Transtornos Esquizofrênicos Nelson Goldenstein MD, PhD. Laboratório de Estudos em Psicopatologia e Subjetividade. IPUB/UFRJ Até hoje não sabemos se os quadros clínicos são resultados de uma, ou mais causas. É, possivelmente, multifatorial. O modelo vulnerabilidade x estresse é atualmente o mais aceito 1- Os quadros mentais são muito variados. 2- Há fortes evidências causais (etiológicas)provenientes de diferentes campos do conhecimento- genética, neurofisiologia, relação mãe-bebê, comunicação intra-familiar, stress social. 2.1- Pacientes com diagnóstico de esquizofrenia apresentam mais freqüentemente histórico de diferentes problemas durante sua gestação, e/ou parto. 2.2- Estudos retrospectivos e prospectivos revelam sérios problemas na comunicação. 2.3- Estudos de grandes populações revelam maior freqüência de problemas sócio familiares. (P ex. mais freqüente em lares desorganizados e entre migrantes). Primeiro relato clínico completo foi escrito em 1896, por Emil Kraepelin. O diagnóstico de Kraepelin se baseava nos estados finais de franca deterioração das funções mentais (Demencia precoce). O diagnóstico de Bleuler era baseado no mecanismo dos sintomas (cisão da alma = esquizofrenia). ESQUIZOFRENIA classificação E. KRAEPELIN (1856-1926) “DEMÊNTIA PRAECOX” – CRITÉRIO SINTOMATOLÓGIO atenção e compreensão; alucinações (auditivas); pensamento sonoro; vivências de influência; comprometimento cognitivo e do julgamento, embotamento da afetividade; mudanças de comportamento – CRITÉRIO EVOLUTIVO prognóstico ruim levando à invalidez psíquica – CRITÉRIO ETIOLÓGICO causa endógena BLEULER (1911) CRITÉRIO SINTOMATOLÓGICO sintomas fundamentais: alterações da Associação; Autismo; distúrbios da Afetividade; Ambivalência sintomas acessórios: alucinações; delírios; alterações de personalidade; sintomas catatônicos; distúrbios mnésicos; sintomas somáticos. K. SCHNEIDER (1939) Critério “pragmático”incluindo apenas sintomas cuja compreensão conceitual e o reconhecimento clínico não ofereçam dificuldades”. SINTOMAS DE PRIMEIRA ORDEM sonorização do pensamento; vozes que dialogam entre si; vozes com comentários acompanhando suas ações; vivência de influência corporal; roubo ou influência no pensamento; percepção d elirante; vivência de influência dos sentimentos, tendências ou vontade SINTOMAS DE SEGUNDA ORDEM idéias delirantes súbitas; perplexidade; mudanças de humor; sentimento de empobrecimento emocional, etc. Sintomas de 1ª Ordem de K. Schneider Sonorização do pensamento. Vozes que dialogam entre si. Vozes que discutem, ou fazem comentários depreciativos sobre as ações do paciente.Vozes que comentam sobre as atitudes do paciente. Roubo de pensamento e outras vivências de influência no pensamento (originalmente, o sintoma “inserção do pensamento” estava incluído entre as vivências de influência do pensamento).Difusão do pensamento. Percepção delirante. Vivências de influência no domínio dos sentimentos, tendências e vontade. OMS- Estudo Piloto Internacional sobre Esquizofrenia Novas contribuições para os instrumentos classificatórios. Em seus resultados, sugere que os transtornos esquizofrênicos são universais, presentes em todas as culturas, e que suas causas se devem a uma possível combinação de diversas etiologias (genéticas, adquiridas e desenvolvidas socialmente). Persiste a pergunta formulada desde Kraepelin e Bleuler: “Doença única ou Distúrbio? Esquizofrenia ou Esquizofrenias?” Classificação Nos anos 60 e 70 surgem grandes questionamentos sobre: a validade. a confiabiliade. a sensibilidade. Estudo de Rosenhan: “On Being Sane in Insane Places”. Science, vol 179 (jan. 1973), 250- 258 (http://psychrights.org/articles/rosenham.htm) Estudo NY/ Londres: Freqüência maior do diagnóstico de esquizofrenia em NY em relação a Londres (1972). CID-10 LISTA OITO GRUPOS DE SINTOMAS PARA O DIAGNÓSTICO OPERACIONAL DA ESQUIZORENIA COMPOSTOS DE SINTOMAS DE KRAEPELIN, BLEULER, SCHNEIDER. PARA O DIAGNÓSTICO OS SINTOMAS DEVEM PERMANECER POR 1 MÊS. Quadro clínico : 1- personalidade pré-mórbida esquizoide, esquizotípica 2- período prodrômico 3- mnanifesações clínicas Principais manifestações clínicas I) alterações do pensamento: - afrouxamento dos enlaces associativos - bloqueios e descarrilhamentos - desagregação do pensamento II) alterações da afetividade: - dissociação ideo-afetiva - esmaecimento afetivo III) alterações da vontade e da psicomotricidade : hipobulia e hipopragmatismo sintomas catatônicos IV) alterações da consciência do eu : inserção de pensamentos difusão do pensamento roubo do pensamento vivências de influência V) delírios : vivências delirantes primárias idéias delirantes VI) alucinações : auditivas verbais do tipo de K. Schneide. visuais cenestésicas Subtipos : a) ESQUIZOFRENIA PARANOIDE: - delírios mais sistematizados - alucinações auditivas frequentes; podem ocorrer alucinações de outras esferas sensoriais. - menor comprometimento do pensamento, afetividade e vontade - estatísticamente de início + tardio. b) ESQUIZOFRENIA HEBEFRENICA ( ou desorganizada) : - delírios pouco sistematizados - alucinações pouco proeminentes - comportamento desorganizado e inadequado - nexos afetivos superficiais, inadequados - maior comprometimento da vontade - Estatisticamente mais frequentemente de início precoce. c) ESQUIZOFRENIA CATATONICA: - Negativismo. - Sintomas em eco. - Rigidez muscular em cera. - demais sintomas como delírios e alucinações. Kraepelin: Uma descrição clínica Senhores, eu vos apresento para exame, este jornaleiro de 22 anos que já deu entrada neste serviço pela primeira vez, há cerca de três anos atrás. Algumas semanas antes de sua primeira entrada, ele havia sido tomado por forte acesso de ansiedade. Depois, tornou-se como que hebetado: a palavra se tornou embaraçada, o olhar fixo e as idéias um tanto interrompidas; foi tomado por um vago delírio de perseguição e culpabilidade. Naquela época, respondia de maneira hesitante e desconexa, mas era capaz de resolver pequenos problemas de aritmética, assim como de executar algumas ordens pouco complicadas. Ignorava o local onde se encontrava. " De tempos em tempos falava sozinho, murmurando algumas palavras ininteligíveis. Compreendia bem aquilo que se falava, mas facilmente se distraía. Não se interessava nem buscava por nada que estivesse ao seu redor. De maneira geral, mantinha-se deitado na cama, a face sem expressão, como que congelada. Todos seus movimentos traduziam certa falta de espontaneidade e iniciativa. Seus membros permaneciam por longos períodos de tempo na posição em que os deixássemos. Além disso, se levantássemos o braço à sua frente, ele repetia nosso movimento. Eles revelam, de uma forma geral, problemas especiais da vontade, os quais nós agrupamos sob o nome de obediência automática. No transcorrer do último mês, havia melhorado. Seu espírito tornara-se mais lúcido, suas maneiras mais naturais, e ele tomara a precisa sensação de estar doente. Permanecera, entretanto, um tanto confuso, pobre de pensamento e de sensações. Assim, deixou a clínica nessas condições para retornar ao seu trabalho. Eis que, após um ano, nós o trouxemos novamente: ele havia se colocado na frente de um trem que lhe cortou o pé direito e fraturou o braço esquerdo. Durante esse novo episódio mostrou-se, entre nós, mais conhecedor de si, identificando melhor o ambiente ao seu redor, mostrando voluntariamente suas noções de geografia e cálculo. Não falava, é verdade, espontaneamente com ninguém. Permanecia apático, deitado, privado de qualquer reação. Sua face, sem expressão. Não se ocupava de nada, nem prestava qualquer atenção ao seu redor. Atribuiu a tentativa de suicídio à sua doença: depois de um ano sua cabeça havia se tornado vazia e afirmava que não era capaz de pensar sem que os outros tomassem conhecimento de seus pensamentos e se tornassem os sujeitos de suas conversas. Escutavam-no mesmo quando estava lendo o jornal. Hoje, permanece ainda no mesmo estado em que o encontramos de início; olha indiferentemente para frente sem ver nada. Não toma conhecimento das pessoas à sua volta. Olha-nos apenas quando indagado ou interpelado com energia para se obter qualquer resposta. Sabe onde está, o mês e ano em curso, assim como o nome de seus médicos; é capaz de resolver problemas fáceis, de enumerar alguns nomes de rua e de rios. De tempos em tempos se crê inimigo dos filhos do imperador, o rei Guilherme. De resto, não tem noção de sua situação e deseja permanecer aqui: " meu cérebro se tornou ferido, estilhaçado". Introduction a la Psychiatrie Clinique. Vigot Frères. 1907. Tradução nossa. Embora desde Kraepelin a psiquiatria não tenha se detido nos relatos pessoais das vivências subjetivas destes pacientes, estas vivências são apreendidas e citadas por diferentes autores ao longo do século passado. São vivências subjetivas incipientes, presentes muito precocemente. Desde o início do século XX descrições clínicas apontam para vivências anômalas do eu em relação ao mundo. (JANET, 1903; KRAEPELIN, 1907; BLEULER, 1911, FREUD, 1913; BERZE, 1914; JASPERS, 1923; MINKOWSKI, 1927; CONRAD, 1957; K.SCHNEIDER, 1959; HÜBER, 1968; BLANKENBURG, 1986; KLOSTEKÖTTER, 2001). Para Janet (1903), (...) um sentimento de estranheza exterior, de irrealidade, de inafetividade e de perda da direção (...) tomados por essa sensação de vazio, experimentam uma impressão de artificialismo e irrealidade ao redor de si. Citée par GUIRAUD. Psychopatologie des Délires.Congrès International de Psychiatrie. Paris.1950. Pp 17-20. Tradução nossa. 'Há alguma coisa, diga-me o que há', assim se dirigia uma doente. 'Eu não sei, mas há alguma coisa'. Os doentes sentem algo estranho, há alguma coisa que pressentem. Tudo tem nova significação. Sobre o humor delirante. JASPERS, 1923. "A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução" FREUD, 1913. "Postulamos a presença de um processo que produz diretamente os sintomas primários; os sintomas secundários são em parte funções psíquicas que operam em condições alteradas, e em parte o resultado de tentativas de adaptação, mais ou menos exitosa, a pertubações primárias”. E. Bleuler, 1911. “O padrão existencial esquizofrênico revela a quebra na consistência da experiência natural” (BINSWANGER, 1956). Estudos mais modernos revelam que as manifestações psicóticas (perda do juízo de realidade, delírios, alucinações, desorganização da linguagem) são apenas expressões parciais da doença. Aparentemente, são descompensações psíquicas de uma problemática presente muito antes do surto esquizofrênico agudo. A literatura contemporânea demonstra como os pacientes esquizofrênicos apresentam vivências subjetivas anormais, de qualidade não psicótica, que antecedem o aparecimento da psicose. McGHIE A; CHAPMAN J. “Disorders of attention and perception in early schizophrenia”. Br J Med Psychol. 34: 103–116. 1961. GROSS, G. The Onset of Schizophrenia. Schizophrenia Research. 28: 187- 198. 1997. O período que antecede o aparecimento dos sintomas psicóticos, e que revela as vivências subjetivas de transformação do eu e do mundo, é denominado FASE PRODRÔMICA. Estudos revelam que a fase prodrômica se inicia, em média, cerca de cinco anos antes do surto psicótico. De uma maneira esquemática, muitos autores chamam os sintomas psicóticos de sintomas POSITIVOS. Os chamados sintomas NEGATIVOS são apenas descrições do comportamento de desligamento e de dificuldade de interação com o ambiente. Não se refere ao relato da vivência individual. The early stages of schizophrenia from first sign of mental disorder to first admission (ABC first episode. Hafner al. 1995). Estudos revelam profundas alterações, vividas de modo subjetivo, presentes anos antes do primeiro contato com serviços psiquiátricos. Estas alterações, embora marcantes, não são citadas pelos instrumentos psiquiátricos contemporâneos. 74% dos casos admitidos para internação com o diagnóstico de esquizofrenia, e 61% no período de alta hospitalar apresentaram prevalência de sintomas depressivos moderados a severos. MÖLLER et. COL APUD HÄFNER, 1999 No mundo (média geral), 10% morrem por suicídio. 2/3 dos que cometem suicídio, apresentaram sintomas depressivos durante o último período em que foi feito contato. Pequena percentagem comete suicídio por instruções alucinatórias ou para escapar de delírios persecutórios. Mais de 1/3 dos suicídios ocorrem durante as primeiras semanas após a alta hospitalar. ROY. Suicide. In Kaplan & Sadock. Comprehensive Textbook of Psychiatry / VI. O esforço em recuperar uma subjetiva vivência de senso comum, assustadoramente perdida desde os períodos que antecedem a eclosão das manifestações psicóticas, destaca a importância de certas experiências prévias de desorganização e caos interior. Alterações em várias dimensões da subjetividade (1) perda do significado compartilhado. (2) perplexidade em relação ao mundo e a si mesmo. (3) alteração na essência do Eu, através de profundas vivências de transformação. Eu, nós, e o mundo. A qualidade da consciência de si e das coisas, vulgarmente conhecida como realidade das coisas, se modifica de uma maneira inexplicável para o paciente. Dificilmente são capazes de relatar espontaneamente. Esta transformação subjetiva e não verbalizada é responsável por afastamento social, vergonha, e comportamentos auto e hetero agressivos. Por outro lado, faz com que estes pacientes se tornem “hiper-reflexivos”, voltados para questionamentos de aspectos da vida que normalmente não nos detemos para refletir. Veja John Nash, preocupado em encontrar o “algoritmo da relação entre as coisas”. Muitos, tentam resolver estas questões partindo para o estudo de filosofia, matemática e etc. “É notório que com os meus problemas pessoais, eu tenha perdido a vaidade. O mais importante é que eu me sinto como se estivesse me subjetivando (não sei se é a palavra correta) a perda do meu centro, do meu eu. E a partir disso, levanto o juízo a respeito de coisas exteriores a mim. É um inferno, mas quero sair dele. É engraçado, que quanto mais eu perco o meu eu, mais levanto juízos sobre coisas externas ao sujeito. Quando eu era normal, o Eu não questionava as coisas externas ao sujeito, ou seja, apenas as afirmava”. (RS). “Sinto uma estranha porosidade entre eu e o mundo, que me faz sentir contaminado com toda sorte de maldições e tragédias da humanidade. Por isso resolvi me afastar de tudo e todos. Foi a maneira que encontrei para me proteger de ser definitivamente esmagado e desintegrado”. “Há tempos foi sustentada a opinião de que a consciência é a última fortaleza do homem. Quer dizer que de lá você pode atirar com seus canhões para os objetos externos à fortaleza. Ou ela pode ser implodida pelo lado de dentro, pelo mau uso da pólvora. Acho que estou nesta situação.... . Eu quero voltar a ser uma fortaleza com seus canhões disparados para fora. O homem não sabe o poder que tem nas mãos, que é a razão, a consciência, a alma”. (RS). Estas manifestações são experimentadas como terrivelmente angustiantes. Na prática, elas revelam diversas possibilidades de intervenção clínica. Em um transtorno como a esquizofrenia, cuja falta de insight sobre os sintomas positivos podem tornar o acesso ao tratamento altamente dificultoso, o foco sobre sintomas vivenciados com alta carga de sofrimento permite estabelecer uma relação terapêutica muito mais consistente do que a abordagem sobre fenômenos psicóticos, freqüentemente negados através de mecanismos projetivos. Invariavelmente presentes, estas vivências são muito difíceis de serem descritas espontaneamente. Causam sentimento de vergonha e desmoralização que não são habitualmente relatados. Por isso, têm de ser explicitamente explorados. Existe uma limitação semântica para expressar fenômenos que, do ponto de vista fenomenológico, são pré-reflexivos. Mas, ao contrário dos sintomas psicóticos, quando ocorre este tipo de aproximação, eles se tornam muito mais fáceis de ser verbalizados e reconhecidos internamente (insight), ainda que justificados pela via do outro. Desta forma, sua abordagem sempre reforça laços solidários, freqüentemente perdidos na maioria destas condições. A maior dificuldade se apresenta para os profissionais que se voltam apenas para a busca de sintomas objetivos, voltados para o diagnóstico de esquizofrenia. Para estes, ainda existe um profundo desconhecimento sobre a importância e as implicações que as experiências subjetivas não psicóticas têm para a prática clínica. Tanto do ponto de vista da intervenção precoce, como de seu curso evolutivo. Este tipo de abordagem permite revelar como esquizofrênicos convivem consigo mesmos, e como reconhecem suas próprias dificuldades. Esse tipo de análise parece útil inclusive no estudo de longo prazo, revelando como fases de estabilização podem ser o resultado de esforços individuais em encontrar um senso pessoal, comprometido no processo de desintegração esquizofrênico. Em momentos de mudanças no curso de suas vidas, quando auto-estima e percepção do outro estão em questão, indivíduos esquizofrênicos podem ter muita dificuldade em lidar com o stress aumentado, e com as demandas determinadas pelo convívio social, sobretudo quando suas dificuldades cognitivas estão exacerbadas. Ao menos uma das condições necessárias à recuperação da estabilidade deve ser o grau de normatividade sobre suas próprias dificuldades, e demandas provenientes do mundo externo. FIM