1 CARLOS EDUARDO SILVA Planejamento urbano e competência da União: a contribuição dos planos urbanísticos da União para o desenvolvimento urbano MESTRADO EM DIREITO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Urbanístico, sob a orientação da Professora Doutora Daniela Campos Libório Di Sarno. São Paulo-SP 2012 2 Banca Examinadora ______________________ ______________________ ______________________ 3 À minha esposa Gabriela, companheira de vida e de sonhos. Aos meus queridos pais Paulo e Isabel, que me proporcionaram carinho, amor e bases sólidas para que eu tivesse condições de alçar vôos cada vez mais altos. 4 AGRADECIMENTOS Gostaria de prestar uma homenagem às pessoas que, dentro de suas possibilidades, participaram da realização deste trabalho. Agradeço o apoio, carinho e amor de minha esposa Gabriela, que não só soube compreender a minha ausência, como contribuiu para a conclusão de mais esta etapa de minha via acadêmica. Agradeço a minha orientadora, a Professora Daniela Campos Libório Di Sarno, pela atenção, incentivo e por todos os ensinamentos jurídicos que proporcionaram a segurança necessária para o desenvolvimento deste trabalho. Sinto-me privilegiado por ter sido seu orientando. Agradeço ao Ministério Público do Estado de Mato Grosso, na pessoa do Procurador-Geral de Justiça, Dr. Marcelo Ferra de Carvalho, pelo incentivo ao aperfeiçoamento profissional dos promotores e procuradores de justiça, proporcionando os meios necessários para que eu pudesse concluir um mestrado de reconhecida qualidade fora do Estado de Mato Grosso. Da mesma forma, agradeço aos meus colegas de mestrado que, durante o curso, estimularam discussões e teceram as críticas necessárias sobre vários aspectos do Direito Urbanístico. Enfim, a todos que de alguma forma contribuíram para a conclusão deste trabalho, professores e demais funcionários da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o meu muito obrigado! 5 RESUMO SILVA, Carlos Eduardo. Planejamento urbano e competência da União: a contribuição dos planos urbanísticos da União para o desenvolvimento urbano. São Paulo, 2012. 135 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A existência de planos urbanísticos de caráter nacional e regionais revela-se fundamental para orientar o uso e a ocupação das terras, num país com dimensões continentais e de alta diversidade ambiental, cultural, social e econômica como o Brasil. A falta de planejamento urbanístico nacional reflete-se na promoção desarticulada de políticas de investimento pela União em obras em determinadas regiões do país, ou mesmo no incentivo à instalação de empresas ou atividades numa localidade, que acabam impactando a infraestrutura e o desenvolvimento dos municípios. A ausência de uma política nacional de ordenação territorial e de desenvolvimento econômico também é sentida, quando se observa a elaboração e a execução de inúmeras políticas setoriais com rebatimento territorial realizadas de forma desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes federativos. Por isso, a Constituição de 1988 direciona à União o papel de coordenar as políticas nacionais e regionais de desenvolvimento com impacto direto no território. Além disso, os planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social são apontados pelo ordenamento jurídico como instrumentos de política urbana. Nessa linha, a União exerce função primordial na implantação de um sistema de planos estruturais, na medida em que os planos territoriais de sua competência possibilitam a integração dos diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento, entre os níveis de governo, permitindo maior eficiência nas ações administrativas. Desse modo, a omissão na elaboração dos planos urbanísticos de sua competência pode implicar indicação de mora à União (através da ação direta de inconstitucionalidade por omissão) e em repercussões na área da responsabilidade civil e no próprio controle da legalidade de atividades com significativas consequências no âmbito da territorialidade, realizadas num contexto de absoluta falta de planejamento. Palavras-chave: planejamento urbano, competências da União, desenvolvimento urbano. 6 ABSTRACT SILVA, Carlos Eduardo. Urban planning and the Union government’s competence: the contribution of the Union Government’s urbanistic plans for urban development. São Paulo, 2012. 135 f. Master’s degree dissertation – the Law Faculty – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. The existence of national and regional urban planning to guide the use and occupation of land has become fundamental in a country such as Brazil with its continental proportions and great diversity of environments, culture and social and economic conditions. The lack of national urban planning is seen in the unarticulated promotion of Union investment policies in public works in a particular region of the country, or even in incentives for the installation of companies and economic activities, that end up impacting on the infrastructure and development of the municipalities. The lack of a national policy on territorial organization and urban development can also be seen when looking at the elaboration and execution of numerous sectorial policies that have territorial impacts and seeing how uncoordinated they are and how they lead to superimposed actions by different Federal organs. For this reason, the 1988 Constitution provides the Union with the role of coordinating national and regional development plans that have direct impact on land territory. As well as this, the national and regional plans for land organization and social and economic development are set out by judicial ordering as an instrument of urban policy. In this sense, the Union plays a fundamental part in the implementation of a system of structural plans, since territorial plans within its ambit allow for the establishment of the integration of a variety of plans, actions and investments in infrastructure and development among the different levels of government, providing greater efficiency in administrative action. This way, the lack of plans within the Federal ambit could imply in the Union suffering a ruling of ‘delayed action’ (by means of a direct lawsuit on the grounds of unconstitutionality for reasons of omission) as well as repercussions in the area of civil responsibility and in the actual control of the legality of activities that have significant consequences within the ambit of land ownership in a context of absolute lack of planning. Key words: urban planning, responsibilities of the Union, urban development. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................09 1. OS ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANÍSTICO.................................12 1.1 A concepção de urbanismo.............................................................................................12 1.2 A atividade urbanística...................................................................................................18 1.3 O direito urbanístico.......................................................................................................19 1.3.1 Considerações preliminares.......................................................................................19 1.3.2 Objeto do direito urbanístico.....................................................................................22 1.3.3 Princípios do direito urbanístico...............................................................................24 1.3.4 Perfil constitucional do direito urbanístico...............................................................30 2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS URBANÍSTICAS......................................................................................................................33 2.1 Aspectos gerais do federalismo......................................................................................33 2.2 O sistema federal brasileiro............................................................................................37 2.3 Repartição de competências constitucionais...................................................................41 2.4 As competências urbanísticas.........................................................................................46 2.4.1 Competências urbanísticas da União........................................................................47 2.4.2 Competências urbanísticas dos Estados...................................................................49 2.4.3 Competências urbanísticas dos Municípios.............................................................50 2.4.4 Competências urbanísticas comuns..........................................................................51 2.4.5 Normas de competências e os planos urbanísticos...................................................51 3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS...................................................53 3.1 A formação e desenvolvimento das cidades brasileiras sob o ponto de vista do planejamento urbano............................................................................................................53 3.2 O planejamento como instituto jurídico.........................................................................58 3.3 A importância conferida ao planejamento pelo direito urbanístico..............................62 3.4 Plano urbanístico e a sua natureza jurídica....................................................................66 3.5 Planejamento urbano e valoração principiológica da Constituição Federal...................69 3.6 Visão integrada de planejamento urbano........................................................................75 3.7 Os planos de ordenamento territorial.............................................................................78 8 4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO..................................84 4.1 Aspectos gerais...............................................................................................................84 4.2 Planos urbanísticos e competência do governo central em perspectiva comparada......87 4.3 O plano urbanístico nacional..........................................................................................91 4.4 Os planos urbanísticos regionais....................................................................................94 4.5 Os planos urbanísticos federais setoriais........................................................................95 4.6 A relação dos planos urbanísticos da União com os demais planos urbanísticos..........97 5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO DEVER DE A UNIÃO ELABORAR E EXECUTAR PLANOS URBANÍSTICOS...................................................................................................103 5.1 O dever jurídico da União de planejar e a sua omissão na elaboração dos planos urbanísticos.........................................................................................................................103 5.2 A eficácia e imperatividade da norma jurídica constitucional.....................................109 5.3 As normas-objetivo e o planejamento urbanístico.......................................................115 5.4 A exigibilidade do dever de planejar e os planos urbanísticos da União....................117 5.4.1 Omissão legislativa da União na realização do planejamento urbano.....................118 5.4.2 Estratégias para conferir efetividade aos planos urbanísticos da União..................119 CONCLUSÃO........................................................................................................................125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................129 9 INTRODUÇÃO O art. 3º da Constituição Federal destaca como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, a garantia do desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais e regionais. O art. 182, por sua vez, dispõe que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo garantir o bem-estar dos habitantes da cidade. Assim, para o alcance de tais objetivos, é necessário que métodos e estratégias sejam reunidos, para conformar uma atuação planejada. A noção mais simples que se tem de planejamento é aquela que o diferencia da improvisação. O ordenamento jurídico prevê o planejamento como instrumento para o alcance dos objetivos traçados pelo Estado brasileiro, os quais, justamente em razão da complexidade, necessitam da conjugação de esforços de todos os entes da Federação. Atualmente, a atividade de planejar está prevista no art. 174 da Constituição Federal de 1988, inserida no capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, pertencente ao Título VII, “Da Ordem Econômica e Financeira”, como dever-poder do Estado, enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica. Referido dispositivo traz em seu bojo que o planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Além da norma citada, a atividade de planejar também aparece, explícita ou implicitamente, em outros dispositivos constitucionais. O planejamento urbano é espécie de planejamento econômico, mas possui algumas características próprias, fixadas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição Federal de 1988. Ele viabiliza-se concretamente por intermédio dos planos urbanísticos, que traduzem juridicamente a técnica utilizada no processo de elaboração do planejamento. Levando-se em conta a autonomia federativa constitucionalmente assegurada e a necessidade da aplicação de técnicas de planejamento de forma integrada para abranger os distintos entes federativos, é que o planejamento urbano deve ser realizado em nível nacional, regional e local. Por esta razão, pautado na ideia de que o planejamento urbano não pode restringir-se à figura do Plano Diretor, o ordenamento jurídico estabelece arranjos institucionais entre os níveis de governo com o objetivo de promover a elaboração e a implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente subsidiadas na articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de desenvolvimento econômico. 10 Sem olvidar o destacado papel desenvolvido pela União na realização de políticas setoriais urbanas, há de se ressaltar que a Lei Fundamental direciona a tal unidade federativa a importante tarefa de coordenar as políticas nacionais e regionais de desenvolvimento com impacto direto no território, sendo os planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social apontados pelo ordenamento jurídico como instrumentos de política urbana. Nesse aspecto, ciente de que a atividade urbanística manifesta-se de maneira mais concreta nos Municípios, o presente trabalho busca analisar os limites e as possibilidades dos planos urbanísticos de competência da União para o desenvolvimento urbano. Desse modo, foram estabelecidos como objetivos da dissertação a identificação e compreensão das seguintes questões: a) os desafios para a realização de um planejamento urbano que envolva todas as esferas de governo; b) a complexidade técnica das normas dos planos, em especial, dos planos urbanísticos; e c) a emergência de caminhos no campo do Direito para a efetividade dos planos urbanísticos de competência da União.. Além disso, pretende-se destacar as implicações da omissão da União na elaboração e promoção de alguns planos urbanísticos, especialmente quanto ao controle de legalidade de atividades (com significativas repercussões no âmbito da territorialidade e do desenvolvimento urbano) realizadas num contexto de absoluta ausência de planejamento. Como forma de facilitar a compreensão do tema, o trabalho foi dividido em cinco capítulos, que procuram guardar entre si uma relação concatenada de ideias. No primeiro capítulo, busca-se reconhecer as características do sistema jurídico relativo à ordem urbanística, especialmente as novas dimensões jurídicoconstitucionais da política urbana, concebidas a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2.001). As normas constitucionais que interessam ao direito urbanístico são abundantes no texto constitucional de 1988, o qual atribui competências legislativas e administrativas aos diversos entes federais. Por isso, no capítulo segundo é proposta a análise da repartição de competências entre os entes federativos como forma de avaliar as competências urbanísticas atribuídas a cada um deles, notadamente sob o enfoque do planejamento urbano. No capítulo terceiro será analisado o modelo normativo de planejamento urbano. Objetiva-se aprofundar o estudo deste tema discorrendo acerca do papel dos planos urbanísticos e acentuando as modificações decorrentes da evolução política e da valoração principiológica do Estado Democrático de Direito ditadas pela Constituição Federal de 1988 e 11 pelo Estatuto da Cidade. Além disso, abordam-se as íntimas conexões e influências recíprocas que se verificam entre a planificação territorial e a planificação econômica. No quarto capítulo, explicita-se efetivamente o tema da dissertação, ao se buscar a análise da contribuição dos planos urbanísticos de competência da União para o desenvolvimento urbano. Foi necessário, para tanto, discorrer sobre aspectos que poderiam ser tratados no plano urbanístico nacional e nos planos regionais, bem como avaliar a importância deles para a articulação dos planos setoriais e dos planos urbanísticos elaborados pelos demais entes federativos. O último capítulo desse trabalho dedicou atenção à análise de estratégias para conferir efetividade aos preceitos que estabelecem o dever de a União elaborar os planos urbanísticos de sua competência. 12 1. OS ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANÍSTICO 1.1 A concepção de urbanismo O crescimento das cidades (urbanização) e dos problemas dele decorrentes trouxeram novas exigências espaciais quanto às necessidades atinentes à habitação, infraestrutura e equipamentos urbanos, de modo que a imperiosidade de reorganizar as cidades, subjugadas pelos efeitos devastadores da urbanização, exigiu uma técnica, uma ciência, que se batizou de “urbanismo”.1 Com efeito, no início do século XX, o urbanismo acaba se projetando no Brasil e em diversos países, deixando de se restringir apenas ao desenho urbano e de ser caracterizado como mero prolongamento da arquitetura, muito embora, nesta época, se deparasse com as limitações impostas pelo Estado Liberal, principalmente no que tange à concepção da propriedade como direito absoluto. Nessa linha, as transformações socioeconômicas acarretadas por diversos fatores, destacadamente a Revolução Industrial e a ampliação demográfica das cidades, levaram, paulatinamente, à consolidação do urbanismo como disciplina autônoma dedicada ao estudo da complexidade estrutural e morfológica das cidades, assim como dos problemas a elas correlatos.2 A busca da ordenação do espaço urbano é que proporcionou o desenvolvimento do urbanismo. Cabe destacar que o crescimento da população urbana, as influências recíprocas havidas entre as atividades desenvolvidas no perímetro urbano e na zona rural e os impactos ambientais causados pelas ocupações humanas expandiram as preocupações do urbanismo. É o que afirma José Afonso da Silva: Em tais condições, cabe reconhecer que a cidade não é uma entidade com vida própria, independente e separada do território sobre o qual se levanta. Pelo contrário, insere-se nele como em um tecido coerente cuja estruturação e 1 A propósito, foi na França, em 1907, que se convencionou chamar de urbanismo a ciência que tratava dos assentamentos urbanos, sendo os anos subsequentes marcados pela criação de instituições a ela dedicados, como a Societé Française des Urbanistes, no ano de 1913. Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros. Curitiba: Juruá, 2009, p. 52. 2 Cf. SICA, Paolo. História del Urbanismo – El Siglo XX. Traducción de Joaquín Hernández Orozco. Instituto de Estudios de Administracion Local. Madrid, 1981, p. 11. Apud COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 45. 13 funcionamento resultam inseparáveis da cidade moderna. O objeto do urbanismo amplia-se, desse modo, até incluir não somente a cidade, mas todo o território, 3 tanto o setor urbano como o rural. A noção de complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, numa visão integrada da cidade, delimita melhor o objeto do urbanismo. Como as normas que compõem o direito urbanístico têm como principal fonte material as regras e técnicas do urbanismo, o âmbito da política urbana deve levar em conta tais características. Nesse sentido, assim se manifesta Carlos Ari Sundfeld: Tem-se discutido se as áreas rurais são ou não alcançadas pela regulação do direito urbanístico; pergunta a que os especialistas vêm dando resposta enfaticamente positiva, baseados em uma visão integrada da cidade (visão, essa, aliás, acolhida pelo art. 40, § 2º, do Estatuto da Cidade, segundo o qual o plano diretor municipal “deverá englobar o território do Município com um todo”). É preciso, porém, algum cuidado com as simplificações. A Constituição isola, em capítulos separados, a política urbana (arts. 182-183) e a política fundiária (arts. 184-191), esta última ligada ao problema social da distribuição das terras (reforma agrária) e de sua exploração econômica. Assim, o direito agrário é efetivamente um limite do direito urbanístico, pois a política urbana não pode tomar para si definições que são próprias da política fundiária (agrária). Mas isso não quer dizer que o direito urbanístico seja alheio ao meio rural, pois a ele cabe a disciplina (a) da passagem de uma área da zona rural para a zona urbana (segundo o art. 182, § 1º, da CF, cabe ao plano diretor municipal fixar a “política de expansão urbana”), (b) da proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da cidade como um todo (como as águas e o ar), independentemente da zona em que situados, (c) das relações em geral entre o meio rural e o meio urbano e (d) das questões espaciais do meio rural, naquilo que não esteja diretamente vinculado à política agrária.4 Em tais condições, cabe ainda reconhecer que o urbanismo objetiva não só a organização dos espaços habitáveis, como também as áreas de preservação permanente, os parques ecológicos, as reservas ambientais etc, inseridos no contexto urbano ou com forte 3 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 31. SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, nota 10, p. 49-50. 4 14 influência na qualidade de vida da população urbana, que devem ser preservados com a aplicação de normas urbanísticas cientificamente corretas, pois é necessário definir como o homem deve se portar em relação a elas, ordenando e limitando as formas de ocupação e intervenção urbana nesses espaços. Por isso, hodiernamente, o urbanismo tem uma natureza polissêmica, já que comporta uma pluralidade de sentidos. Dessa forma, ele pode ser analisado como fato social, como técnica, como ciência e como política5, mas sempre voltado à prevenção, ao controle e à correção dos problemas causados pela urbanização. Pautado nessa observação, o urbanismo, como fato social, analisa o fenômeno secular da criação e do desenvolvimento dos núcleos populacionais, buscando a criação de técnicas e regras de adaptação do homem ao espaço natural, o que implica consciência coletiva de preparação do espaço comum de um determinado núcleo populacional. Além disso, a cidade é uma invenção humana. Aliás, a maior e a mais bem sucedida das invenções. Com ela surge a Civilização. Como invenção, a cidade é um objeto artificial, isto é, construído pelo homem, e como objetos construídos as cidades guardam uma dimensão técnica que lhes é inalienável. Assim, as cidades não podem prescindir da técnica, em especial da Ciência do Urbanismo. Para Leonardo Benevolo, o urbanismo, como técnica e ciência interdisciplinar que é, correlaciona-se com a cidade industrial, como instrumento de correção dos desequilíbrios urbanos, nascidos da urbanização e agravados com a chamada “explosão urbana” do nosso tempo. Segundo o autor, as tentativas para corrigir os males da cidade industrial cristalizaram-se em torno de duas posições extremas: uma que se opunha à cidade existente, propugnando por formas novas de convivência social (corrente qualificada pelo autor como de utopista, que trouxe contribuições importantes para o urbanismo contemporâneo, como os conceitos de zoneamento, áreas verdes, espaços livres, taxa de ocupação e coeficiente de aproveitamento do terreno, recuos, afastamentos e gabaritos, tendo como expoentes Owen, Saint-Simon, Fourier, Cabet e Godin); outra posição que se propunha a resolver, separadamente, os problemas, remediando isoladamente os inconvenientes, sem levar em conta as conexões e sem uma visão global do novo organismo urbano, nesta ligandose especialistas e funcionários que introduzem regulamentos sanitários e serviços administrativos, mediante a utilização de instrumentos urbanísticos técnicos e jurídicos, que 5 Cf. CORREIA. Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Vol. I. 4. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 25-26. 15 permitiram realizar transformações no meio urbano, dando origem à legislação urbanística moderna. A essa época, grande parte das infraestruturas urbanas do solo (ruas, estradas, pontes, canais, portos) devia-se à iniciativa privada, mas a evolução impôs ao Estado a prestação desses serviços urbanísticos, especialmente no referente aos serviços sanitários, até a renovação de Paris por obras de Hausmann, que embelezou a cidade.6 Como se vê, o termo “urbanismo” aparece utilizado também como sinônimo de técnica de criação, desenvolvimento e reforma das cidades. As técnicas urbanísticas não foram as mesmas ao longo dos tempos, tendo como causas a evolução das correntes de arquitetura, das técnicas de construção e as próprias concepções político-ideológicas. Por outro lado, nas sociedades de fato democráticas, a cidade é um objeto que não tem um só dono e nem é construída por uma só pessoa. A cidade tem milhares de donos e construtores, seus cidadãos, cada qual com direitos sobre ela. A compatibilização desses direitos reforça o imperativo das técnicas do planejamento urbano e do urbanismo, mas, também, determina para as cidades outra dimensão, do mesmo modo inalienável, que é a dimensão política. Para a cidade, a técnica e a política são sustentáculos em favor do bem-estar da população. Nem a técnica pode determinar sozinha, nem a política pode decidir sozinha, pois, assim, a sociedade abre mão dos avanços técnico-científicos imprescindíveis à construção da cidade, abrindo caminho ao caos urbano. Desse modo, a visão do urbanismo, como política, parte do pressuposto que as decisões sobre as cidades devem ser decididas democraticamente. Só que essas decisões devem ocorrer sobre alternativas pautadas por meio de normas técnicas de planejamento e construção ditadas pela Ciência do Urbanismo. Além disso, o urbanismo também é exercido por normas jurídicas de conduta social, exigidas e impostas pelo ordenamento legal vigente, já que a ordenação dos espaços, das ruas, das construções, e as exigências do fazer ou não-fazer para conseguir articular a cidade, se desenvolvem por meio de medidas estatais, dada a proporção de intervenções que têm de haver no domínio privado. Nesse sentido, necessária a transcrição do entendimento de José Afonso da Silva sobre a concepção de urbanismo: 6 Cf. BENEVOLO, Leonardo. Aux Sources de l’Urbanisme Moderne. Trad. de André e Frances Decamps. Paris, Horizons de France, 1972, p. 6 e 72. Apud. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 28-30. 16 Concebeu-se “urbanismo”, inicialmente, como arte de embelezar a cidade. Esse conceito, porém, evoluiu no sentido social, tanto quanto evoluíra o conceito de “cidade”, que tende a expandir-se além do perímetro urbano. Assim concebido, o urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objetivo é a organização do espaço urbano visando ao bem-estar coletivo – através de uma legislação, de um planejamento e da execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico e progressivo das funções urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação do corpo e do espírito, circulação no espaço urbano.7 Essa concepção formara-se nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), consolidando-se na Carta de Atenas, em 1933, na qual se formularam as funções fundamentais do urbanismo: habitação, trabalho, recreação e lazer. As visões da Carta de Atenas (1933) influenciaram profundamente as cidades. A proposição da cidade funcional como crítica às cidades tradicionais definia funções básicas, em contraponto à considerada obsolescência do tecido urbano existente. Embora a primeira versão desse documento tenha dado ensejo a projetos urbanísticos de setorização e separação das atividades de habitar, circular, habitar e recrear, as últimas versões da Carta de Atenas já incorporaram novos valores, como o do desenvolvimento sustentável. Aliás, ao assentar as funções do urbanismo, a Carta de Atenas expressa a convicção de que, nas cidades, o equilíbrio é possível – e, por isso, necessário. Deve-se buscar o equilíbrio das várias funções entre si (moradia, trabalho, lazer, circulação etc.), de modo que seja assegurada ao homem moradia saudável, isto é, local onde o espaço, o ar puro e o sol (condições essenciais da natureza) lhe sejam largamente assegurados. Da mesma forma, o urbanismo deve organizar o local de trabalho, de maneira que, em vez de ser uma sujeição penosa, ele retome seu caráter de atividade humana natural. Além disso, o lazer, com técnicas e políticas que assegurem as instalações necessárias à boa utilização das horas livres, também é foco de preocupação do urbanismo. E, por último, há de se estabelecer o contato entre essas diversas funções mediante uma rede circulatória voltada ao bem-estar da população, consistente na abertura de avenidas, vias, ciclovias etc. De uma forma ou de outra, cabe a advertência feita por Rafael Augusto Silva Domingues, no sentido de que não se pode deixar de considerar que a Carta de Atenas (vista pela dogmática jurídica como postulado do Direito Urbanístico) foi produzida a partir 7 Ibid., p. 30. 17 de uma concepção filosófica (movimento modernista) que não necessariamente reflete os contornos do atual ordenamento jurídico brasileiro. Nesse contexto, explica o autor: É possível perceber já aqui, como fruto dos novos valores constitucionais, que o próprio Estatuto da Cidade concretiza, já contempla outras funções das cidades não previstas na “Carta de Atenas”, a exemplo do direito ao saneamento ambiental, que concretiza a proteção constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado 8 (art. 225). Assim, para o autor, projetos futuristas, concebidos a partir do pensamento filosófico modernista, com suas divisões em setores administrativo, residencial e comercial, etc., não se sustentam, sob o ponto de vista jurídico, se não observarem as funções sociais da cidade tal como foram eleitas pelo atual ordenamento jurídico brasileiro.9 A concepção de urbanismo teve ainda várias contribuições advindas de construções teóricas formuladas na década de 60 por Henri Lefebvre e de agendas políticas de reforma urbana estabelecidas por segmentos da sociedade civil nos anos 80. A caminhada segue com os diálogos realizados nos anos 90 entre ativistas de direitos humanos, ambientalistas, organizações não governamentais, movimentos populares urbanos, autoridades nacionais e organismos internacionais nas Conferências Globais das Nações Unidas como a do Meio Ambiente, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro, e a dos Assentamentos Humanos (Habitat II), no ano de 1996, na cidade de Istambul, nas quais foram introduzidos componentes, respectivamente na Agenda 21 Global e na Agenda Habitat (documentos oficiais destas conferências), que se traduzem em pautas irrenunciáveis na implementação de uma política de desenvolvimento urbano, como é o caso, por exemplo, da sustentabilidade ambiental, da gestão democrática da cidade e do direito à moradia.10 Dito isso, é certo que o urbanismo e o meio ambiente não podem ser mais vistos como duas entidades díspares e conflitantes. Portanto, parte-se de uma visão urbanística integrada ao meio ambiente, fortalecendo a ideia de que os temas “desenvolvimento urbano” e “meio ambiente” designam fenômenos interdependentes. Por isso, a visão de urbanismo engloba atualmente a busca de um desenvolvimento urbano mais sustentável, com a previsão 8 DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico – limites da autonomia municipal. Belo Horizonte: Editora Forum, 2010, p. 32. 9 Ibidem. 10 Cf. SAULE JÚNIOR, Nelson. A relevância do direito à cidade na construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis. In: SAULE JÚNIOR, Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias jurídicas das políticas urbanas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 30. 18 de mecanismos que assegurem a participação dos habitantes na gestão das cidades, para que todos tenham um padrão de vida digno mediante o acesso a uma moradia adequada, ao trabalho, ao lazer e ao meio ambiente equilibrado. 1.2 A atividade urbanística A atividade urbanística consiste na ação destinada a realizar os fins do urbanismo. Ou seja, ela se consubstancia nas intervenções do Poder Público com o objetivo de organizar o espaço urbano e as áreas que, de alguma forma, interfiram na qualidade de vida da população urbana. Para José Afonso da Silva a atividade urbanística compreende momentos distintos que se acham ligados entre si e em recíproca dependência, tendo por objeto: a) o planejamento urbanístico; b) a ordenação do solo; c) a ordenação urbanística de áreas de interesse especial; d) a ordenação urbanística da atividade de edificar; e e) os instrumentos de intervenção urbanística.11 Como se nota, a atividade urbanística pressupõe a realização de adequado planejamento, pois quem impulsiona e exerce essa ação de ordenação precisa ter consciência do que quer alcançar com tal influxo, tendo uma ideia clara do que seja desejável para o lugar ou território em questão, mas também do que, razoavelmente, pode conseguir com os meios de que dispõem.12 Há de se acrescentar que nenhuma política pública específica pode existir isoladamente, devendo coordenar-se com a política geral do Estado e com as inúmeras setoriais (transportes, saneamento, energia, agrária etc.), como vem delineado em vários preceitos constitucionais, como os dos arts. 174, § 1º, 21, IX e XX e 182. Nesse sentido, Carlos Ari Sundfeld destaca que “um dos aspectos da política urbana é o da sua “coordenação externa”, isto é, a definição dos modos pelos quais se compatibilizará com as demais políticas”. Ainda, de acordo com o autor, a Constituição é que viabiliza essa coordenação, através de um sistema de racionalidade decisória, em que as normas e decisões em matéria urbanística têm sua validade condicionada ao respeito a normas e decisões de maior abrangência, tanto no sentido territorial (a política espacial da cidade deve compatibilizar-se com a política nacional de ordenação do território) como temático (a política espacial da cidade deve compatibilizar-se com a genérica política de 11 12 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 31-32. Ibidem. 19 desenvolvimento). Indo mais longe, o autor afirma que “a Constituição Federal de 1988 fez do planejamento o grande instrumento do direito urbanístico, articulando competências federais, estaduais e municipais”. 13 Como desdobramento e complemento do planejamento urbano (plano), vem a ordenação do solo, com a disciplina pertinente ao uso e ocupação dos espaços habitáveis, o que exige instrumentos de intervenção urbanística destinados a possibilitar a execução do plano e a ordenação do solo (como é o caso, por exemplo, da expropriação para fins urbanísticos, aumento da tributação territorial sobre lotes etc.). Outro momento importante da atividade urbanística é a preservação do meio ambiente e cultural, com a ordenação de áreas de interesse especial (interesse ambiental, histórico-cultural, turístico etc.), bem como a clássica atividade de controle das edificações, com a análise dos projetos de edificação (avaliação da compatibilidade com o plano e as regras de uso e ocupação do solo). A atividade urbanística, por implicar intervenção na propriedade privada e na vida econômica e social das cidades, deve contar com aparato legal para o alcance dos objetivos propostos pelo Poder Público, desenvolvendo-se nos estritos limites jurídicos. Assim, a atividade urbanística está sujeita ao princípio da legalidade, vez que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, II), perfazendo-se através de normas jurídicas que constituem o objeto do direito urbanístico. 1.3 O direito urbanístico 1.3.1 Considerações preliminares A necessidade de uma convivência ordenada impõe-se como condição para a subsistência da sociedade. O direito corresponde a essa exigência ordenando as relações sociais através de normas obrigatórias de organização e comportamento humano. Não por outro motivo, André Franco Montoro define o direito como sendo uma ciência normativa, humana, moral cuja finalidade específica é ordenar a conduta social dos homens, no sentido da justiça.14 13 SUNDFELD Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais, p. 50-51. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 83. 14 20 Aliás, há de se registrar que a cidade, como espaço da vida humana em sociedade, é o ambiente interpessoal de comportamentos que provocou a existência de regras de convivência social, das mais simples às mais complexas. Nesse contexto, as regras de cunho urbanístico surgiram com a necessidade de organizar a convivência entre pessoas que se fixavam em uma mesma localidade. Observase, ainda, que o desenvolvimento de normas com conteúdo de ordenação do espaço urbano ocorreu paralelamente ao fortalecimento da postura interventora do Estado na organização espacial das cidades, acompanhando as transformações que se vinham processando na esfera do direito de propriedade, especialmente no início do século XX. Ocorre que o direito é um produto histórico, reflexo da evolução da sociedade. Ou, mais que isso, seu caráter de historicidade é fundamental para o manuseio de seus institutos e conceitos principais. Assim, ao mesmo tempo em que se veem novos direitos emergindo, direitos preexistentes sofrem renovações frequentes. Com a recente positivação de alguns direitos difusos, antigos direitos têm seu conteúdo revisto e readaptado à realidade emergente. O atual perfil do direito urbanístico, por exemplo, é fruto da redefinição do direito de propriedade e da incorporação de novos valores ao ordenamento jurídico. Nesse aspecto, como fenômeno social, o direito não pode ser entendido como mera abstração, não é invariável, nem intocável, pois evolui com a sociedade. Aliás, o fenômeno da normatização dos direitos fundamentais é explicado por Bobbio da seguinte maneira: uma passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus, que foi o primeiro sujeito ao qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) – em outras palavras, da ‘pessoa’ -, para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (como no atual debate, entre filósofos da moral, sobre o direito dos pósteros à sobrevivência); e, além dos indivíduos humanos considerados singularmente ou nas diversas comunidades reais ou ideais que os representam, até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais. 15 15 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 69. 21 Segundo o autor, a multiplicação dos direitos ocorreu por um aumento na quantidade de bens a serem protegidos pelo direito, assim como na quantidade de sujeitos e de status do indivíduo. E esse cenário trouxe mudanças ao urbanismo, pois, atualmente, a atividade urbanística se faz cada vez mais necessária, implicando o surgimento de normas jurídicas para regulá-la e fundamentar a intervenção no domínio privado, constituindo o que a teoria jurídica denomina de “direito urbanístico”, em seu sentido objetivo. A propósito, José Afonso da Silva aponta que o direito urbanístico pode ser analisado sob dois aspectos: “(a) o direito urbanístico objetivo, que consiste no conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público destinado a ordenar os espaços habitáveis – o que equivale a dizer: conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade urbanística; (b) o direito urbanístico como ciência, que busca o conhecimento sistematizado daquelas normas e princípios reguladores da atividade urbanística”. 16 Nota-se, assim, que o autor faz uma correta distinção entre ciência do direito e direito positivo em si, definindo o campo de atuação de cada qual, para a análise do direito urbanístico.17 Como se pode perceber, o direito urbanístico é fruto da evolução dos direitos e seu conteúdo constitucional identifica-o como um direito de natureza difusa. É um produto histórico, complexo, que não se compatibiliza tão somente com as esparsas ordenações da atividade edilícia previstas em legislações municipais, como era o cenário anterior à Lei Federal n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) e à Constituição de 1988. Além disso, mergulhado na complexidade de um mundo globalizado, podese afirmar que o direito urbanístico atual sofre um processo de redefinição de seus conceitos e de suas práticas, em que a interação com outras disciplinas passa a fazer parte do seu núcleo teórico e serve de fundamento para a sua aplicação, aflorando-se preocupações do urbanismo voltadas à qualidade de vida, à proteção do patrimônio natural, histórico, paisagístico e cultural, e à participação da sociedade na definição dos destinos da cidade. 16 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 37. Na lição de Paulo de Barros Carvalho “o Direito positivo é o complexo de normas jurídicas válidas num dado país. À Ciência do Direito cabe descrever esse enredo normativo, ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”. Mais adiante conclui o autor que “o direito posto é uma linguagem prescritiva (prescreve comportamentos), enquanto a Ciência do Direito é um discurso descritivo (descreve normas jurídicas)” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 18. ed. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 23). 17 22 1.3.2 Objeto do direito urbanístico Com efeito, a partir de um enfoque dogmático-normativo, tem-se como objeto do direito urbanístico a legislação constitucional e infraconstitucional que interfere, direta e indiretamente, na qualidade de vida da população (especialmente a urbana), abrangendo o ordenamento físico ou territorial e as atividades econômico-sociais. Essa estrutura normativa do urbanismo (atividade urbanística) inclui o planejamento, a ordenação do solo, a ordenação urbanística de áreas de interesse especial, a ordenação urbanística da atividade edilícia, e os sistemas de elaboração, gestão e de fiscalização da atividade urbanística. Como complementação, é importante destacar que a própria Constituição prevê duas espécies de competência na matéria de urbanismo, quais sejam, a competência legislativa e a competência material. Aquela se dá através da expedição de atos genéricos e abstratos, ou seja, de normas jurídicas, enquanto nesta se identificam atos concretos de efeitos imediatos, ou seja, atos jurídicos urbanísticos. Justamente por isso, a função urbanística ocorre também através da prática de atos materiais (de execução), podendo-se concluir que o direito urbanístico não tem como objeto apenas as normas jurídicas, mas, também, os atos e fatos jurídicos urbanísticos. A propósito, José Afonso da Silva propõe uma classificação de atos e fatos jurídicos urbanísticos da seguinte forma: a) atos urbanísticos procedimentais, que são os que se ordenam num procedimento urbanístico, como os atos integrantes, por exemplo, de um plano de reurbanização; b) atos urbanísticos isolados, aqueles que não se inserem num procedimento, como um decreto que, de acordo com a lei, fixa as zonas de uso ou estabelece os limites da zona urbana; os atos de aprovação de um plano de arruamento ou de loteamento; um certificado de uso do solo; um alvará de licença para construir; o “habite-se”; c) fatos urbanísticos operacionais, que são aqueles que, num conjunto sucessivo, integram as operações materiais de execução de procedimento urbanístico, como os de execução de um plano de reurbanização; d) fatos urbanísticos isolados, como a abertura de uma rua ou seu fechamento, seu alargamento, seu estreitamento, seu rebaixamento ou sua elevação, com interferência no nivelamento ou no alinhamento dos imóveis privados.18 Nessa linha, o direito urbanístico abrange, de forma ampla, não só as intervenções e atividades urbanísticas, mas todo o referencial contido, implícita ou 18 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 46-47. 23 explicitamente, nos fenômenos urbanos, o que amplia consideravelmente a concepção tradicional de tal ramo do direito, mais vinculada às intervenções e ao planejamento.19 Como consequência, a nova ordem jurídico-urbanística permite a devida disciplina e o controle jurídico dos processos de uso, ocupação, parcelamento e desenvolvimento urbano, tendo como objeto as normas referentes ao planejamento urbano, ao direito à moradia, à preservação ambiental, à captura das mais-valias urbanísticas, à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados, entre outras. É possível perceber, desde já, que o direito urbanístico atrai para seu âmbito de incidência alguns bens juridicamente protegidos por outros ramos do direito, como o direito de propriedade e a proteção ambiental nos núcleos urbanos. De fato, é de interesse do direito urbanístico a análise da propriedade urbana sob o ponto de vista do cumprimento da sua função social (uso da propriedade de acordo com o ordenamento do solo determinando pelo plano diretor de cada cidade), bem como de sua função ambiental (elementos e aspectos ambientais inseridos territorialmente na vida urbana). Assim, o direito urbanístico tem como preocupação principal a ocupação dos espaços habitáveis e, nesse sentido, criou medidas específicas para que essa ocupação se dê da forma mais adequada e saudável possível. É o que assinala Daniela Campos Libório Di Sarno: A inserção do meio ambiente natural no Direito Urbanístico ocorre pela proteção ao meio ambiente natural inserido no contexto urbano. Essa proteção pode se dar isolando-o, permitindo acesso com uso limitado, proibindo o uso ou acesso e até estimulando o uso ou acesso adequados, com delimitação por norma jurídica que 20 proteja e resguarde certo aspecto ou o todo. Tal dificuldade de situar o direito urbanístico dentro da Ciência Jurídica reside, exatamente, na peculiar natureza de que se revestem as normas urbanísticas. Disciplinando a ordenação dos espaços habitáveis, as normas urbanísticas vão interferir – de forma mais ou menos acentuada – no direito ambiental. Nesse sentido, há uma nítida intersecção da matéria ambiental perante o direito urbanístico na proteção ao meio ambiente natural inserido no contexto urbano e que 19 Cf. OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano. A experiência do plano diretor de Porto Alegre/2009. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Programa de Pósgraduação em Planejamento Urbano e Regional, 2009, p. 88. 20 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri: Manole, 2004, p. 13-14. 24 repercute, por exemplo, na questão da competência para legislar sobre questões ambientais e urbanísticas. Nesse contexto, o decreto estadual n. 2.283/2009, que regulamenta a Lei n. 8.588/06, do Estado de Mato Grosso,21determina os limites para a utilização de defensivos, estabelecendo que as aplicações terrestres de agrotóxicos devem ser realizadas respeitando a distância mínima de 300 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e de mananciais para a captação de água para abastecimento da população (art. 46). Acontece que alguns planos diretores de municípios inseridos em regiões agrícolas do estado estabelecem limites maiores, o que gera alguns questionamentos sobre a constitucionalidade de tais dispositivos, haja vista o disposto no § 2º, do art. 24 da CF, que estabelece a competência suplementar dos Estadosmembros (competência concorrente) para legislar na proteção do meio ambiente e da saúde. Essa exegese há de ser vista com parcimônia, pois a questão ora em comento deve ser tratada por normas urbanísticas, já que tais atividades repercutem diretamente na qualidade de vida da população urbana, caso sejam realizadas muito próximas às cidades. A competência dos municípios para tratar do assunto, através de normas urbanísticas, decorre não apenas do interesse local estampado no art. 30, inciso I, mas especialmente do art. 182 da CF. Assim, não se vislumbra óbices para que o plano diretor disponha sobre limites para a realização da atividade em tela tendo como objetivo proteger a qualidade de vida da população local. À luz dessas considerações, pode-se afirmar que o direito urbanístico como ramo do direito público tem por objeto normas e atos que visam a harmonização das funções do meio ambiente urbano, na busca da qualidade de vida da coletividade. Cumpre ressaltar que o direito urbanístico começa a ter seus próprios princípios jurídicos, resultado de uma especialização da matéria, o que sinaliza sua autonomia em relação aos demais ramos do Direito. 1.3.3 Princípios do direito urbanístico Conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello “diz-se que há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e regras que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito”.22 21 Disponível em: <htpp://www.sema.mt.gov.br/index.php?option=com_docman&Itemid=173>. Acesso em: 11 nov. 2011. 22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 52. 25 Por certo, só há de falar em direito urbanístico no pressuposto de que existam princípios que lhe são peculiares e que guardem entre si uma relação lógica de coerência e unidade. Ou seja, o direito urbanístico como dogmática busca, por meio de sua aplicação, proteger determinados bens, interesses e valores considerados relevantes para uma dada sociedade, dotada em seu cerne de opções ideológicas, éticas e estruturais próprias de um determinado modelo de Estado. Isso só é possível graças a um sistema firmado em princípios. Os princípios são viabilizados por meio de regras. Enquanto os princípios expressam valores que informam o sistema jurídico, dotados, portanto, de abstratividade, as regras buscam assegurar concretude ao sistema, criando mecanismos que assegurem observância e aplicação à valoração eleita. Nas palavras de Gomes Canotilho, “os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem), que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a convivência das regras é antinómica; os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se”.23 Desse modo, o conflito normativo, as antinomias, ocorrem entre regras, não entre princípios. E os princípios atuam como núcleo informador do sistema, orientando o ordenamento jurídico. O direito urbanístico, como disciplina recente, ainda ressente-se do pouco desenvolvimento dos seus conceitos e institutos. Nesse sentido, ligada à problemática de sua autonomia, tem-se a relativa à identificação de seus princípios específicos.24 Cabe ressaltar, ainda, que a legislação disciplinadora do urbanismo no Brasil é escassa, esparsa e pouco didática, o que dificulta extração de princípios informadores dessa matéria. Com efeito, indicar os princípios da legalidade, da supremacia do interesse público, da moralidade, da publicidade, entre tantos outros, segundo Daniela Campos Libório Di Sarno, “faz com que todas as normas de Direito Público sejam produzidas e executadas nas 23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra, Almedina, 2003, p. 1.161. 24 O direito urbanístico desenvolveu-se mais em países que já tinham tradição no tocante à ação governamental no campo do desenvolvimento urbano, ou que sentiram primeiro ou mais intensamente as consequências do processo de urbanização, como demonstra a doutrina urbanística desenvolvida na Espanha, na França e na Itália (Cf. DALLARI, Adilson. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 20). 26 mesmas conformidades, dando segurança jurídica ao Estado e à sociedade”. Porém, complementa a autora, “não especializa o tratamento a ser dado para certa matéria”, ou seja, não contribui para atribuir autonomia à matéria enfocada.25 Mesmo entre os autores de países cuja legislação urbanística é objeto de estudo há considerável tempo, são poucos os que se aventuraram a apontar tais princípios. José Afonso da Silva, por exemplo, utiliza-se das lições do espanhol Antônio Carceller Fernandez para indicar como princípios de direito urbanístico a função pública, a conformação da propriedade urbana, a coesão dinâmica das normas urbanísticas, a afetação das mais-valias ao custo da urbanificação, e a justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística.26 É imperioso ressaltar que as considerações sobre o tema feitas por José Afonso da Silva conseguem realmente extrair vários princípios específicos do direito urbanístico, deixando à margem de suas instruções princípios gerais aplicáveis a todos os ramos da Ciência Jurídica, de forma coerente com o panorama trazido ao disciplinamento das questões urbanísticas pela Constituição de 1.988 e pela Lei 10.257/2.001. Assim, prefacialmente, há de se identificar o conceito de função pública. Tal princípio indica que a atividade urbanística é um “poder-dever” (não uma mera faculdade) e como tal deve ser exercido fundamentalmente pelo Poder Público, que se encontra respaldado na própria estrutura apontada pela Constituição Federal (por exemplo, o art. 30, VIII, e o art. 182). Por meio desta função, a ordenação da atividade urbana é essencialmente pública, cabendo a ela promover o planejamento, a gestão e o controle das atividades com reflexos na ocupação, uso e transformação do solo, através de uma estrutura própria. Daniela Campos Libório Di Sarno esclarece que “não está explicitado em qualquer texto legal de forma clara e objetivada que a função pública seja um princípio jurídico”. No entanto, adverte a autora que “o entendimento de que o Poder Público deve buscar interesses coletivos ou de essência pública é encontrado em toda a organização de seus poderes e, por consequência, suas funções”.27 Com isso, afirma-se haver casos em que o dever não aparece de forma explícita na norma jurídica, mas decorre da lógica do sistema. Tais casos são mais frequentes quando se trata de dever a ser cumprido pelo Estado, pois os agentes que exercem atividade estatal atuam por intermédio de função administrativa, a qual nada mais é que o dever de 25 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 45-46. Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 45. 27 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 45. 26 27 cumprir o estabelecido em lei para o alcance do interesse público previsto no ordenamento jurídico. O dever jurídico relacionado ao planejamento, por exemplo, é um dos deveres da boa administração, que deve ser levado à implementação pelo Poder Público com fundamento nos princípios do art. 37, caput, da Constituição Federal, em especial, no princípio da eficiência. Outro princípio apontado por José Afonso da Silva é o da conformação da propriedade urbana que significa, em linhas gerais, que o Poder Público, através da atividade urbanística, deve condicionar o direito de propriedade o que, de certa forma, o insere no princípio da função social da propriedade (positivado por meio de diversos artigos do texto constitucional, como o art. 5º, XXIII; art. 170, III; art. 182, §§ 2º e 4º; arts. 184 e 186). Vale consignar que o direito urbanístico é todo construído sobre um conceito funcional de propriedade imóvel, que tem como núcleo central a função social da propriedade.28 Nesse sentido, tal é a relevância e a extensão do princípio da função social da propriedade, irradiando-se por todo o campo de incidência das normas urbanísticas, que se pode afirmar ser este um princípio fundamental do direito urbanístico, verdadeira diretriz a nortear toda a ordenação do território.29 A Lei Fundamental de 1988 incumbiu ao Poder Público municipal a tarefa de implementar a política de desenvolvimento urbano, com a finalidade de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e assegurar o bem-estar de seus habitantes (art. 182). Para tanto, elegeu o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (§ 1º), conferindo ao Poder Público local a faculdade de definir a função social da propriedade urbana (§ 2º). De fato, a propriedade urbana cumpre a função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, impositivo para cidades com mais de vinte mil habitantes (§§ 1º e 2º do art. 182). Por outro lado, a função social da propriedade rural foi disciplinada de forma diferente. A propriedade rural cumpre a 28 A teoria da função social da propriedade tem origem em Leon Duguit, constitucionalista e administrativista francês. Duguit procurou explicar o direito através de teorias sociológicas. Ele atacou, na sua análise, a existência dos chamados direitos subjetivos e propôs a substituí-los pela noção de situação jurídica. O publicista francês aplicou a sua teoria a um dos mais importantes direitos dos ordenamentos jurídicos de ordem capitalista, o direito de propriedade, reduzindo-o a situação jurídica. Para ele, a propriedade não era um direito, mas uma função social (Cf. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 59). 29 Cf. COSTA, Regina Helena. Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. Temas de direito urbanístico. Coord. Adilson Abreu Dallari e Lúcia Valle Figueiredo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 121. 28 função social quando preenche os requisitos dos incisos I a IV do art. 186 da CF, submetidos estes aos critérios e graus estabelecidos em lei. A Lei n. 8.629, de 22.2.1993, em seu art. 9º, fixa esses critérios e graus completando a definição constitucional. Aqui, o legislador constituinte não deixou muita margem de poder ao legislador infraconstitucional, praticamente predefinindo a função social da propriedade rural. O princípio da coesão dinâmica das normas urbanísticas, por sua vez, tem como pressuposto a necessidade de atuação generalizada e global para que haja eficácia na atuação urbanística, o que se observa, especialmente, na dinâmica do planejamento. Aliás, por oportuno, este princípio constitui o fundamento, dentre outras coisas, do planejamento urbano, a exemplo do que prevê o art. 2º, inciso IV do Estatuto da Cidade. Deve ser frisado que as disposições constitucionais encartadas no capítulo reservado à ordem econômica (Capítulo I do Título VII) impõem o dever de planejar ao Poder Público. Rafael Augusto Silva Domingues, analisando e sintetizando o conceito de diversos autores, chegou às seguintes conclusões sobre a repercussão deste princípio: Nesse passo, no nosso entendimento, a ausência de planejamento urbano macula na própria origem (a priori) a norma ou ato urbanístico, independentemente do animus do administrador. Em outras palavras, a expedição, por exemplo, de ato urbanístico sem a visão do conjunto, sem o devido planejamento, pode ser considerada objetivamente ilegítima, passível inclusive de anulação judicial. Em suma, a realização de desapropriações, a aprovação de loteamentos, a regularização de áreas urbanas em situação irregular, a doação de áreas públicas para empreendimentos privados, enfim, o desempenho da atividade urbanística sem o devido planejamento goza, no mínimo, de presunção de ilegitimidade (ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o caso). Este é, no nosso entendimento, o grande elemento diferenciador do Direito Urbanístico em face do Direito Administrativo.30 Quanto ao princípio da afetação das mais-valias ao custo da urbanificação31 tem-se a dizer que ele tem como fundamento a ideia de satisfação pelos proprietários dos 30 DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos Estados-membros no direito urbanístico: limites da autonomia municipal, p. 56-57. 31 De distinto conteúdo são os termos urbanização e urbanificação. Como elucida José Afonso da Silva, urbanização é o processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural. Já a urbanificação, para o autor, traduz-se no processo de correção da urbanização. (Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 26-27). 29 gastos decorrentes das obras e intervenções promovidas pelo Poder Público que lhes tenham trazido benefícios. Esse princípio tem origem no princípio da igualdade, vez que os proprietários de imóveis urbanos devem arcar com o ônus financeiro da urbanificação na exata proporção dos benefícios dela decorrentes diretamente. Se é verdade que a urbanificação traz benefício genérico a toda a comunidade local, não é menos verdade que ela traz benefícios específicos e diretos para os proprietários de imóveis abrangidos pelo plano de urbanização, a ser executado com recursos provenientes da comunidade em geral. Na Constituição Federal de 1988, por exemplo, o inciso II, do art. 145 prevê o instituto da contribuição de melhoria que nada mais é do que o retrato desse princípio concretizado no Código Tributário Nacional (arts. 81 e 82) e no próprio Estatuto da Cidade (art. 2º, XI; art. 4º, IV, “b”). A justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística é também princípio consagrado na nossa legislação urbanística e é consubstanciado no fato de que deve haver uma compensação pelos ônus e benefícios decorrentes da urbanificação. O Estatuto da Cidade prevê expressamente este princípio (art. 2º, inciso IX), que também pode ser vislumbrado através do Estudo de Impacto de Vizinhança (art. 37). Como se vê, os princípios adrede apontados, extraídos das lições de José Afonso da Silva, constituem-se num bom ponto de partida na busca de outros princípios informadores do direito urbanístico, como é o caso, dentre outros, do princípio da função social da cidade, introduzido na Constituição de 1988 pelo caput do artigo 182 que atribui ao Município, no desenvolvimento da política urbana, a observância das diretrizes gerais fixadas em lei. Aliás, a lei que fixa as diretrizes gerais desta política e que tem entre seus objetivos ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade é o Estatuto da Cidade. Assim, o desenvolvimento destas funções deve ser compreendido como o pleno exercício do direito a cidades sustentáveis, instituído no Estatuto da Cidade.32 De qualquer modo, a edição de legislação nacional orgânica e sistemática, hábil a traçar o perfil dos institutos urbanísticos de maneira mais clara e coerente, é que 32 Para Nelson Saule Júnior, o caput do art. 182 da Constituição nos ajuda a identificar o significado deste princípio, ao vincular o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes, que são os objetivos da política urbana. Para o autor, com esta vinculação dos objetivos, o interesse que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, para ele, “não há o estabelecimento de categoriais entre os cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade” (SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Sérgio Antônio Fabris Editor: Porto Alegre, 2004, p. 221). 30 possibilitará os avanços doutrinários necessários para o estabelecimento dos princípios informadores do direito urbanístico no Brasil. 1.3.4 Perfil constitucional do direito urbanístico Além de manterem-se fiéis aos axiomas liberais de limitação do poder político e de garantia de direitos fundamentais, as Constituições da maioria dos Estados contemporâneos incorporaram ao ordenamento jurídico alguns valores e fins que dão sentido a formas básicas de ações políticas e jurídicas. É o que enfatiza Josep Aguiló: La constitución del Estado constitucional há seguido la estrategia del constitucionalismo regulativo, de modo que sus valores y fines se han incorporado a la constitución em la forma de principios regulativos de la acción politica legitima. Así, las constituciones han incorporado los derechos y principios liberales (están comprometidas com la erradicación del autoritarismo) y los derechos y principios del Estado social (están comprometidas com la erradicación de la exclusión social). Todos estos elementos, en mayor o menor medida, son reconocibles, me parece, en las constituciones de los Estados que llamamos constitucionales. 33 Assim, entre outros assuntos, as atuais Constituições voltam-se ao alargamento e ao aprofundamento dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão, à enunciação dos fins essenciais (nos domínios econômico, social e cultural) do Estado, e à consagração de vários ramos do direito (e dos seus princípios essenciais). A propósito, com base na vontade coletiva de embutir nos textos constitucionais regras e subprincípios densificadores de princípios materiais de maior envergadura (axiológica e funcional) é que as Constituições passaram também a normatizar assuntos que, até então, eram próprios de outros ramos jurídico-positivos. É o que destaca Carlos Ayres Britto: 33 AGUILÓ, Josep. Sobre la Constitución del Estado Constitucional. Constitución: problemas filosóficos. Francisco J. Laporta (editor). Ministerio de La Presidencia – Secretaría General Tecnica. Centro de Estudios Politicos e Constitucionales. Madrid, 2003, p. 156. 31 Veja-se que as primeiras Constituições escritas, em matéria de direitos subjetivos oponíveis ao Estado, somente continham direitos individuais. Ainda assim, elas declaravam tais direitos, mas não os garantiam. Passaram a garanti-los, com o tempo, mas não se dispunham a dar conta dos direitos sociais (invenção do constitucionalismo do México, da Rússia e da Alemanha, já nos anos de 1917, 1918 e 1919, respectivamente). E só depois da Declaração Universal dos Direitos do Homem (Organização das Nações Unidas) é que as Leis Fundamentais de cada povo soberano foram ganhando uma funcionalidade fraternal (pelo decidido combate aos preconceitos sociais e pela afirmação do desenvolvimento, do meio ambiente e do urbanismo como Direitos Fundamentais), que já é uma função verdadeiramente transformadora ou emancipatória.34 E procurando responder ao grande relevo social e econômico que, nas últimas décadas, vem assumindo o direito urbanístico, bem como a sua íntima relação com a garantia da qualidade de vida e da dignidade dos moradores da cidade, a Constituição Federal de 1988 inseriu um acervo específico de regras e princípios desta área do direito. Assim, pela primeira vez na ordem jurídica constitucional, estabelece-se um capítulo voltado à política urbana, contendo um conjunto de princípios, responsabilidades e obrigações do Poder Público e de instrumentos jurídicos e urbanísticos para serem aplicados e respeitados com o objetivo de reverter o quadro de degradação ambiental e de desigualdades sociais nas cidades. Nota-se que o direito urbanístico deixa de ser um mero instrumento de ordenação, passando a cumprir um papel ativo como agente de transformação social, sofrendo um processo de redefinição de seus conceitos. Em outros termos, esse sistema de positivação constitucional do direito urbanístico o insere como um dos instrumentos de realização da justiça e do bem-estar da população (e não somente como estrutura de conformação legislativa da intervenção do Estado desprovida de propósitos e valores), o que o fundamenta em princípios como o da justiça social, da igualdade, da democracia, da participação popular e da sustentabilidade ambiental. Tal situação vem a ser reforçada com a edição da Lei n. 10.257, de 10.07.2001, autodenominada Estatuto da Cidade, a qual deu ênfase à obrigação do Estado em estabelecer um ordenamento territorial adequado, por meio de um sistema de planejamento e gestão que garanta o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, 34 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 179. 32 prevendo, ainda, a participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade (inciso III, do artigo 4º). Desse modo, o marco regulatório das cidades oferece um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, bem como uma nova concepção de planejamento urbano que envolve todos os entes federativos, partindo de uma leitura ampla de urbanismo que certamente rompe as fronteiras da cidade. Além da tradicional determinação das matérias do direito urbanístico, como aquelas relativas à ordenação do uso do solo, a Constituição Federal ao empregar a expressão “política urbana”, em capítulo específico, direciona ao entendimento de que qualquer matéria referente às políticas de planejamento territorial e de intervenção nos espaços urbanos, bem como as normas sócio-ambientais relacionadas ao território (e que tenham repercussão no ambiente urbano), sejam objetos do direito urbanístico. Portanto, partindo-se da ideia de que o planejamento urbano não pode restringir-se à figura do plano diretor, o ordenamento jurídico estabelece, no âmbito do planejamento, arranjos institucionais entre os níveis de governo com o objetivo de promover a elaboração e a implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente as que podem ser subsidiadas na articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de desenvolvimento social e econômico. 2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS 33 COMPETÊNCIAS URBANÍSTICAS 2.1 Aspectos gerais do federalismo A repartição de competências compõe uma das características do federalismo, de modo que, para o seu estudo, torna-se necessário apresentar os aspectos comuns desta forma de Estado. O termo federalismo provém do latim foedus, que significa pacto ou aliança de estados.35 Em essência, um arranjo federal é uma parceria estabelecida e regulada por um pacto, o que prevê um tipo especial de divisão de poder entre os entes. O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização político territorial do poder, surgido no século XVIII com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos de 1787.36A sua instituição é favorecida pela presença de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, sendo elas de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, socioeconômico (desigualdades regionais), nas quais se torna necessária a instituição de uma forma compartilhada de organização político territorial do poder que, ao mesmo tempo, mantenha a integridade territorial do país. Falar em federalismo é falar em forma de Estado. O federalismo é uma das formas de Estado existentes no constitucionalismo, na qual se objetiva distribuir o poder, preservando a autonomia dos entes políticos que compõem a federação.37 Pode-se afirmar que no federalismo convivem num mesmo território uma ordem jurídica global e outras ordens jurídicas parciais, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências. A federação essencialmente busca conjugar as vantagens da autonomia política com outras decorrentes da existência do poder central. Desse modo, a autonomia das 35 Para Michel Temer, é da união, da aliança, do pacto entre os Estados que surge a Federação (Cf. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 59). 36 As bases dos federalismo moderno encontram-se na compilação dos artigos publicados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay no jornal Daily Advertiser, recebendo o nome de The Federalist Paper. 37 A forma de Estado é “o modo do exercício do poder político em função do território” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, .p. 98). Acrescente-se que sob a ótica da forma geográfica de distribuição interna do exercício do poder político, Pedro Estevam Alves Pinto Serrano, com base na doutrina nacional sobre o assunto, esclarece que não há um modelo único de Estado unitário a ser servilmente recebido, indicando alguns tipos de Estado, a saber: Estado Unitário, Estado Unitário Descentralizado, Estado Constitucionalmente Descentralizado, Estado Regional e Estado Federal (Cf. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional. São Paulo: Editora Verbatim, 2009, p. 26). 34 unidades federadas e a consequente descentralização político-administrativa são as características mais marcantes do Estado Federal. As instituições clássicas e paradigmáticas do federalismo que serviram de base para a organização do Estado Federal foram o modelo norte-americano e o alemão. A propósito, os estados que formaram o sistema de federalismo norteamericano mantiveram poderes sólidos em suas mãos, só entregando ao poder central o expressamente enumerado no texto constitucional por eles redigido. Assim, os americanos buscaram assegurar que o Governo Federal não se tornasse forte o suficiente a ponto de eliminar a autonomia dos Estados-membros. A divisão entre o poder central e o poder local, estabelecida no sistema federal norte-americano, recebeu o nome de “federalismo dual”.38 Outro modelo de estado federal que também influenciou vários ordenamentos foi o federalismo alemão, instituído pela constituição de Weimar, de 1919, e institucionalizado pela Lei Fundamental de 1948. Nele instituiu-se as bases do federalismo cooperativo onde a inter-relação das instâncias de poder, bem como a colaboração delas tornaram-se um mecanismo marcante. Em tal arranjo busca-se o desenvolvimento de mecanismos de aproximação, cooperação, auxílio e ajuda dos governos (central e locais).39 É importante ressaltar que no federalismo cada ordem de poder detém a capacidade de autogoverno, com raio de atuação nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro. No entanto, a nota distintiva do federalismo reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – chamados, em alguns sistemas, de Estados, Províncias, Cantões etc.. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial. Assim, do ponto de vista jurídico, a autonomia pode ser conceituada como uma área de competência limitada pelo Direito. Ou seja, as entidades com autonomia gozam de ampla margem de atuação (com órgãos governamentais próprios que independem do poder central) dentro das competências que lhes são fixadas pela Constituição Federal. Celso Ribeiro Bastos formula cuidadosa manifestação sobre o conceito de autonomia, afirmando ser esta: 38 Cf. REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 96. Há de se acrescentar que, a partir da década de trinta, a política do New Deal forçou o desenvolvimento de mecanismos cooperativos nos Estados Unidos, com maior penetração do governo federal no domínio da saúde e do bem-estar social. 39 Ibid., p. 19. 35 (...) a margem de discrição de que uma pessoa goza para decidir sobre seus negócios, mas sempre limitada essa margem pelo próprio direito. Daí porque se falar que os Estados-Membros são autônomos, ou que os municípios são autônomos; ambos atuam dentro de um quadro ou de uma moldura jurídica definida pela Constituição Federal. Autonomia, pois, não é uma amplitude incondicionada ou ilimitada de atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre certas matérias, respeitados, sempre, princípios fixados na Constituição. 40 A descentralização político-administrativa, por sua vez, é um fator importante de identificação de um Estado como federal ou não.41 Em essência, significa a transferência de competências de um centro de poder para outro, que passa a ser o detentor delas, cabendo ressaltar que “a transferência de competências políticas importa em atribuir ao novo centro a possibilidade de estabelecer normas jurídicas sobre determinados pontos, ou seja, o novo ente passa a ter capacidade legislativa, sem desprezar, é claro, a capacidade administrativa, ou seja, a capacidade material”.42 Nesse sentido, a autonomia e a descentralização política permitem que o Estado tenha vários centros de poder dotados de capacidade legislativa e administrativa, ou seja, com competência política. Os estados-membros não apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também lhes é reconhecido elaborá-las. Em regra, isso resulta em que se perceba no Estado Federal diversas esferas de poder normativo sobre um mesmo território. Por certo, a federação acarreta repartição delicada de competências entre as unidades federativas, o que implica proibição de usurpação de atividades conferidas a outros entes. Destaca-se que se perfaz imprescindível o estabelecimento de uma Constituição rígida, que estabeleça um critério mais complexo de modificação das normas constitucionais, para a manutenção de um Estado Federal. Corroborando tal assertiva, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior expressam-se no seguinte sentido: 40 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 474. A simples distribuição de competências não é o bastante para configurar um Estado federativo; podem perfeitamente existir Estados unitários descentralizados, desde que não possuam autonomia e ajam por delegação do órgão central, bem como Estados Constitucionalmente Descentralizados, cujo ponto de diferença encontra-se na possibilidade do poder central alterar a descentralização política apenas por alterações na Carta Magna. (Cf. SERRANO, Pedro Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 26-27). 42 DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito urbanístico e ambiental/ Coordenadores: Adilson Abreu Dallari e Daniela Campos Libório Di Sarno. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 76. 41 36 A repartição de competências entre as vontades do Estado, como caracterizador da descentralização política, não vem, contudo, despida de qualquer formalidade. Ela deve ter sede constitucional, tornando-se parte de sua essência. Não se pode pensar em uma divisão de competências que não esteja estampada no texto constitucional, já que, como visto, nesse ponto reside a tônica mais original do Estado Federal. Fixada em legislação ordinária, a alteração seria de fácil operacionalidade, tornando o pacto federativo totalmente flácido, quebrando, portanto, o ajuste sobre o qual se assenta a idéia federalista (...). 43 A autonomia figura como critério de coexistência na federação e limite de competência, no sentido de que a cada ente federado confere-se uma medida de atuação determinada pela Constituição Federal, impedindo, assim, que cada um deles em sua concreta atividade ultrapasse tal limite. Como consequência natural dessa característica há a necessidade de assegurar que essa partilha de competências não seja subvertida no funcionamento normal das coisas. Em outras palavras, é preciso que o disposto na Constituição não se revele, na prática, letra morta, de modo que os conflitos que venham existir entre os Estados-membros ou entre qualquer deles com a União possam ser resolvidos para a manutenção da paz e da integridade do Estado como um todo. É necessária, então, a existência de um Tribunal constitucional que controle a repartição de competências, mantendo o pacto federativo. A propósito, é inconcebível manter um pacto federativo com todas as implicações dele decorrentes, sem um órgão incumbido de solucionar dúvidas, isto é, dizer os limites de atuação de cada ente. Assim, deve esse órgão interpretar a Constituição, definindo, entre outras coisas o que é de competência de cada um. Além disso, o Estado Federal deve conter um dispositivo de segurança, necessário à sua sobrevivência. Este dispositivo se constitui, na realidade, numa forma de mantença do federalismo diante de graves ameaças. Trata-se da intervenção federal. Pela intervenção federal, a União intervém em um ou alguns Estados onde se verifiquem graves violações dos princípios federativos. No Estado Federal convivem num mesmo território uma ordem jurídica global e outras ordens jurídicas parciais. Certamente, a vontade destas deve influir na vontade daquela, vontade que se expressa, sobretudo, por meio de leis, razão pela qual os Estados- 43 ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 263. 37 membros participam da formação da União através do Senado Federal, com representação paritária, em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros. Mais uma característica do Estado Federal é a possibilidade que cada ente deve ter de se auto-organizar por meio de Constituição própria, na qual seus assuntos locais possam ser tratados. Isso porque, a exemplo da União, cada uma das unidades federativas dispõem de aparato organizacional próprio. As vontades parciais detêm uma forte presença junto à vida dos cidadãos, na realização das funções de polícia, de prestação de ensino, de prestação de serviços à saúde, e um sem-número de outras atividades, e é com essas máquinas administrativas que o cidadão deve lidar. 2.2 O sistema federal brasileiro O Brasil não tem acentuadas tradições federalistas. Tivemos um período monárquico em que, formalmente, vigorava o Estado unitário44 e, após a proclamação da República, floresceu o federalismo dualista, inspirado na Constituição norte-americana de 1787, caracterizada por uma maior expressão da autonomia dos Estados-membros. As Constituições Federais posteriores à de 1891 promoveram a concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento dos estados. Nesse sentido, necessária a transcrição do entendimento de Raul Machado Horta: As Constituições Federais posteriores à de 1891, mantendo a Federação em norma intangível da Lei Fundamental, foram progressivamente organizando a centralização do poder na União, que se tornou absorvente e insaciável, com a mutilação dos poderes estaduais, em processo de esvaziamento de substância e de conteúdo. A partir da Constituição Federal de 1934, a União intervencionista na legislação social, econômica e financeira passou a oferecer profundo contraste com 44 Ao contrário do que alguns sugerem o Estado organizado no período imperial, embora formalmente unitário, caracterizou-se pela concessão de certa autonomia às províncias. Isto ocorreu especialmente no período regencial, após a abdicação de D. Pedro I, quando se verificou o protagonismo regional dos chefes e caudilhos locais, permitindo-se, inclusive, a eleição de presidentes de províncias e a organização de algumas funções públicas nestas localidades, como a policial, num cenário de revoltas regionais por autonomia. Os atos que se sucederam ao denominado Golpe da Maioridade, que ocorreu em 1840, permitiram o revigoramento dos dispositivos da Constituição de 1824 através do Poder Moderador, num forte sabor centralizador, abolindo algumas das inovações regenciais. Contudo, a transição para um sistema político mais centralizado não ocorreu sem conflitos. Em 1842, oligarquias regionais, como as de Minas e São Paulo, lideraram a Revolução Liberal, pegando em armas contra o governo imperial. Na combativa província de Pernambuco, durante a Revolução Praieira de 1848, os rebeldes contaram com a adesão popular, havendo até a defesa da reforma agrária, o que em muito assustou os grupos conservadores, que, talvez, pela primeira vez, fazem menção à “ameaça socialista” que pairava sobre o Brasil.(Cf. Del PRIORE, MARY e VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, p. 177-179). 38 os Estados-membros empobrecidos nas fontes da legislação e do poder. Os Estados se retraíam no definhamento de suas atribuições e a União se expandia no gigantismo de suas competências. O federalismo dualista da Primeira República acabou sendo substituído pelo Federalismo centrípeto de períodos posteriores, que depositava na União Federal o centro das decisões e do comando legislativo, político, econômico, financeiro, tributário e administrativo da Nação. 45 Há de se registrar, por oportuno, que a Constituição Federal de 1934 foi a que estruturou as bases do federalismo cooperativo, estimulando a ação conjunta da União e dos Estados-membros na solução de problemas sociais e econômicos. Após um breve período em que a Carta de 1937 subjugou os Estadosmembros à condição de meros entes territoriais descentralizados, a Constituição Federal de 1946 veio restabelecer e fortalecer as regras do federalismo cooperativo, com a fixação de políticas de desenvolvimento regionais.46 Nela, também, houve a consagração da autonomia dos Municípios. A Constituição de 1967 e sua Emenda de 1969 mantiveram a concepção de federalismo cooperativo, a concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento dos Estados-membros e dos Municípios. A Constituição Federal de 1988 não interrompeu a política de desenvolvimento regional do federalismo cooperativo. Contemplou na União a competência para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (art. 21, IX), bem como introduziu o tratamento reservado às “Regiões” (art. 43). A atual Constituição prevê expressamente a repartição de competências, entre outros, nos arts. 21, 22, 23, 24, 25, 30 e de rendas nos arts. 153, 154, 155 e 156, mantendo assim a autonomia dos entes descentralizados. Há de se registrar que o princípio federativo é característica marcante do Estado brasileiro, a ponto de ser subtraído da possibilidade de ser alterado até mesmo por emenda constitucional, ante o disposto no inciso I, do § 4º, do art. 60 da Constituição Federal, 45 HORTA, Raul Machado. Estrutura da Federação. Direito constitucional: teoria geral do Estado. Coleção doutrinas essenciais, v. 2. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 691-692. 46 O primeiro momento dessa tendência de desenvolvimento regional pode ser localizado na previsão contida no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de 1946, que impunha ao Governo Federal a obrigação de traçar e executar um plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do Rio São Francisco e seus afluentes que, por certo, foi o embrião de outros órgãos regionais de desenvolvimento. 39 que consagra as vedações materiais perpétuas do nosso ordenamento constitucional ao exercício do poder de reforma. A participação dos Estados-membros na ordem jurídica global (União) também pode ser vista no Estado brasileiro (art. 46). Os Estados possuem representantes no Senado, que é o responsável por manter o equilíbrio federativo. É possível dizer que também lhes é assegurada a autonomia política e administrativa, com a possibilidade de elaboração de uma Constituição própria pautada nos princípios constitucionais da União (art. 25). Cabe mencionar que o entendimento adotado nesse trabalho é de que o sistema constitucional brasileiro trata os Municípios como entes federativos, muito embora eles não possuam representantes no Congresso Nacional.47 Partindo desse ponto de vista, tem-se que em nosso ordenamento a representação no Senado funciona mais como norma garantidora da unidade nacional do que como elemento caracterizador do ente federado.48 Nessa linha, a Constituição Federal de 1988, mantendo os Estados e o Distrito Federal na formação da Federação, contemplou os Municípios na composição da República Federativa (arts. 1º e 18), introduzindo-os na estrutura constitucional da organização político-administrativa do Estado Federal Brasileiro. Além disso, a autonomia municipal está assegurada nos arts. 18, 29 e 30 da Constituição Federal, como poder de gerir seus próprios negócios dentro do círculo nela prefixado, que compreende as capacidades de: a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria; b) autogoverno pela eletividade do prefeito e dos vereadores; c) normatividade própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de legislar sobre áreas que lhe são reservadas; d) auto-administração, administração própria, para organizar, manter e prestar serviços de interesse local. Na República brasileira existe um órgão constitucional que exerce o controle de constitucionalidade (Supremo Tribunal Federal), ao qual compete a guarda da Constituição e a garantia do pacto federativo (at. 101 e 102). Além disso, a Constituição 47 A doutrina se divide sobre o status federativo dos Municípios. Uns entendem que os Municípios, a partir da Constituição de 1988, foram elevados à categoria de entes federativos, destacando-se, nesse sentido, BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de direito constitucional, p. 487; Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional 11. ed. Malheiros Editores, 2001, p. 312; HORTA, Raul Machado. Tendências atuais da federação brasileira. Direito constitucional: teoria geral do Estado. Coleção doutrinas essenciais; v. 3. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 233-234; ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 269. José Afonso da Silva, por outro lado, afirma que o Município integra a Federação, mas não é parte essencial desta (Curso de direito constitucional positivo, p. 474-475). No mesmo sentido, José Nilo de Castro nega a qualidade de ente federativo aos Municípios (Direito municipal positivo. 4. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 53-60). 48 Cf. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 79. 40 Federal prevê um sistema de defesa da Constituição estadual contra ofensas de leis e demais atos dos poderes municipais, que compreende o controle por via de exceção, segundo o critério difuso, e o controle por via de ação direta, segundo o critério concentrado (de competência do Tribunal de Justiça). A Constituição prevê ainda a hipótese de intervenção nos casos em que o pacto federativo for ameaçado (arts. 34 e 36), restando protegidas, assim, tanto a autonomia estadual como a autonomia municipal. A forma como se procedeu a divisão de competências e de rendas entre as ordens federais no país é motivo de preocupação de parte da doutrina. Nessa linha, Carlos Eduardo Dieder Reverbal aponta algumas incongruências do federalismo da Constituição de 1988. Para ele, “se observarmos nosso texto constitucional, abstraindo o nominalismo ainda existente, chegaremos à conclusão de estarmos mais próximos a um Estado Unitário Centralizado, ou quem sabe a um Estado Unitário com pouca Descentralização ao poder local, do que a forma federativa de Estado”. Diz ainda o autor que o federalismo brasileiro reserva aos Estados-membros o que não lhes for vedado, residindo o problema exatamente neste ponto. No seu entender, o rol de competências da União é tão extenso (arts. 21, 22, 153), e a ampliação das competências dos Municípios é de considerável extensão (arts. 30 e 156) que praticamente nada resta, sobra, remanesce, ou fica de resíduo ao Estado. Ademais, no âmbito da legislação concorrente (artigo 24 e seus parágrafos), o referido autor destaca que a União não fica restrita apenas ao estabelecimento de normas gerais, sendo tal mecanismo federativo utilizado mais no sentido de ampliar a competência da União, do que estabelecer normas gerais para posterior aplicação das normas especiais pelos Estados-membros.49 A despeito dessas críticas, é correto afirmar, sob o ponto de vista jurídico, que o Estado brasileiro expressa um modo de ser do Estado em que se divisa uma organização descentralizada, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central, regional e locais, consagrada na Constituição Federal, em que os estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão. No Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, com jurisdição nacional, é o órgão encarregado de dirimir os conflitos federativos. 49 REVERBAL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito, p. 131-132. 41 2.3 Repartição de competências constitucionais Não havendo hierarquia entre os entes federativos e para garantir-lhes autonomia, as Constituições procedem a uma repartição de competências, permitindo que mais de uma ordem jurídica incida sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas.50 A repartição de competências entre as esferas do federalismo consiste na atribuição a cada ordenamento, pela Constituição Federal, de uma matéria que lhe seja própria com o objetivo de evitar conflitos e desperdício de esforços e recursos. Desse modo, o problema que envolve o tema gira em torno de se compreender que competência cabe à União, o que é entregue aos Estados-membros e que parte é destinada aos Municípios. A repartição de competências depende da natureza e do tipo histórico da federação. Pode-se afirmar que os Estados assumem a forma federal, tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Dessa forma, um território amplo como o brasileiro é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes. No direito comparado, como adrede observado, as formulações constitucionais em torno da repartição de competências podem ser associadas a dois modelos básicos – o modelo clássico, vindo da Constituição norte-americana de 1787 e o modelo cooperativo, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial: O modelo clássico conferiu à União poderes enumerados e reservou aos Estadosmembros os poderes não especificados. O chamado modelo moderno responde às contingências da crescente complexidade da vida social, exigindo ação dirigente e unificada do Estado, em especial para enfrentar crises sociais e guerras. Isso favoreceu uma dilatação dos poderes da União com nova técnica de repartição de competências, em que se discriminam 50 “(...) la competencia es la medida de la potestad que corresponde a cada órgano, siendo siempre una determinación normativa. A traves de la norma de competencia se determina en qué medida la actividad de un órgano há de ser considerada como actividad del ente administrativo; por ello la distribución de competências entre los varios órganos de un ente constituye una operación básica de la organizacion. La competencia se determina, em consecuencia analiticamente, por las normas (no todos los órganos pueden lo mismo, porque entonces no se justificaria su pluralidad), siendo irrenunciable su ejercicio por el órgano que la tenga atribuída como propia (...)”(GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho administrativo I. 8. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 541). Numa abordagem original sobre o conceito de competência, Fernanda Dias Menezes de Almeida faz uma comparação com o Direito Privado, afirmando que a competência constitucional equivale à capacidade civil, ou seja, constitui-se no poder de praticar atos jurídicos (Cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 34). 42 competências legislativas exclusivas do poder central e também uma competência comum ou concorrente, mista, a ser explorada tanto pela União como pelos 51 Estados-membros. Outra classificação dos modelos de repartição de competências cogita sobre as modalidades de repartição horizontal e de repartição vertical, conforme formulação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as quais são abordadas por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco do seguinte modo: Na repartição horizontal não se admite concorrência de competências entre os entes federados. Esse modelo apresenta três soluções possíveis para o desafio da distribuição de poderes entre as órbitas do Estado Federal. Uma delas efetua a enumeração exaustiva da competência de cada esfera da Federação; outra, discrimina a competência da União deixando aos Estados-membros os poderes reservados (ou não enumerados); a última, discrimina os poderes dos Estadosmembros, deixando o que restar para a União. Na repartição vertical de competências realiza-se a distribuição da mesma matéria entre a União e os Estados-membros. Essa técnica, no que tange às competências legislativas, deixa para a União os temas gerais, os princípios de certos institutos, permitindo aos Estados-membros afeiçoar a legislação às suas peculiaridades locais. A técnica da legislação concorrente estabelece um verdadeiro condomínio legislativo entre União e Estados-membros. 52 Mais recentemente, contudo, pode-se identificar um modelo que caminha para a previsão de competências enumeradas também para outras entidades federativas. Ademais, tem-se a criação de uma área comum, na qual tanto pode atuar a União como os demais organismos federativos, conforme magistério de André Ramos Tavares: Nesse campo, identifica-se uma orientação geral para estruturar a repartição de competências. Trata-se do denominado “princípio da preponderância do interesse”. Esse princípio significa, sucintamente, que à União cabe tratar das matérias de interesse geral, nacional, amplo. Aos Estados, daquelas que suscitam um interesse 51 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 800. 52 Ibid., p. 800. 43 menor, mais regional. Por fim, aos Municípios cabe tratar das matérias de interesses restritos, especialmente locais, circunscritos a sua órbita menor. Evidentemente que todos os interesses terão repercussão em cada uma das três esferas citadas. É por isso que se fala em “predominância” e não em “exclusividade”. Difícil ou impossível será a tarefa de sustentar uma matéria como 53 sendo exclusivamente de âmbito nacional, regional ou local. A Constituição de 1988 adotou um sistema de repartição de competências complexo que as classifica em privativas e concorrentes, distribuindo-as à União, aos Estados e aos Municípios. Pode-se afirmar que competências privativas são aquelas que “são próprias de cada entidade federativa” e concorrentes são as competências “exercitáveis conjuntamente, em parceria, pelos integrantes da Federação, segundo regras preestabelecidas”.54As competências privativas são repartidas horizontalmente e as competências concorrentes são repartidas verticalmente.55 José Afonso da Silva aponta uma diferença entre competência privativa e exclusiva. Para o autor em questão, a competência exclusiva não admite delegação para outros entes, ou mesmo suplementação, enquanto que aquela se caracteriza pela possibilidade de outras unidades federativas também cuidarem de determinada matéria, que inicialmente é atribuída a um único ente.56 Há de se ressaltar que existe, sim, competência exclusiva no ordenamento pátrio. Desse modo, a possibilidade que os Municípios têm de complementar e suplementar a legislação federal e estadual (art. 30, II, da Constituição Federal) não poderá ser exercida nos casos de competência exclusiva dos Estados-membros e da União, bem como os Estadosmembros não podem suplementar a legislação federal, quando houver competência exclusiva de tal ente, vez que a competência concorrente dos Municípios e dos próprios Estadosmembros não tem cabimento em toda e qualquer hipótese, mas apenas naqueles casos em que houver interesse local ou regional (predominância do interesse). Seguindo o exemplo apresentado por Rafael Augusto Silva Domingues, pode-se indicar como hipótese de competência exclusiva da União a emissão de moeda (art. 21, VII). Cabe destacar que os Municípios não podem suplementar a legislação federal nessa 53 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1093. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988, p. 78 e 129. 55 Ibid., p. 74. 56 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 481. 54 44 situação, ante a evidente ausência de interesse local pelo assunto. De outra banda, o autor em questão indica que o Município poderá complementar ou suplementar a legislação federal em outras matérias como, por exemplo, desenvolvimento urbano, saneamento básico e transporte público (art. 21, XX), assuntos que tocam diretamente aos Municípios.57 Pode-se afirmar que os Estados-membros e os Municípios também têm competência exclusiva, resultado da capacidade de auto-organização, autolegislação, autogoverno e auto-administração. Assim, o princípio federativo assegura-lhes autonomia para tratar de questões referentes a bens públicos, processo administrativo, servidor público estatutário, com exclusão da atuação de qualquer outro ente federativo. De outro turno, há que se distinguir entre a repartição de competência legislativa (poder de editar leis) e a repartição de competência administrativa (ou executiva). Dentro da estrutura constitucional, a competência legislativa deve existir para todos os entes federativos, havendo uma repartição estabelecida segundo o critério “horizontal”. Assim, há competências privativas expressas à União (art. 22) e aos Municípios (art. 30). Os Estados, além das competências expressas atribuídas pelos §§ 2º e 3º, do art. 25, ficam com as competências residuais. Por outro lado, existe uma repartição vertical, na qual se atribui o trato da mesma matéria a mais de um ente federativo (art. 23 e art. 24, §§ 1º, 2º, 3º e 4º). Nessa linha, ocorre a permissão para que mais de um ente cuide da mesma matéria estabelecendo limites de atuação para cada um deles (competência concorrente), ou permitindo que todos eles exerçam simultânea e integralmente sua competência (competência comum). Com efeito, há uma competência concorrente deferida à União, quanto à edição de normas gerais58, resguardando aos Estados-membros sua suplementação (editando norma especial ou suprindo a omissão da União). Nesse sentido, verifica-se que o art. 30, II, da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”. 57 Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico – limites da autonomia municipal, p. 95-99. 58 Segundo Hely Lopes Meirelles “norma geral é a que estabelece princípios ou diretrizes gerais de ação e se aplica indiscriminadamente a todo o território nacional” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito urbanístico: competências legislativas. Revista de Direito Público, n. 73, p. 98). Para Lúcia Valle Figueiredo “As normas gerais serão constitucionais se e na medida em que não invadam a autonomia dos entes federativos, com particularizações indevidas” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Discriminação constitucional das competências ambientais. Aspectos pontuais do regime jurídico das licenças ambientais. Direito ambiental: fundamentos do direito ambiental. (Org.) Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 1294). 45 Sobre o tema, merece registro a observação feita por Daniela Campos Libório Di Sarno: (...) a própria Constituição Federal, em seu texto, enumera taxativamente as competências da União e adota um sistema dinâmico e exemplificativo para as competências dos outros entes federativos. Isto porque a Constituição Federal, além de ser o Texto Jurídico supremo de nosso país, exerce a função de Constituição da União Federal, assim como as Constituições dos Estados e as Leis Orgânicas para os Municípios. Daquilo que não estiver explícito como sendo de competência da União caberá aos Estados-membros, Distrito Federal e/ou Municípios exercê-los. Esta equação poderia se resolver com razoável tranqüilidade fosse o texto constitucional dotado de rigor técnico inquestionável. Não é o que ocorre. Competências privativas e exclusivas ora se equivalem, ora se distanciam e mesclam-se com as reservadas. Concorrentes, complementares e suplementares também são competências de difícil delimitação na forma como se apresentam. Resta a verificação caso a caso, tentando preservar algum critério norteador para esta interpretação de definição de competências constitucionais. 59 A competência administrativa é, em princípio, correlata à competência legislativa. Assim, quem tem competência para legislar sobre uma matéria tem competência para exercer a função administrativa quanto a ela.60 O art. 21 da Constituição Federal dispõe sobre a competência geral da União, que é consideravelmente ampla, abrangendo temas que envolvem desde o exercício de poderes de soberano, bem como questões que transcendem interesses regionais e locais. No entanto, para a defesa e o fomento de certos interesses, o constituinte desejou que se combinassem os esforços de todos os entes federais, conforme se nota no art. 23 da Constituição Federal, havendo um campo comum no plano administrativo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. A propósito, a Lei Fundamental prevê, no parágrafo único do art. 23, a edição de leis complementares federais, que disciplinarão a cooperação entre os entes para a 59 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Competências urbanísticas. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 63. 60 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 62. 46 realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios.61 Por fim, é necessário ressaltar que cada ente federativo retira sua competência diretamente da Constituição Federal e não de normas infraconstitucionais, de modo que as disposições encartadas no Estatuto da Cidade sobre o tema (art. 3º) acrescentam muito pouco à análise das competências em direito urbanístico. 2.4 As competências urbanísticas A ideia de que a problemática do urbanismo é um espaço aberto à intervenção concorrente e concertada de todos os entes federativos veio reconhecida na Constituição Federal de 1988, especialmente ao distribuir competências urbanísticas entre todas as esferas de governo. Na realidade, o próprio conceito de federalismo reclama um mínimo de colaboração, existindo, em maior ou menor grau, instâncias de poder que trabalham juntas em qualquer Estado organizado como federação. No que diz respeito à matéria urbanística, a Constituição de 1988 inovou ao disciplinar expressamente as competências legislativas, ao contrário dos regimes constitucionais anteriores, em que tais competências eram decorrentes dos poderes implícitos reconhecidos à União, dos poderes reservados dos Estados ou da competência dos Municípios para dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse.62 Identificam-se no texto constitucional normas de competência legislativa e material com implicações diretas na atividade urbanística. Há de se enfatizar que a política urbana, apesar de ser executada pelo Poder Público municipal, possui dimensões nacional, regional e local, e, portanto, uma concorrência de atribuições e competências entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Enfatiza-se que a própria Lei Fundamental estabelece formas e arranjos para possibilitar a inter-relação e a colaboração das unidades federativas na elaboração e implementação de políticas urbanas. 61 A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes federativos em matéria ambiental. 62 Cf. BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005, p. 11. 47 Entretanto, esse sistema de inter-relação existente na política urbana não pode perder de vista que a ordem federal está marcada pela coexistência de diversos centros de poder, independentes, autônomos e livres para desenvolverem suas instâncias de poder. Mas, apesar da independência e da autonomia destas esferas, elas estão vinculadas em virtude de objetivos comuns e devem agir com eficiência (princípio jurídico-administrativo), justamente para evitar a desarticulação e a sobreposição de atuações. 2.4.1 Competências urbanísticas da União O art. 21 da Constituição Federal atribui à União o desempenho de uma série de atividades e a organização e gestão de inúmeros serviços. Dentre as matérias nele previstas, têm peculiar interesse para o urbanismo: a elaboração e a execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (inciso IX), o planejamento e a promoção da defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e inundações (inciso XVIII), a instituição de diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (inciso XX), o estabelecimento de princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação (inciso XXI). Todos esses incisos referem-se a matérias com implicações diretas na atividade urbanística, porquanto lidam especificamente com planejamento (inciso IX e XX) e ordenação do solo (inciso XXI). Destaca-se que a Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da União é essencial para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto direto no território, como se percebe na disposição prevista no inciso IX (elaboração e execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social). É interessante também enfatizar que embora o art. 21 da Constituição Federal tenha sido concebido para tratar das competências materiais da União, os dispositivos nele previstos possuem natureza legislativa, que consiste no poder-dever de expedir comandos normativos, genéricos e abstratos, excetuando-se apenas a segunda parte do inciso IX, onde se lê “executar”, que trata de competência material.63 63 Rafael Domingues destaca que o art. 21 traz matérias que em qualquer federação constituem o núcleo irredutível das competências da União, acentuando-se a tendência de se dar destacado papel à União em tema de 48 Nestas matérias, a legislação da União é privativa porque visa instituir e disciplinar serviços e atividades dela própria, e a competência administrativa é exclusiva de tal ente, ficando a colaboração dos Estados e Municípios admissível em certos casos, como os dos incisos XX e XXI, e nos limites e mecanismos impostos pela lei federal.64 A competência legislativa privativa da União é definida no art. 22 da Constituição Federal. Assim, em linhas gerais, caberá aos Estados e aos Municípios exercer atividades decorrentes da competência legislativa privativa da União, nos limites e condições da lei federal.65 Dentre as matérias relacionadas no referido artigo, a que apresenta nítida repercussão no âmbito urbanístico é a referente ao trânsito e transporte (inciso XI), que implica diretamente as questões que envolvem o planejamento urbano e a ordenação do solo. No art. 24 encontram-se as matérias de competência concorrente da União e dos Estados, atinentes à competência para legislar, nas quais a União somente deverá editar normas gerais (§ 1º). Já os Estados também podem exercer tanto uma competência complementar (§ 2º), detalhando as normas federais existentes, como uma competência suplementar (§ 3º), na hipótese de não existirem normas gerais federais.66 No art. 24, as seguintes matérias de competência concorrente são de interesse urbanístico: as referentes ao direito urbanístico (inciso I), florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção ao meio ambiente e controle da poluição (inciso IV), proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (inciso VII), a responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (inciso VIII). Como se nota, tais matérias tratam de questões afetas ao ordenamento do solo, vislumbrando-se interesse urbanístico. É importante registrar que o Direito Urbanístico veio a ser tratado como disciplina jurídica pelo art. 24, que, como se observa, conferiu expressamente à União planejamento (Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito urbanístico e ambiental, p. 96). 64 Nestes casos, embora a União possua atribuições para esgotar totalmente a matéria, impondo normas gerais e igualmente normas específicas sem tanta preocupação com os limites da autonomia estadual ou municipal, neles podem ser detectados “interesse local” a ensejar a atuação dos Municípios (CF, art. 30, I e II). 65 Aplica-se à hipótese o mesmo raciocínio anterior. Ou seja, na competência privativa os Municípios podem suplementar a legislação federal, por exemplo, na questão que versa sobre trânsito e transportes, sempre que estiver presente o interesse local, como ocorre nas situações de definição do sentido de direção das ruas, dos locais de estacionamento, etc. (Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico – limites da autonomia municipal, p. 97). 66 Michel Temer entende que os Municípios foram excluídos da competência concorrente, por não constarem do rol do art. 24 da Constituição de 1988 (Elementos de direito constitucional, p. 66). Em sentido contrário, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior entendem que os Municípios também têm competências concorrentes, face o disposto no art. 30, II, da Constituição Federal, desde que presente o interesse local (Curso de direito constitucional, p. 274). 49 competência legislativa para editar suas normas gerais (inciso I, c/c o § 1º). A propósito, foi no uso desta competência que a União editou a Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). 2.4.2 Competências urbanísticas dos Estados De início, é interessante notar que o arcabouço constitucional não foi generoso na atribuição de competências urbanísticas aos Estados-membros. Assim, conforme visto, os estados têm competência concorrente com a União para tratar desta matéria (art. 24, I). A competência urbanística dos estados tem como limite a competência da União para editar normas gerais e a competência dos municípios (relativa à execução da política de desenvolvimento urbano - ordenação do solo - e a de legislar sobre assuntos de interesse local), o que restringe as questões que podem ser disciplinadas por tal ente. De qualquer forma, para os Estados-membros, a Constituição de 1988 atribuiu a competência privativa para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões constituídas por municípios limítrofes, para o planejamento, a organização e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º).67 Além disso, aos estados também compete a elaboração e a execução dos planos regionais, conforme enfatiza Jose Afonso da Silva: Abre-se aos Estados, aí, no mínimo, a possibilidade de estabelecer normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões, além de sua expressa competência para estabelecer regiões metropolitanas (art. 25, § 3º). Não padece mais dúvida de que os Estados dispõem de competência para estabelecer planos urbanísticos, conforme expressamente consta do art. 4º, I, do Estatuto da Cidade (...).68 67 Pode-se apontar diferenças entre regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerados urbanos da seguinte forma: a região metroplitana é uma espécie de aglomeração entre municípios, onde se observa uma continuidade urbana, densamente povoada (de contínua construção), com a existência de um Município mais importante, chamado cidade-pólo, em torno do qual se reunirão os demais Municípios. Na microrregião existem municípios limítrofes relativamente semelhantes, sem que haja continuidade urbana e a predominância de um dos municípios. Nos aglomerados urbanos os Municípios se equivalem, existe uma continuidade urbana e a área também é densamente povoada. Não existe, porém, nem cidade-pólo, nem cidade sede (Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 60). 68 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 126. 50 Assim, o Estado, enquanto ente político que corresponde à região ou abriga a microrregião objeto do planejamento, exerce competência para implementação de políticas públicas interurbanas comuns. 2.4.3 Competências urbanísticas dos Municípios No que diz respeito aos Municípios, o art. 30, inciso I, da Constituição Federal confere competência privativa para legislar sobre o interesse local, ou seja, sobre as suas especificidades ou particularidades. Além disso, neste quadro, podem os Municípios suplementar a legislação federal e estadual (art. 30, II). A Constituição de 1988 ainda atribuiu a tais esferas as seguintes competências: a) a criação, organização ou supressão de distritos, nos termos da lei estadual (art. 30, IV), b) a promoção, no que couber, do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento, controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII), c) a promoção da proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual (art. 30, IX), d) a execução da política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput), e f) a aprovação do plano diretor (art. 182, § 1º). Nota-se que todos os dispositivos em questão tratam da matéria de urbanismo, porquanto atribuem competência constitucional aos Municípios para planejamento urbanístico (IV), ordenação do solo (VIII) e da paisagem urbana (IX). Mas, sem sombra de dúvidas, o mais completo dos dispositivos citados é o art. 182, que atribui aos Municípios competência para cuidar da política urbana, pois abriga quase tudo que é ligado à matéria de urbanismo, tais como, o planejamento urbanístico, a ordenação do solo, a ordenação urbanística de áreas de interesse especial, a ordenação urbanística da atividade edilícia e instrumentos de intervenção urbanística.69 Há de se registrar, ainda, que a Constituição Federal prevê como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana o plano diretor, de competência legislativa dos Municípios, o qual, por sua vez, deve observar as diretrizes gerais traçadas em lei federal. 69 Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito urbanístico e ambiental, p. 101-102. 51 2.4.4 Competências urbanísticas comuns O artigo 23 da Constituição Federal estabelece a competência material (competência administrativa) comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nele são definidas áreas de atuação ou de serviço nas quais todos os entes federados estão autorizados a agir simultaneamente. Observa-se interesse urbanístico especialmente em duas situações retratadas neste artigo. Nesse sentido, o inciso III estabelece que compete a todas as unidades federativas proteger as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. Por sua vez, o inciso IX fixa a competência comum para “promover a construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. 2.4.5 Normas de competência e os planos urbanísticos Seguindo a intenção constitucional de distribuir a planificação entre as esferas de governo, a nossa ordem jurídica prevê a elaboração de planos urbanísticos por todas as unidades federativas. Há de se enfatizar que a Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que estabelece as diretrizes gerais da política urbana, também prevê, no art. 3º, competências legislativas e materiais da União de implicação direta na atividade urbanística, destacando-se, nesse contexto, o inciso V, que estabelece a sua competência para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”. Dentre os instrumentos de política urbana, o art. 4º do Estatuto da Cidade prevê em seus incisos: I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; III – planejamento municipal. Nota-se que o Estatuto da Cidade restringiu-se a tratar do planejamento municipal, deixando de fixar regras de coordenação e integração dos planos urbanísticos de competência das demais unidades federativas. Neste caso, tal lacuna não resulta de simples imprevisão, mas reflete o firme propósito do ordenamento jurídico em atrelar tal matéria ao plano nacional e aos planos regionais de ordenação do território. 52 Daniela Campos Libório Di Sarno propõe a classificação dos planos urbanísticos que podem ser elaborados pelas unidades federativas entre planos explícitos e implícitos. Na primeira categoria ela inclui os seguintes: a) Federal: plano nacional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX), plano regional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); b) Estadual: plano regional (art. 25, § 3º); c) Municipal: plano diretor (art. 182); plano parcial de ordenação territorial - uso e ocupação do solo urbano – (art. 30, VIII). Como planos implícitos a autora aponta: a) Federal: plano setorial de desenvolvimento urbano (art. 21, XX e XXI); b) Estadual: plano geral de ordenação territorial; c) Municipal: plano local (art. 30, IV).70 Desse modo, pode-se apontar a existência no ordenamento jurídico de planos urbanísticos nacional, regionais, federais setoriais, estaduais, microrregionais e municipais, cabendo aprofundar a análise da relação que pode ocorrer entre eles. 70 Cf. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 63. 53 3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS 3.1 A formação e o desenvolvimento das cidades brasileiras sob o ponto de vista do planejamento urbano A análise histórica da formação das cidades brasileiras tende a abordar a configuração urbana promovida nos primórdios da Colonização, a qual, normalmente, é apontada como a raiz da falta de planejamento urbano no Brasil. Assim, tais estudos enveredaram-se pela mítica de um processo gerador totalmente feito à revelia de qualquer planejamento, ao qual a dominação portuguesa teria renunciado a trazer normas imperativas e absolutas de planificação, gerando o ambiente de desordem urbana. Nos termos desta abordagem, a colonização espanhola na América teria se caracterizado largamente pelo que faltou à portuguesa, ou seja, uma preocupação em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de núcleos de povoação estáveis e bem ordenados.71 Assim, a contribuição dos portugueses, em termos de ocupação e organização espacial do solo urbano na sua colônia americana, teria se revestido de características dominantemente espontâneas. Nesta crítica calcada em uma pretensa falta de planejamento das cidades do Brasil Colônia, autores como Robert Smith afirmaram que tais núcleos foram frutos de uma recriação das cidades medievais portuguesas.72 Os estudos sobre a formação das cidades brasileiras começam a ficar mais claros com a elaboração de pesquisas que apontam diferenças socioeconômicas na condução do processo de Colonização promovido por ambas as metrópoles. De acordo com esta análise, enquanto a economia brasileira voltava-se para a dinâmica produtiva da propriedade rural, a América Espanhola detinha-se na extração de metais preciosos para exportação, o que 71 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 9596. O autor em questão destaca a importância conferida pelos espanhóis ao ordenamento das cidades hispanoamericanas, enfatizando os pontos relacionados ao traçado dos centros urbanos, às características da legislação de edificações e aos planos de instalação da rede urbana, ao tempo em que enfatiza a forma espontânea e sem controle da ocupação do solo urbano nas cidades portuguesas da América. 72 Cf. SANT’ANA, Marcel Cláudio. Período Colonial: outras possibilidades de leitura sobre o planejamento de cidades na América Latina, p. 02. Disponível em: <htpp://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/publicacoes/periodo_colonial.pdf.> Acesso em 02 maio 2011. 54 estimulou o desenvolvimento da economia urbana e, consequentemente, possibilitou a formação dos núcleos urbanos especializados em atividades comerciais nestes locais.73 Projetando tais estudos ao contexto econômico e social do processo de Colonização, verifica-se que no século XVIII, justamente quando metade da produção mundial de ouro foi extraída no Brasil, houve a urbanização dos arraiais de mineração, que vinham se proliferando, desordenadamente, em zonas montanhosas. Em 1763, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do Brasil. O escoamento da produção de ouro ocorria pelo seu porto. No século XIX, esta cidade é elevada a capital do Reino Unido de Portugal e, após a independência, do Império brasileiro. Entretanto, com o declínio da produção de ouro, a economia brasileira entrou em recessão, voltando a depender essencialmente da agricultura. Assim, o desenvolvimento das cidades brasileiras sempre ocorreu graças a surtos periódicos de crescimento econômico, quando a predominância básica era a economia de subsistência, que acabou caracterizando o processo de formação da estrutura urbana básica, a qual deveria receber os influxos econômicos causados pela Revolução Industrial, especialmente na segunda metade do século XIX. Cabe ressaltar que tal período coincidiu com a abolição da escravatura, que igualmente exerceu forte influência no processo de urbanização das cidades brasileiras. Desse modo, a abertura de novas áreas para a produção cafeeira, a onda imigratória e a construção de ferrovias no interior foram fatores decisivos para o aumento da concentração demográfica, notadamente nas regiões Sul e Sudeste.74 Neste contexto, surgiram novas exigências quanto às necessidades atinentes à habitação e à infraestrutura urbana. No entanto, mais uma vez, a ausência de uma postura planificadora deixou que a ocupação do solo ocorresse aleatoriamente.75 73 “Assim, o fato de o Brasil ter sido submetido, na década de 30, a uma política colonial, assentada no latifúndio, na produção de açúcar para o mercado europeu e no trabalho escravo, organizou a colônia como uma imensa retaguarda rural para os mercados europeus, resultando em um dinamismo centrado no campo. Essa política gerou uma incipiente atividade urbanizadora, mas o planejamento se restringiu apenas às cidades “reais”, localizadas no litoral e controladas pela metrópole (...)” (SANT’ANA, Cláudio Marcel. Período Colonial: outras possibilidades de leitura sobre o planejamento de cidades na América Latina, p. 03.). 74 Estas regiões já eram economicamente mais desenvolvidas. Tais condicionantes sociais e econômicas resultaram no aumento das diferenças culturais entre o Norte e o Sul do país, assim como entre cidade e campo, entre litoral e sertão. Era como se a história tivesse sofrido uma “aceleração” em algumas regiões, enquanto noutras continuasse a reproduzir o modelo de vida herdado do período colonial. 75 Segundo Roberto Loeb o caso mais característico de crescimento urbano associado a crescimento econômico é o da cidade de São Paulo. Para o autor, “nela é que se verificou a viabilidade de uma expansão contínua, praticamente sem interrupção, onde a industrialização encontrava uma infra-estrutura já preparada pelo ciclo de cultura do café. Em meados do século XIX, começa um processo espantoso de desenvolvimento não planejado e espontâneo” (Aspectos do planejamento territorial no Brasil. Planejamento no Brasil. Org. Betty Mindlin. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997, p. 145-146). 55 Tal cenário catalisou a disseminação da moradia precária no Brasil. O Poder Público passou a intervir nestes espaços com finalidade higienista, pretendendo “sanear” as cidades combatendo os cortiços (a tipologia habitacional adotada na época pelas famílias de baixa renda, especialmente as formadas por imigrantes europeus e ex-escravos). Além disso, a intensa ocupação e os problemas causados pelos vários usos do solo geraram a edição de normas jurídicas até então inéditas. Neste período, sob a influência dos grandes projetos de remodelação das cidades européias, surge uma nova faceta do urbanismo, agora também preocupado em delimitar espaços fortemente regulados, garantindo proteção contra a invasão de usos e intensidades de ocupações degradantes (e, portanto, altamente valorizados pelo mercado imobiliário), que se contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei (território onde se instala a pobreza).76 Contudo, comparada aos países da Europa Ocidental, a urbanização acelerada e de aparição paralela ao desenvolvimento econômico e industrial demorou para atingir o Brasil, vindo a se consumar após a Segunda Grande Guerra, por conta da implementação de uma política industrial de substituição de importações.77 Contudo, foi entre as décadas de 60 e 70 que ocorreu o auge da urbanização brasileira em razão do desenvolvimento econômico do país e das transformações havidas na indústria. De qualquer forma, somente na década de 1960 surgiram os primeiros atos administrativos em âmbito federal que tentaram implementar uma política nacional de habitação e de planejamento territorial.78 José Afonso da Silva aponta algumas das razões que levaram ao fracasso a busca da institucionalização de um sistema de planejamento urbanístico (pelo extinto SERFHAU) e as tentativas de planificação daquela época: 76 O papel de suportar o preconceito social foi cumprido pela legislação brasileira, conforme atesta Raquel Rolnik em sua tese de doutorado sobre a história da legislação urbanística da cidade de São Paulo. Segundo ela, este movimento se expressa em São Paulo, pela primeira vez, no Código de Posturas de 1886, quando se demarca uma zona urbana (correspondente à área central da cidade) onde se proibia a construção de cortiços. Afirma ainda a autora que o desenho desta zona foi sendo sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper com a concepção básica de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma vasta zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos vedados para a primeira tais como matadouros, cemitérios, indústrias malcheirosas e cortiços (ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP, 1997). 77 Cumpre registrar que a Constituição de 1934 é que trouxe ao ordenamento jurídico a concepção de propriedade vinculada à função social, figurando como marco divisor do Direito brasileiro em matéria urbanística. 78 Lei 4.380/64 que criou o Banco Nacional de Habitação (BNH), as Sociedades de Crédito Imobiliário e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo. (SERFHAU). 56 Há várias causas para esse fracasso, mas estamos convencidos de que a concepção do plano diretor de desenvolvimento integrado e até sua exigência nas leis estaduais de organização dos Municípios foram razões principais desse fracasso. Sua exigência de que o plano diretor devesse integrar os setores econômico, social, físico-territorial e institucional sofisticou o processo de planejamento urbanístico municipal, onde faltava tradição planejadora que pudesse servir de suporte à implantação de um tipo de plano mais sofisticado. (...) A ênfase, assim, no conteúdo econômico do plano diretor de desenvolvimento integrado desviou as Municipalidades de sua função urbanística precípua, que consiste na implantação de um processo de planejamento urbanístico típico, caracterizado pela ordenação dos espaços habitáveis. (...) A concepção do SERFHAU sobre o planejamento urbano integrado continha mais dois componentes que teriam que conduzi-lo a fracasso certo. O primeiro foi a pretensão de implementar um sistema de planejamento local integrado por uma entidade federal, a que faltava competência impositiva para que fosse o processo efetivado em cada Município; por isso, só poderia conseguir a implementação por via indutiva e persuasiva – nem sempre eficaz, porque nem sempre politicamente atraente às Administrações Municipais dotadas de autonomia. O segundo consistiu em procurar desenvolver uma metodologia de planejamento local que integrasse os aspectos econômicos e sociais à cidade, “vista como um organismo autárquico, isto é, as ligações com outras cidades e regiões praticamente não eram levadas em consideração (...).79 Como se pode perceber, há uma clara coincidência entre o processo de industrialização e o de urbanização no Brasil, o que trouxe graves reflexos socioeconômicos e culturais, provocados pela concentração massiva de população, produção e consumo em torno de algumas grandes cidades. Aliás, a industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado e, por isso, na era Vargas – incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 – é caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades; na década de 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. Por volta de 1945, além de mais numerosos do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentam um perfil 79 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 101-103. 57 cada vez mais urbano. Um exemplo extremo dessa situação pode ser percebido ao compararmos o Estado do Amazonas com a cidade do Rio de Janeiro: enquanto a primeira unidade possuía 28.908 eleitores, o Distrito Federal desfrutava de um colégio eleitoral de 483.374 homens e mulheres.80 Com isso, iniciam-se os debates acerca das regiões metropolitanas brasileiras, sendo que o primeiro arranjo institucional sobre o tema tem origem numa lei federal (Lei Complementar nº 14, de 1973), que criou nove regiões metropolitanas a partir de um conjunto de critérios uniformes. A maior parte dessas regiões era composta de capitais de estados, nas quais ocorrera o primeiro surto de industrialização. Na visão do regime militar, essas regiões desempenharam papel-chave na consolidação do processo de desenvolvimento do país. A legislação federal definiu de forma uniformizada os potenciais serviços de interesse, como o planejamento para o desenvolvimento econômico e social, o saneamento (água, esgoto, gestão de resíduos sólidos), o uso e ocupação do solo, o transporte e as estradas, a produção e distribuição de gás canalizado, a gestão de recursos hídricos e o controle de poluição ambiental. Também previu a criação de novos fóruns, particularmente os conselhos deliberativos e consultivos, para coordenar a articulação com os municípios.81 O movimento migratório do homem do campo para a cidade no Brasil, ocorrido em todo o curso do século XX, foi desacompanhado de um planejamento adequado. Segundo o Censo 2010 do IBGE, 84,35% da população brasileira vive nas cidades, sobretudo nas regiões metropolitanas.82 A propósito, observa-se que as poucas iniciativas de planejamento promovidas ao longo da história das nossas cidades, sob alguns aspectos, serviram de instrumento de segregação socioespacial extrema, infraestrutura e serviços urbanos inadequados e degradação ambiental. A falta de planejamento, as mazelas sociais, a especulação imobiliária são apenas alguns dos fatores que levaram e continuam levando as cidades ao verdadeiro caos urbano e à exclusão social das populações menos favorecidas. Aliás, tal cenário exigiu novos delineamentos das políticas de controle da cidade. Esse fenômeno mundial tornou-se objeto de análises direcionadas e que vieram compor os interesses do urbanismo, trazendo à tona a exigência de intervenção da 80 Cf. Del PRIORE, MARY e VENÂNCIO, Renato; Uma breve história do Brasil, p. 255 e 262. Cf. KLINK. Jeroen Johannes. Novas governanças para as áreas metropolitanas. O panorama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, p. 419. 82 Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/popul/d…>. Acesso em: nov. 2011. 81 58 Administração Pública na gestão de serviços até então fornecidos pelo setor privado e no desenvolvimento da política urbana. 3.2 O planejamento como instituto jurídico Foram as Constituições do século XX que passaram a conter disposições sobre a ordem econômica83e, por vezes, a social84, já que tais matérias eram inconcebíveis nos textos constitucionais dos séculos anteriores. Nesse sentido, para Celso Ribeiro Bastos, “os profundos abalos da ordem econômica, causados sobretudo por guerras e outras crises na economia, levaram as Constituições a trazerem dispositivos traçando as linhas mestras da estruturação econômica do Estado”.85 No mundo, dois sistemas disputavam o privilégio de organizar a vida econômica. O sistema socialista, calcado na propriedade coletiva dos meios de produção e o capitalista, fundado na propriedade privada e na livre concorrência. As economias socialistas desde logo adotaram o planejamento, com os diversos agentes econômicos e empresas estatais obedecendo a um plano único nacional traçado por um poder central (plano este centralizado e obrigatório para todos). Essa ideia de impor metas fixas e meios racionais influenciou também os países capitalistas que, sem abandonarem a economia de livre iniciativa, adotaram, de forma branda, o planejamento, especialmente diante da necessidade de atingir certos objetivos econômicos e sociais. Para Betty Mindlin “tornou-se claro que o simples jogo das forças de mercado, com pequena intervenção do Estado, era incapaz de levar aos resultados desejados pela sociedade”.86 Por isso, a atividade de planejamento sofreu um impulso considerável nas últimas décadas, devido ao grau de intervenção da Administração Pública no tecido social, especialmente nas funções de apoio ao desenvolvimento econômico e social, de promoção da 83 Fábio Konder Comparato define ordem econômica como “o conjunto de atividades de produção e distribuição de bens e serviços no mercado” (Ordem econômica na constituição brasileira de 1988. Revista de direito público. São Paulo: RT, ano 23, jan/mar, n. 93, 1990, p. 264). 84 A intervenção do Estado no domínio social ocorre por meio da prestação de serviço público e da atividade de fomento, havendo estreita relação entre a intervenção do Estado no domínio social e os direitos sociais previstos constitucionalmente (Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 808-809). 85 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 719. 86 MINDLIN, Betty. O conceito de planejamento. Planejamento no Brasil. Org. Betty Mindlin, 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997, p. 12. 59 justiça social e de prestação social, na qual o plano tornou-se um instrumento essencial da ação administrativa nos Estados com o modelo de Bem-Estar Social. Nos dizeres de Fernando Alves Correia, com base nas lições de doutrinadores europeus, “o plano é, assim, um sinal evidente da transformação verificada no modo de ser das funções estaduais, no seguimento da passagem do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social”.87 O autor lusitano destaca que, apesar da diminuição da euforia planificadora, ninguém hoje contesta a necessidade de planificação das atividades do Estado. Para ele “uma pluralidade de factores aponta nessa direcção, designadamente a necessidade de: coordenar e programar a vasta gama de intervenções do Estado nos mais variados sectores sociais; estabelecer a cooperação entre os vários serviços administrativos, em consequência da crescente divisão de trabalho no âmbito da Administração Pública; utilizar racionalmente os meios e as capacidades - que são escassos – para a obtenção de um fim; e compatibilizar interesses diferenciados numa sociedade pluralista”.88 O planejamento, em si, não tem dimensão jurídica, não passando de propostas técnicas ou meramente administrativas enquanto não forem seus objetivos consubstanciados e materializados pelos planos. Assim, para José Afonso da Silva, o planejamento “é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos”.89 O autor em questão ainda enfatiza que tal processo, no início, “não era juridicamente imposto, mas simples técnica, de que o administrado se serviria ou não”90, advindo daí alguns problemas, vez que “as transformações pretendidas, a fim de atingir os objetivos colimados, importavam constrangimentos aos administrados e aos seus bens, que colocavam o problema da constitucionalidade do planejamento e, especialmente, do plano que o documenta administrativa e juridicamente”.91 O ordenamento jurídico, paulatinamente, incorporou as noções bem desenvolvidas sobre o tema fornecidas pelas Ciências da Economia, da Administração e do Urbanismo, como registra Jacintho Arruda Câmara: O planejamento, antes de conquistar status de regra jurídica, ganhou a adesão dos teóricos da Ciência da Administração e da Economia. Em especial no campo 87 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 348. Ibid., p. 349. 89 SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, p. 89. 90 Ibid., p. 89. 91 Ibid., p. 90. 88 60 urbanístico, a ação de planejar foi considerada indispensável ao crescimento racional e ordenado das cidades. Repetia-se, como regra inquestionável, a necessidade de planejamento urbano. Tal regra, todavia, tinha caráter exclusivamente metajurídico. Trata-se de uma proposição da Ciência da Administração, do urbanismo. Não era dotada de juridicidade – vale dizer, seu descumprimento não demandava a aplicação de sanções jurídicas. A adoção do planejamento urbano, concretizado geralmente num plano diretor (às vezes aprovado em lei, outras vezes por mera decisão administrativa), dependia exclusivamente de uma avaliação de natureza político-administrativa. Assim, diversos Municípios editaram plano diretor sem que houvesse, contudo, obrigatoriedade de fazê-lo ou, mesmo, a fixação de qualquer padrão que estabelecesse um conteúdo mínimo a ser atendido pela planificação. A existência de um plano diretor era exigência que se punha no campo da Ciência da Administração Urbana, que somente adquiria contornos jurídicos se e quando fosse encampada na regulamentação (legal ou infralegal) de um dado Município.92 É importante ressaltar mais uma vez que o processo de planejamento não mais fica condicionado à mera vontade do administrador, passando a ser um mecanismo jurídico. Hodiernamente, trata-se de uma imposição constitucional e legal, mediante a obrigação de elaborar o plano, que é a forma pela qual se materializa o respectivo processo. Nesse sentido, a nossa ordem jurídica contempla o Estado planejador, cujas ações devem ser orientadas pelo planejamento. Esta é a razão pela qual a Constituição Federal de 1988 indica vários dispositivos sobre planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, sobre o planejamento do uso e ocupação do solo urbano pelos municípios, sobre planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, além de disposições específicas sobre o plano diretor municipal. Além disso, cumpre destacar que o artigo 174, caput, declara que o planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, sendo que o § 1º do mesmo dispositivo inclui o planejamento entre os instrumentos de atuação do Estado no domínio econômico. 92 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano diretor (art. 39 a 42). DALLARI, Adilson Abreu; e FERRAZ, Sérgio (coords.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), p. 319. 61 Ou seja, o plano é imperativo para o setor público. Já no que tange ao setor privado, regido pelo princípio da livre iniciativa, o plano, em regra, é indicativo, pois o particular, no exercício da atividade econômica, poderá, ou não, aderir às diretrizes nele traçadas, o qual, por sua vez, serve-se de mecanismos indiretos para atrair os particulares ao processo de planejamento.93 José Afonso da Silva, escrevendo sobre a índole jurídica do plano e a sua repercussão para o setor privado enfatizou: (...), se é certo que o plano indicativo não obriga o setor privado, é também certo, como uma nota de sua índole jurídica: (1º) que a liberdade de atuação do empresariado privado fica, em termos globais, condicionada à atuação governamental planejada; (2º) que o setor privado não pode atuar deliberadamente contra os objetivos do plano; (3º) que, naquelas hipóteses em que a atividade depende de autorização ou licença, a Administração poderá ter em conta os objetivos, previsões e requisitos estabelecidos, para outorgar, ou não, a autorização ou licença, pois, em tais casos, sua concessão ou denegação se converte em matéria regrada. 94 O tratamento à problemática do planejamento e do plano é sintetizado por Marcos Geraldo Batistela, ao preconizar que: Temos, portanto, que o planejamento constitui uma atividade ou método voltado ao conhecimento, a interpretação e a transformação de uma realidade a partir da disposição coordenada dos meios disponíveis para a consecução de determinados fins, e o plano é o documento, os registros dos fins pretendidos e dos meios a serem utilizados. Enquanto instituto jurídico, o plano está presente em vários ramos do direito público, especialmente no direito financeiro, no direito urbanístico e no direito econômico.95 93 Além desses dois tipos de planos, Lúcia Valle Figueiredo indica a existência dos planos incitativos. Nesse sentido, a autora destaca que os planos indicativos são aqueles em que o governo apenas assinala em alguma direção, sem qualquer compromisso, sem pretender o engajamento da iniciativa privada. De outra parte, ela afirma que os planos incitativos são aqueles em que o governo não somente sinaliza, mas pretende também o engajamento da iniciativa privada para atingir seus fins, o que pode ocorrer através da concessão de incentivos, acesso privilegiado a financiamentos e outras medidas que tragam a colaboração da iniciativa privada (Cf. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento, p. 12-3. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: set. 2011). 94 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93. 95 BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 11. 62 É necessário ressaltar, no entanto, que o planejamento urbano, embora inserido como espécie de planejamento econômico, possui algumas características peculiares incluídas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição de 1988, possibilitando uma intervenção mais acentuada do Estado na esfera jurídica privada. Desse modo, através dele não ocorre a intervenção no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio mais restrito da propriedade, na qual a ordem jurídica constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atividade urbanística (art. 182, § 1º). Há de se destacar que a finalidade da atuação do Estado decorrente do planejamento urbano deve ser unicamente a ordenação do território de um Município destinada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, pois caso se pretenda, por meio de normas urbanísticas, a regulação de mercado ou atividade econômica, a intervenção não mais terá por característica a obrigatoriedade, uma vez que se verifica o desvio de finalidade. É o que ocorre, por exemplo, quando a pretexto de ordenar seu território, um Município, por intermédio de sua lei de zoneamento, restringe ou proíbe a realização de uma atividade econômica em determinada área da cidade, de maneira que, ao final, comprometa a livre-iniciativa.96 Nota-se, ainda, que no planejamento urbano não se verifica com nitidez a distinção do plano em imperativo e indicativo. O que se verifica, em regra, “é que os planos urbanísticos podem ser gerais ou especiais (particularizados ou pormenorizados), e aqueles são menos vinculantes em relação aos particularizados, porque são de caráter mais normativo e dependentes de instrumentos ulteriores de concreção, enquanto os outros vinculam mais concretamente a atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.97 Nesse passo, os planos urbanísticos são dotados da mesma eficácia jurídica, variando apenas o seu círculo de destinatários, como adiante será analisado. 3.3 A importância conferida ao planejamento pelo direito urbanístico De início, deve ser frisado que o direito urbanístico despontou em vários países como fundamentalmente inerente à regulação da cidade e do solo urbano que, em parte, se confunde com o objeto do planejamento urbano a ser concretizado pelos planos. 96 Cf. SILVA, Júlia Maria Plenamente. O planejamento enquanto dever jurídico do Estado. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 76-77. 97 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93. 63 Merece atenção o fato de que o ordenamento urbanístico não pode ser um aglomerado inorgânico de imposições, devendo possuir um sentido geral, com base em propósitos claros, para orientação de todas as disposições”. 98 A propósito, por meio do planejamento as normas interferem no conteúdo do direito de propriedade do solo em função de sua classificação urbanística, ditam as técnicas de aproveitamento e estruturação física da urbe, preveem fórmulas para o desenvolvimento sustentável, reservam lugar à participação da comunidade na formulação e controle dos planos e estabelecem sistemas de justa distribuição de encargos e benefícios entre os atingidos pela execução da legislação urbanística. Daniela Campos Libório Di Sarno escreveu sobre a importância do planejamento, dizendo: A atividade de planejamento deve ser permanente no Estado brasileiro e será por meio dela que este ordenará suas atividades e elencará prioridades. O art. 174 da Constituição Federal traz esta determinação com alcance genérico, pois não indica o setor em que o planejamento deve se dar. Lê-se, desta generalidade, portanto, que o Estado deve sempre agir por intermédio da dinâmica do planejamento. Esse artigo está inserido no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira, Capítulo II- Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Deste contexto, podese entender que o planejamento das ações públicas é necessário sempre que o Poder Público quiser interferir na ordem econômica e financeira. Assim, na medida em que a política urbana está inserida no Capítulo II deste Título, o Poder Público deve planejar suas atividades de cunho urbanístico.99 Aliás, quanto às características das normas dos planos urbanísticos, cabe dizer, em termos gerais, que elas alcançam, ao mesmo tempo, a regulamentação normativa e a indicação de diretrizes técnicas e políticas. Daí porque algumas peculiaridades das normas que compõem o direito urbanístico, especialmente os planos urbanísticos, são destacadas por Fernando Alves Correia. Nesse sentido, o autor lusitano aponta as seguintes características: a complexidade das suas fontes (no direito urbanístico aparecem conjugadas normas jurídicas de âmbito nacional, regional e local), a mobilidade das suas normas (as quais devem adaptar-se à evolução da realidade urbanística, podendo-se citar, como exemplo, a revisão periódica dos planos 98 99 SUNDFELD Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais, p. 56. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 55. 64 diretores), e a natureza intrinsecamente discriminatória dos seus preceitos (possibilidade de definição diferenciada de uso e ocupação do solo urbano).100 As fases pelas quais o planejamento urbano deve passar correspondem a atos de diversas naturezas jurídicas, que se dividem em: elaboração, execução e revisão do plano. Em todas as fases, identifica-se o dever do Estado, que a cada momento é atribuído a determinado órgão ou agente e cujo descumprimento pode assumir consequências diversas. Assim, a atividade de planejar consiste na elaboração pelo Poder Público de estudos, perícias e levantamentos técnicos multidisciplinares para a concepção da proposta do plano a ser encaminhada ao Poder Legislativo. Após, haverá a votação do projeto, o qual, se aprovado, passará a ter natureza jurídica de lei. O plano aprovado representa, portanto, produção jurídica e deve ser respeitado e materializado, uma vez que de suas disposições decorrem deveres jurídicos. José Afonso da Silva indica alguns princípios que informam as fases do planejamento, a saber: I) o processo de planejamento é mais importante que o plano; II) o processo de planejamento deve elaborar planos estritamente adequados à realidade do município; III) os planos devem ser exequíveis; IV) o nível de profundidade dos estudos deve ser apenas o necessário para orientar a ação da municipalidade; V) complementaridade e integração de políticas, planos e os programas setoriais; VI) respeito e adequação à realidade regional, além da local, em consonância com os planos e programas estaduais e federais existentes; VII) democracia e acesso às informações disponíveis.101 O referido autor ainda destaca a contribuição feita por Jorge Wilheim, o qual indica alguns atos (passos) necessários para a formação do plano diretor: “1º Apreensão do conhecimento existente sobre a situação encontrada, no que diz respeito a atualização, abrangência, confiabilidade e profundidade; 2º “Leitura” da cidade, para identificação de suas estruturas básicas e caracterização de subsistemas típicos dos diversos grupos sociais e etários; 3º Lançamento de hipóteses e alternativas mediante o estabelecimento de um diagnóstico integrado e prognósticos; 4º Investigações, mediante pesquisas de campo, entrevistas, levantamentos diretos, censos, operações de consulta pública ou amostragens; 5º Proposição do segundo objeto possível (conceito desejável de vida urbana; alternativas de estruturas possíveis ou desejáveis; demandas, serviços, áreas); 6º Plano de estrutura, representado pela “planta da cidade proposta”; 7º Documentos normativos de condução; legislação do uso do solo e de loteamentos; lei de proteção à paisagem; reformas 100 101 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual do direito do urbanismo, p. 69-70. Cf. SILVA. José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 137-138. 65 administrativas; códigos tributários e de edificações; orçamentos-programa e outras formas de alocação de recursos financeiros; 8º Operações de indução, mediante estímulos de variada natureza; 9º Formação de quadros; 10º Continuidade do processo: “Para que a finalidade última do plano se realize é preciso que ele efetivamente tenha provocado um processo permanente da aplicação de suas recomendações, realimentação de informações e revisões periódicas”.102 Nessa linha, resulta claro que o planejamento deve ser visto como um processo, iniciado no âmbito da Administração Pública, quando ainda em fase de estudos técnicos para apresentação do projeto de lei (decisão final que corresponde ao plano), o qual, ao ser aprovado pelo Legislativo, servirá de diretriz para a execução da política urbana. Para Júlia Plenamente da Silva aplica-se ao planejamento urbano parcela do regime jurídico-administrativo destinada ao estudo do processo administrativo: O devido processo legal, princípio consagrado como direito fundamental do cidadão no art. 5º, LIV (devido processo legal) e LV (contraditório e ampla defesa), deverá orientar a atuação do administrador na elaboração e na execução do planejamento, tanto em seu aspecto formal ou adjetivo como em seu aspecto material ou substantivo. O aspecto formal do princípio impõe a preservação da lisura e da regularidade do procedimento, a fim de que a sucessão encadeada dos atos, por ele materializada, não sofra qualquer espécie de subversão, bem como para que não falte ao procedimento nenhum ato que seja essencial e indispensável para a sua conclusão. Já quanto ao aspecto material, o devido processo legal é alcançado quando o processo é utilizado como forma de realização dos princípios jurídicos do Estado Democrático de Direito.103 Assim, para a autora, a possibilidade de controle de decisões estatais, com efetiva participação da população, por intermédio dos mecanismos de exercício da democracia direta, como consultas e audiências públicas, representaria para o planejamento urbano a vertente mais importante do devido processo legal em seu aspecto substantivo. Além disso, o planejamento urbano, corolário do princípio (urbanístico) da coesão dinâmica (materializado, por exemplo, no art. 2º, inciso IV do Estatuto da Cidade), tem sua existência correlacionada à função do Poder Público de proporcionar o pleno 102 103 Ibid., p. 144. SILVA, Júlia Maria Plenamente. O planejamento enquanto dever jurídico do Estado, p. 61. 66 desenvolvimento das funções sociais da cidade. Busca-se evitar, através dele, o casuísmo e as transformações promovidas nas cidades com base exclusivamente em interesses econômicos. 3.4 Plano urbanístico e a sua natureza jurídica As ideias expostas já caracterizam o plano como um dos institutos fundamentais do planejamento urbano, sendo a forma principal de intervenção racional e de transformação do espaço urbano. Por força constitucional, o plano urbanístico necessita de formatação legislativa para ser implementado e observado, especialmente quando ele implicar imposição de obrigação de fazer ou não fazer ou na criação de direitos gerais e abstratos (CF, art. 5º, II, e art. 37, caput). Nessa linha, por exemplo, existe previsão constitucional expressa determinando a aprovação por lei do plano diretor municipal (art. 182, § 1º). O processo de planejamento urbanístico adquire sentido jurídico quando se traduz em planos urbanísticos. Estes são, pois, os instrumentos formais que consubstanciam e materializam as determinações e os objetivos previstos naquele. Enquanto não traduzidos em planos aprovados por lei (entre nós), o processo de planejamento não passa de propostas técnicas e, às vezes, simplesmente administrativas, mas não tem ainda dimensão jurídica.104 Portanto, os planos urbanísticos são dotados de juridicidade. Para José Afonso da Silva, “os planos são conformadores, transformadores e inovadores da situação existente, integrando o ordenamento jurídico que modificam, embora neles se encontrem também regras concretas de natureza administrativa, especialmente quando sejam de eficácia e aplicabilidade imediatas e executivas”.105 Acompanhando tais assertivas, mas aprofundando o debate, Marcos Geraldo Batistela afirma que os planos também podem se apresentar como execução de uma lei preexistente. Vejamos: A solução adotada pelo direito positivo nacional, se aparentemente resolve o debate do ponto de vista da forma, implica uma outra ordem de problemas, seja porque se 104 105 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 94. Ibid., p. 98. 67 reconhece a existência das chamadas leis de efeitos concretos (cujo conteúdo é equivalente ao de um ato administrativo), o que remete novamente ao problema conceitual original, seja porque a lei em sentido formal que contém as disposições do plano normalmente integra elementos pouco freqüentes em atos normativos (instituição de regras de conduta) como tabelas, gráficos, plantas, estatísticas, estudos preliminares etc.106 O autor manifesta com toda clareza seu posicionamento sobre a matéria destacando também o seguinte: Neste ponto, afigura-se que o esforço doutrinário de identificação do instituto do plano abstratamente considerado (como conceito lógico-jurídico) com alguma das formas jurídicas positivas tradicionais (como conceitos jurídico-positivos) não parece trazer qualquer aporte significativo para a compreensão do tema, porque se reporta a conceitos que se situam em níveis teóricos distintos. Com efeito, se a forma jurídico-positiva for o critério escolhido para o estabelecimento da natureza jurídica de um plano, então podem existir no ordenamento jurídico nacional planos de distintas naturezas jurídicas, uns estabelecidos por lei, como o plano diretor municipal ou o plano plurianual, outros estabelecidos por ato administrativo, como o projeto de loteamento disciplinado na Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, os planos de bacia hidrográfica previstos na Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e o plano de execução orçamentária (“a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso”) determinado pelo artigo 8º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). 107 Nota-se, desse modo, que a natureza jurídica dos planos tem sido objeto de longa controvérsia. Cumpre destacar, ademais, que algumas legislações apresentam nítido caráter misto, constituídas por determinações de natureza concreta – que têm a natureza de ato administrativo - e por disposições abstratas – que tratam de um número indefinido de situações.108 Isto implica dificuldades quanto à forma adequada de se questionar a constitucionalidade ou legalidade dos atos praticados com base na referida legislação. 106 BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 22. Ibid., p. 23. 108 É o que se verifica, por exemplo, na Lei Complementar nº 231/2011 (que trata do uso, da ocupação do solo e da urbanização do Município de Cuiabá). A lei em referência estabelece, no capítulo II, disposições sobre o zoneamento urbano (regras de efeitos concretos) e, ao mesmo tempo, institui índices urbanísticos e classificação 107 68 O doutrinador Fernando Alves Correia propõe a avaliação da questão da natureza jurídica dos planos através dos seus efeitos. A classificação proposta pelo referido autor distingue a autoplanificação (vinculada apenas ao sujeito que aprova o plano), a heteroplanificação (com efeitos para outros sujeitos públicos determinados) e a planificação plurisubjetiva (com efeitos para os particulares).109 Assim, para o autor, a autoplanificação é uma típica manifestação de todos os planos urbanísticos, já que eles, obviamente, devem vincular os sujeitos de direito público que os elaboram e aprovam. Na heteroplanificação, por sua vez, os planos vinculam todas as entidades públicas, sendo tal característica comum nos planos territoriais dos Estados Unitários, nos quais, embora haja entidades descentralizadas, estas não possuem autonomia e agem por delegação do órgão central.110 Por certo, ante a forma de distribuição interna do exercício do poder político no Brasil (estrutura federativa), a heteroplanificação é mais rara. Os casos de heteroplanificação são raros no direito brasileiro, cuja estrutura federal de Estado atribui a cada um dos níveis de governo competências estritamente discriminadas e provê poucos recursos para a coordenação da sua atuação. Apresenta-se, entretanto, com bastante nitidez no sistema constitucionalmente estabelecido para o planejamento urbanístico, em que existe previsão de um plano nacional de ordenação do território, circunscrito ao estabelecimento de normas ou diretrizes gerais, a possibilidade de elaboração de planos estaduais de ordenação do território e a obrigatoriedade de planos diretores municipais para as cidades com mais de vinte mil habitantes, sendo o caso em que as disposições dos planos territorialmente mais abrangentes vinculam diretamente os entes planejadores dotados de menor extensão territorial em razão de suas competências constitucionalmente definidas, isto é, os Estados e o Distrito Federal devem obediência às normas gerais e aos planos nacionais estabelecidos pela União e os Municípios às normas suplementares e aos planos estabelecidos pelos Estados nos limites de suas competências.111 de usos (capítulo III), atos puramente normativos, segundo paradigmas gerais e abstratos. Disponível em: <htpp://www.cuiaba.mt.gov.br/legislacao/legislacao_urbana_de_cuiaba.pdf>. Acesso em: out. 2011. 109 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 384-385. 110 Cf. ARAÚJO, Luiz Alberto David de e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 258-259. 111 BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 35-36. 69 Cumpre registrar que a eficácia plurisubjetiva vincula o poder público e o particular indeterminadamente. Assim, nem todos os planos territoriais têm uma eficácia plurisubjetiva, sendo que só alguns deles também vinculam direta e imediatamente os particulares, destacando-se, nesse contexto, os planos municipais e especiais de ordenação do território (que estabelecem os modos de ocupação do solo urbano). No escólio de Fernando Alves Correa, “os planos desprovidos de eficácia plurisubjetiva são planos de orientação e de coordenação, vinculativos para as entidades públicas, mas que não produzem efeitos directos e imediatos perante os particulares”.112 De qualquer sorte, como consequência do princípio da legalidade, o Poder Público não pode elaborar os planos que entender, mas apenas os que a lei prevê de modo típico, destacando-se, nesse contexto, os planos setoriais113e físico-territoriais. Por fim, cabe acrescentar que a distribuição de competências para o planejamento territorial pela Constituição de 1988 amolda-se à concepção de que os planos de maior abrangência territorial devem ser menos analíticos do que os planos de menor âmbito territorial e estes, ao contrário, devem conter disposições cada vez mais específicas e concretas em razão de sua menor abrangência territorial e do aumento de sua força vinculante para os sujeitos de direito, especialmente para os particulares interessados. 3.5 Planejamento urbano e valoração principiológica da Constituição Federal Os modelos normativos de planejamento urbano evoluem até chegar ao proposto pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, com as feições ditadas pelas características do Estado Democrático de Direito. Assim, no modelo de planejamento urbano anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, por falta de melhor determinação, as normas urbanas podiam ser realizadas por qualquer ente federado, independentemente de diretrizes constitucionais, tendo como referência a legislação ordinária e, em muitos casos, com ela conflitante.114 112 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 387. Segundo Adílson Dallari os planos setoriais referem-se “a áreas específicas de atuação, podendo ter maior ou menor amplitude (por exemplo: saneamento básico ou coleta e disposição do lixo, educação ou ensino básico, saúde ou atendimento de emergência etc.)” (Instrumentos da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 77). 114 Apesar disso, cumpre esclarecer que antes da Constituição de 1988 e da promulgação do Estatuto da Cidade, muitas cidades brasileiras possuíam planos diretores e legislação urbanística tecnicamente sofisticados, das quais um exemplo internacionalmente reconhecido é o da cidade de Brasília (inaugurada em 1960). 113 70 Neste contexto de liberdade normativa, os planos diretores municipais eram, em geral, documentos técnicos elaborados a partir da decisão unilateral da Administração municipal e com orientação metodológica dos órgãos federais. No modelo pré-constitucional de decisão, os planos urbanísticos em sua grande maioria constituíam documentos “técnico-especializados”, fundados no zoneamento e no uso do solo, realizados por engenheiros e/ou arquitetos contratados ou funcionários públicos, a partir de diretrizes dos órgãos federais e aprovados pelo poder legislativo municipal, independentemente de participação 115 popular. A inclusão de um capítulo próprio dedicado à política urbana, no título da Ordem Econômica e Financeira, foi uma das novidades da Constituição de 1988. Assim, a Constituição Federal ao descrever no seu artigo 182 e parágrafos o plano diretor como elemento fundamental da ordenação do território e como instrumento básico do desenvolvimento urbano informa que, em seu conteúdo, incluem-se, pelo menos, dois princípios: o da função social da propriedade urbana e o da função social da cidade. Estes, ao lado dos princípios que fundamentam a existência do Estado brasileiro, conferiram uma nova dimensão jurídica ao planejamento urbano, contextualizandoo na perspectiva do constitucionalismo contemporâneo na qual também os direitos fundamentais, os objetivos a serem alcançados pelo Estado e a sustentabilidade ambiental alcançam especial relevo.116 A mudança de paradigmas no âmago da Constituição que propicia a centralidade de alguns princípios no ordenamento é analisada com nitidez por Carlos Ayres Brito. Vejamos: (...) o fato é que, à sua dignidade formal a Constituição adicionou uma dignidade material. E assim recamada de princípios que são valores dignificantes de todo o Direito, é que ela passou a ocupar a centralidade do Ordenamento Jurídico, tanto quanto os princípios passaram a ocupar a centralidade da Constituição. Estrada de 115 OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano, p. 101. Para Eros Grau “a falta de reflexão tem levado alguns analistas do pensamento da doutrina a confundir valores (teleológicos) com princípios (deontológicos), colocando-se à deriva diante de uma mal-digerida apreensão da exposição dworkiniana, que em rigor exclui os princípios do âmbito normativo; cumpre observarmos que os conflitos e as oposições entre princípios são conflitos e oposições entre normas (...)” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. Malheiros Editores: São Paulo, p. 192-193). 116 71 mão dupla, pois o fato é que o reconhecimento da força normativa dos princípios coincide com o reconhecimento da força normativa da Constituição, num 117 crescendo que chega à superforça de ambas as categorias. A República Federativa do Brasil está atualmente estruturada em cinco fundamentos que indicam a forma correta de interpretar toda a aplicação do direito positivo brasileiro em vigor.118 Ou seja, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, a República Federativa do Brasil, a partir de 1988, veio a se constituir em Estado Democrático de Direito, adotando como alicerce a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, assim como o pluralismo político (art. 1º, I a V). Do mesmo modo, a República Federativa do Brasil, ao organizar seu sistema jurídico, a partir de 1988, pretendeu alcançar de maneira deliberada alguns propósitos que foram claramente estabelecidos no art. 3º, I a IV. Dentre suas finalidades nossa Lei Fundamental deixou clara a necessidade de erradicar a pobreza assim como a marginalização, destacando por outro lado o objetivo declarado de procurar reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III).119 Por outro lado, a República Federativa do Brasil reconhece que, por força do fundamento constitucional descrito no art. 1º, IV, necessita adaptar seu direito positivo, vinculado ao fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), para reduzir as desigualdades sociais e regionais do Brasil”. 117 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181. Como anota Juarez de Freitas, a interpretação jurídica há de reafirmar os fins, os princípios e os objetivos do sistema posto, partindo-se do ápice constitucional, os quais precisam rumar para a concretização plena, exemplificativamente, onde a ordem econômica esteja sujeita aos ditames teleológicos e racionais da justiça social, para a concretização de uma sociedade livre, justa e solidária (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 137). 119 Trata-se de exemplo típico de “norma-objetivo”, operando a definição dos fins primordiais do Estado brasileiro. Para Eros Roberto Grau o crescimento do Estado-ordenamento e do Estado-aparato trouxeram consigo a experiência concreta do surgimento de normas jurídicas diferenciadas, que rompem os modelos tradicionalmente conhecidos, de norma de conduta e de norma de organização. Assim, para o referido autor “deixando o Estado – operador último do Direito – de ser um mero produtor de ordem, segurança e paz (isto é, de ordenação) e passando a atuar também como conformador da ordem social e da ordem econômica, surgem, no Direito positivo, inúmeros exemplos de normas que não têm o sentido de disciplinar condutas ou de instrumentar a organização de entidades ou atividades, mas sim, tão-somente, de fixar fins (objetivos) a serem alcançados”. Para ele, as disposições da lei do plano que aprova as diretrizes e prioridades nele contidas é também exemplo de “norma-objetivo” (Notas sobre a noção de norma-objetivo. Direito constitucional: teoria geral da constituição. Coleção doutrinas essenciais, v. 1. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 843 e 847). 118 72 Há de se destacar, ainda, que o Brasil, seguindo uma tendência mundial, conferiu destaque especial à preservação do meio ambiente, que se incorporou como princípio na vigente Lei Maior, conforme registra Paulo de Bessa Antunes: A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio ambiente são de vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente, seja porque a defesa do meio ambiente é um princípio constitucional que fundamenta a atividade econômica (Constituição Federal, artigo 170, VI). Vê-se, com clareza que há, no contexto constitucional, um sistema de proteção ao meio ambiente que ultrapassa as meras disposições esparsas. 120 Não é por outra razão que a qualidade do meio ambiente urbano assume feição especial no ordenamento jurídico nacional, sendo que os planos urbanos, antes preocupados basicamente com o controle do uso do solo, voltam também sua atenção, atualmente, para os recursos naturais urbanos. Pode-se dizer, ainda, que a Constituição Federal trouxe novos paradigmas ao planejamento urbano, com a introdução do conceito normativo de democracia participativa (art. 1º e parágrafo único). Vale frisar que a participação, enquanto atividade eminentemente política dos cidadãos, é um dos pressupostos do Estado Democrático.121 Necessário observar, por oportuno, que do ponto de vista jurídico a democracia é tida como princípio geral de Direito, expressamente reconhecida pelo ordenamento constitucional brasileiro.122 Extrai-se do princípio democrático não somente a obrigação do Estado de respeitar as mais elementares normas de democracia representativa (eleições periódicas, separação de poderes, liberdade partidária), mas também, como enfatiza Canotilho, que ele “implica a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de apreender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer o controlo crítico na 120 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 2. ed. rev e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 40. Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 89-90. 122 Pode-se afirmar que princípios jurídicos são normas dotadas de um elevado grau de generalidade e abstração e que formam a estrutura fundamental de um sistema jurídico. Diferenciam-se das regras, que também são normas, pelo menor grau de generalidade e abstração e pela menor importância estruturante destas dentro do sistema jurídico (Cf. GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 19). 121 73 divergência de opiniões, produzir imputs políticos democráticos”, importando, por isso, 123 numa “forma de organização” do Estado e da Administração Pública. Para Carlos Ayres Brito, a democracia constitui o valor-síntese da Constituição, ou, de acordo com suas palavras “o próprio ser da Constituição, a sua quinteessência”124, não havendo na Constituição outro que se lhe iguale em importância funcional-sistêmica. A adoção do sistema democrático não importa somente o poder de selecionar eleitoralmente os governantes, mas, também, de dividir com eles algumas funções de governo e ainda controlar o modo pelo qual tais governantes se desincumbem do mandato ou do papel institucional que lhes é confiado. E, para tanto, adverte o citado autor: É do nosso entendimento que o controle social do Estado, tanto quanto a direta participação popular nos atos de governo, sejam atividades tanto mais eficazes quanto mais numerosos forem os mecanismos de divisão interna do poder político (Federação, Separação dos Poderes, Sistema Parlamentar de Governo...). É que o povo já encontra os órgãos e pessoas estatais reciprocamente limitados. Mutuamente contidos. E aí passa a conviver de modo mais facilitado com instâncias governamentais já relativizadas ou quebrantadas, cotidianamente, no seu poder institucional. O controle e a participação popular, nesse contexto, apenas dão seqüência a mecanismos constitucionais de desconcentração e descentralização da autoridade. Daí a compreensão de que a Democracia pressupõe uma organização estatal que prime pela divisão orgânica e territorial do poder político, em bases equilibradas; quer dizer, sem hegemonia de um órgão estatal sobre outro, ou de uma pessoa territorial sobre as demais. 125 O ordenamento jurídico prevê expressamente diversas formas de participação do cidadão na gestão pública. Nesse sentido, por exemplo, há previsão desta participação no planejamento municipal (art. 29, X, da CF), na gestão orçamentária e da cidade (art. 4º do Estatuto da Cidade), no sistema de saúde e seguridade social (art. 198, III e art. 194, VII, da CF), bem como na política de habitação de interesse social e na regularização fundiária dos assentamentos informais urbanos. 123 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 288. 124 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181. 125 Ibid., p. 185. 74 No Estatuto da Cidade a democracia participativa está fixada como diretriz da gestão democrática (art. 2º, II). Além disso, a participação popular é contemplada no inciso XIII, do art. 2º, no inciso III, do art. 4º (planejamento municipal) e no § 4º, I, do art. 40 (elaboração do plano diretor). A noção de participação popular está intrinsecamente ligada à própria concepção de democracia. Nesse sentido, ainda que não contasse com nenhuma referência expressa no Texto Constitucional de 1988, ao avesso do que verdadeiramente ocorre, deduziríamos a presença implícita de norma constitucional autorizante da criação de institutos de participação popular na Administração Pública, através dos princípios democráticos e do Estado de Direito, princípios básicos de organização do Estado Brasileiro, conforme definido pelo art. 1º da Constituição Federal. 126 Portanto, a participação popular na elaboração e execução do plano urbanístico possui fundamento constitucional. Constitui-se em regras de cumprimento obrigatório, materializando um tipo de planejamento democrático e participativo com pretensão de eficácia administrativa. Com efeito, a partir da determinação legislativa, tanto na elaboração quanto na gestão dos programas, projetos e planos urbanos, é necessária a participação dos cidadãos, como critério de legitimidade das decisões. Diante desse contexto, a legislação urbanística deve abarcar as exigências constitucionais acima elencadas, além das recomendações globais, maximizando o princípio da dignidade da pessoa humana, dentro de um ambiente saudável e uma vida de acesso ao bem-estar. Por certo, o ordenamento do território (através dos planos urbanísticos), assume uma função essencial, especialmente diante das carências das nossas cidades. Assim, ele é orientado, constitucionalmente, a ser instrumento destinado a assegurar resultados úteis, vinculado aos objetivos apontados na Constituição Federal. Destarte, os planos de ordenação dos territórios se caracterizam por serem fundamentalmente instrumentos, dentre outros encontrados na Carta Magna, destinados a também contribuir, em seus respectivos âmbitos de aplicação, para o atingimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Desse modo, o recurso ao planejamento, cujo plano urbanístico é uma das suas expressões, é de suma importância para se atingir os objetivos fundamentais da 126 Cf. PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na administração pública. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 74. 75 República Federativa do Brasil. O art. 182 da Constituição de 1988, por sua vez, dispõe que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo garantir o bem-estar dos habitantes da cidade. Assim, para o alcance de tais objetivos é necessário que métodos e estratégias sejam reunidos, para conformar uma atuação planejada. A planificação, neste contexto, não pode desconsiderar tais aspectos, servindo-lhes como garantia de efetivação. 3.6 Visão integrada de planejamento urbano Pelo que já foi destacado, o planejamento sofreu um impulso considerável nas últimas décadas devido ao grau de intervenção da Administração Pública no tecido social, especialmente nas funções de ordenação do território, de apoio ao desenvolvimento econômico e social, de promoção da justiça social e de prestação social, no qual o plano tornou-se um instrumento essencial da ação administrativa nos Estados com o modelo de Bem-Estar Social. Esta é a razão pela qual a Constituição Federal de 1988 indica vários dispositivos sobre planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, sobre o planejamento do uso e ocupação do solo urbano pelos municípios, sobre planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, além de disposições específicas sobre o plano diretor municipal. Destacam-se, neste cenário, os planos econômicos, ou, talvez mais rigorosamente, socioeconômicos, e os planos territoriais. Não obstante as íntimas conexões e influências recíprocas que se verificam entre a planificação territorial e a planificação econômica, pode-se afirmar que uma e outra reportam-se a diferentes elementos da realidade. É o que adverte Fernando Alves Correia: (...) a planificação territorial distingue-se da planificação económica porque, como escreve A. PREDIERI, tem o território como objecto, sobre ele intervém e pretende intervir directamente, prosseguindo efeitos de planificação da actividade 76 económica apenas enquanto conexos com a planificação do território, somente 127 enquanto efeitos condicionados ou induzidos pela planificação do solo. O citado autor, com base nos ensinamentos de renomados juristas europeus, ainda fornece um conceito sobre plano econômico: O plano econômico é ‘o acto ou conjunto de actos jurídicos por meio dos quais o Estado define para determinado período os grandes objectivos da política económico-social e as vias ou meios da sua implementação ou concretização’. É com base nos planos económicos que os poderes públicos analisam as probabilidades da evolução económica, definem as orientações desta evolução e incitam os agentes económicos a observá-las. 128 Não há dúvidas de que o planejamento urbano deve estar vinculado ao planejamento econômico e social. Neste sentido, por exemplo, a programação de políticas de investimento pela União em obras numa determinada região do país, ou mesmo o incentivo à instalação de empresas ou atividades numa localidade, irá impactar social e economicamente na infraestrutura dos municípios onde elas ocorrerão. Aliás, a própria Constituição de 1988 sinalizou as estreitas relações entre ambos (CF, art. 21, IX). Embora muitos Municípios sequer consigam implantar o plano urbanístico de ordenação territorial que integra a sua competência, é certo que alguns problemas relacionados à saúde, à habitação, à geração de renda, entre outros, para a sua resolução estrutural, dependem de políticas macroeconômicas, fiscais e definições das esferas estaduais e da União, que seguramente ultrapassam o âmbito municipal. Como facilmente se compreende, a situação acima caracterizada demanda uma intervenção do Poder Público nos solos urbanos, através do recurso a diversas providências, tendentes a promover uma política de ordenação das cidades que envolva uma interação coordenada nos âmbitos nacional, regional e municipal. Com efeito, o recurso ao planejamento coordenado entre os entes públicos é uma maneira de se intervir neste problema. Ou seja, trata-se de implantar um sistema racional de planejamento com o objetivo de relacionar intimamente crescimento econômico com 127 128 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 352-353. Ibid., p. 353-354. 77 crescimento urbano, num sistema de planejamento integrado que possibilite a canalização de esforços e recursos dentro de uma mesma visão global de desenvolvimento. Pode-se afirmar que os problemas referentes ao planejamento físico só podem ser efetivamente enfrentados quando o mesmo está contido numa visão integral de planejamento global. Da mesma forma, o planejamento físico deve estar integrado numa visão que defina níveis de atuação nacional, regional ou local, mantendo a possibilidade de coerência do sistema. É o que esclarece Roberto Loeb: Cada cidade, cada região constitui com todos os seus componentes um sistema complexo de variáveis interdependentes, cuja manipulação exige uma apreciável coordenação técnica (política, administrativa, social e econômica) sob pena de perda da possibilidade de atuação sobre esse sistema. Assim, a implantação de determinada política de concentração industrial, a abertura de determinada estrada, ou a criação de um novo imposto podem influir sensivelmente numa dada distribuição espacial, deslocando centros de polarização e criando novos elementos de crescimento. A possibilidade de manipulação de todas essas variáveis torna-se assim possível apenas a partir da formação de equipes de trabalho interdisciplinar nas quais a visão de planejamento integral predomine, em oposição à prática do planejamento setorial para a solução de problemas interdependentes. 129 É certo que, em decorrência do planejamento urbano, o Estado realiza intervenção que pode implicar limitação administrativa à propriedade ou ainda sacrifício parcial ou total do direito. Já a atividade econômica é de livre iniciativa de todos e segue apenas comandos gerais do Estado, sem a imposição de limitações ou restrições específicas, vez que se trata de interesse particular do cidadão desenvolver a atividade econômica que melhor lhe aprouver com a finalidade de obter lucro. No entanto, há casos excepcionais em que o planejamento econômico tornar-se-á obrigatório, como pode ocorrer no controle dos preços, desde que para garantir a livre iniciativa. 130 Assim, o planejamento econômico direcionado aos particulares serve apenas como incentivo, a ser seguido ou não. 129 LOEB, Roberto. Aspectos do planejamento territorial no Brasil. Planejamento no Brasil, p. 143. Cf. BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites da atuação estatal no controle de preços. Revista Diálogo Jurídico. Número 14 – junho/agosto. Salvador: Centro de Atualização Jurídica, 2002, p. 24-27. 130 78 3.7 Os planos de ordenamento territorial Conforme adrede exposto, os planos de ordenamento territorial podem ser diferenciados dos planos econômicos e sociais, muito embora haja íntima conexão entre ambos, advinda da relação necessária com o território em que produzem efeitos. Em linhas gerais, pode-se dizer que o ordenamento territorial abrange as áreas do planejamento que têm impacto direto sobre a organização do território. 131 Assim, são vários os planos que têm o território como seu objeto no Brasil, especialmente os relativos à área ambiental (a exemplo da Lei nº 7.661/98, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e da Lei nº 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos). Além disso, há planos no âmbito do direito agrário, os voltados a questões turísticas, e os de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por quilombolas, índios, etc., destacando-se, ainda, a existência de alguns institutos, como os dos consórcios públicos, que também exercem forte impacto sobre o ordenamento territorial (Lei nº 11.107/2005), já que o compartilhamento de equipamentos de uso coletivo, infraestrutura social e econômica e recursos para o desenvolvimento social e econômico das municipalidades mais pobres é fundamental para fixar a população em seus lugares de origem, oferecendo-lhes reais condições de vida e trabalho, com custos menores para as prefeituras dos municípios que fazem parte do consórcio. Nesse sentido, ressalta Ana Teresa Sotero Duarte: Se formos consultar os diferentes Ministérios que atuam em áreas como planejamento econômico, agricultura, política agrícola e agrária, produção de alimentos, desenvolvimento industrial, educação, meio ambiente, planejamento urbano, infraestrutura básica (como transportes, rodovias, saneamento, energia elétrica e abastecimento), vamos ver que, de alguma forma, todas atuam, direta ou 131 Aparentemente não foi despretensiosa a inclusão, no inciso IX do art. 21 da Constituição, da competência da União para, além de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território, de também elaborar e executar planos de desenvolvimento econômico e social, em visível demonstração de entrelaçamento de tais políticas – indicando a inter-relação de seus instrumentos administrativos e normativos. José Afonso da Silva, inclusive, menciona que o método adotado pelo II e III Plano Nacional de Desenvolvimento “parece cumprir melhor uma das características básicas de um plano urbanístico nacional, que é a de vincular os objetivos urbanísticos às previsões da planificação econômica e social do país” (SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 115). 79 indiretamente, sobre o ordenamento do território, com base em algum plano ou 132 projeto relacionado ao seu campo de atuação específico. Como se nota, as normas relativas ao ordenamento territorial no país estão “pulverizadas” por diversos instrumentos legais. Já no sistema de ordenamento territorial da Alemanha, por exemplo, os procedimentos básicos relativos ao ordenamento territorial encontram-se resumidos em alguns poucos mecanismos legais, válidos para todo o país. Os mais importantes dispositivos legais relacionados ao ordenamento territorial acham-se resumidos na lei federal de ordenamento territorial desde 1965. 133 Seguindo a intenção constitucional de distribuir a planificação entre as esferas de governo, os planos territoriais no Brasil podem ser elaborados pela União, pelos Estados-membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (que estabelece diretrizes gerais da Política Urbana) trata, entre outras questões relacionadas ao ordenamento do território em nível municipal, dos critérios de elaboração dos planos diretores previstos na Constituição Federal, deixando, no entanto, de fixar regras e especificidades para os planos de nível nacional, regional e estadual. No art. 4º, capítulo II, desta lei estão definidos os instrumentos de política urbana, entre os quais se destacam: a) planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; b) planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; c) planejamento municipal, onde se encontram incluídos o plano diretor, a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo e o zoneamento ambiental; d) planos diretores, zoneamento ambiental, plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos, programas e projetos setoriais, planos de desenvolvimento econômico e social. A respeito do que estabelece a lei de política urbana sobre o ordenamento do território municipal, é importante lembrar a dificuldade que pode representar para a administração municipal a elaboração de um plano de ordenamento sem que se possa contar com diretrizes em nível estadual e federal. 132 DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de desenvolvimento regional para o semi-árido. Brasília. Consultoria Legislativa/Estudo/Câmara dos Deputados. Fevereiro de 2002, p. 03. 133 Ibid., p. 09-14. 80 Isto porque, para existir de fato, o ordenamento do território deve ser elaborado de forma articulada entre as esferas federativas, “indo dos arcabouços maiores dos planos nacionais e macrorregionais até os mais limitados dos planos microrregionais e locais”, de tal sorte que “os nacionais estabeleçam as diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento da rede urbana do território nacional em função do plano nacional de desenvolvimento econômico-social; os macrorregionais desceriam aos aspectos mais particularizados das regiões em função do planejamento econômico-social regional; os planos estaduais e microrregionais de cada Estado, observadas aquelas diretrizes e objetivos, seriam planos de coordenação urbanística; e, finalmente, cada Município faria seu plano urbanístico (plano diretor), segundo suas necessidades e conveniências, respeitadas as diretrizes e objetivos econômicos e sociais fixados nos planos de nível superior”. 134 Assim, o cenário ideal seria o de um ordenamento do território que fosse elaborado “de cima para baixo”, ou seja, primeiro no nível nacional, depois no estadual e, finalmente, no nível municipal, em articulação com o planejamento econômico e social. Aliás, é possível dizer que a distribuição constitucional da planificação urbanística entre todas as esferas de governo representa a intenção de se instituir no Brasil um sistema de planejamento territorial com tais características, de modo que a análise dos planos urbanísticos deve inspirar-se no seu conjunto e na função que exercem no sistema jurídico. Nessa linha, pode-se acrescentar que a visão sistêmica da política de ordenamento territorial e de urbanismo deve se assentar num quadro de interação coordenada que viabilize a concretização dos instrumentos de planificação territorial nos âmbitos nacional, regional e municipal. É importante destacar que a ideia de sistema inculca imediatamente outras, tais como as de unidade, totalidade e complexidade. Por sua vez, o sistema de ordenação do território instituído pela Constituição de 1988 tem como pressuposto a necessidade de se chegar à redução da complexidade normativa e organizativa de um ordenamento caracterizado pela proliferação de normas instituídas por vários centros de produção de Direito.135 Outrossim, o inchaço organizacional, a inflação normativa e as lacunas das ações públicas só podem ser combatidas com ação eficiente do Estado. Além disso, se os imprevistos e as improvisações do governo são reduzidos e na mesma proporção cresce a 134 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 105. “Não é o direito em si mesmo o que é um sistema, mas sim o direito visto como conjunto de normas entrelaçadas é o que aparece como sistema” (DROMI, Roberto. Sistema jurídico e valores administrativos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2007, p. 137, nota 262). 135 81 certeza jurídica e desaparecem as vacilações administrativas, o produto final da gestão pública se verá potencializado. É por isso que a análise conjuntural dos planos urbanísticos só será possível com a edição do plano nacional de ordenamento territorial que, por sua vez, deverá orientar a reformulação dos planos territoriais hoje existentes. Seria necessário, pois, compatibilizar as normas dos planos urbanísticos dos demais entes federativos com as do plano nacional, a fim de evitar a superposição e a eventual contradição de ações promovidas por tais unidades no território. Ou seja, é o plano nacional que possibilitará a criação de um verdadeiro sistema de ordenamento territorial no Brasil. A tarefa de realizar um planejamento urbano adequado deve estar orientada sistematicamente. A premissa é a integração dos diversos planos, formando um todo com seus objetivos, seus conteúdos e suas estruturas. Isto nos permite descortinar algumas notas características dos planos urbanísticos: a primeira, é de que tais planos são basicamente uma unidade, tratando-se de meros instrumentos qualificados pelo ordenamento como essenciais para o alcance de valores caros à sociedade; a segunda diz respeito ao fato de todos os planos preverem um leque de medidas, que se posicionam numa relação indissolúvel de complementaridade e, algumas vezes, de dependência recíproca. Esta última característica é bem patente nos casos em que a obtenção de um resultado apenas pode ser garantida através de aplicação conjunta das diferentes medidas, ou ainda quando a sua interligação é de tal ordem que a alteração ou ausência de alguma medida provoca uma reação em cadeia, que põe em causa a concepção de conjunto.136 Fernando Alves Correia ressalta que essa visão de conjunto dos planos não pode nos fazer perder de vista as particularidades da planificação urbanística em relação a planos de outras naturezas.137 Nesse sentido, o ordenamento jurídico estabelece objetivos comuns ao planejamento urbano realizado pelos entes federativos concomitantemente com a utilização de mecanismos distintos que levem em consideração as peculiaridades do objeto a que se destinam, bem como as divisões de poder no território, de modo que os planos urbanísticos podem ser avaliados num sistema de planejamento fechado ou aberto dependendo de suas características. Nessa perspectiva, enfatiza Marcos Geraldo Batistela: 136 137 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 363. Ibidem. 82 Num sistema de planejamento “fechado” existe uma relação de necessidade ou dependência entre os planos, segundo a qual a elaboração de um plano executivo ou mais analítico pressupõe a existência prévia de um plano de diretrizes, como ocorre no direito financeiro, em que a lei orçamentária anual depende da existência da lei de diretrizes orçamentárias e esta pressupõe a existência da lei do plano plurianual, que o direito positivo coloca como marco original de todos os outros planos financeiros do Estado (arts. 165 e 166 da Constituição), enquanto num sistema de planejamento “aberto” esta relação não se apresenta ou não se apresenta integralmente, atingindo todos os planos de uma mesma natureza, isto é, os diferentes planos podem ter existência autônoma e sua validade não depende juridicamente da existência de outro plano, como ocorre com o planejamento territorial no Brasil, em que os diferentes planos aplicáveis a um mesmo território não se reportam todos a um mesmo plano de diretrizes global. Quanto a este aspecto, o planejamento urbanístico apresenta-se ora como sistema fechado (diversos institutos jurídicos exigem uma disciplina preliminar no plano diretor municipal), ora como sistema aberto (a elaboração de planos diretores municipais, seu instituto jurídico fundamental, independe da existência de outros planos de natureza mais abstrata).138 Tal abordagem deve ser avaliada tendo como base o grau analítico das previsões dos planos, haja vista que a ordem de seus preceitos normativos caminham de forma gradual, partindo de um patamar de maior abstração para outros de menor abstração e maior grau de concretude. De forma alguma, a Lei Fundamental atribui maior importância aos planos de âmbito territorial mais amplo em relação aos de âmbito mais circunscrito. Muito menos pode haver exigência de necessidade (de surgimento gradativo-sequencial) entre os diversos graus da planificação, não estando a aprovação de um plano de “nível inferior” vinculada à aprovação prévia ou concomitante de um plano de “nível superior”.139 A Constituição de 1988 institui, sim, um sistema de ordenação territorial, numa espécie de conjunto de normas entrelaçadas (numa interação que pretende ser coerente), de modo que o plano nacional e os planos regionais estabeleceriam disposições genéricas e opções para o ordenamento do espaço realizado pelas demais unidades federativas. Assim, a edição de planos urbanísticos de maior abrangência territorial, integrados aos planos e programas de desenvolvimento econômico e social (com seus 138 BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 38-39. Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 80-81. 139 83 incentivos, financiamentos e outros instrumentos) influenciariam o desempenho da atividade urbanística (realização de desapropriações, a aprovação de loteamentos e de distritos industriais, a regularização de terras urbanas em áreas de interesse ambiental, a doação de terras públicas para empreendimentos privados etc.), induzindo, paulatinamente, os demais entes federativos a seguirem as diretrizes gerais de ordenação territorial. Desse modo, a União exerce função primordial na implantação de um sistema de planos estruturais, na medida em que os planos territoriais de sua competência podem possibilitar a integração dos diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento, entre os níveis de governo, permitindo maior eficiência nas ações administrativas entre governos e gestões sucessivas e, consequentemente, a adequada alocação de recursos. 84 4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO 4.1 Aspectos gerais Como visto em linhas anteriores, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema integrado de ordenamento territorial, prevendo uma ação coordenada nos diferentes níveis de governo, de modo que podem ser elaborados planos de abrangência nacional, regional, estadual, intermunicipal, e municipal. Aliás, num país com dimensões continentais, de alta diversidade ambiental, cultural, social e econômica como o Brasil, revela-se fundamental a existência de planos territoriais de caráter nacional e regionais para orientar o uso e a ocupação das terras. Conforme analisado, o regime de repartição de competências adotado pela Constituição de 1988 atribui à União a elaboração de três tipos de planos de ordenação territorial: a) o plano nacional; b) os planos regionais ou macrorregionais; e c) os planos setoriais. De fato, a regulação das tendências de distribuição das atividades produtivas e de investimentos no território nacional e a necessidade de coordenação deste processo pela União, para melhor organização da ocupação, uso e transformação do território, é que fundamenta a existência da ordenação territorial em nível nacional e regional. Ou seja, no modelo federativo brasileiro, a Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da União é essencial para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto direto no território. As exigências do desenvolvimento nacional reclamam essa concentração, pois, na verdade, a União, através do Governo Federal, é que dispõe de recursos financeiros, técnicos e humanos para orientar o crescimento programado de federação dotada de estrutura continental, como a brasileira, reduzindo disparidades regionais, mediante adequada repartição do produto nacional Por outro lado, passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição, a União ainda não se desincumbiu do dever de elaborar o plano nacional e os planos regionais de ordenamento territorial, o que significa que ainda não houve a implantação de uma política nacional de ordenamento territorial. Por sua vez, é inquestionável a existência de inúmeras políticas setoriais que impactam o território, algumas delas 85 elaboradas e executadas de forma desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes federativos, e, inclusive, entre os órgãos de uma mesma unidade federativa.140 No seminário promovido em novembro de 2006 pelo Ministério da Integração Nacional, cujo objetivo foi discutir as bases para a implementação de uma Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT) foram desenvolvidos alguns estudos temáticos. Num deles, houve a apresentação de um slide pelo professor Marcel Bursztyn indicando alguns instrumentos já existentes com reflexos no ordenamento territorial, como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, os Planos Diretores Municipais (e seus instrumentos de gestão territorial urbana), o Plano Nacional de Recursos Hídricos, os Planos Diretores de Bacias Hidrográficas, o Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável, o Programa Nacional de Desenvolvimento dos Territórios Rurais (PRONAT), o Programa de Proteção de Terras Indígenas, o Programa de Zoneamento Ecológico-Econômico, e os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento. Alguns instrumentos com rebatimento territorial também foram indicados, como é o caso das seguintes políticas: a Política Nacional de Desenvolvimento Regional, a Política Nacional de Meio Ambiente, a Política de Desenvolvimento Rural Sustentável, e a Política Nacional de Recursos Hídricos. Quanto aos planos macrorregionais e subregionais foram destacados os seguintes: o Plano Amazônia Sustentável, o Plano de Desenvolvimento do Nordeste, o Plano de Desenvolvimento do Centro-Oeste, o Plano de Desenvolvimento do Semi-Árido, e o Plano BR-163 Sustentável. Programas setoriais também foram apontados, dentre eles: o Plano Nacional de Logística e Transporte, o Plano Nacional de Reforma Agrária, e o Plano Nacional de Energia. Por sinal, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território são tidos pelo ordenamento jurídico como instrumentos de política urbana, dada a relevância deles para a orientação e reorientação do desenvolvimento urbano, encontrando previsão expressa no Estatuto da Cidade, ao lado do planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e do planejamento municipal (art. 4º). Tal normatização amplia a concepção aparentemente restritiva posta pelo art. 182 da Constituição Federal que, numa leitura apressada, transmite a focalização do ordenamento territorial no plano diretor e na execução deste pelo Poder Público municipal.141 140 Disponível em:<htpp://www.mi.gov.br/desenvolvimentoregional/seminario_pnot/>. Acesso em: 15 set. 2011. CF. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 86. 141 86 Assim, os planos de ordenação territorial da União, especialmente o plano nacional, devem também viabilizar a implantação das diretrizes e princípios voltados ao desenvolvimento urbano do país. Cumpre registrar, na oportunidade, que os planos nacionais de desenvolvimento de maior envergadura realizados no Brasil continham numerosas diretrizes para a política urbana nacional, como é o caso do Plano Decenal (1964-1967), do Plano de Desenvolvimento Estratégico (1967-1969) e dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND I, II e III de 1972-1985). Embora o planejamento urbanístico mais característico, mais eficaz, e mais concreto seja o realizado no âmbito municipal, o ideal é que cada Município elabore seu plano urbanístico de acordo com suas necessidades e conveniências, mas respeitando as diretrizes e objetivos econômicos e sociais fixados nos planos nacionais e regionais. Vale destacar que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição Federal devem ser elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional (artigo 165 § 4º). Do mesmo modo, é princípio geral da atividade econômica o exercício pelo Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (art. 174, caput, da Constituição Federal), sendo que a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (art. 174, § 1º). Outro dispositivo constitucional de extrema relevância para a análise dos planos urbanísticos de competência da União é o que dispõe que, para efeitos administrativos, tal ente poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando ao seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais, dispondo lei complementar sobre as condições para integração de regiões em desenvolvimento e a composição dos organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com este artigo (artigo 43, § 1º, incisos I e II). É, portanto, a partir desta normatização constitucional que se pode afirmar ser a Lei Fundamental a que se preocupa em estabelecer a correlação dos planos de desenvolvimento econômico-social com os de ordenação territorial, visando à harmonização dos objetivos econômicos, sociais e ecológicos. 87 4.2 Planos urbanísticos e competência do governo central em perspectiva comparada O conhecimento do direito estrangeiro é de grande valia, notadamente em um assunto ainda pouco consolidado no direito urbanístico, como é o caso dos planos urbanísticos de competência da União. Embora as sociedades e os ordenamentos jurídicos de cada país sejam diferentes, há possibilidade de uma comparação válida com o ordenamento brasileiro, pois os países considerados adotam economias de mercado com regulação estatal e todos consideram os planos protagonistas do sistema de gestão territorial. No sistema continental europeu, as legislações urbanísticas de alguns países são tradicionalmente estruturadas em um sistema de planos urbanísticos, como é o caso da Ley de Régimen del Suelo y Ordenación Urbana (Espanha); Code de l’Urbanisme et de l’Habitation (França); Bundesbaugesetz (Alemanha); Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e Urbanismo (Portugal). Assim, tais legislações estabelecem a coexistência de planos de maior abrangência territorial, que fixam diretrizes a serem acatadas pelos planos de menor abrangência territorial, que são mais detalhados e minuciosos. Os planos são tipificados em lei e os governos locais não podem criar outros, distintos. Os planos de maior amplitude são os nacionais, regionais ou setoriais, que contêm diretrizes para a elaboração de outros planos mais específicos, sem que suas regras sejam diretamente oponíveis aos particulares. Nos dizeres de Carlos Magno Miqueri da Costa “há uma hierarquia das normas dos planos, e as mesmas têm que ser articuladas para que se evitem conflitos que levem à dúvida sobre a prevalência de uma ou de outras”.142 Muito embora as administrações locais possuam competências e personalidade jurídica de direito público (descentralização), há de se ressaltar que a maioria destes países são Estados Unitários. Em Portugal, por exemplo, foram delimitadas diretrizes gerais do sistema de planejamento territorial (Lei 48/98 – Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo), com a previsão de um programa nacional para a política de ordenamento do território e desenvolvimento urbano e de planos setoriais, especiais, regionais, intermunicipais e municipais (Decreto-Lei 380/99 – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial). 142 COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 57 88 Há em Portugal um complexo planificatório sistêmico do qual emanam normatizações urbanísticas reunidas em arranjos orquestrados por objetivos comuns. No que se refere aos planos de competência do governo central pode-se afirmar que o programa nacional da política de ordenamento do território tem a responsabilidade de definir diretrizes de “organização espacial que terá em conta o sistema urbano, as redes, as infra-estruturas e os equipamentos de interesse nacional, bem como as áreas de interesse nacional em termos agrícolas, ambientais e patrimoniais”. Os planos setoriais “programam ou concretizam”, em âmbito nacional, “as políticas de desenvolvimento econômico e social com incidência espacial”, sendo consideradas como tais as decisões sobre a localização e a realização de grandes empreendimentos públicos com incidência territorial. Os planos especiais “estabelecem um meio supletivo de intervenção do Governo apto à prossecução de objetivos de interesse nacional, com repercussão espacial”. Já os planos regionais “estabelecem as orientações para o ordenamento do território regional e definem as redes regionais de infraestruturas e transportes, constituindo o quadro de referência para a elaboração dos planos municipais de ordenamento do território”. 143 Todos os planos vinculam os entes de direito público que os elaboraram e os aprovaram, bem como aos demais que, no mínimo, estão obrigados a observá-los, sob pena de nulidade de planos ou atos que sejam incompatíveis ou que violem qualquer instrumento de gestão territorial em vigor. Contudo, conforme aduz Carlos Magno Miqueri da Costa, “o fenômeno da vinculação direta e imediata dos particulares apenas é afeta aos planos municipais e aos especiais, pois em seu bojo são encontradas as normatizações que regem os direitos e as obrigações dos cidadãos e pessoas jurídicas de direito privado proprietários de imóveis – no que se refere ao ordenamento territorial”.144 Há aparentemente uma distinção na Espanha e na França entre o planejamento territorial (competência mais afeta aos Municípios e às comunas) e o setorial (tarefa do governo central, estado, regiões ou departamentos), muito embora tais países possuam leis de abrangência nacional que tratam da organização espacial com nítido propósito de atingir harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento espacial. 143 144 Ibid., p. 72-73. Ibid., p. 81. 89 Um país que possui uma organização administrativa semelhante à nossa e que vem pondo em prática, há mais de três décadas, um sistema de ordenamento territorial bem estruturado é a República Federal da Alemanha.145 A Alemanha possui sua lei federal de ordenamento territorial desde 1965. Em 1975, a União e os estados definiram, pela primeira vez, em conjunto, um programa federal de ordenamento do território. De acordo com a legislação alemã, entende-se por ordenamento do território a coordenação e a orientação dos diferentes tipos de planejamento setorial e dos investimentos governamentais. Para Maria Sotero “o objetivo do ordenamento territorial no país é racionalizar o processo de alocação de recursos, tanto públicos como privados, e a distribuição dos equipamentos de uso coletivo”. Acrescenta ainda a autora que “o ordenamento do território destina-se também a orientar e promover o desenvolvimento de áreas com características especiais, como as áreas de fronteira e as regiões atrasadas em relação ao padrão médio de desenvolvimento nacional”.146 O ordenamento territorial estabelece objetivos materiais concretos, que têm caráter vinculante para o planejamento das demais instâncias de governo do país (os planos elaborados por tais instâncias não podem se contrapor ao que estabelece a referida lei), servindo de parâmetro, por exemplo, para a elaboração dos planos municipais e setoriais, assim como para todas as medidas adotadas pelo setor público que tenham impacto na organização do espaço. Desse modo, antes de o governo iniciar a execução de obras federais, como, por exemplo, estradas de ferro e auto-estradas, canais, gasodutos, oleodutos e usinas nucleares, é necessário que fique demonstrada sua compatibilidade com a lei de ordenamento espacial estadual e dos demais planos setoriais já existentes nos estados. 147 Na Alemanha, a União e os Estados-membros são obrigados a trocar entre si todas as informações que estejam relacionadas ao ordenamento territorial e ao planejamento econômico. Assim, os Estados elaboram seus planos e programas em consonância com o que determina a União. Ao estabelecerem suas metas de ordenamento territorial, os Municípios e os Distritos devem adaptar-se ao que estabelecem as leis de ordenamento territorial de seus respectivos Estados. 145 A estrutura administrativa da República Federal Alemã é composta pela União, os Estados-membros (Länders), os Municípios e uma instância intermediária entre os Estados e os Municípios, chamada Landkreis, ou distrito, sem similar no Brasil. 146 DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de desenvolvimento regional para o semi-árido, p. 11. 147 Ibidem. 90 A prática institucional do urbanismo brasileiro não encontra paralelo em nenhum dos países adrede analisados. Hodiernamente, ainda não possuímos um plano nacional de ordenação territorial e nem planos regionais, nos moldes instituídos pelo sistema continental europeu. Isso cria no Brasil um vácuo legislativo que os estados e os municípios não conseguem suprir com seus respectivos planos. De uma forma ou de outra, a realidade da planificação urbanística verificada no Brasil demonstra ser incompatível a exigência de vinculação obrigatória entre os diversos degraus da planificação, não estando a aprovação de um plano de “nível inferior” vinculado à aprovação prévia ou concomitante à um plano de “nível superior” como ocorre na Alemanha. A despeito disso, é plenamente ínsito ao ordenamento jurídico brasileiro a visão de conjunto e de integração das normas dos planos elaborados pelas diversas unidades federativas e tão bem implementadas no sistema jurídico alemão. Há uma tendência de se operar no Brasil com planos setoriais fragmentados, em nítida demonstração de falta de entreleçamento das políticas de desenvolvimento econômico e social com as de ordenação espacial. A vinculação das obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento148à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (Resolução Recomendada n. 34, de 1º de março de 2007, expedida pelo Conselho das Cidades)149foi um dos primeiros passos na mudança desse cenário. Isto não supre a necessidade da elaboração de um plano nacional e de planos regionais de ordenamento territorial. A Espanha, nesse sentido, possui tanto leis de abrangência nacional (que tratam da organização espacial com o nítido propósito de atingir harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento espacial), como um Plano Nacional de Infraestruturas, que define programas e ações pertinentes às infraestruturas de 148 PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – consiste em um pacote de medidas do Governo Federal que visa acelerar o crescimento econômico, aumentar a empregabilidade, melhorar as condições de vida da população, incentivar o investimento privado, aumentar o investimento público em infraestrutura, remover obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento. Tal programa prevê, em nível nacional, a concessão de créditos para aplicação em saneamento e habitação popular, ampliação dos limites de crédito do setor público para saneamento ambiental e habitação, criação de um fundo de investimento em infraestrutura, desoneração tributária de obras de infraestrutura, elevação da harmonia e cooperação dos entes federativos no que concerne ao exercício das competências ambientais, etc. O programa em questão encontra-se estruturado da seguinte forma: PAC Energia, PAC Minha Casa Minha Vida, PAC Cidade Melhor, PAC Água e Luz para Todos e PAC Transportes. Disponível em: <htpp://www.brasil.gov.br/pac>. Acesso em: jun. 2011. 149 “Propõe orientações e diretrizes para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e a implementação do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, de forma a alcançar seus objetivos e promover crescimento com inclusão territorial, estimulando a ação federativa e compartilhada entre o Governo Federal, Governos Estaduais, Distrito Federal e Governos Municipais. Disponível em:<http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Resolucoes/ResolucaoRecomend ada/resolucao-34-2007.pdf.> Acesso em: dez. 2011. 91 maior magnitude e de responsabilidade do Estado que não se descolam das orientações traçadas pelos planos de ordenação territorial.150 Já no Brasil, por exemplo, a elaboração e implementação do Plano Decenal de Energia não dialoga com os planos urbanísticos dos estados, das regiões e dos municípios que sofrerão os impactos das obras nele previstas.151Problemas sociais e econômicos incomensuráveis são gerados pela ausência de um plano nacional e de planos regionais que vinculem investimentos e incentivos do governo federal às diretrizes e metas de ordenação do território.152 Assim, há nítida omissão na legislação brasileira, que é a falta de normas que estabeleçam um sistema de ordenação territorial articulado com políticas setoriais de desenvolvimento econômico e social. A exigência constitucional da elaboração de tais planos tem clara inspiração no sistema continental europeu. Tal imposição constitucional deve ser concretizada no ordenamento jurídico, através da edição e implantação de leis de instituição dos planos urbanísticos em referência. 4.3 O plano urbanístico nacional A ideia encampada por José Afonso da Silva é de que o plano nacional de ordenação do território possibilita a aplicação dos princípios do urbanismo em todo o país, viabilizando a definição de medidas para orientação geral de sua organização territorial.153 Não se pode deixar de advertir que a Lei 10.257/2001 é a que fornece a base jurídica para a política urbana no Brasil. Além disso, os esforços adotados até o momento pelo Governo Federal foram em prol da implantação de políticas setoriais de desenvolvimento urbano, as quais, atualmente, encontram-se estruturadas nas áreas de habitação, saneamento ambiental, trânsito, mobilidade e transporte urbano. 150 COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 59-60. 151 O Plano Decenal de Energia prioriza a construção de usinas nos grandes afluentes da margem direita do Rio Amazonas para gerar mais de 42 mil megawatts de energia hídrica até 2020. Os novos investimentos para atender ao crescimento da demanda brasileira de energia nos próximos dez anos serão feitos nos rios Araguaia, Tocantins e Tapajós (usinas de São Luiz e Jatobá, as maiores), que vão se somar às usinas já em construção no Madeira (Jirau e Santo Antônio) e de Belo Monte, na Volta Grande do Rio Xingu. 152 Um exemplo típico desta situação vem ocorrendo no Município de Porto Velho/RO por conta do canteiro de obras das usinas hidrelétricas do Rio Madeira. A capital de Rondônia situa-se ao norte do estado e apresenta, ainda hoje, precárias condições sanitárias, principalmente na área rural. O ingresso de milhares de trabalhadores na área para as obras civis das UHE do rio Madeira pode agravar ainda mais as condições de saúde da população local. Os impactos sociais e econômicos das obras não se restringem à vizinhança de Porto Velho, uma vez que alteram regionalmente as condições de vida, a economia e o fluxo migratório de Rondônia. 153 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 114. 92 Há de se esclarecer, no entanto, que os objetivos do plano urbanístico nacional vão além dos propostos nas políticas setoriais de desenvolvimento urbano na medida em que ele há de integrar-se no planejamento econômico e social. Por sua própria função e conteúdo, tal plano não só possibilita a integração dos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento entre os diversos níveis do governo federal, como fornece orientações que viabilizam a relação entre os planos urbanísticos dos demais entes federativos.154 Cabe destacar que um modelo de desenvolvimento sustentável pressupõe o tratamento da questão territorial (na qual se inclui, obviamente, a organização urbana do território nacional) como fundamento para a criação de estratégias de estímulo ao crescimento econômico e de elevação da qualidade de vida. Disso resulta a intenção de se desestimular a ocupação do território com base tão-somente na racionalidade econômica, através do exercício da prerrogativa da União de coordenar a ocupação e o uso do território. Com efeito, o plano urbanístico nacional pode estabelecer diretrizes que servirão de norte para a ocupação, os investimentos públicos e privados e as estratégias de desenvolvimento de cidades localizadas, por exemplo, nas regiões de fronteira, em áreas de interesse nacional para conservação do meio ambiente, em regiões litorâneas, etc. Não se pode olvidar que tal plano deve estabelecer critérios para o investimento em infraestrutura (incluída a urbana) em todo o país, desencorajando estratégias de investimento somente em regiões que apresentem algum potencial de crescimento já consolidado, os chamados “pólos de desenvolvimento”.155Com isso, ele pode servir de instrumento para a correção dos sérios problemas de infraestrutura urbana, procurando, através de estratégias gerais e específicas, promover a adequada ocupação das cidades brasileiras. 154 O Governo Federal deu início ao trabalho de elaboração da política nacional de ordenamento territorial (PNOT), ao conferir, em 2003, tais responsabilidades ao Ministério de Integração Nacional. A partir de então foram promovidos alguns debates e estudos para coleta de informações necessárias à realização do referido plano. Assim, a Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional formulou o projeto “Elaboração de Subsídios Técnicos e Documentos Básicos para a Definição da Política Nacional de Ordenamento do Território (PNOT)”, o qual foi enviado à Casa Civil para a finalização do projeto do texto da lei em questão. 155 “A concentração de investimentos em alguns pontos isolados do território nacional, adotada durante a vigência do regime militar, trouxe conseqüências desastrosas para o País. Na época, o argumento utilizado era o de que, diante de recursos escassos para o investimento em infraestrutura, dever-se-ia dar prioridade às áreas que apresentassem algum potencial de crescimento já consolidado. (...) Dessa equivocada ‘política de desenvolvimento’ herdamos problemas até hoje sem solução, como o ‘êxodo rural’, o ‘inchamento urbano’, a ‘favelização’ das grandes cidades, a degradação ambiental e as condições de moradia, e sobretudo, o desemprego. Esses problemas, decorrentes do processo de concentração espacial de investimentos públicos em pontos específicos do território, são considerados uma tendência ‘natural’ do sistema de livre-mercado. Mas podem ser agravados ainda mais pela falta de concordância e objetividade entre os planos de instituições e ministérios do mesmo nível administrativo, ou entre os diferentes níveis administrativos e de tomada de decisão” (DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de desenvolvimento regional para o semi-árido, p. 15). 93 Por conta disso, José Afonso da Silva adverte que na competência da União para elaborar e executar planos de ordenação do território inclui-se o planejamento do desenvolvimento da rede urbana e do sistema de cidades em nível nacional ou macrorregional em função de uma política de desenvolvimento econômico, da defesa do meio ambiente natural e cultural, do saneamento básico, do direcionamento do povoamento e colonização do território nacional e macrorregional, dentre outros fatores.156 Levando-se em conta a abrangência dos efeitos das normas do plano urbanístico nacional, pode-se dizer que ele deve ter a característica de lei nacional e, como tal, ser apresentado sob forma de diretrizes gerais de desenvolvimento, definindo objetivos e políticas globais, regionais e setoriais, expandindo seus efeitos, portanto, a todos os níveis da Federação. No entanto, tal plano deve também estabelecer a organização administrativa federal no âmbito do ordenamento do território, cingindo-se tais efeitos exclusivamente à esfera da União. Tomando por base tal peculiaridade denota-se que o plano em questão deve contemplar as características de lei nacional e de lei federal ao mesmo tempo.157 O conteúdo de um plano urbanístico nacional é um tema tratado na obra de José Afonso da Silva. Para o autor, tal plano deve ser precedido de diagnóstico do sistema urbano brasileiro no momento da sua elaboração e incluir as perspectivas que se apresentam ao planejador, compreendendo quatro fases: a) diagnóstico básico; b) estratégia geral; c) estratégia específica; e d) relatórios e mapas. A primeira delas, referente ao diagnóstico básico, englobaria a etapa de análise retrospectiva, na qual se identificariam os problemas do sistema urbano brasileiro, suas causas, bem como as necessidades mais urgentes do setor, e a etapa projetiva, que indicaria as medidas necessárias para a solução dos problemas identificados (programas e projetos para corrigi-los). A segunda fase, de estratégia geral, consiste na previsão de meios e ações que visem ao alcance das metas do planejamento nacional. A terceira fase, para o autor, refere-se às estratégias específicas, dirigidas à ordenação territorial geral e integrada de cada macrorregião (Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul). Por fim, a quarta diz respeito aos “relatórios e mapas” que 156 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 106-107. A União produz normas gerais válidas para todo Estado Federal, mas também produz normas parciais, válidas apenas para a pessoa jurídica de direito público que a instituiu. No primeiro caso, estar-se-á diante de Leis Nacionais; no segundo, de Leis Federais. Uma mesma lei pode eventualmente contemplar as duas espécies indicadas, fato que, na prática, certamente impõe uma árdua tarefa de identificá-las e apartá-las no bojo do texto normativo (Cf. NOVIS, Mariana. O regime jurídico da concessão urbanística. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 45). 157 94 retratariam, em forma gráfica e objetiva, a situação urbana existente e a imagem futura que se pretende alcançar com a execução do plano.158 Cabe dizer, fundamentalmente, que o plano nacional de ordenação do território permite a incorporação da dimensão territorial no desenho das políticas públicas setoriais (viabilizando uma espécie de “projeto nacional”, ou seja, uma visão de conjunto capaz de diagnosticar e enfrentar as principais necessidades das cidades brasileiras), além da elaboração de estratégias territoriais integradas para o desenvolvimento urbano, que envolvam a articulação dos planos elaborados pelos demais entes federativos. 4.4 Os planos urbanísticos regionais Os planos regionais de ordenamento territorial também são de competência elaborativa e executiva da União (art. 21, IX) e destinados a, em regra, abarcar as regiões geoeconômicas do país (interestaduais), orientando a ocupação urbana do solo em nível das macrorregiões.159Por esse motivo, o Estatuto da Cidade os inclui como instrumento de política urbana (art. 4º, inciso I). A União, ao instituir planejamento regional, exerce a competência que lhe foi conferida pelo art. 43 da Constituição Federal, que permite a divisão geográfica do território do país em regiões que apresentem as mesmas características econômicas e sociais, para fins de atuação administrativa. Aliás, preferindo manter a concepção dos órgãos regionais de desenvolvimento, já consolidados na experiência brasileira, a Constituição de 1988 deferiu à lei complementar a missão de fixar as condições, definir a composição dos organismos regionais, sua competência na execução dos planos regionais e a integração destes últimos nos planos nacionais de desenvolvimento (art. 43, § 1º, I e II). Acontece que há certa dificuldade em identificar essa ordem planificatória ainda em formação no Brasil, especialmente se levarmos em conta as experiências de planejamento macrorregional existentes, a ponto de Carlos Magno Maqueri da Costa conferirlhe um perfil mais socioeconômico que territorial.160 158 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 117-119. Embora não possua a amplitude e as características de um plano regional de ordenação territorial, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (Dec. 6.047/2007), instituída com o objetivo de reduzir as desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção de equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento, é a responsável por orientar os programas e ações federais no território nacional, dentre os quais se destacam, atualmente, o Plano Amazônia Sustentável, o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste, o Plano de Desenvolvimento da Área de Influência da BR-163, dentre outros. 160 Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado, p. 92. 159 95 José Afonso da Silva chega a afirmar que o plano nacional de ordenação do território, a rigor, não passaria de “um conjunto de planos regionais”, considerando, obviamente, os modelos de planos de desenvolvimento econômico elaborados no regime militar e que trataram da dinâmica de ocupação das cidades em nível macrorregional.161 A propósito, o referido jurista traça algumas das características que norteariam os planos regionais a partir da análise das estratégias específicas de um plano nacional de ordenação do território, dizendo: As estratégias específicas constituem desdobramento das diretrizes gerais, visando a conseguir objetivos específicos no nível de macrorregiões, referentes à região Norte, à região Nordeste, à região Centro-Oeste, à região Sudeste e à região Sul, definindo, para umas, a dinamização das funções urbanas, a ordenação da ocupação da orla marítima, o disciplinamento e a promoção de adequado processo de urbanização das cidades litorâneas; para outras, a descentralização do processo produtivo-industrial, conjugada com a contenção do crescimento das grandes aglomerações urbanas, etc. Enfim, são estratégias regionais que hão de levar em conta a realidade de cada região geoeconômica (macrorregião), por isso que seus objetivos melhor se coadunam no planejamento regional, de sorte que o plano nacional não deve senão dar indicações gerais sobre isso, a menos que ele próprio não seja senão um conjunto de planos regionais traduzidos numa unidade documental. 162 Com efeito, depois de devidamente elaborados, os planos urbanísticos regionais deverão orientar, em nível macrorregional e de acordo com as diretrizes do plano nacional, a rede urbana das cidades, conforme o desenvolvimento geral da região. Justamente por isso, sua atuação dar-se-á essencialmente por efeito diretivo e indutivo em relação ao setor privado (estímulos e incentivos econômicos, assistência técnica), embora se trate de plano de caráter normativo, que se impõe à observância dos organismos administrativos federais. 4.5 Os planos urbanísticos federais setoriais Ao contrário do plano urbanístico nacional e dos planos regionais, que consistem no estabelecimento de diretrizes e objetivos gerais orientadores da rede urbana, os 161 162 Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 121-122. Ibid., p. 119. 96 planos urbanísticos setoriais de competência da União referem-se a áreas específicas de atuação (políticas econômicas e sociais) que influenciam, por via reflexa, a organização territorial. Ou seja, cuidam de planos, programas e estratégias de desenvolvimento relacionados a áreas de atribuição da União com incidência territorial. Nesse sentido, é possível identificar nos incisos XVIII, XIX, XX e XXI, do art. 21 da Constituição Federal, por exemplo, áreas a respeito das quais pode ser exercida a competência material exclusiva da União em matéria de urbanismo. Mas, conforme já analisado, além destas competências, a Constituição Federal estabelece competências privativas da União e materiais comuns com os demais entes federativos, afora a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal de legislarem sobre as questões indicadas nos incisos VI, VII e VIII, do art. 24, que também influenciam decisivamente na atividade urbanística. Vislumbra-se, portanto, a possibilidade de elaboração de planos setoriais em áreas como a de transportes, viação, habitação, turismo, indústria, saneamento ambiental, dentre outras. A propósito, as discussões sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano tiveram início com a convocação da primeira Conferência Nacional das Cidades, em 2003, e a segunda em 2005. O Conselho das Cidades, eleito na primeira conferência nacional, aprovou as propostas das políticas nacionais de habitação, saneamento ambiental, trânsito, mobilidade e transporte urbano e de regularização fundiária. Seguindo essa mesma linha, o projeto de lei que cria o sistema nacional de desenvolvimento urbano foi apreciado na 4ª Conferência Nacional das Cidades, encontrando-se apto para ser encaminhado ao Congresso Nacional.163 Pode-se dizer, assim, que os planos urbanísticos setoriais têm como finalidade essencial a concretização de políticas de desenvolvimento econômico e social e de projetos com rebatimento territorial, cabendo destacar a imperiosidade destes instrumentos serem elaborados no contexto das diretrizes e objetivos do plano nacional e dos planos regionais de desenvolvimento econômico e social e de ordenação do território. 163 A Lei nº 11.124/2006, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei nº 11.445/2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico e a Lei nº 11.977/2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas são algumas das leis que foram discutidas pelo Conselho das Cidades. As resoluções aprovadas na 4ª Conferência Nacional das Cidades estão disponíveis em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Publicacoes/Caderno_Resolucao_4_ Conferencia_Versao_Final.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2012. 97 4.6 A relação dos planos urbanísticos da União com os demais planos urbanísticos A questão que envolve a competência em matéria urbanística obviamente apresenta reflexos na prerrogativa dos entes federativos de elaborar planos de ordenamento territorial, sendo que a relação que se dá entre os planos é um dos assuntos mais complexos do direito urbanístico, vez que num mesmo território podem coexistir, todos válidos e eficazes, diversos planos. A relação entre as normas dos planos territoriais pode resultar em harmonização ou em conflito, tendo como causas específicas a existência de diversos tipos de planos que se sobrepõem territorialmente, a competência dos diversos entes federativos, bem como a eventual ausência, no ordenamento jurídico urbanístico, de uma relação de necessidade entre os planos.164 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o modelo de planejamento territorial existente no Brasil parte da definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo o território, o que se visualiza, especialmente, naquilo que é preconizado como característica do plano nacional e dos planos regionais de ordenamento. É o que enfatiza José Afonso da Silva: Com base na Constituição de 1988, já se pode falar na implantação de um sistema de planos estruturais, porque ela fundamenta a construção de um sistema de planos urbanísticos hierarquicamente vinculados, de modo que os de nível superior sirvam de normas gerais e diretrizes para os inferiores, enquanto estes concretizem, no plano prático e efetivo, as transformações da realidade urbana, em vista de objetivos predeterminados. A questão estará em que a lei federal de desenvolvimento urbano busque instituir regras de aplicação das normas constitucionais que assegurem o equilíbrio das três esferas governamentais 165 autônomas que compõem nossa Federação. Por certo, a expressão “hierarquia” utilizada pelo referido autor não se enquadra perfeitamente no quadro da relação que haverá de existir entre os planos urbanísticos, vez que cada uma das unidades federativas possui competências discriminadas constitucionalmente, sem que haja dependência normativa entre seus planos. Assim, não 164 165 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 496. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 106. 98 existe relação de dependência entre o plano diretor (do qual dependem todos os planos urbanísticos municipais) e os planos urbanísticos de competência da União e dos Estados. Na atual Constituição, a prerrogativa da União de promover o planejamento urbanístico vem respaldada no art. 24, I e § 1º, que lhe estabelece a competência de legislar sobre normas gerais de direito urbanístico. Igual apoio encontra a competência suplementar dos Estados para legislar sobre direito urbanístico em âmbito estadual ou microrregional.166 Vale destacar aqui que o conceito de normas gerais consiste em dizer, em apertada síntese, que são normas que estabelecem as diretrizes, os princípios básicos que devem reger determinada matéria, sem descer aos pormenores.167 Há de se acrescentar que as competências urbanísticas da União encontram limites na competência reservada aos Municípios quanto a legislar sobre assuntos de interesse local e promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, assim como ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, ao executar a política de desenvolvimento urbano (CF, art. 30, I e VIII e art. 182). Assim, José Afonso da Silva ensina: Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, a competência da União e do Estado esbarra na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e 168 às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado. Não há duvida, portanto, que aquilo que for predominantemente de interesse local constitui um limite intransponível para a União, que deve se limitar a legislar sobre planejamento urbanístico em nível nacional e macrorregional, evitando atuação de efeitos 166 A competência de dispor de forma suplementar sobre a matéria urbanística é que confere aos Estados a prerrogativa de estabelecer normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões. 167 Odete Medauar atribui à expressão “diretrizes” o sentido de “linhas reguladoras, instruções ou indicações; linhas básicas; balizas; esquemas gerais. Transposto para a fonte legislativa significa preceitos indicadores, preceitos que fixam esquemas gerais, linhas básicas em determinadas matérias; preceitos norteadores da efetivação de uma política. (...) As leis de diretrizes contêm, de regra, objetivos, princípios (nem sempre o termo é usado na acepção técnico-jurídica), indicadores para a elaboração de textos normativos daí decorrentes e para as práticas administrativas” (Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10.07.2001: comentários. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 20). 168 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 65. 99 diretos e concretos intra-urbana. De outra banda, quando se fala em direito urbanístico, rezanos a Constituição que a atuação conjunta, principalmente envolvendo a União e o Município, torna-se especialmente relevante na medida em que o ente local deve observar diretrizes de ordem geral e nacional ao elaborar seus próprios estatutos. É o que destaca Mariana Novis: Contudo, não é demais repetir: a precípua função que exerce o município em matéria urbanística não elide a atuação legislativa proveniente de outros entes governamentais. Excepcionalmente, no que toca à ordenação territorial, pode-se vislumbrar situações que demandem até mesmo o sacrifício de interesses locais em benefício do interesse de abrangência maior, seja de índole estadual ou federal, no campo ora tratado, desde que atendidos os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, motivação, entre outros. Mas, em geral, os entes federados devem sempre almejar a compatibilidade dos múltiplos interesses envolvidos na matéria, como, aliás, impõe a máxima norteadora do exercício das competências de 169 caráter comum e concorrente. Como já enfatizado, a complexidade do tema ainda recebe a contribuição da ausência de dependência ou necessidade entre os planos, por ser possível a elaboração de um plano de menor abrangência territorial e com disposições diretamente vinculantes aos particulares (como ocorre com o plano diretor), sem que existam, previamente aprovados, os planos nacional, regionais e estaduais de ordenação do território, cuja superveniência é uma fonte potencial de conflitos normativos. Aliás, no direito urbanístico, a relação de dependência entre os planos é apenas parcial e existe somente para aqueles que obtêm seu fundamento de validade no plano diretor, como é o caso, por exemplo, dos planos de operação urbana consorciada. Mas, então, os critérios tradicionalmente apontados pela doutrina como de resolução de conflitos de normas são aplicáveis nos casos dos planos? Segundo Marcos Geraldo Batistela, que se dedicou exclusivamente ao tema na elaboração da sua dissertação de mestrado, os conflitos, as antinomias ou as colisões entre os planos podem ser solucionados pelos critérios tradicionais de resolução de conflitos normativos e no âmbito das regras de competência. É o que ele explica: 169 NOVIS, Mariana. O regime jurídico da concessão urbanística, p. 72. 100 Podem ser pensadas, então, as diferentes relações que existem entre os planos ou formas de ordenação territorial (aquelas que ainda não lograram alcançar a forma superior de plano) e previstas as soluções para as possíveis antinomias. Os eventuais conflitos podem ocorrer entre planos instituídos por um mesmo ou por diferentes centros de competências. Para estes, o critério decisivo é a aplicação da regra de competência, prevalecendo o plano elaborado pelo ente planejador competente. Para os planos elaborados por um mesmo centro de competências, aplicam-se os critérios tradicionais de solução de antinomias, especialmente o 170 critério da hierarquia. Na realidade, o que se tem no Brasil, de forma ainda incipiente, é um modelo de planejamento territorial “descendente” ou em “cascata”, ou seja, que parte da definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo o território, que devem orientar os demais entes federativos na elaboração dos seus planos de ordenação espacial, sem que, necessariamente, haja uma relação de subordinação ou dependência entre eles. Nessa linha, no que diz respeito ao plano nacional de ordenação do território, pode-se afirmar que a disposição constitucionalmente prevista no inciso I, do art. 24 c/c o § 1º do mesmo dispositivo (competência concorrente da União para legislar sobre direito urbanístico), permite a conclusão de que tal plano deve tratar essencialmente de diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano do país, que, por si só, não produzirá efeitos que vinculem os particulares. A par disso, por ser norma com característica de lei nacional, suas determinações orientarão especificamente a atuação dos órgãos e das entidades administrativas federais, estaduais e municipais no desempenho de suas atividades urbanísticas, respeitando, obviamente, as fronteiras que incidem sobre o exercício das competências dos demais entes. Sobre o assunto, vale a pena citar, mais uma vez, Marcos Geraldo Batistela: Assim, ainda que um plano nacional possa conter disposições específicas vinculantes para a administração pública federal, não pode estabelecer diretamente o ordenamento territorial do Município (controle e planejamento do solo, da ocupação do solo urbano) ou o planejamento de regiões metropolitanas, 170 BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 102. 101 aglomerações urbanas e microrregiões, que são assuntos de competência dos Municípios e dos Estados. 171 Os planos regionais de ordenação do território apresentam-se igualmente como planos de diretrizes e objetivos gerais. Da mesma forma que o plano nacional de ordenação do território, suas disposições dirigem-se aos demais entes planejadores, Estados e Municípios, sem atingir diretamente os particulares. Desse modo, têm primordialmente efeito diretivo e indutivo no setor privado. Antes de analisar a relação dos planos setoriais da União com os planos dos demais entes federativos, cabe lembrar a diferenciação feita por José Afonso da Silva acerca dos planos gerais e dos planos especiais (particularizados ou pormenorizados). Nesse sentido, o autor em questão destaca que os planos gerais são menos vinculantes em relação aos particulares, “porque são de caráter mais normativo e dependentes de instrumentos ulteriores de concreção”, enquanto que os especiais “vinculam mais concretamente a atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.172 Para Marcos Geraldo Batistela, o plano geral tem como fim o estabelecimento de um ordenamento integral do seu objeto, enquanto o plano setorial tem a finalidade de programação ou concretização de determinado aspecto de um objeto globalmente considerado. Assim, para o autor, “se o objeto considerado é o território de um município, plano geral é o plano diretor municipal e planos setoriais são os planos sobre transportes, saneamento, coleta e disposição de lixo, turismo, habitação, localização e realização de grandes empreendimento públicos”. 173 Assim, quanto aos planos urbanísticos setoriais da União, cumpre rememorar que a Constituição de 1988 delimitou a tal ente competências administrativas privativas e comuns, além de competências privativas e concorrentes no âmbito legislativo. Nesse diapasão, por exemplo, a atribuição de poderes materiais para a União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (CF, art. 21, XVIII), implica possibilidade de a União esgotar totalmente a matéria, impondo normas gerais e igualmente normas específicas em eventuais planos, muito embora os Municípios possam suplementar a legislação federal diante de um interesse local (CF, art. 30, I e II). 171 Ibid., p. 49. Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93. 173 Cf. BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 40. 172 102 O mesmo raciocínio aplica-se à competência privativa da União para legislar sobre alguns assuntos de interesses urbanísticos, como por exemplo, os referentes às matérias de trânsito e transporte (CF, art. 22, XI), nas quais a União pode esgotar o tratamento da matéria em normas de determinado plano, a despeito da possibilidade conferida aos Municípios de suplementá-las, desde que presente o interesse local, o que pode ocorrer numa definição do destino de vias públicas, de locais de estacionamento ou em outras situações que envolvam peculiaridades do ente federativo local. Nas matérias indicadas na competência comum (CF, art. 23), todos os entes federativos podem praticar atos simultaneamente, inclusive esgotando integralmente, ou não, a disciplina da matéria. Nestes casos, mais do que nunca, a articulação dos planos torna-se necessária, sendo para tanto imprescindível a edição de leis complementares que estabeleçam normas de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, conforme exigência prevista no parágrafo único, do art. 23 da Constituição Federal. 174 Já no art. 24 da Constituição Federal tem-se a chamada “competência concorrente” da União e dos Estados-membros para legislarem sobre as matérias nele indicadas. É possível apontar as questões elencadas nos incisos VI, VII e VIII, do referido dispositivo como de especial interesse urbanístico, em que a União deve se liminar a estabelecer normas gerais, restando aos Estados a possibilidade de fixar normas específicas sobre tais matérias, bem como de detalhar as normas federais existentes. 174 A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes federativos em matéria ambiental. 103 5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO DEVER DE A UNIÃO ELABORAR E EXECUTAR PLANOS URBANÍSTICOS 5.1 O dever jurídico da União de planejar e a sua omissão na elaboração dos planos urbanísticos Conforme já analisado, o texto constitucional estabelece normas de competência legislativa e material com implicações diretas na atividade urbanística. Nessa linha, dentre outras questões, o art. 21 da Constituição Federal atribui à União competência privativa para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território”, sendo interessante notar que o referido dispositivo possui natureza legislativa, muito embora ele trate de competência material. Com efeito, cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre as matérias de competência da União, especialmente sobre planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento (CF, art. 48, inciso IV). Isto implica obrigatoriedade de aprovação por lei dos planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, de modo que a execução destes planos e programas é que seria enquadrada na competência material. A atividade de planejar consiste na elaboração de estudos, perícias e levantamentos técnicos multidisciplinares pelo Poder Executivo para a concepção da proposta do plano a ser encaminhado ao Poder Legislativo. Nesse primeiro momento, a ação de planejar, embora decorra do dever de elaboração do plano, não representa produção jurídica, apesar de ensejar efeitos jurídicos, já que a proposta poderá, ou não, ser aprovada enquanto lei. Ou seja, nesta primeira etapa, o chefe do Poder Executivo, no exercício de função política175, deverá realizar uma avaliação, 175 Celso Antônio Bandeira de Mello entende que certos atos (iniciativa de leis pelo Chefe do Poder Executivo, a sanção, o veto, a declaração de guerra dentre outros) não se alocam satisfatoriamente em nenhuma das clássicas três funções do Estado, inclusive a administrativa. Para o autor tais atos não se afeiçoam à função executiva nem do ponto de vista material (não se tratam de atos de gestão concreta, prática, imediata e, sim, atos de superior gestão da vida estatal ou de enfrentamento de contingências extremas que pressupõem, acima de tudo, decisões eminentemente políticas) ou formal (por não estarem em pauta comportamentos infralegais ou infraconstitucionais expedidos na intimidade de uma relação hierárquica, suscetíveis de revisão quanto à legitimidade) Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 36-37. Já Luís Manuel Fonseca Pires, a despeito de aceitar que os atos políticos possuem larga margem de discricionariedade (retirando seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal ou Estadual), entende que tais atos são espécies de atos administrativos. Para o autor a função política é gênero das funções públicas, que abriga as funções legislativa, administrativa e jurisdicional (Cf. PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 269-275). Cabe a ressalva que embora se tenha feito uso nesta dissertação da expressão 104 considerando o momento histórico, os aspectos ambientais, econômicos e financeiros, dentre outros, para decidir se a proposta técnica obtida será encaminhada para apreciação do Poder Legislativo. O Poder Legislativo, por intermédio da função legislativa, deverá votar o projeto de elaboração do plano apresentado pelo Poder Executivo, o qual, se aprovado, deixará de ser proposta e passará a ter natureza jurídica de lei. É necessário ressaltar que o dever que se incumbe ao Poder Legislativo é o de realizar a votação sobre o projeto apresentado, e não o de aprovação do plano. O dever jurídico deste Poder está na deliberação, sendo indiferente o seu resultado, desde que devidamente fundamentada na Constituição Federal. O plano, desde que aprovado, representa produção jurídica e deve ser respeitado e materializado, através de função administrativa, no contexto da gestão territorial por parte dos órgãos da União. Embora as autoridades competentes devam promover os estudos necessários para a elaboração dos planos de ordenação territorial nacional e regionais, legislar (instituindo-os), e dar execução aos seus termos, é sabido que a União ainda não se desincumbiu deste encargo ligado à atividade de planejamento. De outro lado, há de se registrar, na esteira do pensamento de Fábio Konder Comparato, que o planejamento coordena, racionaliza e dá uma unidade de fins à atuação do Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística.176 De fato, o planejamento possibilita que os governantes atuem obedecendo à hierarquia de prioridades e recursos fixada no plano, servindo, assim, como orientação e coordenação efetiva de política governamental, dificultando o desvio de poder e o privilégio de interesses particulares na Administração. Desse modo, o planejamento passa a ser ferramenta de controle da atuação do Estado, definindo a direção e o ritmo que irá tomar.177 Aliás, a atividade de planejar “cuida-se de função, poder-dever”.178 O Estado brasileiro, portanto, não pode se limitar a fiscalizar e incentivar os agentes econômicos privados, devendo também planejar. “função política”, para justamente enfatizar a ampla margem de discricionariedade do ato de iniciativa da lei do plano urbanístico em comparação com os demais atos administrativos, tal exposição não conduz ao entendimento de que ele não seja passível de controle jurisdicional. 176 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Planejar o desenvolvimento: a perspectiva institucional. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 102-103. 177 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. Maria Paula Dallari Bucci (organizadora). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 155. 105 Num Estado de Direito a ação estatal se dá, em regra, pelo exercício de competências. Ou seja, o Estado atua por vontade heterônoma e não autônoma, razão pela qual a vinculação da atuação estatal pela ordem jurídica se dá pelo modal do obrigatório e não do permitido. Por isso, o Estado age por dever, obrigação de agir por determinação legal e não por faculdade autônoma de escolha entre agir ou não agir.179 Nesse sentido, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello: (...) O que a ordem jurídica pretende, então, não é que um dado sujeito desfrute de um poder, mas que possa realizar uma certa finalidade, proposta a ele como encargo do qual tem de se desincumbir. Como, para fazê-lo, é imprescindível que desfrute de poderes, estes são outorgados sob o signo assinalado. Então, o poder na competência, é a vicissitude de um dever. Por isto é que é necessário colocar em realce a idéia de dever e não a de poder -, já que este último tem caráter meramente ancilar; prestante para realizar-se o fim a que se destinam as competências; satisfazer interesses (consagrados em lei) públicos, ou seja, interesses dos cidadãos considerados “enquanto conjunto”, em perspectiva coletiva, é dizer, como Sociedade. 180 Este agir heterônomo é a regra geral da ação estatal no Estado Constitucional de Direito, especialmente no que respeita à atividade administrativa. É o que enfatiza Odete Medauar: Menciona-se amiúde, no direito administrativo brasileiro, a locução poder-dever, para expressar o dever conjugado ao poder ou, de modo similar, o dever que nasce do exercício de um poder. Indica-se, mesmo, no rol dos princípios do direito administrativo, o princípio do poder-dever, que significaria a obrigação imposta à autoridade de tomar providências quando está em jogo o interesse público. Embora não represente demasia o vocábulo “dever” associado ao poder, pois evoca explicitamente a idéia de “obrigação de agir”, o esclarecimento do sentido que o termo “poder” adquire no âmbito da atuação administrativa torna prescindível o uso da fórmula composta. 178 181 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 308. 179 Cf. SERRANO, Pedro Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional, p. 124. 180 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 143. 181 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 105. 106 O problema maior, como foi abordado, é que a elaboração de planos urbanísticos, como é o caso do plano nacional de ordenação do território, é uma atividade complexa que envolve amplo diagnóstico e conhecimento da realidade urbanística nacional. Indo mais longe, nele se produz juízo de prognóstico sobre a evolução dos processos urbanísticos, consubstanciado em avaliações projetadas para o futuro acerca do desenvolvimento econômico, demográfico, etc.182 Diante destas características, observa-se que a elaboração dos planos urbanísticos envolve a prática de atos que se alocam em funções políticas e legislativas do Estado. Pode-se afirmar, desse modo, que a Constituição Federal teria deferido à União a prerrogativa de decidir quanto ao modo e ao momento de exercer a competência que lhe foi outorgada para elaborar o plano nacional e os regionais de ordenação do território, ante a complexidade da formação de tais espécies de planos urbanísticos. Posta essa premissa, só é possível falar em omissão inconstitucional quando há o dever constitucional de atuação, o que, no enfoque de Pedro Estevam Alves Pinto Serrano, nem sempre ocorre, pois em algumas situações o legislador tem ampla margem de inovação da ordem jurídica, encontrando-se limitado apenas pela não contradição ou contrariedade ao sistema constitucional. (...) Especialmente no que respeita à atividade legislativa, mesmo sob a égide de uma Constituição analítica como a nossa, é possível identificar-se modalidade de competência legiferante que implica vinculação pela ordem constitucional pelo modal do permitido, que equivale dizer poder fazer tudo o que queira salvo o que é proibido. Ou seja, a ordem constitucional por vezes permite ao legislador ordinário criar determinado regramento, se assim o quiser, desde que não se ponha em testilha 183 com o disposto na Constituição. Logo se vê que a inércia legislativa é de difícil controle, posto situar-se em zona limítrofe entre a liberdade de conformação normativa e o estrito cumprimento da Constituição. 182 183 Cf. CORREIA, Fernando Alves Correia. Manual de direito do urbanismo, p. 645. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 124. 107 A propósito, André Puccinelli Júnior fornece interessante exemplo da complexidade do assunto: Sabe-se que muitas normas constitucionais facultam – mas não obrigam – o exercício de certas competências. Assim, por exemplo, o art. 156, I, da Constituição Federal, diz competir ao Município a instituição do IPTU – imposto predial e territorial urbano. Ora, municípios dotados de receitas alternativas podem deixar de instituir esta exação tributária, sem que tal proceder configure inconstitucionalidade por omissão. Isto porque referida norma não impõe uma 184 obrigação concreta de legislar, mas se limita a conferir mera faculdade. O tema em questão tem especial importância na observação das normas constitucionais de eficácia limitada que são justamente aquelas que não surtem a plenitude de seus efeitos de imediato, necessitando de complementação legislativa ou de injunções administrativas para lograrem aplicação integral. Para José Afonso da Silva as normas constitucionais de eficácia limitada se dividem em normas de princípio institutivo e normas programáticas. As primeiras têm conteúdo organizativo, definindo as linhas básicas para a instituição de órgãos e entidades, bem como suas respectivas atribuições e relações. Fracionam-se em: a) normas impositivas, que investem o legislador ordinário, em termos peremptórios, na obrigação de prover a respectiva legislação integrativa; b) normas facultativas ou permissivas, que não estabelecem deveres, limitando-se a deferir simples permissão ao legislador para, querendo, disciplinar a situação nelas versada.185 Já Gomes Canotilho adverte que o conceito de omissão legislativa não se perfaz com o simples dever geral de legislar (inércia legislativa). Assim, embora ele diferencie as chamadas “ordens de legislar” das “imposições constitucionais” ele sustenta que nestas hipóteses é que haverá omissão inconstitucional. De acordo com o autor lusitano “as omissões legislativas inconstitucionais derivam desde logo do não cumprimento de imposições constitucionais legiferantes em sentido estrito, ou seja, do não cumprimento de normas que, de forma permanente e concreta, vinculam o legislador à adopção de medidas legislativas concretizadoras da constituição”. Como exemplo ele destaca as seguintes: as que fixam a obrigação de atualização do salário 184 PUCCINELLI JÚNIOR, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do estado legislador. São Paulo: Saraiva, 2007, p.118. 185 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 126-134. 108 mínimo nacional, as que organizam a seguridade social, o sistema nacional de saúde, dentre outros serviços elencados como permanentes pela Lei Fundamental. Para ele, “verifica-se também um omissão legislativa inconstitucional quando o legislador não cumpre as ordens de legislar constitucionalmente consagradas em certos preceitos constitucionais. As ordens de legislar, diferentemente das imposições constitucionais (que são determinações permanentes e concretas), traduzem-se, em geral, em imposições únicas (isto é: imposições concretas mas não permanentes) de emanação de uma ou várias leis necessárias à criação de uma nova instituição ou à adaptação das velhas leis a uma nova ordem constitucional”.186 Na realidade, o dever constitucionalmente imposto de elaborar os planos territoriais da União encontra dificuldades de se concretizar por conta da proeminente inépcia política em resolver demandas de grande relevo social. E o planejamento, a despeito do seu conteúdo técnico, é um processo com fortes nuances políticas, especialmente nas sociedades que buscam a transformação das estruturas econômicas e sociais. É o que destaca Gilberto Bercovici: Por meio do planejamento, é possível demonstrar a conexão entre estrutura política e econômica, que são interligadas. O planejamento visa à transformação ou consolidação de determinada estrutura econômico-social, portanto, de determinada estrutura política. O processo de planejamento começa e termina no âmbito das relações políticas, ainda mais em um regime federativo, como o brasileiro, em que o planejamento pressupõe um processo de negociação e decisão políticas entre os vários membros da Federação e setores sociais. 187 Por certo, a efetividade das normas deve conviver com uma certa dose de discricionariedade do legislador (especialmente quanto às normas que exigem uma normatividade ulterior, ou seja, a edição de uma outra norma que regulamente e integre a norma constitucional dando-lhe condições de executoriedade). Por outro lado, o reconhecimento aos entes com competência planificatória de considerável zona de liberdade para a escolha do momento da elaboração do plano não pode abranger a decisão de elaborá-lo ou não, já que há imposição constitucional em sentido contrário. 186 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1034-1035. BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 146. 187 109 Assim, embora a concretização dos fins constitucionais (documentados nos planos pelo processo de planejamento) dependa essencialmente da luta política, acredita-se que a não regulamentação das normas programáticas e dos preceitos enunciadores dos fins do Estado, ao menos no Brasil, também pode ensejar a fiscalização da constitucionalidade. 5.2 A eficácia e a imperatividade da norma jurídica constitucional A variada tipologia de vícios normativos pode ser reconduzida a distintos planos de enfoque da norma jurídica. Nesse sentido, André Puccinelli Júnior destaca que “enquanto a inconstitucionalidade por ação se resolve numa questão de invalidade, a omissão inconstitucional opera no campo da eficácia e da efetividade”.188 Convém esclarecer que uma norma jurídica constitucional em nada se distingue das demais que compõem o sistema jurídico, conservando os atributos destas, dentre os quais a eficácia e a imperatividade. Eficácia é um termo dúbio que compreende tanto a qualidade da norma vigente produzir efeitos jurídicos (eficácia jurídica) quanto a sua concreta observância e aplicação por parte das pessoas a que se dirige (efetividade ou eficácia social). Uma norma é juridicamente eficaz quanto está apta a produzir os efeitos que lhe são inerentes, atributo que pressupõe a sua vigência, ou seja, a exigibilidade da conduta prescrita em lei. Nessa linha, a lei perfeita e acabada, após sua publicação e o transcurso do prazo de vacatio legis, produz efeitos jurídicos. Já a efetividade traduz a realização empírica do Direito, possibilitando a aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Na seara do direito, segundo a teoria formalista, pelo menos em linha de princípio, a eficácia social não é condição de validade. No entanto, o próprio Kelsen, por conta das críticas antipositivistas dos seus adversários, chegou a reconhecer que a validade das normas jurídicas depende da sua efetividade ao afirmar que “(...) existe uma conexão entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade natural, já que a norma jurídica positiva, para ser válida, tem de ser posta através de um ato-de-ser (da ordem do ser)”. 189 188 PUCCINELLI JÚNIOR, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do legislador, p. 35. 189 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 235-236. 110 Miguel Reale ressalta a importância da dimensão eficacional ao dizer que “uma regra elaborada tecnicamente pelo órgão do Estado não é regra jurídica no sentido pleno da palavra, quando não encontra correspondência no viver social nem se transforma em momento da vida de um povo”. 190 Como todas as disposições jurídicas, também as normas constitucionais apresentam como nota característica a imperatividade, que nada mais é do que a fiel e compulsória obediência aos comandos normativos por seus respectivos destinatários, sejam estes pessoas individuais, coletivas ou os próprios órgãos do Estado. Aliás, Bobbio conceitua a norma jurídica como uma proposição prescritiva, com força imperativa, que objetiva direcionar, modificar ou impulsionar o comportamento humano em busca de uma finalidade qualquer. 191 As normas constitucionais são imperativas, vez que a insubmissão aos seus comandos deflagra consequências desfavoráveis.192 É o que destaca, com muita propriedade, Luís Roberto Barroso: As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais não são apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições 193 desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico. Logo, todos os preceitos constitucionais são imperativos e dotados de um mínimo de eficácia. Nesse diapasão, eis os ensinamentos de José Afonso da Silva: 190 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 406. Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003, p. 78. 192 Goffredo Teles Júnior definiu a norma jurídica como um imperativo autorizante. Para o autor, a despeito dela ser um mandamento, ela é autorizante, vez que autoriza a reação contra a ação que a viola, permitindo a submissão da sua violação à apreciação do Poder Judiciário, a fim de restaurar a ordem lesada (Cf. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 7. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 268). 193 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 76. 191 111 (...) não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre numa inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da Constituição a que aderem, e na ordenação da nova ordem instaurada. O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar 194 executória, prevista ou requerida. É necessário ressaltar, desde já, que tal premissa não se compatibiliza com visões que minimizam o valor jurídico de alguns preceitos constitucionais. É fato que, devido ao teor de certas normas constitucionais, elas não podem produzir imediatamente efeitos jurídicos, ante a inexistência de uma regulamentação pretendidamente exigida por elas. Mas, a partir daí, dizer que algumas delas, como as de natureza programática195, compõem-se de conteúdos ético-sociais a serem implementados ao simples alvedrio das autoridades competentes, traduz uma visão míope e inconsequente, sob o ponto de vista da melhor doutrina constitucional. Nestes termos, parte-se da premissa de que toda norma do tecido constitucional tem natureza jurídica e, por isso, participa de todas as características desse tipo de comando. Assim, todas as normas têm de ser consideradas com juridicidade, tendo possibilidade de produzir, a sua maneira, concretamente, os efeitos jurídicos por elas visados, irradiando efeitos desde a promulgação. Nessa linha, então, as normas constitucionais programáticas têm eficácia jurídica porque: proíbem o legislador infraconstitucional de emitir normas em sentido contrário; impõem um dever político ao órgão com competência normativa; informam a concepção estatal ao indicar suas finalidades sociais e os valores objetivados pela sociedade; 194 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 81-82. 195 “As normas constitucionais programáticas são aquelas em que o constituinte não regula diretamente os interesses ou direitos nelas consagrados, limitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos poderes públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário) como programas das respectivas atividades, pretendendo unicamente a consecução dos fins sociais pelo Estado. Constituem normas de organização, dirigidas aos órgãos estatais, tendo, por isso, duas funções: a de servir de diretriz na fixação de objetos imediatos e como normas interpretativas, esclarecedoras dos fins estatais imediatos. São, portanto, como diz Meirelles Teixeira, programas de ação dirigidos ao legislador. Por exemplo, os arts. 21, IX, 23, 170, 205, 211, 215, 218, 226, § 2º, da Constituição Federal” (DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 119). 112 condicionam a atividade discricionária da administração e do Judiciário; servem de diretrizes teleológicas para interpretação e aplicação jurídica; estabelecem direitos subjetivos por impedirem comportamentos antagônicos a elas. 196 Gomes Canotilho identifica as normas programáticas com os “direitos a prestações” que, ao mesmo tempo em que impõem ao Estado uma série de deveres, prescrevem-lhe uma determinada política.197 Pode-se afirmar, ainda, que o autor aponta algumas normas como tecnicamente mais programáticas que outras, excluindo do conceito de omissão inconstitucional o não cumprimento das normas-fim ou normas-tarefa que impõem, abstratamente, a prossecução de certos objetivos.198 Trata-se, na verdade, de entendimento que não condiz com o perfilhado no presente trabalho, já que a não-regulamentação dos preceitos enunciadores dos fins do Estado também pode ensejar a fiscalização de inconstitucionalidade. Por certo, o conceito de programaticidade parece apresentar-se como algo mais amplo, podendo nela incluir-se determinações constitucionais relacionadas a outras atividades do Estado, como, por exemplo, a atinente ao dever de planejar. Aliás, quanto ao planejamento urbanístico, o Poder Público é detentor de discricionariedade quanto ao modo e ao momento de elaboração do plano, cabendo-lhe avaliar os pressupostos da necessidade, ou não, da sua elaboração. No entanto, a referida discricionariedade está sujeita a limitações, uma vez que é princípio geral da atividade econômica o exercício pelo Estado do planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (CF, art. 174, caput). De fato, no campo do planejamento territorial, ante a sua vinculação com o planejamento do desenvolvimento econômico e social, pode-se afirmar que a limitação à discricionariedade da União advém justamente da norma que impõe o uso, a ocupação e a transformação do solo em conformidade com o planejamento (plano), que impede que o desenvolvimento urbanístico seja deixado às circunstâncias do crescimento natural ou inteiramente às forças do mercado ou da economia. 196 Ibid. Vide, ainda, BRITO, Edvaldo. A Constituição de 1988 e as normas programáticas. Constituição e efetividade constitucional. Org. George Salomão Leite/Glauco Salomão Leite. Editora JusPodivm: Salvador, 2008, p.73. 197 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 474-475. 198 Segundo Gomes Canotilho, a Constituição pode impor ao Estado tarefas fundamentais, extraindo-se daí um dever de legislar decorrente de uma norma-fim ou programática de alto grau de indeterminação, que tem densidade jurídica mais fluida, a qual, por sua vez, depende mais da ação política no âmbito dos órgãos legislativos. Para o autor, as imposições constitucionais gerais e abstratas, como as normas em questão, embora configurem deveres de atuação normativa, não estabelecem concretamente aquilo que o legislador deve fazer para, em caso de omissão, falar-se em silencio legislativo inconstitucional. (Ibid., p. 1034-1035). 113 Subjacente a tal comando está também a ideia de que o desenvolvimento urbano não deve ser realizado mediante decisões individuais, não enquadradas por um instrumento de planificação urbanística.199 A propósito do tema, é importante enfatizar que, tendo em conta a sua eficácia e aplicabilidade, consideram-se auto-executáveis as disposições constitucionais bastantes em si, completas e suficientemente precisas na sua hipótese de incidência e na sua disposição e, em contrário, não auto-aplicáveis as disposições constitucionais incompletas ou insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a mediação do legislador, editando normas infraconstitucionais regulamentadoras.200 Todavia, a classificação da aplicação das normas constitucionais pode também revelar a intenção política de dar, ou não, cumprimento à Constituição Federal, especialmente às normas programáticas. Nessa linha, Walter Claudius Rothenburg, ao defender a necessidade da superação desta classificação tradicional que, para ele, impede o cumprimento da Constituição, afirma que “a teoria tradicional da aplicabilidade das normas constitucionais baseia-se numa interpretação eminentemente textual e não considera devidamente a necessidade de atuação – sobretudo estatal – para a concretização das normas constitucionais em geral (“plano jurídico-empírico”, ou seja, vinculação essencial do fenômeno jurídico à realidade)”.201 Por isso, o autor propõe um passo além, com o objetivo de conferir efetividade às normas constitucionais, destacando a dimensão temporal como relevante para a aplicabilidade delas (ao fazê-las depender de condições fáticas, ou seja, de quando estas condições estão presentes), antes que de integração normativa. Explica o autor: O tempo sempre é relevante para a aplicabilidade das normas constitucionais e ainda mais à medida que o Direito infraconstitucional vai sendo criado ou adaptado à Constituição que um dia foi nova. Com a produção legislativa, há uma tendencial 199 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 652. Além da classificação apresentada pelo Prof. José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 81-87), diversos constitucionalistas pátrios ocuparam-se do tema, destacando-se: J. H. Meirelles TEIXEIRA, Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 295-361; Celso Ribeiro BASTOS e Carlos Ayres BRITTO, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982; Maria Helena DINIZ, Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 106-120. 201 ROTHENBURG, Walter Claudius. O tempo e a aplicabilidade das normas constitucionais. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, p. 392. 200 114 complementação das normas constitucionais que demandam integração normativa (normas constitucionais de aplicabilidade reduzida e diferida) e uma tendencial definição das restrições a que são suscetíveis as “normas constitucionais de eficácia contida”. Embora a atividade legislativa seja dinâmica e o processo de integração, contínuo, essa integração, com o passar do tempo, tende a apresentar-se não mais de forma originária, mas em renovação, reconfiguração. Porém, quando a falta de integração normativa (lacuna, omissão) persiste ou quando as reconfigurações não mantêm o grau de aplicabilidade, o tempo recomenda uma interpretação no sentido de conferir a mais direta e ampla aplicabilidade possível. 202 Quer-se com isso enfatizar que a análise da omissão legislativa não pode desprender-se da apreciação do fator tempo, pois o juízo da inconstitucionalidade por omissão é sempre um juízo sobre o tempo útil, razoável e necessário para proceder à integração da normatividade constitucional. Em importante estudo sobre o tema da operatividade das normas constitucionais, Inocêncio Mártires Coelho chega à conclusão de que não existe um critério objetivo que nos permita identificar, com segurança, quais dispositivos constitucionais reputam-se auto-aplicáveis e quais outros dependem de regulamentação.203 Embora não se pretenda questionar nesse trabalho a imperiosidade da integração normativa para a elaboração dos planos de ordenação territorial da União (previstos no art. 21, IX), o relevante a ser destacado é que tal exigência não inibe, por exemplo, a necessidade de se conferir efetividade a tal preceito, com o intuito de promover a mais direta e ampla aplicabilidade possível à Constituição. Assim, ao invés de realçar a liberdade de conformação do legislador, impende conferir especial destaque à força normativa da Constituição, evitando que essa exigência constitucional flutue ao sabor das conveniências políticas. Pode-se ressaltar, com isso, que a Constituição de 1988 contém, assim, os instrumentos que dão efetividade às suas normas; seja por processo legislativo infraconstitucional, seja pelos instrumentos processuais judiciários estipulados. 202 Ibid., p. 392-393. COELHO, Inocêncio Mártires. Sobre a aplicabilidade de norma constitucional que instituiu o mandado de injunção. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 104, p. 45, out./dez. 1989. 203 115 5.3 As normas-objetivo e o planejamento urbanístico Tema que importa ainda considerar é o da concepção de norma-objetivo, norma-fim ou norma-tarefa e a sua vinculação com o planejamento urbanístico. Por certo, as normas de planejamento, como, por exemplo, a que determina a elaboração do plano nacional e dos planos regionais de ordenamento territorial, encontramse, na realidade, voltadas a resultados concretos (fins) a serem alcançados. Nesse ponto, cabe destacar que o § 1º do art. 174 da Constituição de 1988 determina que a lei estabelecerá as “diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado”, a qual, por sua vez, incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. A Lei Fundamental já estabelece decisões políticas essenciais da nação, fixando um modelo de país no qual o planejamento é concebido como poder-dever. Há de se registrar, inclusive, que o desenvolvimento nacional equilibrado deve se fundamentar nos propósitos que foram estabelecidos no art. 3º, I a IV e nos princípios que regem a ordem econômica (CF, art. 170). Portanto, não resta a menor dúvida que cumpre ao planejamento urbanístico servir de instrumento para o alcance dos fins maiores do Estado brasileiro, dentre os quais, a defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais, sendo os planos nacionais e regionais de ordenação do território fundamentais para a ocupação racional dos espaços no território nacional. Eros Roberto Grau, utilizando-se dos ensinamentos de Sergio García Ramirez e de outros autores sobre a natureza jurídica do plano, reconhece a existência da norma-objetivo como um novo tipo de norma jurídica, “que rompe os modelos tradicionalmente conhecidos, de norma de conduta e de norma de organização”.204 A concepção da norma-objetivo, como um tipo diferenciado de norma jurídica, floresce, especialmente, no bojo dos debates travados a propósito das características das normas do plano, as quais estabelecem fins a alcançar figurando em diversas leis e 204 GRAU, Eros Roberto. Notas sobre a noção de norma-objetivo. Direito constitucional: teoria geral da constituição, vol. I (coleção doutrinas essenciais). Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso (org.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 843. Segundo Miguel Reale as normas de “conduta” são aquelas cujo objetivo imediato é disciplinar o comportamento dos indivíduos ou as atividades dos grupos e entidades sociais em geral; de “organização”, por outro lado, seriam aquelas que, possuindo um caráter instrumental, visam à estrutura e funcionamento de órgãos ou à disciplina de processos técnicos de identificação e aplicação de normas, a fim de assegurar uma convivência juridicamente ordenada. (Lições preliminares de direito, 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 89). 116 decretos (planos nacionais, regionais, setoriais, etc.), como pode ser observado, por exemplo, na disposição do plano acerca das diretrizes e prioridades. Cabe a oportuna observação de que normas-objetivo não se confundem com as chamadas normas programáticas. Distintamente daquelas, que definem fins a alcançar, as normas programáticas estipulam princípios e programas tanto de conduta e de organização quanto atinentes a fins a cumprir. Aliás, para Eros Roberto Grau, ambos os conceitos devem ser colocados em níveis distintos, de modo que o da norma-objetivo deve ser analisado na perspectiva do conteúdo da norma, ao passo que o da norma programática no da eficácia da norma. Isto significa que uma norma programática não afasta a possibilidade de ser também classificada como norma-objetivo.205 Há de se enfatizar que a existência de norma-objetivo no bojo de uma parcela do ordenamento jurídico vincula o intérprete na interpretação de suas normas de conduta e de organização, de modo que não poderá ser considerada como aceitável hermenêutica que não seja estritamente coerente com a realização dos fins nela inscritos. É o que expõe Eros Roberto Grau: (...) penso também que o desatendimento dos fins predeterminados em normasobjetivo pelos seus destinatários consubstancia hipótese de desvio de finalidade ou de poder, devendo levar, por consequência, à nulidade dos atos daí decorrentes. No caso de desatendimento de norma como tal por parte do Estado, penso ainda se possa cogitar da invalidade dos atos administrativos e normativos em que estiver tal desatendimento consubstanciado e em responsabilidade do Estado – seja do Executivo, seja do próprio Legislativo, quando o caso – portanto.206 Nesta perspectiva, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território afiguram-se como normas-objetivo, já que tais instrumentos revelam-se indispensáveis para o planejamento de atividades econômicas e de projetos nacionais de infraestrutura. Não é por outro motivo que consequências jurídicas advêm da inobservância do dever de planejar na hipótese, como adiante será abordado. 205 206 Ibid., p. 855. Ibid., p. 858. 117 5.4 A exigibilidade do dever de planejar e os planos urbanísticos da União De início, cabe novamente ressaltar que a formulação de programas de desenvolvimento deve obedecer ao ordenamento territorial, que, por sua vez, exige o pleno diagnóstico e conhecimento dos espaços geográficos ou zonas ou regiões, em razão das alternativas ou opções de intervenções econômicas e sociais. Aliás, este processo ocorre no âmbito da elaboração dos planos nacionais e regionais de ordenação do território que, conforme explicita a própria Constituição Federal, deve se constituir no principal instrumento para a ocupação racional dos espaços no território nacional. Por certo, é o ordenamento do território que dá forma e conteúdo aos objetivos indicados na Constituição, dentre os quais se destacam o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos II e III), sendo a sua elaboração arena indispensável para a avaliação dos impactos sociais e ambientais de atividades econômicas que englobam os grandes projetos nacionais, como as obras de infraestrutura e os complexos industriais e minerais. Com efeito, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território devem orientar a instalação de grandes projetos públicos e privados.207A função orientadora e coordenadora de tais planos poderia viabilizar a integração dos projetos em questão com as leis de ordenação espacial estaduais e municipais e os demais planos setoriais já existentes nos estados e nos municípios, racionalizando o processo de alocação de recursos, tanto públicos como privados e a distribuição dos investimentos públicos em infraestrutura urbana pelo país. Surge então a seguinte inquietação: Diante de situações que justificam a necessidade de elaboração de planejamento territorial (que deve nortear o uso, a ocupação e a transformação do território nacional) que alternativas restam para que seja dada efetividade ao disposto no art. 21, IX, da Constituição Federal? Em razão do caminho escolhido ao longo do trabalho, parece não haver sentido em formular qualquer proposta que se enverede pelo caminho da ineficácia da Constituição. Em palavras mais incisivas: a inação legislativa em referência torna-se passível 207 Dentre as atuais obras públicas de projeção nacional, com evidentes impactos no planejamento territorial, podemos citar as usinas hidrelétricas do complexo do Rio Madeira(Jirau e Santo Antônio), a pavimentação da BR-163, e os canais da transposição do Rio São Francisco. Além do mais, projetos como o de exploração do présal apresentam nítido rebatimento territorial, especialmente nas regiões e cidades litorâneas que servirão de base para tais trabalhos. 118 de controle judicial, o mesmo podendo ser dito quanto à omissão da União na elaboração e implementação de políticas setoriais urbanas, conforme será enfatizado a seguir. 5.4.1 Omissão legislativa da União na realização do planejamento urbano O combate à inconstitucionalidade por omissão é consequência do perfil da Constituição Federal de 1988. A acentuada preocupação em prover a imediata realização do texto constitucional não mais permite que o seu destinatário aguarde, em espera indefinida, a elaboração das normas regulamentadoras faltantes. Sob marcada influência do direito português, a Constituição Federal de 1988 introduziu no ordenamento jurídico nacional a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, buscando a efetividade das normas carentes de regulamentação, nos termos do art. 103, § 2º: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. Parte-se do pressuposto de que os preceitos que demandarem regulamentação legislativa ou aqueles simplesmente programáticos não deixarão de ser invocáveis e exigíveis em razão da inércia do legislador. Nesta perspectiva, não há dificuldade alguma em detectar omissão inconstitucional na inércia da União em elaborar e instituir planos de ordenação territorial, ante a natureza programática da norma estatuída no art. 21, IX, da Constituição de 1988. É o que destaca Uadi Lammêgo Bulos: Apenas as normas de eficácia limitada, por princípio institutivo e/ou por princípio programático, é que podem ser objeto de ação de inconstitucionalidade por omissão. Somente essas normas dependem de regulamentação legislativa, atribuindo ao legislador o dever de expedir comandos normativos. Exemplos: arts. 17, IV, 25, § 3º, 43, § 1º, I e II, 127, § 2º, 148, I e II, 165, § 9º, I etc. (normas institutivas) e arts 21, IX, 23, 170, 205, 211, 215, 218, 226, § 2º etc. (normas programáticas).208 208 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 251. 119 Enfatiza-se que a norma em referência não pode ser qualificada como de organização ou de conduta. Além de concretizar preceitos enunciadores dos fins do Estado, trata-se de norma programática que não exige somente uma complementação normativa, mas, igualmente, “uma terceira instância política, administrativa e material, sem a qual ela não teria condições de efetivação no mundo real”.209Ou seja, a função conferida a esta norma pelo ordenamento jurídico e a ausência de instrumentos para a ocupação racional e sustentável do território nacional não permitem que a omissão da União perdure por tanto tempo, configurando omissão inconstitucional. Importa salientar que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão instaura um processo objetivo e abstrato, com o escopo de preencher as lacunas normativas que inviabilizam a efetivação da Lei Fundamental. Assim, quando a efetividade da norma constitucional depender da atuação de órgão legislativo, a procedência da ação converte-se em mera advertência para que o órgão remisso adote as medidas tendentes a conferir plena exeqüibilidade ao texto constitucional.210 No tocante à omissão legislativa, abstraindo o constrangimento de ordem moral, verifica-se que nenhuma eficácia remanesce na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, visto inexistir prazo para o adimplemento do dever constitucional de legislar. No entanto, o reconhecimento da omissão inconstitucional implica a constatação de que o legislador violou norma cogente, imperativa e de observância compulsória, que reclamava sua atuação em prazo razoável para que ela pudesse surtir os efeitos desejados. Ou seja, tal comportamento apresenta-se contrário ao direito, podendo ensejar outras consequências, caso inviabilize o exercício de direitos, prerrogativas e finalidades asseguradas na Lei Fundamental. 5.4.2 Estratégias para conferir efetividade aos planos urbanísticos da União É importante ressaltar que a omissão legislativa encontra-se compreendida no conceito de ilicitude, ante o descumprimento do dever de ação previsto em norma constitucional certa, determinada e obrigatória. 209 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 317-318. Precedentes: STF, ADIn 529/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ, 146:424, 1993; STF, ADIn 267MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 19-5-1995, p. 13990. 210 120 Em homenagem ao princípio da universalidade da jurisdição, o Poder Judiciário não pode abster-se de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, art. 5º, XXXV), o que não condiciona o interessado a aguardar o prévio pronunciamento da ação direta de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal para invocar a proteção jurisdicional. Por isso, é facultado à vítima de ação ou omissão legislativa inconstitucional ajuizar ação judicial para a proteção e efetivação de direitos. Do ponto de vista jurídico, um dos caminhos que podem ser adotados para conferir efetividade a normas de eficácia limitada perpassa pela análise dos preceitos constitucionais que têm por objetivo a regulação das funções eficacionais que, conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior, podem ser de bloqueio, de programa ou de resguardo.211 Nesse passo, fazendo uso destes ensinamentos, Maria Helena Diniz afirma que tais funções podem ser utilizadas como estratégias para conferir eficácia a alguns preceitos constitucionais.212 Por certo, levando-se em conta a natureza do comando que estabelece a obrigatoriedade de a União elaborar o plano urbanístico nacional, os planos regionais e os setoriais, merecem especial atenção as análises feitas pela autora sobre as funções eficacionais de bloqueio. Assim, para ela, as normas de bloqueio apresentam eficácia negativa, o que significa que prescrevem um caminho ao legislador, administrador ou juiz sem, contudo, constrangê-los, juridicamente, a segui-lo, compelindo-os, porém, a não tomarem diretriz contrária, sendo, por isso, paralisante das normas que com elas conflitarem. Segundo a autora, o efeito negativo destas normas seria o de paralisar a eficácia de toda a disposição normativa divorciada dos princípios e fins por elas preordenados, de modo que esta função eficacional de bloqueio confere aos eventuais prejudicados o direito de exigir, perante o Judiciário, a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer atos normativos divorciados dos princípios e 211 Para o autor, de um modo geral, os preceitos constitucionais que estatuam princípios e finalidades, ainda que não sejam positivamente consagrados na legislação ou nas normas de administração ou nas decisões judiciais, impedem que tanto legislação quanto administração ou justiça disponham de forma contrária ao que eles propõem. Esta função eficacial negativa resulta numa espécie de bloqueio para a atividade do poder público que, não podendo ser obrigado a expedir normas que tornem efetivos os princípios e as finalidades, não pode, ao menos, contrariá-los. Além deste caso (função de bloqueio), há outro que se refere às normas que instituem programas de ação visando à realização dos fins sociais do Estado, mas dependendo de integração legislativa (função de programa). Por último, o autor faz referência a normas que exercem função de resguardo, nos casos em que a própria Constituição estabelece a possibilidade de eficácia de uma norma vir a ser futuramente limitada por uma norma de escalão inferior. (Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Regras para a eficácia constitucional. Revista de direito público, n. 76. São Paulo, 1985, p. 67-69). 212 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 121-126. 121 finalidades consagrados constitucionalmente, sem que haja lesão a direito individual, e de obter decisões judiciais conforme os preceitos constitucionais. 213 Nota-se, por oportuno, que a noção de função eficacional de bloqueio, tratada pela doutrina adrede mencionada, guarda estreita correlação com as consequências advindas do desatendimento das “normas-objetivo”. Aliás, na esteira do entendimento esposado em linhas anteriores por Eros Roberto Grau, é possível dizer que, na realidade, a hipótese dever ser essencialmente analisada na perspectiva do conteúdo da norma e não da sua eficácia. De fato, os preceitos que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os planos urbanísticos de sua competência revelam características de normas-objetivo. Como já visto antes, a norma-objetivo vincula o intérprete de tal modo que não se entremostra aceitável hermenêutica que não seja estritamente coerente com a realização dos fins nela inscritos. Nessa linha, pode-se dizer que na hipótese dos grandes projetos públicos a falta de uma visão de conjunto (ausência de devido planejamento), como preconizado constitucionalmente há mais de vinte anos, pode ser considerada objetivamente ilegítima, passível, inclusive, de anulação judicial em algumas situações. É o que pode ser observado, por exemplo, nos grandes empreendimentos imobiliários (turísticos, residenciais, comerciais) e de grandes obras de interesse público (usinas e portos marítimos) promovidos na orla marítima brasileira. Conforme destaca Daniela Campos Libório Di Sarno “não é qualquer região que traz viabilidade para a instalação de qualquer obra ou atividade”, bem como “localizadas as potenciais regiões, devese iniciar uma etapa de verificações em que os planejamentos regional e local devem ser compatíveis com a instalação pretendida”. 214 Assim, para a autora, o eventual licenciamento destas atividades e empreendimentos deve possuir uma modelagem que propicie uma repartição de responsabilidades entre as diversas autoridades competentes (municipais, estaduais e federais) viabilizando uma segurança jurídica maior para todos os envolvidos, destacando, ainda, que um dos elementos fundamentais na construção desse modelo é o planejamento do 213 Ibid., p. 121-123. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Interesse público, estado federado e grandes projetos na orla marítima: considerações práticas. Revista Interesse Público - ano 13, n. 70 – nov/dez. Belo Horizonte: Editora Forum, 2011. 214 122 ordenamento territorial, traduzidos em planos diretores e planos que o complementem além de planos de ordenamento territorial definidos pelo Estado e pela União.215 A existência do plano nacional e de planos regionais de ordenação do território facilitariam tal modelagem, permitindo maior integração entre as unidades federativas na análise das políticas setoriais essenciais para o desenvolvimento do país, inclusive no que se refere ao estabelecimento de mecanismos inter-institucionais de análise de políticas setoriais com impacto no território. Enquanto isso não ocorre, é possível falar, em determinadas situações, de ilegitimidade de licenciamentos realizados pela União em tais regiões sem que sejam os interesses dos demais entes federativos levados em consideração Ou seja, embora a inexistência de uma Política Nacional de Ordenação do Território no país não possa impedir a elaboração e a realização de políticas setoriais que impactem o território, já é possível descortinar a possibilidade de se promover a discussão judicial de algumas destas políticas, ante o fim social tutelado constitucionalmente, visto que, na realidade fática, podem ocorrer situações que acarretem lesões regionais e até de impacto nacional ou internacional.216 Não há dúvida de que o dever jurídico de planejar é desrespeitado quando a União também deixa de elaborar e promover planos setoriais urbanísticos de sua exclusiva competência, como é o caso da defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações (CF, art. 21, XVIII). Parte-se do pressuposto óbvio de que a Constituição Federal deve ser cumprida e aplicada não se justificando, assim, a omissão da União, que, inclusive, gera desperdícios de vidas humanas e de recursos públicos.217 215 Ibidem. Na elaboração de subsídios técnicos para a definição da Política Nacional de Ordenamento do Território um dos desafios que foram apontados para enfrentamento pelo plano nacional é a “desarticulação e dispersão das políticas setoriais com impacto no território, o que demanda esforços de compatibilização e articulação de políticas públicas em seus rebatimentos no espaço, reduzindo os conflitos na ocupação e no uso do território e de seus recursos”. Disponível em: <http://www.mi.gov.br/desenvolvimentoregional/seminario_pnot/>. Acesso em: 15 set. 2011. 217 Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) na Secretaria Nacional de Defesa Civil mostrou extremo desequilíbrio na distribuição de recursos destinados para ações de prevenção a catástrofes entre 2004 e 2009. O Rio de Janeiro e seus municípios receberam apenas 0,65% da verba liberada no período. O estado enfrentou sua pior temporada de chuvas em 44 anos, registrando um grande número de mortes em janeiro de 2011. A Bahia, no mesmo período de 2004 a 2009, recebeu o equivalente a 37,25% dos recursos liberados. A maior parte das liberações aconteceu durante a gestão do então ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, que deixou o cargo para poder se candidatar ao governo do estado. A Secretaria Nacional de Defesa Civil é subordinada ao ministério. A auditoria foi feita por solicitação do Congresso Nacional no ano passado, após as enchentes que atingiram Santa Catarina, para avaliar a eficiência, eficácia e efetividade das ações da defesa civil brasileira, devido à demora no atendimento às vítimas no estado. Na catástrofe de Santa Catarina, no final de 2008, cerca de 130 pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas. De acordo com o relatório, “a distribuição de valores não seguiria nenhuma tendência razoável, baseada em critérios de risco, histórico dos eventos, etc”. As determinações do relatório para aprimorar as ações de defesa civil foram aprovadas por 216 123 Ressalte-se, todavia, que contra a União, os Estados-membros e os Municípios podem lançar mão das medidas judiciais oferecidas pelo ordenamento jurídico para exigir o emprego de recursos públicos federais nesta finalidade, afora, obviamente, as consequências resultantes da responsabilidade civil que deve ser imputada a tal ente pelas vítimas destes eventos, ante a ausência de uma política eficiente nesse setor. Assim, à recusa da União em promover medidas para a implantação de políticas setoriais urbanísticas, como a de prevenção às calamidades públicas em determinada localidade propícia à ocorrência de eventos naturais, há de se atribuir um sentido juridicamente negativo, qual seja: a ilicitude da conduta omissiva. Adicionando-lhe o nexo causal entre a inércia administrativa ou legislativa e a inaplicabilidade de uma imposição constitucional, bem assim o prejuízo moral e material causado às vítimas, exsurgem todos os pressupostos para o aforamento de uma ação de perdas e danos. O exemplo ilustra o esforço em se proporcionar aplicação integral às normas constitucionais que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os planos urbanísticos de sua competência, com base no conteúdo destes preceitos. Na oportunidade, cabe a advertência feita por Walter Claudius Rothenburg: Não é preciso desconsiderar o Legislativo, o Executivo e as instâncias eminentemente políticas do Estado; ao contrário, deve-se reconhecer o papel primordial que lhes cabe na articulação das expectativas da sociedade, mas sem ignorar as orientações de atuação definidas na Constituição e, sobretudo, sem renunciar a mecanismos de superação de eventual insuficiência ou omissão. A questão, portanto, não é de menosprezar a necessidade (e a legitimação democrática) de interposição legislativa, mas de avaliar até quando será lícito aguardar por ela. Não é preciso remeter todas as expectativas para o foro judicial, porém considerar também essa alternativa – eventualmente subsidiária e certamente derradeira – diante dos termos claros de que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (Constituição, art. 5º, XXXV). 218 unanimidade pelos conselheiros do TCU. Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/programas_governo/areas_atuacao/seguranca_pu blica/Relat%C3%B3rio%20do%20Ministro%20Relator-DEFESA%20CIVIL%20-%20Monitorame.pdf.>. Acesso em: 16 set. 2011. 218 ROTHENBURG, Walter Claudius. O tempo e a aplicabilidade das normas constitucionais, p. 389. 124 Com efeito, constituições, como a brasileira de 1988, que não se resumiram a estabelecer regras de atribuição de competência, mas verdadeiros objetivos a serem perseguidos pelo Estado, além da positivação de vários princípios jurídicos, fizeram com que as técnicas hermenêuticas passassem por uma releitura. Por isso, a tentativa de se buscar a consolidação dos objetivos do Estado brasileiro e da sua ordem econômica não pode ser fundada tão-somente em uma metodologia que se agarre na literalidade e na reserva absoluta legal. É o que destaca José Maria Arruda Andrade: Daí a necessidade, de um lado de uma metodologia jurídica que permita ver a interpretação do texto normativo conjuntamente com a aplicação dele, como uma concreção normativa, superando as antigas clivagens como ser e dever-ser. E, por outro lado, de se reconhecer que pensar a atuação do Estado como um dever constitucional, sem também ressaltar a necessidade de implantação de políticas públicas, é esvaziar a possibilidade de concreção material à Constituição brasileira. 219 Por entrever na inércia legislativa um pernicioso processo de corrosão dos valores tutelados pelo constituinte, esta inversão no pensamento jurídico tradicional prenuncia o último estágio de afirmação da supremacia constitucional. De todo o exposto, conclui-se que o ordenamento jurídico direciona-se no sentido de limitar o exercício abusivo da discricionariedade governamental e de implementar um efetivo planejamento urbano que envolva todas as unidades federativas, inclusive e, em especial, a União. A abertura da jurisdição aos valores que informam o sistema jurídico (num enfoque hermenêutico-concretizante) é o caminho para viabilizar que a mera pretensão de eficácia do texto constitucional se converta em verdadeira eficácia operativa. 219 ANDRADE, José Maria Arruda de. A Constituição brasileira e as considerações teleológicas na hermenêutica constitucional. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009, p. 328. 125 CONCLUSÃO O urbanismo opera através de ações com o objetivo de organizar os espaços habitáveis (atividade urbanística), de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade. Assim, à medida que a atividade urbanística se faz necessária, mais intensamente vão surgindo normas jurídicas para regulá-la e fundamentar a intervenção no domínio privado, constituindo o que a teoria jurídica denomina “direito urbanístico”. A partir de um enfoque dogmático-normativo, tem-se como objeto do direito urbanístico a legislação constitucional e infraconstitucional que interfere, direta e indiretamente, na qualidade de vida da população, abrangendo o ordenamento físico ou territorial e as atividades econômico-sociais. Essa estrutura normativa do urbanismo inclui preocupações voltadas à ordenação do solo, à ordenação urbanística de áreas de interesse especial, à ordenação urbanística da atividade edilícia, aos instrumentos de intervenção urbanística, entre outras. O direito urbanístico é instrumento de transformação da realidade. Suas normas são direcionadas para a concretização de diretrizes perseguidas pelo ordenamento jurídico, especialmente a garantia da sustentabilidade ambiental, econômica e social, com vistas à qualidade de vida da população. O marco regulatório das cidades, instituído pela Constituição de 1988 e pela Lei nº 10.257, de 10.07.2001 (autodenominada Estatuto da Cidade), deu ênfase à obrigação do Estado em estabelecer um ordenamento territorial adequado, por meio de um sistema de planejamento que garanta o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana. Assim, partindo de uma leitura ampla de urbanismo (que certamente rompe as fronteiras da cidade), a nova concepção de planejamento urbano envolve todos os entes federativos. Por essa razão, levando-se em conta que o planejamento urbano não pode restringir-se à figura do Plano Diretor, o ordenamento jurídico estabelece arranjos institucionais entre os níveis de governo, no âmbito do planejamento, com o objetivo de promover a elaboração e a implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente subsidiadas na articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de desenvolvimento econômico. No Estado Federal há a incidência de ordens jurídicas diferentes sobre o mesmo território, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências. Desse modo, 126 a competência é distribuída entre os diversos entes políticos, o que exige a identificação do que pertence a cada um deles. A competência para tratar de direito urbanístico não era tratada explicitamente nas Constituições anteriores. Foi a Constituição Federal de 1988 que, pela primeira vez, atribuiu competência concorrente à União e aos Estados-membros para legislar sobre direito urbanístico. Assim, na competência concorrente, cabe à União legislar sobre normas gerais, podendo os Estados-membros suplementar a legislação federal, editando norma especial ou suprimindo a omissão da União (art. 24, I, e §§ 1º a 4º). Aos Estados-membros, atribuiu-se competência privativa para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões constituídas por Municípios limítrofes para o planejamento, a organização e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º). A Constituição conferiu aos Municípios o dever de legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I), suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II), promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo (art. 30, VIII), bem como executar a política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput). Além da competência concorrente, a Constituição Federal atribuiu à União o desempenho de uma série de atividades e a organização e gestão de inúmeros serviços com peculiar interesse ao urbanismo, inseridos na sua competência material privativa (art. 21), na competência legislativa privativa (art. 22) e na competência material comum (art. 23). A Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da União é essencial para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto direto no território, como se visualiza na disposição prevista no inciso IX, do art. 21 (elaboração e execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social). Além disso, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social são apontados pelo Estatuto da Cidade como instrumentos de política urbana (art. 4º, inciso I). A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 174, caput, que, em matéria econômica, o plano é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Assim, a nossa ordem jurídica contempla o Estado planejador, cujas ações devem ser orientadas pelo planejamento. O planejamento urbano, corolário do princípio urbanístico da coesão dinâmica, tem sua existência correlacionada à função do Poder Público de proporcionar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Busca-se evitar, através dele, o 127 casuísmo e as transformações promovidas nas cidades com base exclusivamente em interesses econômicos. O planejamento urbano, embora inserido como espécie de planejamento econômico, possui algumas características peculiares inseridas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição de 1988, possibilitando a intervenção mais acentuada do Estado na esfera jurídica privada. Ou seja, através dele não ocorre a intervenção no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio mais restrito da propriedade, na qual a ordem jurídica constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atividade urbanística (art. 182, § 1º). O planejamento territorial deve estar vinculado ao planejamento econômicosocial. Nesse sentido, por exemplo, a programação de políticas de investimento pela União em obras numa determinada região do país, ou mesmo o incentivo à instalação de empresas ou atividades numa localidade, irá impactar social e economicamente na infraestrutura dos municípios onde elas ocorrerão. A própria Constituição Federal de 1988 sinalizou as estreitas relações entre ambos (CF, art. 21, IX). Além disso, o planejamento territorial no Brasil tem sido objeto de disposição de várias leis, sem que exista uma visão sistemática que oriente a elaboração e a interpretação das diferentes leis voltadas à organização do território para a realização de distintos aspectos de interesse público. No mesmo sentido, a ausência de uma política nacional de ordenação territorial e de desenvolvimento econômico também é sentida quando se observa a execução de inúmeras políticas setoriais com rebatimento territorial realizadas de forma desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes federativos. Pode-se afirmar, portanto, que o preparo das estruturas urbanas de novas cidades e a correção das estruturas de cidades existentes (de forma a poderem receber o crescimento atual) são problemas a serem enfrentados seriamente por todos os níveis de governo. E a União, neste aspecto, exerce função primordial na implantação de um sistema de planos estruturais, na medida em que os planos territoriais de sua competência possibilitam a integração dos diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento, entre os diversos níveis de governo, permitindo maior eficiência nas ações administrativas entre governos e gestões sucessivas e, consequentemente, a adequada alocação de recursos. Assim, num país com dimensões continentais e de alta diversidade ambiental, cultural, social e econômica como o Brasil, a existência de planos territoriais de caráter nacional e regionais para orientar o uso e a ocupação das terras revela-se fundamental. 128 Por outro lado, passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição, a União ainda não se desincumbiu do dever de elaborar o plano nacional e os planos regionais de ordenamento territorial, o que significa que ainda não houve a implantação de uma política nacional de desenvolvimento territorial. O reconhecimento aos entes com competência planificatória de considerável zona de liberdade para a escolha do momento da elaboração do plano não pode abranger a decisão de elaborá-lo, ou não, já que há imposição constitucional em sentido contrário. A Lei Fundamental teve essa preocupação e criou formas de controle jurisdicional para reduzir o poder discricionário, visando sempre à aplicabilidade das normas constitucionais. Os preceitos que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os planos urbanísticos de sua competência revelam características de normas-objetivo, as quais vinculam o intérprete de tal modo que não se entremostra aceitável hermenêutica que não seja estritamente coerente com a realização dos fins nela inscritos. Nessa linha, pode-se dizer, por exemplo, que na hipótese dos grandes projetos públicos, a falta de uma visão de conjunto (ausência de devido planejamento), como preconizado constitucionalmente há mais de vinte anos, pode ser considerada objetivamente ilegítima, passível, inclusive, de anulação judicial. Ou seja, embora a inexistência de uma Política Nacional de Ordenação do Território no país não possa impedir a elaboração e a realização de políticas setoriais que impactem o território, já é possível descortinar a possibilidade de se promover a discussão judicial de algumas destas políticas, ante o fim social tutelado constitucionalmente, visto que, na realidade fática, podem ocorrer situações que acarretem lesões regionais e até de impacto nacional ou internacional. Dentro desta noção, a omissão na elaboração dos planos urbanísticos federais pode não só implicar a indicação de mora à União (através da ação direta de inconstitucionalidade por omissão), mas, ainda, em conseqüências no âmbito da responsabilidade civil, bem como no próprio controle da legalidade de atividades com significativas repercussões no âmbito da territorialidade, realizadas num contexto de absoluta falta de planejamento. 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILÓ, Josep. 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