Todos concordamos que existe uma grande tensão entre o exercício da Justiça e os meios de comunicação social e a opinião pública. Pode pensar-se que é uma situação recente, mas não é; esta tensão, entre o exercício da Justiça e a opinião pública, é um problema tão antigo quase como a humanidade cuja história se conhece. Em épocas históricas tão distantes entre si, o julgamento de Jesus Cristo ou o caso Dreyfus, por exemplo, mostram que o exercício da Justiça (que deve ser sereno, objectivo, imparcial e neutral) teve que conviver com enormes tensões na opinião pública, que a pressionam num sentido ou noutro. O que há de novidade, nos últimos tempos, relativamente a essa tensão, resulta da enorme ascensão do poder dos meios de comunicação social nas sociedades democráticas actuais. Nas últimas décadas, os meios de Comunicação Social assumiram uma influência crescente em todas as actividades humanas: na política, nos costumes, nos comportamentos sociais, na educação, nas correntes culturais, na economia, nas empresas e, inevitavelmente, na Justiça. Durante muito tempo, a Justiça foi uma actividade que pouco interessava aos meios de Comunicação Social. Se recuarmos na história 30 anos, verificamos que, salvo casos excepcionais que impressionavam a opinião pública, a Justiça não era notícia nas televisões. A Justiça era um domínio reservado aos iniciados, ao foro judiciário. Mas, repentinamente, a Justiça passou a estar no primeiro plano dos interesses da Comunicação Social; hoje, é frequente que os jornais da televisão abram com casos de Justiça, que ocupam uma parte importante dos serviços informativos. E isto é recente. A esse interesse acresce a circunstância de a própria Comunicação Social se ter empresarializado, passando a olhar para o mercado com enorme sensibilidade, para não dizer que se tornou escrava das audiências. Assim, 1 os Meios de Comunicação Social passaram a tratar os casos de Justiça numa óptica sensacionalista, de modo a captar a atenção dos consumidores. No caso das televisões, como se sabe, o tratamento informativo é normalmente sumário, vive de picos, de sínteses (muitas vezes primárias), de simplificações. Este novo ambiente gerou perplexidades e introduziu enorme perturbação no sistema, com as discussões e controvérsias no interior dos processos e fora da ribalta pública. Mas, a intervenção da Comunicação Social vai mais longe. Os Media, tal como já tinham feito em relação à política, assumiram um papel interventivo nos processos decisórios da Justiça. Hoje, não se limitam, como sucedia no passado, a informar os acontecimentos judiciais. Os Media passaram a ter uma atitude que hoje se designa de proactiva, na denúncia dos casos, na investigação (o chamado Jornalismo de Investigação), na emissão de juízos. Os Media denunciam os factos, fazem eles próprios a investigação (ouvindo as testemunhas, recolhendo provas documentais, ouvindo os arguidos, as vítimas, etc) e também fazem o julgamento na opinião pública; nos fóruns da TSF, nas mesas redondas das televisões, nos jornais, sucedem-se intervenções em que várias pessoas (uns especialistas, outros sem nenhuma qualificação especial) opinam livremente sobre os casos na alçada da Justiça. Há casos em que a denúncia, a investigação e o veredicto dos media, precedem o início do processo judicial. Sucede, por outro lado, que, entre o processo judicial e o processo mediático, existem duas diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, o tempo é diferente: o tempo do processo judicial é muitíssimo mais lento que o tempo da Comunicação Social; por vezes, quando o processo judicial está no seu início, já a opinião pública emitiu o veredicto, com base nas informações e opiniões que recebeu dos Media. Em segundo lugar, os métodos de investigação e de julgamento do Sistema Judicial não têm nada a ver com 2 os métodos de investigação e de julgamento (utilizo esta expressão por facilidade) dos Meios de Comunicação Social. Os jornalistas investigam sem regras nem métodos fixados legalmente, sem contraditório, sem respeito pelas regras que as civilizações democráticas adquiriram ao longo de séculos, (nomeadamente depois do Iluminismo), para garantir valores fundamentais da pessoa humana. Os Media desconhecem e ignoram esse tipo de regras e procedimentos. Por isso, nas suas investigações e julgamentos, muitas vezes são atropelados princípios fundamentais que regem os processos judiciais. Perguntar-se-á: até que ponto existem influências mútuas entre os dois procedimentos, o procedimento dos Media e o procedimento judicial? Sem ingenuidades pueris, digo que é muito difícil imaginar que não haja influência dos julgamentos que se fazem na opinião pública sobre os procedimentos e decisões do sistema de Justiça. Em primeiro lugar, podem existir interferências e influências dos Media na recolha das provas. Com frequência, os jornalistas interrogam suspeitos, vítimas, testemunhas; divulgam os depoimentos, ora com a identificação dos personagens, ora sob anonimato, com vozes e imagens disfarçadas. Essas "provas" jornalísticas são colhidas antes da prova judicial e sem a observância dos tais métodos que as sociedades democráticas civilizadas encontraram para garantir a genuinidade e autenticidade dessas provas. Deste procedimento surge-nos, desde logo, uma dúvida: até que ponto, pessoas que prestam depoimento a um jornalista, em condições desconhecidas ou que não são as mais propícias ao respeito pela liberdade e vontade dos depoentes, não ficam condicionadas, quando, mais tarde, vão depor no processo judicial? Por outro lado, será que a Justiça pode ficar imune a convicções generalizadas que se formam na opinião pública, por acção dos Media, acerca de determinados factos, acerca da culpabilidade ou 3 inocência de pessoas que, no fundo, são julgadas em simultâneo nos dois sistemas, no mediático e no Judicial? É claro que isto tem consequências muito importantes, porventura gravosas, e que estamos longe de medir em toda a sua extensão. O Sistema Judicial, desde logo, não estava preparado para este embate com o sistema mediático. Convém notar que o Sistema Político, ao longo de muitos anos de convivência com a contrariedade, com a oposição, com o pluralismo, com o debate de ideias, com o confronto partidos, no parlamento, na opinião pública -- entre – criou as suas próprias defesas e aprendeu a conviver nesse ambiente. O Sistema Judicial, ao contrário, esteve, durante muitos anos, preservado desses confrontos e embates. Pessoalmente, acho que o Sistema não estava preparado para lidar com esta situação. Depois, a mediatização dos casos de Justiça, nova em Portugal, introduziu factores perversos e, porventura, perigosos para os direitos fundamentais dos cidadãos. Por exemplo: a simples constituição de alguém como arguido num processo, mesmo que sobre ele não impenda qualquer suspeita fundamentada em provas credíveis, tem determinadas consequências processuais que o legislador previu e considerou suportáveis e compatíveis com os direitos, liberdades e garantias do cidadão. Mas, a simples constituição de alguém como arguido, que, em simultâneo, é apresentado em todos os jornais de televisão como suspeito da prática de um crime, tem consequências que ultrapassam tudo o que o legislador poderia imaginar como limitação dos direitos de um arguido. arguido é colocado em prisão preventiva? E se o Para além da limitação da liberdade e, evidentemente, dos efeitos dela decorrentes, o facto de a prisão ser publicitada com enorme impacto mediático, quando se trata de figuras públicas ou cidadãos com notoriedade, produz consequências 4 muito mais gravosas, às vezes mais gravosas que a própria privação da liberdade. Isto é, os efeitos da mediatização dos actos judiciais, sobre o cidadão visado com tais medidas -- na sua reputação, na sua dignidade - implicam maior sofrimento do que o motivado pelos efeitos processuais das medidas que o atingem. Esta mediatização dos casos conduz, de algum modo, à secundarização, para não dizer ao fim do princípio da presunção de inocência, que julgamos ser uma aquisição civilizacional importante. Com a divulgação pública, com enorme impacto, de meras suspeitas, não comprovadas por métodos legalmente reconhecidos, deixou de fazer sentido falar em presunção de inocência. Acresce que, o nosso sistema legal não está adaptado, nem o sistema de justiça preparado, para lidar com a mediatização da Justiça. Exemplo dessa inadaptação é o regime do segredo de justiça. O segredo de justiça foi concebido, com as melhores intenções, para, por um lado, possibilitar à investigação trabalhar à vontade, sem interferências externas e, por outro, proteger o princípio da presunção de inocência. Mantendo-se o segredo de justiça, a investigação, porque não divulgada, não afectaria o bom nome e a reputação das pessoas visadas, presumidas inocentes. Importa ainda ter presente que o estatuto da Ordem dos Advogados proíbe aos advogados pronunciarem-se sobre questões profissionais pendentes. Quer o segredo de justiça, quer a proibição de os advogados discutirem na comunicação social os casos em que têm intervenção, foram medidas concebidas, pelo legislador, com as melhores intenções, para salvaguarda de valores relevantes. Hoje, porém, estão, a meu ver, completamente desfasados com a realidade. A emergência e o impacto dos meios de comunicação social baralharam e perturbaram estes regimes. A realidade 5 é que estamos numa situação em que todos os dias, se cometem vários crimes de violação do segredo de Justiça, na mais absoluta e total impunidade. Em milhares de casos de violação do segredo, que todos nós conhecemos, não sei se terá havido alguma condenação - não me recordo de nenhuma - e raríssimos casos foram alvo de acusação criminal. Vivemos, assim, numa situação de pura ficção: há um segredo de Justiça na Lei, mas não há nenhum segredo de Justiça na realidade! Este desfasamento tem consequências graves. O facto do segredo de Justiça, generalizadamente, não ser respeitado, permite a manipulação da opinião pública e permite uma situação de enorme privilégio para os detentores da informação sobre os processos em segredo, que conflitua com o princípio de igualdade de armas e com os direitos fundamentais. Permite que os factos sejam discutidos na opinião pública, tendo uma das partes acesso privilegiado à informação do processo, quando a outra não tem nenhum acesso a essa informação; uma situação de desequilíbrio que, sinceramente, me parece hoje incompatível com os princípios e regras das sociedades democráticas civilizadas, que implicam igualdade de direitos na discussão de questões que afectam cada pessoa em particular. Esta perversidade agrava-se com outro abuso a que ninguém põe cobro: os prazos do Inquérito, previstos no Código de Processo Penal, são raramente cumpridos e, em qualquer caso, não existem consequências para o seu desrespeito. Deste modo, qualquer cidadão pode estar sob investigação do Ministério Público, mesmo constituído arguido, durante muitos anos, sem que ele ou o seu advogado e mesmo sem que o ofendido e o seu advogado, tenham acesso ao processo. Uma vez que também o segredo de justiça não é respeitado, um cidadão pode ver-se publicamente suspeito durante vários anos, ainda que inocente. A própria proibição dos advogados falarem, sendo uma medida compreensível, acabou por tornar-se perversa na situação actual, em que 6 ninguém respeita o segredo de justiça e que tudo é discutido na opinião pública, através dos Meios de Comunicação Social; a contenção dos advogados acabou por traduzir-se numa inibição embaraçosa; toda a gente pode discutir os casos da Justiça, menos os advogados que estão encarregues deles. Tal proibição tem ainda como efeito, o acusado ou a vítima não terem possibilidade de fazer chegar, através dos seus advogados, as suas vozes à opinião pública, onde também se jogam, de algum modo, os destinos e os interesses que lhes estão confiados. proibição é ainda perversa para os próprios advogados. A Na verdade, como esta regra é incompreendida pelo público em geral, a ideia que o público muitas vezes retém é que o advogado respeitador dessa regra se mostra incapaz de defender o seu cliente ou, mais grave ainda, que não acredita na sua razão. Já repararam no espectáculo desconfortável a que temos assistido, quando um advogado é apanhado pela câmaras da televisão à entrada ou à saída de uma diligência judicial, por exemplo, de um julgamento e é confrontado pelos jornalistas para se pronunciar sobre as acusações que impendem sobre o seu constituinte, por vezes detido preventivamente e sem possibilidade de se defender perante a opinião pública? O advogado aparece com ar perturbado, olhando a câmara com olhar aflito, dizendo que o seu estatuto não lhe permite falar e, por isso, não pode pronunciar-se sobre o caso. Como é evidente, para o comum das pessoas, que não conhecem nem compreendem a limitação imposta ao advogado, a interpretação do silêncio, será: “Este advogado nem tem razões para defender o cliente, ele deve ser mesmo culpado..." Outro regime que também tem merecido críticas fortes é o da prisão preventiva, que, naturalmente, tem de ser avaliado à luz do estado actual: discussão pública nos Media, segredo de justiça, proibição do advogado de falar, prazos de inquérito desrespeitados sistematicamente, e prisões preventivas excessivamente longas, sem critérios objectivos e rigorosos, e 7 sem que aos visados sejam dadas garantias de defesa adequadas. Estamos caídos num caldo de cultura perigoso, que constitui mesmo uma ameaça ao Estado de Direito. Um Estado de Direito não se basta com eleições regulares para os titulares dos órgãos de soberania, não se basta com a afirmação constitucional dos direitos e garantias que o caracterizam, nem com o respeito pelo pluralismo político. É fundamental que os direitos e liberdades sejam suportados e garantidos pelo Sistema Judicial. Mas não basta ser crítico, é importante que demos o nosso contributo para melhorar a situação. Em matéria de direitos individuais, não podemos ceder ao politicamente correcto ou ao populismo que está a perturbar a visão que desde o Iluminismo levou à consagração, nas Constituições democráticas, dos direitos de defesa, do contraditório, da igualdade de armas, da presunção de inocência, do carácter excepcional das restrições à liberdade, etc. Os advogados têm estado, ao longo dos anos, com todos os defeitos que lhes atribuam, na trincheira da defesa dos direitos fundamentais e na luta pela melhoria do sistema de Justiça. Nesta perspectiva, eu acho que há que pedir, diria mesmo exigir, que os Media tenham alguma auto-regulação no respeito desses princípios, e se não tiverem, que os responsáveis políticos encontrem formas de criar normas básicas no tratamento destas situações, que garantam, de facto, que não seja possível julgamentos populares nos jornais e nas televisões, sem respeito por nenhumas regras; que garantam o pluralismo e o contraditório. Ou por auto-regulação, ou por regras, com a criação de uma entidade que as faça cumprir, deverá pôr-se termo à autêntica selva em que vivemos nessa matéria. É fundamental que se estabeleçam regras de tratamento dos casos, quer na fase do inquérito, quer nas salas de audiência, de modo a garantir os valores que citei. Eu recordaria aqui, por exemplo, o caso O.J. Simpson nos Estados Unidos. Foi uma da raras vezes em que um julgamento foi integralmente transmitido pela televisão, mas foi transmitido com um 8 "código de procedimentos" que procurava impedir a manipulação, que garantia igualdade de tratamento às posições em confronto -- acusação e defesa --; nunca apareceu a imagem de um jurado, as câmaras aproximavam-se dos advogados do arguido e dos representantes da acusação em termos previamente estabelecidos; procedimentos foram severamente impostos. estes e outros Isto é, mostra-se imperioso regular o acesso da televisão às salas de audiência, de modo a impedir a manipulação da opinião pública. Relativamente ao Sistema Legal, penso que é fundamental rever o sistema do segredo de justiça em termos muito simples e muito sintéticos; na minha opinião, o segredo de justiça deveria passar a ser uma medida excepcional e não a regra. Não há hoje razão para que todos os casos sejam considerados em segredo de justiça. Desde logo porque é um regime que a sociedade actual tem dificuldade em compreender: nós vivemos sob o princípio da transparência; exigimos transparência a toda a gente, aos políticos, aos empresários, aos gestores públicos e privados, aos cidadãos. A sociedade tem dificuldade em perceber o segredo no exercício de uma função do Estado. Na fase do inquérito, actualmente, todos os processos estão em segredo de justiça! Na maior parte dos casos, o segredo não tem qualquer justificação. O segredo deverá tornar-se uma medida imposta, caso a caso, quando haja fundados e relevantes motivos para o impor. A diminuição dos casos em segredo, teria logo a vantagem de permitir maior cuidado na sua preservação. Quanto mais restrito for o número de casos, melhor será possível garantir o segredo e melhor será possível controlar quem não o respeitou. Acho, também, que é preciso permitir aos advogados, mantendo as regras da nossa deontologia, defenderem as posições das pessoas que lhes confiaram a defesa dos seus direitos. 9 É também fundamental rever a questão dos prazos do inquérito, tornandoos peremptórios. Uma vez esgotados os prazos legalmente previstos, os processos têm de ter um fim, embora com recurso para outras instâncias, sempre que os eventuais lesados não se conformassem com o arquivamento. Parece-me incompatível com o Estado de Direito e com os direitos dos cidadãos, que possam existir processos em inquérito, durante anos, sem que nem os visados, nem as próprias vítimas, tenham acesso aos processos. Nós, advogados, temos que explicar bem e demonstrar que a ideia do "excesso de garantismo", defendida por alguns, não passa de um slogan. Na verdade, se analisarmos, com objectividade, a evolução do nosso processo penal nas últimas décadas, desde a Revolução do 25 de Abril de 74 até ao presente, chegaremos à conclusão, para mim incompreensível e até paradoxal, que quase todas as reformas efectuadas no processo penal foram no sentido de diminuir direitos aos arguidos. É necessário, também, que se acabe com a ideia de que a Justiça não é igual para todos e de que as pessoas economicamente frágeis não são adequadamente defendidas. Em boa hora a Ordem dos Advogados vem desenvolvendo ideias e práticas que contribuem para garantir, dentro do possível, o acesso de todas as pessoas a uma representação séria e eficaz. Em qualquer caso, não poderão negar-se ou diminuir-se os direitos de qualquer cidadão, sob pretexto de que é "poderoso", pois então estaríamos a introduzir uma nova forma de discriminação. Há, evidentemente, muitos outros aspectos na Lei e no Sistema Judicial a modificar. Limitei-me a abordar os que mais se prendem com o tema desta conferência. 10