Panorama actual do sigilo bancário Banco de Portugal Maria Célia Ramos Praia, 24 de Setembro 2010 A protecção contratual do sigilo • Em qualquer sistema financeiro regido pelo direito está garantido por via contratual, expressa ou tacitamente, o dever de as i.c. apenas utilizarem os fundos e as informações fornecidas pelos clientes para os fins do contrato celebrado entre o cliente e a instituição sendo vedada a revelação a terceiros dessas informações recebidas ou conhecidas no exercício das funções (Núcleo essencial do dever sigilo). A protecção contratual do sigilo • Este dever de reserva ou sigilo quando não está • expressamente previsto no contrato celebrado com a i.c. deriva do princípio da boa-fé e da confiança que une as partes, quer nos preliminares e na preparação do contrato (responsabilidade pré-contratual - Artº 227 do Código Civil) quer durante a sua manutenção (Artº 762º do mesmo Código). Já se afigura mais difícil a sua fundamentação jurídica obrigacional depois de o contrato terminar, quando não haja uma obrigação expressa no contrato nesse sentido. Em nosso entender, no direito português, ainda existe um dever de reserva derivado de princípio da confiança e da boa-fé. A protecção contratual do sigilo • Quando o cliente fornece os seus dados informativos e os seus fundos à i.c. fá-lo confiadamente a um profissional e para obter uma certa finalidade contratual, e apenas na medida proporcional e necessária, para conseguir esse resultado contratual e esperando, com boa fé, que a confiança seja preservada. • Logo, qualquer outra utilização que a i.c. venha a dar a esses dados informativos, sem o acordo do cliente, mesmo depois de o contrato ter terminado, desrespeita o princípio da confiança e da boa-fé e deverá considerar-se ilícita. A protecção contratual do sigilo • A obrigação contratual apenas vincula a i.c. e o cliente não vinculando terceiros (res inter alios acta). • Cedo porém os Estados sentiram a necessidade de reforçar legalmente este dever contratual e de o estender protegendo os fundos e as informações detidas pelas i.c. de utilizações abusivas e de olhares indiscretos de terceiros, privados ou públicos, que pudessem vir a ter conhecimento dessas aplicações ou informações. As bases de dados das instituições de crédito • A massificação das relações bancárias nos países • desenvolvidos, onde todos têm, pelo menos, uma conta bancária, e onde a moeda papel é cada vez mais residual e se torna impossível viver sem usar moeda electrónica, determina que as i.c. mantenham registo de todos os movimentos de natureza monetária e financeira do cliente (o registo praticamente completo da vida do cliente). As i.c. mantém e gerem gigantescas bases de dados conhecendo a vida dos seus clientes melhor do que qualquer entidade pública. Daí a importância fundamental da integridade e da ética na sua administração e gestão. As bases de dados das instituições de crédito • Essas gigantescas bases de dados concitam naturalmente o vivo interesse de terceiros, e como seria de esperar de entidades encarregadas de executar certas funções públicas, como as de investigação criminal ou de cobrança de impostos. • No Estado de Direito em que pretendemos viver, é fundamental que as i.c. e as instituições de supervisão encarregadas de velar pela integridade, idoneidade, segurança e bom funcionamento do sector bancário e os Tribunais estejam particularmente atentos ao que exige a segurança e a confiança do sector bancário e à defesa da privacidade dos clientes. Propósitos do dever legal de sigilo bancário • A criação de um dever legal de sigilo bancário que se sobrepõe e cumula ao dever contratual que protege as informações fornecidas à instituição de crédito e a que ela tem acesso em razão das suas funções, têm, em regra, os seguintes propósitos: • A) Reforçar o cumprimento do dever de sigilo por todos aqueles que já se encontravam ligados pelo dever contratual, garantindo inequivocamente este dever para além do termo da relação contratual. Propósitos do dever legal de sigilo bancário • B) Aumentar a confiança no sistema bancário ao impor • a terceiros, estranhos à relação contratual, tenham natureza privada ou pública, que respeitem o dever de sigilo a que estão sujeitos os dados e informações fornecidos às instituições de crédito, pelos clientes em confiança. C) Garantir o normal funcionamento do sistema bancário, regulando, com clareza, os casos de divulgação de informações dos clientes a outras instituições para defesa da concessão de crédito (análise do risco de crédito) e aos supervisores e estendendo o dever de sigilo a estas entidades. Propósitos do dever legal de sigilo bancário • D) Impor às i.c. que respeitem o dever de sigilo relativamente aos seus clientes, não usando em seu benefício e fora do contratualmente acordado a informação fornecida pelo cliente, sem o prévio acordo deste; • E) Impor sanções de natureza administrativa ou penal a quem desrespeite o dever de sigilo ou tire partido a seu favor, de qualquer modo, dos factos e informações sujeitas a sigilo (Em Portugal, Artºs 195º e 196º do Código Penal). Bens jurídicos protegidos pelo sigilo bancário • Quando a lei intervém protegendo o sigilo bancário reconhece o interesse colectivo deste instituto jurídico, que contribui decisivamente para promover: • 1) a confiança dos clientes e dos cidadãos em geral, • no sistema bancário, na medida em que sentem a sua intimidade e privacidade protegidas; e ainda 2) a segurança das poupanças essencial ao bom funcionamento do sistema bancário e financeiro. Extensão do sigilo bancário • Convém ter a noção de que o dever legal de sigilo bancário (ou legislação de protecção de privacidade com efeito semelhante) se encontra hoje mais difundido no Mundo do que alguma vez esteve. • Países como a Áustria ainda lhe dão uma protecção de nível Constitucional e punem criminalmente com pena de prisão e multa quem o desrespeitar. • Noutros como sucede em França, na Suíça, em Portugal ou no Luxemburgo o incumprimento do dever legal de sigilo bancário é também punível com pena de prisão ( Artºs 195º e 196º do Código Penal). Extensão do sigilo bancário • Noutros Países embora exista um dever legal de sigilo bancário, o seu incumprimento não é punido com sanções de natureza pública, mas apenas de natureza civil, como sucede no Reino Unido, em Singapura ou em Hong-Kong/China, Dinamarca, Suécia, Noruega, China ou nos Estados Unidos; • Noutros Estados, muito embora não haja dever de sigilo bancário, existem leis de protecção de privacidade individual, que defendem, de modo similar, os dados fornecidos pelos clientes às i.c., como acontece na Alemanha, no Japão ou na Austrália. Limites ao dever de sigilo bancário • É geralmente reconhecido que o sigilo bancário é um instrumento jurídico indutor de confiança no sistema bancário nacional, que protege também a segurança nas relações bancárias, contribuindo para o funcionamento eficiente do sistema. • O que varia, muito sensivelmente, entre os Estados e jurisdições são os limites que cada Estado impõe ao sigilo bancário, nomeadamente as categorias de casos em que as Administrações Nacionais podem afastar, nos termos da lei, o dever de sigilo e o modo como o fazem. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • O cidadão no uso da sua liberdade de iniciativa • (Constitucionalmente garantida) pode escolher aplicar os seus bens em imóveis ou acções, activos com expressão pública, ou mantê-los em depósito numa i.c., numa situação o mais equiparada possível à do seu entesouramento em casa, ou colocá-los mesmo num cofre no banco. Caso escolha o depósito bancário, optando por manter a privacidade desses fundos e da informação que lhes respeita, nenhuma razão existe para atribuir a esses fundos um tipo de protecção, face à instituição e a terceiros, diferente da que tinham antes. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • A Jurisprudência do S.T.J. e do Tribunal Constitucional têm considerado consistentemente que as informações relativas às operações bancárias dos clientes e à titularidade dos fundos que os clientes entregaram aos bancos gozam do regime de protecção constitucional da privacidade (Artº 26º nº 1º da CRP) e se integram no circulo da intimidade da vida privada do cliente, não podendo a i.c. revelá-las a terceiros, sem a autorização destes, salvo nos casos excepcionalmente previstos na lei. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • Em nosso entender, outro entendimento tenderia a desrespeitar também o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (Artº 13º da CRP). • O regime de protecção da intimidade de que, muito justamente, goza o cidadão que deixa entesourados os fundos na intimidade do seu lar e aí guarda a informação que lhes respeita, não deveria ser muito distinto do aplicável àqueles que depositam esses mesmos fundos numa i.c. e fazem uma normal utilização do sistema bancário. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • Na realidade trata-se de proteger o mesmo tipo de propriedade e de informação, que o cidadão considera ser privada e íntima, mantendo-a consigo ou entregando-a à i.c. apenas para efeitos contratuais mas reservados. • Por outro lado, existem razões pragmáticas, que o Estado deveria considerar, no sentido de reconhecer essa similitude, pois interessa ao Estado que todos os cidadãos usem com confiança e segurança o sistema bancário e nada melhor para isso do que proteger o sigilo bancário. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • Tendo presente que a Constituição Portuguesa impõe que a lei deve garantir a captação e a segurança das poupanças ( Artº 101º da C.R.P.) sendo o dever de sigilo um instrumento jurídico fundamental promotor dessa segurança, somos de opinião que o sigilo bancário tem ele próprio assento constitucional. • Devem assim, em nosso entender, considerar-se materialmente inconstitucionais as leis ordinárias que atentem contra o núcleo essencial da garantia constitucional do sigilo bancário, garantida pelo Artº 101º da CRP. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • A protecção das informações pessoais e íntimas relativas ao cliente e cobertas pelo sigilo, deve ser limitada pela protecção a dar a outros direitos constitucionais de terceiros, neles incluindo os do Estado. • O sigilo não pode prevalecer, permitindo que se escondam e branqueiem nas i.c. fundos de origem criminosa, porque esses fundos resultaram do desrespeito de bens jurídicos e direitos também protegidos constitucionalmente e que sofreram um ataque ilícito. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • Daí a constitucionalidade do regime de prevenção e repressão do branqueamento de capitais que afasta completamente o dever de sigilo bancário (Artº 16º da actual Lei nº 25/2008, de 5 de Junho). Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • O mesmo deverá acontecer com o regime de investigação criminal da criminalidade grave, incluindo os crimes de natureza fiscal, que também deverá conduzir ao afastamento do regime de sigilo bancário. • Vai neste sentido também o nosso direito positivo, nomeadamente a Lei 5/2002, de 11 de Janeiro , que afastou o sigilo bancário na investigação da criminalidade mais grave, em geral, permitindo às autoridades judiciárias que solicitem às i.c. todos os elementos que necessitam para a investigação criminal. Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • Os limites (ou excepções) ao dever de sigilo bancário, para não desrespeitarem os direitos à privacidade individual e de igualdade entre os cidadãos e a garantia da captação e segurança das poupanças, todos consagrados na C.R.P. não deveriam, em nosso entender, ir além das seguintes categorias de situações : • 1º) - A vontade do cliente; ( Artº 79º nº 1º do RGIGSF) Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • 2º) - A investigação de ilícitos de natureza criminal, ainda que de natureza fiscal (Artº 79º nº 2º d) do RGICSF); • 3º) - Situações de defesa da i.c., no âmbito da relação contratual estabelecida; Uma leitura do regime do sigilo à luz do Direito Português (CRP) • 4º) - Direitos de terceiros, privados ou do Estado, oponíveis ao cliente e reconhecidos judicialmente ( Artº 519º nº 4º do C.P.C. e Artº 135º nºs 2º e 3º do Código Penal). • 5) – Informação a prestar aos supervisores para o exercício das suas funções e sistemas de protecção do crédito (exº garantia de depósitos), mas mantendo-se o sigilo na utilização destes dados ( Artº 79 alíneas a), b) e c) do RGICSF). Constrangimentos actuais ao dever de sigilo (de natureza interna) • A nível interno dos Estados, a extensão da protecção do dever de sigilo bancário sofre a pressão de várias forças de sinal contrário, em razão da apetência pela utilização da informação contida nas bases de dados das i.c.. • A nível privado, o desejo das i.c.s de utilizarem a massa de dados recolhidos para outros fins de negócio, sem a autorização dos clientes. Constrangimentos actuais ao dever de sigilo (internos) • A nível público, a pressão das Administrações Fiscais ansiosas por se introduzirem na informação financeira que os clientes transmitiram confiadamente às i.c., que cresce em momentos de crise financeira, como o actual. • Além disso, um ambiente social ingenuamente pouco propício à protecção da privacidade dos cidadãos, que valoriza pouco a intimidade e a reserva individual e que se rege por extensões abusivas de transparência a zonas que não lhe respeitam. A pressão fiscal interna • Como exemplo desta pressão fiscal, podem indicar-se as alterações que, desde 1998, vem sofrendo a Lei Geral Tributária(LGT) relativamente ao alargamento e à forma de acesso da Administração Tributária, à informações bancária dos contribuintes, com o concomitante afastamento do sigilo bancário. • Na versão inicial da LGT, Decº - Lei nº 398/98, de 17/12 - o acesso à informação bancária, protegida pelo sigilo bancário, por parte da Administração Fiscal dependia de autorização judicial. A pressão fiscal interna • Desde 2000, que a LGT tem vindo a ser alterada, abrindo cada vez mais possibilidades à Administração Tributária de acesso aos registos bancários do contribuinte sem conhecimento deste e sem autorização judicial, por mero acto administrativo fundamentado especificamente. • Por exemplo, que se verifiquem indícios de crime fiscal, de falta de veracidade da declarações apresentadas, de falta da própria declaração ou existência de dívidas à segurança social (Artº 63-B da LGT) . A globalização e o sigilo bancário • Na época da globalização financeira em que vivemos, desde o início dos anos 90 do século passado, caracterizada pela inexistência de barreiras cambiais ou outras à livre circulação de capitais entre as economias mais desenvolvidas, nomeadamente da União Europeia, Suíça, Estados Unidos e Japão, o sigilo bancário assumiu uma nova função. • O sigilo bancário passou a ser utilizado por muitos centros financeiros internacionais (off-shores ou não) como um instrumento jurídico-financeiro de atracção de capitais externos, na concorrência financeira e fiscal que os Estados desenvolvem entre si. A globalização e o sigilo bancário • Se olharmos para os 14 primeiros centros financeiros mundiais, em 2009, a saber, Londres, Nova Yorque, Singapura, Hong-Kong/China, Zurique, Genebra, Frankfurt, Boston, Dublin, Canadá, Guernsey, Jersey, Luxemburgo e Japão, só em três deles não existe o dever legal de sigilo bancário. • Todavia, nestes três, a saber a Alemanha, o Canadá e o Japão, existem leis de defesa da privacidade individual dos dados fornecidos às i.c. que lhes conferem uma protecção legal. A globalização e o sigilo bancário • A globalização, alterou, de modo sensível, o posicionamento dos Estados e jurisdições em relação ao sigilo bancário. • Na verdade, existe actualmente uma tensão concorrencial manifesta entre os Estados exportadores de capitais (Por exemplo, E.U.A., Alemanha, França, Itália) e os Estados ou jurisdições mais pequenos e tendencialmente importadores de capitais, que utilizam o regime de sigilo bancário como instrumento internacional de captação de capitais. Os limites do sigilo bancário em resultado da globalização financeira • A globalização financeira tem provocado uma significativa erosão na protecção do sigilo bancário, por pressão externa, nos países e jurisdições tendencialmente importadores de capitais. • Por pressão do G.A.F.I. (criado pelo G7, em 1989) e dos Estados Unidos (caso do “ouro nazi na Suíça”) a Suíça, a Áustria, o Luxemburgo, bem como outros centros financeiros internacionais, foram forçados a flexibilizar o seu regime de protecção do sigilo bancário, no que respeita à prevenção e repressão do branqueamento de capitais, afastando-o definitivamente nesta área. Os limites do sigilo bancário em resultado da globalização financeira • Cabe salientar que de acordo com a Recomendação nº 4 do G.A.F.I. é recomendado aos Estados que a sua legislação sobre sigilo bancário não deve colocar entraves à prevenção e repressão do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. • Tal tem sido entendido pelo G.A.F.I. como exigindo o afastamento das regras de sigilo no que respeita ao reporte de operações suspeitas de branqueamento de capitais e também de financiamento do terrorismo e à investigação do branqueamento e dos crimes subjacentes. Os limites do sigilo bancário em resultado da globalização financeira • Por seu turno, no terreno fiscal a O.C.D.E. preparou também uma resposta activa contra o sigilo bancário, com o objectivo de proteger os países exportadores de capitais da fuga destes para os centros financeiros internacionais, com alegada evasão fiscal, através de acordos de troca de informação para efeitos fiscais, pondo em execução a Convenção da O.C.D.E. e do Conselho da Europa sobre “Assistência Administrativa Mútua em Assuntos Fiscais”, de 1988. Os limites do sigilo bancário em resultado da globalização financeira • A União Europeia, por seu turno, emitiu uma Directiva fundamental em matéria de tributação dos juros de aplicação de rendimentos dos particulares, residentes num Estado Membro e aplicados noutro Estado do espaço económico europeu – a Directiva do Conselho de 2003/48/CE – visando obter informações da Administração Fiscal do Estado onde estão aplicados os fundos e os rendimentos são gerados, de molde a poderem ser tributados no Estado da residência do beneficiário. Os limites do sigilo bancário em resultado da globalização financeira • Esta Directiva produziu uma notável limitação ao sigilo bancário em matéria informação sobre juros de depósitos bancários transfronteiros e demonstra a existência de uma feroz concorrência fiscal entre os mais importantes centros financeiros ocidentais. • Todavia, o objecto da Directiva é limitado, porque só versa sobre a tributação de juros de depósitos bancários de particulares, deixando de parte os rendimentos das empresas e associações de qualquer tipo, bem como todos os outros tipos de rendimentos de aplicação de capitais.