Ouvidoria: para uma outra dimensão do processo Luiz Otávio Linhares Renault1 Leonardo Tibo Barbosa Lima2 Houve um tempo em que a relação entre Estado e cidadão era regida por profundo silêncio e por aguda omissão. Afinal, de que (a quem) adiantava gritar? Quantos Josef’s K.’s3 não o tentaram em vão? Não que o Estado carecesse de ouvidos, pois a história conta que desde a dinastia de Han, na China, em 202 a. C., já existia a ideia do “ombusman”, cuja função, assim como a do Supremo Representante do Rei (“Hogsta ombudsmänem”) da Suécia (Carlos XII), em 1713, era escutar, mas apenas o que interessava ao Estado. No entanto, nesta quadra da história da humanidade, o Estado pósmoderno quer e deve efetivamente escutar tudo e a todos, impelido não pelo desejo tosco de vigilância, de investigação, de repressão ou de punição a esmo, mas para prestar informações célere e informalmente a quem as solicitar, sem intermediários, sem representação, sem ruídos, e sem interferências administrativas, por meio de um órgão independente e informal. Para tanto, a Lei n. 12.527-2011 (Lei de Acesso à Informação) franqueia o acesso à informação, que deve ser objetiva, em estilo transparente, claro e em linguagem compreensível (art. 5º da LAI), contribuindo para a concretização de importante atributo da cidadania. Em tempos de sólida democracia, o cidadão passa de agente passivo a agente proativo, participando e fiscalizando todas as atividades do Estado, concorrendo direta e indiretamente para a democracia e para o aprimoramento das instituições. Como exemplos temos o orçamento participativo, os portais de transparência, inclusive de contra-cheques de servidores públicos, os controles interno e externo de orçamento e de gastos dos Órgãos Públicos, as audiências públicas, a transmissão ao vivo de júri (ocorrida pela primeira vez, na semana do dia 11 de março de 2014, no julgamento de Mizael Bispo, acusado do assassinato de Mércia Nakashima), etc. Note-se, por outro lado, que o acesso à informação invade a esfera privada (quase todas as grandes e médias empresas possuem SAC ou Ouvidoria), uma vez que de mero espectador, o cidadão passou à condição de construtor da verdadeira democracia, espaço obtido em todas as esferas do Poder Público, bem 1 Doutor em Direito pela UFMG; professor adjunto da PUC Minas nos cursos de graduação e de pósgraduação; Desembargador do TRT da 3ª Região; Aprovado em primeiro lugar no Concurso Público de Provas e Títulos para o cargo de Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. 2 Doutorando e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG; especialista em Direito Público pela UGF/RJ; Juiz do Trabalho substituto do TRT da 3ª Região; professor da Faculdade de Direito da FAPAM e de cursos de pós-graduação. 3 Personagem de Franz Kafka, que foi preso e processado sem saber o por quê. (KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Cia. das Letras, 2003). 1 como das relações privadas, e permeadas pela verticalidade e pela horizontalidade dos direitos fundamentais. Pois bem. Dúvida não há de que o acesso à informação passou a constituir, no fundo e em última análise, em um importante meio de acesso a direitos fundamentais. A informação está no dna do Estado pós-moderno, por conquista dos cidadãos, que somos todos nós, indistintamente, com igual intensidade, sem superposição de níveis ou de classes sociais, e sem discriminação. Sob a ótica constitucional, o direito à informação está ao lado do direito de petição, embora com ele não se confunda. Trata-se de uma espécie de direito humano; de uma garantia constitucional extremamente importante, cujo exercício dispensa rígido procedimento previamente estabelecido. Ademais, o cidadão pode ter o acesso à informação sem que ocorra a promoção direta do exercício do direito, o que constitui grande avanço no terreno da promoção humana, sendo, como salientado, um forte desafio à adoção de uma linguagem e de um flexível procedimento, compatível com o cidadão comum. Nesta toada, cumpre salientar que ao reclamante ou ao solicitante deve-se, outrossim, demonstrar sempre, de maneira clara e objetiva, que a Ouvidoria não possui poder disciplinar ou coercitivo, embora deva responder a toda e qualquer demanda, adotando, em cada caso, as providências eventualmente cabíveis, ainda que consista no encaminhamento da questão à autoridade competente. A desinformação é, noutra via, o calvário da cidadania, dentro ou fora do processo. Em épocas muito próximas, Kafka, no romance "O processo", e Camus, em "O Estrangeiro" fizeram seus personagens centrais viver o desígnio de audiências. O primeiro, Josef K., para tentar vencer a burocracia e compreender longo e confuso processo, e o segundo para dizer, na voz de Mersault, que as audiências relativas ao seu processo lhe pareciam um "jogo". Em Roma antiga, as audiências possuíam regras variadas, consonante o status social da pessoa envolvida. Com o passar do tempo, tornaram-se cada vez mais uniformes e formais, com porteiros, criados de câmara, nomenclatores para identificar os presentes e velarii para correr as cortinas, em um ambiente altamente solene, no qual o juiz, centro do poder e com poucos deveres, conduzia o processo com muita liberdade e autonomia. Na idade moderna, houve avanços significativos, mas o processo judicial, ainda hoje, é um procedimento em contraditório formal e, por vez, de difícil compreensão para o leigo, por mais culto que ele seja. Com efeito, o processo judicial é um instrumento, em cujo bojo, respeitado o procedimento em contraditório e a paridade de armas, os seus partícipes têm o sagrado direito de serem ouvidos, a fim de que, apresentados os 2 seus argumentos e as provas, o juiz imparcial forme o seu convencimento livremente e exare a sua sentença fundamentadamente. Aliás, a palavra "audiência" tem origem no latim audire. Muito embora este vocábulo haja, ao longo do tempo, acumulado vários significados, no sentido próprio sempre reteve a ideia fundamental de "ouvir", "estar com ouvidos atentos", "escutar". Em latim, ungido o sentido metalingüístico, a palavra, ainda assim, abria-se em leque: significava tanto "ouvir ou escutar as súplicas dirigidas aos deuses", quanto "ouvir uma causa, julgar uma causa", ou até mesmo "ser informado". Talvez, aí, também, a origem da palavra "ouvidoria". Ainda a respeito da importância de "ouvir", Polônio advertiu Laerte: na tragédia "Hamlet", "Give every man thine ear, but few thy voice". Portanto, a missão, isto é, a missão, isto é, a atribuição da Ouvidoria é, despida de procedimento solene, ouvir, ouvir e ouvir, adotando, em cada caso, as providências cabíveis, no âmbito de sua competência. Por seu turno, constituindo-se em instrumento típico de Jurisdição, o processo judicial possui normas rígidas quanto ao momento, à maneira e ao lugar de falar, de dizer. A ação judicial, definitivamente, não é um instrumento, um remédio, que deva ser manejada indiscriminadamente, uma vez que almeja a imutabilidade da coisa julgada, só galgada uma vez, na forma da lei processual. E assim ocorre a bem da segurança jurídica, da sociedade e da própria ideia de Justiça. De conseguinte, o processo judicial não serve, ou pelo menos não deveria servir, para pretensões outras que não a obtenção da tutela jurisdicional. Entretanto, notoriamente, isso nem sempre ocorre. Casos há, perante a jurisdição trabalhista, fruto de um desdobramento obrigacional, caracterizado por relação onerosa e de natureza sucessiva, cuja execução pressupõe a convivência interpessoal, cercada de fidúcia e de subordinação, em que a paixão, a dúvida, a insatisfação, a irresignação, o inconformismo movem ou instalam, por assim dizer, um segundo processo. A parte, muita vez, quer apenas ser ouvida, dizer o que não foi possível expressar na vigência do contrato de trabalho4: Márcio Túlio Viana preleciona que: “[...] pode acontecer que a indenização que o autor pede seja apenas um pretexto, e nem mesmo ele o perceba muito bem: o que o seu coração quer é trazer o réu àquele ambiente, para que se veja condenado, humilhado e arrependido. Nesses casos, é como se a inicial contivesse outros pedidos, que a Justiça sem saber (e sem querer) atende ou desatende, para além dos limites legais.” 4 VIANA, Márcio Túlio. O segundo processo. Revista do TST. Vol. 77. N. 2. Brasília: TST, abr./jun. 2011. p. 196/206. 3 Ao que parece, a Ouvidoria, em muitos casos e por razões outras que não as acima mencionadas, aproxima-se e cria uma nova espécie de segundo processo, ou, se se quiser de terceiro processo, pois abre, paralelamente, um canal para que a parte, diretamente, procure saber o que aconteceu em determinada situação, sem que tenha que ir diretamente ao juiz da causa ou ao seu advogado. Assim, a Ouvidoria constitui um espaço moderno mais amplo, perante o qual, em tempo mais exíguo e de modo extremamente informal, o cidadão pode dizer o que tem vontade de dizer, sem amarras ou formalismo, cabendo, se for o caso, à doutrina e à jurisprudência, ainda incipientes a esse respeito, fixar os limites de eventual responsabilidade de quem diz o que quis dizer, em momento de aflição e angústia, perante a Ouvidoria. De qualquer maneira, toda sorte de reclamações, denúncias, sugestões e outras manifestações constituem matérias afetas à Ouvidoria e são bem-vindas (art. 3º, I, da RA n. 50/07 do TRT da 3ª Região). O objetivo é fazer com que os agentes políticos e públicos possam escutar o cidadão, destinatário final de seus atos, e prestar as informações a respeito das razões da sua conduta. Entretanto, o que constitui escopo do processo, isto é, o que se destina à obtenção da tutela jurisdicional, com a aspiração à formação da coisa julgada, só nele tem lugar. A Ouvidoria não substitui nenhum outro órgão do Tribunal, nem o Ouvidor o Juiz. Tampouco, a reclamação perante a Ouvidoria substitui o processo. Cada qual com as suas funções e atribuições, deveres e obrigações, uma vez que a ordem conduz ao progresso, como consta de nossos símbolos nacionais. Diante deste quadro, a Ouvidoria possui um espectro de competência residual, despida de função jurisdicional, e sem traços correcionais. Não interfere em atos in procedendo ou in judicando; não constitui órgão julgador – destituído que é do poder-dever de atuação nos processos judiciais – e não detém competência revisional de atos judiciais e de decisões interlocutórias ou definitivas de qualquer juízo. Ela é porta aberta e mesa posta para o diálogo e para a informação, dos quais se pretende que resulte a melhoria do serviço, do acesso, e da informação, sem que se possa interferir na jurisdição. Por isso é que o artigo 7º da RA n. 50/07 do TRT/3ª Região permite ao Ouvidor desconsiderar as manifestações que pretendam obter da Ouvidoria um serviço que não lhe é próprio. Eis o seu teor: “Art. 7º Serão, a juízo do Ouvidor, desconsideradas as manifestações: I - para as quais haja previsão legal ou regimental de recurso específico, ou seja passível de correição parcial; II - que envolvam ato ou decisão de natureza jurisdicional; III - que encerrem consultas sobre direitos trabalhistas, previdenciários, administrativos e sobre andamento processual; IV - relativas a dúvidas quanto a matéria processual; V - referentes a outros órgãos públicos.” Sem embargo, o procedimento estabelecido através da Ouvidoria deve permitir o acesso a uma outra dimensão do processo, o que ocorre através do 4 estabelecimento de interlocução do interessado com o órgão jurisdicional que lhe prestou serviço público, para que ambos possam esclarecer fatos e aduzir razões e fundamentos que certamente não encontrariam espaço na rigidez do primeiro processo, vale dizer, do processo judicial, cercado de regras e de tecnicismos jurídicos. Com efeito, o que toca ao processo judicial, isto é, tudo aquilo que não decorre da simples necessidade de se fazer ouvir e entender, constitui matéria processual, inserida na esfera de competência do juízo e submersas ao devido processo legal (art. 5º, LV, da CF), inclusive ao mandamento constitucional de específica fundamentação de todas as decisões judiciais (art. 93, IX, da CF), maior de todas as garantias dos jurisdicionados, que têm o direito de saber as razões de sua condenação ou absolvição, facultada a via recursal, no caso de inconformismo. Não se olvide, ademais, que a garantia constitucional do due process of law prevê o duplo grau de jurisdição para as decisões judiciais, o que, por via de conseqüência, impede a intervenção da Ouvidoria em questões desta natureza. Além do que lhe compete, não pode a Ouvidoria avançar. A atuação judicante, de acordo com os elementos constantes dos autos, pauta-se na livre convicção e no dever de fundamentar as suas decisões, ficando qualquer discussão em torno do acerto ou eventual desacerto, justiça ou injustiça de atos e decisões, a cargo das instâncias competentes. Registre-se, por fim, que, considerando que o processo transcorre adstrito aos procedimentos específicos, previstos em lei, a irresignação do interessado, caso entenda ter havido equívoco ou injustiça nas decisões, deve ser objeto de recurso, nos momentos oportunos e conforme previsão legal, o que lhe permite a mais ampla defesa, mediante a apresentação de todos os seus argumentos perante os magistrados competentes para os respectivos julgamentos. 5