CURSO DE DIREITO TEORIA DA CONSTITUIÇÃO Prof. MsC. UBIRATAN RODRIGUES DA SILVA (PLANO DE ENSINO: Unidade III. A CONSTITUIÇÃO E A FORMAÇÃO DOS PROCESSOS DE MUDANÇAS) Plano da Aula nº 8 OBJETO: A REFORMA DA CONSTITUIÇÃO. OBJETIVO: Analisar e interpretar a teoria sobre a Reforma da Constituição. 1. O Poder de Reforma da Constituição Do sistema de Constituições rígidas resulta uma relativa imutabilidade do texto constitucional, a saber, uma certa estabilidade ou permanência que traduz até certo ponto o grau de certeza e solidez jurídica das instituições num determinado ordenamento estatal. A pretensão à imutabilidade foi o sonho de alguns iluministas do século XVIII. Cegos de confiança no poder da razão, queriam eles a lei como um produto lógico e absoluto, válido para todas as idades, atualizado para todas as gerações. Dessa fanática esperança comungou um membro da Convenção, conforme nos lembra notável publicista francês, pedindo durante os debates do Ano III a pena de morte para todo aquele que ousasse propor a reforma da Constituição. OBSERVAÇÃO: A imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la equivaleria a cerrar todos os caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução e ao golpe de Estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei fundamental. A reforma da Constituição, em sua acepção mais larga, admitiram-na invariavelmente graves teoristas políticos com influxo sobre a Revolução Francesa como Vattel, Sieyês e Rousseau. Vattel, manifestando o entendimento de que a Constituição é versão palpável do contrato social, e depois de proclamar que sua modificação só se faria legitimamente pelo assentimento unânime dos cidadãos (aqui estaríamos consignando na prática a imutabilidade absoluta), varia de parecer, ao consentir a mudança mediante decisão de simples maioria, contanto que se reconhecesse à minoria dissidente o direito de secessão, em sinal de protesto pela quebra dos primitivos laços contratuais. Justificava Sieyês a reforma constitucional partindo da célebre distinção entre poder constituinte e poderes constituídos. As leis constitucionais, obra do poder constituinte - dizia ele - obrigam os poderes constituídos, mas nunca a Nação, titular daquele poder, do qual emanam referidas leis. Vivendo em estado de natureza, a Nação independe de toda a forma; basta que ela queira para que sua vontade se converta em lei suprema. Mas a mudança constitucional de Sieyês esbarrava numa contradição com o sistema representativo: reservada apenas ao poder constituinte originário, era exclusivamente política, não se podendo exercer de forma jurídica pelo poder constituinte derivado. Impetrando nas Considerações sobre o Governo da Polônia uma Constituição sólida, e leis fundamentais "tanto quanto possível" irrevogáveis, o pensador de Genebra descia das alturas metafisicas e abstratas do "Contrato Social" para a planície do bom senso e das realidades evidentes e razoáveis ao declarar que é "contra a natureza do corpo social impor leis que ele não possa revogar". Completou esse conceito acrescentando logo não ser "contra a natureza nem contra a razão" a possibilidade de revogar tais leis, desde que o façamos com a mesma solenidade empregada no estabelecê-las. O princípio formulado por Rousseau entra na Constituição francesa de 1791, que solenemente reconhece à Nação o direito imprescritível de mudar a Constituição e fazer a reforma daqueles artigos cujos inconvenientes a experiência houvesse demonstrado(1). Empregar-seiam para esse fim os meios previstos pela Constituição mesma. Estava assim assentado o princípio jurídico da reforma constitucional por obra do chamado poder constituinte derivado. (1) “A Assembleia Nacional Constituinte declara que a nação tem o direito imprescritível de mudar sua Constituição, e, não obstante, considerando que é mais conforme ao interesse nacional usar unicamente, pelos meios previstos na própria Constituição, do direito de reformar os artigos cujos inconvenientes hajam sido patenteados pela experiência, decreta que isso será remediado por uma assembleia revisora na forma seguinte” 2. As Limitações Expressas ao Poder de Reforma São as que, formalmente postas na Constituição, lhe conferem estabilidade ou tolhem a quebra de princípios básicos, cuja permanência ou preservação se busca assegurar, retirando-os do alcance do poder constituinte derivado. A) Limitações temporais Não é raro deparar-se-nos um texto constitucional que limita no tempo a ação reformista, paralisando o órgão revisor até o transcurso de um certo número de anos: Constituição revolucionária de 1791 na França, 10 anos; A Constituição francesa do Ano III, 9 anos; A Constituição de 1948, na França, 3 anos. A Constituição brasileira de 1988, 5 anos (art. 3º, do ADCT). B) Limitações circunstanciais São aquelas que se prendem a determinadas circunstâncias históricas e excepcionais na vida de um país. Ordinariamente configuram um estado de crise que toma ilegítimo nessas ocasiões empreender qualquer reforma constitucional: o art. 94 da Constituição francesa de 1946, que interditava a revisão em caso de ocupação do território; A Constituição de 1958, sensível ao argumento patriótico e à ilegitimidade da operação constituinte numa hipótese anômala, vedou também a iniciativa revisora em caso de atentado à integridade do território (art. 89): A Constituição brasileira de 1967 declarava que durante a vigência do estado de sítio não se reformaria a Constituição; a Constituição de 5 de outubro de 1988 (§ I º do art. 60), não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. C) Limitações materiais Várias Constituições fazem imutável uma determinada matéria de seu conteúdo: A Constituição portuguesa de 21 de março de 1911 excluía por igual do poder de reforma a substituição da forma republicana; O art. 2º, II, da Constituição helvética de 1798 fazia intocável a democracia representativa e ainda no século XX há exemplos recentes de Constituições que se valem da mesma técnica restritiva de intangibilidade absoluta de uma parte do texto constitucional. Haja vista a esse respeito o art. 79, III, da Lei Fundamental de Bonn que interdita a supressão da estrutura federal do país ou a abolição do Conselho Federal, equivalente ao nosso Senado ou a uma Câmara dos Estados; As Constituições brasileiras desde 1891, por exemplo, interditavam toda a reforma constitucional que viesse a abolir a forma republicana de governo ou a forma federativa de Estado; A Constituição vigente retirou, porém, do âmbito de sua cláusula pétrea a forma republicana e, até, instituiu, tocante à monarquia, a consulta plebiscitária do art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; a Constituição/88 consagra as vedações materiais perpétuas do nosso ordenamento constitucional ao exercício do poder de reforma (§ 4º, art. 60). 3. As Limitações Tácitas ao Poder de Reforma São basicamente aquelas que se referem à extensão da reforma, à modificação do processo mesmo de revisão e a uma eventual substituição do poder constituinte derivado pelo poder constituinte originário. Quanto à extensão da reforma, considera-se, no silêncio do texto constitucional, excluída a possibilidade de revisão total, porquanto admiti-la seria reconhecer ao poder revisor capacidade soberana para abrogar a Constituição que o criou, ou seja, para destruir o fundamento de sua competência ou autoridade mesma. Há também reformas parciais que, removendo um simples artigo da Constituição, podem revogar princípios básicos e abalar os alicerces de todo o sistema constitucional, provocando, na sua inocente aparência de simples modificação de fragmentos do texto, o quebrantamento de todo o espírito que anima a ordem constitucional. Trata-se em verdade de reformas totais, feitas por meio de reformas parciais. Urge precatar-se contra essa espécie de revisões que, sendo formalmente parciais, examinadas, todavia, pelo critério material, abrogam a Constituição, de modo que se fazem equivalentes a uma reforma total, pela mudança de conteúdo, princípio, espírito e fundamento da lei constitucional. 4. O Processo de Reforma A) A iniciativa As Constituições, cujos fundamentos assentam nos princípios do liberalismo, costumam conceder a iniciativa da revisão exclusivamente ao parlamento. Assim o fizeram, por exemplo, os constituintes franceses de 1791 e do Ano III (veja-se o art. 2º do Título VII da Constituição de 3.9.1791 e o art. 336 da Constituição de 5 do Frutidor do Ano III). Se a Constituição, porém é de teor manifestamente autoritário, a outorga daquela iniciativa sói recair de preferência sobre o executivo, como aconteceu na França com as Constituições de 16 do Termidor do Ano X e de 14.1.1852, cujos arts. 51 e 56, respectivamente, cometiam a iniciativa revisora apenas ao governo. Mas o compromisso democrático nas Constituições evolve no sentido da adoção de uma iniciativa concorrente, partilhada entre o legislativo e o executivo, ora admitindo, ora excluindo a participação do povo. Casos de iniciativa concorrente, que tanto pode caber ao executivo como ao parlamento, sem o concurso popular, são previstos no art. 8º da Lei Constitucional francesa de 1875, nos arts. 14 e 90 da Constituição da França de 27.10.1946 e no art. 89 da Constituição francesa de 4.10.1958, bem como nas Constituições da Bélgica, Holanda e Alemanha Ocidental. Enfim, a iniciativa concorrente, em que o povo também pode participar, depara-se-nos ilustrada pelo exemplo da Constituição da Itália, de 27.12.1948 (art, 71). A iniciativa popular é aí reconhecida desde que proposta ou formulada por um mínimo de 50.000 eleitores; A Constituição Federal da Suíça no art, 120 também confere ao povo a iniciativa da reforma, uma vez provocada por determinado número de cidadãos. B) O órgão As Constituições empregam usualmente como principais órgãos de revisão: a Convenção, o legislativo ordinário e o povo. A teoria tem procurado estabelecer conexidade entre esses órgãos e a natureza das Constituições no tocante à rigidez, à latitude e à legitimidade do texto constitucional, preconizando a conveniência de cada órgão, consoante o modelo e a inspiração básica que rege a obra das constituintes. Quando se pretende um alto grau de rigidez, acentua-se consideravelmente a distinção entre a lei ordinária e a lei constitucional, entre o poder constituído e o poder constituinte. Nesse caso o sistema de reforma que mais se recomenda é o de Convenção, nomeadamente em se tratando de reforma total da Constituição. C) A adoção definitiva da reforma Se faz pelos órgãos que a Constituição haja designado para essa finalidade. Tais órgãos costumam ser a própria assembleia revisora, aprovando a emenda por maioria qualificada; o povo, ratificando a reforma, por via do referendum, conforme acontece nos sistemas de democracia semidireta, e finalmente órgãos especiais, como no sistema federativo americano, onde as assembleias legislativas dos Estados-membros decidem por maioria de três quartas partes, consumando a reforma da Constituição. 5. A via permanente de Reforma na Constituição de 1988: a emenda constitucional A emenda é o caminho normal que a lei maior estabelece para a introdução de novas regras ou preceitos no texto da Constituição. O estatuto supremo tem nesse instrumento do processo legislativo o meio apropriado para manter a ordem normativa superior adequada com a realidade e as exigências revisionistas que se forem manifestando. Abaixo da emenda, seguem-se as leis complementares que, embora versando matéria constitucional no propósito de completar em seus desdobramentos compatíveis os conteúdos normativos da Constituição a que se referem, são, todavia tarefa do legislador ordinário. Atua este no exercício de uma competência estabelecida pelo próprio constituinte. Formalmente os sete incisos do art. 59 traçam a sequência normativa do processo legislativo. Contudo, a emenda goza, perante os demais diplomas legislativos, da rigidez do § 2º do art. 60; unicamente ela pode introduzir mudanças ou variações na Constituição. 6. A via extraordinária e transitória de Reforma: a “revisão” O art. 59 da Constituição, que institui de forma permanente a produção normativa das duas Casas do Congresso Nacional, ignora a revisão, qual se achava prevista no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, provida de um grau inferior de rigidez exatamente concebido para tomar mais fácil a singular e extraordinária utilização desse mecanismo excepcional de reforma. Portanto, do ponto de vista jurídico, afigura-se-nos – e temos inumeráveis vezes reiterado esse entendimento – só poderia haver revisão constitucional, veículo da possível reforma estatuída no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, se a resposta plebiscitária for favorável à monarquia constitucional ou ao parlamentarismo. DICAS DE ESTUDO BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 25ª edição. São Paulo: Malheiros Editora, 2009, p. 196-211.