A HISTÓRIA DA ESCRITA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O RESGATE DA
PEDAGOGIA DA ORALIDADE
MARCOS DESAN SCOPINHO
Núcleo de Estudo e Pesquisa: História e Filosofia da Educação - Doutorando
Orientador: Prof. Dr. José Maria de Paiva
É sabido que os animais têm sua ação regida por leis biológicas não possibilitando a eles
a escolha de realizar ou não uma determinada tarefa. Considerando, portanto, o instinto, o
animal executa suas tarefas, ignorando do ponto de vista da consciência, porque as executa. E
o mais instigante, é que todo este saber é transmitido de uma geração para outra, sem que
necessite de um intermediário, ou seja, é transmitida sem palavras.
O que de fato se percebe, é que há uma diferença fundamental que separa o ato humano
da ação animal. A ação humana está impregnada da consciência do seu fim. O humano sabe
por que executa aquela ação, o que faz dela um ato voluntário. Pode ser executado ou não. O
biológico não tem a última “palavra”.
O outro fator fundamental neste processo na construção de uma história humana está no
surgimento da linguagem.
Desde o homo erectus1, a fala parece ser a grande distinção dos hominídeos em relação
às outras criaturas. A palavra, portanto, se encontra na origem do universo humano. Não que
os animais não possuam linguagem. É sabido que eles se comunicam, mas sua linguagem
esta biologicamente programada ou quando muito, esta restrita a experiência vivida. Portanto,
a linguagem do animal não conhece o símbolo. No dizer de Luria (1979), a “linguagem” dos
animais nunca designa coisas, não distingue ações nem qualidades. É, sem dúvida
fundamental para o entendimento entre as espécies, mas certamente muito diferente da
linguagem simbólica que caracteriza a linguagem humana.
Luria (1979) acrescenta ainda, que o surgimento da linguagem traria ao menos três
mudanças essenciais à atividade consciente do homem.
A primeira é que designando os objetos e eventos do mundo exterior com palavras
isoladas ou combinações de palavras, a linguagem possibilitará discriminar esses objetos,
dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória.
O segundo papel da linguagem é que as palavras de uma língua não só indicam as coisas
como também abstraem as propriedades essenciais destas, possibilitando o processo de
abstração e generalização. Assim, a palavra possibilita a análise e a classificação dos objetos,
transformando a linguagem na possibilidade de meio de comunicação e de veículo fundamental
do pensamento, que assegura a transição do sensorial ao racional na representação do
mundo.
Entra-se na terceira função essencial da linguagem. A linguagem passa a ser o veículo
fundamental de transmissão de informação e ao transmitir a informação mais complexa,
produzida ao longo de séculos de prática histórico-social, a linguagem permitirá ao homem
assimilar essa experiência e por meio dela dominar conhecimentos, habilidades e modos de
comportamento trazendo ao homem um desenvolvimento psíquico desconhecido dos animais.
Mas se a fala distinguiu o homem de outras criaturas, o que agora distingue o homo
sapiens sapiens moderno é uma sociedade baseada na escrita.
Os primeiros entalhes de que se tem informação parecem datar de cem mil anos atrás. A
humanidade usou de símbolos gráficos e de memória para registrar informações.
Quanto à escrita, nasce da necessidade de se registrar situações do cotidiano. Na região
do Oriente Médio, foram encontradas fichas de argila utilizadas para controlar as mercadorias.
A maior parte destas fichas vem da Suméria, conhecida como berço da escrita.
1
Espécie extinta de hominídeo que viveu entre 1,8 milhões de anos e 300.000 anos atrás. Encontrados principalmente na África, habitavam
cavernas, produziam e usavam ferramentas bem mais elaboradas, que representam a primeira ocorrência no registro fóssil de um design
consciente. Foram provavelmente os primeiros a usar o fogo.
Ao tomar as letras como um dos traços marcantes da cultura o que se deseja é revelar
uma das maneiras, dentre tantas outras, que uma determinada comunidade humana se revela.
A escrita é mais um dos inúmeros gestos de como esta sociedade se entende e explicita o seu
modo de viver.
Pensando nesse sentido, alguns esclarecimentos preliminares, que se considera
importante para que se possa redimensionar o valor atribuído às culturas letradas e àquelas
que não possuem as letras como critério revelador de suas existências.
Ao tratarmos das sociedades letradas nos seus primórdios é comum encontrarmos uma
relação que, no mínimo, se apresenta como polêmica, para não dizer equivocada, ou seja,
considerar sociedades letradas como superiores as não letradas. Certamente o referencial para
este critério resulta dentre outras coisas, da concepção de que a escrita determinaria o início
da história da humanidade e, portanto, o início das sociedades entendidas como civilizadas.
O conceito “civilização” é comumente utilizado pelas ciências humanas a partir de uma
perspectiva evolucionista e progressiva, determinando que as comunidades mais “evoluídas”,
sejam denominadas de “civilizações” em oposição às comunidades denominadas de
“primitivas”. E não por acaso, as letras acabaram sendo uma das características para uma
possível discriminação entre o que se conhece por “avançado” e o “primitivo”.
Neste sentido, é que se procura buscar na própria antropologia, pistas que remetam a
uma análise mais aprimorada das sociedades antigas, daquelas primeiras comunidades que se
utilizaram das letras ou não, na manifestação dos seus agires. Rompendo com este olhar
dicotômico, as letras deixarão de ser compreendidas como expressão ou revelação de uma
sociedade que se aparente como avançada. As letras perdem seu caráter privilegiado de
reveladoras de uma sociedade pretensamente mais avançada, em relação a outras sociedades
que manifestam seus agires de outros modos que não através escrita. Rompendo, portanto,
com a visão binária, possibilita-se o resgate de elementos que são características das culturas
orais ainda presentes nas culturas letradas. Da mesma forma, elementos que são tidos como
específicos de uma cultura letrada se constatará também que não estão ausentes nas culturas
orais.
A evolução das sociedades irá aparecer no dizer de Candido, num vasto processo de
emergência de necessidades sempre renovadas e multiplicadas, a que correspondem recursos
também renovados e multiplicados para satisfazê-los.
Conclui Candido (1987) que a obtenção do equilíbrio entre as necessidades e os recursos
depende do encontro de soluções que permitam explorar o meio físico e o estabelecimento de
uma organização social compatível com elas. Os meios de subsistência de um grupo não
podem ser separados do conjunto das reações culturais, desenvolvidos sob o estímulo das
necessidades básicas. Logo, o meio se torna um projeto humano, já que é uma projeção do
homem com as suas necessidades e o planejamento em função destas, aparecendo como
uma construção de cultura.
No campo religioso, a escrita terá um papel fundamental nos povos antigos. Goody (1986)
dirá que graças às letras, a religião que antes era marcada pelo particularismo originário, agora
terá a possibilidade de transcender os limites regionais, para se tornar uma religião de
conversão. Isto significa que o que as letras vão provocar não se resume a somente à
propagação de uma religião em particular, mas também irá contribuir para a expansão de uma
nova concepção do que seja religião. E este aspecto torna-se fundamental para este estudo, já
que a ortodoxia agora toma as rédeas. A verdade agora passa a adquirir um significado todo
diferente desvinculado e distante de seu significado original, pois surge uma nova referência de
medição, ou seja, a palavra escrita.
Outro elemento significativo que irá surgir a partir do advento das letras nas religiões, será
a necessidade de pessoas especializadas no conhecimento das letras, especialmente ao se
considerar o processo de universalização, que ocorre simultaneamente ao processo inevitável
da abstração. Quanto mais distante da origem, da particularidade, mais abstrato e menos
compreensível para o convertido. A figura do erudito vai adquirindo cada vez mais importância
na tradução dos significados. O sacerdote além de ser o guardião, também será o intérprete, a
ponto de a divisão entre letrado e iletrado corresponder à divisão entre sacerdotes e leigos.2
Também para as atividades econômicas a escrita terá decorrências importantes. A
complexidade que vai tomando conta da economia tornará a escrita uma necessidade
imprescindível. Casos, por exemplo, de ações que podiam ser compradas e vendidas,
empréstimos a juros, tudo necessitando do controle por escrito.
Mas se como visto, tanto para os templos como para os palácios, a escrita foi de
importância fundamental, para a construção de uma cultura ocidental ela será decisiva. A
questão é que os gregos foram os primeiros a representarem consistentemente fonemas
vocálicos, com a utilização de vogais e consoantes passando a reproduzir a fala de forma mais
fiel. Os nomes das letras se tornaram sem sentido, possibilitando que o leitor pudesse
transcrever qualquer coisa dita por meio da linguagem, através de signos singulares
reconhecidos pela acústica. Foi isto que aconteceu, por exemplo, com a literatura oral da
própria Grécia.
E como destaca Havelock (1996) o que o alfabeto grego trouxe de significativo foi
possibilitar “a prosa registrada e preservada em quantidade”, o que significou uma revolução
psicológica e epistemológica já que o texto (registro visual) aboliu a memorização e podia ser
lido quando necessário. E mais do que isso, o alfabeto possibilita a formulação de um
enunciado novo, de uma ideia nova. Portanto, o texto não só, não obriga a memorização, como
também possibilita a reflexão do texto produzido. Aumentou-se a possibilidade do
conhecimento acumulado e abstrato, pois a escrita transformou tanto a natureza da
comunicação, como também, os contatos pessoais3 e o sistema de armazenamento de
informação.
A escrita tem um valor fundamental na construção deste modelo de pensar que marca a
cultura grega. O alfabeto torna-se um instrumento pelo qual se poderia reproduzir fielmente a
realidade. A palavra escrita revela a realidade possibilitando sua análise, descontextualizando
o conceito e “aprofundando” sua compreensão a ponto do conceito ter o poder de revelar de
forma objetiva o real. Conceito e realidade agora se identificam.
Graças a esta mudança alcançada pela cultura grega, Havelock (1996) dirá que o grego
alcançou o que ele chamou de um novo estado mental, uma mente alfabética e que em uma
palavra, o novo discurso poderia ser designado pelo termo conceitual. A fala iletrada passa
agora a favorecer o discurso descritivo da ação e, processualmente, vai alterando o equilíbrio
em favor da reflexão.
Como na cultura grega a expressão do real se caracteriza pela presença da escrita, o que
se observa a partir da concepção de metafísica é que o conceito expresso pela palavra escrita
passa a ser um instrumento que possibilitará o conhecimento da própria realidade.
Com a colaboração de Adorno, Horkheimer e Wittgenstein, questiona-se este valor
metafísico em favor de uma pedagogia do diálogo.
Os conceitos filosóficos nos quais Platão e Aristóteles expõem o mundo, dirão Adorno e
Horkheimer (1985), exigiram com sua pretensão de validade universal, as relações por elas
fundamentadas como a verdadeira e efetiva realidade. A própria linguagem conferia ao que era
dito, isto é, às relações de dominação, aquela universalidade que ela tinha assumido como
veículo de uma sociedade civil. A unidade de coletividade e dominação mostra-se antes de
tudo na universalidade que o mau conteúdo assume na linguagem tanto metafísico quanto no
científico. O esclarecimento, enfim, acabou por consumir não apenas os símbolos, mas
também os seus sucessores, os conceitos universais.
2
3
No Cristianismo, no Islamismo e no Judaísmo o ensino foi dominado por especialistas religiosos até a educação secular moderna. (Goody,
1996, página 33).
Goody cita Max Weber quando este salientou que uma das características das organizações burocráticas foi a condução dos assuntos
públicos com base em documentação escrita. Os métodos de recrutamento de funcionários são realizados através de testes objetivos.
Quanto aos sistemas antigos as entrevistas eram diretas e não por documentos impessoais. Pode-se dizer, “olho no olho”.
Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que quanto mais a maquinaria do pensamento
subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução, regredindo
à mitologia da qual o esclarecimento jamais soube escapar.
Se Adorno e Horkheimer propõem a superação destes conceitos universais, Wittgenstein
sugere que o centro desse feitiço da linguagem está na tentativa de se querer descobrir a
essência da linguagem e não desvendar como ela funciona. Dirá este autor que em se tratando
da linguagem, a atitude metafísica deve ser substituída pela atitude prática.
PEDAGOGIA DO DIÁLOGO: A ESCRITA E O AFETO
Paulo Freire (2005) sugere que a palavra possui duas dimensões: a ação e a reflexão.
Como já visto anteriormente, a cultura Ocidental, especialmente, a partir de Platão, privilegiou a
dimensão da reflexão e atribuiu também à palavra escrita um desiquilíbrio em relação a estas
duas dimensões. A reflexão preponderou em relação à ação.
A questão central não é propriamente se fazer uma crítica à escrita, já que esta também é
uma das formas que as pessoas manifestam seus agires, seu modo de ser. A crítica, no
entanto, é dirigida a uma mentalidade que fundamenta o conceito expresso através da palavra
escrita que dá a ele o poder de revelador único de uma realidade que aparece como universal
e, portanto, abstrata.
Entende-se que este conceito enrijecido pelo uso da escrita, que carrega o mito da
suficiência do real, deve ser entendido como “conceito insuficiente” para evidenciar sua
condição de impotente diante de outras manifestações humanas das vivências.
O homem e o mundo devem ser compreendidos como organismos vivos, como vivências
e na expressão conceitual do homem como manifestação dessa realidade viva, o conceito só
poderá ser compreendido na sua dimensão de acontecimento. O conceito não pode, porque se
assim fosse não seria autêntico, ser compreendido como uma estrutura estável e previamente
determinada, já que está se fazendo, o que faz dele, um conceito perecível. O conceito como
idêntico desaparece. Qualquer tentativa de identificar o conceito de maneira absoluta com a
realidade deveria ser entendida como um “pré-conceito”.4
A tentativa de qualquer diálogo, sem respeitar o outro na sua condição de sujeito, será
sempre o ato de imposição ou de depositar, no dizer de Freire, ideias de um sujeito no outro.
Em se tratando das culturas letradas, é recuperar a cultura da oralidade, que se diga
desde já, não significa excluir as letras, mas buscar o equilíbrio que a cultura ocidental perdeu
ao longo da sua história. Para tanto é que se propõe mesmo no interior de uma cultura
marcada pelas letras, atribuir o papel ao educador e ao educando, de “oralizar” o conceito,
tornando-o, em oposição ao conceito “insuficiente”, um conceito “afetivo”.5
O professor, nesse caso, tem o papel de “ternalizar” o conceito, reisignificando e dando às
palavras valor no seu uso que se faz e se realiza no diálogo. As palavras nutrem-se de sentido,
porque estão vinculadas com a realidade6. São palavras verdadeiras e não “falsas palavras”,
no dizer de Freire (2005).7
Não caberá ao conceito “frio”, “estático” e, portanto, como se disse, “insuficiente”,
expressar a realidade, o conhecimento, mas ao homem na sua práxis, interpretando o conceito
através da dinâmica entre a oralidade e a escrita, sem que uma elimine a outra ou se
sobreponha a outra. Resgatar a oralidade, não significa excluir a escrita, mas em equilíbrio com
esta, recuperar o conceito vivo, aberto, que se faz no processo dos agires humano. O conceito
4
Neste caso, um conceito universal, que antecede a historicidade e sua multiplicidade.
Afetivo – “afficere” = tocar, comover o espírito. “Affectivas” = Diz do texto, narrativa, discurso ou tipo de expressão linguística, em que os
sentimentos do escritor ou do interlocutor se infiltram na sua linguagem ou na comunicação de ideias.
6
Gutiérrez (1984) tem uma expressão que revela o significado profundo quando se diz que as palavras devem estar mergulhadas na realidade
e que deu o título a um dos seus livros. A expressão é: “Beber do próprio poço”. No caso da educação, exercitar uma experiência de fé, de
amor e de esperança que nasce da prática educativa e saciar-se dela.
7
Todorov (1993) lembra que Bartolomeu de Las Casas enalteceu a ausência de duplicidade dos índios e pelo fato dos espanhóis nunca
respeitarem a própria palavra, mentiroso e cristão acabaram se tornando sinônimos. A ponto de quando os espanhóis perguntavam aos
índios se eram cristãos, respondiam: “Sim, senhor, já sou um pouco cristão, pois já sei mentir um pouco; um dia saberei mentir muito e serei
muito cristão.” (Páginas 86 e 87).
5
só oculta sua dimensão “afetiva” quando isolado e distanciado de seu contexto, de seu
portador. A dimensão “afetiva” recuperada pela presença do educador no diálogo com o
educando, dá significado ao conceito e as palavras escritas.
Bibliografia:
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria duas cidades, 1987.
FISCHER, S. R. História da escrita. Tradução de Mirna Pinsky. São Paulo: UNESP, 2009.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GOODY, J. O Oriente no Ocidente. [S.l.]: Difel - Difusão Editorial SA, 2000.
______. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1988.
______. A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa-Portugal: Edições 70,
1986.
HAVELOCK, E. A. A Revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São
Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
LEVY-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1976.
LURIA, A. R. A atividade consciente do homem e suas raízes histórico-sociais. In: ______.
Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, 1 v, p. 71-84.
TODOROV, T. A conquista da América: A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo:
Nova Cultural, 1999, Coleção “Os Pensadores”.
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