1
CARLOS EDUARDO SILVA
Planejamento urbano e competência da União: a contribuição dos
planos urbanísticos da União para o desenvolvimento urbano
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito Urbanístico, sob a
orientação da Professora Doutora Daniela
Campos Libório Di Sarno.
São Paulo-SP
2012
2
Banca Examinadora
______________________
______________________
______________________
3
À minha esposa Gabriela, companheira de vida e de sonhos.
Aos meus queridos pais Paulo e Isabel, que me proporcionaram carinho, amor e bases sólidas
para que eu tivesse condições de alçar vôos cada vez mais altos.
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de prestar uma homenagem às pessoas que, dentro de suas
possibilidades, participaram da realização deste trabalho.
Agradeço o apoio, carinho e amor de minha esposa Gabriela, que não só
soube compreender a minha ausência, como contribuiu para a conclusão de mais esta etapa de
minha via acadêmica.
Agradeço a minha orientadora, a Professora Daniela Campos Libório Di
Sarno, pela atenção, incentivo e por todos os ensinamentos jurídicos que proporcionaram a
segurança necessária para o desenvolvimento deste trabalho. Sinto-me privilegiado por ter
sido seu orientando.
Agradeço ao Ministério Público do Estado de Mato Grosso, na pessoa do
Procurador-Geral de Justiça, Dr. Marcelo Ferra de Carvalho, pelo incentivo ao
aperfeiçoamento profissional dos promotores e procuradores de justiça, proporcionando os
meios necessários para que eu pudesse concluir um mestrado de reconhecida qualidade fora
do Estado de Mato Grosso.
Da mesma forma, agradeço aos meus colegas de mestrado que, durante o
curso, estimularam discussões e teceram as críticas necessárias sobre vários aspectos do
Direito Urbanístico.
Enfim, a todos que de alguma forma contribuíram para a conclusão deste
trabalho, professores e demais funcionários da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
o meu muito obrigado!
5
RESUMO
SILVA, Carlos Eduardo. Planejamento urbano e competência da União: a contribuição dos
planos urbanísticos da União para o desenvolvimento urbano. São Paulo, 2012. 135 f.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
A existência de planos urbanísticos de caráter nacional e regionais revela-se fundamental para
orientar o uso e a ocupação das terras, num país com dimensões continentais e de alta
diversidade ambiental, cultural, social e econômica como o Brasil. A falta de planejamento
urbanístico nacional reflete-se na promoção desarticulada de políticas de investimento pela
União em obras em determinadas regiões do país, ou mesmo no incentivo à instalação de
empresas ou atividades numa localidade, que acabam impactando a infraestrutura e o
desenvolvimento dos municípios. A ausência de uma política nacional de ordenação territorial
e de desenvolvimento econômico também é sentida, quando se observa a elaboração e a
execução de inúmeras políticas setoriais com rebatimento territorial realizadas de forma
desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes federativos. Por isso, a
Constituição de 1988 direciona à União o papel de coordenar as políticas nacionais e
regionais de desenvolvimento com impacto direto no território. Além disso, os planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social são
apontados pelo ordenamento jurídico como instrumentos de política urbana. Nessa linha, a
União exerce função primordial na implantação de um sistema de planos estruturais, na
medida em que os planos territoriais de sua competência possibilitam a integração dos
diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento, entre os níveis de
governo, permitindo maior eficiência nas ações administrativas. Desse modo, a omissão na
elaboração dos planos urbanísticos de sua competência pode implicar indicação de mora à
União (através da ação direta de inconstitucionalidade por omissão) e em repercussões na área
da responsabilidade civil e no próprio controle da legalidade de atividades com significativas
consequências no âmbito da territorialidade, realizadas num contexto de absoluta falta de
planejamento.
Palavras-chave: planejamento urbano, competências da União, desenvolvimento urbano.
6
ABSTRACT
SILVA, Carlos Eduardo. Urban planning and the Union government’s competence: the
contribution of the Union Government’s urbanistic plans for urban development. São Paulo,
2012. 135 f. Master’s degree dissertation – the Law Faculty – Faculdade de Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
The existence of national and regional urban planning to guide the use and occupation of land
has become fundamental in a country such as Brazil with its continental proportions and great
diversity of environments, culture and social and economic conditions. The lack of national
urban planning is seen in the unarticulated promotion of Union investment policies in public
works in a particular region of the country, or even in incentives for the installation of
companies and economic activities, that end up impacting on the infrastructure and
development of the municipalities. The lack of a national policy on territorial organization
and urban development can also be seen when looking at the elaboration and execution of
numerous sectorial policies that have territorial impacts and seeing how uncoordinated they
are and how they lead to superimposed actions by different Federal organs. For this reason,
the 1988 Constitution provides the Union with the role of coordinating national and regional
development plans that have direct impact on land territory. As well as this, the national and
regional plans for land organization and social and economic development are set out by
judicial ordering as an instrument of urban policy. In this sense, the Union plays a
fundamental part in the implementation of a system of structural plans, since territorial plans
within its ambit allow for the establishment of the integration of a variety of plans, actions
and investments in infrastructure and development among the different levels of government,
providing greater efficiency in administrative action. This way, the lack of plans within the
Federal ambit could imply in the Union suffering a ruling of ‘delayed action’ (by means of a
direct lawsuit on the grounds of unconstitutionality for reasons of omission) as well as
repercussions in the area of civil responsibility and in the actual control of the legality of
activities that have significant consequences within the ambit of land ownership in a context
of absolute lack of planning.
Key words: urban planning, responsibilities of the Union, urban development.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................09
1. OS ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANÍSTICO.................................12
1.1 A concepção de urbanismo.............................................................................................12
1.2 A atividade urbanística...................................................................................................18
1.3 O direito urbanístico.......................................................................................................19
1.3.1 Considerações preliminares.......................................................................................19
1.3.2 Objeto do direito urbanístico.....................................................................................22
1.3.3 Princípios do direito urbanístico...............................................................................24
1.3.4 Perfil constitucional do direito urbanístico...............................................................30
2.
A
DISCRIMINAÇÃO
CONSTITUCIONAL
DAS
COMPETÊNCIAS
URBANÍSTICAS......................................................................................................................33
2.1 Aspectos gerais do federalismo......................................................................................33
2.2 O sistema federal brasileiro............................................................................................37
2.3 Repartição de competências constitucionais...................................................................41
2.4 As competências urbanísticas.........................................................................................46
2.4.1 Competências urbanísticas da União........................................................................47
2.4.2 Competências urbanísticas dos Estados...................................................................49
2.4.3 Competências urbanísticas dos Municípios.............................................................50
2.4.4 Competências urbanísticas comuns..........................................................................51
2.4.5 Normas de competências e os planos urbanísticos...................................................51
3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS...................................................53
3.1 A formação e desenvolvimento das cidades brasileiras sob o ponto de vista do
planejamento urbano............................................................................................................53
3.2 O planejamento como instituto jurídico.........................................................................58
3.3 A importância conferida ao planejamento pelo direito urbanístico..............................62
3.4 Plano urbanístico e a sua natureza jurídica....................................................................66
3.5 Planejamento urbano e valoração principiológica da Constituição Federal...................69
3.6 Visão integrada de planejamento urbano........................................................................75
3.7 Os planos de ordenamento territorial.............................................................................78
8
4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO..................................84
4.1 Aspectos gerais...............................................................................................................84
4.2 Planos urbanísticos e competência do governo central em perspectiva comparada......87
4.3 O plano urbanístico nacional..........................................................................................91
4.4 Os planos urbanísticos regionais....................................................................................94
4.5 Os planos urbanísticos federais setoriais........................................................................95
4.6 A relação dos planos urbanísticos da União com os demais planos urbanísticos..........97
5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO DEVER DE A UNIÃO ELABORAR E EXECUTAR
PLANOS URBANÍSTICOS...................................................................................................103
5.1 O dever jurídico da União de planejar e a sua omissão na elaboração dos planos
urbanísticos.........................................................................................................................103
5.2 A eficácia e imperatividade da norma jurídica constitucional.....................................109
5.3 As normas-objetivo e o planejamento urbanístico.......................................................115
5.4 A exigibilidade do dever de planejar e os planos urbanísticos da União....................117
5.4.1 Omissão legislativa da União na realização do planejamento urbano.....................118
5.4.2 Estratégias para conferir efetividade aos planos urbanísticos da União..................119
CONCLUSÃO........................................................................................................................125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................129
9
INTRODUÇÃO
O art. 3º da Constituição Federal destaca como objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, a garantia do desenvolvimento
nacional e a redução das desigualdades sociais e regionais. O art. 182, por sua vez, dispõe que
a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo garantir o bem-estar dos habitantes da
cidade.
Assim, para o alcance de tais objetivos, é necessário que métodos e
estratégias sejam reunidos, para conformar uma atuação planejada.
A noção mais simples que se tem de planejamento é aquela que o diferencia
da improvisação. O ordenamento jurídico prevê o planejamento como instrumento para o
alcance dos objetivos traçados pelo Estado brasileiro, os quais, justamente em razão da
complexidade, necessitam da conjugação de esforços de todos os entes da Federação.
Atualmente, a atividade de planejar está prevista no art. 174 da Constituição
Federal de 1988, inserida no capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”,
pertencente ao Título VII, “Da Ordem Econômica e Financeira”, como dever-poder do Estado,
enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica. Referido dispositivo traz em
seu bojo que o planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado.
Além da norma citada, a atividade de planejar também aparece, explícita ou
implicitamente, em outros dispositivos constitucionais.
O planejamento urbano é espécie de planejamento econômico, mas possui
algumas características próprias, fixadas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição
Federal de 1988. Ele viabiliza-se concretamente por intermédio dos planos urbanísticos, que
traduzem juridicamente a técnica utilizada no processo de elaboração do planejamento.
Levando-se em conta a autonomia federativa constitucionalmente
assegurada e a necessidade da aplicação de técnicas de planejamento de forma integrada para
abranger os distintos entes federativos, é que o planejamento urbano deve ser realizado em
nível nacional, regional e local.
Por esta razão, pautado na ideia de que o planejamento urbano não pode
restringir-se à figura do Plano Diretor, o ordenamento jurídico estabelece arranjos
institucionais entre os níveis de governo com o objetivo de promover a elaboração e a
implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente subsidiadas na articulação de
planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de desenvolvimento econômico.
10
Sem olvidar o destacado papel desenvolvido pela União na realização de
políticas setoriais urbanas, há de se ressaltar que a Lei Fundamental direciona a tal unidade
federativa a importante tarefa de coordenar as políticas nacionais e regionais de
desenvolvimento com impacto direto no território, sendo os planos nacionais e regionais de
ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social apontados pelo ordenamento
jurídico como instrumentos de política urbana.
Nesse aspecto, ciente de que a atividade urbanística manifesta-se de maneira
mais concreta nos Municípios, o presente trabalho busca analisar os limites e as possibilidades
dos planos urbanísticos de competência da União para o desenvolvimento urbano.
Desse modo, foram estabelecidos como objetivos da dissertação a
identificação e compreensão das seguintes questões: a) os desafios para a realização de um
planejamento urbano que envolva todas as esferas de governo; b) a complexidade técnica das
normas dos planos, em especial, dos planos urbanísticos; e c) a emergência de caminhos no
campo do Direito para a efetividade dos planos urbanísticos de competência da União..
Além disso, pretende-se destacar as implicações da omissão da União na
elaboração e promoção de alguns planos urbanísticos, especialmente quanto ao controle de
legalidade de atividades (com significativas repercussões no âmbito da territorialidade e do
desenvolvimento urbano) realizadas num contexto de absoluta ausência de planejamento.
Como forma de facilitar a compreensão do tema, o trabalho foi dividido em
cinco capítulos, que procuram guardar entre si uma relação concatenada de ideias.
No primeiro capítulo, busca-se reconhecer as características do sistema
jurídico relativo à ordem urbanística, especialmente as novas dimensões jurídicoconstitucionais da política urbana, concebidas a partir da Constituição Federal de 1988 e do
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2.001).
As normas constitucionais que interessam ao direito urbanístico são
abundantes no texto constitucional de 1988, o qual atribui competências legislativas e
administrativas aos diversos entes federais.
Por isso, no capítulo segundo é proposta a análise da repartição de
competências entre os entes federativos como forma de avaliar as competências urbanísticas
atribuídas a cada um deles, notadamente sob o enfoque do planejamento urbano.
No capítulo terceiro será analisado o modelo normativo de planejamento
urbano. Objetiva-se aprofundar o estudo deste tema discorrendo acerca do papel dos planos
urbanísticos e acentuando as modificações decorrentes da evolução política e da valoração
principiológica do Estado Democrático de Direito ditadas pela Constituição Federal de 1988 e
11
pelo Estatuto da Cidade. Além disso, abordam-se as íntimas conexões e influências recíprocas
que se verificam entre a planificação territorial e a planificação econômica.
No quarto capítulo, explicita-se efetivamente o tema da dissertação, ao se
buscar a análise da contribuição dos planos urbanísticos de competência da União para o
desenvolvimento urbano. Foi necessário, para tanto, discorrer sobre aspectos que poderiam
ser tratados no plano urbanístico nacional e nos planos regionais, bem como avaliar a
importância deles para a articulação dos planos setoriais e dos planos urbanísticos elaborados
pelos demais entes federativos.
O último capítulo desse trabalho dedicou atenção à análise de estratégias
para conferir efetividade aos preceitos que estabelecem o dever de a União elaborar os planos
urbanísticos de sua competência.
12
1. OS ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANÍSTICO
1.1 A concepção de urbanismo
O crescimento das cidades (urbanização) e dos problemas dele decorrentes
trouxeram novas exigências espaciais quanto às necessidades atinentes à habitação,
infraestrutura e equipamentos urbanos, de modo que a imperiosidade de reorganizar as
cidades, subjugadas pelos efeitos devastadores da urbanização, exigiu uma técnica, uma
ciência, que se batizou de “urbanismo”.1
Com efeito, no início do século XX, o urbanismo acaba se projetando no
Brasil e em diversos países, deixando de se restringir apenas ao desenho urbano e de ser
caracterizado como mero prolongamento da arquitetura, muito embora, nesta época, se
deparasse com as limitações impostas pelo Estado Liberal, principalmente no que tange à
concepção da propriedade como direito absoluto.
Nessa linha, as transformações socioeconômicas acarretadas por diversos
fatores, destacadamente a Revolução Industrial e a ampliação demográfica das cidades,
levaram, paulatinamente, à consolidação do urbanismo como disciplina autônoma dedicada ao
estudo da complexidade estrutural e morfológica das cidades, assim como dos problemas a
elas correlatos.2
A busca da ordenação do espaço urbano é que proporcionou o
desenvolvimento do urbanismo. Cabe destacar que o crescimento da população urbana, as
influências recíprocas havidas entre as atividades desenvolvidas no perímetro urbano e na
zona rural e os impactos ambientais causados pelas ocupações humanas expandiram as
preocupações do urbanismo.
É o que afirma José Afonso da Silva:
Em tais condições, cabe reconhecer que a cidade não é uma entidade com vida
própria, independente e separada do território sobre o qual se levanta. Pelo
contrário, insere-se nele como em um tecido coerente cuja estruturação e
1
A propósito, foi na França, em 1907, que se convencionou chamar de urbanismo a ciência que tratava dos
assentamentos urbanos, sendo os anos subsequentes marcados pela criação de instituições a ela dedicados, como
a Societé Française des Urbanistes, no ano de 1913. Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico
comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros. Curitiba: Juruá, 2009, p. 52.
2
Cf. SICA, Paolo. História del Urbanismo – El Siglo XX. Traducción de Joaquín Hernández Orozco. Instituto de
Estudios de Administracion Local. Madrid, 1981, p. 11. Apud COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito
urbanístico comparado: planejamento urbano – das constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 45.
13
funcionamento resultam inseparáveis da cidade moderna. O objeto do urbanismo
amplia-se, desse modo, até incluir não somente a cidade, mas todo o território,
3
tanto o setor urbano como o rural.
A noção de complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, numa
visão integrada da cidade, delimita melhor o objeto do urbanismo. Como as normas que
compõem o direito urbanístico têm como principal fonte material as regras e técnicas do
urbanismo, o âmbito da política urbana deve levar em conta tais características.
Nesse sentido, assim se manifesta Carlos Ari Sundfeld:
Tem-se discutido se as áreas rurais são ou não alcançadas pela regulação do direito
urbanístico; pergunta a que os especialistas vêm dando resposta enfaticamente
positiva, baseados em uma visão integrada da cidade (visão, essa, aliás, acolhida
pelo art. 40, § 2º, do Estatuto da Cidade, segundo o qual o plano diretor municipal
“deverá englobar o território do Município com um todo”). É preciso, porém,
algum cuidado com as simplificações. A Constituição isola, em capítulos
separados, a política urbana (arts. 182-183) e a política fundiária (arts. 184-191),
esta última ligada ao problema social da distribuição das terras (reforma agrária) e
de sua exploração econômica. Assim, o direito agrário é efetivamente um limite do
direito urbanístico, pois a política urbana não pode tomar para si definições que são
próprias da política fundiária (agrária). Mas isso não quer dizer que o direito
urbanístico seja alheio ao meio rural, pois a ele cabe a disciplina (a) da passagem
de uma área da zona rural para a zona urbana (segundo o art. 182, § 1º, da CF,
cabe ao plano diretor municipal fixar a “política de expansão urbana”), (b) da
proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da cidade como um
todo (como as águas e o ar), independentemente da zona em que situados, (c) das
relações em geral entre o meio rural e o meio urbano e (d) das questões espaciais
do meio rural, naquilo que não esteja diretamente vinculado à política agrária.4
Em tais condições, cabe ainda reconhecer que o urbanismo objetiva não só a
organização dos espaços habitáveis, como também as áreas de preservação permanente, os
parques ecológicos, as reservas ambientais etc, inseridos no contexto urbano ou com forte
3
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 31.
SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,
Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006, nota 10, p. 49-50.
4
14
influência na qualidade de vida da população urbana, que devem ser preservados com a
aplicação de normas urbanísticas cientificamente corretas, pois é necessário definir como o
homem deve se portar em relação a elas, ordenando e limitando as formas de ocupação e
intervenção urbana nesses espaços.
Por isso, hodiernamente, o urbanismo tem uma natureza polissêmica, já que
comporta uma pluralidade de sentidos. Dessa forma, ele pode ser analisado como fato social,
como técnica, como ciência e como política5, mas sempre voltado à prevenção, ao controle e à
correção dos problemas causados pela urbanização.
Pautado nessa observação, o urbanismo, como fato social, analisa o
fenômeno secular da criação e do desenvolvimento dos núcleos populacionais, buscando a
criação de técnicas e regras de adaptação do homem ao espaço natural, o que implica
consciência coletiva de preparação do espaço comum de um determinado núcleo
populacional.
Além disso, a cidade é uma invenção humana. Aliás, a maior e a mais bem
sucedida das invenções. Com ela surge a Civilização. Como invenção, a cidade é um objeto
artificial, isto é, construído pelo homem, e como objetos construídos as cidades guardam uma
dimensão técnica que lhes é inalienável. Assim, as cidades não podem prescindir da técnica,
em especial da Ciência do Urbanismo.
Para Leonardo Benevolo, o urbanismo, como técnica e ciência
interdisciplinar que é, correlaciona-se com a cidade industrial, como instrumento de correção
dos desequilíbrios urbanos, nascidos da urbanização e agravados com a chamada “explosão
urbana” do nosso tempo. Segundo o autor, as tentativas para corrigir os males da cidade
industrial cristalizaram-se em torno de duas posições extremas: uma que se opunha à cidade
existente, propugnando por formas novas de convivência social (corrente qualificada pelo
autor como de utopista, que trouxe contribuições importantes para o urbanismo
contemporâneo, como os conceitos de zoneamento, áreas verdes, espaços livres, taxa de
ocupação e coeficiente de aproveitamento do terreno, recuos, afastamentos e gabaritos, tendo
como expoentes Owen, Saint-Simon, Fourier, Cabet e Godin); outra posição que se propunha
a resolver, separadamente, os problemas, remediando isoladamente os inconvenientes, sem
levar em conta as conexões e sem uma visão global do novo organismo urbano, nesta ligandose especialistas e funcionários que introduzem regulamentos sanitários e serviços
administrativos, mediante a utilização de instrumentos urbanísticos técnicos e jurídicos, que
5
Cf. CORREIA. Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. Vol. I. 4. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p.
25-26.
15
permitiram realizar transformações no meio urbano, dando origem à legislação urbanística
moderna. A essa época, grande parte das infraestruturas urbanas do solo (ruas, estradas,
pontes, canais, portos) devia-se à iniciativa privada, mas a evolução impôs ao Estado a
prestação desses serviços urbanísticos, especialmente no referente aos serviços sanitários, até
a renovação de Paris por obras de Hausmann, que embelezou a cidade.6
Como se vê, o termo “urbanismo” aparece utilizado também como sinônimo
de técnica de criação, desenvolvimento e reforma das cidades. As técnicas urbanísticas não
foram as mesmas ao longo dos tempos, tendo como causas a evolução das correntes de
arquitetura, das técnicas de construção e as próprias concepções político-ideológicas.
Por outro lado, nas sociedades de fato democráticas, a cidade é um objeto
que não tem um só dono e nem é construída por uma só pessoa. A cidade tem milhares de
donos e construtores, seus cidadãos, cada qual com direitos sobre ela. A compatibilização
desses direitos reforça o imperativo das técnicas do planejamento urbano e do urbanismo,
mas, também, determina para as cidades outra dimensão, do mesmo modo inalienável, que é a
dimensão política.
Para a cidade, a técnica e a política são sustentáculos em favor do bem-estar
da população. Nem a técnica pode determinar sozinha, nem a política pode decidir sozinha,
pois, assim, a sociedade abre mão dos avanços técnico-científicos imprescindíveis à
construção da cidade, abrindo caminho ao caos urbano.
Desse modo, a visão do urbanismo, como política, parte do pressuposto que
as decisões sobre as cidades devem ser decididas democraticamente. Só que essas decisões
devem ocorrer sobre alternativas pautadas por meio de normas técnicas de planejamento e
construção ditadas pela Ciência do Urbanismo.
Além disso, o urbanismo também é exercido por normas jurídicas de
conduta social, exigidas e impostas pelo ordenamento legal vigente, já que a ordenação dos
espaços, das ruas, das construções, e as exigências do fazer ou não-fazer para conseguir
articular a cidade, se desenvolvem por meio de medidas estatais, dada a proporção de
intervenções que têm de haver no domínio privado.
Nesse sentido, necessária a transcrição do entendimento de José Afonso da
Silva sobre a concepção de urbanismo:
6
Cf. BENEVOLO, Leonardo. Aux Sources de l’Urbanisme Moderne. Trad. de André e Frances Decamps. Paris,
Horizons de France, 1972, p. 6 e 72. Apud. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 28-30.
16
Concebeu-se “urbanismo”, inicialmente, como arte de embelezar a cidade. Esse
conceito, porém, evoluiu no sentido social, tanto quanto evoluíra o conceito de
“cidade”, que tende a expandir-se além do perímetro urbano. Assim concebido, o
urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objetivo é
a organização do espaço urbano visando ao bem-estar coletivo – através de uma
legislação, de um planejamento e da execução de obras públicas que permitam o
desempenho harmônico e progressivo das funções urbanas elementares: habitação,
trabalho, recreação do corpo e do espírito, circulação no espaço urbano.7
Essa concepção formara-se nos Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna (CIAM), consolidando-se na Carta de Atenas, em 1933, na qual se formularam as
funções fundamentais do urbanismo: habitação, trabalho, recreação e lazer.
As visões da Carta de Atenas (1933) influenciaram profundamente as
cidades. A proposição da cidade funcional como crítica às cidades tradicionais definia funções
básicas, em contraponto à considerada obsolescência do tecido urbano existente.
Embora a primeira versão desse documento tenha dado ensejo a projetos
urbanísticos de setorização e separação das atividades de habitar, circular, habitar e recrear, as
últimas versões da Carta de Atenas já incorporaram novos valores, como o do
desenvolvimento sustentável.
Aliás, ao assentar as funções do urbanismo, a Carta de Atenas expressa a
convicção de que, nas cidades, o equilíbrio é possível – e, por isso, necessário. Deve-se buscar
o equilíbrio das várias funções entre si (moradia, trabalho, lazer, circulação etc.), de modo que
seja assegurada ao homem moradia saudável, isto é, local onde o espaço, o ar puro e o sol
(condições essenciais da natureza) lhe sejam largamente assegurados. Da mesma forma, o
urbanismo deve organizar o local de trabalho, de maneira que, em vez de ser uma sujeição
penosa, ele retome seu caráter de atividade humana natural. Além disso, o lazer, com técnicas
e políticas que assegurem as instalações necessárias à boa utilização das horas livres, também
é foco de preocupação do urbanismo. E, por último, há de se estabelecer o contato entre essas
diversas funções mediante uma rede circulatória voltada ao bem-estar da população,
consistente na abertura de avenidas, vias, ciclovias etc.
De uma forma ou de outra, cabe a advertência feita por Rafael Augusto
Silva Domingues, no sentido de que não se pode deixar de considerar que a Carta de Atenas
(vista pela dogmática jurídica como postulado do Direito Urbanístico) foi produzida a partir
7
Ibid., p. 30.
17
de uma concepção filosófica (movimento modernista) que não necessariamente reflete os
contornos do atual ordenamento jurídico brasileiro. Nesse contexto, explica o autor:
É possível perceber já aqui, como fruto dos novos valores constitucionais, que o
próprio Estatuto da Cidade concretiza, já contempla outras funções das cidades não
previstas na “Carta de Atenas”, a exemplo do direito ao saneamento ambiental, que
concretiza a proteção constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
8
(art. 225).
Assim, para o autor, projetos futuristas, concebidos a partir do pensamento
filosófico modernista, com suas divisões em setores administrativo, residencial e comercial,
etc., não se sustentam, sob o ponto de vista jurídico, se não observarem as funções sociais da
cidade tal como foram eleitas pelo atual ordenamento jurídico brasileiro.9
A concepção de urbanismo teve ainda várias contribuições advindas de
construções teóricas formuladas na década de 60 por Henri Lefebvre e de agendas políticas de
reforma urbana estabelecidas por segmentos da sociedade civil nos anos 80. A caminhada
segue com os diálogos realizados nos anos 90 entre ativistas de direitos humanos,
ambientalistas,
organizações
não
governamentais,
movimentos
populares
urbanos,
autoridades nacionais e organismos internacionais nas Conferências Globais das Nações
Unidas como a do Meio Ambiente, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro, e a dos
Assentamentos Humanos (Habitat II), no ano de 1996, na cidade de Istambul, nas quais foram
introduzidos componentes, respectivamente na Agenda 21 Global e na Agenda Habitat
(documentos oficiais destas conferências), que se traduzem em pautas irrenunciáveis na
implementação de uma política de desenvolvimento urbano, como é o caso, por exemplo, da
sustentabilidade ambiental, da gestão democrática da cidade e do direito à moradia.10
Dito isso, é certo que o urbanismo e o meio ambiente não podem ser mais
vistos como duas entidades díspares e conflitantes. Portanto, parte-se de uma visão urbanística
integrada ao meio ambiente, fortalecendo a ideia de que os temas “desenvolvimento urbano” e
“meio ambiente” designam fenômenos interdependentes. Por isso, a visão de urbanismo
engloba atualmente a busca de um desenvolvimento urbano mais sustentável, com a previsão
8
DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico – limites da
autonomia municipal. Belo Horizonte: Editora Forum, 2010, p. 32.
9
Ibidem.
10
Cf. SAULE JÚNIOR, Nelson. A relevância do direito à cidade na construção de cidades justas, democráticas e
sustentáveis. In: SAULE JÚNIOR, Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias jurídicas das políticas urbanas.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 30.
18
de mecanismos que assegurem a participação dos habitantes na gestão das cidades, para que
todos tenham um padrão de vida digno mediante o acesso a uma moradia adequada, ao
trabalho, ao lazer e ao meio ambiente equilibrado.
1.2 A atividade urbanística
A atividade urbanística consiste na ação destinada a realizar os fins do
urbanismo. Ou seja, ela se consubstancia nas intervenções do Poder Público com o objetivo
de organizar o espaço urbano e as áreas que, de alguma forma, interfiram na qualidade de vida
da população urbana.
Para José Afonso da Silva a atividade urbanística compreende momentos
distintos que se acham ligados entre si e em recíproca dependência, tendo por objeto: a) o
planejamento urbanístico; b) a ordenação do solo; c) a ordenação urbanística de áreas de
interesse especial; d) a ordenação urbanística da atividade de edificar; e e) os instrumentos de
intervenção urbanística.11
Como se nota, a atividade urbanística pressupõe a realização de adequado
planejamento, pois quem impulsiona e exerce essa ação de ordenação precisa ter consciência
do que quer alcançar com tal influxo, tendo uma ideia clara do que seja desejável para o lugar
ou território em questão, mas também do que, razoavelmente, pode conseguir com os meios
de que dispõem.12
Há de se acrescentar que nenhuma política pública específica pode existir
isoladamente, devendo coordenar-se com a política geral do Estado e com as inúmeras
setoriais (transportes, saneamento, energia, agrária etc.), como vem delineado em vários
preceitos constitucionais, como os dos arts. 174, § 1º, 21, IX e XX e 182.
Nesse sentido, Carlos Ari Sundfeld destaca que “um dos aspectos da política
urbana é o da sua “coordenação externa”, isto é, a definição dos modos pelos quais se
compatibilizará com as demais políticas”. Ainda, de acordo com o autor, a Constituição é que
viabiliza essa coordenação, através de um sistema de racionalidade decisória, em que as
normas e decisões em matéria urbanística têm sua validade condicionada ao respeito a normas
e decisões de maior abrangência, tanto no sentido territorial (a política espacial da cidade deve
compatibilizar-se com a política nacional de ordenação do território) como temático (a
política espacial da cidade deve compatibilizar-se com a genérica política de
11
12
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 31-32.
Ibidem.
19
desenvolvimento). Indo mais longe, o autor afirma que “a Constituição Federal de 1988 fez
do planejamento o grande instrumento do direito urbanístico, articulando competências
federais, estaduais e municipais”. 13
Como desdobramento e complemento do planejamento urbano (plano), vem
a ordenação do solo, com a disciplina pertinente ao uso e ocupação dos espaços habitáveis, o
que exige instrumentos de intervenção urbanística destinados a possibilitar a execução do
plano e a ordenação do solo (como é o caso, por exemplo, da expropriação para fins
urbanísticos, aumento da tributação territorial sobre lotes etc.).
Outro momento importante da atividade urbanística é a preservação do meio
ambiente e cultural, com a ordenação de áreas de interesse especial (interesse ambiental,
histórico-cultural, turístico etc.), bem como a clássica atividade de controle das edificações,
com a análise dos projetos de edificação (avaliação da compatibilidade com o plano e as
regras de uso e ocupação do solo).
A atividade urbanística, por implicar intervenção na propriedade privada e
na vida econômica e social das cidades, deve contar com aparato legal para o alcance dos
objetivos propostos pelo Poder Público, desenvolvendo-se nos estritos limites jurídicos.
Assim, a atividade urbanística está sujeita ao princípio da legalidade, vez que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, II),
perfazendo-se através de normas jurídicas que constituem o objeto do direito urbanístico.
1.3 O direito urbanístico
1.3.1 Considerações preliminares
A necessidade de uma convivência ordenada impõe-se como condição para
a subsistência da sociedade. O direito corresponde a essa exigência ordenando as relações
sociais através de normas obrigatórias de organização e comportamento humano.
Não por outro motivo, André Franco Montoro define o direito como sendo
uma ciência normativa, humana, moral cuja finalidade específica é ordenar a conduta social
dos homens, no sentido da justiça.14
13
SUNDFELD Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais, p. 50-51.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999,
p. 83.
14
20
Aliás, há de se registrar que a cidade, como espaço da vida humana em
sociedade, é o ambiente interpessoal de comportamentos que provocou a existência de regras
de convivência social, das mais simples às mais complexas.
Nesse contexto, as regras de cunho urbanístico surgiram com a necessidade
de organizar a convivência entre pessoas que se fixavam em uma mesma localidade. Observase, ainda, que o desenvolvimento de normas com conteúdo de ordenação do espaço urbano
ocorreu paralelamente ao fortalecimento da postura interventora do Estado na organização
espacial das cidades, acompanhando as transformações que se vinham processando na esfera
do direito de propriedade, especialmente no início do século XX.
Ocorre que o direito é um produto histórico, reflexo da evolução da
sociedade. Ou, mais que isso, seu caráter de historicidade é fundamental para o manuseio de
seus institutos e conceitos principais. Assim, ao mesmo tempo em que se veem novos direitos
emergindo, direitos preexistentes sofrem renovações frequentes.
Com a recente positivação de alguns direitos difusos, antigos direitos têm
seu conteúdo revisto e readaptado à realidade emergente. O atual perfil do direito urbanístico,
por exemplo, é fruto da redefinição do direito de propriedade e da incorporação de novos
valores ao ordenamento jurídico.
Nesse aspecto, como fenômeno social, o direito não pode ser entendido
como mera abstração, não é invariável, nem intocável, pois evolui com a sociedade.
Aliás, o fenômeno da normatização dos direitos fundamentais é explicado
por Bobbio da seguinte maneira:
uma passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus, que foi o
primeiro sujeito ao qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) – em outras
palavras, da ‘pessoa’ -, para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as
minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (como no atual
debate, entre filósofos da moral, sobre o direito dos pósteros à sobrevivência); e,
além dos indivíduos humanos considerados singularmente ou nas diversas
comunidades reais ou ideais que os representam, até mesmo para sujeitos diferentes
dos homens, como os animais.
15
15
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 69.
21
Segundo o autor, a multiplicação dos direitos ocorreu por um aumento na
quantidade de bens a serem protegidos pelo direito, assim como na quantidade de sujeitos e de
status do indivíduo.
E esse cenário trouxe mudanças ao urbanismo, pois, atualmente, a atividade
urbanística se faz cada vez mais necessária, implicando o surgimento de normas jurídicas para
regulá-la e fundamentar a intervenção no domínio privado, constituindo o que a teoria jurídica
denomina de “direito urbanístico”, em seu sentido objetivo.
A propósito, José Afonso da Silva aponta que o direito urbanístico pode ser
analisado sob dois aspectos: “(a) o direito urbanístico objetivo, que consiste no conjunto de
normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público destinado a ordenar os espaços
habitáveis – o que equivale a dizer: conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade
urbanística; (b) o direito urbanístico como ciência, que busca o conhecimento sistematizado
daquelas normas e princípios reguladores da atividade urbanística”. 16
Nota-se, assim, que o autor faz uma correta distinção entre ciência do direito
e direito positivo em si, definindo o campo de atuação de cada qual, para a análise do direito
urbanístico.17
Como se pode perceber, o direito urbanístico é fruto da evolução dos
direitos e seu conteúdo constitucional identifica-o como um direito de natureza difusa. É um
produto histórico, complexo, que não se compatibiliza tão somente com as esparsas
ordenações da atividade edilícia previstas em legislações municipais, como era o cenário
anterior à Lei Federal n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) e à Constituição de 1988.
Além disso, mergulhado na complexidade de um mundo globalizado, podese afirmar que o direito urbanístico atual sofre um processo de redefinição de seus conceitos e
de suas práticas, em que a interação com outras disciplinas passa a fazer parte do seu núcleo
teórico e serve de fundamento para a sua aplicação, aflorando-se preocupações do urbanismo
voltadas à qualidade de vida, à proteção do patrimônio natural, histórico, paisagístico e
cultural, e à participação da sociedade na definição dos destinos da cidade.
16
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 37.
Na lição de Paulo de Barros Carvalho “o Direito positivo é o complexo de normas jurídicas válidas num dado
país. À Ciência do Direito cabe descrever esse enredo normativo, ordenando-o, declarando sua hierarquia,
exibindo as formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus
conteúdos de significação”. Mais adiante conclui o autor que “o direito posto é uma linguagem prescritiva
(prescreve comportamentos), enquanto a Ciência do Direito é um discurso descritivo (descreve normas
jurídicas)” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 18. ed. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 23).
17
22
1.3.2 Objeto do direito urbanístico
Com efeito, a partir de um enfoque dogmático-normativo, tem-se como
objeto do direito urbanístico a legislação constitucional e infraconstitucional que interfere,
direta e indiretamente, na qualidade de vida da população (especialmente a urbana),
abrangendo o ordenamento físico ou territorial e as atividades econômico-sociais.
Essa estrutura normativa do urbanismo (atividade urbanística) inclui o
planejamento, a ordenação do solo, a ordenação urbanística de áreas de interesse especial, a
ordenação urbanística da atividade edilícia, e os sistemas de elaboração, gestão e de
fiscalização da atividade urbanística.
Como complementação, é importante destacar que a própria Constituição
prevê duas espécies de competência na matéria de urbanismo, quais sejam, a competência
legislativa e a competência material. Aquela se dá através da expedição de atos genéricos e
abstratos, ou seja, de normas jurídicas, enquanto nesta se identificam atos concretos de efeitos
imediatos, ou seja, atos jurídicos urbanísticos.
Justamente por isso, a função urbanística ocorre também através da prática
de atos materiais (de execução), podendo-se concluir que o direito urbanístico não tem como
objeto apenas as normas jurídicas, mas, também, os atos e fatos jurídicos urbanísticos.
A propósito, José Afonso da Silva propõe uma classificação de atos e fatos
jurídicos urbanísticos da seguinte forma: a) atos urbanísticos procedimentais, que são os que
se ordenam num procedimento urbanístico, como os atos integrantes, por exemplo, de um
plano de reurbanização; b) atos urbanísticos isolados, aqueles que não se inserem num
procedimento, como um decreto que, de acordo com a lei, fixa as zonas de uso ou estabelece
os limites da zona urbana; os atos de aprovação de um plano de arruamento ou de loteamento;
um certificado de uso do solo; um alvará de licença para construir; o “habite-se”; c) fatos
urbanísticos operacionais, que são aqueles que, num conjunto sucessivo, integram as
operações materiais de execução de procedimento urbanístico, como os de execução de um
plano de reurbanização; d) fatos urbanísticos isolados, como a abertura de uma rua ou seu
fechamento, seu alargamento, seu estreitamento, seu rebaixamento ou sua elevação, com
interferência no nivelamento ou no alinhamento dos imóveis privados.18
Nessa linha, o direito urbanístico abrange, de forma ampla, não só as
intervenções e atividades urbanísticas, mas todo o referencial contido, implícita ou
18
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 46-47.
23
explicitamente, nos fenômenos urbanos, o que amplia consideravelmente a concepção
tradicional de tal ramo do direito, mais vinculada às intervenções e ao planejamento.19
Como consequência, a nova ordem jurídico-urbanística permite a devida
disciplina e o controle jurídico dos processos de uso, ocupação, parcelamento e
desenvolvimento urbano, tendo como objeto as normas referentes ao planejamento urbano, ao
direito à moradia, à preservação ambiental, à captura das mais-valias urbanísticas, à
regularização fundiária de assentamentos informais consolidados, entre outras.
É possível perceber, desde já, que o direito urbanístico atrai para seu âmbito
de incidência alguns bens juridicamente protegidos por outros ramos do direito, como o
direito de propriedade e a proteção ambiental nos núcleos urbanos.
De fato, é de interesse do direito urbanístico a análise da propriedade urbana
sob o ponto de vista do cumprimento da sua função social (uso da propriedade de acordo com
o ordenamento do solo determinando pelo plano diretor de cada cidade), bem como de sua
função ambiental (elementos e aspectos ambientais inseridos territorialmente na vida urbana).
Assim, o direito urbanístico tem como preocupação principal a ocupação dos espaços
habitáveis e, nesse sentido, criou medidas específicas para que essa ocupação se dê da forma
mais adequada e saudável possível.
É o que assinala Daniela Campos Libório Di Sarno:
A inserção do meio ambiente natural no Direito Urbanístico ocorre pela proteção
ao meio ambiente natural inserido no contexto urbano. Essa proteção pode se dar
isolando-o, permitindo acesso com uso limitado, proibindo o uso ou acesso e até
estimulando o uso ou acesso adequados, com delimitação por norma jurídica que
20
proteja e resguarde certo aspecto ou o todo.
Tal dificuldade de situar o direito urbanístico dentro da Ciência Jurídica
reside, exatamente, na peculiar natureza de que se revestem as normas urbanísticas.
Disciplinando a ordenação dos espaços habitáveis, as normas urbanísticas vão interferir – de
forma mais ou menos acentuada – no direito ambiental.
Nesse sentido, há uma nítida intersecção da matéria ambiental perante o
direito urbanístico na proteção ao meio ambiente natural inserido no contexto urbano e que
19
Cf. OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano. A experiência do plano
diretor de Porto Alegre/2009. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Programa de Pósgraduação em Planejamento Urbano e Regional, 2009, p. 88.
20
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri: Manole, 2004, p. 13-14.
24
repercute, por exemplo, na questão da competência para legislar sobre questões ambientais e
urbanísticas.
Nesse contexto, o decreto estadual n. 2.283/2009, que regulamenta a Lei n.
8.588/06, do Estado de Mato Grosso,21determina os limites para a utilização de defensivos,
estabelecendo que as aplicações terrestres de agrotóxicos devem ser realizadas respeitando a
distância mínima de 300 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e de mananciais para a
captação de água para abastecimento da população (art. 46). Acontece que alguns planos
diretores de municípios inseridos em regiões agrícolas do estado estabelecem limites maiores,
o que gera alguns questionamentos sobre a constitucionalidade de tais dispositivos, haja vista
o disposto no § 2º, do art. 24 da CF, que estabelece a competência suplementar dos Estadosmembros (competência concorrente) para legislar na proteção do meio ambiente e da saúde.
Essa exegese há de ser vista com parcimônia, pois a questão ora em comento deve ser tratada
por normas urbanísticas, já que tais atividades repercutem diretamente na qualidade de vida
da população urbana, caso sejam realizadas muito próximas às cidades. A competência dos
municípios para tratar do assunto, através de normas urbanísticas, decorre não apenas do
interesse local estampado no art. 30, inciso I, mas especialmente do art. 182 da CF. Assim,
não se vislumbra óbices para que o plano diretor disponha sobre limites para a realização da
atividade em tela tendo como objetivo proteger a qualidade de vida da população local.
À luz dessas considerações, pode-se afirmar que o direito urbanístico como
ramo do direito público tem por objeto normas e atos que visam a harmonização das funções
do meio ambiente urbano, na busca da qualidade de vida da coletividade.
Cumpre ressaltar que o direito urbanístico começa a ter seus próprios
princípios jurídicos, resultado de uma especialização da matéria, o que sinaliza sua autonomia
em relação aos demais ramos do Direito.
1.3.3 Princípios do direito urbanístico
Conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello “diz-se que há uma
disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e
regras que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito”.22
21
Disponível em: <htpp://www.sema.mt.gov.br/index.php?option=com_docman&Itemid=173>. Acesso em: 11
nov. 2011.
22
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
52.
25
Por certo, só há de falar em direito urbanístico no pressuposto de que
existam princípios que lhe são peculiares e que guardem entre si uma relação lógica de
coerência e unidade. Ou seja, o direito urbanístico como dogmática busca, por meio de sua
aplicação, proteger determinados bens, interesses e valores considerados relevantes para uma
dada sociedade, dotada em seu cerne de opções ideológicas, éticas e estruturais próprias de
um determinado modelo de Estado. Isso só é possível graças a um sistema firmado em
princípios.
Os princípios são viabilizados por meio de regras. Enquanto os princípios
expressam valores que informam o sistema jurídico, dotados, portanto, de abstratividade, as
regras buscam assegurar concretude ao sistema, criando mecanismos que assegurem
observância e aplicação à valoração eleita.
Nas palavras de Gomes Canotilho, “os princípios são normas jurídicas
impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante
os condicionamentos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem
imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem), que é ou não é cumprida
(nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é
conflitual (Zagrebelsky), a convivência das regras é antinómica; os princípios coexistem, as
regras antinómicas excluem-se”.23
Desse modo, o conflito normativo, as antinomias, ocorrem entre regras, não
entre princípios. E os princípios atuam como núcleo informador do sistema, orientando o
ordenamento jurídico.
O direito urbanístico, como disciplina recente, ainda ressente-se do pouco
desenvolvimento dos seus conceitos e institutos. Nesse sentido, ligada à problemática de sua
autonomia, tem-se a relativa à identificação de seus princípios específicos.24
Cabe ressaltar, ainda, que a legislação disciplinadora do urbanismo no
Brasil é escassa, esparsa e pouco didática, o que dificulta extração de princípios informadores
dessa matéria.
Com efeito, indicar os princípios da legalidade, da supremacia do interesse
público, da moralidade, da publicidade, entre tantos outros, segundo Daniela Campos Libório
Di Sarno, “faz com que todas as normas de Direito Público sejam produzidas e executadas nas
23
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra,
Almedina, 2003, p. 1.161.
24
O direito urbanístico desenvolveu-se mais em países que já tinham tradição no tocante à ação governamental
no campo do desenvolvimento urbano, ou que sentiram primeiro ou mais intensamente as consequências do
processo de urbanização, como demonstra a doutrina urbanística desenvolvida na Espanha, na França e na Itália
(Cf. DALLARI, Adilson. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 20).
26
mesmas conformidades, dando segurança jurídica ao Estado e à sociedade”. Porém,
complementa a autora, “não especializa o tratamento a ser dado para certa matéria”, ou seja,
não contribui para atribuir autonomia à matéria enfocada.25
Mesmo entre os autores de países cuja legislação urbanística é objeto de
estudo há considerável tempo, são poucos os que se aventuraram a apontar tais princípios.
José Afonso da Silva, por exemplo, utiliza-se das lições do espanhol
Antônio Carceller Fernandez para indicar como princípios de direito urbanístico a função
pública, a conformação da propriedade urbana, a coesão dinâmica das normas urbanísticas, a
afetação das mais-valias ao custo da urbanificação, e a justa distribuição dos benefícios e ônus
derivados da atuação urbanística.26
É imperioso ressaltar que as considerações sobre o tema feitas por José
Afonso da Silva conseguem realmente extrair vários princípios específicos do direito
urbanístico, deixando à margem de suas instruções princípios gerais aplicáveis a todos os
ramos da Ciência Jurídica, de forma coerente com o panorama trazido ao disciplinamento das
questões urbanísticas pela Constituição de 1.988 e pela Lei 10.257/2.001.
Assim, prefacialmente, há de se identificar o conceito de função pública. Tal
princípio indica que a atividade urbanística é um “poder-dever” (não uma mera faculdade) e
como tal deve ser exercido fundamentalmente pelo Poder Público, que se encontra respaldado
na própria estrutura apontada pela Constituição Federal (por exemplo, o art. 30, VIII, e o art.
182). Por meio desta função, a ordenação da atividade urbana é essencialmente pública,
cabendo a ela promover o planejamento, a gestão e o controle das atividades com reflexos na
ocupação, uso e transformação do solo, através de uma estrutura própria.
Daniela Campos Libório Di Sarno esclarece que “não está explicitado em
qualquer texto legal de forma clara e objetivada que a função pública seja um princípio
jurídico”. No entanto, adverte a autora que “o entendimento de que o Poder Público deve
buscar interesses coletivos ou de essência pública é encontrado em toda a organização de seus
poderes e, por consequência, suas funções”.27
Com isso, afirma-se haver casos em que o dever não aparece de forma
explícita na norma jurídica, mas decorre da lógica do sistema. Tais casos são mais frequentes
quando se trata de dever a ser cumprido pelo Estado, pois os agentes que exercem atividade
estatal atuam por intermédio de função administrativa, a qual nada mais é que o dever de
25
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 45-46.
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 45.
27
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 45.
26
27
cumprir o estabelecido em lei para o alcance do interesse público previsto no ordenamento
jurídico.
O dever jurídico relacionado ao planejamento, por exemplo, é um dos
deveres da boa administração, que deve ser levado à implementação pelo Poder Público com
fundamento nos princípios do art. 37, caput, da Constituição Federal, em especial, no
princípio da eficiência.
Outro princípio apontado por José Afonso da Silva é o da conformação da
propriedade urbana que significa, em linhas gerais, que o Poder Público, através da atividade
urbanística, deve condicionar o direito de propriedade o que, de certa forma, o insere no
princípio da função social da propriedade (positivado por meio de diversos artigos do texto
constitucional, como o art. 5º, XXIII; art. 170, III; art. 182, §§ 2º e 4º; arts. 184 e 186).
Vale consignar que o direito urbanístico é todo construído sobre um
conceito funcional de propriedade imóvel, que tem como núcleo central a função social da
propriedade.28 Nesse sentido, tal é a relevância e a extensão do princípio da função social da
propriedade, irradiando-se por todo o campo de incidência das normas urbanísticas, que se
pode afirmar ser este um princípio fundamental do direito urbanístico, verdadeira diretriz a
nortear toda a ordenação do território.29
A Lei Fundamental de 1988 incumbiu ao Poder Público municipal a tarefa
de implementar a política de desenvolvimento urbano, com a finalidade de ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e assegurar o bem-estar de seus habitantes
(art. 182). Para tanto, elegeu o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, como
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (§ 1º), conferindo ao
Poder Público local a faculdade de definir a função social da propriedade urbana (§ 2º).
De fato, a propriedade urbana cumpre a função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, impositivo para
cidades com mais de vinte mil habitantes (§§ 1º e 2º do art. 182). Por outro lado, a função
social da propriedade rural foi disciplinada de forma diferente. A propriedade rural cumpre a
28
A teoria da função social da propriedade tem origem em Leon Duguit, constitucionalista e administrativista
francês. Duguit procurou explicar o direito através de teorias sociológicas. Ele atacou, na sua análise, a
existência dos chamados direitos subjetivos e propôs a substituí-los pela noção de situação jurídica. O publicista
francês aplicou a sua teoria a um dos mais importantes direitos dos ordenamentos jurídicos de ordem capitalista,
o direito de propriedade, reduzindo-o a situação jurídica. Para ele, a propriedade não era um direito, mas uma
função social (Cf. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 59).
29
Cf. COSTA, Regina Helena. Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. Temas de direito
urbanístico. Coord. Adilson Abreu Dallari e Lúcia Valle Figueiredo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p.
121.
28
função social quando preenche os requisitos dos incisos I a IV do art. 186 da CF, submetidos
estes aos critérios e graus estabelecidos em lei. A Lei n. 8.629, de 22.2.1993, em seu art. 9º,
fixa esses critérios e graus completando a definição constitucional. Aqui, o legislador
constituinte não deixou muita margem de poder ao legislador infraconstitucional,
praticamente predefinindo a função social da propriedade rural.
O princípio da coesão dinâmica das normas urbanísticas, por sua vez, tem
como pressuposto a necessidade de atuação generalizada e global para que haja eficácia na
atuação urbanística, o que se observa, especialmente, na dinâmica do planejamento.
Aliás, por oportuno, este princípio constitui o fundamento, dentre outras
coisas, do planejamento urbano, a exemplo do que prevê o art. 2º, inciso IV do Estatuto da
Cidade. Deve ser frisado que as disposições constitucionais encartadas no capítulo reservado
à ordem econômica (Capítulo I do Título VII) impõem o dever de planejar ao Poder Público.
Rafael Augusto Silva Domingues, analisando e sintetizando o conceito de
diversos autores, chegou às seguintes conclusões sobre a repercussão deste princípio:
Nesse passo, no nosso entendimento, a ausência de planejamento urbano macula
na própria origem (a priori) a norma ou ato urbanístico, independentemente do
animus do administrador. Em outras palavras, a expedição, por exemplo, de ato
urbanístico sem a visão do conjunto, sem o devido planejamento, pode ser
considerada objetivamente ilegítima, passível inclusive de anulação judicial.
Em suma, a realização de desapropriações, a aprovação de loteamentos, a
regularização de áreas urbanas em situação irregular, a doação de áreas públicas
para empreendimentos privados, enfim, o desempenho da atividade urbanística sem
o devido planejamento goza, no mínimo, de presunção de ilegitimidade
(ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o caso). Este é, no nosso
entendimento, o grande elemento diferenciador do Direito Urbanístico em face do
Direito Administrativo.30
Quanto ao princípio da afetação das mais-valias ao custo da urbanificação31
tem-se a dizer que ele tem como fundamento a ideia de satisfação pelos proprietários dos
30
DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos Estados-membros no direito urbanístico: limites da
autonomia municipal, p. 56-57.
31
De distinto conteúdo são os termos urbanização e urbanificação. Como elucida José Afonso da Silva,
urbanização é o processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural. Já a
urbanificação, para o autor, traduz-se no processo de correção da urbanização. (Cf. SILVA, José Afonso da.
Direito urbanístico brasileiro, p. 26-27).
29
gastos decorrentes das obras e intervenções promovidas pelo Poder Público que lhes tenham
trazido benefícios.
Esse princípio tem origem no princípio da igualdade, vez que os
proprietários de imóveis urbanos devem arcar com o ônus financeiro da urbanificação na
exata proporção dos benefícios dela decorrentes diretamente. Se é verdade que a
urbanificação traz benefício genérico a toda a comunidade local, não é menos verdade que ela
traz benefícios específicos e diretos para os proprietários de imóveis abrangidos pelo plano de
urbanização, a ser executado com recursos provenientes da comunidade em geral.
Na Constituição Federal de 1988, por exemplo, o inciso II, do art. 145 prevê
o instituto da contribuição de melhoria que nada mais é do que o retrato desse princípio
concretizado no Código Tributário Nacional (arts. 81 e 82) e no próprio Estatuto da Cidade
(art. 2º, XI; art. 4º, IV, “b”).
A justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística é
também princípio consagrado na nossa legislação urbanística e é consubstanciado no fato de
que deve haver uma compensação pelos ônus e benefícios decorrentes da urbanificação.
O Estatuto da Cidade prevê expressamente este princípio (art. 2º, inciso IX),
que também pode ser vislumbrado através do Estudo de Impacto de Vizinhança (art. 37).
Como se vê, os princípios adrede apontados, extraídos das lições de José
Afonso da Silva, constituem-se num bom ponto de partida na busca de outros princípios
informadores do direito urbanístico, como é o caso, dentre outros, do princípio da função
social da cidade, introduzido na Constituição de 1988 pelo caput do artigo 182 que atribui ao
Município, no desenvolvimento da política urbana, a observância das diretrizes gerais fixadas
em lei. Aliás, a lei que fixa as diretrizes gerais desta política e que tem entre seus objetivos
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade é o Estatuto da Cidade.
Assim, o desenvolvimento destas funções deve ser compreendido como o
pleno exercício do direito a cidades sustentáveis, instituído no Estatuto da Cidade.32
De qualquer modo, a edição de legislação nacional orgânica e sistemática,
hábil a traçar o perfil dos institutos urbanísticos de maneira mais clara e coerente, é que
32
Para Nelson Saule Júnior, o caput do art. 182 da Constituição nos ajuda a identificar o significado deste
princípio, ao vincular o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus
habitantes, que são os objetivos da política urbana. Para o autor, com esta vinculação dos objetivos, o interesse
que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos habitantes da cidade, o que abrange
qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, para ele, “não há o estabelecimento de categoriais entre os
cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social,
condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade” (SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos
assentamentos irregulares. Sérgio Antônio Fabris Editor: Porto Alegre, 2004, p. 221).
30
possibilitará os avanços doutrinários necessários para o estabelecimento dos princípios
informadores do direito urbanístico no Brasil.
1.3.4 Perfil constitucional do direito urbanístico
Além de manterem-se fiéis aos axiomas liberais de limitação do poder
político e de garantia de direitos fundamentais, as Constituições da maioria dos Estados
contemporâneos incorporaram ao ordenamento jurídico alguns valores e fins que dão sentido
a formas básicas de ações políticas e jurídicas.
É o que enfatiza Josep Aguiló:
La constitución del Estado constitucional há seguido la estrategia del
constitucionalismo regulativo, de modo que sus valores y fines se han incorporado
a la constitución em la forma de principios regulativos de la acción politica
legitima. Así, las constituciones han incorporado los derechos y principios liberales
(están comprometidas com la erradicación del autoritarismo) y los derechos y
principios del Estado social (están comprometidas com la erradicación de la
exclusión social). Todos estos elementos, en mayor o menor medida, son
reconocibles, me parece, en las constituciones de los Estados que llamamos
constitucionales.
33
Assim, entre outros assuntos, as atuais Constituições voltam-se ao
alargamento e ao aprofundamento dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão, à
enunciação dos fins essenciais (nos domínios econômico, social e cultural) do Estado, e à
consagração de vários ramos do direito (e dos seus princípios essenciais).
A propósito, com base na vontade coletiva de embutir nos textos
constitucionais regras e subprincípios densificadores de princípios materiais de maior
envergadura (axiológica e funcional) é que as Constituições passaram também a normatizar
assuntos que, até então, eram próprios de outros ramos jurídico-positivos.
É o que destaca Carlos Ayres Britto:
33
AGUILÓ, Josep. Sobre la Constitución del Estado Constitucional. Constitución: problemas filosóficos.
Francisco J. Laporta (editor). Ministerio de La Presidencia – Secretaría General Tecnica. Centro de Estudios
Politicos e Constitucionales. Madrid, 2003, p. 156.
31
Veja-se que as primeiras Constituições escritas, em matéria de direitos subjetivos
oponíveis ao Estado, somente continham direitos individuais. Ainda assim, elas
declaravam tais direitos, mas não os garantiam. Passaram a garanti-los, com o
tempo, mas não se dispunham a dar conta dos direitos sociais (invenção do
constitucionalismo do México, da Rússia e da Alemanha, já nos anos de 1917,
1918 e 1919, respectivamente). E só depois da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (Organização das Nações Unidas) é que as Leis Fundamentais de cada
povo soberano foram ganhando uma funcionalidade fraternal (pelo decidido
combate aos preconceitos sociais e pela afirmação do desenvolvimento, do meio
ambiente e do urbanismo como Direitos Fundamentais), que já é uma função
verdadeiramente transformadora ou emancipatória.34
E procurando responder ao grande relevo social e econômico que, nas
últimas décadas, vem assumindo o direito urbanístico, bem como a sua íntima relação com a
garantia da qualidade de vida e da dignidade dos moradores da cidade, a Constituição Federal
de 1988 inseriu um acervo específico de regras e princípios desta área do direito.
Assim, pela primeira vez na ordem jurídica constitucional, estabelece-se um
capítulo voltado à política urbana, contendo um conjunto de princípios, responsabilidades e
obrigações do Poder Público e de instrumentos jurídicos e urbanísticos para serem aplicados e
respeitados com o objetivo de reverter o quadro de degradação ambiental e de desigualdades
sociais nas cidades.
Nota-se que o direito urbanístico deixa de ser um mero instrumento de
ordenação, passando a cumprir um papel ativo como agente de transformação social, sofrendo
um processo de redefinição de seus conceitos. Em outros termos, esse sistema de positivação
constitucional do direito urbanístico o insere como um dos instrumentos de realização da
justiça e do bem-estar da população (e não somente como estrutura de conformação legislativa
da intervenção do Estado desprovida de propósitos e valores), o que o fundamenta em
princípios como o da justiça social, da igualdade, da democracia, da participação popular e da
sustentabilidade ambiental.
Tal situação vem a ser reforçada com a edição da Lei n. 10.257, de
10.07.2001, autodenominada Estatuto da Cidade, a qual deu ênfase à obrigação do Estado em
estabelecer um ordenamento territorial adequado, por meio de um sistema de planejamento e
gestão que garanta o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana,
34
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 179.
32
prevendo, ainda, a participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da
cidade (inciso III, do artigo 4º).
Desse modo, o marco regulatório das cidades oferece um conjunto inovador
de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, bem como uma nova concepção de
planejamento urbano que envolve todos os entes federativos, partindo de uma leitura ampla de
urbanismo que certamente rompe as fronteiras da cidade.
Além da tradicional determinação das matérias do direito urbanístico, como
aquelas relativas à ordenação do uso do solo, a Constituição Federal ao empregar a expressão
“política urbana”, em capítulo específico, direciona ao entendimento de que qualquer matéria
referente às políticas de planejamento territorial e de intervenção nos espaços urbanos, bem
como as normas sócio-ambientais relacionadas ao território (e que tenham repercussão no
ambiente urbano), sejam objetos do direito urbanístico.
Portanto, partindo-se da ideia de que o planejamento urbano não pode
restringir-se à figura do plano diretor, o ordenamento jurídico estabelece, no âmbito do
planejamento, arranjos institucionais entre os níveis de governo com o objetivo de promover a
elaboração e a implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente as que podem
ser subsidiadas na articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de
desenvolvimento social e econômico.
2.
A
DISCRIMINAÇÃO
CONSTITUCIONAL
DAS
33
COMPETÊNCIAS
URBANÍSTICAS
2.1 Aspectos gerais do federalismo
A repartição de competências compõe uma das características do
federalismo, de modo que, para o seu estudo, torna-se necessário apresentar os aspectos
comuns desta forma de Estado.
O termo federalismo provém do latim foedus, que significa pacto ou aliança
de estados.35 Em essência, um arranjo federal é uma parceria estabelecida e regulada por um
pacto, o que prevê um tipo especial de divisão de poder entre os entes.
O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização
político territorial do poder, surgido no século XVIII com a promulgação da Constituição dos
Estados Unidos de 1787.36A sua instituição é favorecida pela presença de heterogeneidades
que dividem uma determinada nação, sendo elas de cunho territorial (grande extensão e/ou
enorme diversidade física), étnico, socioeconômico (desigualdades regionais), nas quais se
torna necessária a instituição de uma forma compartilhada de organização político territorial
do poder que, ao mesmo tempo, mantenha a integridade territorial do país.
Falar em federalismo é falar em forma de Estado. O federalismo é uma das
formas de Estado existentes no constitucionalismo, na qual se objetiva distribuir o poder,
preservando a autonomia dos entes políticos que compõem a federação.37 Pode-se afirmar que
no federalismo convivem num mesmo território uma ordem jurídica global e outras ordens
jurídicas parciais, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências.
A federação essencialmente busca conjugar as vantagens da autonomia
política com outras decorrentes da existência do poder central. Desse modo, a autonomia das
35
Para Michel Temer, é da união, da aliança, do pacto entre os Estados que surge a Federação (Cf. TEMER,
Michel. Elementos de direito constitucional, 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 59).
36
As bases dos federalismo moderno encontram-se na compilação dos artigos publicados por Alexander
Hamilton, James Madison e John Jay no jornal Daily Advertiser, recebendo o nome de The Federalist Paper.
37
A forma de Estado é “o modo do exercício do poder político em função do território” (SILVA, José Afonso
da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, .p. 98). Acrescente-se que
sob a ótica da forma geográfica de distribuição interna do exercício do poder político, Pedro Estevam Alves
Pinto Serrano, com base na doutrina nacional sobre o assunto, esclarece que não há um modelo único de Estado
unitário a ser servilmente recebido, indicando alguns tipos de Estado, a saber: Estado Unitário, Estado Unitário
Descentralizado, Estado Constitucionalmente Descentralizado, Estado Regional e Estado Federal (Cf.
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional. São Paulo: Editora
Verbatim, 2009, p. 26).
34
unidades federadas e a consequente descentralização político-administrativa são as
características mais marcantes do Estado Federal.
As instituições clássicas e paradigmáticas do federalismo que serviram de
base para a organização do Estado Federal foram o modelo norte-americano e o alemão.
A propósito, os estados que formaram o sistema de federalismo norteamericano mantiveram poderes sólidos em suas mãos, só entregando ao poder central o
expressamente enumerado no texto constitucional por eles redigido. Assim, os americanos
buscaram assegurar que o Governo Federal não se tornasse forte o suficiente a ponto de
eliminar a autonomia dos Estados-membros. A divisão entre o poder central e o poder local,
estabelecida no sistema federal norte-americano, recebeu o nome de “federalismo dual”.38
Outro modelo de estado federal que também influenciou vários
ordenamentos foi o federalismo alemão, instituído pela constituição de Weimar, de 1919, e
institucionalizado pela Lei Fundamental de 1948. Nele instituiu-se as bases do federalismo
cooperativo onde a inter-relação das instâncias de poder, bem como a colaboração delas
tornaram-se um mecanismo marcante. Em tal arranjo busca-se o desenvolvimento de
mecanismos de aproximação, cooperação, auxílio e ajuda dos governos (central e locais).39
É importante ressaltar que no federalismo cada ordem de poder detém a
capacidade de autogoverno, com raio de atuação nos terrenos político, legal, administrativo e
financeiro. No entanto, a nota distintiva do federalismo reside exatamente na existência de
direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – chamados, em alguns sistemas,
de Estados, Províncias, Cantões etc.. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados
pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato
fiador do pacto político-territorial.
Assim, do ponto de vista jurídico, a autonomia pode ser conceituada como
uma área de competência limitada pelo Direito. Ou seja, as entidades com autonomia gozam
de ampla margem de atuação (com órgãos governamentais próprios que independem do poder
central) dentro das competências que lhes são fixadas pela Constituição Federal.
Celso Ribeiro Bastos formula cuidadosa manifestação sobre o conceito de
autonomia, afirmando ser esta:
38
Cf. REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 96. Há de se acrescentar que, a partir da década de trinta, a política do
New Deal forçou o desenvolvimento de mecanismos cooperativos nos Estados Unidos, com maior penetração do
governo federal no domínio da saúde e do bem-estar social.
39
Ibid., p. 19.
35
(...) a margem de discrição de que uma pessoa goza para decidir sobre seus
negócios, mas sempre limitada essa margem pelo próprio direito. Daí porque se
falar que os Estados-Membros são autônomos, ou que os municípios são
autônomos; ambos atuam dentro de um quadro ou de uma moldura jurídica
definida pela Constituição Federal. Autonomia, pois, não é uma amplitude
incondicionada ou ilimitada de atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a
disponibilidade sobre certas matérias, respeitados, sempre, princípios fixados na
Constituição.
40
A descentralização político-administrativa, por sua vez, é um fator
importante de identificação de um Estado como federal ou não.41 Em essência, significa a
transferência de competências de um centro de poder para outro, que passa a ser o detentor
delas, cabendo ressaltar que “a transferência de competências políticas importa em atribuir ao
novo centro a possibilidade de estabelecer normas jurídicas sobre determinados pontos, ou
seja, o novo ente passa a ter capacidade legislativa, sem desprezar, é claro, a capacidade
administrativa, ou seja, a capacidade material”.42
Nesse sentido, a autonomia e a descentralização política permitem que o
Estado tenha vários centros de poder dotados de capacidade legislativa e administrativa, ou
seja, com competência política. Os estados-membros não apenas podem, por suas próprias
autoridades, executar leis, como também lhes é reconhecido elaborá-las. Em regra, isso
resulta em que se perceba no Estado Federal diversas esferas de poder normativo sobre um
mesmo território.
Por certo, a federação acarreta repartição delicada de competências entre as
unidades federativas, o que implica proibição de usurpação de atividades conferidas a outros
entes. Destaca-se que se perfaz imprescindível o estabelecimento de uma Constituição rígida,
que estabeleça um critério mais complexo de modificação das normas constitucionais, para a
manutenção de um Estado Federal.
Corroborando tal assertiva, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano
Nunes Júnior expressam-se no seguinte sentido:
40
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 474.
A simples distribuição de competências não é o bastante para configurar um Estado federativo; podem
perfeitamente existir Estados unitários descentralizados, desde que não possuam autonomia e ajam por delegação
do órgão central, bem como Estados Constitucionalmente Descentralizados, cujo ponto de diferença encontra-se
na possibilidade do poder central alterar a descentralização política apenas por alterações na Carta Magna. (Cf.
SERRANO, Pedro Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 26-27).
42
DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito
urbanístico e ambiental/ Coordenadores: Adilson Abreu Dallari e Daniela Campos Libório Di Sarno. Belo
Horizonte: Fórum, 2007, p. 76.
41
36
A repartição de competências entre as vontades do Estado, como caracterizador da
descentralização política, não vem, contudo, despida de qualquer formalidade. Ela
deve ter sede constitucional, tornando-se parte de sua essência. Não se pode pensar
em uma divisão de competências que não esteja estampada no texto constitucional,
já que, como visto, nesse ponto reside a tônica mais original do Estado Federal.
Fixada em legislação ordinária, a alteração seria de fácil operacionalidade,
tornando o pacto federativo totalmente flácido, quebrando, portanto, o ajuste sobre
o qual se assenta a idéia federalista (...).
43
A autonomia figura como critério de coexistência na federação e limite de
competência, no sentido de que a cada ente federado confere-se uma medida de atuação
determinada pela Constituição Federal, impedindo, assim, que cada um deles em sua concreta
atividade ultrapasse tal limite. Como consequência natural dessa característica há a
necessidade de assegurar que essa partilha de competências não seja subvertida no
funcionamento normal das coisas. Em outras palavras, é preciso que o disposto na
Constituição não se revele, na prática, letra morta, de modo que os conflitos que venham
existir entre os Estados-membros ou entre qualquer deles com a União possam ser resolvidos
para a manutenção da paz e da integridade do Estado como um todo.
É necessária, então, a existência de um Tribunal constitucional que controle
a repartição de competências, mantendo o pacto federativo.
A propósito, é inconcebível manter um pacto federativo com todas as
implicações dele decorrentes, sem um órgão incumbido de solucionar dúvidas, isto é, dizer os
limites de atuação de cada ente. Assim, deve esse órgão interpretar a Constituição, definindo,
entre outras coisas o que é de competência de cada um.
Além disso, o Estado Federal deve conter um dispositivo de segurança,
necessário à sua sobrevivência. Este dispositivo se constitui, na realidade, numa forma de
mantença do federalismo diante de graves ameaças. Trata-se da intervenção federal. Pela
intervenção federal, a União intervém em um ou alguns Estados onde se verifiquem graves
violações dos princípios federativos.
No Estado Federal convivem num mesmo território uma ordem jurídica
global e outras ordens jurídicas parciais. Certamente, a vontade destas deve influir na vontade
daquela, vontade que se expressa, sobretudo, por meio de leis, razão pela qual os Estados-
43
ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 263.
37
membros participam da formação da União através do Senado Federal, com representação
paritária, em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros.
Mais uma característica do Estado Federal é a possibilidade que cada ente
deve ter de se auto-organizar por meio de Constituição própria, na qual seus assuntos locais
possam ser tratados. Isso porque, a exemplo da União, cada uma das unidades federativas
dispõem de aparato organizacional próprio. As vontades parciais detêm uma forte presença
junto à vida dos cidadãos, na realização das funções de polícia, de prestação de ensino, de
prestação de serviços à saúde, e um sem-número de outras atividades, e é com essas máquinas
administrativas que o cidadão deve lidar.
2.2 O sistema federal brasileiro
O Brasil não tem acentuadas tradições federalistas. Tivemos um período
monárquico em que, formalmente, vigorava o Estado unitário44 e, após a proclamação da
República, floresceu o federalismo dualista, inspirado na Constituição norte-americana de
1787, caracterizada por uma maior expressão da autonomia dos Estados-membros.
As Constituições Federais posteriores à de 1891 promoveram a
concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento dos estados. Nesse sentido,
necessária a transcrição do entendimento de Raul Machado Horta:
As Constituições Federais posteriores à de 1891, mantendo a Federação em norma
intangível da Lei Fundamental, foram progressivamente organizando a
centralização do poder na União, que se tornou absorvente e insaciável, com a
mutilação dos poderes estaduais, em processo de esvaziamento de substância e de
conteúdo. A partir da Constituição Federal de 1934, a União intervencionista na
legislação social, econômica e financeira passou a oferecer profundo contraste com
44
Ao contrário do que alguns sugerem o Estado organizado no período imperial, embora formalmente unitário,
caracterizou-se pela concessão de certa autonomia às províncias. Isto ocorreu especialmente no período
regencial, após a abdicação de D. Pedro I, quando se verificou o protagonismo regional dos chefes e caudilhos
locais, permitindo-se, inclusive, a eleição de presidentes de províncias e a organização de algumas funções
públicas nestas localidades, como a policial, num cenário de revoltas regionais por autonomia. Os atos que se
sucederam ao denominado Golpe da Maioridade, que ocorreu em 1840, permitiram o revigoramento dos
dispositivos da Constituição de 1824 através do Poder Moderador, num forte sabor centralizador, abolindo
algumas das inovações regenciais. Contudo, a transição para um sistema político mais centralizado não ocorreu
sem conflitos. Em 1842, oligarquias regionais, como as de Minas e São Paulo, lideraram a Revolução Liberal,
pegando em armas contra o governo imperial. Na combativa província de Pernambuco, durante a Revolução
Praieira de 1848, os rebeldes contaram com a adesão popular, havendo até a defesa da reforma agrária, o que em
muito assustou os grupos conservadores, que, talvez, pela primeira vez, fazem menção à “ameaça socialista” que
pairava sobre o Brasil.(Cf. Del PRIORE, MARY e VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, p. 177-179).
38
os Estados-membros empobrecidos nas fontes da legislação e do poder. Os Estados
se retraíam no definhamento de suas atribuições e a União se expandia no
gigantismo de suas competências. O federalismo dualista da Primeira República
acabou sendo substituído pelo Federalismo centrípeto de períodos posteriores, que
depositava na União Federal o centro das decisões e do comando legislativo,
político, econômico, financeiro, tributário e administrativo da Nação. 45
Há de se registrar, por oportuno, que a Constituição Federal de 1934 foi a
que estruturou as bases do federalismo cooperativo, estimulando a ação conjunta da União e
dos Estados-membros na solução de problemas sociais e econômicos.
Após um breve período em que a Carta de 1937 subjugou os Estadosmembros à condição de meros entes territoriais descentralizados, a Constituição Federal de
1946 veio restabelecer e fortalecer as regras do federalismo cooperativo, com a fixação de
políticas de desenvolvimento regionais.46 Nela, também, houve a consagração da autonomia
dos Municípios.
A Constituição de 1967 e sua Emenda de 1969 mantiveram a concepção de
federalismo cooperativo, a concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento
dos Estados-membros e dos Municípios.
A Constituição Federal de 1988 não interrompeu a política de
desenvolvimento regional do federalismo cooperativo. Contemplou na União a competência
para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social” (art. 21, IX), bem como introduziu o tratamento
reservado às “Regiões” (art. 43).
A atual Constituição prevê expressamente a repartição de competências,
entre outros, nos arts. 21, 22, 23, 24, 25, 30 e de rendas nos arts. 153, 154, 155 e 156,
mantendo assim a autonomia dos entes descentralizados.
Há de se registrar que o princípio federativo é característica marcante do
Estado brasileiro, a ponto de ser subtraído da possibilidade de ser alterado até mesmo por
emenda constitucional, ante o disposto no inciso I, do § 4º, do art. 60 da Constituição Federal,
45
HORTA, Raul Machado. Estrutura da Federação. Direito constitucional: teoria geral do Estado. Coleção
doutrinas essenciais, v. 2. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 691-692.
46
O primeiro momento dessa tendência de desenvolvimento regional pode ser localizado na previsão contida no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de 1946, que impunha ao Governo Federal a obrigação
de traçar e executar um plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do Rio São Francisco e seus
afluentes que, por certo, foi o embrião de outros órgãos regionais de desenvolvimento.
39
que consagra as vedações materiais perpétuas do nosso ordenamento constitucional ao
exercício do poder de reforma.
A participação dos Estados-membros na ordem jurídica global (União)
também pode ser vista no Estado brasileiro (art. 46). Os Estados possuem representantes no
Senado, que é o responsável por manter o equilíbrio federativo. É possível dizer que também
lhes é assegurada a autonomia política e administrativa, com a possibilidade de elaboração de
uma Constituição própria pautada nos princípios constitucionais da União (art. 25).
Cabe mencionar que o entendimento adotado nesse trabalho é de que o
sistema constitucional brasileiro trata os Municípios como entes federativos, muito embora
eles não possuam representantes no Congresso Nacional.47
Partindo desse ponto de vista, tem-se que em nosso ordenamento a
representação no Senado funciona mais como norma garantidora da unidade nacional do que
como elemento caracterizador do ente federado.48
Nessa linha, a Constituição Federal de 1988, mantendo os Estados e o
Distrito Federal na formação da Federação, contemplou os Municípios na composição da
República Federativa (arts. 1º e 18), introduzindo-os na estrutura constitucional da
organização político-administrativa do Estado Federal Brasileiro.
Além disso, a autonomia municipal está assegurada nos arts. 18, 29 e 30 da
Constituição Federal, como poder de gerir seus próprios negócios dentro do círculo nela
prefixado, que compreende as capacidades de: a) auto-organização, mediante a elaboração de
lei orgânica própria; b) autogoverno pela eletividade do prefeito e dos vereadores; c)
normatividade própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de legislar
sobre áreas que lhe são reservadas; d) auto-administração, administração própria, para
organizar, manter e prestar serviços de interesse local.
Na República brasileira existe um órgão constitucional que exerce o
controle de constitucionalidade (Supremo Tribunal Federal), ao qual compete a guarda da
Constituição e a garantia do pacto federativo (at. 101 e 102). Além disso, a Constituição
47
A doutrina se divide sobre o status federativo dos Municípios. Uns entendem que os Municípios, a partir da
Constituição de 1988, foram elevados à categoria de entes federativos, destacando-se, nesse sentido, BASTOS,
Celso Ribeiro, Curso de direito constitucional, p. 487; Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional 11. ed.
Malheiros Editores, 2001, p. 312; HORTA, Raul Machado. Tendências atuais da federação brasileira. Direito
constitucional: teoria geral do Estado. Coleção doutrinas essenciais; v. 3. Clèmerson Merlin Clève, Luís
Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 233-234; ARAÚJO, Luiz
Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 269. José Afonso da Silva,
por outro lado, afirma que o Município integra a Federação, mas não é parte essencial desta (Curso de direito
constitucional positivo, p. 474-475). No mesmo sentido, José Nilo de Castro nega a qualidade de ente federativo
aos Municípios (Direito municipal positivo. 4. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 53-60).
48
Cf. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 79.
40
Federal prevê um sistema de defesa da Constituição estadual contra ofensas de leis e demais
atos dos poderes municipais, que compreende o controle por via de exceção, segundo o
critério difuso, e o controle por via de ação direta, segundo o critério concentrado (de
competência do Tribunal de Justiça).
A Constituição prevê ainda a hipótese de intervenção nos casos em que o
pacto federativo for ameaçado (arts. 34 e 36), restando protegidas, assim, tanto a autonomia
estadual como a autonomia municipal.
A forma como se procedeu a divisão de competências e de rendas entre as
ordens federais no país é motivo de preocupação de parte da doutrina.
Nessa
linha,
Carlos
Eduardo
Dieder
Reverbal
aponta
algumas
incongruências do federalismo da Constituição de 1988. Para ele, “se observarmos nosso
texto constitucional, abstraindo o nominalismo ainda existente, chegaremos à conclusão de
estarmos mais próximos a um Estado Unitário Centralizado, ou quem sabe a um Estado
Unitário com pouca Descentralização ao poder local, do que a forma federativa de Estado”.
Diz ainda o autor que o federalismo brasileiro reserva aos Estados-membros o que não lhes
for vedado, residindo o problema exatamente neste ponto. No seu entender, o rol de
competências da União é tão extenso (arts. 21, 22, 153), e a ampliação das competências dos
Municípios é de considerável extensão (arts. 30 e 156) que praticamente nada resta, sobra,
remanesce, ou fica de resíduo ao Estado. Ademais, no âmbito da legislação concorrente
(artigo 24 e seus parágrafos), o referido autor destaca que a União não fica restrita apenas ao
estabelecimento de normas gerais, sendo tal mecanismo federativo utilizado mais no sentido
de ampliar a competência da União, do que estabelecer normas gerais para posterior aplicação
das normas especiais pelos Estados-membros.49
A despeito dessas críticas, é correto afirmar, sob o ponto de vista jurídico,
que o Estado brasileiro expressa um modo de ser do Estado em que se divisa uma organização
descentralizada, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central,
regional e locais, consagrada na Constituição Federal, em que os estados federados participam
das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão.
No Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, com jurisdição nacional,
é o órgão encarregado de dirimir os conflitos federativos.
49
REVERBAL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito, p. 131-132.
41
2.3 Repartição de competências constitucionais
Não havendo hierarquia entre os entes federativos e para garantir-lhes
autonomia, as Constituições procedem a uma repartição de competências, permitindo que
mais de uma ordem jurídica incida sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas.50
A repartição de competências entre as esferas do federalismo consiste na
atribuição a cada ordenamento, pela Constituição Federal, de uma matéria que lhe seja própria
com o objetivo de evitar conflitos e desperdício de esforços e recursos. Desse modo, o
problema que envolve o tema gira em torno de se compreender que competência cabe à
União, o que é entregue aos Estados-membros e que parte é destinada aos Municípios.
A repartição de competências depende da natureza e do tipo histórico da
federação. Pode-se afirmar que os Estados assumem a forma federal, tendo em vista razões de
geografia e de formação cultural da comunidade. Dessa forma, um território amplo como o
brasileiro é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e paisagem
geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um
governo local atento às peculiaridades existentes.
No
direito
comparado,
como
adrede
observado,
as
formulações
constitucionais em torno da repartição de competências podem ser associadas a dois modelos
básicos – o modelo clássico, vindo da Constituição norte-americana de 1787 e o modelo
cooperativo, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial:
O modelo clássico conferiu à União poderes enumerados e reservou aos Estadosmembros os poderes não especificados.
O chamado modelo moderno responde às contingências da crescente complexidade
da vida social, exigindo ação dirigente e unificada do Estado, em especial para
enfrentar crises sociais e guerras. Isso favoreceu uma dilatação dos poderes da
União com nova técnica de repartição de competências, em que se discriminam
50
“(...) la competencia es la medida de la potestad que corresponde a cada órgano, siendo siempre una
determinación normativa. A traves de la norma de competencia se determina en qué medida la actividad de un
órgano há de ser considerada como actividad del ente administrativo; por ello la distribución de competências
entre los varios órganos de un ente constituye una operación básica de la organizacion. La competencia se
determina, em consecuencia analiticamente, por las normas (no todos los órganos pueden lo mismo, porque
entonces no se justificaria su pluralidad), siendo irrenunciable su ejercicio por el órgano que la tenga atribuída
como propia (...)”(GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho
administrativo I. 8. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 541). Numa abordagem original sobre o conceito de
competência, Fernanda Dias Menezes de Almeida faz uma comparação com o Direito Privado, afirmando que a
competência constitucional equivale à capacidade civil, ou seja, constitui-se no poder de praticar atos jurídicos
(Cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2000, p. 34).
42
competências legislativas exclusivas do poder central e também uma competência
comum ou concorrente, mista, a ser explorada tanto pela União como pelos
51
Estados-membros.
Outra classificação dos modelos de repartição de competências cogita sobre
as modalidades de repartição horizontal e de repartição vertical, conforme formulação de
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as quais são abordadas por Gilmar Ferreira Mendes,
Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco do seguinte modo:
Na repartição horizontal não se admite concorrência de competências entre os entes
federados. Esse modelo apresenta três soluções possíveis para o desafio da
distribuição de poderes entre as órbitas do Estado Federal. Uma delas efetua a
enumeração exaustiva da competência de cada esfera da Federação; outra,
discrimina a competência da União deixando aos Estados-membros os poderes
reservados (ou não enumerados); a última, discrimina os poderes dos Estadosmembros, deixando o que restar para a União.
Na repartição vertical de competências realiza-se a distribuição da mesma matéria
entre a União e os Estados-membros. Essa técnica, no que tange às competências
legislativas, deixa para a União os temas gerais, os princípios de certos institutos,
permitindo aos Estados-membros afeiçoar a legislação às suas peculiaridades
locais. A técnica da legislação concorrente estabelece um verdadeiro condomínio
legislativo entre União e Estados-membros.
52
Mais recentemente, contudo, pode-se identificar um modelo que caminha
para a previsão de competências enumeradas também para outras entidades federativas.
Ademais, tem-se a criação de uma área comum, na qual tanto pode atuar a União como os
demais organismos federativos, conforme magistério de André Ramos Tavares:
Nesse campo, identifica-se uma orientação geral para estruturar a repartição de
competências. Trata-se do denominado “princípio da preponderância do interesse”.
Esse princípio significa, sucintamente, que à União cabe tratar das matérias de
interesse geral, nacional, amplo. Aos Estados, daquelas que suscitam um interesse
51
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 800.
52
Ibid., p. 800.
43
menor, mais regional. Por fim, aos Municípios cabe tratar das matérias de
interesses restritos, especialmente locais, circunscritos a sua órbita menor.
Evidentemente que todos os interesses terão repercussão em cada uma das três
esferas citadas. É por isso que se fala em “predominância” e não em
“exclusividade”. Difícil ou impossível será a tarefa de sustentar uma matéria como
53
sendo exclusivamente de âmbito nacional, regional ou local.
A Constituição de 1988 adotou um sistema de repartição de competências
complexo que as classifica em privativas e concorrentes, distribuindo-as à União, aos Estados
e aos Municípios.
Pode-se afirmar que competências privativas são aquelas que “são próprias
de cada entidade federativa” e concorrentes são as competências “exercitáveis conjuntamente,
em parceria, pelos integrantes da Federação, segundo regras preestabelecidas”.54As
competências privativas são repartidas horizontalmente e as competências concorrentes são
repartidas verticalmente.55
José Afonso da Silva aponta uma diferença entre competência privativa e
exclusiva. Para o autor em questão, a competência exclusiva não admite delegação para outros
entes, ou mesmo suplementação, enquanto que aquela se caracteriza pela possibilidade de
outras unidades federativas também cuidarem de determinada matéria, que inicialmente é
atribuída a um único ente.56
Há de se ressaltar que existe, sim, competência exclusiva no ordenamento
pátrio. Desse modo, a possibilidade que os Municípios têm de complementar e suplementar a
legislação federal e estadual (art. 30, II, da Constituição Federal) não poderá ser exercida nos
casos de competência exclusiva dos Estados-membros e da União, bem como os Estadosmembros não podem suplementar a legislação federal, quando houver competência exclusiva
de tal ente, vez que a competência concorrente dos Municípios e dos próprios Estadosmembros não tem cabimento em toda e qualquer hipótese, mas apenas naqueles casos em que
houver interesse local ou regional (predominância do interesse).
Seguindo o exemplo apresentado por Rafael Augusto Silva Domingues,
pode-se indicar como hipótese de competência exclusiva da União a emissão de moeda (art.
21, VII). Cabe destacar que os Municípios não podem suplementar a legislação federal nessa
53
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1093.
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988, p. 78 e 129.
55
Ibid., p. 74.
56
Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 481.
54
44
situação, ante a evidente ausência de interesse local pelo assunto. De outra banda, o autor em
questão indica que o Município poderá complementar ou suplementar a legislação federal em
outras matérias como, por exemplo, desenvolvimento urbano, saneamento básico e transporte
público (art. 21, XX), assuntos que tocam diretamente aos Municípios.57
Pode-se afirmar que os Estados-membros e os Municípios também têm
competência exclusiva, resultado da capacidade de auto-organização, autolegislação,
autogoverno e auto-administração. Assim, o princípio federativo assegura-lhes autonomia
para tratar de questões referentes a bens públicos, processo administrativo, servidor público
estatutário, com exclusão da atuação de qualquer outro ente federativo.
De outro turno, há que se distinguir entre a repartição de competência
legislativa (poder de editar leis) e a repartição de competência administrativa (ou executiva).
Dentro da estrutura constitucional, a competência legislativa deve existir
para todos os entes federativos, havendo uma repartição estabelecida segundo o critério
“horizontal”. Assim, há competências privativas expressas à União (art. 22) e aos Municípios
(art. 30). Os Estados, além das competências expressas atribuídas pelos §§ 2º e 3º, do art. 25,
ficam com as competências residuais.
Por outro lado, existe uma repartição vertical, na qual se atribui o trato da
mesma matéria a mais de um ente federativo (art. 23 e art. 24, §§ 1º, 2º, 3º e 4º). Nessa linha,
ocorre a permissão para que mais de um ente cuide da mesma matéria estabelecendo limites
de atuação para cada um deles (competência concorrente), ou permitindo que todos eles
exerçam simultânea e integralmente sua competência (competência comum).
Com efeito, há uma competência concorrente deferida à União, quanto à
edição de normas gerais58, resguardando aos Estados-membros sua suplementação (editando
norma especial ou suprindo a omissão da União). Nesse sentido, verifica-se que o art. 30, II,
da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para “suplementar a legislação
federal e a estadual no que couber”.
57
Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico –
limites da autonomia municipal, p. 95-99.
58
Segundo Hely Lopes Meirelles “norma geral é a que estabelece princípios ou diretrizes gerais de ação e se
aplica indiscriminadamente a todo o território nacional” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito urbanístico:
competências legislativas. Revista de Direito Público, n. 73, p. 98). Para Lúcia Valle Figueiredo “As normas
gerais serão constitucionais se e na medida em que não invadam a autonomia dos entes federativos, com
particularizações indevidas” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Discriminação constitucional das competências
ambientais. Aspectos pontuais do regime jurídico das licenças ambientais. Direito ambiental: fundamentos do
direito ambiental. (Org.) Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011, p. 1294).
45
Sobre o tema, merece registro a observação feita por Daniela Campos
Libório Di Sarno:
(...) a própria Constituição Federal, em seu texto, enumera taxativamente as
competências da União e adota um sistema dinâmico e exemplificativo para as
competências dos outros entes federativos. Isto porque a Constituição Federal,
além de ser o Texto Jurídico supremo de nosso país, exerce a função de
Constituição da União Federal, assim como as Constituições dos Estados e as Leis
Orgânicas para os Municípios.
Daquilo que não estiver explícito como sendo de competência da União caberá aos
Estados-membros, Distrito Federal e/ou Municípios exercê-los. Esta equação
poderia se resolver com razoável tranqüilidade fosse o texto constitucional dotado
de rigor técnico inquestionável. Não é o que ocorre. Competências privativas e
exclusivas ora se equivalem, ora se distanciam e mesclam-se com as reservadas.
Concorrentes, complementares e suplementares também são competências de
difícil delimitação na forma como se apresentam. Resta a verificação caso a caso,
tentando preservar algum critério norteador para esta interpretação de definição de
competências constitucionais.
59
A competência administrativa é, em princípio, correlata à competência
legislativa. Assim, quem tem competência para legislar sobre uma matéria tem competência
para exercer a função administrativa quanto a ela.60
O art. 21 da Constituição Federal dispõe sobre a competência geral da
União, que é consideravelmente ampla, abrangendo temas que envolvem desde o exercício de
poderes de soberano, bem como questões que transcendem interesses regionais e locais.
No entanto, para a defesa e o fomento de certos interesses, o constituinte
desejou que se combinassem os esforços de todos os entes federais, conforme se nota no art.
23 da Constituição Federal, havendo um campo comum no plano administrativo à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
A propósito, a Lei Fundamental prevê, no parágrafo único do art. 23, a
edição de leis complementares federais, que disciplinarão a cooperação entre os entes para a
59
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Competências urbanísticas. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,
Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006, p. 63.
60
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 62.
46
realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de
recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de
resultados mais satisfatórios.61
Por fim, é necessário ressaltar que cada ente federativo retira sua
competência diretamente da Constituição Federal e não de normas infraconstitucionais, de
modo que as disposições encartadas no Estatuto da Cidade sobre o tema (art. 3º) acrescentam
muito pouco à análise das competências em direito urbanístico.
2.4 As competências urbanísticas
A ideia de que a problemática do urbanismo é um espaço aberto à
intervenção concorrente e concertada de todos os entes federativos veio reconhecida na
Constituição Federal de 1988, especialmente ao distribuir competências urbanísticas entre
todas as esferas de governo.
Na realidade, o próprio conceito de federalismo reclama um mínimo de
colaboração, existindo, em maior ou menor grau, instâncias de poder que trabalham juntas em
qualquer Estado organizado como federação.
No que diz respeito à matéria urbanística, a Constituição de 1988 inovou ao
disciplinar expressamente as competências legislativas, ao contrário dos regimes
constitucionais anteriores, em que tais competências eram decorrentes dos poderes implícitos
reconhecidos à União, dos poderes reservados dos Estados ou da competência dos Municípios
para dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse.62
Identificam-se no texto constitucional normas de competência legislativa e
material com implicações diretas na atividade urbanística. Há de se enfatizar que a política
urbana, apesar de ser executada pelo Poder Público municipal, possui dimensões nacional,
regional e local, e, portanto, uma concorrência de atribuições e competências entre a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Enfatiza-se que a própria Lei Fundamental estabelece formas e arranjos para
possibilitar a inter-relação e a colaboração das unidades federativas na elaboração e
implementação de políticas urbanas.
61
A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes
federativos em matéria ambiental.
62
Cf. BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil. São Paulo, 2005.
Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005, p. 11.
47
Entretanto, esse sistema de inter-relação existente na política urbana não
pode perder de vista que a ordem federal está marcada pela coexistência de diversos centros
de poder, independentes, autônomos e livres para desenvolverem suas instâncias de poder.
Mas, apesar da independência e da autonomia destas esferas, elas estão vinculadas em virtude
de objetivos comuns e devem agir com eficiência (princípio jurídico-administrativo),
justamente para evitar a desarticulação e a sobreposição de atuações.
2.4.1 Competências urbanísticas da União
O art. 21 da Constituição Federal atribui à União o desempenho de uma
série de atividades e a organização e gestão de inúmeros serviços.
Dentre as matérias nele previstas, têm peculiar interesse para o urbanismo: a
elaboração e a execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social (inciso IX), o planejamento e a promoção da defesa
permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e inundações (inciso
XVIII), a instituição de diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transportes urbanos (inciso XX), o estabelecimento de princípios e
diretrizes para o sistema nacional de viação (inciso XXI).
Todos esses incisos referem-se a matérias com implicações diretas na
atividade urbanística, porquanto lidam especificamente com planejamento (inciso IX e XX) e
ordenação do solo (inciso XXI).
Destaca-se que a Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da
União é essencial para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto
direto no território, como se percebe na disposição prevista no inciso IX (elaboração e
execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social).
É interessante também enfatizar que embora o art. 21 da Constituição
Federal tenha sido concebido para tratar das competências materiais da União, os dispositivos
nele previstos possuem natureza legislativa, que consiste no poder-dever de expedir comandos
normativos, genéricos e abstratos, excetuando-se apenas a segunda parte do inciso IX, onde se
lê “executar”, que trata de competência material.63
63
Rafael Domingues destaca que o art. 21 traz matérias que em qualquer federação constituem o núcleo
irredutível das competências da União, acentuando-se a tendência de se dar destacado papel à União em tema de
48
Nestas matérias, a legislação da União é privativa porque visa instituir e
disciplinar serviços e atividades dela própria, e a competência administrativa é exclusiva de
tal ente, ficando a colaboração dos Estados e Municípios admissível em certos casos, como os
dos incisos XX e XXI, e nos limites e mecanismos impostos pela lei federal.64
A competência legislativa privativa da União é definida no art. 22 da
Constituição Federal. Assim, em linhas gerais, caberá aos Estados e aos Municípios exercer
atividades decorrentes da competência legislativa privativa da União, nos limites e condições
da lei federal.65 Dentre as matérias relacionadas no referido artigo, a que apresenta nítida
repercussão no âmbito urbanístico é a referente ao trânsito e transporte (inciso XI), que
implica diretamente as questões que envolvem o planejamento urbano e a ordenação do solo.
No art. 24 encontram-se as matérias de competência concorrente da União e
dos Estados, atinentes à competência para legislar, nas quais a União somente deverá editar
normas gerais (§ 1º). Já os Estados também podem exercer tanto uma competência
complementar (§ 2º), detalhando as normas federais existentes, como uma competência
suplementar (§ 3º), na hipótese de não existirem normas gerais federais.66
No art. 24, as seguintes matérias de competência concorrente são de
interesse urbanístico: as referentes ao direito urbanístico (inciso I), florestas, caça, pesca,
fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção ao meio
ambiente e controle da poluição (inciso IV), proteção ao patrimônio histórico, cultural,
artístico, turístico e paisagístico (inciso VII), a responsabilidade por dano ao meio ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico
(inciso VIII). Como se nota, tais matérias tratam de questões afetas ao ordenamento do solo,
vislumbrando-se interesse urbanístico.
É importante registrar que o Direito Urbanístico veio a ser tratado como
disciplina jurídica pelo art. 24, que, como se observa, conferiu expressamente à União
planejamento (Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo.
Direito urbanístico e ambiental, p. 96).
64
Nestes casos, embora a União possua atribuições para esgotar totalmente a matéria, impondo normas gerais e
igualmente normas específicas sem tanta preocupação com os limites da autonomia estadual ou municipal, neles
podem ser detectados “interesse local” a ensejar a atuação dos Municípios (CF, art. 30, I e II).
65
Aplica-se à hipótese o mesmo raciocínio anterior. Ou seja, na competência privativa os Municípios podem
suplementar a legislação federal, por exemplo, na questão que versa sobre trânsito e transportes, sempre que
estiver presente o interesse local, como ocorre nas situações de definição do sentido de direção das ruas, dos
locais de estacionamento, etc. (Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros
no direito urbanístico – limites da autonomia municipal, p. 97).
66
Michel Temer entende que os Municípios foram excluídos da competência concorrente, por não constarem do
rol do art. 24 da Constituição de 1988 (Elementos de direito constitucional, p. 66). Em sentido contrário, Luiz
Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior entendem que os Municípios também têm competências
concorrentes, face o disposto no art. 30, II, da Constituição Federal, desde que presente o interesse local (Curso
de direito constitucional, p. 274).
49
competência legislativa para editar suas normas gerais (inciso I, c/c o § 1º). A propósito, foi
no uso desta competência que a União editou a Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).
2.4.2 Competências urbanísticas dos Estados
De início, é interessante notar que o arcabouço constitucional não foi
generoso na atribuição de competências urbanísticas aos Estados-membros.
Assim, conforme visto, os estados têm competência concorrente com a
União para tratar desta matéria (art. 24, I).
A competência urbanística dos estados tem como limite a competência da
União para editar normas gerais e a competência dos municípios (relativa à execução da
política de desenvolvimento urbano - ordenação do solo - e a de legislar sobre assuntos de
interesse local), o que restringe as questões que podem ser disciplinadas por tal ente.
De qualquer forma, para os Estados-membros, a Constituição de 1988
atribuiu a competência privativa para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões constituídas por municípios limítrofes, para o planejamento, a organização e a
execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º).67
Além disso, aos estados também compete a elaboração e a execução dos
planos regionais, conforme enfatiza Jose Afonso da Silva:
Abre-se aos Estados, aí, no mínimo, a possibilidade de estabelecer normas de
coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões, além de sua expressa
competência para estabelecer regiões metropolitanas (art. 25, § 3º).
Não padece mais dúvida de que os Estados dispõem de competência para
estabelecer planos urbanísticos, conforme expressamente consta do art. 4º, I, do
Estatuto da Cidade (...).68
67
Pode-se apontar diferenças entre regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerados urbanos da seguinte
forma: a região metroplitana é uma espécie de aglomeração entre municípios, onde se observa uma continuidade
urbana, densamente povoada (de contínua construção), com a existência de um Município mais importante,
chamado cidade-pólo, em torno do qual se reunirão os demais Municípios. Na microrregião existem municípios
limítrofes relativamente semelhantes, sem que haja continuidade urbana e a predominância de um dos
municípios. Nos aglomerados urbanos os Municípios se equivalem, existe uma continuidade urbana e a área
também é densamente povoada. Não existe, porém, nem cidade-pólo, nem cidade sede (Cf. TAVARES, André
Ramos. Curso de direito constitucional, p. 60).
68
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 126.
50
Assim, o Estado, enquanto ente político que corresponde à região ou abriga
a microrregião objeto do planejamento, exerce competência para implementação de políticas
públicas interurbanas comuns.
2.4.3 Competências urbanísticas dos Municípios
No que diz respeito aos Municípios, o art. 30, inciso I, da Constituição
Federal confere competência privativa para legislar sobre o interesse local, ou seja, sobre as
suas especificidades ou particularidades. Além disso, neste quadro, podem os Municípios
suplementar a legislação federal e estadual (art. 30, II).
A Constituição de 1988 ainda atribuiu a tais esferas as seguintes
competências: a) a criação, organização ou supressão de distritos, nos termos da lei estadual
(art. 30, IV), b) a promoção, no que couber, do adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento, controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII),
c) a promoção da proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a
ação fiscalizadora federal e estadual (art. 30, IX), d) a execução da política de
desenvolvimento urbano (art. 182, caput), e f) a aprovação do plano diretor (art. 182, § 1º).
Nota-se que todos os dispositivos em questão tratam da matéria de
urbanismo, porquanto atribuem competência constitucional aos Municípios para planejamento
urbanístico (IV), ordenação do solo (VIII) e da paisagem urbana (IX).
Mas, sem sombra de dúvidas, o mais completo dos dispositivos citados é o
art. 182, que atribui aos Municípios competência para cuidar da política urbana, pois abriga
quase tudo que é ligado à matéria de urbanismo, tais como, o planejamento urbanístico, a
ordenação do solo, a ordenação urbanística de áreas de interesse especial, a ordenação
urbanística da atividade edilícia e instrumentos de intervenção urbanística.69
Há de se registrar, ainda, que a Constituição Federal prevê como
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana o plano diretor, de
competência legislativa dos Municípios, o qual, por sua vez, deve observar as diretrizes gerais
traçadas em lei federal.
69
Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito
urbanístico e ambiental, p. 101-102.
51
2.4.4 Competências urbanísticas comuns
O artigo 23 da Constituição Federal estabelece a competência material
(competência administrativa) comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios. Nele são definidas áreas de atuação ou de serviço nas quais todos os entes
federados estão autorizados a agir simultaneamente.
Observa-se interesse urbanístico especialmente em duas situações retratadas
neste artigo. Nesse sentido, o inciso III estabelece que compete a todas as unidades
federativas proteger as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. Por sua vez, o inciso IX
fixa a competência comum para “promover a construção de moradias e melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico”.
2.4.5 Normas de competência e os planos urbanísticos
Seguindo a intenção constitucional de distribuir a planificação entre as
esferas de governo, a nossa ordem jurídica prevê a elaboração de planos urbanísticos por
todas as unidades federativas.
Há de se enfatizar que a Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que
estabelece as diretrizes gerais da política urbana, também prevê, no art. 3º, competências
legislativas e materiais da União de implicação direta na atividade urbanística, destacando-se,
nesse contexto, o inciso V, que estabelece a sua competência para “elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”.
Dentre os instrumentos de política urbana, o art. 4º do Estatuto da Cidade
prevê em seus incisos: I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e
de desenvolvimento econômico e social; II – planejamento das regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões; III – planejamento municipal.
Nota-se que o Estatuto da Cidade restringiu-se a tratar do planejamento
municipal, deixando de fixar regras de coordenação e integração dos planos urbanísticos de
competência das demais unidades federativas.
Neste caso, tal lacuna não resulta de simples imprevisão, mas reflete o firme
propósito do ordenamento jurídico em atrelar tal matéria ao plano nacional e aos planos
regionais de ordenação do território.
52
Daniela Campos Libório Di Sarno propõe a classificação dos planos
urbanísticos que podem ser elaborados pelas unidades federativas entre planos explícitos e
implícitos. Na primeira categoria ela inclui os seguintes: a) Federal: plano nacional de
ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX), plano regional de
ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); b) Estadual: plano
regional (art. 25, § 3º); c) Municipal: plano diretor (art. 182); plano parcial de ordenação
territorial - uso e ocupação do solo urbano – (art. 30, VIII). Como planos implícitos a autora
aponta: a) Federal: plano setorial de desenvolvimento urbano (art. 21, XX e XXI); b)
Estadual: plano geral de ordenação territorial; c) Municipal: plano local (art. 30, IV).70
Desse modo, pode-se apontar a existência no ordenamento jurídico de
planos urbanísticos nacional, regionais, federais setoriais, estaduais, microrregionais e
municipais, cabendo aprofundar a análise da relação que pode ocorrer entre eles.
70
Cf. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 63.
53
3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS
3.1 A formação e o desenvolvimento das cidades brasileiras sob o ponto de vista do
planejamento urbano
A análise histórica da formação das cidades brasileiras tende a abordar a
configuração urbana promovida nos primórdios da Colonização, a qual, normalmente, é
apontada como a raiz da falta de planejamento urbano no Brasil. Assim, tais estudos
enveredaram-se pela mítica de um processo gerador totalmente feito à revelia de qualquer
planejamento, ao qual a dominação portuguesa teria renunciado a trazer normas imperativas e
absolutas de planificação, gerando o ambiente de desordem urbana.
Nos termos desta abordagem, a colonização espanhola na América teria se
caracterizado largamente pelo que faltou à portuguesa, ou seja, uma preocupação em
assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras
conquistadas, mediante a criação de núcleos de povoação estáveis e bem ordenados.71
Assim, a contribuição dos portugueses, em termos de ocupação e
organização espacial do solo urbano na sua colônia americana, teria se revestido de
características dominantemente espontâneas. Nesta crítica calcada em uma pretensa falta de
planejamento das cidades do Brasil Colônia, autores como Robert Smith afirmaram que tais
núcleos foram frutos de uma recriação das cidades medievais portuguesas.72
Os estudos sobre a formação das cidades brasileiras começam a ficar mais
claros com a elaboração de pesquisas que apontam diferenças socioeconômicas na condução
do processo de Colonização promovido por ambas as metrópoles. De acordo com esta análise,
enquanto a economia brasileira voltava-se para a dinâmica produtiva da propriedade rural, a
América Espanhola detinha-se na extração de metais preciosos para exportação, o que
71
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 9596. O autor em questão destaca a importância conferida pelos espanhóis ao ordenamento das cidades hispanoamericanas, enfatizando os pontos relacionados ao traçado dos centros urbanos, às características da legislação
de edificações e aos planos de instalação da rede urbana, ao tempo em que enfatiza a forma espontânea e sem
controle da ocupação do solo urbano nas cidades portuguesas da América.
72
Cf. SANT’ANA, Marcel Cláudio. Período Colonial: outras possibilidades de leitura sobre o planejamento de
cidades
na
América
Latina,
p.
02.
Disponível
em:
<htpp://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/publicacoes/periodo_colonial.pdf.> Acesso em 02 maio 2011.
54
estimulou o desenvolvimento da economia urbana e, consequentemente, possibilitou a
formação dos núcleos urbanos especializados em atividades comerciais nestes locais.73
Projetando tais estudos ao contexto econômico e social do processo de
Colonização, verifica-se que no século XVIII, justamente quando metade da produção
mundial de ouro foi extraída no Brasil, houve a urbanização dos arraiais de mineração, que
vinham se proliferando, desordenadamente, em zonas montanhosas.
Em 1763, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do Brasil. O escoamento da
produção de ouro ocorria pelo seu porto. No século XIX, esta cidade é elevada a capital do
Reino Unido de Portugal e, após a independência, do Império brasileiro. Entretanto, com o
declínio da produção de ouro, a economia brasileira entrou em recessão, voltando a depender
essencialmente da agricultura.
Assim, o desenvolvimento das cidades brasileiras sempre ocorreu graças a
surtos periódicos de crescimento econômico, quando a predominância básica era a economia
de subsistência, que acabou caracterizando o processo de formação da estrutura urbana básica,
a qual deveria receber os influxos econômicos causados pela Revolução Industrial,
especialmente na segunda metade do século XIX. Cabe ressaltar que tal período coincidiu
com a abolição da escravatura, que igualmente exerceu forte influência no processo de
urbanização das cidades brasileiras.
Desse modo, a abertura de novas áreas para a produção cafeeira, a onda
imigratória e a construção de ferrovias no interior foram fatores decisivos para o aumento da
concentração demográfica, notadamente nas regiões Sul e Sudeste.74 Neste contexto, surgiram
novas exigências quanto às necessidades atinentes à habitação e à infraestrutura urbana. No
entanto, mais uma vez, a ausência de uma postura planificadora deixou que a ocupação do
solo ocorresse aleatoriamente.75
73
“Assim, o fato de o Brasil ter sido submetido, na década de 30, a uma política colonial, assentada no
latifúndio, na produção de açúcar para o mercado europeu e no trabalho escravo, organizou a colônia como uma
imensa retaguarda rural para os mercados europeus, resultando em um dinamismo centrado no campo. Essa
política gerou uma incipiente atividade urbanizadora, mas o planejamento se restringiu apenas às cidades “reais”,
localizadas no litoral e controladas pela metrópole (...)” (SANT’ANA, Cláudio Marcel. Período Colonial: outras
possibilidades de leitura sobre o planejamento de cidades na América Latina, p. 03.).
74
Estas regiões já eram economicamente mais desenvolvidas. Tais condicionantes sociais e econômicas
resultaram no aumento das diferenças culturais entre o Norte e o Sul do país, assim como entre cidade e campo,
entre litoral e sertão. Era como se a história tivesse sofrido uma “aceleração” em algumas regiões, enquanto
noutras continuasse a reproduzir o modelo de vida herdado do período colonial.
75
Segundo Roberto Loeb o caso mais característico de crescimento urbano associado a crescimento econômico é
o da cidade de São Paulo. Para o autor, “nela é que se verificou a viabilidade de uma expansão contínua,
praticamente sem interrupção, onde a industrialização encontrava uma infra-estrutura já preparada pelo ciclo de
cultura do café. Em meados do século XIX, começa um processo espantoso de desenvolvimento não planejado e
espontâneo” (Aspectos do planejamento territorial no Brasil. Planejamento no Brasil. Org. Betty Mindlin. 5. ed.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1997, p. 145-146).
55
Tal cenário catalisou a disseminação da moradia precária no Brasil. O Poder
Público passou a intervir nestes espaços com finalidade higienista, pretendendo “sanear” as
cidades combatendo os cortiços (a tipologia habitacional adotada na época pelas famílias de
baixa renda, especialmente as formadas por imigrantes europeus e ex-escravos). Além disso, a
intensa ocupação e os problemas causados pelos vários usos do solo geraram a edição de
normas jurídicas até então inéditas. Neste período, sob a influência dos grandes projetos de
remodelação das cidades européias, surge uma nova faceta do urbanismo, agora também
preocupado em delimitar espaços fortemente regulados, garantindo proteção contra a invasão
de usos e intensidades de ocupações degradantes (e, portanto, altamente valorizados pelo
mercado imobiliário), que se contrapõem aos espaços populares não regulados ou em
desacordo com a lei (território onde se instala a pobreza).76
Contudo, comparada aos países da Europa Ocidental, a urbanização
acelerada e de aparição paralela ao desenvolvimento econômico e industrial demorou para
atingir o Brasil, vindo a se consumar após a Segunda Grande Guerra, por conta da
implementação de uma política industrial de substituição de importações.77 Contudo, foi entre
as décadas de 60 e 70 que ocorreu o auge da urbanização brasileira em razão do
desenvolvimento econômico do país e das transformações havidas na indústria.
De qualquer forma, somente na década de 1960 surgiram os primeiros atos
administrativos em âmbito federal que tentaram implementar uma política nacional de
habitação e de planejamento territorial.78
José Afonso da Silva aponta algumas das razões que levaram ao fracasso a
busca da institucionalização de um sistema de planejamento urbanístico (pelo extinto
SERFHAU) e as tentativas de planificação daquela época:
76
O papel de suportar o preconceito social foi cumprido pela legislação brasileira, conforme atesta Raquel
Rolnik em sua tese de doutorado sobre a história da legislação urbanística da cidade de São Paulo. Segundo ela,
este movimento se expressa em São Paulo, pela primeira vez, no Código de Posturas de 1886, quando se
demarca uma zona urbana (correspondente à área central da cidade) onde se proibia a construção de cortiços.
Afirma ainda a autora que o desenho desta zona foi sendo sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper
com a concepção básica de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma vasta
zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos vedados para a primeira tais como
matadouros, cemitérios, indústrias malcheirosas e cortiços (ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação,
política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP, 1997).
77
Cumpre registrar que a Constituição de 1934 é que trouxe ao ordenamento jurídico a concepção de
propriedade vinculada à função social, figurando como marco divisor do Direito brasileiro em matéria
urbanística.
78
Lei 4.380/64 que criou o Banco Nacional de Habitação (BNH), as Sociedades de Crédito Imobiliário e o
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo. (SERFHAU).
56
Há várias causas para esse fracasso, mas estamos convencidos de que a concepção
do plano diretor de desenvolvimento integrado e até sua exigência nas leis
estaduais de organização dos Municípios foram razões principais desse fracasso.
Sua exigência de que o plano diretor devesse integrar os setores econômico, social,
físico-territorial e institucional sofisticou o processo de planejamento urbanístico
municipal, onde faltava tradição planejadora que pudesse servir de suporte à
implantação de um tipo de plano mais sofisticado.
(...) A ênfase, assim, no conteúdo econômico do plano diretor de desenvolvimento
integrado desviou as Municipalidades de sua função urbanística precípua, que
consiste na implantação de um processo de planejamento urbanístico típico,
caracterizado pela ordenação dos espaços habitáveis.
(...) A concepção do SERFHAU sobre o planejamento urbano integrado continha
mais dois componentes que teriam que conduzi-lo a fracasso certo. O primeiro foi a
pretensão de implementar um sistema de planejamento local integrado por uma
entidade federal, a que faltava competência impositiva para que fosse o processo
efetivado em cada Município; por isso, só poderia conseguir a implementação por
via indutiva e persuasiva – nem sempre eficaz, porque nem sempre politicamente
atraente às Administrações Municipais dotadas de autonomia. O segundo consistiu
em procurar desenvolver uma metodologia de planejamento local que integrasse os
aspectos econômicos e sociais à cidade, “vista como um organismo autárquico, isto
é, as ligações com outras cidades e regiões praticamente não eram levadas em
consideração (...).79
Como se pode perceber, há uma clara coincidência entre o processo de
industrialização e o de urbanização no Brasil, o que trouxe graves reflexos socioeconômicos e
culturais, provocados pela concentração massiva de população, produção e consumo em torno
de algumas grandes cidades.
Aliás, a industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas
também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado e,
por isso, na era Vargas – incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 – é
caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois
em cada dez brasileiros residiam em cidades; na década de 1940, tal proporção tornara-se
equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. Por volta de 1945,
além de mais numerosos do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentam um perfil
79
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 101-103.
57
cada vez mais urbano. Um exemplo extremo dessa situação pode ser percebido ao
compararmos o Estado do Amazonas com a cidade do Rio de Janeiro: enquanto a primeira
unidade possuía 28.908 eleitores, o Distrito Federal desfrutava de um colégio eleitoral de
483.374 homens e mulheres.80
Com isso, iniciam-se os debates acerca das regiões metropolitanas
brasileiras, sendo que o primeiro arranjo institucional sobre o tema tem origem numa lei
federal (Lei Complementar nº 14, de 1973), que criou nove regiões metropolitanas a partir de
um conjunto de critérios uniformes.
A maior parte dessas regiões era composta de capitais de estados, nas quais
ocorrera o primeiro surto de industrialização. Na visão do regime militar, essas regiões
desempenharam papel-chave na consolidação do processo de desenvolvimento do país. A
legislação federal definiu de forma uniformizada os potenciais serviços de interesse, como o
planejamento para o desenvolvimento econômico e social, o saneamento (água, esgoto, gestão
de resíduos sólidos), o uso e ocupação do solo, o transporte e as estradas, a produção e
distribuição de gás canalizado, a gestão de recursos hídricos e o controle de poluição
ambiental. Também previu a criação de novos fóruns, particularmente os conselhos
deliberativos e consultivos, para coordenar a articulação com os municípios.81
O movimento migratório do homem do campo para a cidade no Brasil,
ocorrido em todo o curso do século XX, foi desacompanhado de um planejamento adequado.
Segundo o Censo 2010 do IBGE, 84,35% da população brasileira vive nas cidades, sobretudo
nas regiões metropolitanas.82
A propósito, observa-se que as poucas iniciativas de planejamento
promovidas ao longo da história das nossas cidades, sob alguns aspectos, serviram de
instrumento de segregação socioespacial extrema, infraestrutura e serviços urbanos
inadequados e degradação ambiental.
A falta de planejamento, as mazelas sociais, a especulação imobiliária são
apenas alguns dos fatores que levaram e continuam levando as cidades ao verdadeiro caos
urbano e à exclusão social das populações menos favorecidas.
Aliás, tal cenário exigiu novos delineamentos das políticas de controle da
cidade. Esse fenômeno mundial tornou-se objeto de análises direcionadas e que vieram
compor os interesses do urbanismo, trazendo à tona a exigência de intervenção da
80
Cf. Del PRIORE, MARY e VENÂNCIO, Renato; Uma breve história do Brasil, p. 255 e 262.
Cf. KLINK. Jeroen Johannes. Novas governanças para as áreas metropolitanas. O panorama internacional e
as perspectivas para o caso brasileiro. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, p. 419.
82
Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/popul/d…>. Acesso em: nov. 2011.
81
58
Administração Pública na gestão de serviços até então fornecidos pelo setor privado e no
desenvolvimento da política urbana.
3.2 O planejamento como instituto jurídico
Foram as Constituições do século XX que passaram a conter disposições
sobre a ordem econômica83e, por vezes, a social84, já que tais matérias eram inconcebíveis nos
textos constitucionais dos séculos anteriores.
Nesse sentido, para Celso Ribeiro Bastos, “os profundos abalos da ordem
econômica, causados sobretudo por guerras e outras crises na economia, levaram as
Constituições a trazerem dispositivos traçando as linhas mestras da estruturação econômica
do Estado”.85
No mundo, dois sistemas disputavam o privilégio de organizar a vida
econômica. O sistema socialista, calcado na propriedade coletiva dos meios de produção e o
capitalista, fundado na propriedade privada e na livre concorrência. As economias socialistas
desde logo adotaram o planejamento, com os diversos agentes econômicos e empresas estatais
obedecendo a um plano único nacional traçado por um poder central (plano este centralizado
e obrigatório para todos).
Essa ideia de impor metas fixas e meios racionais influenciou também os
países capitalistas que, sem abandonarem a economia de livre iniciativa, adotaram, de forma
branda, o planejamento, especialmente diante da necessidade de atingir certos objetivos
econômicos e sociais. Para Betty Mindlin “tornou-se claro que o simples jogo das forças de
mercado, com pequena intervenção do Estado, era incapaz de levar aos resultados desejados
pela sociedade”.86
Por isso, a atividade de planejamento sofreu um impulso considerável nas
últimas décadas, devido ao grau de intervenção da Administração Pública no tecido social,
especialmente nas funções de apoio ao desenvolvimento econômico e social, de promoção da
83
Fábio Konder Comparato define ordem econômica como “o conjunto de atividades de produção e distribuição
de bens e serviços no mercado” (Ordem econômica na constituição brasileira de 1988. Revista de direito público.
São Paulo: RT, ano 23, jan/mar, n. 93, 1990, p. 264).
84
A intervenção do Estado no domínio social ocorre por meio da prestação de serviço público e da atividade de
fomento, havendo estreita relação entre a intervenção do Estado no domínio social e os direitos sociais previstos
constitucionalmente (Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 808-809).
85
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 719.
86
MINDLIN, Betty. O conceito de planejamento. Planejamento no Brasil. Org. Betty Mindlin, 5. ed. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1997, p. 12.
59
justiça social e de prestação social, na qual o plano tornou-se um instrumento essencial da
ação administrativa nos Estados com o modelo de Bem-Estar Social.
Nos dizeres de Fernando Alves Correia, com base nas lições de
doutrinadores europeus, “o plano é, assim, um sinal evidente da transformação verificada no
modo de ser das funções estaduais, no seguimento da passagem do Estado de Direito Liberal
para o Estado de Direito Social”.87 O autor lusitano destaca que, apesar da diminuição da
euforia planificadora, ninguém hoje contesta a necessidade de planificação das atividades do
Estado. Para ele “uma pluralidade de factores aponta nessa direcção, designadamente a
necessidade de: coordenar e programar a vasta gama de intervenções do Estado nos mais
variados sectores sociais; estabelecer a cooperação entre os vários serviços administrativos,
em consequência da crescente divisão de trabalho no âmbito da Administração Pública;
utilizar racionalmente os meios e as capacidades - que são escassos – para a obtenção de um
fim; e compatibilizar interesses diferenciados numa sociedade pluralista”.88
O planejamento, em si, não tem dimensão jurídica, não passando de
propostas técnicas ou meramente administrativas enquanto não forem seus objetivos
consubstanciados e materializados pelos planos.
Assim, para José Afonso da Silva, o planejamento “é um processo técnico
instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente
estabelecidos”.89 O autor em questão ainda enfatiza que tal processo, no início, “não era
juridicamente imposto, mas simples técnica, de que o administrado se serviria ou não”90,
advindo daí alguns problemas, vez que “as transformações pretendidas, a fim de atingir os
objetivos colimados, importavam constrangimentos aos administrados e aos seus bens, que
colocavam o problema da constitucionalidade do planejamento e, especialmente, do plano que
o documenta administrativa e juridicamente”.91
O ordenamento jurídico, paulatinamente, incorporou as noções bem
desenvolvidas sobre o tema fornecidas pelas Ciências da Economia, da Administração e do
Urbanismo, como registra Jacintho Arruda Câmara:
O planejamento, antes de conquistar status de regra jurídica, ganhou a adesão dos
teóricos da Ciência da Administração e da Economia. Em especial no campo
87
CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 348.
Ibid., p. 349.
89
SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, p. 89.
90
Ibid., p. 89.
91
Ibid., p. 90.
88
60
urbanístico, a ação de planejar foi considerada indispensável ao crescimento
racional e ordenado das cidades. Repetia-se, como regra inquestionável, a
necessidade de planejamento urbano. Tal regra, todavia, tinha caráter
exclusivamente metajurídico. Trata-se de uma proposição da Ciência da
Administração, do urbanismo. Não era dotada de juridicidade – vale dizer, seu
descumprimento não demandava a aplicação de sanções jurídicas. A adoção do
planejamento urbano, concretizado geralmente num plano diretor (às vezes
aprovado em lei, outras vezes por mera decisão administrativa), dependia
exclusivamente de uma avaliação de natureza político-administrativa. Assim,
diversos Municípios editaram plano diretor sem que houvesse, contudo,
obrigatoriedade de fazê-lo ou, mesmo, a fixação de qualquer padrão que
estabelecesse um conteúdo mínimo a ser atendido pela planificação. A existência
de um plano diretor era exigência que se punha no campo da Ciência da
Administração Urbana, que somente adquiria contornos jurídicos se e quando fosse
encampada na regulamentação (legal ou infralegal) de um dado Município.92
É importante ressaltar mais uma vez que o processo de planejamento não
mais fica condicionado à mera vontade do administrador, passando a ser um mecanismo
jurídico. Hodiernamente, trata-se de uma imposição constitucional e legal, mediante a
obrigação de elaborar o plano, que é a forma pela qual se materializa o respectivo processo.
Nesse sentido, a nossa ordem jurídica contempla o Estado planejador, cujas
ações devem ser orientadas pelo planejamento. Esta é a razão pela qual a Constituição Federal
de 1988 indica vários dispositivos sobre planos nacionais e regionais de ordenação do
território e de desenvolvimento econômico e social, sobre regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, sobre o planejamento do uso e ocupação do solo
urbano pelos municípios, sobre planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e
orçamento anual, planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento,
além de disposições específicas sobre o plano diretor municipal.
Além disso, cumpre destacar que o artigo 174, caput, declara que o
planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, sendo
que o § 1º do mesmo dispositivo inclui o planejamento entre os instrumentos de atuação do
Estado no domínio econômico.
92
CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano diretor (art. 39 a 42). DALLARI, Adilson Abreu; e FERRAZ, Sérgio
(coords.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), p. 319.
61
Ou seja, o plano é imperativo para o setor público. Já no que tange ao setor
privado, regido pelo princípio da livre iniciativa, o plano, em regra, é indicativo, pois o
particular, no exercício da atividade econômica, poderá, ou não, aderir às diretrizes nele
traçadas, o qual, por sua vez, serve-se de mecanismos indiretos para atrair os particulares ao
processo de planejamento.93
José Afonso da Silva, escrevendo sobre a índole jurídica do plano e a sua
repercussão para o setor privado enfatizou:
(...), se é certo que o plano indicativo não obriga o setor privado, é também certo,
como uma nota de sua índole jurídica: (1º) que a liberdade de atuação do
empresariado privado fica, em termos globais, condicionada à atuação
governamental planejada; (2º) que o setor privado não pode atuar deliberadamente
contra os objetivos do plano; (3º) que, naquelas hipóteses em que a atividade
depende de autorização ou licença, a Administração poderá ter em conta os
objetivos, previsões e requisitos estabelecidos, para outorgar, ou não, a autorização
ou licença, pois, em tais casos, sua concessão ou denegação se converte em matéria
regrada.
94
O tratamento à problemática do planejamento e do plano é sintetizado por
Marcos Geraldo Batistela, ao preconizar que:
Temos, portanto, que o planejamento constitui uma atividade ou método voltado ao
conhecimento, a interpretação e a transformação de uma realidade a partir da
disposição coordenada dos meios disponíveis para a consecução de determinados
fins, e o plano é o documento, os registros dos fins pretendidos e dos meios a serem
utilizados. Enquanto instituto jurídico, o plano está presente em vários ramos do
direito público, especialmente no direito financeiro, no direito urbanístico e no
direito econômico.95
93
Além desses dois tipos de planos, Lúcia Valle Figueiredo indica a existência dos planos incitativos. Nesse
sentido, a autora destaca que os planos indicativos são aqueles em que o governo apenas assinala em alguma
direção, sem qualquer compromisso, sem pretender o engajamento da iniciativa privada. De outra parte, ela
afirma que os planos incitativos são aqueles em que o governo não somente sinaliza, mas pretende também o
engajamento da iniciativa privada para atingir seus fins, o que pode ocorrer através da concessão de incentivos,
acesso privilegiado a financiamentos e outras medidas que tragam a colaboração da iniciativa privada (Cf.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do
planejamento, p. 12-3. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: set. 2011).
94
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93.
95
BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 11.
62
É necessário ressaltar, no entanto, que o planejamento urbano, embora
inserido como espécie de planejamento econômico, possui algumas características peculiares
incluídas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição de 1988, possibilitando uma
intervenção mais acentuada do Estado na esfera jurídica privada. Desse modo, através dele
não ocorre a intervenção no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio mais
restrito da propriedade, na qual a ordem jurídica constitucional permite a interferência
imperativa do Poder Público por meio da atividade urbanística (art. 182, § 1º).
Há de se destacar que a finalidade da atuação do Estado decorrente do
planejamento urbano deve ser unicamente a ordenação do território de um Município
destinada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, pois caso se pretenda, por
meio de normas urbanísticas, a regulação de mercado ou atividade econômica, a intervenção
não mais terá por característica a obrigatoriedade, uma vez que se verifica o desvio de
finalidade. É o que ocorre, por exemplo, quando a pretexto de ordenar seu território, um
Município, por intermédio de sua lei de zoneamento, restringe ou proíbe a realização de uma
atividade econômica em determinada área da cidade, de maneira que, ao final, comprometa a
livre-iniciativa.96
Nota-se, ainda, que no planejamento urbano não se verifica com nitidez a
distinção do plano em imperativo e indicativo.
O que se verifica, em regra, “é que os planos urbanísticos podem ser gerais
ou especiais (particularizados ou pormenorizados), e aqueles são menos vinculantes em
relação aos particularizados, porque são de caráter mais normativo e dependentes de
instrumentos ulteriores de concreção, enquanto os outros vinculam mais concretamente a
atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.97
Nesse passo, os planos urbanísticos são dotados da mesma eficácia jurídica,
variando apenas o seu círculo de destinatários, como adiante será analisado.
3.3 A importância conferida ao planejamento pelo direito urbanístico
De início, deve ser frisado que o direito urbanístico despontou em vários
países como fundamentalmente inerente à regulação da cidade e do solo urbano que, em parte,
se confunde com o objeto do planejamento urbano a ser concretizado pelos planos.
96
Cf. SILVA, Júlia Maria Plenamente. O planejamento enquanto dever jurídico do Estado. São Paulo, 2010.
Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 76-77.
97
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93.
63
Merece atenção o fato de que o ordenamento urbanístico não pode ser um
aglomerado inorgânico de imposições, devendo possuir um sentido geral, com base em
propósitos claros, para orientação de todas as disposições”. 98
A propósito, por meio do planejamento as normas interferem no conteúdo
do direito de propriedade do solo em função de sua classificação urbanística, ditam as técnicas
de aproveitamento e estruturação física da urbe, preveem fórmulas para o desenvolvimento
sustentável, reservam lugar à participação da comunidade na formulação e controle dos planos
e estabelecem sistemas de justa distribuição de encargos e benefícios entre os atingidos pela
execução da legislação urbanística.
Daniela Campos Libório Di Sarno escreveu sobre a importância do
planejamento, dizendo:
A atividade de planejamento deve ser permanente no Estado brasileiro e será por
meio dela que este ordenará suas atividades e elencará prioridades. O art. 174 da
Constituição Federal traz esta determinação com alcance genérico, pois não indica
o setor em que o planejamento deve se dar. Lê-se, desta generalidade, portanto,
que o Estado deve sempre agir por intermédio da dinâmica do planejamento.
Esse artigo está inserido no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira,
Capítulo II- Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Deste contexto, podese entender que o planejamento das ações públicas é necessário sempre que o
Poder Público quiser interferir na ordem econômica e financeira. Assim, na medida
em que a política urbana está inserida no Capítulo II deste Título, o Poder Público
deve planejar suas atividades de cunho urbanístico.99
Aliás, quanto às características das normas dos planos urbanísticos, cabe
dizer, em termos gerais, que elas alcançam, ao mesmo tempo, a regulamentação normativa e a
indicação de diretrizes técnicas e políticas.
Daí porque algumas peculiaridades das normas que compõem o direito
urbanístico, especialmente os planos urbanísticos, são destacadas por Fernando Alves Correia.
Nesse sentido, o autor lusitano aponta as seguintes características: a complexidade das suas
fontes (no direito urbanístico aparecem conjugadas normas jurídicas de âmbito nacional,
regional e local), a mobilidade das suas normas (as quais devem adaptar-se à evolução da
realidade urbanística, podendo-se citar, como exemplo, a revisão periódica dos planos
98
99
SUNDFELD Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais, p. 56.
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico, p. 55.
64
diretores), e a natureza intrinsecamente discriminatória dos seus preceitos (possibilidade de
definição diferenciada de uso e ocupação do solo urbano).100
As fases pelas quais o planejamento urbano deve passar correspondem a
atos de diversas naturezas jurídicas, que se dividem em: elaboração, execução e revisão do
plano. Em todas as fases, identifica-se o dever do Estado, que a cada momento é atribuído a
determinado órgão ou agente e cujo descumprimento pode assumir consequências diversas.
Assim, a atividade de planejar consiste na elaboração pelo Poder Público de
estudos, perícias e levantamentos técnicos multidisciplinares para a concepção da proposta do
plano a ser encaminhada ao Poder Legislativo. Após, haverá a votação do projeto, o qual, se
aprovado, passará a ter natureza jurídica de lei. O plano aprovado representa, portanto,
produção jurídica e deve ser respeitado e materializado, uma vez que de suas disposições
decorrem deveres jurídicos.
José Afonso da Silva indica alguns princípios que informam as fases do
planejamento, a saber: I) o processo de planejamento é mais importante que o plano; II) o
processo de planejamento deve elaborar planos estritamente adequados à realidade do
município; III) os planos devem ser exequíveis; IV) o nível de profundidade dos estudos deve
ser apenas o necessário para orientar a ação da municipalidade; V) complementaridade e
integração de políticas, planos e os programas setoriais; VI) respeito e adequação à realidade
regional, além da local, em consonância com os planos e programas estaduais e federais
existentes; VII) democracia e acesso às informações disponíveis.101
O referido autor ainda destaca a contribuição feita por Jorge Wilheim, o
qual indica alguns atos (passos) necessários para a formação do plano diretor: “1º Apreensão
do conhecimento existente sobre a situação encontrada, no que diz respeito a atualização,
abrangência, confiabilidade e profundidade; 2º “Leitura” da cidade, para identificação de suas
estruturas básicas e caracterização de subsistemas típicos dos diversos grupos sociais e
etários; 3º Lançamento de hipóteses e alternativas mediante o estabelecimento de um
diagnóstico integrado e prognósticos; 4º Investigações, mediante pesquisas de campo,
entrevistas, levantamentos diretos, censos, operações de consulta pública ou amostragens; 5º
Proposição do segundo objeto possível (conceito desejável de vida urbana; alternativas de
estruturas possíveis ou desejáveis; demandas, serviços, áreas); 6º Plano de estrutura,
representado pela “planta da cidade proposta”; 7º Documentos normativos de condução;
legislação do uso do solo e de loteamentos; lei de proteção à paisagem; reformas
100
101
Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual do direito do urbanismo, p. 69-70.
Cf. SILVA. José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 137-138.
65
administrativas; códigos tributários e de edificações; orçamentos-programa e outras formas de
alocação de recursos financeiros; 8º Operações de indução, mediante estímulos de variada
natureza; 9º Formação de quadros; 10º Continuidade do processo: “Para que a finalidade
última do plano se realize é preciso que ele efetivamente tenha provocado um processo
permanente da aplicação de suas recomendações, realimentação de informações e revisões
periódicas”.102
Nessa linha, resulta claro que o planejamento deve ser visto como um
processo, iniciado no âmbito da Administração Pública, quando ainda em fase de estudos
técnicos para apresentação do projeto de lei (decisão final que corresponde ao plano), o qual,
ao ser aprovado pelo Legislativo, servirá de diretriz para a execução da política urbana.
Para Júlia Plenamente da Silva aplica-se ao planejamento urbano parcela do
regime jurídico-administrativo destinada ao estudo do processo administrativo:
O devido processo legal, princípio consagrado como direito fundamental do
cidadão no art. 5º, LIV (devido processo legal) e LV (contraditório e ampla
defesa), deverá orientar a atuação do administrador na elaboração e na execução do
planejamento, tanto em seu aspecto formal ou adjetivo como em seu aspecto
material ou substantivo. O aspecto formal do princípio impõe a preservação da
lisura e da regularidade do procedimento, a fim de que a sucessão encadeada dos
atos, por ele materializada, não sofra qualquer espécie de subversão, bem como
para que não falte ao procedimento nenhum ato que seja essencial e indispensável
para a sua conclusão. Já quanto ao aspecto material, o devido processo legal é
alcançado quando o processo é utilizado como forma de realização dos princípios
jurídicos do Estado Democrático de Direito.103
Assim, para a autora, a possibilidade de controle de decisões estatais, com
efetiva participação da população, por intermédio dos mecanismos de exercício da democracia
direta, como consultas e audiências públicas, representaria para o planejamento urbano a
vertente mais importante do devido processo legal em seu aspecto substantivo.
Além disso, o planejamento urbano, corolário do princípio (urbanístico) da
coesão dinâmica (materializado, por exemplo, no art. 2º, inciso IV do Estatuto da Cidade), tem
sua existência correlacionada à função do Poder Público de proporcionar o pleno
102
103
Ibid., p. 144.
SILVA, Júlia Maria Plenamente. O planejamento enquanto dever jurídico do Estado, p. 61.
66
desenvolvimento das funções sociais da cidade. Busca-se evitar, através dele, o casuísmo e as
transformações promovidas nas cidades com base exclusivamente em interesses econômicos.
3.4 Plano urbanístico e a sua natureza jurídica
As ideias expostas já caracterizam o plano como um dos institutos
fundamentais do planejamento urbano, sendo a forma principal de intervenção racional e de
transformação do espaço urbano.
Por força constitucional, o plano urbanístico necessita de formatação
legislativa para ser implementado e observado, especialmente quando ele implicar imposição
de obrigação de fazer ou não fazer ou na criação de direitos gerais e abstratos (CF, art. 5º, II, e
art. 37, caput).
Nessa linha, por exemplo, existe previsão constitucional expressa
determinando a aprovação por lei do plano diretor municipal (art. 182, § 1º).
O processo de planejamento urbanístico adquire sentido jurídico quando se traduz
em planos urbanísticos. Estes são, pois, os instrumentos formais que
consubstanciam e materializam as determinações e os objetivos previstos naquele.
Enquanto não traduzidos em planos aprovados por lei (entre nós), o processo de
planejamento não passa de propostas técnicas e, às vezes, simplesmente
administrativas, mas não tem ainda dimensão jurídica.104
Portanto, os planos urbanísticos são dotados de juridicidade.
Para José Afonso da Silva, “os planos são conformadores, transformadores e
inovadores da situação existente, integrando o ordenamento jurídico que modificam, embora
neles se encontrem também regras concretas de natureza administrativa, especialmente
quando sejam de eficácia e aplicabilidade imediatas e executivas”.105
Acompanhando tais assertivas, mas aprofundando o debate, Marcos Geraldo
Batistela afirma que os planos também podem se apresentar como execução de uma lei
preexistente. Vejamos:
A solução adotada pelo direito positivo nacional, se aparentemente resolve o debate
do ponto de vista da forma, implica uma outra ordem de problemas, seja porque se
104
105
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 94.
Ibid., p. 98.
67
reconhece a existência das chamadas leis de efeitos concretos (cujo conteúdo é
equivalente ao de um ato administrativo), o que remete novamente ao problema
conceitual original, seja porque a lei em sentido formal que contém as disposições
do plano normalmente integra elementos pouco freqüentes em atos normativos
(instituição de regras de conduta) como tabelas, gráficos, plantas, estatísticas,
estudos preliminares etc.106
O autor manifesta com toda clareza seu posicionamento sobre a matéria
destacando também o seguinte:
Neste ponto, afigura-se que o esforço doutrinário de identificação do instituto do
plano abstratamente considerado (como conceito lógico-jurídico) com alguma das
formas jurídicas positivas tradicionais (como conceitos jurídico-positivos) não
parece trazer qualquer aporte significativo para a compreensão do tema, porque se
reporta a conceitos que se situam em níveis teóricos distintos. Com efeito, se a
forma jurídico-positiva for o critério escolhido para o estabelecimento da natureza
jurídica de um plano, então podem existir no ordenamento jurídico nacional planos
de distintas naturezas jurídicas, uns estabelecidos por lei, como o plano diretor
municipal ou o plano plurianual, outros estabelecidos por ato administrativo, como
o projeto de loteamento disciplinado na Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de
1979, os planos de bacia hidrográfica previstos na Lei Federal nº 9.433, de 8 de
janeiro de 1997, e o plano de execução orçamentária (“a programação financeira e
o cronograma de execução mensal de desembolso”) determinado pelo artigo 8º da
Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade
Fiscal).
107
Nota-se, desse modo, que a natureza jurídica dos planos tem sido objeto de
longa controvérsia. Cumpre destacar, ademais, que algumas legislações apresentam nítido
caráter misto, constituídas por determinações de natureza concreta – que têm a natureza de ato
administrativo - e por disposições abstratas – que tratam de um número indefinido de
situações.108 Isto implica dificuldades quanto à forma adequada de se questionar a
constitucionalidade ou legalidade dos atos praticados com base na referida legislação.
106
BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 22.
Ibid., p. 23.
108
É o que se verifica, por exemplo, na Lei Complementar nº 231/2011 (que trata do uso, da ocupação do solo e
da urbanização do Município de Cuiabá). A lei em referência estabelece, no capítulo II, disposições sobre o
zoneamento urbano (regras de efeitos concretos) e, ao mesmo tempo, institui índices urbanísticos e classificação
107
68
O doutrinador Fernando Alves Correia propõe a avaliação da questão da
natureza jurídica dos planos através dos seus efeitos.
A classificação proposta pelo referido autor distingue a autoplanificação
(vinculada apenas ao sujeito que aprova o plano), a heteroplanificação (com efeitos para
outros sujeitos públicos determinados) e a planificação plurisubjetiva (com efeitos para os
particulares).109
Assim, para o autor, a autoplanificação é uma típica manifestação de todos
os planos urbanísticos, já que eles, obviamente, devem vincular os sujeitos de direito público
que os elaboram e aprovam.
Na heteroplanificação, por sua vez, os planos vinculam todas as entidades
públicas, sendo tal característica comum nos planos territoriais dos Estados Unitários, nos
quais, embora haja entidades descentralizadas, estas não possuem autonomia e agem por
delegação do órgão central.110 Por certo, ante a forma de distribuição interna do exercício do
poder político no Brasil (estrutura federativa), a heteroplanificação é mais rara.
Os casos de heteroplanificação são raros no direito brasileiro, cuja estrutura federal
de Estado atribui a cada um dos níveis de governo competências estritamente
discriminadas e provê poucos recursos para a coordenação da sua atuação.
Apresenta-se, entretanto, com bastante nitidez no sistema constitucionalmente
estabelecido para o planejamento urbanístico, em que existe previsão de um plano
nacional de ordenação do território, circunscrito ao estabelecimento de normas ou
diretrizes gerais, a possibilidade de elaboração de planos estaduais de ordenação do
território e a obrigatoriedade de planos diretores municipais para as cidades com
mais de vinte mil habitantes, sendo o caso em que as disposições dos planos
territorialmente mais abrangentes vinculam diretamente os entes planejadores
dotados de menor extensão territorial em razão de suas competências
constitucionalmente definidas, isto é, os Estados e o Distrito Federal devem
obediência às normas gerais e aos planos nacionais estabelecidos pela União e os
Municípios às normas suplementares e aos planos estabelecidos pelos Estados nos
limites de suas competências.111
de usos (capítulo III), atos puramente normativos, segundo paradigmas gerais e abstratos. Disponível em:
<htpp://www.cuiaba.mt.gov.br/legislacao/legislacao_urbana_de_cuiaba.pdf>. Acesso em: out. 2011.
109
Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 384-385.
110
Cf. ARAÚJO, Luiz Alberto David de e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p.
258-259.
111
BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 35-36.
69
Cumpre registrar que a eficácia plurisubjetiva vincula o poder público e o
particular indeterminadamente. Assim, nem todos os planos territoriais têm uma eficácia
plurisubjetiva, sendo que só alguns deles também vinculam direta e imediatamente os
particulares, destacando-se, nesse contexto, os planos municipais e especiais de ordenação do
território (que estabelecem os modos de ocupação do solo urbano).
No escólio de Fernando Alves Correa, “os planos desprovidos de eficácia
plurisubjetiva são planos de orientação e de coordenação, vinculativos para as entidades
públicas, mas que não produzem efeitos directos e imediatos perante os particulares”.112
De qualquer sorte, como consequência do princípio da legalidade, o Poder
Público não pode elaborar os planos que entender, mas apenas os que a lei prevê de modo
típico, destacando-se, nesse contexto, os planos setoriais113e físico-territoriais.
Por fim, cabe acrescentar que a distribuição de competências para o
planejamento territorial pela Constituição de 1988 amolda-se à concepção de que os planos de
maior abrangência territorial devem ser menos analíticos do que os planos de menor âmbito
territorial e estes, ao contrário, devem conter disposições cada vez mais específicas e
concretas em razão de sua menor abrangência territorial e do aumento de sua força vinculante
para os sujeitos de direito, especialmente para os particulares interessados.
3.5 Planejamento urbano e valoração principiológica da Constituição Federal
Os modelos normativos de planejamento urbano evoluem até chegar ao
proposto pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, com as feições ditadas pelas
características do Estado Democrático de Direito.
Assim, no modelo de planejamento urbano anterior à promulgação da
Constituição Federal de 1988, por falta de melhor determinação, as normas urbanas podiam
ser realizadas por qualquer ente federado, independentemente de diretrizes constitucionais,
tendo como referência a legislação ordinária e, em muitos casos, com ela conflitante.114
112
CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 387.
Segundo Adílson Dallari os planos setoriais referem-se “a áreas específicas de atuação, podendo ter maior ou
menor amplitude (por exemplo: saneamento básico ou coleta e disposição do lixo, educação ou ensino básico,
saúde ou atendimento de emergência etc.)” (Instrumentos da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006, p. 77).
114
Apesar disso, cumpre esclarecer que antes da Constituição de 1988 e da promulgação do Estatuto da Cidade,
muitas cidades brasileiras possuíam planos diretores e legislação urbanística tecnicamente sofisticados, das quais
um exemplo internacionalmente reconhecido é o da cidade de Brasília (inaugurada em 1960).
113
70
Neste contexto de liberdade normativa, os planos diretores municipais eram,
em geral, documentos técnicos elaborados a partir da decisão unilateral da Administração
municipal e com orientação metodológica dos órgãos federais.
No modelo pré-constitucional de decisão, os planos urbanísticos em sua grande
maioria
constituíam
documentos
“técnico-especializados”,
fundados
no
zoneamento e no uso do solo, realizados por engenheiros e/ou arquitetos
contratados ou funcionários públicos, a partir de diretrizes dos órgãos federais e
aprovados pelo poder legislativo municipal, independentemente de participação
115
popular.
A inclusão de um capítulo próprio dedicado à política urbana, no título da
Ordem Econômica e Financeira, foi uma das novidades da Constituição de 1988. Assim, a
Constituição Federal ao descrever no seu artigo 182 e parágrafos o plano diretor como
elemento fundamental da ordenação do território e como instrumento básico do
desenvolvimento urbano informa que, em seu conteúdo, incluem-se, pelo menos, dois
princípios: o da função social da propriedade urbana e o da função social da cidade.
Estes, ao lado dos princípios que fundamentam a existência do Estado
brasileiro, conferiram uma nova dimensão jurídica ao planejamento urbano, contextualizandoo na perspectiva do constitucionalismo contemporâneo na qual também os direitos
fundamentais, os objetivos a serem alcançados pelo Estado e a sustentabilidade ambiental
alcançam especial relevo.116
A mudança de paradigmas no âmago da Constituição que propicia a
centralidade de alguns princípios no ordenamento é analisada com nitidez por Carlos Ayres
Brito. Vejamos:
(...) o fato é que, à sua dignidade formal a Constituição adicionou uma dignidade
material. E assim recamada de princípios que são valores dignificantes de todo o
Direito, é que ela passou a ocupar a centralidade do Ordenamento Jurídico, tanto
quanto os princípios passaram a ocupar a centralidade da Constituição. Estrada de
115
OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano, p. 101.
Para Eros Grau “a falta de reflexão tem levado alguns analistas do pensamento da doutrina a confundir
valores (teleológicos) com princípios (deontológicos), colocando-se à deriva diante de uma mal-digerida
apreensão da exposição dworkiniana, que em rigor exclui os princípios do âmbito normativo; cumpre
observarmos que os conflitos e as oposições entre princípios são conflitos e oposições entre normas (...)” (Ensaio
e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. Malheiros Editores: São Paulo, p. 192-193).
116
71
mão dupla, pois o fato é que o reconhecimento da força normativa dos princípios
coincide com o reconhecimento da força normativa da Constituição, num
117
crescendo que chega à superforça de ambas as categorias.
A República Federativa do Brasil está atualmente estruturada em cinco
fundamentos que indicam a forma correta de interpretar toda a aplicação do direito positivo
brasileiro em vigor.118 Ou seja, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
Distrito Federal, a República Federativa do Brasil, a partir de 1988, veio a se constituir em
Estado Democrático de Direito, adotando como alicerce a soberania, a cidadania, a dignidade
da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, assim como o
pluralismo político (art. 1º, I a V).
Do mesmo modo, a República Federativa do Brasil, ao organizar seu
sistema jurídico, a partir de 1988, pretendeu alcançar de maneira deliberada alguns propósitos
que foram claramente estabelecidos no art. 3º, I a IV.
Dentre suas finalidades nossa Lei Fundamental deixou clara a necessidade
de erradicar a pobreza assim como a marginalização, destacando por outro lado o objetivo
declarado de procurar reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III).119
Por outro lado, a República Federativa do Brasil reconhece que, por força
do fundamento constitucional descrito no art. 1º, IV, necessita adaptar seu direito positivo,
vinculado ao fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), para reduzir as
desigualdades sociais e regionais do Brasil”.
117
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181.
Como anota Juarez de Freitas, a interpretação jurídica há de reafirmar os fins, os princípios e os objetivos do
sistema posto, partindo-se do ápice constitucional, os quais precisam rumar para a concretização plena,
exemplificativamente, onde a ordem econômica esteja sujeita aos ditames teleológicos e racionais da justiça
social, para a concretização de uma sociedade livre, justa e solidária (FREITAS, Juarez. A interpretação
sistemática do direito, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 137).
119
Trata-se de exemplo típico de “norma-objetivo”, operando a definição dos fins primordiais do Estado
brasileiro. Para Eros Roberto Grau o crescimento do Estado-ordenamento e do Estado-aparato trouxeram
consigo a experiência concreta do surgimento de normas jurídicas diferenciadas, que rompem os modelos
tradicionalmente conhecidos, de norma de conduta e de norma de organização. Assim, para o referido autor
“deixando o Estado – operador último do Direito – de ser um mero produtor de ordem, segurança e paz (isto é,
de ordenação) e passando a atuar também como conformador da ordem social e da ordem econômica, surgem, no
Direito positivo, inúmeros exemplos de normas que não têm o sentido de disciplinar condutas ou de instrumentar
a organização de entidades ou atividades, mas sim, tão-somente, de fixar fins (objetivos) a serem alcançados”.
Para ele, as disposições da lei do plano que aprova as diretrizes e prioridades nele contidas é também exemplo de
“norma-objetivo” (Notas sobre a noção de norma-objetivo. Direito constitucional: teoria geral da constituição.
Coleção doutrinas essenciais, v. 1. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 843 e 847).
118
72
Há de se destacar, ainda, que o Brasil, seguindo uma tendência mundial,
conferiu destaque especial à preservação do meio ambiente, que se incorporou como princípio
na vigente Lei Maior, conforme registra Paulo de Bessa Antunes:
A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio ambiente são de
vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias
para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente,
seja porque a defesa do meio ambiente é um princípio constitucional que
fundamenta a atividade econômica (Constituição Federal, artigo 170, VI). Vê-se,
com clareza que há, no contexto constitucional, um sistema de proteção ao meio
ambiente que ultrapassa as meras disposições esparsas.
120
Não é por outra razão que a qualidade do meio ambiente urbano assume
feição especial no ordenamento jurídico nacional, sendo que os planos urbanos, antes
preocupados basicamente com o controle do uso do solo, voltam também sua atenção,
atualmente, para os recursos naturais urbanos.
Pode-se dizer, ainda, que a Constituição Federal trouxe novos paradigmas
ao planejamento urbano, com a introdução do conceito normativo de democracia participativa
(art. 1º e parágrafo único). Vale frisar que a participação, enquanto atividade eminentemente
política dos cidadãos, é um dos pressupostos do Estado Democrático.121
Necessário observar, por oportuno, que do ponto de vista jurídico a
democracia é tida como princípio geral de Direito, expressamente reconhecida pelo
ordenamento constitucional brasileiro.122
Extrai-se do princípio democrático não somente a obrigação do Estado de
respeitar as mais elementares normas de democracia representativa (eleições periódicas,
separação de poderes, liberdade partidária), mas também, como enfatiza Canotilho, que ele
“implica a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de
apreender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer o controlo crítico na
120
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 2. ed. rev e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 40.
Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 89-90.
122
Pode-se afirmar que princípios jurídicos são normas dotadas de um elevado grau de generalidade e abstração
e que formam a estrutura fundamental de um sistema jurídico. Diferenciam-se das regras, que também são
normas, pelo menor grau de generalidade e abstração e pela menor importância estruturante destas dentro do
sistema jurídico (Cf. GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros,
1996, p. 19).
121
73
divergência de opiniões, produzir imputs políticos democráticos”, importando, por isso,
123
numa “forma de organização” do Estado e da Administração Pública.
Para Carlos Ayres Brito, a democracia constitui o valor-síntese da
Constituição, ou, de acordo com suas palavras “o próprio ser da Constituição, a sua
quinteessência”124, não havendo na Constituição outro que se lhe iguale em importância
funcional-sistêmica.
A adoção do sistema democrático não importa somente o poder de
selecionar eleitoralmente os governantes, mas, também, de dividir com eles algumas funções
de governo e ainda controlar o modo pelo qual tais governantes se desincumbem do mandato
ou do papel institucional que lhes é confiado. E, para tanto, adverte o citado autor:
É do nosso entendimento que o controle social do Estado, tanto quanto a direta
participação popular nos atos de governo, sejam atividades tanto mais eficazes
quanto mais numerosos forem os mecanismos de divisão interna do poder político
(Federação, Separação dos Poderes, Sistema Parlamentar de Governo...). É que o
povo já encontra os órgãos e pessoas estatais reciprocamente limitados.
Mutuamente contidos. E aí passa a conviver de modo mais facilitado com
instâncias governamentais já relativizadas ou quebrantadas, cotidianamente, no seu
poder institucional. O controle e a participação popular, nesse contexto, apenas dão
seqüência a mecanismos constitucionais de desconcentração e descentralização da
autoridade. Daí a compreensão de que a Democracia pressupõe uma organização
estatal que prime pela divisão orgânica e territorial do poder político, em bases
equilibradas; quer dizer, sem hegemonia de um órgão estatal sobre outro, ou de
uma pessoa territorial sobre as demais.
125
O ordenamento jurídico prevê expressamente diversas formas de
participação do cidadão na gestão pública. Nesse sentido, por exemplo, há previsão desta
participação no planejamento municipal (art. 29, X, da CF), na gestão orçamentária e da
cidade (art. 4º do Estatuto da Cidade), no sistema de saúde e seguridade social (art. 198, III e
art. 194, VII, da CF), bem como na política de habitação de interesse social e na regularização
fundiária dos assentamentos informais urbanos.
123
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 288.
124
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, p. 181.
125
Ibid., p. 185.
74
No Estatuto da Cidade a democracia participativa está fixada como diretriz
da gestão democrática (art. 2º, II). Além disso, a participação popular é contemplada no inciso
XIII, do art. 2º, no inciso III, do art. 4º (planejamento municipal) e no § 4º, I, do art. 40
(elaboração do plano diretor).
A noção de participação popular está intrinsecamente ligada à própria
concepção de democracia. Nesse sentido, ainda que não contasse com nenhuma referência
expressa no Texto Constitucional de 1988, ao avesso do que verdadeiramente ocorre,
deduziríamos a presença implícita de norma constitucional autorizante da criação de institutos
de participação popular na Administração Pública, através dos princípios democráticos e do
Estado de Direito, princípios básicos de organização do Estado Brasileiro, conforme definido
pelo art. 1º da Constituição Federal. 126
Portanto, a participação popular na elaboração e execução do plano
urbanístico possui fundamento constitucional. Constitui-se em regras de cumprimento
obrigatório, materializando um tipo de planejamento democrático e participativo com
pretensão de eficácia administrativa.
Com efeito, a partir da determinação legislativa, tanto na elaboração quanto
na gestão dos programas, projetos e planos urbanos, é necessária a participação dos cidadãos,
como critério de legitimidade das decisões.
Diante desse contexto, a legislação urbanística deve abarcar as exigências
constitucionais acima elencadas, além das recomendações globais, maximizando o princípio
da dignidade da pessoa humana, dentro de um ambiente saudável e uma vida de acesso ao
bem-estar.
Por certo, o ordenamento do território (através dos planos urbanísticos),
assume uma função essencial, especialmente diante das carências das nossas cidades. Assim,
ele é orientado, constitucionalmente, a ser instrumento destinado a assegurar resultados úteis,
vinculado aos objetivos apontados na Constituição Federal.
Destarte, os planos de ordenação dos territórios se caracterizam por serem
fundamentalmente instrumentos, dentre outros encontrados na Carta Magna, destinados a
também contribuir, em seus respectivos âmbitos de aplicação, para o atingimento dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Desse modo, o recurso ao planejamento, cujo plano urbanístico é uma das
suas expressões, é de suma importância para se atingir os objetivos fundamentais da
126
Cf. PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na
administração pública. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 74.
75
República Federativa do Brasil. O art. 182 da Constituição de 1988, por sua vez, dispõe que a
política de desenvolvimento urbano tem por objetivo garantir o bem-estar dos habitantes da
cidade. Assim, para o alcance de tais objetivos é necessário que métodos e estratégias sejam
reunidos, para conformar uma atuação planejada.
A planificação, neste contexto, não pode desconsiderar tais aspectos,
servindo-lhes como garantia de efetivação.
3.6 Visão integrada de planejamento urbano
Pelo que já foi destacado, o planejamento sofreu um impulso considerável
nas últimas décadas devido ao grau de intervenção da Administração Pública no tecido social,
especialmente nas funções de ordenação do território, de apoio ao desenvolvimento
econômico e social, de promoção da justiça social e de prestação social, no qual o plano
tornou-se um instrumento essencial da ação administrativa nos Estados com o modelo de
Bem-Estar Social.
Esta é a razão pela qual a Constituição Federal de 1988 indica vários
dispositivos sobre planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social, sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, sobre o planejamento do uso e ocupação do solo urbano pelos municípios,
sobre planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos e
programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, além de disposições
específicas sobre o plano diretor municipal.
Destacam-se, neste cenário, os planos econômicos, ou, talvez mais
rigorosamente, socioeconômicos, e os planos territoriais.
Não obstante as íntimas conexões e influências recíprocas que se verificam
entre a planificação territorial e a planificação econômica, pode-se afirmar que uma e outra
reportam-se a diferentes elementos da realidade.
É o que adverte Fernando Alves Correia:
(...) a planificação territorial distingue-se da planificação económica porque, como
escreve A. PREDIERI, tem o território como objecto, sobre ele intervém e pretende
intervir directamente, prosseguindo efeitos de planificação da actividade
76
económica apenas enquanto conexos com a planificação do território, somente
127
enquanto efeitos condicionados ou induzidos pela planificação do solo.
O citado autor, com base nos ensinamentos de renomados juristas europeus,
ainda fornece um conceito sobre plano econômico:
O plano econômico é ‘o acto ou conjunto de actos jurídicos por meio dos quais o
Estado define para determinado período os grandes objectivos da política
económico-social e as vias ou meios da sua implementação ou concretização’. É
com base nos planos económicos que os poderes públicos analisam as
probabilidades da evolução económica, definem as orientações desta evolução e
incitam os agentes económicos a observá-las.
128
Não há dúvidas de que o planejamento urbano deve estar vinculado ao
planejamento econômico e social. Neste sentido, por exemplo, a programação de políticas de
investimento pela União em obras numa determinada região do país, ou mesmo o incentivo à
instalação de empresas ou atividades numa localidade, irá impactar social e economicamente
na infraestrutura dos municípios onde elas ocorrerão. Aliás, a própria Constituição de 1988
sinalizou as estreitas relações entre ambos (CF, art. 21, IX).
Embora muitos Municípios sequer consigam implantar o plano urbanístico
de ordenação territorial que integra a sua competência, é certo que alguns problemas
relacionados à saúde, à habitação, à geração de renda, entre outros, para a sua resolução
estrutural, dependem de políticas macroeconômicas, fiscais e definições das esferas estaduais
e da União, que seguramente ultrapassam o âmbito municipal.
Como facilmente se compreende, a situação acima caracterizada demanda
uma intervenção do Poder Público nos solos urbanos, através do recurso a diversas
providências, tendentes a promover uma política de ordenação das cidades que envolva uma
interação coordenada nos âmbitos nacional, regional e municipal.
Com efeito, o recurso ao planejamento coordenado entre os entes públicos é
uma maneira de se intervir neste problema. Ou seja, trata-se de implantar um sistema racional
de planejamento com o objetivo de relacionar intimamente crescimento econômico com
127
128
CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 352-353.
Ibid., p. 353-354.
77
crescimento urbano, num sistema de planejamento integrado que possibilite a canalização de
esforços e recursos dentro de uma mesma visão global de desenvolvimento.
Pode-se afirmar que os problemas referentes ao planejamento físico só
podem ser efetivamente enfrentados quando o mesmo está contido numa visão integral de
planejamento global. Da mesma forma, o planejamento físico deve estar integrado numa visão
que defina níveis de atuação nacional, regional ou local, mantendo a possibilidade de
coerência do sistema.
É o que esclarece Roberto Loeb:
Cada cidade, cada região constitui com todos os seus componentes um sistema
complexo de variáveis interdependentes, cuja manipulação exige uma apreciável
coordenação técnica (política, administrativa, social e econômica) sob pena de
perda da possibilidade de atuação sobre esse sistema. Assim, a implantação de
determinada política de concentração industrial, a abertura de determinada estrada,
ou a criação de um novo imposto podem influir sensivelmente numa dada
distribuição espacial, deslocando centros de polarização e criando novos elementos
de crescimento. A possibilidade de manipulação de todas essas variáveis torna-se
assim possível apenas a partir da formação de equipes de trabalho interdisciplinar
nas quais a visão de planejamento integral predomine, em oposição à prática do
planejamento setorial para a solução de problemas interdependentes.
129
É certo que, em decorrência do planejamento urbano, o Estado realiza
intervenção que pode implicar limitação administrativa à propriedade ou ainda sacrifício
parcial ou total do direito.
Já a atividade econômica é de livre iniciativa de todos e segue apenas
comandos gerais do Estado, sem a imposição de limitações ou restrições específicas, vez que
se trata de interesse particular do cidadão desenvolver a atividade econômica que melhor lhe
aprouver com a finalidade de obter lucro. No entanto, há casos excepcionais em que o
planejamento econômico tornar-se-á obrigatório, como pode ocorrer no controle dos preços,
desde que para garantir a livre iniciativa. 130
Assim, o planejamento econômico direcionado aos particulares serve
apenas como incentivo, a ser seguido ou não.
129
LOEB, Roberto. Aspectos do planejamento territorial no Brasil. Planejamento no Brasil, p. 143.
Cf. BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites da atuação estatal no controle
de preços. Revista Diálogo Jurídico. Número 14 – junho/agosto. Salvador: Centro de Atualização Jurídica, 2002,
p. 24-27.
130
78
3.7 Os planos de ordenamento territorial
Conforme adrede exposto, os planos de ordenamento territorial podem ser
diferenciados dos planos econômicos e sociais, muito embora haja íntima conexão entre
ambos, advinda da relação necessária com o território em que produzem efeitos.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o ordenamento territorial abrange as
áreas do planejamento que têm impacto direto sobre a organização do território. 131
Assim, são vários os planos que têm o território como seu objeto no Brasil,
especialmente os relativos à área ambiental (a exemplo da Lei nº 7.661/98, que instituiu o
Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e da Lei nº 9.433/97, que instituiu a Política
Nacional de Recursos Hídricos).
Além disso, há planos no âmbito do direito agrário, os voltados a questões
turísticas, e os de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por quilombolas, índios,
etc., destacando-se, ainda, a existência de alguns institutos, como os dos consórcios públicos,
que também exercem forte impacto sobre o ordenamento territorial (Lei nº 11.107/2005), já
que o compartilhamento de equipamentos de uso coletivo, infraestrutura social e econômica e
recursos para o desenvolvimento social e econômico das municipalidades mais pobres é
fundamental para fixar a população em seus lugares de origem, oferecendo-lhes reais
condições de vida e trabalho, com custos menores para as prefeituras dos municípios que
fazem parte do consórcio.
Nesse sentido, ressalta Ana Teresa Sotero Duarte:
Se formos consultar os diferentes Ministérios que atuam em áreas como
planejamento econômico, agricultura, política agrícola e agrária, produção de
alimentos, desenvolvimento industrial, educação, meio ambiente, planejamento
urbano, infraestrutura básica (como transportes, rodovias, saneamento, energia
elétrica e abastecimento), vamos ver que, de alguma forma, todas atuam, direta ou
131
Aparentemente não foi despretensiosa a inclusão, no inciso IX do art. 21 da Constituição, da competência da
União para, além de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território, de também
elaborar e executar planos de desenvolvimento econômico e social, em visível demonstração de entrelaçamento
de tais políticas – indicando a inter-relação de seus instrumentos administrativos e normativos. José Afonso da
Silva, inclusive, menciona que o método adotado pelo II e III Plano Nacional de Desenvolvimento “parece
cumprir melhor uma das características básicas de um plano urbanístico nacional, que é a de vincular os
objetivos urbanísticos às previsões da planificação econômica e social do país” (SILVA, José Afonso da. Direito
urbanístico brasileiro, p. 115).
79
indiretamente, sobre o ordenamento do território, com base em algum plano ou
132
projeto relacionado ao seu campo de atuação específico.
Como se nota, as normas relativas ao ordenamento territorial no país estão
“pulverizadas” por diversos instrumentos legais.
Já no sistema de ordenamento territorial da Alemanha, por exemplo, os
procedimentos básicos relativos ao ordenamento territorial encontram-se resumidos em
alguns poucos mecanismos legais, válidos para todo o país. Os mais importantes dispositivos
legais relacionados ao ordenamento territorial acham-se resumidos na lei federal de
ordenamento territorial desde 1965. 133
Seguindo a intenção constitucional de distribuir a planificação entre as
esferas de governo, os planos territoriais no Brasil podem ser elaborados pela União, pelos
Estados-membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (que estabelece diretrizes gerais da
Política Urbana) trata, entre outras questões relacionadas ao ordenamento do território em
nível municipal, dos critérios de elaboração dos planos diretores previstos na Constituição
Federal, deixando, no entanto, de fixar regras e especificidades para os planos de nível
nacional, regional e estadual.
No art. 4º, capítulo II, desta lei estão definidos os instrumentos de política
urbana, entre os quais se destacam: a) planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do
território e de desenvolvimento econômico e social; b) planejamento das regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; c) planejamento municipal, onde se
encontram incluídos o plano diretor, a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do
solo e o zoneamento ambiental; d) planos diretores, zoneamento ambiental, plano plurianual,
diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos, programas e projetos setoriais, planos de
desenvolvimento econômico e social.
A respeito do que estabelece a lei de política urbana sobre o ordenamento do
território municipal, é importante lembrar a dificuldade que pode representar para a
administração municipal a elaboração de um plano de ordenamento sem que se possa contar
com diretrizes em nível estadual e federal.
132
DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de
desenvolvimento regional para o semi-árido. Brasília. Consultoria Legislativa/Estudo/Câmara dos Deputados.
Fevereiro de 2002, p. 03.
133
Ibid., p. 09-14.
80
Isto porque, para existir de fato, o ordenamento do território deve ser
elaborado de forma articulada entre as esferas federativas, “indo dos arcabouços maiores dos
planos nacionais e macrorregionais até os mais limitados dos planos microrregionais e
locais”, de tal sorte que “os nacionais estabeleçam as diretrizes e objetivos gerais do
desenvolvimento da rede urbana do território nacional em função do plano nacional de
desenvolvimento econômico-social; os macrorregionais desceriam aos aspectos mais
particularizados das regiões em função do planejamento econômico-social regional; os planos
estaduais e microrregionais de cada Estado, observadas aquelas diretrizes e objetivos, seriam
planos de coordenação urbanística; e, finalmente, cada Município faria seu plano urbanístico
(plano diretor), segundo suas necessidades e conveniências, respeitadas as diretrizes e
objetivos econômicos e sociais fixados nos planos de nível superior”. 134
Assim, o cenário ideal seria o de um ordenamento do território que fosse
elaborado “de cima para baixo”, ou seja, primeiro no nível nacional, depois no estadual e,
finalmente, no nível municipal, em articulação com o planejamento econômico e social.
Aliás, é possível dizer que a distribuição constitucional da planificação
urbanística entre todas as esferas de governo representa a intenção de se instituir no Brasil um
sistema de planejamento territorial com tais características, de modo que a análise dos planos
urbanísticos deve inspirar-se no seu conjunto e na função que exercem no sistema jurídico.
Nessa linha, pode-se acrescentar que a visão sistêmica da política de
ordenamento territorial e de urbanismo deve se assentar num quadro de interação coordenada
que viabilize a concretização dos instrumentos de planificação territorial nos âmbitos
nacional, regional e municipal.
É importante destacar que a ideia de sistema inculca imediatamente outras,
tais como as de unidade, totalidade e complexidade. Por sua vez, o sistema de ordenação do
território instituído pela Constituição de 1988 tem como pressuposto a necessidade de se
chegar à redução da complexidade normativa e organizativa de um ordenamento caracterizado
pela proliferação de normas instituídas por vários centros de produção de Direito.135
Outrossim, o inchaço organizacional, a inflação normativa e as lacunas das
ações públicas só podem ser combatidas com ação eficiente do Estado. Além disso, se os
imprevistos e as improvisações do governo são reduzidos e na mesma proporção cresce a
134
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 105.
“Não é o direito em si mesmo o que é um sistema, mas sim o direito visto como conjunto de normas
entrelaçadas é o que aparece como sistema” (DROMI, Roberto. Sistema jurídico e valores administrativos. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2007, p. 137, nota 262).
135
81
certeza jurídica e desaparecem as vacilações administrativas, o produto final da gestão pública
se verá potencializado.
É por isso que a análise conjuntural dos planos urbanísticos só será possível
com a edição do plano nacional de ordenamento territorial que, por sua vez, deverá orientar a
reformulação dos planos territoriais hoje existentes. Seria necessário, pois, compatibilizar as
normas dos planos urbanísticos dos demais entes federativos com as do plano nacional, a fim
de evitar a superposição e a eventual contradição de ações promovidas por tais unidades no
território. Ou seja, é o plano nacional que possibilitará a criação de um verdadeiro sistema de
ordenamento territorial no Brasil.
A tarefa de realizar um planejamento urbano adequado deve estar orientada
sistematicamente. A premissa é a integração dos diversos planos, formando um todo com seus
objetivos, seus conteúdos e suas estruturas.
Isto nos permite descortinar algumas notas características dos planos
urbanísticos: a primeira, é de que tais planos são basicamente uma unidade, tratando-se de
meros instrumentos qualificados pelo ordenamento como essenciais para o alcance de valores
caros à sociedade; a segunda diz respeito ao fato de todos os planos preverem um leque de
medidas, que se posicionam numa relação indissolúvel de complementaridade e, algumas
vezes, de dependência recíproca. Esta última característica é bem patente nos casos em que a
obtenção de um resultado apenas pode ser garantida através de aplicação conjunta das
diferentes medidas, ou ainda quando a sua interligação é de tal ordem que a alteração ou
ausência de alguma medida provoca uma reação em cadeia, que põe em causa a concepção de
conjunto.136
Fernando Alves Correia ressalta que essa visão de conjunto dos planos não
pode nos fazer perder de vista as particularidades da planificação urbanística em relação a
planos de outras naturezas.137
Nesse sentido, o ordenamento jurídico estabelece objetivos comuns ao
planejamento urbano realizado pelos entes federativos concomitantemente com a utilização de
mecanismos distintos que levem em consideração as peculiaridades do objeto a que se
destinam, bem como as divisões de poder no território, de modo que os planos urbanísticos
podem ser avaliados num sistema de planejamento fechado ou aberto dependendo de suas
características.
Nessa perspectiva, enfatiza Marcos Geraldo Batistela:
136
137
Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 363.
Ibidem.
82
Num sistema de planejamento “fechado” existe uma relação de necessidade ou
dependência entre os planos, segundo a qual a elaboração de um plano executivo
ou mais analítico pressupõe a existência prévia de um plano de diretrizes, como
ocorre no direito financeiro, em que a lei orçamentária anual depende da existência
da lei de diretrizes orçamentárias e esta pressupõe a existência da lei do plano
plurianual, que o direito positivo coloca como marco original de todos os outros
planos financeiros do Estado (arts. 165 e 166 da Constituição), enquanto num
sistema de planejamento “aberto” esta relação não se apresenta ou não se apresenta
integralmente, atingindo todos os planos de uma mesma natureza, isto é, os
diferentes planos podem ter existência autônoma e sua validade não depende
juridicamente da existência de outro plano, como ocorre com o planejamento
territorial no Brasil, em que os diferentes planos aplicáveis a um mesmo território
não se reportam todos a um mesmo plano de diretrizes global. Quanto a este
aspecto, o planejamento urbanístico apresenta-se ora como sistema fechado
(diversos institutos jurídicos exigem uma disciplina preliminar no plano diretor
municipal), ora como sistema aberto (a elaboração de planos diretores municipais,
seu instituto jurídico fundamental, independe da existência de outros planos de
natureza mais abstrata).138
Tal abordagem deve ser avaliada tendo como base o grau analítico das
previsões dos planos, haja vista que a ordem de seus preceitos normativos caminham de
forma gradual, partindo de um patamar de maior abstração para outros de menor abstração e
maior grau de concretude. De forma alguma, a Lei Fundamental atribui maior importância aos
planos de âmbito territorial mais amplo em relação aos de âmbito mais circunscrito. Muito
menos pode haver exigência de necessidade (de surgimento gradativo-sequencial) entre os
diversos graus da planificação, não estando a aprovação de um plano de “nível inferior”
vinculada à aprovação prévia ou concomitante de um plano de “nível superior”.139
A Constituição de 1988 institui, sim, um sistema de ordenação territorial,
numa espécie de conjunto de normas entrelaçadas (numa interação que pretende ser coerente),
de modo que o plano nacional e os planos regionais estabeleceriam disposições genéricas e
opções para o ordenamento do espaço realizado pelas demais unidades federativas.
Assim, a edição de planos urbanísticos de maior abrangência territorial,
integrados aos planos e programas de desenvolvimento econômico e social (com seus
138
BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 38-39.
Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das
constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 80-81.
139
83
incentivos, financiamentos e outros instrumentos) influenciariam o desempenho da atividade
urbanística (realização de desapropriações, a aprovação de loteamentos e de distritos
industriais, a regularização de terras urbanas em áreas de interesse ambiental, a doação de
terras públicas para empreendimentos privados etc.), induzindo, paulatinamente, os demais
entes federativos a seguirem as diretrizes gerais de ordenação territorial.
Desse modo, a União exerce função primordial na implantação de um
sistema de planos estruturais, na medida em que os planos territoriais de sua competência
podem possibilitar a integração dos diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e
desenvolvimento, entre os níveis de governo, permitindo maior eficiência nas ações
administrativas entre governos e gestões sucessivas e, consequentemente, a adequada
alocação de recursos.
84
4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO
4.1 Aspectos gerais
Como visto em linhas anteriores, a Constituição Federal de 1988
estabeleceu um sistema integrado de ordenamento territorial, prevendo uma ação coordenada
nos diferentes níveis de governo, de modo que podem ser elaborados planos de abrangência
nacional, regional, estadual, intermunicipal, e municipal.
Aliás, num país com dimensões continentais, de alta diversidade ambiental,
cultural, social e econômica como o Brasil, revela-se fundamental a existência de planos
territoriais de caráter nacional e regionais para orientar o uso e a ocupação das terras.
Conforme analisado, o regime de repartição de competências adotado pela
Constituição de 1988 atribui à União a elaboração de três tipos de planos de ordenação
territorial: a) o plano nacional; b) os planos regionais ou macrorregionais; e c) os planos
setoriais.
De fato, a regulação das tendências de distribuição das atividades produtivas
e de investimentos no território nacional e a necessidade de coordenação deste processo pela
União, para melhor organização da ocupação, uso e transformação do território, é que
fundamenta a existência da ordenação territorial em nível nacional e regional. Ou seja, no
modelo federativo brasileiro, a Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da União é
essencial para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto direto no
território.
As exigências do desenvolvimento nacional reclamam essa concentração,
pois, na verdade, a União, através do Governo Federal, é que dispõe de recursos financeiros,
técnicos e humanos para orientar o crescimento programado de federação dotada de estrutura
continental, como a brasileira, reduzindo disparidades regionais, mediante adequada
repartição do produto nacional
Por outro lado, passados mais de vinte anos da promulgação da
Constituição, a União ainda não se desincumbiu do dever de elaborar o plano nacional e os
planos regionais de ordenamento territorial, o que significa que ainda não houve a
implantação de uma política nacional de ordenamento territorial. Por sua vez, é inquestionável
a existência de inúmeras políticas setoriais que impactam o território, algumas delas
85
elaboradas e executadas de forma desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes
federativos, e, inclusive, entre os órgãos de uma mesma unidade federativa.140
No seminário promovido em novembro de 2006 pelo Ministério da
Integração Nacional, cujo objetivo foi discutir as bases para a implementação de uma Política
Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT) foram desenvolvidos alguns estudos temáticos.
Num deles, houve a apresentação de um slide pelo professor Marcel Bursztyn indicando
alguns instrumentos já existentes com reflexos no ordenamento territorial, como o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, os
Planos Diretores Municipais (e seus instrumentos de gestão territorial urbana), o Plano
Nacional de Recursos Hídricos, os Planos Diretores de Bacias Hidrográficas, o Plano de
Desenvolvimento Territorial Sustentável, o Programa Nacional de Desenvolvimento dos
Territórios Rurais (PRONAT), o Programa de Proteção de Terras Indígenas, o Programa de
Zoneamento Ecológico-Econômico, e os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento.
Alguns instrumentos com rebatimento territorial também foram indicados,
como é o caso das seguintes políticas: a Política Nacional de Desenvolvimento Regional, a
Política Nacional de Meio Ambiente, a Política de Desenvolvimento Rural Sustentável, e a
Política Nacional de Recursos Hídricos.
Quanto aos planos macrorregionais e subregionais foram destacados os
seguintes: o Plano Amazônia Sustentável, o Plano de Desenvolvimento do Nordeste, o Plano
de Desenvolvimento do Centro-Oeste, o Plano de Desenvolvimento do Semi-Árido, e o Plano
BR-163 Sustentável. Programas setoriais também foram apontados, dentre eles: o Plano
Nacional de Logística e Transporte, o Plano Nacional de Reforma Agrária, e o Plano Nacional
de Energia.
Por sinal, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território
são tidos pelo ordenamento jurídico como instrumentos de política urbana, dada a relevância
deles para a orientação e reorientação do desenvolvimento urbano, encontrando previsão
expressa no Estatuto da Cidade, ao lado do planejamento das regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e do planejamento municipal (art. 4º).
Tal normatização amplia a concepção aparentemente restritiva posta pelo
art. 182 da Constituição Federal que, numa leitura apressada, transmite a focalização do
ordenamento territorial no plano diretor e na execução deste pelo Poder Público municipal.141
140
Disponível em:<htpp://www.mi.gov.br/desenvolvimentoregional/seminario_pnot/>. Acesso em: 15 set. 2011.
CF. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das
constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 86.
141
86
Assim, os planos de ordenação territorial da União, especialmente o plano
nacional, devem também viabilizar a implantação das diretrizes e princípios voltados ao
desenvolvimento urbano do país.
Cumpre registrar, na oportunidade, que os planos nacionais de
desenvolvimento de maior envergadura realizados no Brasil continham numerosas diretrizes
para a política urbana nacional, como é o caso do Plano Decenal (1964-1967), do Plano de
Desenvolvimento Estratégico (1967-1969) e dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND
I, II e III de 1972-1985).
Embora o planejamento urbanístico mais característico, mais eficaz, e mais
concreto seja o realizado no âmbito municipal, o ideal é que cada Município elabore seu plano
urbanístico de acordo com suas necessidades e conveniências, mas respeitando as diretrizes e
objetivos econômicos e sociais fixados nos planos nacionais e regionais.
Vale destacar que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais
previstos na Constituição Federal devem ser elaborados em consonância com o plano
plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional (artigo 165 § 4º).
Do mesmo modo, é princípio geral da atividade econômica o exercício pelo
Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, das funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e
indicativo para o setor privado (art. 174, caput, da Constituição Federal), sendo que a lei
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o
qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (art.
174, § 1º).
Outro dispositivo constitucional de extrema relevância para a análise dos
planos urbanísticos de competência da União é o que dispõe que, para efeitos administrativos,
tal ente poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando ao
seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais, dispondo lei complementar
sobre as condições para integração de regiões em desenvolvimento e a composição dos
organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos regionais, integrantes dos
planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com este
artigo (artigo 43, § 1º, incisos I e II).
É, portanto, a partir desta normatização constitucional que se pode afirmar
ser a Lei Fundamental a que se preocupa em estabelecer a correlação dos planos de
desenvolvimento econômico-social com os de ordenação territorial, visando à harmonização
dos objetivos econômicos, sociais e ecológicos.
87
4.2 Planos urbanísticos e competência do governo central em perspectiva comparada
O conhecimento do direito estrangeiro é de grande valia, notadamente em
um assunto ainda pouco consolidado no direito urbanístico, como é o caso dos planos
urbanísticos de competência da União.
Embora as sociedades e os ordenamentos jurídicos de cada país sejam
diferentes, há possibilidade de uma comparação válida com o ordenamento brasileiro, pois os
países considerados adotam economias de mercado com regulação estatal e todos consideram
os planos protagonistas do sistema de gestão territorial.
No sistema continental europeu, as legislações urbanísticas de alguns países
são tradicionalmente estruturadas em um sistema de planos urbanísticos, como é o caso da
Ley de Régimen del Suelo y Ordenación Urbana (Espanha); Code de l’Urbanisme et de
l’Habitation (França); Bundesbaugesetz (Alemanha); Lei de Bases da Política de
Ordenamento do Território e Urbanismo (Portugal).
Assim, tais legislações estabelecem a coexistência de planos de maior
abrangência territorial, que fixam diretrizes a serem acatadas pelos planos de menor
abrangência territorial, que são mais detalhados e minuciosos. Os planos são tipificados em
lei e os governos locais não podem criar outros, distintos.
Os planos de maior amplitude são os nacionais, regionais ou setoriais, que
contêm diretrizes para a elaboração de outros planos mais específicos, sem que suas regras
sejam diretamente oponíveis aos particulares. Nos dizeres de Carlos Magno Miqueri da Costa
“há uma hierarquia das normas dos planos, e as mesmas têm que ser articuladas para que se
evitem conflitos que levem à dúvida sobre a prevalência de uma ou de outras”.142
Muito embora as administrações locais possuam competências e
personalidade jurídica de direito público (descentralização), há de se ressaltar que a maioria
destes países são Estados Unitários.
Em Portugal, por exemplo, foram delimitadas diretrizes gerais do sistema de
planejamento territorial (Lei 48/98 – Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e
de Urbanismo), com a previsão de um programa nacional para a política de ordenamento do
território e desenvolvimento urbano e de planos setoriais, especiais, regionais, intermunicipais
e municipais (Decreto-Lei 380/99 – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial).
142
COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das
constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 57
88
Há em Portugal um complexo planificatório sistêmico do qual emanam
normatizações urbanísticas reunidas em arranjos orquestrados por objetivos comuns. No que
se refere aos planos de competência do governo central pode-se afirmar que o programa
nacional da política de ordenamento do território tem a responsabilidade de definir diretrizes
de “organização espacial que terá em conta o sistema urbano, as redes, as infra-estruturas e os
equipamentos de interesse nacional, bem como as áreas de interesse nacional em termos
agrícolas, ambientais e patrimoniais”. Os planos setoriais “programam ou concretizam”, em
âmbito nacional, “as políticas de desenvolvimento econômico e social com incidência
espacial”, sendo consideradas como tais as decisões sobre a localização e a realização de
grandes empreendimentos públicos com incidência territorial. Os planos especiais
“estabelecem um meio supletivo de intervenção do Governo apto à prossecução de objetivos
de interesse nacional, com repercussão espacial”. Já os planos regionais “estabelecem as
orientações para o ordenamento do território regional e definem as redes regionais de infraestruturas e transportes, constituindo o quadro de referência para a elaboração dos planos
municipais de ordenamento do território”. 143
Todos os planos vinculam os entes de direito público que os elaboraram e os
aprovaram, bem como aos demais que, no mínimo, estão obrigados a observá-los, sob pena de
nulidade de planos ou atos que sejam incompatíveis ou que violem qualquer instrumento de
gestão territorial em vigor.
Contudo, conforme aduz Carlos Magno Miqueri da Costa, “o fenômeno da
vinculação direta e imediata dos particulares apenas é afeta aos planos municipais e aos
especiais, pois em seu bojo são encontradas as normatizações que regem os direitos e as
obrigações dos cidadãos e pessoas jurídicas de direito privado proprietários de imóveis – no
que se refere ao ordenamento territorial”.144
Há aparentemente uma distinção na Espanha e na França entre o
planejamento territorial (competência mais afeta aos Municípios e às comunas) e o setorial
(tarefa do governo central, estado, regiões ou departamentos), muito embora tais países
possuam leis de abrangência nacional que tratam da organização espacial com nítido
propósito de atingir harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento
espacial.
143
144
Ibid., p. 72-73.
Ibid., p. 81.
89
Um país que possui uma organização administrativa semelhante à nossa e
que vem pondo em prática, há mais de três décadas, um sistema de ordenamento territorial
bem estruturado é a República Federal da Alemanha.145
A Alemanha possui sua lei federal de ordenamento territorial desde 1965.
Em 1975, a União e os estados definiram, pela primeira vez, em conjunto, um programa
federal de ordenamento do território. De acordo com a legislação alemã, entende-se por
ordenamento do território a coordenação e a orientação dos diferentes tipos de planejamento
setorial e dos investimentos governamentais.
Para Maria Sotero “o objetivo do ordenamento territorial no país é
racionalizar o processo de alocação de recursos, tanto públicos como privados, e a
distribuição dos equipamentos de uso coletivo”. Acrescenta ainda a autora que “o
ordenamento do território destina-se também a orientar e promover o desenvolvimento de
áreas com características especiais, como as áreas de fronteira e as regiões atrasadas em
relação ao padrão médio de desenvolvimento nacional”.146
O ordenamento territorial estabelece objetivos materiais concretos, que têm
caráter vinculante para o planejamento das demais instâncias de governo do país (os planos
elaborados por tais instâncias não podem se contrapor ao que estabelece a referida lei),
servindo de parâmetro, por exemplo, para a elaboração dos planos municipais e setoriais,
assim como para todas as medidas adotadas pelo setor público que tenham impacto na
organização do espaço. Desse modo, antes de o governo iniciar a execução de obras federais,
como, por exemplo, estradas de ferro e auto-estradas, canais, gasodutos, oleodutos e usinas
nucleares, é necessário que fique demonstrada sua compatibilidade com a lei de ordenamento
espacial estadual e dos demais planos setoriais já existentes nos estados. 147
Na Alemanha, a União e os Estados-membros são obrigados a trocar entre si
todas as informações que estejam relacionadas ao ordenamento territorial e ao planejamento
econômico. Assim, os Estados elaboram seus planos e programas em consonância com o que
determina a União. Ao estabelecerem suas metas de ordenamento territorial, os Municípios e
os Distritos devem adaptar-se ao que estabelecem as leis de ordenamento territorial de seus
respectivos Estados.
145
A estrutura administrativa da República Federal Alemã é composta pela União, os Estados-membros
(Länders), os Municípios e uma instância intermediária entre os Estados e os Municípios, chamada Landkreis,
ou distrito, sem similar no Brasil.
146
DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de
desenvolvimento regional para o semi-árido, p. 11.
147
Ibidem.
90
A prática institucional do urbanismo brasileiro não encontra paralelo em
nenhum dos países adrede analisados. Hodiernamente, ainda não possuímos um plano
nacional de ordenação territorial e nem planos regionais, nos moldes instituídos pelo sistema
continental europeu. Isso cria no Brasil um vácuo legislativo que os estados e os municípios
não conseguem suprir com seus respectivos planos.
De uma forma ou de outra, a realidade da planificação urbanística verificada
no Brasil demonstra ser incompatível a exigência de vinculação obrigatória entre os diversos
degraus da planificação, não estando a aprovação de um plano de “nível inferior” vinculado à
aprovação prévia ou concomitante à um plano de “nível superior” como ocorre na Alemanha.
A despeito disso, é plenamente ínsito ao ordenamento jurídico brasileiro a
visão de conjunto e de integração das normas dos planos elaborados pelas diversas unidades
federativas e tão bem implementadas no sistema jurídico alemão.
Há uma tendência de se operar no Brasil com planos setoriais fragmentados,
em nítida demonstração de falta de entreleçamento das políticas de desenvolvimento
econômico e social com as de ordenação espacial. A vinculação das obras do PAC –
Programa de Aceleração do Crescimento148à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
(Resolução Recomendada n. 34, de 1º de março de 2007, expedida pelo Conselho das
Cidades)149foi um dos primeiros passos na mudança desse cenário.
Isto não supre a necessidade da elaboração de um plano nacional e de planos
regionais de ordenamento territorial. A Espanha, nesse sentido, possui tanto leis de
abrangência nacional (que tratam da organização espacial com o nítido propósito de atingir
harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento espacial), como um Plano
Nacional de Infraestruturas, que define programas e ações pertinentes às infraestruturas de
148
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – consiste em um pacote de medidas do Governo Federal
que visa acelerar o crescimento econômico, aumentar a empregabilidade, melhorar as condições de vida da
população, incentivar o investimento privado, aumentar o investimento público em infraestrutura, remover
obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento. Tal programa
prevê, em nível nacional, a concessão de créditos para aplicação em saneamento e habitação popular, ampliação
dos limites de crédito do setor público para saneamento ambiental e habitação, criação de um fundo de
investimento em infraestrutura, desoneração tributária de obras de infraestrutura, elevação da harmonia e
cooperação dos entes federativos no que concerne ao exercício das competências ambientais, etc. O programa
em questão encontra-se estruturado da seguinte forma: PAC Energia, PAC Minha Casa Minha Vida, PAC
Cidade Melhor, PAC Água e Luz para Todos e PAC Transportes. Disponível em:
<htpp://www.brasil.gov.br/pac>. Acesso em: jun. 2011.
149
“Propõe orientações e diretrizes para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e a implementação do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, de forma a alcançar seus objetivos e promover crescimento
com inclusão territorial, estimulando a ação federativa e compartilhada entre o Governo Federal, Governos
Estaduais,
Distrito
Federal
e
Governos
Municipais.
Disponível
em:<http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Resolucoes/ResolucaoRecomend
ada/resolucao-34-2007.pdf.> Acesso em: dez. 2011.
91
maior magnitude e de responsabilidade do Estado que não se descolam das orientações
traçadas pelos planos de ordenação territorial.150
Já no Brasil, por exemplo, a elaboração e implementação do Plano Decenal
de Energia não dialoga com os planos urbanísticos dos estados, das regiões e dos municípios
que sofrerão os impactos das obras nele previstas.151Problemas sociais e econômicos
incomensuráveis são gerados pela ausência de um plano nacional e de planos regionais que
vinculem investimentos e incentivos do governo federal às diretrizes e metas de ordenação do
território.152
Assim, há nítida omissão na legislação brasileira, que é a falta de normas
que estabeleçam um sistema de ordenação territorial articulado com políticas setoriais de
desenvolvimento econômico e social. A exigência constitucional da elaboração de tais planos
tem clara inspiração no sistema continental europeu. Tal imposição constitucional deve ser
concretizada no ordenamento jurídico, através da edição e implantação de leis de instituição
dos planos urbanísticos em referência.
4.3 O plano urbanístico nacional
A ideia encampada por José Afonso da Silva é de que o plano nacional de
ordenação do território possibilita a aplicação dos princípios do urbanismo em todo o país,
viabilizando a definição de medidas para orientação geral de sua organização territorial.153
Não se pode deixar de advertir que a Lei 10.257/2001 é a que fornece a base
jurídica para a política urbana no Brasil. Além disso, os esforços adotados até o momento
pelo Governo Federal foram em prol da implantação de políticas setoriais de desenvolvimento
urbano, as quais, atualmente, encontram-se estruturadas nas áreas de habitação, saneamento
ambiental, trânsito, mobilidade e transporte urbano.
150
COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das
constituições aos tribunais luso-brasileiros, p. 59-60.
151
O Plano Decenal de Energia prioriza a construção de usinas nos grandes afluentes da margem direita do Rio
Amazonas para gerar mais de 42 mil megawatts de energia hídrica até 2020. Os novos investimentos para
atender ao crescimento da demanda brasileira de energia nos próximos dez anos serão feitos nos rios Araguaia,
Tocantins e Tapajós (usinas de São Luiz e Jatobá, as maiores), que vão se somar às usinas já em construção no
Madeira (Jirau e Santo Antônio) e de Belo Monte, na Volta Grande do Rio Xingu.
152
Um exemplo típico desta situação vem ocorrendo no Município de Porto Velho/RO por conta do canteiro de
obras das usinas hidrelétricas do Rio Madeira. A capital de Rondônia situa-se ao norte do estado e apresenta,
ainda hoje, precárias condições sanitárias, principalmente na área rural. O ingresso de milhares de trabalhadores
na área para as obras civis das UHE do rio Madeira pode agravar ainda mais as condições de saúde da população
local. Os impactos sociais e econômicos das obras não se restringem à vizinhança de Porto Velho, uma vez que
alteram regionalmente as condições de vida, a economia e o fluxo migratório de Rondônia.
153
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 114.
92
Há de se esclarecer, no entanto, que os objetivos do plano urbanístico
nacional vão além dos propostos nas políticas setoriais de desenvolvimento urbano na medida
em que ele há de integrar-se no planejamento econômico e social. Por sua própria função e
conteúdo, tal plano não só possibilita a integração dos planos, ações e investimentos em
infraestrutura e desenvolvimento entre os diversos níveis do governo federal, como fornece
orientações que viabilizam a relação entre os planos urbanísticos dos demais entes
federativos.154
Cabe destacar que um modelo de desenvolvimento sustentável pressupõe o
tratamento da questão territorial (na qual se inclui, obviamente, a organização urbana do
território nacional) como fundamento para a criação de estratégias de estímulo ao crescimento
econômico e de elevação da qualidade de vida. Disso resulta a intenção de se desestimular a
ocupação do território com base tão-somente na racionalidade econômica, através do
exercício da prerrogativa da União de coordenar a ocupação e o uso do território.
Com efeito, o plano urbanístico nacional pode estabelecer diretrizes que
servirão de norte para a ocupação, os investimentos públicos e privados e as estratégias de
desenvolvimento de cidades localizadas, por exemplo, nas regiões de fronteira, em áreas de
interesse nacional para conservação do meio ambiente, em regiões litorâneas, etc. Não se
pode olvidar que tal plano deve estabelecer critérios para o investimento em infraestrutura
(incluída a urbana) em todo o país, desencorajando estratégias de investimento somente em
regiões que apresentem algum potencial de crescimento já consolidado, os chamados “pólos
de desenvolvimento”.155Com isso, ele pode servir de instrumento para a correção dos sérios
problemas de infraestrutura urbana, procurando, através de estratégias gerais e específicas,
promover a adequada ocupação das cidades brasileiras.
154
O Governo Federal deu início ao trabalho de elaboração da política nacional de ordenamento territorial
(PNOT), ao conferir, em 2003, tais responsabilidades ao Ministério de Integração Nacional. A partir de então
foram promovidos alguns debates e estudos para coleta de informações necessárias à realização do referido
plano. Assim, a Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional formulou o projeto “Elaboração de
Subsídios Técnicos e Documentos Básicos para a Definição da Política Nacional de Ordenamento do Território
(PNOT)”, o qual foi enviado à Casa Civil para a finalização do projeto do texto da lei em questão.
155
“A concentração de investimentos em alguns pontos isolados do território nacional, adotada durante a vigência
do regime militar, trouxe conseqüências desastrosas para o País. Na época, o argumento utilizado era o de que,
diante de recursos escassos para o investimento em infraestrutura, dever-se-ia dar prioridade às áreas que
apresentassem algum potencial de crescimento já consolidado. (...) Dessa equivocada ‘política de
desenvolvimento’ herdamos problemas até hoje sem solução, como o ‘êxodo rural’, o ‘inchamento urbano’, a
‘favelização’ das grandes cidades, a degradação ambiental e as condições de moradia, e sobretudo, o
desemprego. Esses problemas, decorrentes do processo de concentração espacial de investimentos públicos em
pontos específicos do território, são considerados uma tendência ‘natural’ do sistema de livre-mercado. Mas
podem ser agravados ainda mais pela falta de concordância e objetividade entre os planos de instituições e
ministérios do mesmo nível administrativo, ou entre os diferentes níveis administrativos e de tomada de decisão”
(DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de
desenvolvimento regional para o semi-árido, p. 15).
93
Por conta disso, José Afonso da Silva adverte que na competência da União
para elaborar e executar planos de ordenação do território inclui-se o planejamento do
desenvolvimento da rede urbana e do sistema de cidades em nível nacional ou macrorregional
em função de uma política de desenvolvimento econômico, da defesa do meio ambiente
natural e cultural, do saneamento básico, do direcionamento do povoamento e colonização do
território nacional e macrorregional, dentre outros fatores.156
Levando-se em conta a abrangência dos efeitos das normas do plano
urbanístico nacional, pode-se dizer que ele deve ter a característica de lei nacional e, como tal,
ser apresentado sob forma de diretrizes gerais de desenvolvimento, definindo objetivos e
políticas globais, regionais e setoriais, expandindo seus efeitos, portanto, a todos os níveis da
Federação. No entanto, tal plano deve também estabelecer a organização administrativa
federal no âmbito do ordenamento do território, cingindo-se tais efeitos exclusivamente à
esfera da União. Tomando por base tal peculiaridade denota-se que o plano em questão deve
contemplar as características de lei nacional e de lei federal ao mesmo tempo.157
O conteúdo de um plano urbanístico nacional é um tema tratado na obra de
José Afonso da Silva. Para o autor, tal plano deve ser precedido de diagnóstico do sistema
urbano brasileiro no momento da sua elaboração e incluir as perspectivas que se apresentam
ao planejador, compreendendo quatro fases: a) diagnóstico básico; b) estratégia geral; c)
estratégia específica; e d) relatórios e mapas. A primeira delas, referente ao diagnóstico
básico, englobaria a etapa de análise retrospectiva, na qual se identificariam os problemas do
sistema urbano brasileiro, suas causas, bem como as necessidades mais urgentes do setor, e a
etapa projetiva, que indicaria as medidas necessárias para a solução dos problemas
identificados (programas e projetos para corrigi-los). A segunda fase, de estratégia geral,
consiste na previsão de meios e ações que visem ao alcance das metas do planejamento
nacional. A terceira fase, para o autor, refere-se às estratégias específicas, dirigidas à
ordenação territorial geral e integrada de cada macrorregião (Regiões Norte, Nordeste,
Centro-Oeste, Sudeste e Sul). Por fim, a quarta diz respeito aos “relatórios e mapas” que
156
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 106-107.
A União produz normas gerais válidas para todo Estado Federal, mas também produz normas parciais, válidas
apenas para a pessoa jurídica de direito público que a instituiu. No primeiro caso, estar-se-á diante de Leis
Nacionais; no segundo, de Leis Federais. Uma mesma lei pode eventualmente contemplar as duas espécies
indicadas, fato que, na prática, certamente impõe uma árdua tarefa de identificá-las e apartá-las no bojo do texto
normativo (Cf. NOVIS, Mariana. O regime jurídico da concessão urbanística. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
45).
157
94
retratariam, em forma gráfica e objetiva, a situação urbana existente e a imagem futura que se
pretende alcançar com a execução do plano.158
Cabe dizer, fundamentalmente, que o plano nacional de ordenação do
território permite a incorporação da dimensão territorial no desenho das políticas públicas
setoriais (viabilizando uma espécie de “projeto nacional”, ou seja, uma visão de conjunto
capaz de diagnosticar e enfrentar as principais necessidades das cidades brasileiras), além da
elaboração de estratégias territoriais integradas para o desenvolvimento urbano, que envolvam
a articulação dos planos elaborados pelos demais entes federativos.
4.4 Os planos urbanísticos regionais
Os planos regionais de ordenamento territorial também são de competência
elaborativa e executiva da União (art. 21, IX) e destinados a, em regra, abarcar as regiões
geoeconômicas do país (interestaduais), orientando a ocupação urbana do solo em nível das
macrorregiões.159Por esse motivo, o Estatuto da Cidade os inclui como instrumento de política
urbana (art. 4º, inciso I).
A União, ao instituir planejamento regional, exerce a competência que lhe
foi conferida pelo art. 43 da Constituição Federal, que permite a divisão geográfica do
território do país em regiões que apresentem as mesmas características econômicas e sociais,
para fins de atuação administrativa. Aliás, preferindo manter a concepção dos órgãos
regionais de desenvolvimento, já consolidados na experiência brasileira, a Constituição de
1988 deferiu à lei complementar a missão de fixar as condições, definir a composição dos
organismos regionais, sua competência na execução dos planos regionais e a integração destes
últimos nos planos nacionais de desenvolvimento (art. 43, § 1º, I e II).
Acontece que há certa dificuldade em identificar essa ordem planificatória
ainda em formação no Brasil, especialmente se levarmos em conta as experiências de
planejamento macrorregional existentes, a ponto de Carlos Magno Maqueri da Costa conferirlhe um perfil mais socioeconômico que territorial.160
158
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 117-119.
Embora não possua a amplitude e as características de um plano regional de ordenação territorial, a Política
Nacional de Desenvolvimento Regional (Dec. 6.047/2007), instituída com o objetivo de reduzir as desigualdades
de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção de equidade no acesso a oportunidades de
desenvolvimento, é a responsável por orientar os programas e ações federais no território nacional, dentre os
quais se destacam, atualmente, o Plano Amazônia Sustentável, o Plano de Desenvolvimento Sustentável do
Nordeste, o Plano de Desenvolvimento da Área de Influência da BR-163, dentre outros.
160
Cf. COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado, p. 92.
159
95
José Afonso da Silva chega a afirmar que o plano nacional de ordenação do
território, a rigor, não passaria de “um conjunto de planos regionais”, considerando,
obviamente, os modelos de planos de desenvolvimento econômico elaborados no regime
militar e que trataram da dinâmica de ocupação das cidades em nível macrorregional.161
A propósito, o referido jurista traça algumas das características que
norteariam os planos regionais a partir da análise das estratégias específicas de um plano
nacional de ordenação do território, dizendo:
As estratégias específicas constituem desdobramento das diretrizes gerais, visando
a conseguir objetivos específicos no nível de macrorregiões, referentes à região
Norte, à região Nordeste, à região Centro-Oeste, à região Sudeste e à região Sul,
definindo, para umas, a dinamização das funções urbanas, a ordenação da ocupação
da orla marítima, o disciplinamento e a promoção de adequado processo de
urbanização das cidades litorâneas; para outras, a descentralização do processo
produtivo-industrial, conjugada com a contenção do crescimento das grandes
aglomerações urbanas, etc. Enfim, são estratégias regionais que hão de levar em
conta a realidade de cada região geoeconômica (macrorregião), por isso que seus
objetivos melhor se coadunam no planejamento regional, de sorte que o plano
nacional não deve senão dar indicações gerais sobre isso, a menos que ele próprio
não seja senão um conjunto de planos regionais traduzidos numa unidade
documental.
162
Com efeito, depois de devidamente elaborados, os planos urbanísticos
regionais deverão orientar, em nível macrorregional e de acordo com as diretrizes do plano
nacional, a rede urbana das cidades, conforme o desenvolvimento geral da região. Justamente
por isso, sua atuação dar-se-á essencialmente por efeito diretivo e indutivo em relação ao setor
privado (estímulos e incentivos econômicos, assistência técnica), embora se trate de plano de
caráter normativo, que se impõe à observância dos organismos administrativos federais.
4.5 Os planos urbanísticos federais setoriais
Ao contrário do plano urbanístico nacional e dos planos regionais, que
consistem no estabelecimento de diretrizes e objetivos gerais orientadores da rede urbana, os
161
162
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 121-122.
Ibid., p. 119.
96
planos urbanísticos setoriais de competência da União referem-se a áreas específicas de
atuação (políticas econômicas e sociais) que influenciam, por via reflexa, a organização
territorial. Ou seja, cuidam de planos, programas e estratégias de desenvolvimento
relacionados a áreas de atribuição da União com incidência territorial.
Nesse sentido, é possível identificar nos incisos XVIII, XIX, XX e XXI, do
art. 21 da Constituição Federal, por exemplo, áreas a respeito das quais pode ser exercida a
competência material exclusiva da União em matéria de urbanismo.
Mas, conforme já analisado, além destas competências, a Constituição
Federal estabelece competências privativas da União e materiais comuns com os demais entes
federativos, afora a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal de
legislarem sobre as questões indicadas nos incisos VI, VII e VIII, do art. 24, que também
influenciam decisivamente na atividade urbanística.
Vislumbra-se, portanto, a possibilidade de elaboração de planos setoriais em
áreas como a de transportes, viação, habitação, turismo, indústria, saneamento ambiental,
dentre outras.
A propósito, as discussões sobre a Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano tiveram início com a convocação da primeira Conferência Nacional das Cidades, em
2003, e a segunda em 2005. O Conselho das Cidades, eleito na primeira conferência nacional,
aprovou as propostas das políticas nacionais de habitação, saneamento ambiental, trânsito,
mobilidade e transporte urbano e de regularização fundiária. Seguindo essa mesma linha, o
projeto de lei que cria o sistema nacional de desenvolvimento urbano foi apreciado na 4ª
Conferência Nacional das Cidades, encontrando-se apto para ser encaminhado ao Congresso
Nacional.163
Pode-se dizer, assim, que os planos urbanísticos setoriais têm como
finalidade essencial a concretização de políticas de desenvolvimento econômico e social e de
projetos com rebatimento territorial, cabendo destacar a imperiosidade destes instrumentos
serem elaborados no contexto das diretrizes e objetivos do plano nacional e dos planos
regionais de desenvolvimento econômico e social e de ordenação do território.
163
A Lei nº 11.124/2006, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei nº
11.445/2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico e a Lei nº 11.977/2009, que dispõe
sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas
urbanas são algumas das leis que foram discutidas pelo Conselho das Cidades. As resoluções aprovadas na 4ª
Conferência
Nacional
das
Cidades
estão
disponíveis
em:
<http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Publicacoes/Caderno_Resolucao_4_
Conferencia_Versao_Final.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2012.
97
4.6 A relação dos planos urbanísticos da União com os demais planos urbanísticos
A questão que envolve a competência em matéria urbanística obviamente
apresenta reflexos na prerrogativa dos entes federativos de elaborar planos de ordenamento
territorial, sendo que a relação que se dá entre os planos é um dos assuntos mais complexos
do direito urbanístico, vez que num mesmo território podem coexistir, todos válidos e
eficazes, diversos planos.
A relação entre as normas dos planos territoriais pode resultar em
harmonização ou em conflito, tendo como causas específicas a existência de diversos tipos de
planos que se sobrepõem territorialmente, a competência dos diversos entes federativos, bem
como a eventual ausência, no ordenamento jurídico urbanístico, de uma relação de
necessidade entre os planos.164
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o modelo de planejamento territorial
existente no Brasil parte da definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo
o território, o que se visualiza, especialmente, naquilo que é preconizado como característica
do plano nacional e dos planos regionais de ordenamento.
É o que enfatiza José Afonso da Silva:
Com base na Constituição de 1988, já se pode falar na implantação de um sistema
de planos estruturais, porque ela fundamenta a construção de um sistema de planos
urbanísticos hierarquicamente vinculados, de modo que os de nível superior sirvam
de normas gerais e diretrizes para os inferiores, enquanto estes concretizem, no
plano prático e efetivo, as transformações da realidade urbana, em vista de
objetivos predeterminados. A questão estará em que a lei federal de
desenvolvimento urbano busque instituir regras de aplicação das normas
constitucionais que assegurem o equilíbrio das três esferas governamentais
165
autônomas que compõem nossa Federação.
Por certo, a expressão “hierarquia” utilizada pelo referido autor não se
enquadra perfeitamente no quadro da relação que haverá de existir entre os planos
urbanísticos, vez que cada uma das unidades federativas possui competências discriminadas
constitucionalmente, sem que haja dependência normativa entre seus planos. Assim, não
164
165
Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 496.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 106.
98
existe relação de dependência entre o plano diretor (do qual dependem todos os planos
urbanísticos municipais) e os planos urbanísticos de competência da União e dos Estados.
Na atual Constituição, a prerrogativa da União de promover o planejamento
urbanístico vem respaldada no art. 24, I e § 1º, que lhe estabelece a competência de legislar
sobre normas gerais de direito urbanístico. Igual apoio encontra a competência suplementar
dos Estados para legislar sobre direito urbanístico em âmbito estadual ou microrregional.166
Vale destacar aqui que o conceito de normas gerais consiste em dizer, em
apertada síntese, que são normas que estabelecem as diretrizes, os princípios básicos que
devem reger determinada matéria, sem descer aos pormenores.167
Há de se acrescentar que as competências urbanísticas da União encontram
limites na competência reservada aos Municípios quanto a legislar sobre assuntos de interesse
local e promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento
e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, assim como ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes, ao executar a política de desenvolvimento urbano (CF, art. 30, I e VIII e art. 182).
Assim, José Afonso da Silva ensina:
Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque
é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais
concreta e dinâmica. Por isso, a competência da União e do Estado esbarra na
competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes
tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames,
diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e
168
às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado.
Não há duvida, portanto, que aquilo que for predominantemente de interesse
local constitui um limite intransponível para a União, que deve se limitar a legislar sobre
planejamento urbanístico em nível nacional e macrorregional, evitando atuação de efeitos
166
A competência de dispor de forma suplementar sobre a matéria urbanística é que confere aos Estados a
prerrogativa de estabelecer normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões.
167
Odete Medauar atribui à expressão “diretrizes” o sentido de “linhas reguladoras, instruções ou indicações;
linhas básicas; balizas; esquemas gerais. Transposto para a fonte legislativa significa preceitos indicadores,
preceitos que fixam esquemas gerais, linhas básicas em determinadas matérias; preceitos norteadores da
efetivação de uma política. (...) As leis de diretrizes contêm, de regra, objetivos, princípios (nem sempre o termo
é usado na acepção técnico-jurídica), indicadores para a elaboração de textos normativos daí decorrentes e para
as práticas administrativas” (Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10.07.2001: comentários. 2 ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 20).
168
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 65.
99
diretos e concretos intra-urbana. De outra banda, quando se fala em direito urbanístico, rezanos a Constituição que a atuação conjunta, principalmente envolvendo a União e o Município,
torna-se especialmente relevante na medida em que o ente local deve observar diretrizes de
ordem geral e nacional ao elaborar seus próprios estatutos.
É o que destaca Mariana Novis:
Contudo, não é demais repetir: a precípua função que exerce o município em
matéria urbanística não elide a atuação legislativa proveniente de outros entes
governamentais. Excepcionalmente, no que toca à ordenação territorial, pode-se
vislumbrar situações que demandem até mesmo o sacrifício de interesses locais em
benefício do interesse de abrangência maior, seja de índole estadual ou federal, no
campo ora tratado, desde que atendidos os princípios da razoabilidade,
proporcionalidade, motivação, entre outros. Mas, em geral, os entes federados
devem sempre almejar a compatibilidade dos múltiplos interesses envolvidos na
matéria, como, aliás, impõe a máxima norteadora do exercício das competências de
169
caráter comum e concorrente.
Como já enfatizado, a complexidade do tema ainda recebe a contribuição da
ausência de dependência ou necessidade entre os planos, por ser possível a elaboração de um
plano de menor abrangência territorial e com disposições diretamente vinculantes aos
particulares (como ocorre com o plano diretor), sem que existam, previamente aprovados, os
planos nacional, regionais e estaduais de ordenação do território, cuja superveniência é uma
fonte potencial de conflitos normativos.
Aliás, no direito urbanístico, a relação de dependência entre os planos é
apenas parcial e existe somente para aqueles que obtêm seu fundamento de validade no plano
diretor, como é o caso, por exemplo, dos planos de operação urbana consorciada.
Mas, então, os critérios tradicionalmente apontados pela doutrina como de
resolução de conflitos de normas são aplicáveis nos casos dos planos?
Segundo Marcos Geraldo Batistela, que se dedicou exclusivamente ao tema
na elaboração da sua dissertação de mestrado, os conflitos, as antinomias ou as colisões entre
os planos podem ser solucionados pelos critérios tradicionais de resolução de conflitos
normativos e no âmbito das regras de competência. É o que ele explica:
169
NOVIS, Mariana. O regime jurídico da concessão urbanística, p. 72.
100
Podem ser pensadas, então, as diferentes relações que existem entre os planos ou
formas de ordenação territorial (aquelas que ainda não lograram alcançar a forma
superior de plano) e previstas as soluções para as possíveis antinomias. Os
eventuais conflitos podem ocorrer entre planos instituídos por um mesmo ou por
diferentes centros de competências. Para estes, o critério decisivo é a aplicação da
regra de competência, prevalecendo o plano elaborado pelo ente planejador
competente. Para os planos elaborados por um mesmo centro de competências,
aplicam-se os critérios tradicionais de solução de antinomias, especialmente o
170
critério da hierarquia.
Na realidade, o que se tem no Brasil, de forma ainda incipiente, é um
modelo de planejamento territorial “descendente” ou em “cascata”, ou seja, que parte da
definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo o território, que devem
orientar os demais entes federativos na elaboração dos seus planos de ordenação espacial, sem
que, necessariamente, haja uma relação de subordinação ou dependência entre eles.
Nessa linha, no que diz respeito ao plano nacional de ordenação do
território, pode-se afirmar que a disposição constitucionalmente prevista no inciso I, do art. 24
c/c o § 1º do mesmo dispositivo (competência concorrente da União para legislar sobre direito
urbanístico), permite a conclusão de que tal plano deve tratar essencialmente de diretrizes e
objetivos gerais do desenvolvimento urbano do país, que, por si só, não produzirá efeitos que
vinculem os particulares.
A par disso, por ser norma com característica de lei nacional, suas
determinações orientarão especificamente a atuação dos órgãos e das entidades
administrativas federais, estaduais e municipais no desempenho de suas atividades
urbanísticas, respeitando, obviamente, as fronteiras que incidem sobre o exercício das
competências dos demais entes.
Sobre o assunto, vale a pena citar, mais uma vez, Marcos Geraldo Batistela:
Assim, ainda que um plano nacional possa conter disposições específicas
vinculantes para a administração pública federal, não pode estabelecer diretamente
o ordenamento territorial do Município (controle e planejamento do solo, da
ocupação do solo urbano) ou o planejamento de regiões metropolitanas,
170
BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 102.
101
aglomerações urbanas e microrregiões, que são assuntos de competência dos
Municípios e dos Estados.
171
Os planos regionais de ordenação do território apresentam-se igualmente
como planos de diretrizes e objetivos gerais. Da mesma forma que o plano nacional de
ordenação do território, suas disposições dirigem-se aos demais entes planejadores, Estados e
Municípios, sem atingir diretamente os particulares. Desse modo, têm primordialmente efeito
diretivo e indutivo no setor privado.
Antes de analisar a relação dos planos setoriais da União com os planos dos
demais entes federativos, cabe lembrar a diferenciação feita por José Afonso da Silva acerca
dos planos gerais e dos planos especiais (particularizados ou pormenorizados).
Nesse sentido, o autor em questão destaca que os planos gerais são menos
vinculantes em relação aos particulares, “porque são de caráter mais normativo e dependentes
de instrumentos ulteriores de concreção”, enquanto que os especiais “vinculam mais
concretamente a atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.172
Para Marcos Geraldo Batistela, o plano geral tem como fim o
estabelecimento de um ordenamento integral do seu objeto, enquanto o plano setorial tem a
finalidade de programação ou concretização de determinado aspecto de um objeto
globalmente considerado. Assim, para o autor, “se o objeto considerado é o território de um
município, plano geral é o plano diretor municipal e planos setoriais são os planos sobre
transportes, saneamento, coleta e disposição de lixo, turismo, habitação, localização e
realização de grandes empreendimento públicos”. 173
Assim, quanto aos planos urbanísticos setoriais da União, cumpre
rememorar que a Constituição de 1988 delimitou a tal ente competências administrativas
privativas e comuns, além de competências privativas e concorrentes no âmbito legislativo.
Nesse diapasão, por exemplo, a atribuição de poderes materiais para a União
“planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as
secas e as inundações” (CF, art. 21, XVIII), implica possibilidade de a União esgotar
totalmente a matéria, impondo normas gerais e igualmente normas específicas em eventuais
planos, muito embora os Municípios possam suplementar a legislação federal diante de um
interesse local (CF, art. 30, I e II).
171
Ibid., p. 49.
Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93.
173
Cf. BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil, p. 40.
172
102
O mesmo raciocínio aplica-se à competência privativa da União para
legislar sobre alguns assuntos de interesses urbanísticos, como por exemplo, os referentes às
matérias de trânsito e transporte (CF, art. 22, XI), nas quais a União pode esgotar o tratamento
da matéria em normas de determinado plano, a despeito da possibilidade conferida aos
Municípios de suplementá-las, desde que presente o interesse local, o que pode ocorrer numa
definição do destino de vias públicas, de locais de estacionamento ou em outras situações que
envolvam peculiaridades do ente federativo local.
Nas matérias indicadas na competência comum (CF, art. 23), todos os entes
federativos podem praticar atos simultaneamente, inclusive esgotando integralmente, ou não,
a disciplina da matéria. Nestes casos, mais do que nunca, a articulação dos planos torna-se
necessária, sendo para tanto imprescindível a edição de leis complementares que estabeleçam
normas de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
conforme exigência prevista no parágrafo único, do art. 23 da Constituição Federal. 174
Já no art. 24 da Constituição Federal tem-se a chamada “competência
concorrente” da União e dos Estados-membros para legislarem sobre as matérias nele
indicadas. É possível apontar as questões elencadas nos incisos VI, VII e VIII, do referido
dispositivo como de especial interesse urbanístico, em que a União deve se liminar a
estabelecer normas gerais, restando aos Estados a possibilidade de fixar normas específicas
sobre tais matérias, bem como de detalhar as normas federais existentes.
174
A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes
federativos em matéria ambiental.
103
5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO DEVER DE A UNIÃO ELABORAR E
EXECUTAR PLANOS URBANÍSTICOS
5.1 O dever jurídico da União de planejar e a sua omissão na elaboração dos planos
urbanísticos
Conforme já analisado, o texto constitucional estabelece normas de
competência legislativa e material com implicações diretas na atividade urbanística.
Nessa linha, dentre outras questões, o art. 21 da Constituição Federal atribui
à União competência privativa para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de
ordenação do território”, sendo interessante notar que o referido dispositivo possui natureza
legislativa, muito embora ele trate de competência material.
Com efeito, cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, dispor sobre as matérias de competência da União, especialmente sobre planos e
programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento (CF, art. 48, inciso IV).
Isto implica obrigatoriedade de aprovação por lei dos planos e programas
nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, de modo que a execução destes planos e
programas é que seria enquadrada na competência material.
A atividade de planejar consiste na elaboração de estudos, perícias e
levantamentos técnicos multidisciplinares pelo Poder Executivo para a concepção da proposta
do plano a ser encaminhado ao Poder Legislativo.
Nesse primeiro momento, a ação de planejar, embora decorra do dever de
elaboração do plano, não representa produção jurídica, apesar de ensejar efeitos jurídicos, já
que a proposta poderá, ou não, ser aprovada enquanto lei. Ou seja, nesta primeira etapa, o
chefe do Poder Executivo, no exercício de função política175, deverá realizar uma avaliação,
175
Celso Antônio Bandeira de Mello entende que certos atos (iniciativa de leis pelo Chefe do Poder Executivo, a
sanção, o veto, a declaração de guerra dentre outros) não se alocam satisfatoriamente em nenhuma das clássicas
três funções do Estado, inclusive a administrativa. Para o autor tais atos não se afeiçoam à função executiva nem
do ponto de vista material (não se tratam de atos de gestão concreta, prática, imediata e, sim, atos de superior
gestão da vida estatal ou de enfrentamento de contingências extremas que pressupõem, acima de tudo, decisões
eminentemente políticas) ou formal (por não estarem em pauta comportamentos infralegais ou
infraconstitucionais expedidos na intimidade de uma relação hierárquica, suscetíveis de revisão quanto à
legitimidade) Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 36-37. Já Luís
Manuel Fonseca Pires, a despeito de aceitar que os atos políticos possuem larga margem de discricionariedade
(retirando seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal ou Estadual), entende que tais atos
são espécies de atos administrativos. Para o autor a função política é gênero das funções públicas, que abriga as
funções legislativa, administrativa e jurisdicional (Cf. PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da
discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 269-275). Cabe a ressalva que embora se tenha feito uso nesta dissertação da expressão
104
considerando o momento histórico, os aspectos ambientais, econômicos e financeiros, dentre
outros, para decidir se a proposta técnica obtida será encaminhada para apreciação do Poder
Legislativo.
O Poder Legislativo, por intermédio da função legislativa, deverá votar o
projeto de elaboração do plano apresentado pelo Poder Executivo, o qual, se aprovado,
deixará de ser proposta e passará a ter natureza jurídica de lei. É necessário ressaltar que o
dever que se incumbe ao Poder Legislativo é o de realizar a votação sobre o projeto
apresentado, e não o de aprovação do plano. O dever jurídico deste Poder está na deliberação,
sendo indiferente o seu resultado, desde que devidamente fundamentada na Constituição
Federal.
O plano, desde que aprovado, representa produção jurídica e deve ser
respeitado e materializado, através de função administrativa, no contexto da gestão territorial
por parte dos órgãos da União.
Embora as autoridades competentes devam promover os estudos necessários
para a elaboração dos planos de ordenação territorial nacional e regionais, legislar
(instituindo-os), e dar execução aos seus termos, é sabido que a União ainda não se
desincumbiu deste encargo ligado à atividade de planejamento.
De outro lado, há de se registrar, na esteira do pensamento de Fábio Konder
Comparato, que o planejamento coordena, racionaliza e dá uma unidade de fins à atuação do
Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística.176
De fato, o planejamento possibilita que os governantes atuem obedecendo à
hierarquia de prioridades e recursos fixada no plano, servindo, assim, como orientação e
coordenação efetiva de política governamental, dificultando o desvio de poder e o privilégio
de interesses particulares na Administração.
Desse modo, o planejamento passa a ser ferramenta de controle da atuação
do Estado, definindo a direção e o ritmo que irá tomar.177
Aliás, a atividade de planejar “cuida-se de função, poder-dever”.178 O
Estado brasileiro, portanto, não pode se limitar a fiscalizar e incentivar os agentes econômicos
privados, devendo também planejar.
“função política”, para justamente enfatizar a ampla margem de discricionariedade do ato de iniciativa da lei do
plano urbanístico em comparação com os demais atos administrativos, tal exposição não conduz ao
entendimento de que ele não seja passível de controle jurisdicional.
176
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Planejar o desenvolvimento: a perspectiva institucional. Para viver a
democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 102-103.
177
Cf. BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado.
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. Maria Paula Dallari Bucci (organizadora). São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 155.
105
Num Estado de Direito a ação estatal se dá, em regra, pelo exercício de
competências. Ou seja, o Estado atua por vontade heterônoma e não autônoma, razão pela
qual a vinculação da atuação estatal pela ordem jurídica se dá pelo modal do obrigatório e não
do permitido. Por isso, o Estado age por dever, obrigação de agir por determinação legal e não
por faculdade autônoma de escolha entre agir ou não agir.179
Nesse sentido, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello:
(...) O que a ordem jurídica pretende, então, não é que um dado sujeito desfrute de
um poder, mas que possa realizar uma certa finalidade, proposta a ele como
encargo do qual tem de se desincumbir. Como, para fazê-lo, é imprescindível que
desfrute de poderes, estes são outorgados sob o signo assinalado. Então, o poder na
competência, é a vicissitude de um dever. Por isto é que é necessário colocar em
realce a idéia de dever e não a de poder -, já que este último tem caráter meramente
ancilar; prestante para realizar-se o fim a que se destinam as competências;
satisfazer interesses (consagrados em lei) públicos, ou seja, interesses dos cidadãos
considerados “enquanto conjunto”, em perspectiva coletiva, é dizer, como
Sociedade.
180
Este agir heterônomo é a regra geral da ação estatal no Estado
Constitucional de Direito, especialmente no que respeita à atividade administrativa.
É o que enfatiza Odete Medauar:
Menciona-se amiúde, no direito administrativo brasileiro, a locução poder-dever,
para expressar o dever conjugado ao poder ou, de modo similar, o dever que nasce
do exercício de um poder. Indica-se, mesmo, no rol dos princípios do direito
administrativo, o princípio do poder-dever, que significaria a obrigação imposta à
autoridade de tomar providências quando está em jogo o interesse público. Embora
não represente demasia o vocábulo “dever” associado ao poder, pois evoca
explicitamente a idéia de “obrigação de agir”, o esclarecimento do sentido que o
termo “poder” adquire no âmbito da atuação administrativa torna prescindível o
uso da fórmula composta.
178
181
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14. ed., rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 308.
179
Cf. SERRANO, Pedro Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional, p. 124.
180
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 143.
181
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2007, p. 105.
106
O problema maior, como foi abordado, é que a elaboração de planos
urbanísticos, como é o caso do plano nacional de ordenação do território, é uma atividade
complexa que envolve amplo diagnóstico e conhecimento da realidade urbanística nacional.
Indo mais longe, nele se produz juízo de prognóstico sobre a evolução dos
processos urbanísticos, consubstanciado em avaliações projetadas para o futuro acerca do
desenvolvimento econômico, demográfico, etc.182
Diante destas características, observa-se que a elaboração dos planos
urbanísticos envolve a prática de atos que se alocam em funções políticas e legislativas do
Estado.
Pode-se afirmar, desse modo, que a Constituição Federal teria deferido à
União a prerrogativa de decidir quanto ao modo e ao momento de exercer a competência que
lhe foi outorgada para elaborar o plano nacional e os regionais de ordenação do território, ante
a complexidade da formação de tais espécies de planos urbanísticos.
Posta essa premissa, só é possível falar em omissão inconstitucional quando
há o dever constitucional de atuação, o que, no enfoque de Pedro Estevam Alves Pinto
Serrano, nem sempre ocorre, pois em algumas situações o legislador tem ampla margem de
inovação da ordem jurídica, encontrando-se limitado apenas pela não contradição ou
contrariedade ao sistema constitucional.
(...) Especialmente no que respeita à atividade legislativa, mesmo sob a égide de
uma Constituição analítica como a nossa, é possível identificar-se modalidade de
competência legiferante que implica vinculação pela ordem constitucional pelo
modal do permitido, que equivale dizer poder fazer tudo o que queira salvo o que é
proibido.
Ou seja, a ordem constitucional por vezes permite ao legislador ordinário criar
determinado regramento, se assim o quiser, desde que não se ponha em testilha
183
com o disposto na Constituição.
Logo se vê que a inércia legislativa é de difícil controle, posto situar-se em
zona limítrofe entre a liberdade de conformação normativa e o estrito cumprimento da
Constituição.
182
183
Cf. CORREIA, Fernando Alves Correia. Manual de direito do urbanismo, p. 645.
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 124.
107
A propósito, André Puccinelli Júnior fornece interessante exemplo da
complexidade do assunto:
Sabe-se que muitas normas constitucionais facultam – mas não obrigam – o
exercício de certas competências. Assim, por exemplo, o art. 156, I, da
Constituição Federal, diz competir ao Município a instituição do IPTU – imposto
predial e territorial urbano. Ora, municípios dotados de receitas alternativas podem
deixar de instituir esta exação tributária, sem que tal proceder configure
inconstitucionalidade por omissão. Isto porque referida norma não impõe uma
184
obrigação concreta de legislar, mas se limita a conferir mera faculdade.
O tema em questão tem especial importância na observação das normas
constitucionais de eficácia limitada que são justamente aquelas que não surtem a plenitude de
seus efeitos de imediato, necessitando de complementação legislativa ou de injunções
administrativas para lograrem aplicação integral.
Para José Afonso da Silva as normas constitucionais de eficácia limitada se
dividem em normas de princípio institutivo e normas programáticas. As primeiras têm
conteúdo organizativo, definindo as linhas básicas para a instituição de órgãos e entidades,
bem como suas respectivas atribuições e relações. Fracionam-se em: a) normas impositivas,
que investem o legislador ordinário, em termos peremptórios, na obrigação de prover a
respectiva legislação integrativa; b) normas facultativas ou permissivas, que não estabelecem
deveres, limitando-se a deferir simples permissão ao legislador para, querendo, disciplinar a
situação nelas versada.185
Já Gomes Canotilho adverte que o conceito de omissão legislativa não se
perfaz com o simples dever geral de legislar (inércia legislativa). Assim, embora ele
diferencie as chamadas “ordens de legislar” das “imposições constitucionais” ele sustenta que
nestas hipóteses é que haverá omissão inconstitucional.
De acordo com o autor lusitano “as omissões legislativas inconstitucionais
derivam desde logo do não cumprimento de imposições constitucionais legiferantes em
sentido estrito, ou seja, do não cumprimento de normas que, de forma permanente e concreta,
vinculam o legislador à adopção de medidas legislativas concretizadoras da constituição”.
Como exemplo ele destaca as seguintes: as que fixam a obrigação de atualização do salário
184
PUCCINELLI JÚNIOR, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do estado
legislador. São Paulo: Saraiva, 2007, p.118.
185
Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 126-134.
108
mínimo nacional, as que organizam a seguridade social, o sistema nacional de saúde, dentre
outros serviços elencados como permanentes pela Lei Fundamental. Para ele, “verifica-se
também um omissão legislativa inconstitucional quando o legislador não cumpre as ordens de
legislar constitucionalmente consagradas em certos preceitos constitucionais. As ordens de
legislar, diferentemente das imposições constitucionais (que são determinações permanentes e
concretas), traduzem-se, em geral, em imposições únicas (isto é: imposições concretas mas
não permanentes) de emanação de uma ou várias leis necessárias à criação de uma nova
instituição ou à adaptação das velhas leis a uma nova ordem constitucional”.186
Na realidade, o dever constitucionalmente imposto de elaborar os planos
territoriais da União encontra dificuldades de se concretizar por conta da proeminente inépcia
política em resolver demandas de grande relevo social.
E o planejamento, a despeito do seu conteúdo técnico, é um processo com
fortes nuances políticas, especialmente nas sociedades que buscam a transformação das
estruturas econômicas e sociais.
É o que destaca Gilberto Bercovici:
Por meio do planejamento, é possível demonstrar a conexão entre estrutura política
e econômica, que são interligadas. O planejamento visa à transformação ou
consolidação de determinada estrutura econômico-social, portanto, de determinada
estrutura política. O processo de planejamento começa e termina no âmbito das
relações políticas, ainda mais em um regime federativo, como o brasileiro, em que
o planejamento pressupõe um processo de negociação e decisão políticas entre os
vários membros da Federação e setores sociais.
187
Por certo, a efetividade das normas deve conviver com uma certa dose de
discricionariedade do legislador (especialmente quanto às normas que exigem uma
normatividade ulterior, ou seja, a edição de uma outra norma que regulamente e integre a
norma constitucional dando-lhe condições de executoriedade).
Por outro lado, o reconhecimento aos entes com competência planificatória
de considerável zona de liberdade para a escolha do momento da elaboração do plano não
pode abranger a decisão de elaborá-lo ou não, já que há imposição constitucional em sentido
contrário.
186
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1034-1035.
BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado.
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 146.
187
109
Assim, embora a concretização dos fins constitucionais (documentados nos
planos pelo processo de planejamento) dependa essencialmente da luta política, acredita-se
que a não regulamentação das normas programáticas e dos preceitos enunciadores dos fins do
Estado, ao menos no Brasil, também pode ensejar a fiscalização da constitucionalidade.
5.2 A eficácia e a imperatividade da norma jurídica constitucional
A variada tipologia de vícios normativos pode ser reconduzida a distintos
planos de enfoque da norma jurídica.
Nesse sentido, André Puccinelli Júnior destaca que “enquanto a
inconstitucionalidade por ação se resolve numa questão de invalidade, a omissão
inconstitucional opera no campo da eficácia e da efetividade”.188
Convém esclarecer que uma norma jurídica constitucional em nada se
distingue das demais que compõem o sistema jurídico, conservando os atributos destas, dentre
os quais a eficácia e a imperatividade.
Eficácia é um termo dúbio que compreende tanto a qualidade da norma
vigente produzir efeitos jurídicos (eficácia jurídica) quanto a sua concreta observância e
aplicação por parte das pessoas a que se dirige (efetividade ou eficácia social).
Uma norma é juridicamente eficaz quanto está apta a produzir os efeitos que
lhe são inerentes, atributo que pressupõe a sua vigência, ou seja, a exigibilidade da conduta
prescrita em lei. Nessa linha, a lei perfeita e acabada, após sua publicação e o transcurso do
prazo de vacatio legis, produz efeitos jurídicos. Já a efetividade traduz a realização empírica
do Direito, possibilitando a aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade
social.
Na seara do direito, segundo a teoria formalista, pelo menos em linha de
princípio, a eficácia social não é condição de validade. No entanto, o próprio Kelsen, por
conta das críticas antipositivistas dos seus adversários, chegou a reconhecer que a validade
das normas jurídicas depende da sua efetividade ao afirmar que “(...) existe uma conexão
entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade natural, já que a norma jurídica
positiva, para ser válida, tem de ser posta através de um ato-de-ser (da ordem do ser)”. 189
188
PUCCINELLI JÚNIOR, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do legislador, p.
35.
189
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 235-236.
110
Miguel Reale ressalta a importância da dimensão eficacional ao dizer que
“uma regra elaborada tecnicamente pelo órgão do Estado não é regra jurídica no sentido pleno
da palavra, quando não encontra correspondência no viver social nem se transforma em
momento da vida de um povo”. 190
Como todas as disposições jurídicas, também as normas constitucionais
apresentam como nota característica a imperatividade, que nada mais é do que a fiel e
compulsória obediência aos comandos normativos por seus respectivos destinatários, sejam
estes pessoas individuais, coletivas ou os próprios órgãos do Estado.
Aliás, Bobbio conceitua a norma jurídica como uma proposição prescritiva,
com força imperativa, que objetiva direcionar, modificar ou impulsionar o comportamento
humano em busca de uma finalidade qualquer. 191
As normas constitucionais são imperativas, vez que a insubmissão aos seus
comandos deflagra consequências desfavoráveis.192
É o que destaca, com muita propriedade, Luís Roberto Barroso:
As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam
os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como
qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem,
com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar
um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a
imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão
ao seu comando. As disposições constitucionais não são apenas normas jurídicas,
como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal
equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições
193
desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico.
Logo, todos os preceitos constitucionais são imperativos e dotados de um
mínimo de eficácia.
Nesse diapasão, eis os ensinamentos de José Afonso da Silva:
190
REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 406.
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003, p. 78.
192
Goffredo Teles Júnior definiu a norma jurídica como um imperativo autorizante. Para o autor, a despeito dela
ser um mandamento, ela é autorizante, vez que autoriza a reação contra a ação que a viola, permitindo a
submissão da sua violação à apreciação do Poder Judiciário, a fim de restaurar a ordem lesada (Cf. TELLES
JÚNIOR, Goffredo. Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 7. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2003, p. 268).
193
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades
da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 76.
191
111
(...) não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam
efeitos jurídicos, importando sempre numa inovação da ordem jurídica preexistente
à entrada em vigor da Constituição a que aderem, e na ordenação da nova ordem
instaurada. O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais
não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte
enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar
194
executória, prevista ou requerida.
É necessário ressaltar, desde já, que tal premissa não se compatibiliza com
visões que minimizam o valor jurídico de alguns preceitos constitucionais.
É fato que, devido ao teor de certas normas constitucionais, elas não podem
produzir imediatamente efeitos jurídicos, ante a inexistência de uma regulamentação
pretendidamente exigida por elas.
Mas, a partir daí, dizer que algumas delas, como as de natureza
programática195, compõem-se de conteúdos ético-sociais a serem implementados ao simples
alvedrio das autoridades competentes, traduz uma visão míope e inconsequente, sob o ponto
de vista da melhor doutrina constitucional.
Nestes termos, parte-se da premissa de que toda norma do tecido
constitucional tem natureza jurídica e, por isso, participa de todas as características desse tipo
de comando.
Assim, todas as normas têm de ser consideradas com juridicidade, tendo
possibilidade de produzir, a sua maneira, concretamente, os efeitos jurídicos por elas visados,
irradiando efeitos desde a promulgação.
Nessa linha, então, as normas constitucionais programáticas têm eficácia
jurídica porque: proíbem o legislador infraconstitucional de emitir normas em sentido
contrário; impõem um dever político ao órgão com competência normativa; informam a
concepção estatal ao indicar suas finalidades sociais e os valores objetivados pela sociedade;
194
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2007, p. 81-82.
195
“As normas constitucionais programáticas são aquelas em que o constituinte não regula diretamente os
interesses ou direitos nelas consagrados, limitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos poderes
públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário) como programas das respectivas atividades, pretendendo
unicamente a consecução dos fins sociais pelo Estado. Constituem normas de organização, dirigidas aos órgãos
estatais, tendo, por isso, duas funções: a de servir de diretriz na fixação de objetos imediatos e como normas
interpretativas, esclarecedoras dos fins estatais imediatos. São, portanto, como diz Meirelles Teixeira, programas
de ação dirigidos ao legislador. Por exemplo, os arts. 21, IX, 23, 170, 205, 211, 215, 218, 226, § 2º, da
Constituição Federal” (DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 119).
112
condicionam a atividade discricionária da administração e do Judiciário; servem de diretrizes
teleológicas para interpretação e aplicação jurídica; estabelecem direitos subjetivos por
impedirem comportamentos antagônicos a elas. 196
Gomes Canotilho identifica as normas programáticas com os “direitos a
prestações” que, ao mesmo tempo em que impõem ao Estado uma série de deveres,
prescrevem-lhe uma determinada política.197 Pode-se afirmar, ainda, que o autor aponta
algumas normas como tecnicamente mais programáticas que outras, excluindo do conceito de
omissão inconstitucional o não cumprimento das normas-fim ou normas-tarefa que impõem,
abstratamente, a prossecução de certos objetivos.198
Trata-se, na verdade, de entendimento que não condiz com o perfilhado no
presente trabalho, já que a não-regulamentação dos preceitos enunciadores dos fins do Estado
também pode ensejar a fiscalização de inconstitucionalidade.
Por certo, o conceito de programaticidade parece apresentar-se como algo
mais amplo, podendo nela incluir-se determinações constitucionais relacionadas a outras
atividades do Estado, como, por exemplo, a atinente ao dever de planejar.
Aliás, quanto ao planejamento urbanístico, o Poder Público é detentor de
discricionariedade quanto ao modo e ao momento de elaboração do plano, cabendo-lhe avaliar
os pressupostos da necessidade, ou não, da sua elaboração. No entanto, a referida
discricionariedade está sujeita a limitações, uma vez que é princípio geral da atividade
econômica o exercício pelo Estado do planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado (CF, art. 174, caput).
De fato, no campo do planejamento territorial, ante a sua vinculação com o
planejamento do desenvolvimento econômico e social, pode-se afirmar que a limitação à
discricionariedade da União advém justamente da norma que impõe o uso, a ocupação e a
transformação do solo em conformidade com o planejamento (plano), que impede que o
desenvolvimento urbanístico seja deixado às circunstâncias do crescimento natural ou
inteiramente às forças do mercado ou da economia.
196
Ibid. Vide, ainda, BRITO, Edvaldo. A Constituição de 1988 e as normas programáticas. Constituição e
efetividade constitucional. Org. George Salomão Leite/Glauco Salomão Leite. Editora JusPodivm: Salvador,
2008, p.73.
197
Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 474-475.
198
Segundo Gomes Canotilho, a Constituição pode impor ao Estado tarefas fundamentais, extraindo-se daí um
dever de legislar decorrente de uma norma-fim ou programática de alto grau de indeterminação, que tem
densidade jurídica mais fluida, a qual, por sua vez, depende mais da ação política no âmbito dos órgãos
legislativos. Para o autor, as imposições constitucionais gerais e abstratas, como as normas em questão, embora
configurem deveres de atuação normativa, não estabelecem concretamente aquilo que o legislador deve fazer
para, em caso de omissão, falar-se em silencio legislativo inconstitucional. (Ibid., p. 1034-1035).
113
Subjacente a tal comando está também a ideia de que o desenvolvimento
urbano não deve ser realizado mediante decisões individuais, não enquadradas por um
instrumento de planificação urbanística.199
A propósito do tema, é importante enfatizar que, tendo em conta a sua
eficácia e aplicabilidade, consideram-se auto-executáveis as disposições constitucionais
bastantes em si, completas e suficientemente precisas na sua hipótese de incidência e na sua
disposição e, em contrário, não auto-aplicáveis as disposições constitucionais incompletas ou
insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a mediação do legislador, editando
normas infraconstitucionais regulamentadoras.200
Todavia, a classificação da aplicação das normas constitucionais pode
também revelar a intenção política de dar, ou não, cumprimento à Constituição Federal,
especialmente às normas programáticas.
Nessa linha, Walter Claudius Rothenburg, ao defender a necessidade da
superação desta classificação tradicional que, para ele, impede o cumprimento da
Constituição, afirma que “a teoria tradicional da aplicabilidade das normas constitucionais
baseia-se numa interpretação eminentemente textual e não considera devidamente a
necessidade de atuação – sobretudo estatal – para a concretização das normas constitucionais
em geral (“plano jurídico-empírico”, ou seja, vinculação essencial do fenômeno jurídico à
realidade)”.201
Por isso, o autor propõe um passo além, com o objetivo de conferir
efetividade às normas constitucionais, destacando a dimensão temporal como relevante para a
aplicabilidade delas (ao fazê-las depender de condições fáticas, ou seja, de quando estas
condições estão presentes), antes que de integração normativa.
Explica o autor:
O tempo sempre é relevante para a aplicabilidade das normas constitucionais e
ainda mais à medida que o Direito infraconstitucional vai sendo criado ou adaptado
à Constituição que um dia foi nova. Com a produção legislativa, há uma tendencial
199
Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 652.
Além da classificação apresentada pelo Prof. José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas
constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 81-87), diversos constitucionalistas pátrios
ocuparam-se do tema, destacando-se: J. H. Meirelles TEIXEIRA, Curso de direito constitucional. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 295-361; Celso Ribeiro BASTOS e Carlos Ayres BRITTO,
Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982; Maria Helena DINIZ,
Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 106-120.
201
ROTHENBURG, Walter Claudius. O tempo e a aplicabilidade das normas constitucionais. Vinte anos da
Constituição Federal de 1988. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo
(Coord.). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, p. 392.
200
114
complementação das normas constitucionais que demandam integração normativa
(normas constitucionais de aplicabilidade reduzida e diferida) e uma tendencial
definição das restrições a que são suscetíveis as “normas constitucionais de eficácia
contida”. Embora a atividade legislativa seja dinâmica e o processo de integração,
contínuo, essa integração, com o passar do tempo, tende a apresentar-se não mais
de forma originária, mas em renovação, reconfiguração.
Porém, quando a falta de integração normativa (lacuna, omissão) persiste ou
quando as reconfigurações não mantêm o grau de aplicabilidade, o tempo
recomenda uma interpretação no sentido de conferir a mais direta e ampla
aplicabilidade possível.
202
Quer-se com isso enfatizar que a análise da omissão legislativa não pode
desprender-se da apreciação do fator tempo, pois o juízo da inconstitucionalidade por omissão
é sempre um juízo sobre o tempo útil, razoável e necessário para proceder à integração da
normatividade constitucional.
Em importante estudo sobre o tema da operatividade das normas
constitucionais, Inocêncio Mártires Coelho chega à conclusão de que não existe um critério
objetivo que nos permita identificar, com segurança, quais dispositivos constitucionais
reputam-se auto-aplicáveis e quais outros dependem de regulamentação.203
Embora não se pretenda questionar nesse trabalho a imperiosidade da
integração normativa para a elaboração dos planos de ordenação territorial da União
(previstos no art. 21, IX), o relevante a ser destacado é que tal exigência não inibe, por
exemplo, a necessidade de se conferir efetividade a tal preceito, com o intuito de promover a
mais direta e ampla aplicabilidade possível à Constituição.
Assim, ao invés de realçar a liberdade de conformação do legislador,
impende conferir especial destaque à força normativa da Constituição, evitando que essa
exigência constitucional flutue ao sabor das conveniências políticas.
Pode-se ressaltar, com isso, que a Constituição de 1988 contém, assim, os
instrumentos que dão efetividade às suas normas; seja por processo legislativo
infraconstitucional, seja pelos instrumentos processuais judiciários estipulados.
202
Ibid., p. 392-393.
COELHO, Inocêncio Mártires. Sobre a aplicabilidade de norma constitucional que instituiu o mandado de
injunção. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 104, p. 45, out./dez. 1989.
203
115
5.3 As normas-objetivo e o planejamento urbanístico
Tema que importa ainda considerar é o da concepção de norma-objetivo,
norma-fim ou norma-tarefa e a sua vinculação com o planejamento urbanístico.
Por certo, as normas de planejamento, como, por exemplo, a que determina
a elaboração do plano nacional e dos planos regionais de ordenamento territorial, encontramse, na realidade, voltadas a resultados concretos (fins) a serem alcançados.
Nesse ponto, cabe destacar que o § 1º do art. 174 da Constituição de 1988
determina que a lei estabelecerá as “diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento
nacional equilibrado”, a qual, por sua vez, incorporará e compatibilizará os planos nacionais e
regionais de desenvolvimento.
A Lei Fundamental já estabelece decisões políticas essenciais da nação,
fixando um modelo de país no qual o planejamento é concebido como poder-dever. Há de se
registrar, inclusive, que o desenvolvimento nacional equilibrado deve se fundamentar nos
propósitos que foram estabelecidos no art. 3º, I a IV e nos princípios que regem a ordem
econômica (CF, art. 170).
Portanto, não resta a menor dúvida que cumpre ao planejamento urbanístico
servir de instrumento para o alcance dos fins maiores do Estado brasileiro, dentre os quais, a
defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais, sendo os planos
nacionais e regionais de ordenação do território fundamentais para a ocupação racional dos
espaços no território nacional.
Eros Roberto Grau, utilizando-se dos ensinamentos de Sergio García
Ramirez e de outros autores sobre a natureza jurídica do plano, reconhece a existência da
norma-objetivo como um novo tipo de norma jurídica, “que rompe os modelos
tradicionalmente conhecidos, de norma de conduta e de norma de organização”.204
A concepção da norma-objetivo, como um tipo diferenciado de norma
jurídica, floresce, especialmente, no bojo dos debates travados a propósito das características
das normas do plano, as quais estabelecem fins a alcançar figurando em diversas leis e
204
GRAU, Eros Roberto. Notas sobre a noção de norma-objetivo. Direito constitucional: teoria geral da
constituição, vol. I (coleção doutrinas essenciais). Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso (org.). São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 843. Segundo Miguel Reale as normas de “conduta” são aquelas cujo
objetivo imediato é disciplinar o comportamento dos indivíduos ou as atividades dos grupos e entidades sociais
em geral; de “organização”, por outro lado, seriam aquelas que, possuindo um caráter instrumental, visam à
estrutura e funcionamento de órgãos ou à disciplina de processos técnicos de identificação e aplicação de
normas, a fim de assegurar uma convivência juridicamente ordenada. (Lições preliminares de direito, 25. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 89).
116
decretos (planos nacionais, regionais, setoriais, etc.), como pode ser observado, por exemplo,
na disposição do plano acerca das diretrizes e prioridades.
Cabe a oportuna observação de que normas-objetivo não se confundem com
as chamadas normas programáticas. Distintamente daquelas, que definem fins a alcançar, as
normas programáticas estipulam princípios e programas tanto de conduta e de organização
quanto atinentes a fins a cumprir.
Aliás, para Eros Roberto Grau, ambos os conceitos devem ser colocados em
níveis distintos, de modo que o da norma-objetivo deve ser analisado na perspectiva do
conteúdo da norma, ao passo que o da norma programática no da eficácia da norma. Isto
significa que uma norma programática não afasta a possibilidade de ser também classificada
como norma-objetivo.205
Há de se enfatizar que a existência de norma-objetivo no bojo de uma
parcela do ordenamento jurídico vincula o intérprete na interpretação de suas normas de
conduta e de organização, de modo que não poderá ser considerada como aceitável
hermenêutica que não seja estritamente coerente com a realização dos fins nela inscritos.
É o que expõe Eros Roberto Grau:
(...) penso também que o desatendimento dos fins predeterminados em normasobjetivo pelos seus destinatários consubstancia hipótese de desvio de finalidade ou
de poder, devendo levar, por consequência, à nulidade dos atos daí decorrentes.
No caso de desatendimento de norma como tal por parte do Estado, penso ainda se
possa cogitar da invalidade dos atos administrativos e normativos em que estiver
tal desatendimento consubstanciado e em responsabilidade do Estado – seja do
Executivo, seja do próprio Legislativo, quando o caso – portanto.206
Nesta perspectiva, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do
território afiguram-se como normas-objetivo, já que tais instrumentos revelam-se
indispensáveis para o planejamento de atividades econômicas e de projetos nacionais de
infraestrutura. Não é por outro motivo que consequências jurídicas advêm da inobservância
do dever de planejar na hipótese, como adiante será abordado.
205
206
Ibid., p. 855.
Ibid., p. 858.
117
5.4 A exigibilidade do dever de planejar e os planos urbanísticos da União
De início, cabe novamente ressaltar que a formulação de programas de
desenvolvimento deve obedecer ao ordenamento territorial, que, por sua vez, exige o pleno
diagnóstico e conhecimento dos espaços geográficos ou zonas ou regiões, em razão das
alternativas ou opções de intervenções econômicas e sociais.
Aliás, este processo ocorre no âmbito da elaboração dos planos nacionais e
regionais de ordenação do território que, conforme explicita a própria Constituição Federal,
deve se constituir no principal instrumento para a ocupação racional dos espaços no território
nacional.
Por certo, é o ordenamento do território que dá forma e conteúdo aos
objetivos indicados na Constituição, dentre os quais se destacam o desenvolvimento nacional
e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos II e III), sendo a sua
elaboração arena indispensável para a avaliação dos impactos sociais e ambientais de
atividades econômicas que englobam os grandes projetos nacionais, como as obras de
infraestrutura e os complexos industriais e minerais.
Com efeito, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do
território devem orientar a instalação de grandes projetos públicos e privados.207A função
orientadora e coordenadora de tais planos poderia viabilizar a integração dos projetos em
questão com as leis de ordenação espacial estaduais e municipais e os demais planos setoriais
já existentes nos estados e nos municípios, racionalizando o processo de alocação de recursos,
tanto públicos como privados e a distribuição dos investimentos públicos em infraestrutura
urbana pelo país.
Surge então a seguinte inquietação: Diante de situações que justificam a
necessidade de elaboração de planejamento territorial (que deve nortear o uso, a ocupação e a
transformação do território nacional) que alternativas restam para que seja dada efetividade ao
disposto no art. 21, IX, da Constituição Federal?
Em razão do caminho escolhido ao longo do trabalho, parece não haver
sentido em formular qualquer proposta que se enverede pelo caminho da ineficácia da
Constituição. Em palavras mais incisivas: a inação legislativa em referência torna-se passível
207
Dentre as atuais obras públicas de projeção nacional, com evidentes impactos no planejamento territorial,
podemos citar as usinas hidrelétricas do complexo do Rio Madeira(Jirau e Santo Antônio), a pavimentação da
BR-163, e os canais da transposição do Rio São Francisco. Além do mais, projetos como o de exploração do présal apresentam nítido rebatimento territorial, especialmente nas regiões e cidades litorâneas que servirão de base
para tais trabalhos.
118
de controle judicial, o mesmo podendo ser dito quanto à omissão da União na elaboração e
implementação de políticas setoriais urbanas, conforme será enfatizado a seguir.
5.4.1 Omissão legislativa da União na realização do planejamento urbano
O combate à inconstitucionalidade por omissão é consequência do perfil da
Constituição Federal de 1988.
A acentuada preocupação em prover a imediata realização do texto
constitucional não mais permite que o seu destinatário aguarde, em espera indefinida, a
elaboração das normas regulamentadoras faltantes.
Sob marcada influência do direito português, a Constituição Federal de 1988
introduziu no ordenamento jurídico nacional a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, buscando a efetividade das normas carentes de regulamentação, nos termos do art.
103, § 2º: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva
norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Parte-se
do
pressuposto
de
que
os
preceitos
que
demandarem
regulamentação legislativa ou aqueles simplesmente programáticos não deixarão de ser
invocáveis e exigíveis em razão da inércia do legislador.
Nesta perspectiva, não há dificuldade alguma em detectar omissão
inconstitucional na inércia da União em elaborar e instituir planos de ordenação territorial,
ante a natureza programática da norma estatuída no art. 21, IX, da Constituição de 1988.
É o que destaca Uadi Lammêgo Bulos:
Apenas as normas de eficácia limitada, por princípio institutivo e/ou por princípio
programático, é que podem ser objeto de ação de inconstitucionalidade por
omissão.
Somente essas normas dependem de regulamentação legislativa, atribuindo ao
legislador o dever de expedir comandos normativos. Exemplos: arts. 17, IV, 25, §
3º, 43, § 1º, I e II, 127, § 2º, 148, I e II, 165, § 9º, I etc. (normas institutivas) e arts
21, IX, 23, 170, 205, 211, 215, 218, 226, § 2º etc. (normas programáticas).208
208
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 251.
119
Enfatiza-se que a norma em referência não pode ser qualificada como de
organização ou de conduta.
Além de concretizar preceitos enunciadores dos fins do Estado, trata-se de
norma programática que não exige somente uma complementação normativa, mas,
igualmente, “uma terceira instância política, administrativa e material, sem a qual ela não teria
condições de efetivação no mundo real”.209Ou seja, a função conferida a esta norma pelo
ordenamento jurídico e a ausência de instrumentos para a ocupação racional e sustentável do
território nacional não permitem que a omissão da União perdure por tanto tempo,
configurando omissão inconstitucional.
Importa salientar que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão
instaura um processo objetivo e abstrato, com o escopo de preencher as lacunas normativas
que inviabilizam a efetivação da Lei Fundamental. Assim, quando a efetividade da norma
constitucional depender da atuação de órgão legislativo, a procedência da ação converte-se em
mera advertência para que o órgão remisso adote as medidas tendentes a conferir plena
exeqüibilidade ao texto constitucional.210
No tocante à omissão legislativa, abstraindo o constrangimento de ordem
moral, verifica-se que nenhuma eficácia remanesce na decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal, visto inexistir prazo para o adimplemento do dever constitucional de
legislar.
No entanto, o reconhecimento da omissão inconstitucional implica a
constatação de que o legislador violou norma cogente, imperativa e de observância
compulsória, que reclamava sua atuação em prazo razoável para que ela pudesse surtir os
efeitos desejados. Ou seja, tal comportamento apresenta-se contrário ao direito, podendo
ensejar outras consequências, caso inviabilize o exercício de direitos, prerrogativas e
finalidades asseguradas na Lei Fundamental.
5.4.2 Estratégias para conferir efetividade aos planos urbanísticos da União
É importante ressaltar que a omissão legislativa encontra-se compreendida
no conceito de ilicitude, ante o descumprimento do dever de ação previsto em norma
constitucional certa, determinada e obrigatória.
209
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 317-318.
Precedentes: STF, ADIn 529/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ, 146:424, 1993; STF, ADIn 267MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 19-5-1995, p. 13990.
210
120
Em homenagem ao princípio da universalidade da jurisdição, o Poder
Judiciário não pode abster-se de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, art. 5º,
XXXV), o que não condiciona o interessado a aguardar o prévio pronunciamento da ação
direta de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal para invocar a proteção
jurisdicional. Por isso, é facultado à vítima de ação ou omissão legislativa inconstitucional
ajuizar ação judicial para a proteção e efetivação de direitos.
Do ponto de vista jurídico, um dos caminhos que podem ser adotados para
conferir efetividade a normas de eficácia limitada perpassa pela análise dos preceitos
constitucionais que têm por objetivo a regulação das funções eficacionais que, conforme
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, podem ser de bloqueio, de programa ou de resguardo.211
Nesse passo, fazendo uso destes ensinamentos, Maria Helena Diniz afirma
que tais funções podem ser utilizadas como estratégias para conferir eficácia a alguns
preceitos constitucionais.212
Por certo, levando-se em conta a natureza do comando que estabelece a
obrigatoriedade de a União elaborar o plano urbanístico nacional, os planos regionais e os
setoriais, merecem especial atenção as análises feitas pela autora sobre as funções eficacionais
de bloqueio.
Assim, para ela, as normas de bloqueio apresentam eficácia negativa, o que
significa que prescrevem um caminho ao legislador, administrador ou juiz sem, contudo,
constrangê-los, juridicamente, a segui-lo, compelindo-os, porém, a não tomarem diretriz
contrária, sendo, por isso, paralisante das normas que com elas conflitarem. Segundo a autora,
o efeito negativo destas normas seria o de paralisar a eficácia de toda a disposição normativa
divorciada dos princípios e fins por elas preordenados, de modo que esta função eficacional
de bloqueio confere aos eventuais prejudicados o direito de exigir, perante o Judiciário, a
declaração de inconstitucionalidade de quaisquer atos normativos divorciados dos princípios e
211
Para o autor, de um modo geral, os preceitos constitucionais que estatuam princípios e finalidades, ainda que
não sejam positivamente consagrados na legislação ou nas normas de administração ou nas decisões judiciais,
impedem que tanto legislação quanto administração ou justiça disponham de forma contrária ao que eles
propõem. Esta função eficacial negativa resulta numa espécie de bloqueio para a atividade do poder público que,
não podendo ser obrigado a expedir normas que tornem efetivos os princípios e as finalidades, não pode, ao
menos, contrariá-los. Além deste caso (função de bloqueio), há outro que se refere às normas que instituem
programas de ação visando à realização dos fins sociais do Estado, mas dependendo de integração legislativa
(função de programa). Por último, o autor faz referência a normas que exercem função de resguardo, nos casos
em que a própria Constituição estabelece a possibilidade de eficácia de uma norma vir a ser futuramente limitada
por uma norma de escalão inferior. (Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Regras para a eficácia constitucional.
Revista de direito público, n. 76. São Paulo, 1985, p. 67-69).
212
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 121-126.
121
finalidades consagrados constitucionalmente, sem que haja lesão a direito individual, e de
obter decisões judiciais conforme os preceitos constitucionais. 213
Nota-se, por oportuno, que a noção de função eficacional de bloqueio,
tratada pela doutrina adrede mencionada, guarda estreita correlação com as consequências
advindas do desatendimento das “normas-objetivo”. Aliás, na esteira do entendimento
esposado em linhas anteriores por Eros Roberto Grau, é possível dizer que, na realidade, a
hipótese dever ser essencialmente analisada na perspectiva do conteúdo da norma e não da
sua eficácia.
De fato, os preceitos que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os
planos urbanísticos de sua competência revelam características de normas-objetivo. Como já
visto antes, a norma-objetivo vincula o intérprete de tal modo que não se entremostra
aceitável hermenêutica que não seja estritamente coerente com a realização dos fins nela
inscritos.
Nessa linha, pode-se dizer que na hipótese dos grandes projetos públicos a
falta de uma visão de conjunto (ausência de devido planejamento), como preconizado
constitucionalmente há mais de vinte anos, pode ser considerada objetivamente ilegítima,
passível, inclusive, de anulação judicial em algumas situações.
É o que pode ser observado, por exemplo, nos grandes empreendimentos
imobiliários (turísticos, residenciais, comerciais) e de grandes obras de interesse público
(usinas e portos marítimos) promovidos na orla marítima brasileira. Conforme destaca
Daniela Campos Libório Di Sarno “não é qualquer região que traz viabilidade para a
instalação de qualquer obra ou atividade”, bem como “localizadas as potenciais regiões, devese iniciar uma etapa de verificações em que os planejamentos regional e local devem ser
compatíveis com a instalação pretendida”. 214
Assim, para a autora, o eventual licenciamento destas atividades e
empreendimentos deve possuir uma modelagem que propicie uma repartição de
responsabilidades entre as diversas autoridades competentes (municipais, estaduais e federais)
viabilizando uma segurança jurídica maior para todos os envolvidos, destacando, ainda, que
um dos elementos fundamentais na construção desse modelo é o planejamento do
213
Ibid., p. 121-123.
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Interesse público, estado federado e grandes projetos na orla
marítima: considerações práticas. Revista Interesse Público - ano 13, n. 70 – nov/dez. Belo Horizonte: Editora
Forum, 2011.
214
122
ordenamento territorial, traduzidos em planos diretores e planos que o complementem além
de planos de ordenamento territorial definidos pelo Estado e pela União.215
A existência do plano nacional e de planos regionais de ordenação do
território facilitariam tal modelagem, permitindo maior integração entre as unidades
federativas na análise das políticas setoriais essenciais para o desenvolvimento do país,
inclusive no que se refere ao estabelecimento de mecanismos inter-institucionais de análise de
políticas setoriais com impacto no território. Enquanto isso não ocorre, é possível falar, em
determinadas situações, de ilegitimidade de licenciamentos realizados pela União em tais
regiões sem que sejam os interesses dos demais entes federativos levados em consideração
Ou seja, embora a inexistência de uma Política Nacional de Ordenação do
Território no país não possa impedir a elaboração e a realização de políticas setoriais que
impactem o território, já é possível descortinar a possibilidade de se promover a discussão
judicial de algumas destas políticas, ante o fim social tutelado constitucionalmente, visto que,
na realidade fática, podem ocorrer situações que acarretem lesões regionais e até de impacto
nacional ou internacional.216
Não há dúvida de que o dever jurídico de planejar é desrespeitado quando a
União também deixa de elaborar e promover planos setoriais urbanísticos de sua exclusiva
competência, como é o caso da defesa permanente contra as calamidades públicas,
especialmente as secas e as inundações (CF, art. 21, XVIII).
Parte-se do pressuposto óbvio de que a Constituição Federal deve ser
cumprida e aplicada não se justificando, assim, a omissão da União, que, inclusive, gera
desperdícios de vidas humanas e de recursos públicos.217
215
Ibidem.
Na elaboração de subsídios técnicos para a definição da Política Nacional de Ordenamento do Território um
dos desafios que foram apontados para enfrentamento pelo plano nacional é a “desarticulação e dispersão das
políticas setoriais com impacto no território, o que demanda esforços de compatibilização e articulação de
políticas públicas em seus rebatimentos no espaço, reduzindo os conflitos na ocupação e no uso do território e de
seus recursos”. Disponível em: <http://www.mi.gov.br/desenvolvimentoregional/seminario_pnot/>. Acesso em:
15 set. 2011.
217
Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) na Secretaria Nacional de Defesa Civil mostrou
extremo desequilíbrio na distribuição de recursos destinados para ações de prevenção a catástrofes entre 2004 e
2009. O Rio de Janeiro e seus municípios receberam apenas 0,65% da verba liberada no período. O estado
enfrentou sua pior temporada de chuvas em 44 anos, registrando um grande número de mortes em janeiro de
2011. A Bahia, no mesmo período de 2004 a 2009, recebeu o equivalente a 37,25% dos recursos liberados. A
maior parte das liberações aconteceu durante a gestão do então ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira
Lima, que deixou o cargo para poder se candidatar ao governo do estado. A Secretaria Nacional de Defesa Civil
é subordinada ao ministério. A auditoria foi feita por solicitação do Congresso Nacional no ano passado, após as
enchentes que atingiram Santa Catarina, para avaliar a eficiência, eficácia e efetividade das ações da defesa civil
brasileira, devido à demora no atendimento às vítimas no estado. Na catástrofe de Santa Catarina, no final de
2008, cerca de 130 pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas. De acordo com o relatório, “a
distribuição de valores não seguiria nenhuma tendência razoável, baseada em critérios de risco, histórico dos
eventos, etc”. As determinações do relatório para aprimorar as ações de defesa civil foram aprovadas por
216
123
Ressalte-se, todavia, que contra a União, os Estados-membros e os
Municípios podem lançar mão das medidas judiciais oferecidas pelo ordenamento jurídico
para exigir o emprego de recursos públicos federais nesta finalidade, afora, obviamente, as
consequências resultantes da responsabilidade civil que deve ser imputada a tal ente pelas
vítimas destes eventos, ante a ausência de uma política eficiente nesse setor.
Assim, à recusa da União em promover medidas para a implantação de
políticas setoriais urbanísticas, como a de prevenção às calamidades públicas em determinada
localidade propícia à ocorrência de eventos naturais, há de se atribuir um sentido
juridicamente negativo, qual seja: a ilicitude da conduta omissiva. Adicionando-lhe o nexo
causal entre a inércia administrativa ou legislativa e a inaplicabilidade de uma imposição
constitucional, bem assim o prejuízo moral e material causado às vítimas, exsurgem todos os
pressupostos para o aforamento de uma ação de perdas e danos.
O exemplo ilustra o esforço em se proporcionar aplicação integral às normas
constitucionais que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os planos urbanísticos de
sua competência, com base no conteúdo destes preceitos.
Na oportunidade, cabe a advertência feita por Walter Claudius Rothenburg:
Não é preciso desconsiderar o Legislativo, o Executivo e as instâncias
eminentemente políticas do Estado; ao contrário, deve-se reconhecer o papel
primordial que lhes cabe na articulação das expectativas da sociedade, mas sem
ignorar as orientações de atuação definidas na Constituição e, sobretudo, sem
renunciar a mecanismos de superação de eventual insuficiência ou omissão. A
questão, portanto, não é de menosprezar a necessidade (e a legitimação
democrática) de interposição legislativa, mas de avaliar até quando será lícito
aguardar por ela. Não é preciso remeter todas as expectativas para o foro judicial,
porém considerar também essa alternativa – eventualmente subsidiária e
certamente derradeira – diante dos termos claros de que nenhuma lesão ou ameaça
a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (Constituição, art. 5º,
XXXV).
218
unanimidade
pelos
conselheiros
do
TCU.
Disponível
em:
<http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/programas_governo/areas_atuacao/seguranca_pu
blica/Relat%C3%B3rio%20do%20Ministro%20Relator-DEFESA%20CIVIL%20-%20Monitorame.pdf.>.
Acesso em: 16 set. 2011.
218
ROTHENBURG, Walter Claudius. O tempo e a aplicabilidade das normas constitucionais, p. 389.
124
Com efeito, constituições, como a brasileira de 1988, que não se resumiram
a estabelecer regras de atribuição de competência, mas verdadeiros objetivos a serem
perseguidos pelo Estado, além da positivação de vários princípios jurídicos, fizeram com que
as técnicas hermenêuticas passassem por uma releitura.
Por isso, a tentativa de se buscar a consolidação dos objetivos do Estado
brasileiro e da sua ordem econômica não pode ser fundada tão-somente em uma metodologia
que se agarre na literalidade e na reserva absoluta legal.
É o que destaca José Maria Arruda Andrade:
Daí a necessidade, de um lado de uma metodologia jurídica que permita ver a
interpretação do texto normativo conjuntamente com a aplicação dele, como uma
concreção normativa, superando as antigas clivagens como ser e dever-ser. E, por
outro lado, de se reconhecer que pensar a atuação do Estado como um dever
constitucional, sem também ressaltar a necessidade de implantação de políticas
públicas, é esvaziar a possibilidade de concreção material à Constituição
brasileira.
219
Por entrever na inércia legislativa um pernicioso processo de corrosão dos
valores tutelados pelo constituinte, esta inversão no pensamento jurídico tradicional prenuncia
o último estágio de afirmação da supremacia constitucional.
De todo o exposto, conclui-se que o ordenamento jurídico direciona-se no
sentido de limitar o exercício abusivo da discricionariedade governamental e de implementar
um efetivo planejamento urbano que envolva todas as unidades federativas, inclusive e, em
especial, a União. A abertura da jurisdição aos valores que informam o sistema jurídico (num
enfoque hermenêutico-concretizante) é o caminho para viabilizar que a mera pretensão de
eficácia do texto constitucional se converta em verdadeira eficácia operativa.
219
ANDRADE, José Maria Arruda de. A Constituição brasileira e as considerações teleológicas na hermenêutica
constitucional. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO,
Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009, p. 328.
125
CONCLUSÃO
O urbanismo opera através de ações com o objetivo de organizar os espaços
habitáveis (atividade urbanística), de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem
na comunidade.
Assim, à medida que a atividade urbanística se faz necessária, mais
intensamente vão surgindo normas jurídicas para regulá-la e fundamentar a intervenção no
domínio privado, constituindo o que a teoria jurídica denomina “direito urbanístico”.
A partir de um enfoque dogmático-normativo, tem-se como objeto do
direito urbanístico a legislação constitucional e infraconstitucional que interfere, direta e
indiretamente, na qualidade de vida da população, abrangendo o ordenamento físico ou
territorial e as atividades econômico-sociais.
Essa estrutura normativa do urbanismo inclui preocupações voltadas à
ordenação do solo, à ordenação urbanística de áreas de interesse especial, à ordenação
urbanística da atividade edilícia, aos instrumentos de intervenção urbanística, entre outras.
O direito urbanístico é instrumento de transformação da realidade. Suas
normas são direcionadas para a concretização de diretrizes perseguidas pelo ordenamento
jurídico, especialmente a garantia da sustentabilidade ambiental, econômica e social, com
vistas à qualidade de vida da população.
O marco regulatório das cidades, instituído pela Constituição de 1988 e pela
Lei nº 10.257, de 10.07.2001 (autodenominada Estatuto da Cidade), deu ênfase à obrigação
do Estado em estabelecer um ordenamento territorial adequado, por meio de um sistema de
planejamento que garanta o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana.
Assim, partindo de uma leitura ampla de urbanismo (que certamente rompe as fronteiras da
cidade), a nova concepção de planejamento urbano envolve todos os entes federativos.
Por essa razão, levando-se em conta que o planejamento urbano não pode
restringir-se à figura do Plano Diretor, o ordenamento jurídico estabelece arranjos
institucionais entre os níveis de governo, no âmbito do planejamento, com o objetivo de
promover a elaboração e a implantação de políticas públicas mais eficazes, especialmente
subsidiadas na articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local e de
desenvolvimento econômico.
No Estado Federal há a incidência de ordens jurídicas diferentes sobre o
mesmo território, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências. Desse modo,
126
a competência é distribuída entre os diversos entes políticos, o que exige a identificação do
que pertence a cada um deles.
A competência para tratar de direito urbanístico não era tratada
explicitamente nas Constituições anteriores. Foi a Constituição Federal de 1988 que, pela
primeira vez, atribuiu competência concorrente à União e aos Estados-membros para legislar
sobre direito urbanístico. Assim, na competência concorrente, cabe à União legislar sobre
normas gerais, podendo os Estados-membros suplementar a legislação federal, editando
norma especial ou suprimindo a omissão da União (art. 24, I, e §§ 1º a 4º).
Aos Estados-membros, atribuiu-se competência privativa para instituir
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões constituídas por Municípios
limítrofes para o planejamento, a organização e a execução de funções públicas de interesse
comum (art. 25, § 3º). A Constituição conferiu aos Municípios o dever de legislar sobre
assuntos de interesse local (art. 30, I), suplementar a legislação federal e a estadual no que
couber (art. 30, II), promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e
controle do uso, parcelamento e ocupação do solo (art. 30, VIII), bem como executar a
política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput).
Além da competência concorrente, a Constituição Federal atribuiu à União o
desempenho de uma série de atividades e a organização e gestão de inúmeros serviços com
peculiar interesse ao urbanismo, inseridos na sua competência material privativa (art. 21), na
competência legislativa privativa (art. 22) e na competência material comum (art. 23).
A Lei Fundamental parte da premissa de que o papel da União é essencial
para coordenar as políticas nacionais de desenvolvimento com impacto direto no território,
como se visualiza na disposição prevista no inciso IX, do art. 21 (elaboração e execução de
planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e
social). Além disso, o plano nacional e os planos regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social são apontados pelo Estatuto da Cidade como
instrumentos de política urbana (art. 4º, inciso I).
A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 174, caput, que,
em matéria econômica, o plano é determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado. Assim, a nossa ordem jurídica contempla o Estado planejador, cujas ações devem ser
orientadas pelo planejamento.
O planejamento urbano, corolário do princípio urbanístico da coesão
dinâmica, tem sua existência correlacionada à função do Poder Público de proporcionar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Busca-se evitar, através dele, o
127
casuísmo e as transformações promovidas nas cidades com base exclusivamente em interesses
econômicos.
O planejamento urbano, embora inserido como espécie de planejamento
econômico, possui algumas características peculiares inseridas pelo ordenamento jurídico
com base na Constituição de 1988, possibilitando a intervenção mais acentuada do Estado na
esfera jurídica privada. Ou seja, através dele não ocorre a intervenção no domínio econômico
propriamente dito, mas no domínio mais restrito da propriedade, na qual a ordem jurídica
constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atividade
urbanística (art. 182, § 1º).
O planejamento territorial deve estar vinculado ao planejamento econômicosocial. Nesse sentido, por exemplo, a programação de políticas de investimento pela União
em obras numa determinada região do país, ou mesmo o incentivo à instalação de empresas
ou atividades numa localidade, irá impactar social e economicamente na infraestrutura dos
municípios onde elas ocorrerão. A própria Constituição Federal de 1988 sinalizou as estreitas
relações entre ambos (CF, art. 21, IX).
Além disso, o planejamento territorial no Brasil tem sido objeto de
disposição de várias leis, sem que exista uma visão sistemática que oriente a elaboração e a
interpretação das diferentes leis voltadas à organização do território para a realização de
distintos aspectos de interesse público. No mesmo sentido, a ausência de uma política
nacional de ordenação territorial e de desenvolvimento econômico também é sentida quando
se observa a execução de inúmeras políticas setoriais com rebatimento territorial realizadas de
forma desarticulada e com sobreposição de atuações entre os entes federativos.
Pode-se afirmar, portanto, que o preparo das estruturas urbanas de novas
cidades e a correção das estruturas de cidades existentes (de forma a poderem receber o
crescimento atual) são problemas a serem enfrentados seriamente por todos os níveis de
governo. E a União, neste aspecto, exerce função primordial na implantação de um sistema de
planos estruturais, na medida em que os planos territoriais de sua competência possibilitam a
integração dos diversos planos, ações e investimentos em infraestrutura e desenvolvimento,
entre os diversos níveis de governo, permitindo maior eficiência nas ações administrativas
entre governos e gestões sucessivas e, consequentemente, a adequada alocação de recursos.
Assim, num país com dimensões continentais e de alta diversidade
ambiental, cultural, social e econômica como o Brasil, a existência de planos territoriais de
caráter nacional e regionais para orientar o uso e a ocupação das terras revela-se fundamental.
128
Por outro lado, passados mais de vinte anos da promulgação da
Constituição, a União ainda não se desincumbiu do dever de elaborar o plano nacional e os
planos regionais de ordenamento territorial, o que significa que ainda não houve a
implantação de uma política nacional de desenvolvimento territorial.
O reconhecimento aos entes com competência planificatória de considerável
zona de liberdade para a escolha do momento da elaboração do plano não pode abranger a
decisão de elaborá-lo, ou não, já que há imposição constitucional em sentido contrário. A Lei
Fundamental teve essa preocupação e criou formas de controle jurisdicional para reduzir o
poder discricionário, visando sempre à aplicabilidade das normas constitucionais.
Os preceitos que estabelecem o poder-dever de a União elaborar os planos
urbanísticos de sua competência revelam características de normas-objetivo, as quais
vinculam o intérprete de tal modo que não se entremostra aceitável hermenêutica que não seja
estritamente coerente com a realização dos fins nela inscritos.
Nessa linha, pode-se dizer, por exemplo, que na hipótese dos grandes
projetos públicos, a falta de uma visão de conjunto (ausência de devido planejamento), como
preconizado constitucionalmente há mais de vinte anos, pode ser considerada objetivamente
ilegítima, passível, inclusive, de anulação judicial.
Ou seja, embora a inexistência de uma Política Nacional de Ordenação do
Território no país não possa impedir a elaboração e a realização de políticas setoriais que
impactem o território, já é possível descortinar a possibilidade de se promover a discussão
judicial de algumas destas políticas, ante o fim social tutelado constitucionalmente, visto que,
na realidade fática, podem ocorrer situações que acarretem lesões regionais e até de impacto
nacional ou internacional.
Dentro desta noção, a omissão na elaboração dos planos urbanísticos
federais pode não só implicar a indicação de mora à União (através da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão), mas, ainda, em conseqüências no âmbito da
responsabilidade civil, bem como no próprio controle da legalidade de atividades com
significativas repercussões no âmbito da territorialidade, realizadas num contexto de absoluta
falta de planejamento.
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CARLOS EDUARDO SILVA Planejamento urbano e competência