“Segredo Profissional” Revista do VI Congresso dos Advogados Portugueses José Pedro AGUIAR-BRANCO Advogado Porto, 22 de Setembro de 2005 Segredo de Justiça Se o Mercado, sem o direito, é uma selva, uma Sociedade, sem uma Justiça eficaz, bem equipada, célere e de qualidade, representa um Estado de braços caídos, não competitivo e inigualitário que privilegia os que se aproveitam das falhas do sistema em detrimento dos que lutam para que a todos os cidadãos sejam concedidas as mesmas oportunidades de êxito e de realização. Na Justiça, a falha na dimensão da sua eficácia transporta uma grave vulnerabilidade na essencial dimensão da sua credibilidade. Com efeito, e como referi, noutra oportunidade, quando tive responsabilidades políticas na área da Justiça, durante largos anos, a crise da justiça foi essencialmente descrita como uma crise de funcionamento. À cabeça, vinha a morosidade e a lentidão processual, depois, a endémica carência de recursos humanos e, finalmente, a escassez de meios financeiros. Tudo relevava ainda, afinal, e contas feitas, do funcionamento do sistema judicial, da racionalidade da sua gestão, da maior ou menor eficiência da sua organização. São problemas que se mantêm na actualidade, que exigem militante esforço no sentido da sua superação e um cada vez maior espírito criativo para inventar – reinventar – modelos ou fórmulas que, assegurando o acesso à justiça, não reclamem do poder judicial mais do que ele pode, deve ou tenha capacidade para dar. Mas, de há muito que juristas e sociólogos, praticantes ou analistas das mais diversas profissões jurídicas, falam numa crise mais funda, que não diz apenas respeito aos meios, mas concerne, também, ao fins a que se devota o sistema, o poder judicial. Ou seja, uma crise que não é apenas de meios, mas, também, de fins – uma crise resultante de uma inadequação das instituições da justiça aos problemas que a sociedade do séc. XXI tem de enfrentar. E a verdade é que acontecimentos recentes, designadamente, a intensa exposição mediática de certos processos judiciais fizeram transitar, de um momento para outro, o debate - que ocupava largamente a comunidade dos juristas de todas as profissões, dos sociólogos e politólogos - para a opinião pública e para a comunidade dos cidadãos. De algum modo, essa crise – tantas vezes inflamada por alguma deriva mediática – tocou e afectou o bem mais precioso de qualquer edifício judicial: a credibilidade e a legitimidade. Não há sistema judicial que resista ou possa resistir à erosão da sua credibilidade. Por isso, configura um dever indeclinável da nossa geração – um dever ético, cívico, político, diria mesmo, constitucional – criar as condições para assegurar a plena e cabal afirmação do poder judicial como garante do Estado de Direito, ou melhor, do Estado de Direito Democrático. Trata-se de uma responsabilidade política e constitucional e, por conseguinte, trata-se, em primeira linha, de uma responsabilidade do poder político, democraticamente legitimado. Mas trata-se outrossim de uma responsabilidade de todas as profissões jurídicas, que, através dos seus membros e das suas organizações, são chamadas a dar um contributo inestimável à tarefa de renovação das instituições e dos arquétipos da justiça. E é neste patamar, não estritamente corporativo, mas de relevância estruturante para a credibilização do nosso sistema judicial, que coloco a questão da manutenção, da defesa e do aprofundamento do segredo profissional do advogado. As sociedades abertas dos nossos dias fazem-nos confrontar amiúde com os efémeros holofotes da ribalta. É difícil resistir à tentação do protagonismo que satisfaz o nosso ego. É difícil convencer, numa época de prevalência da democracia de opinião, que não é, ou melhor, não deve ser, precisamente a opinião pública a absolver ou a condenar um qualquer cidadão a quem seja imputada a prática de determinados factos ilícitos. É difícil fazer acreditar que, no confronto entre o direito à informação e a obrigação de sigilo de justiça ou profissional, ainda assim, são estes que, por regra, devem ser os valores mais altos a preservar. É difícil defender, num mundo em que a segurança colectiva é, cada vez mais, posta em causa – por vias tão desprezíveis como o terrorismo, a droga ou o branqueamento de capitais – que, ainda assim, o princípio e fim da nossa razão de ser, e de estar, é o homem, e que é na manutenção da sua liberdade individual que realizamos a nossa verdadeira condição de humanos. Mas, é por ser difícil, que, tudo isso, é matéria de advogados e que justifica, no que respeita ao segredo profissional, o persistente empenhamento destes, e da Ordem dos Advogados, na defesa intransigente da sua intangibilidade. É uma questão de princípio a salvaguarda do sigilo profissional dos advogados. Direito ao sigilo que tem a sua ameaça principal na tentação de transformar os advogados em agentes forçados da actividade policial do Estado, porque, sendo eles os primeiros e principais confidentes dos cidadãos, possuem, não raras vezes, informação privilegiada da factualidade em que se traduz a realidade da relação humana. Só que, não podemos confundir a transparência que deve existir para o colectivo, com a reserva da intimidade privada que é um direito de cada um, que pode obrigar ao silêncio, e que é um fundamento essencial da liberdade individual. Só que, não podemos aceitar que, para se atingir uma necessidade colectiva, se coloque em crise a pedra angular do sistema de justiça: a confiança ilimitada que o cidadão deve ter em relação ao seu advogado, como garante fundamental dos direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente consagradas em seu benefício. Viciar ou fragilizar essa relação é retirar um eficaz instrumento de obtenção de paz social e prosseguir uma concepção de Estado, que não compartilho, que privilegia a administração em detrimento do cidadão. O sigilo profissional do advogado é a parede–mestra da confiança que o cidadão nele deposita e de um Estado de Direito que não cede à tentação de se transformar em Estado Polícia. Não se trata, assim, de um privilégio dos advogados mas sim de um direito de eminente valor social. O advogado é, constitucionalmente, um colaborador da justiça. Tal como os juízes e os magistrados do Ministério Público. E, seguramente, o primeiro patamar do acesso à Justiça a que um cidadão, carecido desta, recorre. É esse acesso que nos cumpre preservar. José Pedro AGUIAR-BRANCO Advogado Texto sobre “Segredo Profissional” para ser integrado na Revista do VI Congresso dos Advogados Portugueses. Porto, 22 de Setembro de 2005