Esquizofrenia, Transtornos Esquizotípicos e Delirantes Nelson Goldenstein Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade IPUB/UFRJ Os transtornos esquizofrênicos, esquizotípicos, e delirantes são categorias sem fronteiras definidas. São classificados como transtornos de origem desconhecida. Alguns conceitos importantes Confiabilidade Sensibilidade Validade O uso de critérios diagnósticos padronizados aumentou a confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. Mas, questões relacionadas a sua validade e sensibilidade ainda permanecem abertas. Como provar que um critério, ou sistema diagnóstico é mais válido que outro? Como saber se um critério é mais, ou menos sensível que outro? A crítica de Rosenhan: Como ser são em lugares insanos? Estudo crítico sobre o valor do diagnóstico psiquiátrico, da internação e dos recursos assistenciais da época. Publicado na revista Science, em 1971. O 1º estudo de colaboração internacional sobre a confiabilidade do diagnóstico de esquizofrenia. Realizado em 1972. EUA X Reino Unido. – Nos hospitais de NY se fazia diagnostico de esquizofrenia 9 vezes mais frequentemente do que nos hospitais de Londres. – Para tratar um esquizofrênico americano bastava enviá-lo para a Inglaterra? Estudo Piloto Internacional sobre Esquizofrenia (OMS, 1972). Desenvolvimento de técnicas de pesquisa de seguimento prospectivo (follow up) de transtornos esquizofrênicos. Reconhecimento de um grupo “nuclear” de sintomas (categoria S/CATEGO) prevalente em todas as partes do mundo. Os estudos de seguimento realizados a partir das pesquisas da OMS revelaram: – Não é possível determinar o prognóstico dos pacientes na ocasião do primeiro surto, por mais grave que pareça ser. – Há variações estatísticas no curso evolutivo, com maiores índices de casos com melhor prognóstico nos países em desenvolvimento. Esquizofrenia: um transtorno com evolução única e pré determinada? Ou evolução influenciada por fatores ambientais naturais e/ou culturais? Emil Kraepelin Autor do termo “DEMENTIA PRAECOX” Baseado na descrição de catatonia, de Kahlbaum (1874), e na de hebefrenia de Hecker (1871), aplicou o termo Dementia praecox àquelas doenças que aparentemente compartilhavam o mesmo curso. Doutrina dos estados finais, de Kraepelin – Início precoce em relação à idade. – Similitude e especificidade dos estados finais (demência). Eugen Bleuler “ a idéia de esquizofrenia vem de Kraepelin” ... ”todos os créditos em relação a identificação e classificação se devem a ele”. Eugen Bleuler Em 1911, Bleuler sugeriu a mudança do nome “Dementia praecox” pelo de “esquizofrenias” (no plural). Seu objetivo era esclarecer a dinâmica psicológica da Dementia praecox, aludindo às idéias de Freud. Eugen Bleuler Sintomas primários: manifestações obrigatórias da doença. “ A maioria dos sintomas da Dementia praecox são manifestações secundárias, e representam um esforço do paciente para lidar com situações insuportáveis”. Eugen Bleuler "Postulamos a presença de um processo que produz diretamente os sintomas primários; os sintomas secundários são em parte funções psíquicas que operam em condições alteradas, e em parte o resultado de tentativas de adaptação, mais ou menos exitosa, a perturbações primárias”. Alterações Básicas, ou Fundamentais para o diagnóstico Alts formais do pensamento (Associação)* Alterações do Afeto* Ambivalência* Autismo* Alterações na experiência subjetiva do Eu. Alterações na vontade e comportamento. * Os 4 As de Bleuler. Kurt Schneider Schneider construiu seu sistema diagnóstico separando as alterações vivenciais em dois tipos: de primeira e de segunda ordem ( em importância). Kurt Schneider Estes “transtornos da experiência aparecem como sendo de “primeira ordem” apenas por possuírem peso diagnóstico. Foram escolhidos sem qualquer relação com a teoria primário – secundário. Os sintomas de primeira ordem receberam forte proeminência devido a sua presumida simplicidade e confiabilidade. Sintomas de primeira ordem Sonorização do pensamento. Vozes que dialogam entre si. Vozes que discutem, ou fazem comentários depreciativos sobre as ações do paciente.Vozes que comentam sobre as atitudes do paciente. Roubo de pensamento e outras vivências de influência no pensamento.Difusão do pensamento. Percepção delirante. Vivências de influência no domínio dos sentimentos, tendências e vontade. Sintomas de segunda ordem Outros transtornos de percepção. Idéias delirantes. Perplexidade. Alterações do humor (depressivo ou eufórico). Sentimentos de empobrecimento emocional. Os sintomas de primeira ordem expressam profundas alterações na consciência de si (Eu, Self) e de mundo. Consciência de si e de mundo. Para os manuais de psiquiatria, o diagnóstico de esquizofrenia se baseia principalmente nos sintomas psicóticos, como descritos por K. Schneider + supostas manifestações de “déficit” cognitivo. Mas, a preocupação com a confiabilidade diagnóstica “amarrou” o alcance de diferentes métodos psicopatológicos. Destacou apenas os fenômenos objetivos, identificados pela observação comportamental (p. ex., os sintomas psicóticos) e dispensou estudos sobre a dimensão existencial e subjetiva do adoecer esquizofrênico. Embora os manuais psiquiátricos tenham dispensado os relatos pessoais, há vivências citadas consensualmente por diferentes autores ao longo do século passado. São importantes relatos de vivências subjetivas incipientes, presentes muito precocemente, antes do adoecer psicótico. Desde o início do século XX descrições clínicas apontam para vivências anômalas do eu em relação ao mundo. (JANET, 1903; KRAEPELIN, 1907; BLEULER, 1911, FREUD, 1913; BERZE, 1914; JASPERS, 1923; MINKOWSKI, 1927; CONRAD, 1957; K.SCHNEIDER, 1959; HÜBER, 1968; BLANKENBURG, 1986; KLOSTEKÖTTER, 2001). Para Janet (1903), (...) um sentimento de estranheza exterior, de irrealidade, de inafetividade e de perda da direção (...) tomados por essa sensação de vazio, experimentam uma impressão de artificialismo e irrealidade ao redor de si. Citée par GUIRAUD. Psychopatologie des Délires.Congrès International de Psychiatrie. Paris.1950. Pp 17-20. Tradução nossa. 'Há alguma coisa, diga-me o que há', assim se dirigia uma doente. 'Eu não sei, mas há alguma coisa'. Os doentes sentem algo estranho, há alguma coisa que pressentem. Tudo tem nova significação. Sobre o humor delirante. JASPERS, 1923. "A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução" FREUD, 1913. "Postulamos a presença de um processo que produz diretamente os sintomas primários; os sintomas secundários são em parte funções psíquicas que operam em condições alteradas, e em parte o resultado de tentativas de adaptação, mais ou menos exitosa, a pertubações primárias”. E. Bleuler, 1911. “O padrão existencial esquizofrênico revela a quebra na consistência da experiência natural” (BINSWANGER, 1956). Estudos mais modernos revelam que as manifestações psicóticas (perda do juízo de realidade, delírios, alucinações, desorganização da linguagem) são apenas expressões parciais da doença. Supostamente, são descompensações psíquicas de uma problemática presente muito antes do surto esquizofrênico agudo. O período que antecede o aparecimento dos sintomas psicóticos, e que já revela vivências subjetivas de transformação do eu e do mundo, é denominado FASE PRODRÔMICA. A fase prodrômica se inicia, em média, cerca de cinco anos antes do surto psicótico, período considerado de alta vulnerabilidade para o adoecer. De uma maneira esquemática, muitos autores chamam os sintomas psicóticos de sintomas POSITIVOS. Os chamados sintomas NEGATIVOS são apenas descrições do comportamento de desligamento e de dificuldade de interação com o ambiente. Nenhum se refere ao relato vivencial The early stages of schizophrenia from first sign of mental disorder to first admission (ABC first episode. Hafner al. 1995). Muitos autores do passado, hoje esquecidos, mostraram como a capacidade de empatia permite o estudo fenomenológico das vivências esquizofrênicas. – Jaspers, Minkowski, Binswanger, Tellembach, Conrad. A capacidade empática do entrevistador permite usar a narrativa, ou relato pessoal, para apreender o modo como fenômenos mentais aparecem à consciência do paciente. Conduzidos pelo referencial fenomenológico, estudos sugerem que a consciência de si mesmo, ou consciência do Eu constitui o núcleo fenotípico de vulnerabilidade para os transtornos do espectro esquizofrênico. Modelo fenomenologico das manifestações primárias do espectrum esquizofrênico 1ª Pessoa instavel Perturbação do Senso de identidade PERPLEXIDADE Perda do significado Perda do senso comum Confusão e perplexidade Arco Intentional SUJEITO ’Passivo’, nível pré-linguistico da experiência (sínteses passiva) Nível disposicional e operativo da intencionalidade EASE workshop. 2006. J. Parnas. OBJETO A abordagem empática revela profundas alterações, vividas de modo subjetivo, presentes anos antes do primeiro contato com serviços psiquiátricos. Estas alterações, embora marcantes, não são citadas pela grande maioria dos instrumentos psiquiátricos contemporâneos. Ao contrário do que se possa pensar sobre o chamado “embotamento afetivo” dos esquizofrênicos, 74% dos casos admitidos para internação com o diagnóstico de esquizofrenia, e 61% no período de alta hospitalar apresentam prevalência de sintomas depressivos moderados a severos. MÖLLER et. COL APUD HÄFNER, 1999 2/3 dos casos apresentam depressão antes e depois de um episódio psicótico. 65% cometem tentativas de suicídio e/ ou auto agressão nestes períodos. 10% alcançam êxito letal, em geral, de forma bizarra. O esforço em recuperar uma subjetiva vivência de senso comum, assustadoramente perdida desde os períodos que antecedem a eclosão das manifestações psicóticas, destaca a importância de certas experiências prévias de vulnerabilidade psíquica para a eclosão psicótica. Alterações em várias dimensões da subjetividade (1) perda do senso compartilhado. (2) perplexidade em relação ao mundo e a si mesmo. (3) alteração na essência do Eu, através de profundas vivências de transformação. Eu, nós, e o mundo. A qualidade da consciência de si e do mundo se modifica de uma maneira inexplicável para o paciente. Dificilmente são capazes de relatar espontaneamente. Esta transformação subjetiva e não verbalizada parece ser responsável por afastamento social, vergonha, e comportamentos auto e hetero agressivos. Por outro lado, faz com que estes pacientes se tornem “pensadores”, voltados para questionamentos de aspectos da vida que normalmente não nos detemos para refletir porque são automáticos. P. ex, John Nash, preocupado em encontrar o “algoritmo da relação entre as coisas”. “É notório que com os meus problemas pessoais, eu tenha perdido a vaidade. O mais importante é que eu me sinto como se estivesse me subjetivando (não sei se é a palavra correta) a perda do meu centro, do meu eu. E a partir disso, levanto o juízo a respeito de coisas exteriores a mim. É um inferno, mas quero sair dele. É engraçado, que quanto mais eu perco o meu eu, mais levanto juízos sobre coisas externas ao sujeito. Quando eu era normal, o Eu não questionava as coisas externas ao sujeito, ou seja, apenas as afirmava”. (RS). “Sinto uma estranha porosidade entre eu e o mundo, que me faz sentir contaminado com toda sorte de maldições e tragédias da humanidade. Por isso resolvi me afastar de tudo e todos. Foi a maneira que encontrei para me proteger de ser definitivamente esmagado e desintegrado”. “Há tempos foi sustentada a opinião de que a consciência é a última fortaleza do homem. Quer dizer que de lá você pode atirar com seus canhões para os objetos externos à fortaleza. Ou ela pode ser implodida pelo lado de dentro, pelo mau uso da pólvora. Acho que estou nesta situação.... . Eu quero voltar a ser uma fortaleza com seus canhões disparados para fora. O homem não sabe o poder que tem nas mãos, que é a razão, a consciência, a alma”. (RS). Este tipo de abordagem permite revelar como esquizofrênicos convivem consigo mesmos, e como reconhecem suas próprias dificuldades. Esse tipo de análise parece útil inclusive no estudo de longo prazo, revelando como fases de estabilização podem ser o resultado de esforços individuais em encontrar um senso pessoal, comprometido no processo de desintegração esquizofrênico. Baixa incidência e alta prevalência. Prevalência: 1%. Distribuição igual entre homens e mulheres. Raramente se inicia antes da puberdade e depois dos cinquenta anos. Quadro clínico: A) Frequentemente, personalidade prémórbida esquizoide. B) Em geral, período prodrômico de alguns anos. C) Quadro clínico específico de cada subtipo. Manifestações clínicas I) Alterações do pensamento: afrouxamento dos enlaces associativos bloqueios e descarrilamentos desagregação do pensamento. II) Alterações da afetividade: dissociação ideo-afetiva esmaecimento dos nexos afetivos III) Alterações da vontade e da psicomotricidade: - hipobulia e hipopragmatismo. - sintomas catatônicos. IV) Alterações da consciência do Eu: - inserção de pensamentos. - difusão do pensamento. - roubo do pensamento. - vivências de influência. V) Delírios: - Delirios primários (percepção delirante). - idéias delirantes secundárias. VI) Alucinações: - auditivas verbais na terceira pessoa. SUBTIPOS Forma Paranoide. Forma Hebefrênica. Forma Catatônica. Esquizofrenia paranóide - Delírios mais sistematizados. - Alucinações auditivas mais frequentes, embora possam ocorrer alucinações de outras esferas sensoriais. - Menor comprometimento da forma do pensamento, da afetividade e da vontade. - Início tende a ser mais tardio. Esquizofrenia hebefrênica (desorganizada) - Delírios pouco sistematizados. - Alucinações pouco proeminentes. - Comportamento desorganizado e inadequado. - Nexos afetivos superficiais e inadequados. - Maior comprometimento da vontade. - O início tende a ser mais precoce. Esquizofrenia catatônica - rigidez muscular ceracea. - negativismo. - fenômenos em eco (ecolalia, ecopraxia) Variáveis estatisticamente associadas a prognóstico favorável: - início tardio e agudo. - sintomas psicóticos floridos. - sintomas depressivos proeminentes. - história familiar de distúrbio do humor. - boa história social, sexual e profissional prémórbida. - fatores desencadeantes óbvios. - estado civil casado. - bom ambiente familiar. - boa inserção social. - tratamento precoce. Variáveis estatisticamente associadas prognóstico desfavorável - início precoce e insidioso. - sintomas de empobrecimento efetivo/volitivo. - comportamento retraído e autista. - história familiar de esquizofrenia. - história de trauma peri-natal. - história social, sexual e profissional prémórbida pobre. - estado civil solteiro, divorciado ou viúvo. - ambiente familiar desfavorável. - fraca rede de de apoio. - inserção social ruim. - demora para o início do tratamento. Sintomas Positivos Desorganização do pensamento (dissociação, desagregação, e cisão). Perplexidade. Alucinações auditivas. Alterações da consciência do Eu. Ideação delirante. Sintomas Negativos Aparente pobreza ideativa. Dificuldades de cognição social. Diminuição do desempenho social. Apatia, abulia. Retração afetiva, ou incongruência de respostas emocionais. Padrões de curso evolutivo (CID X) Contínuo. Episódico com déficit progressivo. Episódico com déficit estável. Episódico remitente. Remissão incompleta. Remissão completa. Outros. Transtorno esquizotípico Comportamento excêntrico que se assemelha ao da esquizofrenia, A categoria diagnóstica pode comportar afeto frio ou inapropriado, anedonia, comportamento estranho ou excêntrico, tendência ao retraimento social, idéias paranóides ou bizarras sem que se apresentem idéias delirantes autênticas, ruminações obsessivas, transtornos do curso do pensamento e perturbações das percepções. Períodos transitórios ocasionais quase psicóticos com ilusões intensas, alucinações auditivas ou outras e idéias pseudodelirantes, ocorrendo em geral sem fator desencadeante exterior. O início do transtorno é difícil de determinar, e sua evolução corresponde em geral àquela de um transtorno da personalidade. Como foi dito, trata-se de uma convenção, mais uma categoria sem fronteira definida. Transtorno esquizotípico Esta categoria inclui as seguintes: · “borderline” · latente · pré-psicótica · prodrômica · pseudoneurótica · pseudopsicopática Reação esquizofrênica latente Transtorno esquizotípico da personalidade Sem fronteiras claras, esta categoria diagnóstica se firmou após estudos prospectivos de filhos de pais esquizofrênicos. Estes estudos sugeriram a existência de um núcleo fenotípico de vulnerabilidade q, dependendo das condições de vida, evolui para um transtorno esquizofrênico, ou não. Transtornos delirantes persistentes Como as demais categorias diagnósticas, não tem fronteira definida. Reúne transtornos diversos, caracterizados essencialmente pela presença de idéias delirantes persistentes e que não podem ser classificados entre os transtornos orgânicos, esquizofrênicos ou afetivos. Transtorno delirante persistente Caracterizado pela ocorrência de idéia delirante única ou de um conjunto de idéias delirantes aparentadas, em geral persistentes e que por vezes permanecem durante o resto da vida. O conteúdo da idéia ou das idéias delirantes é muito variável. A presença de alucinações auditivas persistentes, de sintomas esquizofrênicos como idéias delirantes de influência e embotamento nítido dos afetos, e evidência clara de uma afecção cerebral, são incompatíveis com o diagnóstico. Entretanto, a presença de alucinações auditivas irregulares ou transitórias, particularmente em idade avançada, não elimina o diagnóstico, desde que não sejam alucinações tipicamente esquizofrênicas e de que não dominem o quadro. Nestes casos, falta a sensação de não pertencimento, de perda do senso compartilhado de existência no mundo. Da mesma forma, não há a sensação de transformação de si e do mundo, como nos transtornos esquizofrênicos. Transtorno delirante persistente Inclui as seguintes categorias: Delírio sensitivo de auto-referência. Estado paranóico. Parafrenia (tardia). Paranóia. Psicose paranóica.