ACESSO À JUSTIÇA E DEFENSORIA PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO NA
1a VARA CÍVEL DO FORO REGIONAL DA RESTINGA, COMARCA DE PORTO
ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL1
Carolina Bojunga Carvalho
SUMÁRIO: Introdução. 1. O Acesso à Justiça. 1.1 A evolução do conceito de cidadania.
1.2 Obstáculos a superar no caminho da efetividade. 1.3 As “ondas” do Movimento
Universal e um novo enfoque. 2 A Defensoria Pública. 2.1 Da assistência judiciária à
assistência jurídica integral. 2.2 A Defensoria Pública no Brasil. 2.3 A Defensoria Pública
no Rio Grande do Sul. 3 Estudo de Caso da Defensoria Pública na 1a Vara Cível do
Foro Regional da Restinga, Comarca de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 3.1 Sobre
o bairro da Restinga. 3.2 A Defensoria Pública na 1a Vara Cível do Foro Regional da
Restinga. 3.2.1 Sobre os atendimentos observados. 3.2.2 Contato com a comunidade.
Considerações Finais.
RESUMO
Este trabalho, por meio de um estudo de caso da Defensoria Pública na 1a Vara
Cível do Foro Regional da Restinga, Comarca de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, apresenta a relação entre o órgão essencial à função jurisdicional no Brasil e
o direito de acesso à justiça. Assim, primeiro temos a perspectiva do Movimento
Universal de Acesso à Justiça, seu vínculo com o conceito de cidadania e sua
evolução. Então, a partir da idéia de assistência jurídica integral e sua trajetória no
país, discorremos sobre a Defensoria Pública no Brasil e no Estado do Rio
Grande do Sul. Por fim, no estudo de caso, trazemos as observações e dados
coletados em contato com a realidade. Trata-se de uma tentativa de demonstrar o
quanto a Defensoria Pública não cumpre sua função constitucional de maneira
efetiva, sobretudo, onde se faz mais necessária.
Palavras-chave: acesso à justiça – Defensoria Pública – cidadania – assistência
jurídica integral – estudo de caso
1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito à obtenção do
grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, aprovado com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador
a
a
Prof. Paulo Abrão Pires Junior, Prof . Maria Eunice de Paula e Prof . Roberta Camineiro Baggio.
2
ABSTRACT
This paper, through a case study of the Office of Public Defense in the 1st Civil
Court of the Restinga Regional Forum, district of Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
presents the relationship between the institution essential to the jurisdictional
service in Brazil and the right of access to justice. Thus, we first give a perspective
of the Worldwide Movement to Make Rights Effective, its link to citizenship as well
as its evolution. After that, starting from the country’s notion of full legal
assistance, we develop the subject of the Office of Public Defense in Brazil and in
the state of Rio Grande do Sul. Finally, in the case study, we bring the
observations and data collected from contact with the specific reality. It’s an
attempt to show how much the Office of Public Defense does not accomplish its
constitutional role in an effective manner, especially, regarding places where it is
most needed.
Key words: access to justice – Office of Public Defense – citizenship – full legal
assistance – case study
INTRODUÇÃO
Condição fundamental para o exercício da cidadania e, portanto, uma das
bases do regime democrático, o acesso à justiça tem como seu instrumento por
excelência, no Brasil, a Defensoria Pública. Previsto na Carta Magna de 1988, o
órgão essencial à função jurisdicional do Estado possui o dever precípuo da
assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Mas, mesmo diante de
profundas desigualdades econômicas e sociais, o serviço orientado à defesa de
direitos da maior parte dos brasileiros ainda carece de meios indispensáveis para
a sua realização.
Apesar dos avanços trazidos pela Reforma do Judiciário, na Emenda
Constitucional n.o 45 de 2004, o descompasso entre a norma e a realidade
continua manifesto. Tal contraste, especialmente visível no bairro da Restinga, em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, motivou a escolha do tema desta pesquisa.
3
A partir de um recorte desse contexto, demonstraremos o quanto a
distância entre o indivíduo incapaz de custear uma ação judicial e o Direito
decorre de uma postura política (em sentido amplo) tendente a manter a
marginalização social. Portanto, verificaremos a seguinte hipótese: a Defensoria
Pública não tem efetivamente direcionado seus esforços às regiões mais afetadas
por problemas socioeconômicos, porque não se confere prioridade ao
atendimento da população carente.
A fim de atingir o objetivo deste trabalho, buscaremos responder a outras
questões específicas. Primeiro, trataremos do direito de acesso à justiça com
relação à história da cidadania. Então, discorreremos sobre as principais barreiras
à efetividade do referido direito e as “ondas” do Movimento Universal de Acesso à
Justiça, como identificado na década de 1970.
Quanto à Defensoria Pública e seu propósito – antes de apresentarmos
sua trajetória no Brasil e no Rio Grande do Sul –, discorreremos sobre as
diferenças entre as noções de assistência judiciária e assistência jurídica integral.
Finalmente, o estudo de caso da instituição na 1a Vara Cível do Foro Regional da
Restinga, com características do local, bem como do atendimento ao público
observado
e
do
contato
da
Defensoria
Pública
com
a
comunidade
complementarão a análise.
1 O ACESSO À JUSTIÇA
1.1 A evolução do conceito de cidadania
Num processo de consolidação da democracia, como o vivido pelo Brasil e
outros países da América Latina, o efetivo acesso à justiça depende, sobretudo,
da capacidade de exercício da cidadania. Ente cuja vontade legitima o poder
estatal, o povo, nos regimes democráticos, é composto de sujeitos dotados do
que a filósofa alemã Hannah Arendt chamou de "direito a ter direitos"2. Essa
condição fundamental de "ser cidadão" significa não só o pertencer à dada
2
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 154.
4
comunidade política, mas vai além: é, primeiro, um sinal de reconhecimento da
humanidade em qualquer um.
Porém, para se chegar ao ponto de vista de onde os conceitos de acesso à
justiça e cidadania aparecem indissociáveis também das idéias de democracia e
direitos humanos, foi necessário percorrer um caminho de construção histórica
que remonta ao limiar da civilização ocidental. Desde a convivência nas cidadesEstado da antigüidade greco-romana, os homens vêm modificando o espectro de
pressupostos da cidadania.
As revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, e, em especial, a
Revolução Francesa, abriram espaço para a política nos moldes do pensamento
iluminista, que priorizava o uso da razão em busca do progresso. Guiada por
valores do jusnaturalismo, a nova burguesia tomou o poder das mãos da nobreza,
afirmando que o Estado devia respeitar "o ser humano,... titular de direitos
naturais", como os direitos à vida, ao credo e à liberdade (CESAR, 2002, p. 19).
Legado fundamental desse período3, a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão (1789) evidenciou a primeira separação entre direitos civis (do homem,
na esfera universal) e direitos políticos (do cidadão, em âmbito nacional).
Para compreender o desenvolvimento da cidadania, em sua natureza mais
complexa, e a relação desta com o status social e os níveis de desigualdade, a
contribuição do sociólogo inglês T. H. Marshall mostrou-se oportuna. De acordo
com o Professor Emérito da Universidade de Londres, em conferências proferidas
em Cambridge, no ano de 1949, a evolução do conceito em análise tornou-se
visível ao dividimo-lo em três partes: civil, política e social.
O elemento civil da cidadania seria representado pelos "direitos
necessários à liberdade individual" (MARSHALL, 1963, p. 63), seja na forma da
proteção do direito de ir e vir, das liberdades de imprensa, de pensamento, do
direito à propriedade e, ainda, do direito à justiça. A este respeito, destacou:
3
"Esse ponto de vista (no qual se situa a Declaração) representa a inversão radical do ponto de
vista tradicional do pensamento político, seja do pensamento clássico..., seja do pensamento
medieval... Dessa inversão nasce o Estado moderno: primeiro liberal, no qual os indivíduos que
reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático...; e,
finalmente, social...". (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.
113)
5
...(o direito à justiça) difere dos outros porque é o direito de
defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com
os outros (indivíduos) e pelo devido encaminhamento processual
(ibidem).
Logo, a faceta civil da cidadania estaria ligada às instituições do Poder
Judiciário, aos tribunais – local onde o indivíduo pleitearia o respeito a suas
liberdades.
Correspondente à função do Poder Legislativo ou parlamento, o elemento
político seria aquele entendido como o "direito de participar no exercício do poder"
de maneira direta ou representada. Esse aspecto espelha a cidadania nos moldes
da elaborada na Grécia, durante o apogeu da democracia clássica, e, também, da
Europa iluminista, como já mencionado.
Apenas no século XX – depois de asseguradas formalmente igualdades
políticas, com a adoção do sufrágio universal (1918, na Inglaterra) –, haveria o
maior reconhecimento da cidadania em seu elemento social. Segundo os
ensinamentos do professor, o direito a "um mínimo de bem-estar econômico" e a
"levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na
sociedade" (p. 63-64) vincular-se-ia de maneira expressiva às instituições de
educação e de serviço social. Dentre as garantias as quais o Estado e os cofres
públicos obrigaram-se a fornecer, estavam os serviços destinados "a fortalecer o
direito civil do cidadão de decidir seus litígios num tribunal de justiça" (p. 89).
Com a organização do capital no mercado de massas, as reivindicações
coletivas das classes trabalhadoras representaram forças importantes para a
fusão das idéias de Estado e justiça social4. Na linha proposta por Marshall, o
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos ressalvou:
4
"A fórmula da justiça social pode ser expressa nos seguintes termos: 'a todos a mesma coisa'.
'Todos' aqui designa a totalidade das pessoas humanas que compõem a comunidade. A
sociedade constitui-se como comunidade no momento em que os indivíduos passam a considerarse como participantes em um projeto comum de realização de uma determinada concepção de
vida boa para os seus membros... Deste modo, a justiça social é que forma o laço constitutivo da
comunidade, uma vez que a existência da comunidade depende do fato de 'todos', como membros
da comunidade, terem 'a mesma coisa', isto é, os mesmos direitos e deveres, e não do fato de
estarem submetidos a um poder comum, ou habitar o mesmo território." (BARZOTTO, Luis
Fernando. Justiça Social. Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em:
<https://planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/Artigos/ART_LUIS.htm> Acesso em 01 abr. 2008)
6
A segurança da existência quotidiana propiciada pelos direitos
sociais tornou possível vivências de autonomia e de liberdade, de
promoção educacional e de programação das trajetórias familiares
que até então tinham estado vedadas às classes trabalhadoras.
Mas por outro lado, os direitos sociais e as instituições estatais a
que eles deram azo foram partes integrantes de um
desenvolvimento societal que aumentou o peso burocrático e a
vigilância controladora sobre os indivíduos; sujeitou estes mais do
que nunca às rotinas da produção e do consumo; criou um espaço
urbano desagregador e atomizante...(1995, p. 245).
Conforme Santos, a crise do capitalismo organizado e o movimento
estudantil, nas décadas de 1960 e 1970, possibilitaram o aparecimento de novos
sujeitos de conquistas sociais. Questionava-se, então, uma cultura produtivista,
consumista, de trabalho alienado e autoritarismo na relação familiar.
A resposta aos desafios lançados nos anos sessenta incluiu "a afirmação
política de novos movimentos sociais" (p. 250). Nesse cenário, as organizações
pautaram-se mais pela participação direta que pela representatividade – aspecto
do regime democrático tradicionalmente vinculado à cidadania.
Portanto, os novos movimentos sociais fizeram emergir a subjetividade, a
necessidade de desenvolvimento da autonomia pessoal, contrária a padrões
abstratos e "atenta às novas formas de exclusão... baseadas no sexo, na raça, na
perda de qualidade de vida, no consumo, na guerra, que ora ocultam ou
legitimam... a exclusão baseada na classe social" (p. 264). Houve, pois,
inovadoras tentativas de concretização da idéia de T. H. Marshall, para quem a
cidadania equivale ao status de membro integral da comunidade.
Em busca dessa condição de pertencimento, os atores sociais de hoje, ao
exercerem a "nova cidadania", almejam ultrapassar os âmbitos civil, político e
social para abarcar a dimensão dos direitos difusos e coletivos, não atrelados a
uma classe, mas sim à noção de sociedade civil (ALVES, p. 59). E foi na luta pela
efetividade de direitos que o Projeto Florença, coordenado por Mauro Cappelletti
e Bryant Garth, em 1978, identificou o chamado Movimento Universal de Acesso
à Justiça (JUNQUEIRA, 1996).
1.2 Obstáculos a superar no caminho da efetividade
7
Antes de elencarmos uma série de dificuldades práticas, é importante
discorrermos sobre alguns aspectos da noção de acesso à justiça. No livro-ensaio
intitulado Acesso à Justiça, Cappelletti e Garth introduziram o tema da seguinte
forma:
...o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente
reconhecido como sendo de importância capital entre os novos
direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos
é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser
encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos
humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que
pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (p.
12). (grifo nosso)
Os autores – além de apresentarem definição de acesso à justiça
equivalente à de Hannah Arendt para cidadania5 – identificaram, a partir da
evolução simbólica do termo, possibilidades de ocorrência externas à esfera
tradicional do Poder Judiciário:
...as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser
considerada e... qualquer regulamentação processual, inclusive a
criação ou encorajamento de alternativas ao sistema judiciário
formal, tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei
substantiva – com que freqüência ela é executada, em benefício
de quem e com que impacto social (p. 12-13).
Mas essa visão ampliada não retirou do direito à ação (ou à jurisdição) o
papel de princípio basilar do acesso à justiça, juntamente com as garantias do
devido processo legal e da ampla defesa. Diversos pactos e convenções
internacionais6 ratificaram esse direito sobretudo sob a égide da Declaração
5
Sinal de que se trata, de qualquer jeito, de circunstância sine qua non.
Entre elas, a Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais (1950), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (1969).
6
8
Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações Unidas em 1948,
que em seu artigo 10 afirma:
Toda a pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de
ser ouvida publicamente e com eqüidade, por um tribunal
independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e
obrigações, ou para o exame de qualquer acusação contra ela
dirigida em matéria penal.
A Constituição brasileira, por sua vez, no Título II (dos direitos e garantias
fundamentais), Capítulo I (dos direitos e deveres individuais e coletivos), artigo 5o,
inciso XXXV, prevê:
A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça de direito.
Também Boaventura de Sousa Santos destacou o vínculo entre a atividade
processual e o direito de acesso à justiça, pois "o tema do acesso à justiça é
aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a
justiça social, entre igualdade jurídico formal e a desigualdade socioeconômica"
(p. 167). A questão do acesso, por conseguinte, implica a aproximação da
realidade à norma e vice versa.
Daí a relevância de se caracterizar a tão almejada efetividade por meio das
palavras de Cappelletti e Garth:
A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo,
poderia ser expressa como a completa "igualdade de armas" - a
garantia de que a conclusão final depende apenas dos méritos
jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com
diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto,
afetam a afirmação e reivindicação dos direitos. Essa perfeita
igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes
não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é
saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que
custo (p. 15).
9
As barreiras a serem transpostas nessa tentativa foram divididas pelos
coordenadores do Projeto Florença em três grandes categorias, a saber: custas
judiciais, possibilidades das partes e problemas especiais dos interesses difusos.
Num país marcado por desigualdades sociais e econômicas como o Brasil,
onde estudo recente revelou que 85% da população obtém renda média familiar
equivalente a menos de três salários mínimos (ou cerca de R$ 1.062,00 – um mil
e sessenta e dois reais – por mês)7, o problema do custo requer atenção especial.
Não fosse a previsão de gratuidade da prestação judiciária (CRFB, art. 5o, inciso
LXXIV), a idéia de litigar em juízo pareceria inatingível para uma larga camada de
brasileiros (MARCACINI, 1996, p. 22).
"Ponto central... da denegação ou da garantia de acesso efetivo", as
possibilidades das partes8 dizem respeito a vantagens e desvantagens
estratégicas possuídas por certos tipos de litigantes. Os recursos financeiros
suficientes para acionar o Poder Judiciário e suportar suas delongas, ou fazer
gastos maiores que o oponente, por exemplo, são armas que mais claramente
podem influenciar no sucesso de uma contenda.
Situada além dos limites da condição econômica, a "capacidade jurídica
pessoal" engloba "diferenças de educação, meio e status social" (p. 22). Trata-se
da aptidão individual para efetivamente reivindicar um direito9. O primeiro
obstáculo a ser vencido pelo sujeito nesse esforço consiste em adquirir
conhecimento do que é juridicamente exigível. A dificuldade, aqui, não atinge
apenas os "despossuídos". Segundo os autores de Acesso à Justiça, estudos
realizados na Europa demonstraram que são imprescindíveis a informação
qualificada e a disposição psicológica para se buscar a saída do processo judicial
e dos serviços de assessoria jurídica.
Outra forma de entender o quadro somou à falta de conhecimento do
direito e à resignação a "distância progressiva que o povo vai guardando em
7
Dado apresentado no pelo estudo Observador 2008, realizado pelo instituto de pesquisas Ipsos
sob encomenda da financeira Cetelem, pertencente ao banco francês BNP Paribas. (BORSATO,
Cíntia; DUAILIBI, Julia. Ela empurra o crescimento. Veja. São Paulo, n. 13, p. 82-89, 2 abr. 2008)
8
Expressão, como mencionam Cappelletti e Garth, utilizada pelo professor Marc Galanter (op. cit.,
p. 21).
9
Fator implícito na autonomia desejada pela organização participativa dos novos movimentos
sociais, conforme Santos, e no exercício da cidadania de Marshall.
10
relação à lei" – crítica abordada por Jacques Távora Alfonsin em Assessoria
Jurídica Popular, Breve Apontamento sobre sua Necessidade, Limites e
Perspectivas (1998). O autor cita Bachof, para quem há "impressão dominante,
imprecisa, mas não por isso falsa, de que a lei, em outro tempo escudo da
liberdade e do Direito, converteu-se hoje, precisamente, em uma ameaça a esses
bens". Nesse sentido, a análise de Santos contribuiu para a interpretação,
destacando fatores explicativos dessa "desconfiança":
Por um lado, experiências anteriores com a justiça de que resultou
uma alienação em relação ao mundo jurídico (uma reação
compreensível à luz dos estudos que revelam ser grande a
diferença de qualidade entre os serviços advocatícios prestados
às classes de maiores recursos e os prestados às classes de
menores recursos); por outro lado, uma situação geral de
dependência e de insegurança que produz o temor de represálias
se se recorrer aos tribunais (p. 170).
A última categoria de barreira diagnosticada pelos reconhecedores do
Movimento Universal de Acesso à Justiça foi a dos "problemas especiais dos
interesses difusos". Muito reivindicados pelos novos movimento sociais ou
populares, os direitos correspondentes (como o do meio ambiente ou do
consumidor) podem ser também legitimamente defendidos pelas instituições
estatais do Ministério Público e da Defensoria Pública através da ação civil
pública10 no Brasil. Porém os maiores entraves à efetividade da justiça quanto aos
interesses difusos estão na esfera da sociedade civil, onde a conexão de
processos e a organização coletiva dos indivíduos fazem-se sempre necessárias.
1.3 As "ondas" do Movimento Universal e um novo enfoque
Na mesma época caracterizada pelo surgimento dos novos movimentos
sociais e pela ampliação do conceito de cidadania, em que o modelo econômico
10
o
A lei n. 11.448 de 2007 atribuiu, "de forma expressa e ampla", à Defensoria Pública a
legitimidade para uso do instrumento, o que vinha sendo "plenamente admitido pelos tribunais
brasileiros". (GONÇALVES, Cristina Guelfi. A democratização do acesso à Justiça. Folha de São
Paulo,
São
Paulo,
3
set.
2007.
Disponível
em:
<http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=2490>. Acesso em: 21 mar. 2008)
11
do Estado de Bem-Estar Social já se encontrava desgastado, o Movimento
Universal de Acesso à Justiça emergiu como outro sinal de uma revigorada
consciência coletiva11. O impulso essencial ao desenrolar das "ondas" a favor da
efetividade do direito ocorreu entre 1965 e 1970, de acordo com o relatório do
Projeto Florença.
Celso Fernando Campilongo, em Assistência Jurídica e Realidade Social:
Apontamentos para uma tipologia dos serviços legais, referindo-se a Germán
Palacio, descreveu o momento supracitado:
Especialmente a partir da década de 60 a ajuda jurídica vai,
rapidamente, trocando a imagem de instrumento de controle
social pela concepção da assistência legal enquanto ferramenta
de um "acesso igualitário ao direito"... Isso se desenvolve,
notadamente na América Latina, numa situação concreta de crise
econômica e social (p. 08).
Concentrada no aprimoramento da assistência judiciária para os pobres, a
primeira onda rompeu com o tradicional sistema de serviço gratuito organizado
por advogados a título de munus honorificum, predominante desde o pósSegunda Grande Guerra. Nesse modelo antigo, não havia contraprestação ao
trabalho do profissional do Direito. Portanto, era comum a baixa qualidade da
assistência fornecida por advogados inexperientes ou pouco dedicados às causas
dessa parte da população (SANTOS, p. 171).
Sem deixar de reconhecer algumas tentativas anteriores de reforma, como
a criação do Legal Aid and Advice Scheme (Inglaterra, 1949)12, os autores de
Acesso à Justiça posicionaram o marco inicial da primeira onda no
funcionamento, em 1965, do Office of Economic Opportunity (OEO) nos Estados
Unidos. De acordo com Santos, houve, na maioria dos países, a implantação de
11
Cleber Francisco Alves, na Tese de Doutorado supracitada, ao tratar da "primeira onda",
relacionou com propriedade: "... a luta pelos chamados direitos de primeira geração, que abrange
a conquista da cidadania civil e política na perspectiva de Marshall, poderia ser situada numa fase
prévia à chamada 'primeira onda' do acesso à justiça, a qual,..., somente se manifestou
efetivamente no contexto das conquistas das cidadania social..." (op. cit., p. 57).
12
O esquema confiado à associação nacional dos advogados (Law Society) "reconhecia a
importância de não somente compensar os advogados particulares pelo aconselhamento senão
ainda pela assistência nos processos". (CAPPELLETTI, op. cit., p. 33)
12
"um sistema público e assistencial organizado ou subsidiado pelo Estado" (p.
171).
Dois tipos de serviços consolidados pela primeira onda predominaram
entre as experiências trazidas a conhecimento pelo Projeto Florença. Aplicados
isoladamente ou de maneira combinada, o sistema Judicare e o do advogado
remunerado pelos cofres públicos, dentro de seus limites, fizeram ceder
obstáculos substanciais ao acesso à justiça. O primeiro, presente (no final dos
anos 1970) na Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, formou
...um sistema através do qual a assistência judiciária é
estabelecida como um direito para todas as pessoas que se
enquadrem nos termos da lei. Os advogados particulares, então,
são pagos pelo Estado. A finalidade do sistema Judicare é
proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma
representação que teriam se pudessem pagar um advogado
(CAPPELLETTI, p. 35). (grifo do autor)
Já o modelo do advogado remunerado pelos cofres públicos – em especial,
nos Estados Unidos – previu a contratação estratégica pelo Estado de advogados
para trabalho em escritórios na periferia ou bairros mais empobrecidos das
cidades (os "neighborhood offices"). Orientados na direção do enfrentamento de
questões coletivas e interesses difusos, em detrimento de causas individuais, os
escritórios permitiram, por meio do ataque à desinformação, o disseminar de uma
consciência de direitos e de um vínculo mais estreito da comunidade com os seus
profissionais.
Antes de qualificar a segunda onda do movimento, vale destacar certas
deficiências da assistência judiciária muito pertinentes ao caso do Brasil.
Cappelletti e Garth enumeraram condições imprescindíveis à prestação
assistencial eficiente:
Antes de mais nada,..., é necessário que haja um grande número
de advogados, um número que pode até exceder a oferta,
especialmente em países em desenvolvimento. Em segundo
lugar, mesmo presumindo que haja advogados em número
suficiente,..., é preciso que eles se tornem disponíveis para
13
auxiliar aqueles que não podem pagar por seus serviços. Isso faz
necessárias grandes dotações orçamentárias... Em economias de
mercado,..., a realidade diz que, sem remuneração adequada, os
serviços jurídicos para os pobres tem a ser pobres também.
Poucos advogados se interessam em assumi-los, e aqueles que o
fazem tendem a desempenhá-los em níveis menos rigorosos (p.
47-48).
Com o objetivo de complementar os feitos dessa etapa inicial na evolução
recente do acesso à justiça, a chamada segunda onda envolveu a representação
dos interesses difusos e coletivos. Nesse sentido, foram dadas novas
interpretações a categorias clássicas do processo civil, considerando a existência
de partes plurais nem sempre identificáveis individualmente13.
Na terceira onda, deu-se o salto da concepção de acesso ligada à
representação em juízo a um novo enfoque. Além da previsão da advocacia
judicial ou extrajudicial, particular ou pública, o último movimento "centra sua
atenção
no
conjunto
geral
de
instituições
e
mecanismos,
pessoas
e
procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas
sociedades modernas" (CAPPELLETTI, p. 67-68).
Os coordenadores do Projeto Florença resumiram assim principais
medidas de reformas:
...esse enfoque encoraja a exploração de... alterações nas formas
de procedimentos, mudanças na estrutura dos tribunais ou a
criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou
paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores,
modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou
facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou
informais de solução dos litígios (p. 71).
Os Juizados Especiais (já institucionalizados), bem como os considerados
meios alternativos de resolução de conflitos, a exemplo da arbitragem e da
13
Castro e De Vitto, em A Defensoria Pública e a Consolidação da Democracia (2006, p. 233),
ressaltam a importância das normas relativas à ação civil pública e ao Código de Defesa do
Consumidor no desenrolar da segunda onda de acesso à justiça no Brasil.
14
mediação (ainda sem apoio da cultura jurídica predominante ou de política pública
consistente), são algumas iniciativas decorrentes desse novo enfoque no Brasil.
Para Campilongo, os serviços legais alternativos enxergam as questões
jurídicas segundo uma perspectiva mais próxima da realidade social. A atividade
de equipes multidisciplinares, por conseguinte, teria de estar na base dessa
proposta de mudança.
A integração dos serviços voltados ao efetivo acesso à justiça – sejam
institucionais ou alternativos –, num sistema capaz de ampliar o espaço de
exercício da cidadania e, conseqüentemente, reduzir desigualdades, requer
vontade política, em especial, de profissionais do Direito, ou seja, dos agentes
capazes de expandir a cultura jurídica para fazer incluir a população. Portanto, na
linha estabelecida pela terceira onda do Movimento Universal de Acesso à
Justiça, a ênfase recai também sobre o “papel social da advocacia”14.
2 A DEFENSORIA PÚBLICA
2.1 Da assistência judiciária à assistência jurídica integral
Inserido no contexto geral de evolução que levou ao Movimento Universal
de Acesso à Justiça – apesar de apenas brevemente citado no estudo
coordenado por Cappelletti e Garth15 –, o Brasil desenvolveu uma forma particular
de compreender a garantia indispensável à realização do direito fundamental de
acesso. A mudança da política oficial de “assistência judiciária” para a de
“assistência jurídica integral” ocorreu também devido às transformações sociais
que alargaram o sentido de cidadania.
Expressão consolidada pelo texto constitucional de 1988 (art. 5o, inciso
LXXIV), assistência jurídica integral significa mais que a abertura de portas dos
tribunais aos pobres. O conceito indica, sim, um gênero de atividade cujo objetivo
14
LUHMANN apud CAMPILONGO, op. cit.
15 De acordo com Cleber Francisco Alves, “algumas poucas páginas da obra que resultou do
‘Projeto Florença’ foram efetivamente dedicadas aos países periféricos, fora do ambiente europeu
e norte-americano” (op. cit., p. 267).
15
é “viabilizar a ordem jurídica justa”16, incluindo a assistência judicial – ou judiciária
– e a assistência extrajudicial, aproximando-se da proposta surgida a partir da
terceira onda do referido movimento.
Segundo Alves, a primeira espécie de assistência devida (a judicial):
...abrange todos os pressupostos necessários para evitar que as
desigualdades de ordem econômica entre as partes numa lide...
sejam obstáculos intransponíveis a que obtenham do Estado a
devida e justa prestação jurisdicional (p. 302).
A assistência extrajudicial, por sua vez, compreende “atividades técnicojurídicas no campo da prevenção, da consultoria, do aconselhamento e da
informação” (GIANNAKOS, 2004). Nessa ampla esfera em que o profissional do
Direito se vê compelido a aproximar-se da realidade social (e não só da
população carente), a ação conjunta com profissionais de outras áreas, o respeito
a diferenças culturais e a avaliação de políticas públicas são algumas posturas
essenciais sob o ponto de vista inovador, contrário ao serviço tradicional
meramente “assistencialista”.
Mesmo previsto pela Constituição Cidadã, o caminho de abandono do
paternalismo em direção ao trabalho de esclarecimento e organização popular
para a defesa de direitos17 pouco foi trilhado no país. A distância significativa
entre os avanços legislativos e as circunstâncias predominantes na vida brasileira
já era reconhecida na época da pesquisa formadora do Projeto Florença.
Conforme Alves, o “descompasso histórico” foi assim observado pela professora
Barbara Yanow Johnson, em 1975:
Infelizmente, o sistema político atual (década de setenta) no Brasil
não tem conduzido a uma adequada implementação dos direitos
de assistência jurídica garantidos em tese. A maioria dos Estados
16 WATANABE apud GIANNAKOS, 2004, p. 47.
17 Ver Campilongo (op. cit., p. 3), de acordo com quem “aos serviços legais tradicionais pode-se
atribuir a característica de serem prestados a título assistencialista. A população “carente”,…, tem
a condolência de profissionais orientados por espírito humanista e caritativo. A comiseração de
quem presta os serviços legais, de um lado, vem complementadas pela desarticulação dos
‘sujeitos de direitos’ atomizados, de outro”.
16
brasileiros tem se contentado em manter equipes muito reduzidas.
Conseqüentemente, observadores relatam que, apesar das
garantias constitucionais e legais, o sistema subsidiado pelo
governo apenas supre uma pequena fração das necessidades.
(tradução livre do autor)
Dez anos depois, Calmon de Passos escreveu em artigo publicado na
Revista de Processo18:
Entre o formal e o real,..., medeia um abismo. O preceito
constitucional permanece até hoje simples promessa não
cumprida em várias regiões do pais, as mais numerosas, e
insatisfatoriamente cumprida em muito poucos, tanto qualitativa
como quantitativamente.
A Carta Magna citada pelo professor era a reformada pela Emenda
Constitucional n.o 1, de 1969, cujo artigo 153, parágrafo XXXII, prescrevia: “Será
concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei” (grifo nosso).
Na ausência de esclarecimento sobre a maneira como devia ser prestada tal
assistência – se pelo Estado ou por advogados particulares –, entendeu-se que
os termos então vigentes da Lei 1.060 de 195019 foram recepcionados, sendo,
pois, o ente público o maior responsável pela prática do serviço. Até esse ponto,
porém, a matéria do acesso à justiça no Brasil já havia galgado conquistas
importantes.
Da colonização portuguesa, com a vigência das Ordenações Filipinas, à
criação do cargo de Advogado dos Pobres, mantido pelo erário, pela Câmara
Municipal da Corte do Rio de Janeiro, no final do século XIX20, encarava-se a
obrigação de assistência como dever moral, ou obra de caridade de fortes laços
religiosos (ALVES, p. 275).
18 ALVES, op. cit., p. 270.
19 Que “estabelece normas para a concessão da assistência judiciária aos necessitados”, entre
o
elas as do instituto da justiça gratuita (art. 3 ).
20 Considera-se a iniciativa a precursora da instituição da Defensoria Pública e da função de
defensor. Contudo, o cargo foi extinto em 1884. (JUNKES, 2005, p. 77)
17
Em 1891, a primeira Constituição da República, de caráter liberal, não
tratou da questão do acesso à justiça para a população carente21. Mas, por meio
do Decreto n.o 2.457 de 1897, a Presidência da República oficializou a
Assistência Judiciária para o Distrito Federal totalmente custeada com recursos
públicos. Considerado origem do “primeiro serviço de natureza pública” da
espécie22, o dispositivo legal possui ainda mais relevância, porque inaugurou o
conceito jurídico de pessoa “pobre” para fins de obtenção de gratuidade da justiça
no país23.
O princípio da assistência judiciária apareceu também no Código de
Processo Civil de 1916, bem como nas posteriores reformas das leis
processualistas estaduais e no Decreto n.o 20.784 de 1931, que regulamentou a
recém formada Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). De acordo com as
diretrizes da categoria, assistir a causa de quem não pudesse pagar honorários
ou custas judiciais tornava-se obrigação legal, inclusive, sujeita a penalidades em
caso de não-cumprimento.
Influenciada pelo paradigma do Estado de Bem-Estar Social que
despontava na Europa e na América do Norte, a Constituição de 1934 transferiu o
encargo da assistência judiciária aos necessitados do âmbito da advocacia
particular para o da União e dos Estados. Entre normas constitucionais do
Ocidente, o artigo 113, inciso XXXII, da Lei Maior brasileira foi pioneiro ao
determinar a criação de “órgãos especiais” a fim de instrumentalizar a ação
pública positiva de efetivar um direito “essencial à vida política e social da
comunidade”24.
O grande salto dado pela adoção de um modelo publicista de assistência
judiciária possibilitou o surgimento, em unidades federativas como São Paulo, Rio
Grande do Sul e Minas Gerais, de serviços governamentais prestados por
advogados assalariados pelo Estado (JUNKES, p. 77-78). Durante os mais de 50
anos até a promulgação da Carta de 1988 – e sob a égide dos quatro textos
21 ALVES, op. cit., p. 278.
22ROCHA apud ALVES, p. 278.
o
23 O critério do artigo 2 , parágrafo único, da Lei 1.060/50 (atualmente em vigor), segundo o qual
“considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe
permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento
próprio ou da família”, tem origem nesse Decreto.
24 CAVALCANTI apud ALVES, p. 282.
18
constitucionais vigentes no período25 –, avanços referentes à matéria deram-se
com o desenvolvimento da atividade de defensor público ou de “assistente
judiciário” vinculada às estruturas de Procuradorias-Gerais de Estado e, por
vezes, do Ministério Público (ibidem).
Mesmo subjugado pela Ditadura Militar, a partir de 1964, o pais foi cenário
de relevantes discussões, em congressos e seminários, sobre o tipo de serviço de
assistência judiciária a ser desenvolvido num processo de redemocratização
(ALVES, p. 287). Sobre o momento que culminou na definição dos termos da
Constituição da República de 1988, Alves descreveu:
Após intensa atuação dos representantes da classe no bastidores
da Assembléia Constituinte, finalmente, no dia 26 de agosto de
1988, foi votado pelo plenário o texto definitivo onde constava pela
primeira vez na história constitucional do pais a consagração da
Defensoria Pública como órgão do Estado indispensável ao
exercício da função jurisdicional, atribuindo-se-lhe não apenas o
encargo de garantir o patrocínio em juízo dos necessitados, mas
também a prestação de assistência jurídica integral e gratuita (p.
292)26. (grifo nosso)
Deu-se, pois, em patamar constitucional, a substituição do conceito de
“assistência judiciária” pela noção abrangente de “assistência jurídica integral”. A
mudança equiparou o acesso à justiça no Brasil a um “dever estatal inerente ao
próprio exercício da cidadania”27, extrapolando a esfera de um direito somente
social, ligado à necessidade de erradicação da pobreza. Essa dimensão – parte
do complexo sistema de direitos fundamentais instituído – decorreu também do
valor “que dá unidade de sentido à Constituição” (CITTADINO, 1999, p. 44): a
dignidade da pessoa humana28.
o
25 De 1937, 1946, 1967 e texto conforme a Emenda Constitucional n. 1, de 1969. Observa-se
que somente a Carta de 1946 surgiu no decorrer de um regime democrático.
26 Contudo, o autor fez a seguinte – e significativa – ressalva: “Mais uma vez, a sociedade civil
não foi protagonista do processo de conquistas alcançadas. A vitória dependeu de uma luta dos
representantes da corporação classista dos defensores públicos, com diminuto engajamento dos
movimentos sociais, resultando de uma negociação política com as classes dominantes…”. (op.
cit., p. 292-293)
27 Idem (p. 298).
o
28 Artigo 1 , inciso III (dos princípios fundamentais).
19
Ao lado do princípio de solidariedade social, a supremacia da dignidade
humana significou a aplicação de um viés “comunitário”29. De acordo com esse
entendimento,
...os direitos fundamentais não mais podem ser pensados apenas
do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes
de que estes são titulares, ‘antes valem juridicamente também do
ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se
propõe prosseguir’ (ANDRADE apud CITTADINO, p. 17).
Segundo Giannakos, outros princípios constitucionais pilares do direito à
assistência jurídica integral são os da igualdade (art. 5o, caput)30, do amplo
acesso à justiça (princípio da inafastabilidade do controle judicial – art. 5o, inciso
XXXV) e do devido processo legal (art. 5o, inciso LIV) (p. 130).
Por fim, cabe salientar que a assistência jurídica integral – em
conformidade com o “novo enfoque de acesso à justiça” e seu pressuposto de
multiplicidade de atores sociais envolvidos – não foi estabelecida como monopólio
do Estado, porque pode ser prestada, “em caráter complementar e subsidiário”,
por advogados autônomos, organizações e entidades da sociedade civil (ALVES,
p. 293).
2.2 A Defensoria Pública no Brasil
Órgão encarregado de prestar o direito fundamental de assistência jurídica
integral e gratuita, a Defensoria Pública adquiriu status constitucional no Título IV
(da organização dos poderes), capítulo IV da Carta Magna de 1988, dedicado às
29 Ver CITTADINO, op. cit., p. 17. A respeito dos pressupostos da “dimensão comunitária” da
Constituição da República de 1988, a autora elenca três “grandes temas”: “definição do
fundamento ético da ordem jurídica, amplo sistema de direitos fundamentais, acompanhado de
institutos processuais que visam controlar a omissão do poder público e Corte Suprema como
órgão de caráter político” (p. 43).
30 Quanto aos aspectos formal e material do princípio, "as duas modalidades de igualdade não
devem ser entendidas como conceitos estanques ou fins últimos em si próprias. Dessa forma, a
igualdade jurídica (ou formal), mediante a atribuição de direitos em paridade, corresponde à
condição preliminar da igualdade real (ou material), relacionada à alteração da estrutura social e
econômica, mediante a remoção de obstáculos que impeçam sua efetiva verificação".
(GIANNAKOS, op. cit., p. 133)
20
“funções essenciais à justiça”, ao lado do Ministério Público, e das advocacias
pública e particular31. Nesse sentido, o caput do artigo 134 trouxe a seguinte
redação:
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional
do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em
todos os graus, dos necessitados...
Para estruturar a Defensoria Pública e, conseqüentemente, vir a oferecer
um sistema de acesso à justiça universal32, a Constituição determinou que o
órgão: seria organizado por meio de Lei Complementar; existiria nos níveis federal
e estadual; possuiria cargos de defensor preenchidos por meio de concurso
público (em condições equiparadas às de juízes e promotores33); garantiria a
inamovibilidade dos defensores, mas obrigaria os mesmos à dedicação exclusiva
(impossibilitando o exercício concomitante da advocacia privada).
Em 1994, a Lei Complementar n.o 80 – ou Lei Orgânica Nacional da
Defensoria Pública – regulamentou diretrizes da Carta de 1988. Modificada pela
Lei Complementar n.o 98 de 1999, "veio organizar a Defensoria Pública da União,
do Distrito Federal e dos Territórios e prescrever normas gerais para sua
organização nos Estados" (GIANNAKOS, p. 142). Assim, consolidados os
princípios institucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional
(artigo 3o), foram estabelecidas prerrogativas do defensor público34, a exemplo do
prazo em dobro para contestar, da intimação pessoal em todos os atos do
processo, da manifestação por cotas nos autos e da dispensa de juntada de
mandato (artigo 128, incisos I, IX e XI). Publicada a Lei Complementar
necessária, impulsionou-se o movimento, por quase todo o Brasil, pela
31 "A função essencial exercida pela Defensoria Pública, Ministério Público e Advocacia-Geral da
União em relação à jurisdição consiste no fato de que a atuação dessa depende da provocação
daquelas instituições, ao lado da advocacia em geral." (JUNKES, op. cit., p. 80)
32 O vocábulo “universal” foi utilizado para expressar a presença irrestrita da Defensoria Pública
junto ao Estado brasileiro e aos cidadãos a quem os seus serviços devem fazer jus.
33 Interpretação reiterada por Alves, conforme quem “em pelo menos cinco dispositivos diferentes
da Constituição Federal, essas instituições e carreiras jurídicas são referidas de modo conjunto,
denotando o reconhecimento de que devem ser tratadas com total isonomia” (op. cit., p. 297).
34 "Aos defensores públicos são garantidas inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e
estabilidade, por força dos arts. 134, parágrafo único, 37, inciso XV, e 41, caput, respectivamente
da Constituição Federal." (BARBOSA, 1998, p. 75)
21
implementação da Defensoria Pública ou pelo ajuste de antigos serviços de
assistência judiciária aos novos preceitos legais (ALVES, p. 298).
Por "exercerem atribuições constitucionais, com plena liberdade funcional e
de acordo com prerrogativas e responsabilidades próprias" (MEIRELLES apud
JUNKES, p. 85), sem submissão ao regime jurídico único dos servidores públicos,
os defensores foram equiparados a agentes políticos do Estado pela Emenda
Constitucional n.o 41 de 200335. Quanto à autonomia funcional da instituição, a
Reforma do Judiciário, trazida pela Emenda Constitucional n.o 45, de 2004,
acabou (pelo menos, formalmente) com a vinculação estrita ao Poder Executivo.
O parágrafo 2o do artigo 134, introduzido na Lei Maior, explicitou:
Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia
funcional e administrativa e a iniciativa de sua propositura
orçamentária...
Porém, diante do progresso constitucional, Alves comentou a respeito de
incongruências todavia percebidas na prática:
Nota-se um grande descaso do poder público na adoção de
medidas necessárias para a plena atuação (das Defensorias
Públicas)... Falta-lhes visibilidade na arena política, pois os
destinatários dessas instituições são as parcelas marginalizadas
da sociedade, que - embora majoritárias em termos numéricos devido a sérias limitações de ordem cultural e educacional, não
têm consciência do efetivo poder de que dispõem num regime
democrático. E falta-lhes a visibilidade na arena jurídica, pois
ainda não se formulou uma elaboração teórica capaz de garantir o
reconhecimento de sua imprescindibilidade (p. 17-18).
o
35 Argumento (somado à redação do artigo 39, parágrafo 4 , da Constituição de 1988) usado em
defesa da aplicação do subsídio como forma de remunerar adequadamente os defensores
públicos - uma das principais reivindicações da categoria.
22
Por ocasião da Reforma do Judiciário, pela primeira vez, o governo
federal36 encabeçou uma tentativa de identificar, quantitativa e qualitativamente, a
realidade da Defensoria Pública no país. Os estudos-diagnósticos publicados em
2004 e 2006 possibilitaram o acompanhamento do cenário geral de evolução do
organismo brasileiro responsável por excelência pelo tema do acesso à justiça.
No II Diagnóstico, o presidente da Associação Nacional dos Defensores
Públicos (Anadep) em 2006, Leopoldo Portela Junior, constatou que, após os dois
anos que separaram as pesquisas, "depreende-se um pequeno avanço da
instituição em vários Estados" (p. 11). Das diferenças detectadas entre o quadro
inicial da Defensoria Pública, caracterizado pela "precariedade de sua estrutura,
incompatível com o tamanho e a importância de suas atribuições"37, e o mais
recente, recebeu destaque o surgimento do órgão em São Paulo e no Rio Grande
do Norte38.
Enviados questionários para todo o Brasil, e obtidas respostas de 25
unidades federativas39, foi possível delinear a dimensão do serviço: a cobertura
total alcançou 39,7% das comarcas e sessões judiciárias existentes. Longe de
atingir um grau de universalidade em face do seu público-alvo, o crescimento da
Defensoria Pública tampouco acompanhou o do Poder Judiciário no mesmo
período, porque, enquanto o número absoluto de comarcas atendidas pela
instituição aumentou em 19,9%, o de comarcas existentes foi ampliado em 27,2%.
Em seis Estados, a Defensoria Pública atendia a todas as comarcas, ao
passo que, em três, fazia-se presente em menos de 10% das regiões de
jurisdição. Essas diferenças deflagraram a seguinte regra: a assistência prestada
pelo órgão é menos abrangente nas unidades federativas com os piores
indicadores sociais.
Ainda em termos de comparação, o estudo verificou que o país contava
com 1,48 defensor público, 4,22 membros do Ministério Público e 7,7 juízes para
36 O trabalho de pesquisa e documentação foi realizado em parceria com a Associação Nacional
dos Defensores Públicos (Anadep), com suporte financeiro do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (Pnud).
37 Palavras do Secretário da Reforma do Judiciário, Pierpaolo Cruz Bottini. (BRASIL. Secretaria
da Reforma do Judiciário. op. cit., p. 09)
38 A média de idade da Defensoria Pública brasileira, em 2006 - ano da publicação do estudo -,
era de 11 anos. Destacou-se a mais antiga, do Rio de Janeiro, datada de 1954.
39 Na mesma introdução ao Diagnóstico, registrou-se a falta de envio do questionário aos Estados
de Santa Catarina e Goiás, visto que o primeiro não implantou Defensoria Pública, e o segundo
aprovou lei específica para a sua criação, mas não a concretizou (p. 21).
23
cada 100.000 habitantes. De 2004 a 2006, houve um incremento de 23,5% no
número de cargos de defensor público, resultando no total de 6.575. Mas somente
55% desse valor (ou 3.624 – três mil, seiscentos e vinte e quatro) correspondia a
postos de trabalho de fato preenchidos.
No quesito "estrutura orçamentária", o estudo concluiu: "as despesas
referentes à Defensoria Pública representam 0,24% das despesas totais dos
Estados" (p. 107). Os que menos investiram foram Paraíba, com 0,02%, Amapá e
Bahia, ambos com 0,04%. Do outro lado do espectro, Mato Grosso do Sul
destinou recursos equivalentes a 0,56% do seu orçamento, seguido por Rio
Grande do Sul e Roraima, com 0,5% cada.
Mais um dado referente às três instituições do sistema de justiça revelou
que, da média de R$ 85,80 gastos pelos Estados por habitante, 71,3% foram
destinados ao Poder Judiciário, 25,4% ao Ministério Público e só 3,3% à
Defensoria Pública – fatia irrisória diante do tamanho da camada populacional
merecedora de seu serviço: 70,86% dos brasileiros.
Responsável pela assistência jurídica no âmbito federal, a Defensoria
Pública da União restou sem a autonomia conferida pela Reforma do Judiciário à
instituição nos Estados. De acordo com o Relatório de Gestão da Defensoria
Pública-Geral da União (DPGU), em 2007, havia apenas 213 defensores públicos
da União em atividade no Brasil, concentrados em maior número nas regiões
Sudeste e Centro-Oeste (com 83 e 60 defensores atuantes, respectivamente)40.
Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
n.o 487, de 2005, que dispõe a respeito da autonomia da Defensoria Pública da
União.
2.3 A Defensoria Pública no Rio Grande do Sul
Na história da assistência jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, as
últimas décadas trouxeram mudanças importantes. Em 1965, por decreto, coube
à Consultoria-Geral do Estado adotar providências relativas à Divisão de
40 BRASIL. Ministério da Justiça. Defensoria Pública-Geral da União. Relatório de Gestão:
Exercício de 2007. Brasília. Disponível em: <http://www.dpu.gov.br/>. Acesso em: 6 mai. 2008.
24
Assistência Jurídica e os respectivos serviços de assistência judiciária cível, penal
e trabalhista, tanto na Capital quanto no Interior (GIANNAKOS, p. 150-151).
Mais tarde, em 1972, a atribuição passou a ser da Unidade de Assistência
Judiciária (ibidem), vinculada à Procuradoria-Geral do Estado (PGE), entidade do
Poder Executivo que tomaria sua forma atual somente em 197941. Nessa época,
foi criada a carreira de assistente judiciário. A função de defensor público
adquiriria feições próprias com a promulgação das Leis Complementares
estaduais n.o 10.194, de 1994 – que adequou a instituição prevista em 199142 aos
moldes constitucionais da Lei Orgânica Nacional – e n.o 11.795, de 2002, o
Estatuto da Defensoria Pública do Estado43.
A autonomia administrativa, funcional e orçamentária assegurada pela
Reforma do Judiciário, em 2004, chegou formalmente ao Rio Grande do Sul por
meio da Emenda à Constituição Estadual n.o 50, de 2005. A partir daí,
possibilitou-se a eleição do defensor público-geral pelo sistema de lista tríplice e
voto obrigatório e secreto de todos os membros da categoria para mandato de
dois anos com chance de uma recondução44.
De acordo com a primeira chefe institucional escolhida por esses critérios –
e reconduzida ao cargo em maio de 200845 –, Maria de Fátima Záchia Paludo, a
Defensoria Pública não tem conseguido promover assistência jurídica integral e
gratuita aos que dela dependem46 devido à sua estrutura deficitária, em
disparidade de condições com outras carreiras jurídicas públicas47. O grande
motivo da desvantagem seria “uma questão cultural”, ou axiológica:
41 RIO GRANDE DO SUL. Procuradoria-Geral do Estado. Breve Histórico da PGE-RS. Disponível
em: <http://www.pge.rs.gov.br/> Acesso em: 7 mai. 2008.
o
42 Na já referida Lei Complementar Estadual n. 9.230.
43 O primeiro concurso público para ingresso em classe inicial ocorreu em 1999. (GIANNAKOS,
op. cit., p. 152)
o
44 Artigo 120, parágrafo 1 , da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
Antes da alteração de 2005, o defensor público-geral era escolhido pelo governador entre
membros da carreira, sem a eleição prévia feita pelos defensores públicos, característica
limitadora da independência da instituição.
45
POSSE na Defensoria. Zero Hora, Porto Alegre, p. 11, 10 mai. 2008.
46 PALUDO, Maria de Fátima Záchia. Acesso à justiça e Defensoria Pública do Estado. Porto
Alegre, 18 abr. 2008. Entrevista concedida a Carolina Bojunga Carvalho.
47 RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado. Relatório Anual de Atividades. Porto
Alegre: 2007. Disponível em: <http://www.dpe.rs.gov.br/site/institucional_relatorio_anual.php>.
Acesso em: 16 abr. 2008.
25
A Defensoria Pública, como (é) até hoje, nunca foi valorizada. E
acredito que dificilmente será valorizada e fortalecida por aqueles
que devam fazer isso. Por quê? Por uma questão muito simples.
Nós não temos nenhuma força. O juiz tem a caneta, a sentença.
O promotor denuncia ou não denuncia. Eles têm a força da
caneta. Nós fazemos o que? Nós defendemos os pobres. E a
defesa do pobre é o acesso do pobre à justiça, (é) efetivamente
ele poder ter, em algum momento, nessa sociedade tão desigual,
alguma igualdade48.
Conforme a defensora-geral, o desequilíbrio entre os Estados acusador,
julgador e defensor49 dificulta o acesso à justiça, pois prejudica o principal serviço
destinado à população carente. Prova disso estaria na divisão de recursos
públicos. Semelhante à média de distribuição brasileira em 2005, os percentuais
do bolo orçamentário destinados a Tribunal de Justiça, Ministério Público e
Defensoria Pública gaúchos foram, respectivamente, em 2007: 71%, 25% e 4%50
51
. Mas essa desvalorização, segundo Maria de Fátima, também aconteceu dentro
da própria entidade em um episódio emblemático:
Em 1995, um ano depois (de criada a Defensoria Pública), eles
(do governo) fizeram um acordo com alguns colegas que tinham
saído, mas que tinham direitos do artigo 22 dos Atos e
Disposições (Constitucionais) Transitórias52. Era 97 o número
desses colegas... Firmaram um acordo, e foram criados 97 cargos
em extinção. Quer dizer, a um ano da criação, eles já me criaram
cargos em extinção... De 1997 até 2007, nesses dez anos, o
Judiciário e o Ministério Público criaram mais de 100 cargos. E
nós perdemos 62. Nós já éramos bem menos e perdemos 62
cargos... Então, eu digo: a impressão que me dá é que estão
brincando. Aí, conseguimos criar os 100 cargos, até para repor
esses 62, porque eu tenho mais até formar os 97 que vão embora.
48 PALUDO, op. cit.
49 Representados, respectivamente, por Ministério Público, Poder Judiciário e Defensoria Pública.
50 RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado. op. cit., p. 98.
51Os recursos da Defensoria Pública provêm do orçamento geral do Estado. Este é obrigado a
repassá-los, integralmente, por cotas mensais (duodécimos). Há, também, o Fundo de
Aparelhamento da Defensoria (Fadep), destinado a custeio e investimento, sendo composto por
honorários sucumbenciais, doações, contribuições, subvenções e auxílios (Idem, p. 88).
52 Artigo 22. É assegurado aos defensores públicos investidos na função até a data de instalação
da Assembléia Nacional Constituinte o direito de opção pela carreira, com a observância das
garantias e vedações previstas no art. 134, parágrafo único, da Constituição.
26
Em 2007, com 319 defensores atuantes53, a instituição esteve presente em
72% das comarcas do Estado, restando 34 regiões de jurisdição – e uma
quantidade ainda mais significativa de municípios – sem atendimento da
Defensoria Pública. A distribuição geográfica do quadro foi concentrada em Porto
Alegre, capital cujo contingente de defensores representou 38% do total.
"Nesse contexto, muitas vezes permanecem desassistidas justamente as
localidades em que é menor o Índice de Desenvolvimento Humano."54 Em
entrevista, a defensora-geral destacou os exemplos da metade sul do Estado e do
litoral, áreas quase "totalmente descobertas". Apesar de ainda longe da
universalidade desejada, desde 200355, houve algum avanço: 60 novos
defensores assumiram o cargo56, e outras 13 comarcas foram contempladas pela
assistência da Defensoria Pública.
Além de uma sobrecarga de trabalho, a ausência de suporte material
(diagnosticou-se, muitas vezes, inexistência de espaço físico adequado e
equipamentos de informática como impressoras) e humano (a instituição não
dispõe de servidores administrativos estruturados em carreira57) dificultou a rotina
dos defensores. Sobre conseqüências à atividade, a defensora-geral comentou:
Se eu tenho um excesso de trabalho, por maiores que sejam os
meus ideais,... a minha produção é massificada... Então, vamos
voltar para o início: nós precisamos do fortalecimento da
Defensoria, eu preciso de uma dotação orçamentária maior,... (de
um) número maior de defensores públicos...58
53 De acordo com a Coordenadoria Regional I, em abril e maio de 2008, o número, em função de
quatro aposentadorias, diminuíra para 315 defensores públicos em atividade no Rio Grande do
Sul.
54 RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado. op. cit., p. 95.
55 Dados obtidos a partir de comparação com números disponíveis em GIANNAKO, op. cit., p.
151-152. Conforme dados obtidos pelo autor, em 2003, havia 259 defensores ativos em 116
comarcas do Estado.
56 Registre-se que nem todos os defensores públicos que são nomeados e tomam posse
permanecem na atividade, segundo a Coordenadoria Regional I.
57 Em 2007, o quadro de apoio era composto por 46 cargos em comissão e 30 servidores
cedidos. (RIO GRANDE DO SUL, Defensoria Pública do Estado. op. cit., p. 97)
58 PALUDO, op. cit.
27
Em 2008, as reivindicações da classe ganharam espaço em meios de
comunicação, porque o projeto de lei para implementar o subsídio59 dos
defensores públicos não foi aprovado pelos Poderes Executivo e Legislativo
estaduais. Em protesto, de 04 de março a 28 de abril, o serviço permaneceu, pelo
menos parcialmente, paralisado. Calculou-se que, nesse espaço de tempo, cerca
de 2 mil pessoas deixaram de ser atendidas por dia60.
Contrária ao prolongamento da greve, em 16 de abril, a chefe institucional
ingressou,
junto
à
PGE,
com
ação
judicial
pela
declaração
de
inconstitucionalidade do afastamento de defensores públicos de seus postos de
trabalho61. Nove dias depois, integrantes da classe resolveram retomar a
normalidade do serviço.
A derrota do projeto de lei do subsídio, confirmada pela Assembléia
Legislativa, em 06 de março, foi ainda mais expressiva graças à vitória, no mesmo
âmbito, do Poder Judiciário e do Ministério Público que, com a remuneração
constitucional valendo a partir de 2009, exercerão vantagens maiores das já
existentes em relação à Defensoria Pública. A mudança deve significar, por
exemplo, que um promotor recém empossado obterá vencimento cerca de três
vezes superior ao de um defensor iniciante62.
A aquisição de bens como computadores, cadeiras e Internet (ainda a ser
instalada em todos os escritórios) deveram-se, em grande parte, a Termos de
Compromisso de Ajustamento de Conduta e parcerias com outras instituições,
como o próprio Poder Judiciário do Estado63.
Na esfera extrajudicial – sem a qual não se concretiza a noção de
assistência jurídica integral, conforme a Constituição de 1988 –, a Defensoria
Pública do Rio Grande do Sul desenvolveu projetos voltados à obtenção de
59 "Subsídio é uma modalidade de remuneração, fixada em parcela única, paga obrigatoriamente
aos detentores de mandato eletivo e aos demais agentes políticos." (MEIRELLES, 2004, p. 455)
60 DEFENSORES públicos do Rio Grande do Sul retomam atendimento. Zero Hora, Porto Alegre,
28 abr. 2008. Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=3506>. Acesso
em: 3 mai. 2008.
61 PGE pede ilegalidade da greve. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 2, 17 abr. 2008.
62 ASSEMBLÉIA mantém veto aos subsídios para os defensores públicos. Zero Hora, Porto
Alegre,
6
mar.
2008.
Disponível
em:
<http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&sectionPol%C3%ADtica&newsID=a1786856.xml>. Acesso em: 3 abr. 2008.
63 PALUDO. op. cit. Por meio de um acordo com o Poder Judiciário, a defensora-geral disse ter
garantido, a partir de 2008, a instalação de ao menos um ponto de Internet em cada escritório da
Defensoria Pública localizado nos Foros de Justiça do Estado.
28
exame de DNA gratuito, ao direito à moradia e à avaliação do sistema prisional64
– sem contar outros em fase de elaboração ou praticados isoladamente. Segundo
a defensora pública-geral, em abril de 2008, tentava-se conseguir incentivo do
Ministério da Justiça para a inauguração de um núcleo de mediação. Mas a chefe
institucional admitiu que, em Porto Alegre, na época, ainda não existia programa
de resolução de conflito externo ao sistema judicial.
3 ESTUDO DE CASO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA 1a VARA CÍVEL DO
FORO REGIONAL DA RESTINGA, COMARCA DE PORTO ALEGRE, RIO
GRANDE DO SUL
3.1 Sobre o bairro da Restinga
Associado à pobreza e à violência, mas também à cultura popular e a um
forte sentido de comunidade65, o bairro da Restinga é o maior da zona centro-sul
de Porto Alegre66: com extensão de 38,56 km2, representa 8,10% da área do
município67. Segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), no ano 2000, o local possuía 53.764 habitantes,
ou 3,94% da população da capital gaúcha. Do mesmo período, as informações de
que detinha taxa de analfabetismo de 6%, média de escolaridade de 6 anos e
rendimento médio de 3,6 salários mínimos68.
64 RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado. op. cit., p. 51, 59, 63.
65
Representação social do bairro reconhecida em estudo comparativo do conteúdo de dois jornais
populares, um de bairro, outro de grande circulação, em 2006. (DORNELLES, Beatriz; MODENA,
Sandra. Critérios de noticiabilidade distorcem a realidade de bairros que recebem cobertura da
imprensa diária. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 33, p. 97-105, ago. 2007. Disponível em:
<www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/33/beatriz.pdf>. Acesso em: 17 mai. 2008.)
66
PORTO ALEGRE. Secretaria do Planejamento Municipal. Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano
Ambiental.
Diferentes
caras
da
cidade.
Restinga.
Disponível
em:
<http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/default.php?reg=13&p_secao=46>. Acesso em: 15 mai.
2008.
67
OBSERVATÓRIO DA CIDADE DE PORTO ALEGRE. Restinga. Disponível em:
<http://www.observapoa.palegre.com.br/default.php?p_sistema=S&p_bairro=153> Acesso em: 16
mai. 2008.
68
Média de escolaridade e rendimento dos responsáveis por domicílio. De acordo com comentário
do Banco Estatístico, “o salário mínimo considerado para o cálculo é de R$ 151,00, valor em vigor
em agosto de 2000”. (OBSERVATÓRIO DA CIDADE DE PORTO ALEGRE. Banco Estatístico.
Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/observatorio/tpl_indicadores.php>. Acesso em:
17 mai. 2008.)
29
Dados recentes, porém, demonstraram que a Restinga, além de bairro dos
mais populosos, é o mais pobre da cidade. Conforme estimativa de 2006 feita
pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab) publicada no jornal Diário
Gaúcho, sua população seria de 130 mil habitantes69. Já pesquisa desenvolvida
em 2007 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) radiografou suas
principais necessidades70. No relatório do estudo, entre as 16 regiões do
Orçamento Participativo71 de Porto Alegre, a da Restinga obteve o mais alto
índice de “pobreza multidimensional”.
Por considerar não somente a falta de renda como ainda uma série de
indicadores do grau de autonomia das pessoas, o levantamento inovou ao
desvendar características das áreas pobres do município72. Nesse sentido, o
bairro apresentou “os maiores níveis de carência nas dimensões Saúde e
Trabalho e Renda, estando na segunda pior posição na dimensão Habitação”73.
3.2 A Defensoria Pública na 1a Vara Cível do Foro Regional da Restinga
Inaugurado em 1994, o Foro Regional da Restinga sempre abrangeu mais
que a área do bairro onde está localizado. Todavia, em 2005, ato74 do Conselho
da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado ampliou seus limites territoriais
para incluir quase toda a extensa região do extremo sul de Porto Alegre, na qual
estão bairros como Belém Novo, Belém Velho, Hípica, Lageado, Lami, Lomba do
Pinheiro e Ponta Grossa.
Ao Foro Regional da Restinga, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul
designou duas defensoras. São titulares Sonia Marina Abal Dias, atuante na
69
DORNELLES, op. cit., p. 98.
COMIM, Flávio V. et. al. Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Relatório sobre Indicadores de Pobreza Multidimensional e
Pobreza Extrema para Porto Alegre. Porto Alegre: 2007.
71
Praticado em Porto Alegre desde 1989, o Orçamento Participativo é um processo pelo qual a
população decide, de forma direta, sobre a aplicação de recursos de obras e serviços a serem
executados pela administração municipal. (PORTO ALEGRE. Orçamento Participativo.
Funcionamento
Geral.
Disponível
em:
<http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=15?>. Acesso em:17 mai. 2008.)
72
PESQUISA desvenda áreas pobres. Zero Hora, Porto Alegre, p. 39, 27 out. 2007.
73
COMIM, op. cit. p. 40-41.
74
o
RIO GRANDE DO SUL. Ato n. 42, de 16 de junho de 2005. Altera os limites territoriais dos
Foros Regionais da Restinga e Tristeza. Porto Alegre: Conselho da Magistratura, 2005.
70
30
esfera criminal, e Maria da Graça Favila Josino, responsável pelas matérias de
competência da 1a Vara Cível e do 8o Juizado Especial Cível75. Além disso, as
advogadas públicas obedecem a um regime de substituição mútua na
eventualidade de “colidência”76 ou impedimento.
Há 12 anos trabalhando na Restinga, Maria da Graça atende clientes
necessitados77 da única Vara Cível do lugar, composta de um juizado que aprecia
tanto causas cíveis propriamente ditas (a exemplo de ações que discutem posse,
propriedade ou direitos contratuais) quanto de família e sucessões. Depois do
aumento da abrangência territorial do Foro, o número de processos em tramitação
no cartório da 1a Vara Cível cresceu 40% em dois anos: de 3.471 expedientes,
em abril de 2006, passou a 4.848 em igual período de 200878. Segundo a oficial
escrevente Mariana Dreux Mariath, o volume é excessivo em relação à estrutura
disponibilizada pelo Poder Judiciário. Por isso, revelou, há projeto de instauração
de um segundo juizado na Vara Cível da Restinga, ainda neste ano, bem como de
reorganização do espaço útil do prédio do Foro Regional.
Dos quase cinco mil processos ativos no cartório da 1a Vara Cível, em abril,
pelo menos 1.152 eram de titularidade da defensora pública79. Enquanto 52% das
ações endereçadas ao referido juízo tratavam de direito de família, a quantidade
de causas dessa natureza sob a tutela da Defensoria Pública passava dos 90%,
conforme estimativa de Maria da Graça.
75
Durante a maior parte da paralisação da categoria, em março e abril de 2008, as defensoras
mantiveram a rotina usual de trabalho.
76
Ocorre quando, por exemplo, uma das defensoras já representa o autor da ação, mas o réu tem
direito de ser atendido pela Defensoria Pública. Como não pode haver o mesmo advogado para
partes contrárias, as defensoras assumem subsidiariamente o papel de procuradoras em matérias
das quais não são titulares.
77
Termo utilizado pela Constituição da República para definir quem, na prática, não tem
“condições financeiras de contratar advogado e pagar despesas de processo judicial sem prejuízo
do seu sustento e de sua família”. Ainda segundo a Defensoria Pública do Estado, “em geral são
atendidas pessoas que ganham menos de três salários mínimos ou até cinco salários mínimos
quando houver interesse de menores”. (RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado.
Perguntas e respostas freqüentes. Disponível em:
<http://www.dpe.rs.gov.br/site/faq.php>. Acesso em: 18 mai. 2008.)
78
a
Informação do cartório da 1 Vara Cível do Foro Regional da Restinga, Comarca de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul.
79
Dado obtido em consulta realizada pela oficial escrevente Mariana Dreux Mariath ao Sistema
Themis (desenvolvido pelo Poder Judiciário gaucho para informatizar as atividades a cargo do
magistrado) em 08 de maio de 2008. Havia ações atribuídas à defensora pública ainda sem
registro.
31
São questões pontuais em torno do desemprego, da separação e
do pedido de alimentos. E a área cível também é bastante
sintomática... É (sobretudo) reintegração de posse, falta de
pagamento... A família se desestrutura e também (há) a questão
da moradia. Depois, eu devo ter uns três ou quatro processos
sobre discussão de contrato bancário...80.
A defensora estabeleceu uma rotina de atendimento distinta da
normalmente adotada pela instituição em outros foros regionais. Em vez de
receber o público para consulta e encaminhamento processual duas ou três vezes
na semana, Maria da Graça instituiu o serviço de segunda-feira à quinta-feira.
Nessas quatro oportunidades de contato com a advogada pública, o horário
também é diferente: ela costuma chegar entre 7h30min e 7h45min, fazer sozinha
a entrega das senhas e logo começar a conversar com os clientes.
Sem contar as dez fichas diárias, o atendimento inclui o retorno dos que,
tendo obtido senha em ocasião anterior, restaram com pendências, como a
decorrente da impossibilidade de ter acesso aos autos do processo por estarem
conclusos para despacho da juíza. Nessas hipóteses, Maria da Graça autoriza por
escrito a continuação do serviço noutra data, sem a necessidade de se enfrentar
a fila. À relação rotineira de assistidos, somam-se ainda réus com prazo para
contestação quase findo. Para esses, a advogada logo peticiona ao juízo,
informando sobre a representação pela Defensoria Pública e exercício do direito
do prazo em dobro.
Com esse ritmo, de 8 de abril a 8 de maio de 2008, a média de
atendimento na Restinga foi de 12 pessoas por manhã. Os nomes de todos são
registrados em livro específico pela defensora ou pela estagiária81. Às tardes,
Maria da Graça participa de audiências judiciais (em média, 18 na semana), e às
noites de segunda-feira e quarta-feira, de audiências do Juizado Especial Cível.
Ela reserva o dia de sexta-feira para casos de urgência ou que precisam de
atenção diferenciada, a exemplo do uso privativo da sala cuja porta costuma
80
a
JOSINO, Maria da Graça Favila. Defensoria Pública na 1 Vara Cível do Foro Regional da
Restinga, Comarca de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 8, 13 e 16 mai. 2008.
Registro da fala da defensora pública concedido a Carolina Bojunga Carvalho.
81
Durante a realização do presente estudo de caso, a defensora pública estava sem estagiário
a
forense em seu escritório. Mas, nesse período, a estagiária da Defensoria na 1 Vara Criminal do
Foro Regional da Restinga foi cedida para ajudar, exercendo a função.
32
permanecer aberta no horário de atendimento. Ademais, é então a chance de,
com mais calma, acompanhar e impulsionar os processos.
Quanto à qualidade do serviço prestado em meio a uma agenda tão
movimentada, a defensora pública admitiu ser “humanamente impossível” manter
o nível desejado em todas as tarefas. A maior carência da Defensoria Pública, na
sua opinião, é de “material humano”: “o ideal seria termos, pelo menos, três
defensores a mais”82 na Restinga.
Em relação aos equipamentos disponíveis, no escritório localizado no
andar térreo do Foro Regional83, os últimos meses trouxeram melhorias. Depois
de anos com o mesmo computador, sem capacidade para uso de CD ou Internet,
Maria da Graça recebeu uma máquina mais atualizada no final de 2007. A
impressora matricial, que com freqüência exigia cuidados redobrados – e
conseqüente perda de tempo – devido ao seu sistema de alimentação de papel,
foi substituída por uma moderna no dia 5 de maio de 200884. Porém, até a
conclusão deste artigo, o local não estava conectado à rede mundial de
computadores.
Questionada sobre a situação na Restinga, a defensora pública-geral,
Maria de Fátima Záchia Paludo, admitiu:
Está ruim. A Restinga comportaria, mas, sem sombra de dúvida,
no mínimo, mais um defensor. Mas é que as áreas de Porto
Alegre, elas são bem mais servidas do que o Interior... Há outras
alternativas para quem quer ser atendido. Tu podes ir no Saju
(Serviço de Assistência Jurídica) na UFRGS, tu podes ir na PUC,
na UniRitter... Então, existe aonde escapar.85.
82
JOSINO, op. cit.
Espaço cedido pelo Poder Judiciário em acordo com a instituição. A Defensora Pública-Geral,
Maria de Fátima Záchia Paludo, comentou a respeito: “se o juiz não me deixar no Foro, eu fecho o
escritório naquela comarca e vou para outra. E, com isso, nós temos conseguido ficar”. (PALUDO,
op. cit.)
84
Durante pelo menos seis meses de 2007, em razão de problemas técnicos na impressora
matricial da Defensoria Pública, a defensora utilizou equipamento próprio até este não mais
funcionar, quando, depois de alguns dias, a impressora matricial foi devolvida ao escritório da
Restinga.
85
PALUDO, op. cit.
83
33
De fato, no Foro Regional, existe um posto de assistência jurídica gratuita
do Centro Universitário Ritter dos Reis (Sajuir) no qual estudantes de Direito e
advogados atuam em causas de família86. A alternativa demonstra-se relevante,
especialmente, àqueles que não querem ou não podem deslocar-se até o centro
da cidade para dar início a uma ação judicial. Quando recorrem à Defensoria
Pública, a primeira consulta tem de ser feita na Unidade Central de Atendimento e
Ajuizamento (UCAA). Produzida por defensores públicos na sede, a petição inicial
é distribuída por malote ao escritório do Foro competente87.
Em face da escassez de recursos, a defensora-geral revelou como
seleciona o local a destinar novos defensores. Segundo Maria de Fátima, junto à
tentativa de reforçar serviços já existentes, busca-se contemplar regiões mais
pobres, tendo em conta o número de processos em andamento na área de
jurisdição, bem como a quantidade de juízes e promotores presentes. Considerase, também, reivindicações diretas por parte de defensores sobrecarregados.
Portanto, o foco recai sobre a maior demanda social aparente, o desequilíbrio na
proporção de agentes das três carreiras jurídicas e a manifestação expressa de
necessidade da categoria.
A título de ilustração, os números de processos ativos nas Varas Cíveis e
de Família e Sucessões de Restinga, Tristeza e Alto Petrópolis88, ao final do
primeiro bimestre de 2008, foram: 4.928 (1a Vara Cível do Foro Regional da
Restinga); 4.129 (Vara de Família e Sucessões do Foro Regional da Tristeza) e
11.157 (Vara Cível do Foro Regional da Tristeza); 3.491 (Vara de Família e
Sucessões do Foro Regional de Alto Petrópolis) e 8.889 (Vara Cível do Foro
Regional de Alto Petrópolis)89.
86
É bastante comum, pois, que, de um lado da juíza, esteja um representado pela Defensoria
Pública e, de outro, um do Sajuir.
87
A defensora pública Maria da Graça Favila Josino disse abrir exceção ao sistema de
ajuizamento através da equipe da sede central e produzir ela própria a petição inicial em casos de
internação compulsória, principalmente, ligados à drogadição. (JOSINO, op. cit.)
88
As Varas Cíveis e de Família e Sucessões da Tristeza e de Alto Petrópolis foram escolhidas
entre os Foros Regionais da Comarca de Porto Alegre para a comparação, porque a da primeira
região também abrange a zona sul da cidade, e a da segunda compõe outro dos pontos mais
pobres da capital.
89
RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Corregedoria-Geral de Justiça. Sistema de
Acompanhamento Virtual: Período: 01/01/2008 a 29/02/2008. Porto Alegre: 2008. Tabela fornecida
pelo defensor público coordenador Regional I, Nilton Leonel Arnecke Maria.
34
Tanto na Tristeza quanto em Alto Petrópolis há três defensores públicos
para cobrir as matérias cível e de família90. Apesar de a diferença no volume de
processos ser significativa entre Restinga e os demais foros em vista, o trabalho
de contato com o público na Defensoria não seguiu a mesma proporção. Em
novembro de 200791, os atendimentos realizados totalizaram 190, na Restinga,
220, na Tristeza, e 308 em Alto Petrópolis92.
Sobre se entende haver resistência da população a recorrer ao serviço, a
defensora pública da Vara Cível da Restinga afirmou:
A Defensoria, como meio de acesso (à justiça), é a última
instância dessas pessoas. Eles (do público) resistem, sim. É
complicado. Muitas vezes sentem-se diminuídos, porque é o caos
interno junto com o caos (de fora)...93
3.2.1 Sobre os atendimentos observados
Em 13 de maio de 2008, acompanhamos o atendimento ao público
prestado pela defensora Maria da Graça no Foro Regional da Restinga. Nessa
manhã, sem o auxílio de estagiário, atendeu 14 clientes; 10 devido à entrega de
fichas, três por apresentarem autorização de retorno e um com prazo quase
vencido para contestar ação de alimentos94.
Como era terça-feira, mesmo dia em que o posto do Sajuir recebe
interessados em ingressar com ação judicial, às 7h já não havia lugar para sentar
no saguão do Foro95. Passados 45 minutos, a defensora pública chegou,
distribuiu as senhas para consulta, preparou o café servido em sua sala e iniciou
90
Dado atualizado pela secretaria da Coordenadoria Regional I da Defensoria Pública do Estado
em 19 mai. 2008.
91
Ultimo mês registrado por inteiro sem ocorrência de férias forenses, férias de verão ou greve.
92
De acordo com a secretaria da Coordenadoria Regional I da Defensoria Pública do Estado em
19 mai. 2008.
93
JOSINO, op. cit.
94
Alguns atendimentos de pessoas com autorização para retorno acabam acontecendo no
corredor do Foro, sobretudo, se ainda não é possível ter acesso aos autos do processo.
95
Houve confusão nas filas dos dois serviços de assistência jurídica gratuita. Para alguns clientes,
não estava clara a diferença entre ambos.
35
o atendimento da cliente número um (cujo marido começou a formar a fila em
frente ao edifício por volta das 4h). A essa altura, eram 8h20min.
Na maior parte, moradores do bairro da Restinga, as dez pessoas que
conseguiram ficha tinham, em média, de 49 anos de idade. Homens e mulheres
estavam em igual número. Dos casos tratados, sete enquadravam-se no âmbito
do direito de família e sucessões. Destes, quatro referiam-se a alimentos para
filhos, um, à guarda de criança, outro, a processo de inventário e um último, à
interdição.
Da área cível, um problema dizia respeito a contrato de compra e venda de
imóvel, e outro, a despejo por falta de pagamento. Havia um pedido de
informações sobre direito a benefício previdenciário do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS). A cliente, então, foi orientada (munida de endereço e
número de telefone) a dirigir-se à Defensoria Pública da União.
Como de costume, a advogada chamou à sua sala três clientes por vez.
Assim, a medida não só otimizou o tempo dedicado às pessoas (pois não houve o
deslocamento necessário para convocar uma por uma), como também gerou uma
circunstância peculiar. De acordo com Maria da Graça,
Nós vivenciamos, num caráter informal, uma terapia comunitária.
É impressionante, porque eles ficam algum tempo na fila,
esperando e conversando, interagindo. Daqui a um pouco, uma
diz: “eu não te disse que era assim?” E uma passa a experiência
para a outra. Então, é uma troca96.
Profissional e clientes mantiveram a formalidade através dos pronomes de
tratamento “doutora”, “senhor” e “senhora”, mas não raro – sobretudo Maria da
Graça – trocavam-nos por expressões como “guria” e “meu amor”. Sobre seu
estilo, a advogada comentou:
Eu procuro, na medida do possível, também levar um certo humor
aos meus clientes. Não que eu fique diminuindo o problema, mas,
96
JOSINO, op. cit.
36
pelo menos, que (o cliente) chegue lá e que a coisa não seja tão
horrível, não é?97.
Das cinco pessoas na Defensoria Pública pela primeira vez, três relataram
ter aguardado anos até procurar a instituição. “Faz tempo que eu tenho vontade
de vir, mas eu esperava que a situação se revertesse”, explicou Leonir Menezes,
de 46 anos, a primeira a chegar na fila daquele dia.
Na manhã de atendimento observada, Altair da Luz, de 44 anos, com a
ficha número nove, contou ter trabalhado na construção do prédio do Foro
Regional no início dos anos 1990. Desde essa época, disse, “a Restinga mudou
bastante, virou uma cidade”. Réu em ação de despejo por falta de pagamento de
aluguel de R$ 200,00, mostrou fotografias impressas em folhas tamanho A4 do
estado de sua casa ao ser atingida por uma enchente no bairro Hípica.
Depois de avaliar também a petição inicial, o respectivo contrato e
conversar com o cliente, a defensora falou dos efeitos da inadimplência. Na
situação apresentada, somente seria possível pedir um prazo para a
desocupação do imóvel. Não convencido, ele continuou: “eu não entendo de lei,
mas será que vendo isso (as fotografias) tem chance de o juiz me dar (o direito de
permanecer na residência)? A dona já tem outras três casas.” Após mais alguns
esclarecimentos, preenchido e assinado o termo de declaração de pobreza para
representação pela Defensoria Pública, a advogada sugeriu que controlasse as
informações do processo, buscasse “organizar a vida” e não ultrapassasse os 30
dias solicitados para sair da casa.
Poucos minutos antes de ser atendido, enquanto a defensora retirava
processos em carga no cartório da 1a Vara Cível, o mesmo cliente comentara aos
outros na sala (que ainda riam de uma piada contada por Maria da Graça): “ela
faz jus ao nome”. Na opinião de Altair, familiarizado com questões de direito do
trabalho, “devia ter mais gente prestando esse serviço”.
Motivadas pela constatação, as pessoas manifestaram-se da seguinte
forma: “eles fizeram aquele referendo, não é, sobre as armas, deviam fazer um
sobre isso”, “e se a gente fizesse um abaixo-assinado? Imagina quantas
97
JOSINO, op. cit.
37
assinaturas, imagina”. Porém os clientes concluíram que não “saberiam bem o
que fazer” para demonstrar a vontade de ver mais defensores atuando.
Na prática, a “confusão” do dia-a-dia no escritório, conforme descreveu a
própria defensora pública, torna-se difícil “principalmente por causa do horário de
atendimento do cartório”98 da Vara Cível onde atua. Além da falta de estagiário no
momento, um dos maiores entraves à agilidade na prestação do serviço está no
fato de somente poder ter acesso aos autos dos processos no período das
10h30min às 11h30min.
É uma falta de sensibilidade, porque, à tarde, eu não posso fazer
atendimento, é quando eu tenho audiência. E eu tenho a
necessidade de olhar os processos. Gosto que os clientes leiam
comigo para que tenham autonomia e olhem sozinhos os
processos no cartório... Tenho uma hora para isso e ainda fico na
fila com os outros99.
Portanto, algumas pessoas, na porta do Foro antes das 7h e atendidas
pela advogada entre 8h30min e 9h30min, tiveram de voltar às 10h30min para,
daí, continuar o acompanhamento de sua ação judicial. Nessa manhã, a
defensora pública redigiu e assinou pelo menos duas petições ao juízo cujas
cópias foram entregues, como de praxe, aos respectivos interessados.
Em 13 de maio de 2008, o atendimento da Defensoria Pública na 1a Vara
Cível do Foro Regional da Restinga terminou às 12h30min.
3.2.2 Contato com a comunidade
No âmbito extrajudicial, a Defensoria Pública na 1a Vara Cível do Foro
Regional da Restinga trabalha “num percentual não muito expressivo”, segundo
Maria da Graça. O projeto “Exame de DNA: uma prova de amor e respeito”
tornou-se o instrumento mais utilizado pela defensora pública para a solução de
conflitos sem a interferência do Poder Judiciário.
98
99
JOSINO, op. cit.
Ibidem.
38
Em casos de investigação de paternidade, se a pessoa quiser, por
exemplo, chamamos o suposto pai para conversar. Eles assinam
um termo de responsabilidade... Pela estrutura da Defensoria, o
exame leva cerca de quatro meses. Pelo Judiciário, demoraria
muito mais...100
De acordo com o relatório de atividades da Defensoria Pública do Estado,
em 2007, a iniciativa – fruto de parceria com o Poder Judiciário e a Fundação
Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS) –
reservou uma cota
mensal de 150 exames de DNA (a R$ 370,00 cada) à instituição. Nesse ano, 1/3
dos exames da Defensoria corresponderam a acordos extrajudiciais. A previsão
para 2008 era de redução dos custos e ampliação da cota para 266 exames101.
Além de aproveitar o projeto, a advogada disse intermediar outras
conciliações, em especial, entre cônjuges pensando na separação. Diante do
tamanho da demanda e da quantidade de compromissos assumidos, como as
audiências judiciais, admitiu ocorrer “infelizmente, apenas quando é possível”.
No entanto, a comunidade e outros servidores públicos – em contato com a
defensora há anos102 – permitem que, diversas vezes, uma saída aos problemas
levados ao seu escritório seja encontrada em conjunto. Com freqüência, tem de
tratar ao telefone com um médico do posto de saúde ou um conselheiro tutelar da
região, durante o atendimento, a fim de encaminhar clientes envolvidos por
circunstâncias não apenas jurídicas.
Acompanhamos parte dessa relação da advogada com outros atores
sociais da Restinga na tarde do mesmo dia 13 de maio de 2008. Na ocasião,
Maria da Graça não havia sido convocada a audiências no Foro, mas, sim, a duas
reuniões externas. A primeira, por convite de equipe de psicólogos ligada à
organização não-governamental Instituto de Acesso à Justiça (IAJ), e a segunda,
por novos conselheiros tutelares da Microrregião 7.
Numa sala de aula de escola do bairro, responsáveis pelo projeto “Defesa
Ampliada” do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do IAJ
100
Ibidem.
RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública do Estado. Relatório Anual de Atividades. op. cit. p.
51-54.
102
Sua popularidade no bairro pareceu ser confirmada pelos leitores do jornal comunitário “O
Noticiário” que, nos últimos quatro anos, elegeram-na melhor profissional na categoria advogado.
101
39
marcaram um encontro com participantes locais do Programa Municipal de
Execução de Medidas Sócio-Educativas em Meio Aberto (Pemse). A intenção era
aproximar os profissionais, formando uma rede de apoio e troca de informações
sobre os adolescentes prestadores de serviço à comunidade.
Há cerca de dois anos, a defensora pública recebe, através do Pemse,
adolescentes para trabalho em seu escritório. Atualmente, dois jovens – cada um
em uma manhã da semana –, ajudam-na a fazer fotocópias, protocolar petições e
tirar informações processuais no Foro Regional. Pela primeira vez, Maria da
Graça partilhou essa experiência com outros aplicadores do programa:
A gente não pode desistir (do adolescente) de início. A autoestima, muitas vezes, é muito lá embaixo. Então, a gente usa
recursos que não jurídicos, a maternidade, a intuição, porque o
importante não é (o adolescente) fazer o serviço em si, levar a
petição e tal, é absorver as experiências dos outros, que é a
repetição da vida... E termina ele também se habituando à nossa
linguagem (jurídica), que também é uma forma de aprendizado103.
No novo prédio do Conselho Tutelar, na Restinga, três conselheiros
quiseram tirar dúvidas a respeito do atendimento da Defensoria Pública e de
temas de direito. Então, a advogada falou sobre o funcionamento institucional e
respondeu a perguntas, por exemplo, sobre documentos necessários para ajuizar
pedido de internação compulsória, hipóteses de cabimento de medida de busca e
apreensão de pessoas ou coisas e, inclusive, onde registrar ocorrência de
violência doméstica.
Quanto a causas que unem moradores da região da Restinga, em
entrevista posterior104, Maria da Graça afirmou ter presenciado “grandes lições de
comunidade” em torno de temas como moradia, consumo de leite e,
recentemente, abuso de drogas. Apesar da proximidade da população, a
defensora pública contou ainda não ter tido chance de representar direitos
coletivos por meio da ação civil pública.
103
104
JOSINO, op. cit.
Ibidem.
40
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento deste estudo, ao compilar trajetória e aplicação das
noções de cidadania, acesso à justiça e assistência jurídica integral e levantar um
quadro sobre a realidade da Defensoria Pública – desde o pais até um bairro –,
possibilitou a confirmação de sua hipótese propulsora. A observação das diversas
fontes consultadas permitiu concluir que o órgão essencial à justiça no Brasil, na
maioria das vezes, não atua sequer com capacidade mínima para cumprir o seu
dever constitucional.
Na base dessa constatação, há mais que números para demonstrar uma
realidade. Sem contar o peso das estatísticas referentes, por exemplo, ao
percentual médio dos orçamentos dos Estados destinado à instituição (0,24%) e à
quantidade de brasileiros alvo do serviço (pelo menos 70%), valem acima de tudo
as vozes – registradas em documentos ou observadas e captadas diretamente –
de chefe institucional, pensadores, profissionais, meios de comunicação e
cidadãos atendidos pelo sistema.
Apesar de certos avanços, como a autonomia – pelo menos formal –
proporcionada pela Reforma do Judiciário e a inclusão recente de Estado da
magnitude São Paulo no rol de unidades federativas dotadas de uma Defensoria
Pública, o meio de concretização da pretendida assistência jurídica integral ainda
hoje pode ser descrito por palavras usadas há mais de vinte anos. Entendemos
que o fato de todavia existir o “abismo” entre o preceito legal e a vida do povo,
denunciado por Calmon de Passos em 1985, decorre de uma postura política
tendente a manter a marginalização na sociedade.
Os termos “tendência” e “manutenção” revelaram-se particularmente
apropriados quando nos deparamos com a dificuldade histórica. O país não
consegue acompanhar seus progressos legislativos e deixar um estágio
correspondente tanto à fase de luta pela efetividade de direitos civis na Europa
dos séculos XVIII e XIX quanto à primeira “onda” do Movimento Universal de
Acesso à Justiça. Para ilustrar a perspectiva, utilizaremos o caso escolhido para
análise, o da Defensoria Pública na 1a Vara Cível do Foro Regional da Restinga,
Comarca de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
41
Na linha defendida por Santos, conforme a qual a questão do acesso
estabelece um vínculo estreito entre processo civil e justiça, igualdade jurídicoformal e desigualdade socioeconômica, acompanhamos o atendimento de causas
cíveis e de família pela Defensoria Pública na região da capital gaúcha destacada
pela pobreza. Num lugar onde os problemas envolvendo a estrutura familiar
exigem quase toda a atenção disponibilizada pela defensora pública, dúvidas e
entraves na afirmação dos direitos de posse e propriedade, por exemplo, são
constantes.
Mas, no degrau básico na evolução da cidadania, além dessa espécie de
demanda relativa à liberdade individual, conforme Marshall, está o próprio direito
de acesso à justiça, condição ainda longe de ser satisfatoriamente verificada no
Brasil ou na Restinga. No Foro Regional, a “igualdade de armas” mencionada por
Cappelletti e Garth inexiste até na hora de se ter acesso ágil aos autos dos
respectivos processos judiciais. Basta elencar os fatores de equipe mínima,
ausência de Internet e horário reduzido do cartório para calcular o prejuízo.
Na Restinga, os obstáculos à efetividade do direito realçaram o seu caráter
de periferia social. Antes de discorrermos a respeito, porém, repetimos que, no
pais, compreendemos haver sobretudo percalços típicos da fase da “assistência
judiciária aos pobres”, ou seja, da primeira “onda” do movimento identificado pelo
Projeto Florença.
Quanto à barreira monetária, o instituto da justiça gratuita desempenha um
papel fundamental ao acesso possível. Portanto, no caso estudado, o preço
elevado não decorreu das custas judiciais, honorários advocatícios ou de
sucumbência, mas, especificamente, do tempo gasto para ser atendido. Mesmo
com o esforço patente da defensora em compensar as circunstâncias precárias
do serviço, o público suportou horas de espera (e de ausência no trabalho) na
manhã e na madrugada.
Uma dificuldade não menos relevante, a “capacidade jurídica pessoal” –
aptidão para reivindicar, de forma efetiva, um direito – demonstrou ter seus
pressupostos longe do alcance da maior parte dos clientes da Defensoria Pública
analisados. Primeiro, a falta de informação qualificada revelou-se não só em
perguntas acerca de direitos, mas também no desconhecimento da função do
próprio órgão estatal, como evidenciado num momento de confusão nas filas para
atendimento da Defensoria Pública e do posto do Centro Universitário no lugar.
42
Durante as consultas, um dos casos pareceu especialmente significativo:
ao admitir não entender de leis, mas, de qualquer forma, esperar o deferimento de
seu pedido pelo juízo (para permanecer em casa alugada, sem o pagamento de
aluguel), um cliente confirmou manter uma distância da norma posta, trazendo à
tona, contudo, uma idéia aproximada de um conceito amplo de justiça social (pois,
parecia-lhe justo poder ocupar um bem imóvel danificado de propriedade de
alguém que possuía vários). A possível desilusão provocada pelo primeiro
encontro “formal” com o direito civil, talvez, tenha intensificado no sujeito a
sensação de desconfiança mencionada por Santos e Alfonsin.
Então, deparamo-nos com o outro pressuposto da capacidade jurídica
pessoal: a disposição psicológica necessária para recorrer à justiça, que foi
observada por meio das declarações de clientes e bem sintetizada pela descrição
da defensora. Ao resistir ao contato com a Defensoria Pública ou o Poder
Judiciário, a maioria deixou transparecer o desconforto de quem, segundo a
advogada, “sente-se diminuído” ao ter de juntar o “caos de dentro” com o “caos de
fora” na resolução de um conflito.
E o contexto por vezes caótico do dia-a-dia do escritório, imposto pela falta
de recursos humanos e materiais, ainda impede a atuação na defesa de direitos
coletivos – uma terceira espécie de obstáculo ao acesso à justiça elencada por
Cappelletti e Garth. Se a representação de interesses difusos ou de um grupo de
pessoas depende, em grande parte, da iniciativa da sociedade civil, a Defensoria
Pública poderia ser – dentro do espectro da assistência jurídica integral –, no
mínimo, um ponto de disseminação de informações, uma força agregadora ou
orientadora de agentes sociais (a exemplo das experiências positivas dos offices
americanos). Porém a realidade estudada revelou – não obstante o contato da
defensora pública com outros atores, a exemplo de conselheiros tutelares e
psicólogos – ainda não ter sido possível uma atividade dessa abrangência ou um
tipo de postulação coletiva. Os clientes da Restinga são, antes de mais nada,
individuais.
Percebemos, ainda, que, assim como as histórias da cidadania e do
acesso à justiça, a aplicação das “ondas” do referido movimento na realidade
brasileira não ocorre de maneira linear e excludente. Mesmo de forma tímida, a
terceira onda, com o seu “novo enfoque”, já produz benefícios inclusive em
iniciativas aparentemente banais, como a troca de experiências na comunidade
43
entre profissionais de áreas distintas. Das atividades no ramo da assistência
extrajudicial, a consultoria e o aconselhamento foram as mais verificadas na
Restinga, porque podem ser agregadas à rotina de atendimento. Constatamos a
menor ocorrência da prevenção e da informação, a partir de ações com esses
objetivos específicos, devido especialmente à sobrecarga suportada no escritório.
Assim, a busca por meios alternativos de resolução de litígios, ou, pelo
menos, de aproximação da realidade social, acaba dependendo da vontade e do
engajamento do advogado que entende a relevância de seu papel. O caso da
defensora pública da Restinga é um exemplo de como, na ponta, para fazer
alguma diferença, o sistema como está pode acabar exigindo da própria
personalidade do agente político, da força de sua vocação e identidade pessoal
no enfrentamento de adversidades profundas a cada dia.
No mundo concreto em torno da advogada, a mistura da posição de
formalidade, representante do Estado e da lei, com a postura afetiva e, por vezes,
até “maternal” – mas não tanto condescendente – denota a complexidade do
trabalho de atendimento. Daí, mais um motivo para o reconhecimento positivo de
um olhar humanista e envolvido, espontaneamente sensível à dignidade da
pessoa humana e à sua demanda por autonomia.
Portanto, a condição de agente político e a liberdade funcional
conseqüente são fundamentais nesse intuito. Mas, na contramão das previsões
constitucionais, a falta de valorização do órgão essencial à justiça, além de
significar o descaso de governantes, atores políticos influentes e, em última
instância, da própria sociedade, carrega, ao que parece, resquícios da idéia de
que a assistência jurídica integral é caridade. Nesse sentido, a razão diria que ser
“advogado dos pobres”, como no Rio de Janeiro do século XIX, no fundo, equivale
a assumir uma obrigação moral ou profissional, logo, não merecedora de maior
remuneração.
Ao expor as reivindicações da Defensoria Pública no Rio Grande do Sul, a
defensora pública-geral, em entrevista, traçou a título de principais necessidades
exatamente os requisitos apresentados pelos coordenadores do Projeto Florença:
maior número de advogados, dotação orçamentária substancial e vencimentos
adequados. Sinal de que, de fato, ao serviço não é dada a prioridade mínima. Se
a sua presença na Carta Magna de 1988 tivesse sido fruto da ação de
movimentos sociais legítimos, e não da própria corporação, talvez o órgão fosse
44
hoje mais capaz de demonstrar representatividade popular e força política em
momentos decisivos.
Nesse sentido, compreendemos que, até serem fortalecidas a democracia
e a noção de comunidade, a partir da qual as obrigações tornam-se mais
horizontais e os sujeitos, autônomos, a Defensoria Pública poderá continuar
disponibilizando – quando presente – um atendimento mais pobre para os mais
pobres. Em uma distorção decorrente também da escassez de recursos, o Foro
Regional da Restinga acabou preterido justamente por ter profissional cuja
produtividade quantitativa é além do comum e por merecer acesso a outra
possibilidade de assistência gratuita.
Este trabalho ainda permitiu concluir que a Defensoria Pública insuficiente,
incapaz de concretizar princípios pilares da assistência jurídica integral, reflete
desconsideração do direito humano essencial: o “direito a ter direitos”.
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