RESPONSABILIDADE CIVIL POR ERRO
MÉDICO
Nadja Machado Botelho
Consultora Legislativa da Área II
Direito Civil e Processual Civil,
Direito Penal e Processual Penal,
de Família, do Autor, de Sucessões, Internacional Privado
ESTUDO
SETEMBRO/2003
Câmara dos Deputados
Praça dos 3 Poderes
Consultoria Legislativa
Anexo III - Térreo
Brasília - DF
ÍNDICE
I – DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 ................. 4
II – DA REPONSABILDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ................... 6
III – DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR .................................................................................................................................................. 7
IV – CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 11
© 2003 Câmara dos Deputados.
Todos os direitos reservados. Este trabalho poderá ser reproduzido ou transmitido na íntegra, desde que
citados a autora e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. São vedadas a venda, a reprodução
parcial e a tradução, sem autorização prévia por escrito da Câmara dos Deputados.
2
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ERRO MÉDICO
Nadja Machado Botelho
O presente estudo versa sobre os delineamentos de
norma que, em nosso ordenamento jurídico, discipline a questão
das indenizações a pacientes por erro médico, tendo em vista a
assertiva, com a qual às vezes nos deparamos, de que não haveria
regra geral editada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)
sobre o tema.
Com efeito, não se logrou encontrar no site do
Conselho Federal de Medicina1 qualquer referência à indenização
a ser prestada em caso de dano oriundo de procedimento médico,
ficando aquele Conselho restrito à hipótese de infração éticodisciplinar, a ensejar a punição administrativa do agente, após o
competente processo administrativo-disciplinar, precedido ou
não de sindicância.
Consta do Código de Ética Médica (Resolução CFM
nº 1.246/88, de 08.01.88, artigo 29), no Capítulo da
Responsabilidade Profissional, que esta resta configurada pela
prática de “atos profissionais danosos ao paciente, que possam
ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência”,
mas nada se diz sobre a reparação a ser suportada pelo médico
que der azo a tal situação.
Contudo, não seria mesmo o caso de encontrar-se
tal norma no bojo das regras daquele ente, uma vez que o dano
causado pela atividade desenvolvida pelo médico configura,
como qualquer outro, responsabilidade civil decorrente de ato
ilícito ou da prestação do serviço. A sua regulamentação deve,
por conseguinte, ser buscada nas disposições constantes do
Código Civil Brasileiro e do Código de Defesa do Consumidor.
Senão vejamos.
3
I – DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
A responsabilidade civil, instituto que tem suas raízes no princípio geral de direito
enunciado como neminem laedere2 , impõe a todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência
ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem a obrigação de reparar o dano, nos termos
do artigo 159 do Código Civil de 1916.
Trata-se de aplicação da regra geral da responsabilidade aquiliana, fundada na culpa,
manifestada em qualquer de suas modalidades: imprudência, negligência ou imperícia. O dever de
indenizar fica na dependência da configuração de três elementos ou pressupostos, quais sejam, a
ação ou omissão culposa, o dano e o nexo de causalidade entre este e a ação do agente. É justamente
da falta do liame de causalidade que emergem as excludentes de responsabilidade, como o fato
exclusivo da vítima, o caso fortuito e a força maior.
Consumado o ato ilícito, a reparação a ser prestada à vítima abrange, como se sabe, a
indenização dos prejuízos materiais ou patrimoniais (que envolvem os danos emergentes e os lucros
cessantes) e a compensação dos danos morais, há muito superada a polêmica acerca da possibilidade
de cumulação de uns e outros, pacífica atualmente.
Mas o diploma legal revogado dispunha também de norma específica sobre a
responsabilidade do médico, consubstanciada no artigo 1.545, que determinava:
“Art. 1.545. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o
dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação
de servir, ou ferimento.”
A responsabilidade civil do médico decorria, no Código Civil de 1916, tanto do artigo
159 quanto do artigo 1.545, pois este último era norma que fazia incidir a responsabilidade subjetiva
de determinados profissionais de saúde, dentre eles o médico. Havendo subsunção do ato por ele
executado à norma jurídica referida, referido médico seria responsabilizado pelos danos que ocorressem
ao seu paciente.
De todo modo, a doutrina sempre salientou que a obrigação do médico é de meio, e não
de resultado, o que significa dizer que não tem ele a obrigação de curar, ou de salvar a vida do
paciente, mas a de empregar todos os conhecimentos científicos ao seu alcance e empreender todos
os esforços para que se possa alcançar o melhor resultado possível.
Costuma-se excetuar desse princípio geral os casos de cirurgias plásticas embelezadoras,
mais do que as reparadoras, em que as mesmas podem assumir uma conotação de compromisso ou
obrigação de resultado, embora isso também seja ainda alvo de muitas discussões tanto na literatura
médica quanto na jurídica.
A este respeito, e adotando posicionamento segundo o qual a responsabilidade de tais
profissionais é contratual, assim já entendia Sílvio Rodrigues3 :
“Isso se dá porque, ordinariamente, a obrigação assumida pelo médico é uma obrigação de meio e não
de resultado. Com efeito, quando o cliente toma os serviços profissionais de um médico, este apenas se obriga
a tratar do doente com zelo, diligência e carinho adequados, utilizando os recursos de sua profissão e arte, não
se obrigando, portanto, a curar o doente. (...) Para que a responsabilidade do médico emerja, mister se faz que
o doente ou seus herdeiros demonstrem que o resultado funesto, por ele experimentado, derivou de negligência
ou imprudência do profissional.”
4
Mas, em se tratando de cirurgias plásticas embelezadoras, o enfoque seria realmente
diverso, eis que, como adverte aquele doutrinador4 :
“Já se tem proclamado que no campo da cirurgia plástica, ao contrário do que ocorre na cirurgia
terapêutica, a obrigação assumida pelo cirurgião é uma obrigação de resultado e não de meio. Tal
concepção advém da posição do paciente numa e noutra hipótese. Enquanto naquele caso trata-se de pessoa
doente que busca uma cura, no caso da cirurgia plástica o paciente é pessoa sadia que almeja remediar uma
situação desagradável, mas não doentia. Por conseguinte, o que o paciente busca é um fim em si mesmo, tal
como uma nova conformação do nariz, a supressão de rugas, a remodelação de pernas, seios, queixo etc. De
modo que o paciente espera do cirurgião, não que ele se empenhe em conseguir um resultado, mas que obtenha
o resultado em si.”
A regra, portanto, é que, sendo a obrigação do médico uma obrigação de meio, esse
profissional somente será responsável pelo insucesso do procedimento quando ficar devidamente
comprovada a sua imprudência, negligência ou imperícia, e que de tais atos tenha advindo o dano ao
paciente. Ou seja, deve-se provar que foi a conduta culposa a causa suficiente da ocorrências das
lesões experimentadas pela vítima. Exceção è regra ocorre quando se está diante das cirurgias estéticas,
nas quais o médico se compromete com a obtenção do resultado em si.
Tal entendimento conta com o respaldo da jurisprudência, conforme se depreende do
seguinte acórdão5 :
“CIRURGIA ESTÉTICA OU PLÁSTICA - OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
(RESPONSABILIDADE CONTRATUAL OU OBJETIVA) - INDENIZAÇÃO.
I - Contratada a realização da cirurgia estética embelezadora, o cirurgião assume obrigação de resultado
(Responsabilidade contratual ou objetiva), devendo indenizar pelo não cumprimento da mesma, decorrente de
eventual deformidade ou de alguma irregularidade.”
O problema é que “estaremos sempre em campo altamente subjetivo para concluirmos
se o resultado foi ou não alcançado, tendo os Tribunais encontrado grandes dificuldades para decidir
esse tipo de demandas judiciais, diante de nervosas pacientes insatisfeitas com a performance de
seus cirurgiões plásticos, imaginando mesmo que, em algumas situações, pudessem esses fazer milagres.
Portanto, é preciso se tenha em mente o que é pretendido quando da contratação da cirurgia para que
não ocorram decepções futuras.”6
Outro dispositivo de fundamental importância na avaliação jurídica do erro médico no
Código Civil revogado era o artigo 177, que dispunha sobre o prazo prescricional das ações pessoais,
fixado em 20 (vinte) anos, contados da data em que poderiam ter sido propostas. Tal norma era
freqüentemente invocada pelos julgadores para determinar a prescrição do erro médico, considerada
vintenária.
Refere-se, também aqui, a posicionamento que não discrepa da interpretação conferida
pelo Superior Tribunal de Justiça7 ao dispositivo em comento, uma vez que:
“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ERRO MÉDICO – PRESCRIÇÃO
VINTENÁRIA - ART. 177 DO CÓDIGO CIVIL - INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.
83/STJ - RECURSO ESPECIAL - INADMISSIBILIDADE.
Tratando-se de ação em que se pleiteia indenização por danos materiais e morais decorrentes de erro
médico, de natureza pessoal, portanto, esta se sujeita ao prazo prescricional de vinte anos, estabelecido pelo
art. 177 do Código Civil. Incidência da Súmula n. 83/STJ.”
5
O exame, feito nesta oportunidade, do tratamento dado à matéria pelo Código Civil de
1916 foi de fundamental importância para se traçar as linhas gerais da responsabilidade civil por erro
médico, mas, obviamente, deve-se fazer o cotejo das disposições citadas com as alterações introduzidas
pela Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, que instituiu o Novo Código Civil. Disso nos ocuparemos,
também de forma breve, no tópico seguinte.
II – DA REPONSABILDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O Novo Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, vigente desde 11 de Janeiro de 2003,
introduziu modificações legislativas no direito positivo que devem ser sopesadas quando da análise
de subsunção do fato tido como erro médico às novas normas materiais referentes à responsabilidade
civil. Embora não se verifiquem repercussões doutrinárias de monta no tema objeto deste estudo,
necessária se faz a identificação dos artigos que correspondem aos dispositivos do Código revogado
e que regem a responsabilidade civil por erro médico.
Como visto, os dispositivos capitais que regiam a matéria no Código Civil revogado eram
os artigos 159 e 1.545. O primeiro foi substituído pelos artigos 186 e 927 do Código vigente, que
dispõem :
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (...)
Art. 927. Aquele que por ato ilícito (arts. 185 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a reparálo.”
Já o artigo 1.545, do CC/1916 parece, à primeira vista, não ter correspondente no novo
diploma material, como se vê no escólio de Miguel Kfouri Neto8 , segundo o qual “o projeto do
Código excluiu a previsão do art. 1545 e não a substituiu por nenhuma outra, aplicável especificamente
aos profissionais da área da saúde.” Entretanto, há vozes em contrário9 , que vêem no artigo 951 da
Lei nº 10.406/2002 o seu correspondente (com ampliação da responsabilidade aos que exercem as
demais profissões), parecendo ser esta a posição mais acertada.
O retrocitado artigo 951 do Código Civil de 2002, ao dispor sobre a fixação da indenização,
não mais se refere a uma classe específica, mas a todo aquele que, no exercício de atividade profissional,
causar dano a outrem, determinando que:
“Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda nos casos de indenização devida por
aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte
do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”
Trata-se de norma que faz remissão a critérios (artigos 948, 949 e 950) de que se podem
valer o juiz e as partes na liquidação de sentença fundada nos artigos 186 e 927 daquele mesmo
diploma legal, na avaliação daquilo que deve ser ressarcido pelo médico causador do dano, ou seja,
na fixação do quantum debeatur.
6
Promoveu-se, ao que tudo indica, ampliação da norma contida no Código anterior, como
bem salientou a doutrina10 , in verbis:
“No caso do artigo 951, igualmente do novo Código Civil, houve alguma ampliação na responsabilidade
indenizatória. Se coincide com o texto anterior para as hipóteses de morte, inabilitação para o trabalho e
ferimento, trouxe como situação nova agravar o mal do paciente. E, no caso do ferimento, pode-se admitir
também maior abrangência quando a responsabilidade refere-se também a causar lesão ao paciente, o que é
mais amplo do que o ferimento. Essa lesão pode ser de qualquer ordem, já que não há restrição no texto
mencionado.”
Outra alteração relevante diz respeito à diminuição do prazo prescricional, tendência
que permeou todos os comandos da nova legislação codificada, culminando com a substituição do
prazo genérico de 20 (vinte) anos pelo prazo de 10 (dez) anos, quando a lei não fixar outro.
Mas sequer o prazo decenal tem sido apontado como o hábil a reger a hipótese de erro
médico, eis que o Novo Código Civil determinou, expressamente, em seu artigo 206, inciso V, que a
pretensão de reparação civil prescreve em 3 (três) anos, devendo ser este o prazo para a propositura
da ação de responsabilização civil do médico.
Contudo, existe a hipótese, já ressaltada por alguns doutrinadores11 , de que a jurisprudência
se incline pelo prazo de 5 (cinco) anos para exigir reparação dos danos derivados de fato do produto
ou serviço, previsto no artigo 27, caput, do Código de Defesa do Consumidor, o que seria coerente,
visto ser 5 (cinco) anos um prazo mais favorável ao consumidor, cuja proteção deve ser integral e
facilitada.
Embora seja ainda prematuro antecipar-se posicionamentos que possivelmente serão
assumidos pela jurisprudência pátria na aplicação das normas do Novo Código Civil, parece que as
regras básicas da responsabilidade civil por erro médico não sofreram grandes alterações (salvo no
tocante ao prazo prescricional). A lei nº 10.406/2002 reproduziu, em larda escala, o que já constava
do Código revogado e do Código de Defesa do Consumidor, reafirmando que a responsabilidade
pessoal dos profissionais liberais, inclusive médicos, será apurada mediante a verificação de culpa.
E, neste ponto, verificamos a necessidade de se examinar, ainda que sucintamente, as
normas da Lei nº 8.078/90 que têm incidência sobre a responsabilidade dos profissionais ora versados.
III – DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº 8.078/90, foi editado em
atendimento a mandamento constitucional insculpido no artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição
Federal de 1988, integrante dos direitos fundamentais.
A finalidade da lei não é favorecer o consumidor em detrimento dos fornecedores de
bens ou serviços, mas apenas colocá-los em situação de igualdade, até então existente tão somente
no plano formal. Efetivamente, o intento do constituinte e, como não poderia deixar de ser, também
o do legislador ordinário, foi garantir uma série de direitos à parte notoriamente mais fraca da relação
de consumo, em especial numa sociedade de massa em que os princípios da liberdade contratual e da
autonomia da vontade não têm mais o caráter absoluto de outrora.
7
Com o intuito de criar um ambiente propício ao equilíbrio contratual, de nada adiantaria
assegurar ao consumidor, parte frágil na relação consumerista, inúmeros direitos substanciais se não
lhe fosse também garantido um tratamento diferenciado em juízo. A isonomia material cairia por
terra se permanecessem inalteradas as regras processuais, fazendo do acesso à tutela jurisdicional um
empecilho à concretização dos direitos assegurados no plano material.
Daí porque procedeu a Lei nº 8.078/90 a uma verdadeira revisão dos conceitos do processo
civil tradicional, definindo interesses ou direitos coletivos lato sensu (que englobam os direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos); criando novos legitimados para agir na defesa de tais direitos e
autorizando a utilização de todas as ações passíveis de sua defesa; impondo novo tratamento para
velhos institutos como a coisa julgada e a litispendência; admitindo a inversão do ônus da prova
(quando o consumidor for hipossuficiente ou houver verossimilhança em sua alegação); vedando
expressamente a denunciação da lide e localizando hipótese provavelmente exclusiva de chamamento
ao processo.
Destarte, o Código de Defesa do Consumidor promoveu um regramento da relação de
consumo não somente do ponto de vista material, mas sobretudo processual, conforme vem
salientando a doutrina nacional.
Nesse microsistema principiológico que é a Lei nº 8.078/90 não haveria de se manter,
como regra, a responsabilidade subjetiva (artigo 159 do CC/1916; arts. 186 e 927 do NCC), sob pena
de se não poder cumprir o compromisso com o atendimento das necessidades do consumidor. Em
suma, o CODECON não se preocupa, em tema de responsabilidade civil, com a conduta do sujeito
da relação jurídica de que possa advir lesão ou ameaça a direito do consumidor, tendo sido adotada
a teria da responsabilidade objetiva.
A insigne Cláudia Lima Marques12 bem apreende o espírito imbuído no surgimento de
regras especiais com vistas à vulnerabilidade do consumidor:
“Em matéria de responsabilidade civil, o principal valor a ser protegido pelo direito deve ser o efetivo e
rápido ressarcimento das vítimas. O CDC para alcançar este fim afasta-se do conceito de culpa e evolui, no
art. 12, para uma responsabilidade objetiva, do tipo conhecida na Europa como responsabilidade ‘não
culposa’ ”.
Ultrapassado esse breve intróito, não há dúvidas de que, de acordo com o artigo 3º do
Código de Defesa do Consumidor, a relação médico/paciente se equipara à relação prestador de
serviços/consumidor, sendo plenamente aplicáveis as normas do CDC. Contudo, não incide, neste
particular, a responsabilidade objetiva, mantendo-se a necessidade de comprovação da culpa.
Com efeito, a responsabilidade pelo fornecimento de serviços por profissionais liberais,
dentre os quais os médicos, será apurada mediante a verificação de culpa, abrindo o §4º do artigo 14,
da Lei nº 8.078/90, uma exceção ao princípio da objetivação da responsabilidade civil por danos:
“Art.14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos á prestação dos serviços, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante
a verificação de culpa.”
8
A diferença no tratamento dispensado aos profissionais liberais tem razão de ser, conforme
ressaltado pelos autores do anteprojeto do Código do Consumidor13 :
“Explica-se a diversidade de tratamento em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados
por profissionais liberais. De fato, os médicos e advogados – para citarmos alguns dos mais conhecidos
profissionais – são contratados ou constituídos com base na confiança que inspiram aos respectivos clientes.
Assim sendo, somente serão responsabilizados por danos quando ficar demonstrada a ocorrência de culpa
subjetiva, em quaisquer de suas modalidades: negligência, imprudência ou imperícia.
Se o dispositivo comentado afastou, na espécie sujeita, a responsabilidade objetiva, não chegou a abolir a
aplicação do princípio da inversão do ônus da prova. Incumbe ao profissional provar, em juízo, que não
laborou em equívoco, nem agiu com imprudência ou negligência no desempenho de sua atividade.”
Se o direito à indenização depende da comprovação da culpa do profissional, mantémse, aqui, as observações concernentes à obrigação de meio, salvo no caso de cirurgia plástica, na qual,
frise-se, ainda não há consenso, sendo majoritária a corrente que entende configurada a obrigação de
resultado nesses procedimentos estéticos.
De qualquer forma, o fato de estar-se diante de hipótese de responsabilidade subjetiva
não impede que o juiz, presentes os pressupostos da hipossuficiência do consumidor e verossimilhança
de suas alegações, defira a inversão do ônus da prova permitida pelo artigo 6º, inciso VIII, da Lei nº
8.078/90, consoante já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça14 , in litteris:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO E HOSPITAL. INVERSÃO DO
ÔNUS DA PROVA. RESPONSABILIDADE DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS
1. No sistema do Código de Defesa do Consumidor a “responsabilidade pessoal
dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (art. 14, §
4º).
2. A chamada inversão do ônus da prova, no Código de Defesa do Consumidor, está no contexto da
facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ficando subordinada ao “critério do juiz, quando for verossímil
a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências” (art. 6º, VIII).
Isso quer dizer que não é automática a inversão do ônus da prova. Ela depende de circunstâncias concretas
que serão apuradas pelo juiz no contexto da facilitação da defesa” dos direitos do consumidor. E essas
circunstâncias concretas, nesse caso, não foram consideradas presentes pelas instâncias ordinárias.”
Também no contexto de facilitação da defesa dos direitos do consumidor, com
flexibilização das regras de competência territorial previstas no Código de Processo Civil, insere-se a
previsão de que as ações de responsabilidade civil do prestador de serviços poderão ser ajuizadas no
foro do domicílio do autor, evitando que para demandar em juízo o consumidor seja compelido a
arcar com os custos de tramitação do processo em comarca diversa daquela onde reside.
Estamos nos referindo à norma do artigo 101, inciso I, do Código de Defesa do
Consumidor, que visa a retirar obstáculos à prestação da tutela jurisdicional ao consumidor e que
tem sua aplicação assegurada tanto pela doutrina consumerista quanto pelos tribunais pátrios, dada
sua importância para a concretização de direitos fundamentais.
Confira-se, a este respeito, o seguinte julgado15 da Corte responsável pela uniformização
da interpretação da legislação infraconstitucional:
“CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA.
RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR DE SERVIÇOS. MÉDICO.
A ação de responsabilidade por dano decorrente da prestação de serviço médico
pode ser proposta no foro de domicílio do autor (artigo 101, I, do CODECON),
ainda que a responsabilidade do profissional liberal dependa da prova de sua culpa (art. 14, paragrafo 4º,
do CODECON).”
9
Por outro lado, algumas questões pontuais merecem ser abordadas, a fim de evidenciar a
amplitude da proteção conferida pelo CDC aos pacientes vítimas de erro médico.
Com relação aos médicos cirurgiões de uma maneira em geral, o grande problema é saber
se a responsabilidade é do chefe da equipe ou individual de cada um de seus auxiliares, especialmente
dos anestesistas. “No passado, a jurisprudência era no sentido de responsabilizar o chefe da equipe,
mas com a alta especialização médica e o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, os Tribunais têm
evoluído para imputar a responsabilidade ao causador do dano, de vez que se atuam individualmente
como autônomos, cada um em sua especialidade, devem responder individualmente por seus atos”16 .
Contudo, dependendo da análise fática de cada caso, o dever de indenizar pode ser
imputado ao médico-chefe, não tendo tal prática desaparecido de nossos colegiados judiciais, servindo
de exemplo o acórdão abaixo transcrito, do Superior Tribunal de Justiça17 :
“RESPONSABILIDADE CIVIL. CIRURGIA. QUEIMADURA CAUSADA NA
PACIENTE POR BISTURI ELÉTRICO. MÉDICO-CHEFE. CULPA “IN ELIGENDO”
E “IN VIGILANDO”. RELAÇÃO DE PREPOSIÇÃO.
- Dependendo das circunstâncias de cada caso concreto, o médico-chefe pode vir a responder por fato
danoso causado ao paciente pelo terceiro que esteja diretamente sob suas ordens.
Hipótese em que o cirurgião-chefe não somente escolheu o auxiliar, a quem se imputa o ato de acionar o
pedal do bisturi, como ainda deixou de vigiar o procedimento cabível em relação àquele equipamento.
- Para o reconhecimento do vínculo de preposição, não é preciso que exista um contrato típico de trabalho;
é suficiente a relação de dependência ou que alguém preste serviços sob o comando de outrem.”
Questão igualmente complicada diz respeito à responsabilidade do hospital, havendo
uma tendência de responsabilizá-lo quando há vínculo empregatício entre o estabelecimento hospitalar
e o médico, sendo, porém, exclusivamente deste último a responsabilidade quando utiliza o
estabelecimento apenas para fazer cirurgias e internações de seus pacientes particulares18 .
Na verdade, os Tribunais, atentos à solidariedade que normalmente decorre da Lei nº
8.078/90 e à natureza dos direitos envolvidos, têm sido bastante rígidos na aplicação das normas do
Código de Defesa do Consumidor nas indenizações pleiteadas com fundamento em erro médico.
Inobstante não se imponha um litisconsórcio passivo necessário entre os vários responsáveis pelo
dano causado ao consumidor, este pode acionar qualquer deles, inclusive a prestadora de serviços de
assistência médica, que fica responsável pelos serviços prestados por profissionais por ela indicados,
ressalvado o direito de regresso em face destes19 .
Nesse sentido, pertinentes as palvras do Min. Aldir Passarinho Júnior20 , em recente acórdão
assim ementado :
“AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. PLANO DE SAÚDE. ERRO EM
TRATAMENTO
ODONTOLÓGICO.
RESPONSABILIDADE
CIVIL.
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO NÃO CONFIGURADO..
I. A empresa prestadora do plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente para a ação
indenizatória movida por filiado em face de erro verificado em tratamento odontológico realizado por dentistas
por ela credenciados, ressalvado o direito de regresso contra os profissionais responsáveis pelos danos materiais
e morais causados.
II. Inexistência, na espécie, de litisconsórcio passivo necessário.”
O posicionamento acima esposado decorre também da consideração de que “a prestadora
de serviços de plano de saúde é responsável, concorrentemente, pela qualidade do atendimento
oferecido ao contratante em hospitais e por médicos por ela credenciados, aos quais aquele teve de
obrigatoriamente se socorrer sob pena de não fruir da cobertura respectiva”21 , limitada, como é
notório, ao atendimento pela rede credenciada.
10
Aliás, em recente julgado22 , o Superior Tribunal de Justiça não conheceu de recurso especial
em que se pretendia modificar acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que condenou o
Hospital Santa Lúcia S/A., de Brasília-DF, a pagar indenização por danos morais à família de paciente
morta durante uma cirurgia de períneo em decorrência de choque anafilático causado por
hipersensibilidade à penicilina.
Os exames pré-operatórios administrados na paciente já haviam comprovado sua
hipersensibilidade à droga, tendo concluído aquela Corte que, nos casos de erro médico que causam
morte do paciente, a responsabilidade e o dever de indenizar podem ser impostos, solidariamente, à
equipe médica que fez a cirurgia, ao hospital e à empresa de plano de saúde da qual a vítima era
conveniada.
IV – CONCLUSÃO
Diante do exposto, nota-se que o pedido de indenização por danos causados por erro
médico já estava amparado pelos artigos 159 e 1.545 do Código Civil de 1916, bem como pelo artigo
14, §4º, da Lei nº 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, que abarca todos os
profissionais liberais. Atualmente, a matéria encontra regência nos artigos 186, 927 e 951 do Novo
Código Civil, consubstanciado na Lei nº 10.406/2002, em vigor desde 11 de Janeiro de 2003.
A responsabilidade civil do médico pelos atos praticados no exercício de sua profissão
dependerá, sempre, da verificação de sua culpa, não se aplicando, in casu, a responsabilidade objetiva
do CODECON, muito embora configurada a relação de consumo. Exceção à regra são os danos
oriundos de cirurgias estéticas ou plásticas embelezadoras, hipóteses nas quais a obrigação daquele
profissional deixa de ser de meio para se tornar de resultado, inobstante ainda haja discussões técnicas
acerca da matéria.
Em qualquer caso e em função da solidariedade decorrente do Código de Defesa do
Consumidor, este pode responsabilizar (em conjunto ou separadamente), pelos danos que lhe foram
causados, os médicos que lhe prestaram os serviços, o hospital e a empresa de plano de saúde da qual
é conveniado, sendo o litisconsórcio passivo apenas facultativo e restando incólume o posterior
exercício do direito de regresso.
Mesmo em se tratando de responsabilidade subjetiva, subsistem os direitos do consumidor
de propor a ação no foro de seu domicílio e de pedir a inversão do ônus da prova, de forma a impor
ao médico o ônus de demonstrar que não agiu com imprudência, negligência ou imperícia.
Resta, entretanto, aguardar o posicionamento da jurisprudência acerca da norma que
deverá ser aplicada no tocante ao prazo prescricional da ação de reparação civil que, no Código de
1916 era de 20 (vinte) anos e no novo diploma codificado foi reduzido para 3 (três) anos, enquanto
o Código de Defesa do Consumidor o fixa em 5 (cinco) anos.
De qualquer forma, a proteção assegurada ao paciente vítima de erro médico, seja pelo
Novo Código Civil seja pela Lei nº 8.078/90 (que permanece vigente após e edição da Lei nº 10.406/
2002), é ampla o suficiente para tutelar, adequadamente, a indenização decorrente da responsabilidade
civil do médico, não havendo, s.m.j, necessidade de nova norma dispondo sobre o mesmo tema.
11
Lembre-se, sempre, que o casuísmo deve ser evitado pelo legislador, pois ao pormenorizar
demais as hipóteses às quais a lei se aplica acaba-se por, inevitavelmente, deixar de contemplar
algum caso específico, daí a propriedade da referência genérica aos profissionais liberais, abrangendo
médicos, advogados e muitos outros. A utilização de normas gerais é, diga-se de passagem, tendência
atual e técnica de que se valeu o Novo Código Civil.
Espera-se, com essa sucinta análise do tema que não tem a pretensão de exaurir a matéria,
ter-se propiciado uma visão geral do tratamento legal, doutrinário e jurisprudencial conferido à
responsabilidade civil decorrente de erro médico, da qual surge o direito à indenização a ser fixada
em patamar compatível com cada caso concreto.
NOTAS DE REFERÊNCIA
www.cfm.org.br ou www.portalmedico.org.br.
2 Entendido como a proibição de se causar prejuízo a outrem.
3 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Responsabilidade Civil – Vol. 4, 14ª ed., São
Paulo: Saraiva, 1995, p. 246/249.
4 Ob. Cit, p. 249.
5 STJ, REsp. 81101/PR, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 31.05.1999, p. 00140,
LEXSTJ 123/155.
6
VILLELA FILHO, Gustavo Alberto. O Novo Código Civil e a Responsabilidade dos
Médicos. Artigo publicado no site www.conjur.com.br, em 04/07/2003.
7 STJ, AGA 376.682/SP, 2ª T., Rel. Min. Paulo Medina, DJ 04.03.2002, p. 248.
8 KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e o ônus da prova. São Paulo: RT, 2002, p.
202.
9 Pode-se mencionar a obra “Código Civil Comparado”, feita com a colaboração de
Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes, São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 220; bem como “O Novo Código Civil e Comercial – anotado e comparado”, de
João Augusto da Palma, São Paulo: LTr, 2002, p. 274; e “Código Civil de 2002 – comparado e
anotado”, de Antônio Cláudio da Costa Machado, Juarez de Oliveira e Zacarias Barreto, São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 211.
10 FORSTER, Nestor. Erro Médico. Coleção Aldus, São Leopoldo/RS: Ed. Unisinos,
2002, p. 54.
11 SOUZA, Neri Tadeu Câmara. Erro Médico – A responsabilidade civil dos profissionais
e as leis. Artigo veiculado na Revista Consultor Jurídico, em 25 de Fevereiro de 2003.
12 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3ª ed., 2ª
tiragem, Ed. RT, 1999, p. 620.
13 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do Anteprojeto.
2ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 95.
14 STJ, REsp. 171988/RS, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 28.06.1999, p. 00104,
RT 770/210.
1
12
8586.
15 STJ, REsp. 80276/SP, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 25.03.1996, p.
16 VILLELA FILHO, Gustavo Alberto. O Novo Código Civil e a Responsabilidade dos
Médicos. Ob. Cit.
17 STJ, REsp. 200.831/RJ, 4ª T., Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 20.08.2001, p. 00469,
RSTJ 154/381.
18 VILLELA FILHO, Gustavo Alberto. Ob. Cit.
19 Nesse sentido: STJ, Resp. 138.059/MG, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 11.06.2001,
p. 197.
20 STJ, REsp. 328.309/RJ, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., DJ 17.03.2003, p. 00234.
21 STJ, REsp. 164.084/SP, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., DJ 17.04.2000, p. 0068,
RSTJ 138/361.
22 STJ, REsp. 232.380/DF, 4ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 04.08.2003, p. 00305,
noticiado no site da Revista Consultor Jurídico, em 29/05/2003.
310914
13
Download

responsabilidade civil por erro médico