a convenção de viena sobre o direito dos tratados arquivo direito internacional eduardo felipe p. matias A relevância da Convenção de Viena foi definitivamente reconhecida pelo Brasil no último dia 14 de dezembro, quando de sua promulgação no país. 14 Um dos acontecimentos mais significativos do mundo do Direito no século passado foi o aumento da importância do direito internacional. A aceleração do processo de globalização, percebida no final daquele século, tornou esse direito cada vez mais relevante, senão imprescindível, em um planeta onde as nações se tornaram mais e mais interdependentes. Pode-se, assim, afirmar que a globalização foi acompanhada de uma verdadeira globalização jurídica. Esta foi marcada, principalmente, por uma proliferação dos tratados celebrados para organizar as relações internacionais. Nesse contexto, torna-se essencial regular a elaboração, aplicação e interpretação dos tratados, a fim de assegurar a segurança e a previsibilidade dessas relações. Essa é a finalidade da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, aprovada recentemente pelo Brasil – não sem reservas. A Convenção de Viena harmoniza procedimentos como os de ratificação, denúncia e extinção de tratados, além de positivar normas costumeiras aceitas e comprovadamente eficazes – em outras palavras, normatiza práticas reiteradas, consagradas entre as nações, a respeito do Direito dos Tratados. Concluída em 23 de maio de 1969, a Convenção está em vigor no plano internacional desde 27 de janeiro de 1980, quando foi ratificada pelo 35º país, tendo sido até hoje adotada por 110 Estados. Seu texto é dividido em oito partes, que tratam, entre outros temas, da conclusão e entrada em vigor, aplicação, interpretação, e modificação de um tratado, tendo como base princípios como os da boa-fé, pacta sunt servanda e livre consentimento. Quanto à sua aplicabilidade, a Convenção se restringe a tratados firmados entre Estados, ficando excluídos tratados firmados entre Estados e outros sujeitos de direito internacional, e aqueles firmados por estes outros sujeitos entre si. Cabe lembrar que as organizações internacionais têm Convenção própria no que se refere a tratados, datada de 21 de março de 1986 e celebrada em Viena, mas que ainda não tem vigência internacional. revista JURÍDICA consulex - ano xIv - nº 315 - 28 DE fevereiro/2010 Algumas disposições da Convenção merecem destaque. Esta determina, por exemplo, em seu Artigo 64, que se torna nulo ou extinto o tratado que conflite com nova norma imperativa de direito internacional, sendo a dis cussão sobre a origem e a obrigatoriedade do chamado jus cogens uma das mais interessantes do direito internacional atual. Com relação à interpretação dos tratados, o Artigo 31 da Convenção determina que se deve atribuir aos termos dos tratados um sentido que leve em consideração seu contexto, objetivo e finalidade. A relevância da Convenção de Viena foi definitivamente reconhecida pelo Brasil no último dia 14 de dezembro, quando de sua promulgação no país, após ser aprovada pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 496, de 17 de julho de 2009) e ter seu instrumento de ratificação depositado perante o Secretário-Geral das Nações Unidas (25 de setembro de 2009). Com o Decreto presidencial, a Convenção foi efetivamente promulgada e seu texto publicado, passando a obrigar em nosso ordenamento interno. Entretanto, ao aderir à Convenção, o Brasil fez reserva aos Artigos 25 e 66 que merecem, por isso, maior atenção. O Artigo 25 trata da aplicação provisória de um tratado, enquanto ele não adquire vigência no plano internacional. Entendeu-se que o artigo poderia ferir a competência do Congresso Nacional acerca da adoção definitiva dos tratados. Isso porque, segundo o Artigo 49, inciso I, da Constituição Federal, o Brasil só se obriga internacionalmente após o assentimento do Congresso. Com essa reserva, o Brasil demonstra cuidado em procurar evitar que um tratado internacional altere o funcionamento e as prerrogativas de suas instituições internas. O Artigo 66, por sua vez, trata dos casos em que uma parte invoca vício no seu consentimento em obrigar-se por um determinado tratado, e isso é contestado pela outra parte. Não havendo solução para o conflito, o referido artigo da Convenção de Viena determina que o caso seja levado à Corte Internacional divulgação de Justiça (CIJ) ou submetido à arbitragem – se assim acordado pelas partes –, ou ainda levado à conciliação junto ao Secretário Geral da ONU. A razão da reserva feita pelo Brasil encontra-se na possibilidade de submissão automática do caso à CIJ. Isso porque o Brasil não está entre aqueles que aderiram à “cláusula facultativa de jurisdição obrigatória”, descrita no Artigo 36 do Estatuto da CIJ, pela qual os países concordam previamente em se sujeitar à jurisdição da Corte. Por meio dessa reserva, portanto, o Brasil reitera seu desejo de somente se submeter à CIJ com o seu próprio consentimento, caso a caso. As reservas feitas pelo Brasil à Convenção de Viena trazem à tona uma das principais questões envolvendo Estados e sua adesão a tratados: a interação entre direito interno e esse novo direito, resultante do tratado, que o Estado passa a ter que respeitar. Quanto a essa relação, de equilíbrio muitas vezes difícil, a Convenção é clara ao proibir, em seu Artigo 27, a invocação de disposições do direito interno como justificativa ao inadimplemento de um tratado. Dessa vez, ponto para o direito internacional, já que essa proibição sinaliza no sentido de um predomínio deste sobre os direitos nacio- nais. A única exceção, trazida pelo Artigo 46, referese à competência para concluir tratados: a única situação em que um Estado pode alegar nulidade de um tratado é no caso de violação manifesta de disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados, desde que essa violação trate de norma de direito interno de importância fundamental. Ainda sobre esse tema, a Convenção determina, em seu Artigo 43, que nulidade, extinção, denúncia, retirada de uma das partes, ou suspensão da execução de um tratado em consequência da aplicação da Convenção não prejudicará o dever de um Estado de cumprir obrigação enunciada no tratado à qual o Estado está sujeito, não em virtude do tratado em si, mas por força do próprio direito internacional. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados tem, portanto, um papel fundamental nas relações internacionais atuais. A discussão em torno de suas regras é parte de um debate mais amplo, sobre a relação entre um direito internacional cada vez mais fortalecido e um direito interno que perde efetividade, em um mundo que se esforça para conciliar – nem sempre com sucesso – globalização jurídica e soberania nacional. “A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados tem um papel fundamental nas relações internacionais atuais.” EDUARDO FELIPE P. MATIAS é Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e D.E.A. pela Universidade de Paris II. Sócio de L.O.Baptista Advogados. Autor do livro A Humanidade e suas Fronteiras – Do Estado Soberano à Sociedade Global, ganhador do Prêmio Jabuti. revista JURÍDICA consulex - www.consulex.com.br 15