ainda não é o ato de liberação do cultivo, a menos que seja distorcida sua finalidade. Nas palavras de Paulo Affonso Lema Machado, “o parecer não subordina imperativamente os demais Ministérios, tanto que conservam eles a competência para conceder ou negar autorizações, e o parecer da CTNBio não se transforma juridicamente em autorização “ (Direito ambiental brasileiro, 9 ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 916). ... “As autorizações mencionadas só poderão ser expedidas após ter sido ouvida a CTNBio, a qual deverá emitir parecer prévio conclusivo. Os Ministérios deverão levar em conta na motivação das autorizações o referido parecer, mas não estão vinculados ao mesmo. Para não seguir o parecer da CTNBio, a Administração Federal deve apresentar razões fundamentadas no interesse da vida e da saúde do homem, dos animais, das plantas, bem como do meio ambiente (art. 1º da Lei 8.974/95)” (Ibid., p. 920). Acrescenta o renomado autor: “Os atos administrativos - registro e autorizações - a serem realizados pelos Ministérios, são atos complexos, pois exigem a juntada do parecer da CTNBio. Os Ministérios - desde que fundamentem de forma satisfatória suas decisões - podem decidir contra os consultivo e de assessoramento ao Governo Federal, na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a OGM, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados", à qual compete "emitir parecer técnico prévio conclusivo, caso a caso, sobre atividades, consumo ou qualquer liberação no meio ambiente de OGM, incluindo sua classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições a seu uso, encaminhando ao órgão competente para as providências a seu cargo" (art. 1º. -ª caput. E art. 1º. D, XIV, da Lei n.º 8.974/95, com redação dada pela MP n.º 2.137-3/2001). 17 Despacho proferido no AI nº 2001.01.023273-6/DF -- 5ª Turma. pareceres da Comissão, mas não podem decidir sem que os pareceres conclusivos estejam anexados ao procedimento administrativo” (Ibid., p. 928). É verdade que o art. 7º., § 1º., da Lei n.º 8.974/95, com redação dada pela MP n.º 2.137-3/2001, estabelece que “o parecer técnico prévio conclusivo da CTNBio vincula os demais órgãos da administração quanto aos aspectos de biossegurança do OGM por ela analisado, preservadas as competências dos órgãos de fiscalização de estabelecer exigências a procedimentos adicionais específicos às suas respectivas áreas de competência legal”. Todavia, não se pode olvidar que o objetivo do parecer é a proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente (art. 1º.) Logo, mesmo se admitida a vinculação dos demais órgãos da administração, interpretação teleológica leva a concluir que se limita aos aspectos destinados àquela proteção, ou seja, aos pontos em que o parecer impede ou restringe o exercício de atividade relacionada com OGM, não na parte em que libera o mesmo exercício” (grifamos). Esse importante precedente marca uma posição precautória da Justiça em relação às plantas geneticamente modificadas, resistentes a insetos, e ainda serve como um marco na definição dos poderes da CTNBio que, lamentavelmente, tem procedido com pouca cautela, no exame dos pedidos de autorização para plantio experimental de sementes transgênicas 18, como se verifica novamente, no processo da liberação do arroz liberty link, no Rio Grande do Sul, em regime de contenção. 3.3 O caso do arroz liberty link Neste caso, a Procuradora da República no Município de Rio Grande/RS, Anelise Becker, propôs ação civil pública, impugnando o Comunicado da CTNBio que permitiu a realização do cultivo experimental do arroz transgênico liberty link, de propriedade da empresa AVENTIS, em face da ausência de autorização por parte dos três Ministérios 18 Em alentada Monografia para conclusão do Curso de Direito da Universidade de Brasília- UnB, sobre “A Incorporação do Princípio da Precaução no Ordenamento Jurídico Brasileiro e sua Aplicabilidade ao Caos de Liberação de Organismos Geneticamente Modificados no Ambiente”, Flávia Cristina Rodrigues Barbosa, após analisar quatro pareceres da CTNBio sobre pedidos de liberação de OGM no ambiente, afirma que as regras de precaução não foram observadas em nenhum deles e as “decisões foram tomadas sem um estudo adequado, colecionando-se apenas informações disponibilizadas pelo próprio interessado...baseadas nos argumentos de equivalência substancial e no fato de alguns países consumirem transgênicos sem conseqüências negativas”. (UnB, 2002) com competência para liberar sementes transgênicas. A Ação foi proposta em 22 de março de 2000 e tinha por objeto a interdição do plantio de 0,8 ha do organismo geneticamente modificado conhecido como arroz liberty link, desenvolvido pela Aventis em sua Unidade Experimental do Arroz, situada no Distrito do Taim, Rio Grande. O Ministério Público Federal questionou o parecer conclusivo favorável à empresa AVENTIS, alegando que a mesma não poderia desenvolver qualquer atividade com o arroz transgênico liberty link, porque tal documento constituiria mera peça técnica que deveria estar acompanhada do pedido de autorização e de registro pelo interessado aos órgãos de fiscalização dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente, o qual não supriria a ausência de licenciamento ambiental, mais precisamente da elaboração de prévio Estudo de Impacto Ambiental, nos moldes preconizados pela Constituição Federal. A ação civil pública reporta-se a precedentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, lembrando que há situações de urgência e perigo que reclamam a adoção de medidas de pronto, quando envolvem risco à vida e à saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente, casos em que se recomenda a interdição, de plano, do experimento de arroz transgênico, especialmente no que concerne à possibilidade de surgirem problemas mais sérios com espécies aparentadas, que já são invasoras (arroz vermelho e preto), por meio da aquisição de genes da cultura transgênica. A ausência de um estudo de impacto ambiental imparcial e prévio a sua liberação faria incidir, na espécie, o princípio da precaução, segundo o qual a ignorância quanto às conseqüências exatas de certas ações, a curto ou longo prazo, tal como se dá no caso da utilização de organismos geneticamente modificados, não deve servir de pretexto para retardar a adoção de medidas, visando prevenir a degradação do meio ambiente, ou seja: diante da incerteza ou da controvérsia científica atual, é melhor adotar medidas protetivas severas a título de precaução do que correr riscos com a liberação incauta de sementes transgênicas. Em razão desses fatos e da possibilidade de danos imprevisíveis ao ambiente, o Ministério Público requereu a antecipação liminar dos efeitos da tutela jurisdicional pretendida, para que a ré Aventis Cropscience do Brasil Ltda., antes do amadurecimento fisiológico das sementes de arroz transgênico e de arroz daninho e no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, eliminasse totalmente o experimento envolvendo arroz geneticamente modificado que vinha desenvolvendo em sua Unidade Experimental do Arroz, situada na rodovia BR 471, km 449, no Distrito de Taim, Município de Rio Grande/RS, sob pena de, em não o fazendo no prazo fixado, “seja determinado por esse MM. Juízo que o IBAMA o faça, incontinenti, às expensas da empresa ré.” Por igual, foi requerido que a empresa Aventis Cropscience do Brasil Ltda. se abstivesse de liberar o OGM arroz liberty link no meio ambiente, antes do atendimento a todas as disposições legais aplicáveis à atividade, notadamente autorizações dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente e licenciamento ambiental, mediante elaboração de prévio Estudo de Impacto Ambiental, restringindo o plantio do OGM arroz liberty link a áreas de contenção, definidas pela Instrução Normativa no 6 da CTNBio, com o exclusivo fito de elaboração de EIA/RIMA, na forma preconizada pelo artigo 225, § 1o, inciso IV, da Constituição Federal. Por último, foi pedido na ação que a União Federal não autorizasse, pelos Ministérios com competência de atuação na matéria , qualquer liberação do OGM arroz liberty link no meio ambiente, fosse com finalidade experimental ou comercial, bem como suspendesse as autorizações que, porventura, já tivessem sido expedidas, até que seja elaborado o EIA correspondente e licenciada a atividade pelo IBAMA. Embora o experimento tenha sido concluído, com a colheita do arroz geneticamente modificado, a Justiça Federal declarou sua ilegalidade, com o argumento de que o plantio foi realizado sem autorização dos Ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde, sem registro do Organismo Geneticamente Modificado (OGM) e da empresa perante os mesmos Ministérios, sem licenciamento ambiental, sem Estudo de Impacto Ambiental e sem Registro Especial Temporário do agrotóxico Glufosinato de Amônio, associado ao OGM. A Justiça Federal acolheu o pedido do Ministério Público Federal, determinando que a empresa Aventis não liberasse no meio ambiente o OGM arroz liberty link, obtido a partir do experimento, sem prévia autorização dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente e licenciamento ambiental, mediante elaboração de prévio Estudo de Impacto Ambiental, sob pena de aplicação de multa no valor de dez milhões de reais. Quanto à União Federal, a Justiça exigiu que ela não mais autorizasse qualquer liberação do OGM arroz liberty link no meio ambiente, seja com finalidade experimental ou comercial, bem como suspendesse as autorizações que, porventura, já tivessem sido expedidas, até que fosse elaborado o prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA), correspondente e licenciada a atividade pelo IBAMA, sob pena de aplicação de multa, no valor de dez milhões de reais. Uma passagem de grande relevância para o tema deste artigo há de ser encontrada no voto da ilustre Juíza Maria de Fátima Labarrére, ao justificar no Agravo Regimental interposto pelo Ministério Público o alcance do princípio da precaução em relação ao plantio experimental de sementes transgênicas: (...) No caso em exame, a parte agravante conta tão-somente com a licença do Ministério da Agricultura, inexistindo o estudo de impacto ambiental prévio. O mero parecer favorável do CTNBio não supre a licença da autoridade ambiental, notadamente nas atividades que importem na liberação de OGM, no meio ambiente. Neste sentido, cumpre enfatizar que o arroz liberty link se constitui organismo geneticamente modificado que não está sendo plantado em regime de contenção, importando em liberação, no meio ambiente, de resíduo de herbicida Glufosinato de Amônio, gerando interação de organismos geneticamente modificados (OGM) com o ecossistema e, conseqüentemente, a perda de controle por dispersão, no meio ambiente. Tampouco se tem conhecimento dos efeitos de toda esta gama de alterações genéticas para a saúde humana. Decorre daí a imperiosa observância ao princípio da precaução, basilar ao Direito Ambiental, traduzindo-se na adoção de medidas protetivas ao meio ambiente, em face de situações cujo potencial lesivo ainda seja ignorado pelos órgãos competentes. Na verdade, as informações existentes a respeito do arroz liberty link revelam que o fator de resistência ao herbicida gera maior produtividade. Evidencia-se, portanto, o caráter nitidamente econômico das pesquisas, bem como a ausência de provas no sentido de que este fator de resistência não acarretará sérios gravames ao meio ambiente e à saúde humana e, ainda, a complexidade da matéria que envolve questionamentos de ordem sanitária e efeitos a longo prazo, tanto para o homem quanto para a natureza. (os grifos são nossos) O êxito parcial do Ministério Público Federal, no caso do plantio experimental de arroz transgênico, remete a questão ainda não resolvida da deficiência da análise técnica por parte da CTNBio e da ausência de cumprimento dos princípios que regem as boas práticas em biossegurança, dentre as quais se destaca a aplicação do princípio da precaução. 3.4 O caso da importação de milho transgênico da Argentina Por último, serão agora examinadas duas ações propostas pelo Ministério Público contra a possibilidade de liberação de milho importado da Argentina, sob suspeita de ser transgênico. A primeira ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público Federal em Brasília, por ocasião do polêmico caso da importação de milho transgênico da Argentina, a fim de abastecer o mercado de frangos, no Nordeste. O propósito da ação era declarar a nulidade do parecer técnico conclusivo emitido pela CTNBio19, favorável à importação de grãos de milho geneticamente modificados, e para que dele não mais se produzisse nenhum efeito. Embora esta ação tivesse sido extinta em razão de uma conexão com outra ação coletiva proposta em Pernambuco e toda a carga de milho ter sido desembarcada e distribuída pelas empresas avícolas pernambucanas, é interessante repisar os argumentos levantados pelo Ministério Público, para pedir a nulidade do Comunicado nº 113/2001, da CTNBio. A primeira crítica referia-se ao fato de que a decisão impugnada foi tomada por iniciativa de um órgão público, mais especificamente do representante do Ministério da Agricultura na CTNBio, que não poderia ter qualquer interesse na importação de grãos geneticamente modificados, e não consta ter sido provocado por qualquer empresa interessada na importação de uma variedade específica de milho transgênico. Se não bastasse isso, o pedido formulado pelo representante do Ministério da Agricultura, em nome dos importadores de milho, absolutamente genérico e abstrato, não 19 Comunicado nº 113/2001 da CTNBio especificava a variedade de milho transgênico cuja liberação pleiteava, o que é inaceitável no que se refere a produtos da engenharia genética. Nessa hipótese, sustentou o Ministério Público que o pedido deveria ser feito caso a caso, conforme determina expressamente o inciso XIV, do art. 1º-B, da MP nº 2137/2000, pois cada uma das variedades de milho transgênico existentes é produzida por procedimento único, a partir da inserção, em um cromossomo do milho, de um gene alienígena específico, que pode ter sido retirado de uma bactéria, de uma planta ou mesmo de um animal, ativando no milho propriedades exclusivas do organismo em questão. Desse modo, uma avaliação genérica da segurança de um OGM, ou seja, a análise de uma categoria abstrata de organismos erroneamente considerados como equivalentes, e não de uma variedade específica, não pode ser considerada uma análise rigorosa, haja vista que cada uma das variedades existentes exibe características próprias que impedem sua equiparação às demais variedades e conseqüente classificação conjunta em uma categoria uniforme. De outro modo, é dizer que não existe propriamente uma categoria “milho transgênico”, mas variedades do mesmo, cada uma com propriedades únicas que as tornam substancialmente diferentes de todas as outras, assim como do milho convencional. A CTNBio utilizou, assim, o conceito contestável cientificamente da “equivalência substancial” para a avaliação de variedades transgênicas sem comparação possível entre si ou com as variedades convencionais. O parecer da CTNBio sugere ser o Ministério da Agricultura e do Abastecimento o órgão responsável pela emissão de autorização para a importação de milho transgênico, o que não se conforma como a Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974/95), que exige a autorização daquele Ministério tanto quanto dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. Em outras palavras, no ordenamento jurídico brasileiro, o poder de autorizar a importação de OGM é ato complexo, conferido em conjunto aos Ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente, avaliando cada um deles os aspectos que lhe concernem, sendo absolutamente indispensável que esses três órgãos estejam de acordo com relação à segurança biológica e ambiental do organismo ou produto potencialmente capaz de afetar negativamente a saúde da população, o meio ambiente ou o setor agrícola, se admitido no território nacional. Antes mesmo da entrada em vigor do Comunicado nº 113/CTNBio, as empresas Avipal S.A. Avicultura e Agropecuária e Companhia Minuano de Alimentos importaram, respectivamente, nove mil trezentas e nove toneladas e duas mil toneladas de milho de procedência da Argentina, que se destinavam à alimentação animal e, indiretamente, à alimentação humana, com forte suspeita de que se tratava de milho transgênico . Em razão deste fato, a Procuradora da República Anelise Becker ingressou com uma ação civil pública, na Vara Federal de Rio Grande/RS20, requerendo que a União Federal se abstivesse de autorizar a internalização do produto, sua entrega aos importadores ou sua utilização no território nacional, sob qualquer forma, antes da realização, às expensas daqueles, de pelo menos três testes de detecção de transgenia, em laboratórios distintos, como, por exemplo, o Laboratório de Fitopatologia Molecular Laboratório de Clínica Vegetal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; o Laboratório de Biologia Molecular do Centro Nacional de Milho e Sorgo - EMBRAPA Sete Lagoas, MG; o Laboratório de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná; e o Centro de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia - CENAGEN/EMBRAPA, Brasília, DF. A liminar foi concedida pela Justiça Federal para que fosse impedido o desembarque da carga de milho possivelmente transgênico, importado da Argentina, sob o fundamento de que era justificável o receio do Ministério Público de que o ingresso de grãos transgênicos no país poderia causar danos à saúde humana e ao meio ambiente. Neste caso, houve um pedido de suspensão de segurança pelas empresas interessadas ao então Presidente do TRF da 4ª Região, que foi deferido no sentido de suspender os efeitos da decisão que embargou o desembarque da carga do milho importado da Argentina, ao argumento de que o Superior Tribunal de Justiça e o governo federal não estariam se opondo à importação de milho transgênico, em virtude da crise de abastecimento que ameaçava o país. 20 Processo nº 2000.71.002767-5 Interessante e, até de certo modo, inusitado foi o fato de que, ao julgar o agravo contra decisão do Presidente do Tribunal, a quase totalidade dos membros da Corte21 dissentiu de seu Presidente, dando provimento ao recurso do Ministério Público, sob o fundamento de que era necessária a realização dos testes para a comprovação de eventual transgenia no milho transportado pelas empresas e que, caso o resultado fosse positivo, não seria possível a liberação ao meio ambiente sem o EIA/RIMA, expressamente previsto pela legislação do estado do Rio Grande do Sul. Vale lembrar que vários juízes que participaram do referido julgamento fizeram menção explícita ao princípio da precaução para afastar o argumento, levantado pela União Federal e pelas empresas do ramo, de que não haveria risco à saúde ou ao meio ambiente com a liberação da carga de milho e que ela seria necessária a fim de evitar uma grave crise de desabastecimento de grãos no país. Em cumprimento à decisão judicial, os navios voltaram ao porto de origem, mas lamentavelmente a grande parte da carga de milho, reconhecidamente atestada como transgênica, já tinha sido desembarcada no porto de Rio Grande/RS. De qualquer modo, este importante precedente oriundo do TRF da 4ª Região ocorreu, em boa parte, pela atuação firme do Ministério Público Federal, no Rio Grande do Sul, e também pela força atrativa do princípio da precaução, no caso concreto. Não obstante terem sido, em parte, acolhidos os pedidos de suspensão da importação de milho de países sem nenhuma restrição à biotecnologia pelo Ministério Público, não houve ainda a revogação tácita ou expressa do Comunicado nº 113/200, não tendo a Justiça ainda se pronunciado sobre seu mérito. A análise acurada dos casos judiciais aqui estudados atesta a ausência da precaução e da necessária imparcialidade por parte dos membros da CTNBio, especialmente quando há fortes interesses econômicos em jogo, como circunstâncias recorrentes nos diversos processos de liberação de OGM. As omissões procedimentais e as opções técnicas ou políticas adotadas pela Comissão são firmemente questionadas em todos os processos referidos neste artigo. 21 Agravo na Suspensão de Execução da Liminar nº 2000.04.01.13912-9/RS – Relator para o Acórdão o Juiz Volkmer de Castilho, cujo voto foi acompanhado por 19 (dezenove) juízes contra 04 (quatro) que negaram provimento ao agravo. Recentemente, a 5ª Turma do TRF da 1ª Região teve a oportunidade de julgar o Agravo Regimental interposto pelo IDEC, Greenpeace e Ministério Público Federal, no caso da soja transgênica, ficando consignado no voto do Dr. João Batista Moreira, Desembargador Federal, que “a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança se ressente de suficiente legitimidade democrática e não possui independência para decidir a matéria em caráter conclusivo e vinculante, uma vez que composta de membros designados discricionariamente pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, sem controle do Poder Legislativo” 22 (grifamos). 4. Considerações Finais Antevejo nas decisões já tomadas pela Justiça, em especial pelos Tribunais Regionais Federais, uma tendência forte e dirigida no sentido de incorporar o princípio da precaução, mediante a obrigatoriedade do EIA e do licenciamento ambiental, como condição para o cultivo de sementes transgênicas. Ainda que seja considerada precipitada e até premonitória essa impressão aqui relatada, uma vez que não houve ainda pronunciamento sobre a questão por parte do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, esta convicção se baseia em dois fatos. O primeiro, o da existência de uma sociedade de risco que demanda medidas de precaução contra ameaças incertas e ainda não mensuradas de danos ao meio ambiente e à saúde humana, aliada à crescente preocupação planetária com os efeitos diretos e colaterais da poluição química e biológica. O segundo fato é que um número cada vez maior de operadores do direito, em especial promotores, procuradores e juízes de todas as instâncias, se interessa pelas questões ambientais e pelo estudo dos princípios gerais do direito ambiental, dos quais o princípio da precaução, por estar em permanente processo de construção e consolidação, 22 Na referida decisão proferida no Agravo Regimental, na Apelação Civil nº 1998.34.00.027682-0/DF (caso da soja transgênica), em 08 de setembro de 2003, que revogou o despacho da Juíza Selene Almeida, que emprestava efeito suspensivo à apelação da União e da Monsanto, o Dr. João Batista Moreira afirmou, enfaticamente, que “é evidente a vulnerabilidade dessa entidade decisória (CTNBIO) às pressões políticas e econômicas. Seus membros estão humanamente sujeitos, mais que nas agências reguladoras, à cooptação por grupos de interesses, justamente num setor econômico que envolve vultosos investimentos e lucros transnacionais. Não é preciso ir longe para constatar essa vulnerabilidade. Basta ver que, no governo anterior, era ostensivo o interesse da União, por meio do Poder Executivo - que designa os membros da entidade -, na liberação do cultivo da soja geneticamente modificada. Lembre-se de que até houve veemente sustentação oral em favor da manutenção do ato da CTNBio, ao início do julgamento, pelo ilustre Procurador-Geral da União”. é um dos mais fascinantes e, por isso, tem sido objeto de constantes pesquisas e de debates instigantes, na comunidade acadêmica. A insistência em negar essa evidência, recusando o governo a proceder ao licenciamento ambiental, significará mais atraso e inútil protelação para a própria biotecnologia, ampliando os prejuízos que algumas empresas já sofrem em decorrência da indefinição do governo em assumir claramente as regras para a futura liberação, em escala comercial, de organismos geneticamente modificados no ambiente e nos supermercados. Se nem a crise sem precedentes de geração de energia elétrica foi capaz de dispensar o licenciamento ou afastar a competência do CONAMA para regulamentar os novos prazos e processos simplificados de EIA/RIMA, por que seria diferente com as plantas geneticamente modificadas? E qual a razão de não se dar a um princípio do direito ambiental o valor a ele expresso em sucessivas convenções internacionais e a eficácia de que necessita todo o princípio, para que não seja retórica política vazia e sem conteúdo prático ? Está na hora de meditarmos sobre quem, de fato, está postergando a biotecnologia no Brasil. Serão o Ministério Público, as Organizações não-governamentais, a Justiça que exigem o licenciamento ambiental de OGM ou o governo e as empresas que se negam a fazê-lo, postergando a possibilidade de uma liberação futura, planejada e condicionada aos termos da lei, de OGM no país? Referências Bibliográficas BECK, Ulrick in “Risk Society and the Provident State” in Risk, Environment and Modernity -‐ Towards a New Ecology. London : Scott Lash, Branislaw Szersynsky and Brian Wynne, Sage Publications, 1996. RODRIGUES, Flávia Cristina. A Incorporação do Princípio da Precaução no Ordenamento Jurídico Brasileiro e a sua Aplicabilidade aos Casos de Liberação de Organismos Geneticamente Modificados no Ambiente. Trabalho apresentado na Universidade de Brasília, para obtenção do título de Bacharel em Direito. Brasília: UnB, 2002. Capítulo 15 A Legitimidade da Governança Global Ambiental e o Princípio da Precaução Ana Flávia Barros Platiau* 1. Introdução O sistema internacional tem evoluído rapidamente, imprimindo importantes traços na evolução do direito internacional ambiental. O principal deles talvez seja a maior participação de atores cada vez mais livres do jugo do Estado soberano na regulação de problemas ambientais1. O segundo é a difícil convivência com vizinhos/concorrentes comerciais à medida que as fronteiras são paulatinamente atravessadas pelos fluxos internacionais e transnacionais que geram impactos ambientais desconhecidos pela ciência. O terceiro é a conscientização desses atores de que suas atividades precisam ser reguladas, para o bem comum, numa perspectiva construtivista das relações internacionais. Dessarte, o direito internacional em geral, e o direito internacional ambiental em particular, evoluem num contexto tecnológico complexo, que põe em questão a necessidade de uma governança ambiental global e o estatuto do princípio de precaução. Em outros termos, a consagração do princípio de precaução parece evoluir em função das apreensões que o progresso tecnológico suscita. Como bem explicou Hans Jonas na obra Le Principe Responsabilité, o homem reage em função dos poderes que adquire sobre a natureza e das grandes mudanças ambientais que pode causar, ao passo que antigamente apenas as forças da natureza tinham grande impacto sobre a própria natureza. Todas essas considerações nos conduzem a uma só questão: como organizar a profunda interdependência entre atores, entre diferentes setores de atividades, entre meio ambiente e atividades antrópicas, entre o Norte e o Sul do planeta, e entre interesses * Ana Flávia Barros-Platiau é Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pós-doutoranda em direito internacional ambiental, com o Dr. Alexandre Kiss, Presidente do Conselho Europeu de Direito Ambiental. Pesquisadora do CNPq. 1 O que tem alimentado debates sobre a privatização do direito internacional público e novos tipos de regulação internacional, principalmente extrajudiciais. transgeracionais?2 Dessa questão surgiu a necessidade de se pensar a regulação internacional para a proteção ambiental, fundamentada em princípios jurídicos. É exatamente nesse contexto de grandes inovações jurídicas3 e políticas4 que se desenvolveu o princípio da precaução. Dessarte, o objetivo do presente texto é o de explicar os limites da aplicação do princípio da precaução no contexto internacional em função da difícil governança global. Por motivos de foco da pesquisa, esse texto preocupa-se exclusivamente com questões vinculadas à biotecnologia, partindo da hipótese de que o princípio da precaução oscila entre os campos jurídico e político5, refletindo dinâmicas incongruentes de diferentes tipos de atores. Nesse sentido, toma-se o caso de dois tipos de atores, a saber: comunidade científica6 e sociedade civil global. Nota-se a intenção de não se distinguir entre os setores público e privado, haja vista a profunda interação dos dois7. A escolha dos atores fundamenta-se no interesse de demonstrar que cientistas e sociedade civil global muito contribuíram para o debate inicial sobre o princípio em questão, mas o direito e a política necessitam de um longo período de amadurecimento para incorporar as demandas sociais aos seus respectivos desenvolvimentos, como ressaltaram Olivier Godard e Nicolas de Sadeleer ao longo de suas reflexões sobre o princípio da precaução8. Dessarte, a primeira parte do texto versa sobre a emergência do princípio da precaução em função da pressão de atores internacionais, principalmente da comunidade científica e depois a jurídica, refletindo demandas sociais difusas, enquanto a segunda parte analisa os limites à efetividade do princípio por causa da fragilidade institucional 2 Ver contribuição do professor Alexandre Kiss nessa obra “Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da Precaução”. 3 Dentre as quais o direito das gerações futuras ao meio ambiente sadio, o princípio de desenvolvimento sustentável, o dever de informar e dar assistência em caso de catástrofe ambiental, a responsabilidade objetiva, a penalização de crimes ambientais em certos países e a humanidade como destinatária das normas ambientais. 4 Como por exemplo a participação de atores não-estatais na política ou em parceria com o Governo. 5 Ver Nicolas de Sadeleer, Environmental Principles: from Political Slogans to Legal Rules, Oxford, Oxford University Press, 2002, 500 p. 6 Caberia aqui utilizar o conceito de “comunidades epistêmicas” de P. Haas, International Organization, 46, 01, Winter 1992. Ele analisou a comunidade de crenças e a influência dessas comunidades nos processos decisórios em função da sua autoridade técnica. 7 Tal divisão entre o setor público e o privado seria interessante para o debate filosófico sobre quem é o melhor garante da proteção do interesse comum, por exemplo. Entretanto, essa questão foge ao escopo do texto. 8 Ver as suas respectivas contribuições nessa obra. específica de questões ambientais e o peso atual do paradigma de competitividade econômica-tecnológica, que mitiga as condições de possibilidade da governança global. 2. O Princípio da Precaução O Princípio de precaução foi uma das mais ousadas inovações jurídicas do século XX9, mas a sua efetividade permanece comprometida em função das diferentes percepções que a sociedade civil global, a comunidade científica, os juristas e os tomadores de decisão têm sobre o seu conteúdo e a sua aplicação. Contudo, à primeira vista, o princípio é simples porque inscreve-se na lógica da evolução do direito ambiental, de privilegiar a reparação e a prevenção de danos no lugar da tradicional fase de repressão de condutas lesivas ao meio ambiente. Além disso, é um princípio fundamentado no bom senso, como defendeu o matemático Peter Saunders, pois orienta que as atividades potenciais causadoras de riscos ambientais graves devem ser evitadas, mesmo que ainda não haja certeza científica acerca dos riscos envolvidos. Assim, em 1992, o princípio da precaução foi consagrado na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento: Princípio 15: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postegar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.10 Entre os grandes entraves à sua compreensão e uma subseqüente criação de consenso internacional, estão, em primeiro lugar, a diversidade de interpretações quanto ao seu sentido, como demonstra a sua utilização em diversos diplomas legais multilaterais ou bilaterais, sobre temas como a pesca, a poluição, a biossegurança e outros. A própria definição do princípio gera controvérsias entre doutrinadores. Se para alguns o princípio de precaução é similar ao princípio da prevenção11,12, como foi 9 Kiss, A.; Beurier, J.P. Droit International de l’environnement, Paris, Pedone, 2000, p.121. <http://www.sds.sc.gov.br/Legislacao/DeclaracaoRio.doc>. 11 Freestone, D. “International Fisheries Law Since Rio”, in: Boyle, A. e Freestone, D. International Law and Sustainable Development, 1999, 377 p, p. 135-164. 12 São exemplos Sirvinskas, L. Manual de Direito Ambiental, São Paulo, Saraiva, 2003 e Fiorillo,C. Curso de Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2003. 10 formulado na Declaração de Bergen13, de 15 de maio de 1990, para outros ele foi criado justamente para completar lacunas do princípio da prevenção14, podendo, inclusive, implicar a inversão do ônus da prova segundo as interpretações mais extremistas15. Ou seja, o princípio da precaução pode ser considerado como um princípio pouco efetivo para os menos entusiasmados e até como um princípio legitimador de moratórias à atividade inovadora para os mais eufóricos. Além disso, Weintraub16, por exemplo, defende que não se trata de inversão do ônus da prova porque ela já é estabelecida para o ator que propõe a atividade, e não para as potenciais vítimas. Certo é que a definição do princípio de precaução ainda alimenta debate entre políticos, jurisconsultos e filósofos. Bruno Latour já havia alertado, em 2000, que o princípio de precaução era uma invenção útil, mas frágil, e estaria arriscada à banalização e a ser confundida com a sabedoria milenar da prudência, como defendeu J.J. Salomon17. Dizia ele que precaução era uma versão moderna de prudência aristotélica. Mas há uma dimensão inovadora do princípio da precaução que o distinguiu da prudência: é a noção da incerteza do saber sobre um risco não demonstrado. Daí a diferença entre princípio da precaução e da prevenção, pois esse último é relativo a um risco certo, que pode ser assegurado. Para Lecourt, a necessidade de utilização do termo “precaução” adveio porque a “base da relação moderna entre a ciência e a ação está em perigo, do fato da situação de incerteza dos tomadores de decisão quanto à realidade e à gravidade dos riscos corridos”. Entretanto, grande parte dos doutrinadores o consideram hodiernamente como um princípio complementar ao princípio da prevenção, cuja maior diferença é a questão da natureza do risco, que não necessita ser cientificamente provado no caso da precaução 13 A Declaração Ministerial de Bergen Sobre o Desenvolvimento Sustentável foi o primeiro ato internacional a utilizar o princípio de precaução na sua aplicação geral. Ver Tinker, C. “State responsibility and the Precautionary Principle” in: FREESTONE, D. ; HEY, E., op. cit., 1996, p. 53-71. 14 Daillier, P.; A. Pellet, (Nguyen Quoc Dinh) Droit international public, 6 ed., Paris: LGDJ, 2000, 1455 p. 15 Como a convenção de Oslo “Prior Justification Procedure”. Ver OSCOM decision 89/1 de 14/06/1989 sobre depósito de lixo no mar. 16 “Science, International Environmental Regulation and the Precautionary Principle: setting Standars and Defining Terms”, in: 1 New York University Environmental Law Journal, 173, 1992, p. 204-209. 17 Survivre à la science: une certaine idée du futur - apud Lecourt, p. 26. para que medidas protetivas sejam tomadas. Assim, a definição consagrada nesse texto é a de Kourilsky e Viney18. Segundo, a sua consagração em regimes internacionais ambientais ainda é tímida, porque o debate acerca do princípio e de sua utilização é muito complexo, como ficou claramente demonstrado nas negociações multilaterais para a elaboração do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Isso porque o Grupo de Miami, por exemplo, aceitou que o princípio fosse consagrado, mas não que ele fosse utilizado como um argumento para a recusa de importação de transgênicos19. Ademais, as instituições internacionais que lidam com questões ambientais são frágeis e limitadas pela vontade política dos Estados. Terceiro, o princípio de precaução insere-se no contexto de regulação internacional sob a égide de um paradigma dominante que não é ambiental, mas sim econômico e tecnológico, no qual a interação entre atores públicos e privados é tão intensa que não nos autoriza mais a fazer uma clara distinção entre as duas esferas sociais20. Conseqüentemente, os regimes ambientais possuem uma grande quantidade de normas declaratórias (soft norms), com baixo grau de precisão, de obrigação e de delegação21. Além disso, há divergências sobre a aceitação do princípio de precaução como direito costumeiro. Nesse sentido, o princípio de precaução foi consagrado no direito internacional ambiental com a missão de dotar legisladores e líderes políticos de um instrumento de regulação internacional da inovação tecnológica e da atividade antrópica de uma maneira geral. Porém, foi criado dentro de um contexto jurídico que evolui lentamente em 18 Le principe de précaution, Odile Jacob 2000 (Rapport remis au Premier Ministre le 15/10/1999). Segundo o Relatório, trata-se um novo princípio de responsabilidade que se aplica a toda pessoa que tem o poder de iniciar ou parar uma atividade suscetível de trazer um risco para outrem. 19 Maljean-Dubois, S. “La régulation du commerce internationale des organismes génétiquement modifiés: entre le droit international de l’environnement et le droit de l’Organisation mondiale du commerce”. In: Bourrinet, J.; Maljean-Dubois, S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, Paris, La documentation française, 2002, p. 20 Edith BROWN-WEISS trata da evolução do direito internacional no sentido da convergência dos setores públicos e privados. Ver também a apresentação de P. SANDS e D. KESSEDJAN no Colóquio do Centro de Direito Internacional da Universidade de Paris X, França, 2 e 3 de março de 2001. Gherari, H. ; Szurek, S. (dirs)"L'émergence de la société civile internationale. Vers la privatisation du droit international? CEDIN - Cahiers Internationaux, tome 18, 2001, 350 p. 21 ABBOTT, K.; SNIDAL, D. “Hard and Soft Law in International Governance”. In: International Organization, 54,3, summer 2000, pp. 421-456. Os autores definem três dimensões da legalização das relações internacionais: obrigação, a precisão e a delegação, que são interdependentes. comparação ao progressos da biotecnologia e da demanda social por certezas científicas sobre essas questões. 3. O papel dos cientistas e da sociedade civil global Apesar de os cientistas serem do que chamamos de sociedade civil global, eles foram tratados à parte em função do papel estratégico que desenvolvem dentro da questão da regulação internacional dos riscos biotecnológicos. Marion LEOPOLD fez um interessante estudo sobre a percepção pública da biotecnologia22. Em 1974, os cientistas publicaram uma carta na Revista Science23 sobre a necessidade de uma regulação pública da atividade tecnológica. Assim, consideramos que a comunidade científica foi o primeiro grupo a se mobilizar para a regulação pública de suas próprias atividades em biotecnologia, a partir dos anos 1970, nos Estados Unidos. Essa iniciativa foi extremamente importante porque marcou a irrupção definitiva da organização de experts no debate político, e depois no jurídico, tanto no âmbito internacional como no nacional de vários países ao mesmo tempo. Em 1992, alguns cientistas assinaram uma Declaração sobre a regulação dos riscos tecnológicos24. Nesse sentido, ficou patente uma das características do que se considera aqui a “sociedade do risco” para falar como Ulrich Beck, qual seja, quando o progresso tecnológico parece fugir do controle público. Portanto, o princípio ambiental da precaução incorpora essa dimensão de temporalidade com vistas a evitar danos ambientais sérios ou irreparáveis antes mesmo que eles possam ser comprovados pela ciência. Todavia, é de bom alvitre ressaltar que o progresso tecnológico atual não suscita mais as mesmas dúvidas que há trinta anos atrás25, gerando uma verdadeira mudança do papel da comunidade científica sobre o tema. Em relação à engenharia genética, essa 22 “Public Perception of Biotech”, in TZOTZOS, G. (ed.) Genetically Modified Organisms”, Walling Ford: CAB international e UNIDO, 1995, 213 p. 23 BERG, P. et al “Potential Biohazards of Recombinant DNA Molecules”, Science, 1974, 185, 148, p. 303. 24 Ver, por exemplo, a análise de Philippe LEPRESTRE acerca da questão. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Senac, 2000. 25 CHRISTOFOROU, T. “Science, Law and Precaution in Dispute Resolution on Health and Environmental Protection: What Role for Scientific Experts?”, In: BOURRINET, J.; MALJEAN-DUBOIS, S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, Paris, La documentation française, 2002, p. 213-284. mudança é clara26. Hoje em dia a comunidade científica de uma maneira geral tem um discurso mais moderado sobre os riscos, e grande parte dela empenha-se em desmistificar a produção de OGMs, pois faz duas décadas que são consumidos e até hoje não foram comprovados riscos para a saúde humana27. Todavia, os riscos ambientais foram deixados em segundo plano perante uma lógica comercial global cada vez mais forte. Outra razão da grande importância da participação da comunidade científica no debate público é explicada por Daniel Bodansky28. Ela tem um papel crucial na legitimação do processo decisório, que ainda é muito frágil para as questões ambientais globais. Porém, as decisões técnicas apresentam limites que o autor reconhece, pois questões importantes relativas a conflitos socioambientais requerem julgamentos de valor. Por exemplo, no caso de clonagem de seres vivos, as considerações morais, éticas e filosóficas têm um peso importante no debate29. Quanto à sociedade civil global, conceito emprestado a Paul WAPNER30, ela engloba as interações acima do indivíduo e abaixo do Estado, ultrapassando fronteiras nacionais e políticas. O papel do terceiro setor foi reforçado com a irrupção de questões como a ambiental na agenda internacional, com o aval da ONU e de outras organizações internacionais. Isto implica que atores antigamente nacionais passam a ser atores internacionais no século XX, defensores do interesse público no cenário internacional, principalmente quando esse interesse está intimamente ligado à sobrevivência da humanidade. O maior exemplo dessa evolução são as ONGs, o que levou autores contemporâneos a escrever sobre “redes trasnacionais”, como Keck e Sikkink31. O papel da sociedade civil global também foi importante para o desenvolvimento do princípio da precaução e a sua consagração em 1992, apesar de alguns autores refutarem essa idéia argumentando que os atores do terceiro setor levaram anos para 26 BOURRINET, J. “De la hystérie anti OGM à la recherche d’une biovigilance internationale – Em deçà et au-delà du commerce international d’orgaismes génétiquement modifiés”, In: BOURRINET, J.; MALJEAN-DUBOIS, S. (dirs.) Le commerce international des organismes génétiquement modifiés, Paris, La documentation française, 2002, p. 5-26. 27 Eduardo VIOLA, comunicação pessoal, Buenos Aires, 02 de agosto de 2003. 28 “The Legitimacy of International Governance: a Coming Challenge for International Environmental Law?”, in: The American Journal of International Law, vol. 93, 596-624, 1999, p. 600. 29 Philippe LEPRESTRE defende a mesma idéia, op.cit. 30 "Global Civil Society". In: YOUNG, O. (ed.) Global Governance. Drawing Insights from the Environmental Experience. Cambridge, Massachusetts, London, The MIT Press, 1997, 364 p, p 65-84. 31 Activists Beyond Borders: Advocacy Networks in International Politics. Ithaca: Cornell University Press, 1998. entender o debate sobre a natureza do princípio, ou seja, que eram apenas representantes de uma demanda amorfa de regulação internacional. Em todo o caso, há um certo consenso sobre a imensa apreensão inicial da sociedade civil global com relação ao progresso biotecnológico e o fato de atualmente o debate ter evoluído para termos mais racionais, admitindo, inclusive, que muito do que foi questionado não é atinente aos riscos da biotecnologia, mas sim como ela é apropriada por poderosos grupos econômicos em detrimento do resto do mundo32. Contudo, a sociedade civil global acatou o princípio da precaução como uma resposta jurídica, ou a “tradução de demandas sociais para o campo jurídico” para falar como Olivier Godard, que poderia contribuir para a regulação das atividades oriundas da biotecnologia. De qualquer forma, a apreensão, pelo direito, do universo biológico, faz com que as negociações sejam travadas em um “universo controverso”, para falar como Olivier Godard33. A sua conclusão foi esquematizada na Tabela abaixo. Tomada de Decisão em Percepção Tomada de Decisão em Universo Estável (clássico) Universo Controverso (ambiental) Os agentes têm uma percepção Predominância da construção direta dos efeitos externos ou científica e social dos problemas de bens coletivos. Suas sobre a percepção direta dos preferências são bem agentes. informadas. Interesses Apenas os interesses ou A representação separada dos preferências dos agentes interesses de terceiros (e ausentes) presentes são pertinentes. está em questão: outros Estados, espécies ameaçadas, gerações futuras, etc... Procedimentos Os agentes dispõem de Os porta-vozes são contraditórios procedimentos sociais ou até inexistentes adequados para exprimir suas 32 Esse debate é pertinente no Brasil para o caso das sementes transgênicas e na França, para o caso da recusa de importação de carne bovina com hormônios dos Estados Unidos. 33 “Stratégies industrielles et conventions d’environnement: de l’univers stabilisé aux univers controversés”, Environnement, Economie, INSEE, Méthodes, n. 39-40, p. 145-174. preferências: mercados, votos, manifestações, conflitos. A ciência se estabilizou sobre Ainda subsistem inúmeras Conhecimento aspectos de problemas controvérsias sobre os aspectos científico pertinentes para a ação: cadeias essenciais do problema pertinente causais elucidadas, danos bem para a ação. definidos, imputação clara de responsabilidades. Reversibilidade São reversíveis : podemos Por causa de uma potencial esperar um desenvolvimento irreversibilidade, e da própria dos fenômenos em suficiente de conhecimento natureza das questões ambientais, causa para tomar decisões conformes alguns estimam que é necessário às exigências do modelo de agir imediatamente, sem esperar a racionalidade substancial estabilização do conhecimento (análises custo-benefício). (consenso ou certeza científica). Isso explica a criação do Princípio de precaução. Os conhecimentos científicos Teorias Científicas estabilizados constituem um As “visões do mundo e do futuro” são variáveis estratégicas que mundo comum para todos os engendram novas formas de atores, de modo precedente à competição. ação. A eficácia econômica e a O “enjeu” é a apropriação e a O que está “em equidade, baseadas em utilização com menor custo dos jogo” interesses bem constituídos. recursos naturais no âmbito de uma regulação internacional em vias de consolidação. Finalmente, se a atuação da comunidade científica e da sociedade civil global foi essencial para que o princípio da precaução fosse consagrado pelo direito ambiental internacional, a efetividade desse princípio encontrou limites no contexto político institucional do final do século XX. Prova disso são as diferentes interpretações dadas ao princípio em regimes internacionais ambientais34, o que dificulta a governança global relativa às questões ambientais35. 4. A legitimidade da governança global Governança global é um conceito que tem sido debatido há décadas pelos grandes intelectuais da área internacional, e no entanto, não há um único entendimento acerca do conceito. O conceito implica a transparência e um bom tratamento das políticas públicas, assegurando a participação de diversos tipos de atores sociais. Em fato, duas grandes interpretações coexistem para a governança global. A primeira foi desenvolvida por autores como James Rosenau36, que a define como o resultado da conscientização dos indivíduos na esfera nacional de que a sua mobilização pode ter resultados políticos importantes, portanto nem sempre um governo é necessário para a boa regulação de questões internacionais, à condição de que haja consenso e comunidade de expectativas das partes engajadas. Wapner, no mesmo sentido, defende que atores interessados criam regras de conduta em nome da coexistência social harmoniosa, inspirada em mecanismos de mercado além das práticas políticas. A segunda, como bem desenvolve Senarclens37, ao contrário, entende governança global como mais uma inovação das Organizações Internacionais reguladoras, notadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para legitimar a ingerência nas políticas de Estados menos desenvolvidos. Entretanto, o presente texto privilegia a primeira definição do conceito, que supõe uma participação ampliada de atores preocupados com o bem público, nesse caso, a proteção ambiental. 34 Ver o capítulo de Marcelo VARELLA sobre diferentes tratamentos ao princípio por cortes internacionais. 35 BARROS-PLATIAU, A. F, VARELLA, M. D. – “O Princípio da Precaução e sua aplicação comparada nos regimes da Diversidade Biológica e de Mudanças Climáticas”. Revista de Direitos Difusos, Instituto Brasileiro de Advocacia Pública-IBAP/ADCOAS,vol. 12, 2002, p. 1587-1597. 36 Governança sem governo. No capítulo “ A Cidadania em uma ordem mundial em mutação”, ROSENAU defende que uma demanda democrática conduz a uma ordem global cooperativa, e que a sociedade global não apresenta uma estrutura dominante de cooperação e conflito, pois Estados, grupos sub-nacionais, comunidades e grupos de interesses transnacionais disputam o apoio dos indivíduos. Além disso, os indivíduos desenvolveram uma capacidade analítica das questões internacionais a ponto de permitir uma ação coletiva quando as instituições sociais não são capazes de responder às suas demandas. Essas são as micro-regulações que alimentaram o debate sobre governança global. 37 Mondialisation, souveraineté et théorie des relations internationales. Paris, Armand Collin, 1998, 218 p. Nesse sentido, Bodansky38 considera que a Convenção de Aarhus sobre Acesso à Informação, Participação Pública no Processo Decisório e Acesso à Justiça nas Questões Ambientais de 1998 como uma vitória das organizações não-governamentais para assegurar sua participação na política e no direito internacional público. Em outros termos, seria um passo do direito no reconhecimento do que chamamos aqui de governança global ambiental. Todavia, a participação das ONGs não significa a participação da sociedade civil global, pois as primeiras não são necessariamente representativas de um “interesse geral”, haja vista que muitas vezes as ONGs representam apenas interesses de grandes setores produtivos, como no caso das normas ISO. Com esse comentário, Bodansky derruba o “mito da participação” e impõe um sério limite à governança global, revestida na questão da legitimidade dos representantes da sociedade civil global. Quando Bodansky alerta sobre o problema da legitimidade da governança global para o direito internacional ambiental, ele está constatando a fragilidade das instituições internacionais em matéria ambiental e a permanência de um direito internacional ambiental profundamente tributário da vontade dos Estados soberanos. Caberia complementar seu raciocínio com a natureza inovadora dos princípios ambientais. Conseqüentemente, os princípios ambientais, como o princípio da precaução, são limitados por esse contexto. Outra questão importante é a fraca participação de atores da sociedade civil global nos processos decisórios, o que agrava o problema da legitimidade da governança global. Assim, à medida que a regulação das questões ambientais passa do ordenamento nacional ao internacional, os regimes ambientais são criados mas são fracos, como as instituições que os sustentam, e a falta de legitimidade faz com que tais instituições sejam ineficientes, provocando uma observância das normas internacionais muito aquém das expectativas. Em outros termos, há um círculo vicioso que condena as instituições internacionais a uma posição de fragilidade nas questões ambientais. Se as fontes de legitimidade para Bodansky são a democracia, a participação pública e decisões 38 Ele não ofereceu uma definição clara do que seria a governança global, mas considera que ela implica a mudança de comportamento dos Estados soberanos em função das instituições internacionais, p. 618. Oran Young defendeu uma idéia semelhante quando trata da eficácia das instituições internacionais em: “A eficácia das instituições internacionais”,Governança sem governo. (Trad. Sérgio Bath). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. fundamentadas em parecer técnico, então o direito ambiental tem uma questão grave para resolver. Primeiro, ele alerta que uma democracia global é inviável. Ademais, os princípios de governança global, como transparência e acesso às informações são importantes, mas não resolvem a questão de quem deve decidir e com deve fazê-lo. E terceiro, o papel dos experts tem um limite no fato de que as incertezas científicas são patentes quanto aos impactos da biotecnologia. Esses são os limites da legitimidade da governança global, e enquanto não houver outra fonte de legitimidade, o direito internacional ambiental continuará baseado no consentimento dos atores, na reciprocidade entre eles e no interesse próprio. Conseqüentemente, o princípio da precaução sofre os efeitos dessa difícil governança global. 5. Considerações Finais O princípio da precaução foi criado dentro de um contexto internacional complexo e em rápida evolução. Além dos grandes avanços tecnológicos, políticos e jurídicos, a sociedade civil global testemunhou a maior participação de atores não-estatais para a regulação das relações internacionais, e de questões ambientais especificamente. Entretanto, esse contexto fértil para a consagração de grandes princípios ambientais tornou-se, no final da década de 1990, o palco da mais profunda competição tecnológica e comercial em termos globais. Conseqüentemente, o direito internacional ambiental desenvolve-se em função da demanda social por um papel do Estado e das Organizações internacionais como garantidores do interesse geral, mas também sob a pressão das incertezas científicas causadas pelo próprio avanço tecnológico. Nesse sentido, o princípio da precaução foi consagrado pela comunidade científica e a sociedade civil global ao longo do século XX, mas o contexto tecnológico do final do mesmo século fez com que o medo da biotecnologia de muitos de seus mais ardentes defensores arrefecesse. Assim, o princípio parece estar alcançando, finalmente, um status equilibrado entre moratória e controle público, e entre a prudência e a confiança no progresso. Referências Bibliograficas ABBOTT, K. 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