A COMPOSIÇÃO E A QUADRATURA COMO CRIAÇÃO Acylene Maria Cabral Ferreira * 1. O objetivo deste trabalho é investigar, inicialmente, em que medida a composição (Gestell) e a quadratura (Geviert) convergem, no pensamento de Heidegger, para a constituição ontológica do mundo, ao mesmo tempo em que participam de uma unidade de essência, qual seja, a criação enquanto verdade do ser e mundanização do mundo; para em seguida mostrar em que medida a criação é uma reunião antecipadora, que copertence à diferença ontológica enquanto desdobramento da dobra do ser. Para alcançar tal objetivo, centraremos nossa investigação no pensamento de Heidegger, principalmente, nas conferências A questão da técnica para definir o conceito de composição, A coisa para expor o conceito de quadratura, Moira para explicitar a noção de dobra do ser e em Introdução à metafísica para fundamentar a comunhão de essência entre tais conceitos. O propósito de mostrar como os conceitos de composição, quadratura e dobra do ser se interagem para a criação e mundanização do mundo, fundamenta-se e advém da seguinte afirmação de Heidegger: A metafísica é uma fatalidade única mas talvez necessária ao Ocidente. [...] A metafísica é uma fatalidade porque, como traço fundamental da história do Ocidente europeu, a humanidade vê-se fadada a assegurar-se no ente. E a nele segurar-se sem que, em momento algum, a metafísica faça a experiência do ser dos entes como dobra de ambos, podendo então questioná-lo e harmonizá-lo em sua verdade. Essa fatalidade a ser pensada na dimensão da história do ser é, contudo, necessária porque o próprio ser apenas pode vir à luz em sua verdade, na diferença resguardada entre ser e ente, e isso quando a diferença ela mesma se dá e acontece com propriedade. 1 Por que a metafísica é uma fatalidade? Podemos responder a essa pergunta por duas vias, ambas restritas ao fato de que a metafísica, enquanto um modo de conhecimento é, inexoravelmente, um modo de ser do homem. Nessa perspectiva, a primeira via * Profa. do Departamento de Filosofia da UFBA. HEIDEGGER, Martin. A superação da metafísica. In: Ensaios e Conferências. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 67. 1 2 fundamenta-se na própria constituição do homem, quer dizer, o fato de ele estar lançado e dado no mundo juntamente com outros entes, implica em que ele é ôntico assim como todo ente dado no mundo; porém vale ressaltar que ele se distingue dos demais entes pelo fato de que em sendo, em existindo ele questiona sobre o ser do mundo e pergunta pelo seu próprio ser e, nesse sentido, ele não é apenas ôntico como todo e qualquer ente, mas ôntico-ontológico. No entanto, o que permite ao homem questionar-se sobre o ser do mundo e o seu próprio ser é a compreensão prévia que ele tem do ser e, assim o primado ôntico-ontológico torna-se pré-ontológico: o homem compreende o ser de qualquer ente porque, antecipadamente, compreende o ser em geral.2 Quando o homem afirma que algo é, ele constitui ontologicamente o mundo, por este motivo a metafísica pode ser considerada uma fatalidade que se desdobra na ambigüidade inerente ao modo próprio de ser do homem, qual seja, quando ele compreende o ente enquanto ente é porque já compreendeu o ser. Em se tratando da metafísica, essa ambigüidade inerente ao modo próprio de ser do homem aparece na ambigüidade da questão fundamental da metafísica, que é a questão sobre o ser em geral e da questão do ente enquanto ente, que na verdade se tornou a questão diretora da metafísica ao passo que trata do ser a partir do ente. Essa fatalidade inerente à metafísica diz respeito à própria fatalidade do homem: compreender o ser a partir do ente, pois existimos e vivemos entre os entes e sempre que falamos daquilo que é, falamos do ente em seu ser e toda referência que fazemos ao ser, a fazemos com respeito ao ente. Esta fatalidade do modo de ser do homem e da metafísica reside na diferença ontológica, na dobra do ser e do ente. A segunda via para pensar a fatalidade da metafísica decorre da primeira na medida em que a questão diretora da metafísica necessita da questão fundamental da metafísica e, portanto, a antecipa da mesma maneira que, para o homem, a compreensão do ser antecede a compreensão do mundo; eis aí a copertença antecipativa da questão fundamental em relação à questão diretora da metafísica. A segunda via da fatalidade da metafísica consiste em que “a humanidade vê-se fadada a assegurar-se no ente”, porque somente pode deter-se naquilo que é. O homem assegura-se no ente porque “isso que é, tomamos habitualmente por ente. Porque é do ente que dizemos “é”. [Porém] somente o ser “é”; é somente no ser e como ser que advém isso que nomeamos o “é”; isto que é, é 2 Cf. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993, § 3 e 4. 3 o ser a partir de sua essência”. 3 Será que temos aqui uma contraposição nessa afirmação do Heidegger? Ora ele afirma que “é do ente que dizemos é” e ora afirma que “somente o ser é”. Que conclusão podemos retirar dessas afirmações aparentemente excludentes? A conclusão consiste na problemática da fatalidade da metafísica e do modo de ser do homem, que “segura-se no ente sem fazer a experiência do ser como dobra do ser e do ente”; este fato os leva a segurarem-se no ente, esquecendo-se do ser. A experiência do ser como dobra do ser e do ente concerne, a saber, que somente o ser é e que do ente dizemos que ele é quando compreendido em seu ser. Então, falar do ser de algum ente é retornar à compreensão de ser que dele tivemos; falar de um ente enquanto ente é voltar à compreensão do ser que nos permitiu compreender esse ente enquanto tal; esse retorno se deve ao fato de o homem compreender, antecipadamente, o ser. Nessa perspectiva, toda compreensão de ser se dá como esquecimento do ser e todo dizer sobre o ser do ente é uma recordação do esquecimento do ser. Como o escopo da metafísica consiste em tratar do ser enquanto ser, ela pode ser denominada de esquecimento do esquecimento do ser, de asseguramento no ente e de fatalidade necessária ao ocidente. Mas essa fatalidade que caracteriza a metafísica ocidental e a fundamenta na ambigüidade ou dubiedade da questão sobre o ser, traz em si mesma a possibilidade da experiência do ser enquanto ser, ou seja, na própria dubiedade enquanto dobra da questão fundamental e da questão diretora da metafísica está a possibilidade de o homem experimentar o ser como dobra do ser e do ente. Nessa perspectiva, a metafísica pode “questioná-los e harmonizá-los em sua verdade”, quer dizer, a fatalidade da metafísica pode ser pensada a partir da diferença ontológica e da dobra entre ser e ente. A fatalidade da metafísica, enquanto asseguramento no ente e experiência do ser a partir da dobra do ser e do ente, será melhor vislumbrada a partir do esclarecimento do conceito de composição enquanto essência da técnica moderna, visto que “a história e a técnica ordenam o seu curso no sentido do último estágio da metafísica”.4 3 HEIDEGGER, M. Le tournant. In: Question II et IV. Tradução de Jean Lauxerois e Claude Roels. Paris: Gallimard, 1976, p. 317, 316. 4 Idem. A superação da metafísica, p. 63. 4 2. A técnica moderna apresenta uma estrutura similar a esta da metafísica moderna na medida em que utiliza a conexão de causa e efeito e liga meios a fins, assegurando-se nos entes e certificando-se de que a produção técnica seja capaz de representar a realidade como certeza do acontecimento da verdade do ser. Assim como a metafísica, a técnica moderna se fundamenta na utilização do método para chegar a certezas indubitáveis, a verdade absoluta estabelecida como valor supremo. Como método e certeza se inter-relacionam na técnica moderna? Num sentido amplo, podemos dizer que a técnica implica em fazer e produzir no sentido de um fabricar, o qual, por sua vez, envolve procedimentos racionais que o direciona e determina. Os procedimentos racionais que caracterizam o fabricar, são principalmente o cálculo, a precisão, o rigor e o método. Na aplicação desses procedimentos o método tem por função direcionar e encaminhar os outros procedimentos, fato esse que nos permite afirmar que o método tem um caráter antecipativo em relação aos demais procedimentos racionais. Assim, a fabricação, ou seja, a produção da técnica moderna se efetiva de modo calculado e preciso por seguir com rigor um método que a define antecipativamente. A finalidade de tais procedimentos é submeter o acontecimento da realidade ao menor grau de incerteza, assegurando-lhe a certeza como sua verdade. Por isso, a realidade produzida pela técnica é vista, por Heidegger, como representação da verdade do ser devido ao fato de o modo do acontecimento do ser encontrar-se submetido a procedimentos racionais que antecipam e direcionam a mundanização do mundo assegurando e estruturando o seu modo de ser. A realidade é de certa forma encomendada, ou seja, na técnica há a determinação antecipada da produção predeterminada pelo método, que assegura o modo de ser da mundanização do mundo. Por este motivo, a técnica moderna é considerada um modo de acontecimento do ser e, conseqüentemente, um modo de verdade. Se a técnica e a metafísica moderna são similares no que diz respeito a sua constituição, enquanto um modo de verdade e modo de ser do homem moderno, então o asseguramento no ente e a possibilidade da experiência do ser encontrar-se-ão presentes também na técnica. Como? A essência da técnica moderna se mostra no que chamamos de com-posição. [...] Com-posição é a força de reunião daquele “por” que im-põe ao homem des-cobrir o real, como dis-ponibilidade, segundo o modo da dis-posição. 5 [...] Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna, mas que em si mesmo, não é nada técnico.5 A composição é a essência da técnica na medida em que é o modo de desencobrimento que rege o desvelamento antecipativo, encomendado e determinável do acontecimento da realidade e nesse sentido ela é asseguramento no ente e encobrimento ou esquecimento do ser. Por outro lado, ela é essência da técnica na medida em que o desvelamento antecipativo que a caracteriza exige o empenhar-se do homem em experimentar o ser, aí ela desdobra a diferença ontológica na dobra de ser e ente. Portanto, a composição é essência da técnica enquanto reunião desses dois modos de desencobrimento caracterizados pela antecipação. Se a composição reúne em si tanto o desencobrimento da realidade como asseguramento no ente quanto o desencobrimento como experiência do desdobramento de ser e ente então a composição, enquanto essência da técnica, é um modo antecipativo de produção da realidade, ou seja, de desencobrimento do ente e encobrimento do ser e também de experiência do ser. No entanto, resta-nos perguntar: por que “o desencobrimento que rege a técnica moderna não é nada de técnico”? Pelo fato de a composição, modo de desencobrimento do ser na técnica moderna mostrar-se como uma reunião antecipadora que reúne em si tanto o encobrimento (reserva do ser) quanto o desencobrimento do ser (exposição do ente) e porque, enquanto tal reunião, ela guarda em si o perigo de o homem assegurar-se no ente e esquecer-se do ser; donde poderíamos afirmar que esse modo de desencobrimento poderia ser visto com um modo de expropriação do ser e conservação do ente. Por outro lado, a composição guarda em si também a possibilidade de o homem virar-se do asseguramento no ente para a experiência do ser, daí ela poderia ser vista como um modo de apropriação e conservação do ser e, nesse sentido ela liberta o homem do perigo de ele tomar o esquecimento do ser como único modo de desencobrimento. A composição, enquanto reúne e guarda em si o asseguramento no ente e a experiência do ser, não é nada de técnico, pois sustenta e encaminha o desencobrimento do ser para as possibilidades de encobrimento e desencobrimento, ou seja, como produção da realidade a composição, ao mesmo tempo em que expõe um modo de ser, encobre outro. Nesta perspectiva, a composição é um modo de ser e, por isto, não é nada de 5 HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências, p. 26, 27, 25. 6 técnico, quer dizer, não coincide com os procedimentos racionais que estruturam a técnica nem se reduz a uma forma de atividade do homem nem a uma conseqüente determinação da história da metafísica, antes ela é a própria constituição ontológica e, portanto metafísica, da técnica moderna. “Se o Gestell [composição] é um destino da essência do ser, então ousamos presumir que o Gestell enquanto um modo dentre outros dos modos de ser se metamorfoseia.”6 E mais, seria nesse metamorfosear que aconteceria a virada do esquecimento do ser para a experiência do ser, a saída da expropriação para a apropriação do ser, do asseguramento no ente para a experiência do ser, o que significa entrar na reserva e na guarda do ser. A liberação do perigo de o homem manter-se em um único modo de doação do ser, de acontecimento e produção da realidade reside exatamente na virada ou no metamorfosear da diferença entre ser e ente. Da virada da diferença do ser e do ente temos “o acontecimento da virada do ser, a virada do recusar-se de sua essência no advento de sua guarda. [...] A tomada da guarda do ser, pensamos no mundanizar do mundo como o jogo de espelho da quadratura do céu e da terra, dos mortais e dos divinos ”7, como o acontecimento da verdade do ser. 3. Como vimos, a composição, enquanto reunião antecipadora concentra o encobrimento e desencobrimento do ser e responde pela virada do ser e pela mundanização do mundo na técnica moderna. Vimos ainda que a virada do ser consiste em manter-se na reserva do ser, que por sua vez pode ser vista como a reunião antecipadora da quadratura. Sendo assim, temos que a composição e a quadratura respondem, no pensamento de Heidegger, pela mundanização do mundo e aparecem como uma reunião antecipadora que expõe a realidade. Em que medida podemos aproximar a composição e a quadratura enquanto reunião antecipadora e produtora da realidade? Com o intuito de melhor entender como a composição e a quadratura respondem pela produção da realidade e conservação do ser, torna-se importante retomarmos o fio condutor que guia o pensamento de Heidegger, qual seja, o problema da questão do ser, visto que para ele a metafísica ocidental entificou o ser, esquecendo-se de sua verdade; isto é, a metafísica ocidental assegurou-se na visão do ser enquanto ente, esquivando-se de experienciar a dobra do ser e do ente devido ao desconhecimento da diferença 6 7 Idem, Le tournant, p.310. Ibidem, p. 317. 7 ontológica presente em sua constituição. Partindo desse ponto de vista, Heidegger propôs a superação da metafísica assim como também propôs Nietzsche: “o homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?”8 Tanto para um filósofo quanto para o outro a superação da metafísica somente seria possível através da fundamentação de um novo princípio que fosse capaz de romper com o princípio que se tornou preponderante na metafísica ocidental, quer dizer, o princípio no qual “o próprio ser torna-se ele mesmo um mero ‘valor’ ”.9 No entanto, Heidegger afirmou em sua conferência A palavra de Nietzsche “Deus morreu”10, que a metafísica ocidental ainda não foi capaz de superar-se porque não conseguiu criar um novo princípio, mas sim concepções distintas de um mesmo princípio, as quais apontam para a superação, entretanto não a efetiva, por isto ele afirmou que vivemos o acabamento da metafísica, o qual “dura mais do que a história da metafísica transcorrida até aqui”.11 A expressão acabamento da metafísica não indica fim da metafísica, antes quer dizer que ela “retorna transformada e permanece no poder como a diferença ainda vigente entre ser e ente.”12 É por este motivo, que Heidegger afirmou que a metafísica não foi superada pois vivemos ainda dentro do mesmo princípio que sustenta a metafísica ocidental desde os gregos: o princípio da diferença ontológica, que apesar de não ter sido discutido e percebido no decorrer da história da filosofia, estava nela presente em forma de latência. Para discutir e pensar a superação da metafísica é preciso retornar a questão do ser, questão fundamental da metafísica, a partir da reflexão sobre a diferença ontológica, não na perspectiva da entificação do ser ocorrido até o momento na história da metafísica, mas na perspectiva do sentido e destino do ser. A composição e a quadratura serão um dos conceitos utilizados aqui para pensarmos o sentido e destino do ser a partir do conceito de diferença ontológica através da reflexão sobre o que significa a dobra do ser e do ente. Como a metafísica ocidental pensa o ser a partir do ente, a composição e a quadratura também partem do ente como fundamento para tratar da questão do ser. A partir desta consideração, podemos dizer que a composição seria o modo de abordar o ser na metafísica moderna e a quadratura seria o modo de abordar o ser na metafísica contemporânea. Porém, apesar das diferenças de 8 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 36. 9 HEIDEGGER, A superação da metafísica, p. 66. 10 Idem. Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. 11 HEIDEGGER, A superação da metafísica, p. 61. 12 Ibidem, p. 62. 8 concepção entre esses conceitos, podemos afirmar que ambos participam de uma mesma unidade: a reciprocidade inerente ao ente e ao ser e a copertença entre o desencobrimento do ser e a mundanização do mundo como desdobramento da dobra de ser e ente. Nesse sentido, tanto a composição quanto a quadratura reúnem em si o desencobrimento do ente e o encobrimento do ser como reunião antecipadora que responde pela verdade do ser e pela mundanização do mundo. A composição reúne em si o asseguramento no ente e a experiência do ser, já a quadratura reúne em si céu e terra, mortais e imortais. A conjugação e a reunião dos quatro elementos (céu e terra, mortais e imortais), na quadratura, advém da correlação entre a essência dos quatro, apresentando uma estrutura quadrada que libera a mundanização do mundo. O modo que a conjugação tem de liberar a mundanização do mundo é antecipativo. A conjugação antecipadora, a quadratura, apresenta-se como um conjunto unificado, a partir da diferença dos quatro, capaz de produzir a realidade e instituir mundo. A realidade, dessa forma, pode ser vista como um produto da quadratura. A conjugação da realidade pela quadratura acontece porque os quatro elementos confiam sua essência um ao outro; dessa confiança decorre a entrega de essência entre os quatro, provocando a apropriação, de cada um deles, da essência do outro. Temos daí a apropriação da propriedade dos quatro por cada um em uma unidade de conjunto, ou seja, a quadratura. A reunião dos quatro nos mostra como a mundanização do mundo acontece a partir da unidade de diferenças. A quadratura, enquanto a reunião antecipadora que conjuga e produz a realidade, pode ser vista como a unidade que conserva e guarda em si a diferença entre terra e céu, mortais e imortais porque ao distanciá-los na proximidade de essências responde pelas diferenças que os singularizam, expondo assim a propriedade de cada um; e ao aproximá-los no distanciamento de essências provoca a proximidade dos quatro através da confiança que cada um deles tem na conjunção de essências que, como reserva, permite a guarda do ser e a mundanização do mundo. Na medida em que a quadratura concentra a proximidade e distanciamento dos quatro em uma unidade ela pode ser vista como o jogo de espelho do mundo. A seu modo, cada um dos quatro reflete e espelha de volta a vigência essencial dos outros. A seu modo, cada um reflete e espelha sua propriedade, dentro da simplicidade dos quatro. [...] Cada um dos quatro se deixa levar, dentro de sua apropriação, para o que lhe é 9 próprio. Esta apropriação apropriadora é o jogo de espelho e reflexo da quadratura.13 No jogo de espelho e reflexo da quadratura reside a mundanização do mundo, daí podermos dizer que o jogo de espelho da quadratura transfigura-se no jogo de espelho do mundo. Isto que responde pelo modo de ser da quadratura, a unidade dos quatro, Heidegger denomina de quarteto, no qual acontece a mundanização do mundo e o desdobramento da diferença ontológica. No quarteto, a diferença ontológica corresponde a dobra da essência de céu e terra, mortais e imortais como desdobramento da apropriação do reflexo de essências de cada um deles através do jogo de espelho do mundo que, por sua vez, se dá a partir do jogo de proximidade e distanciamento, jogo esse responsável pela efetivação da unidade das diferenças enquanto mundanização do mundo. O quarteto, na medida em que responde pelo modo de ser da quadratura enquanto jogo de espelho do mundo, provoca a amarração da essência dos quatro. A amarração efetivada pelo quarteto na quadratura, que condiz com a unidade da diferença entre ser e ente, decorre do jogo de proximidade e distanciamento da essência dos quatro. “Somente quando, presumivelmente de repente, mundo se mundaniza, como mundo, é que se aperta o nó de luta, onde o nó de terra e céu, mortais e imortais se conquista pela luta de sua unidade”14, ou seja, juntamente com a luta de aproximação e distanciamento do mundo, que corresponde a amarração do nó de terra e céu, mortais e imortais, encontramos a luta entre ser e ente inerente a diferença ontológica. Quer dizer, o nó que concentra e amarra os quatro em uma unidade essencial corresponde ao quarteto e a amarração que constitui o mundo corresponde a quadratura. Sob esse ponto de vista, o quarteto e a quadratura expõem o jogo de reflexo entre a essência dos quatro e concedem a mundanização do mundo mediante o espelhamento oriundo do jogo de proximidade e distanciamento entre as essências dos quatro. Nesta perspectiva, a proximidade e o distanciamento concernem a própria amarração do nó e possibilitam a mundanização do mundo e a guarda do ser como reserva. 4. Nesse momento, temos fundamentos teóricos suficientes para responder a pergunta antes colocada: como podemos aproximar a composição e a quadratura enquanto reunião antecipadora e produtora da realidade? Para pensarmos tal aproximação faz-se 13 14 HEIDEGGER, M. A coisa. In: Ensaios e conferencias, p. 157. Ibidem, p. 159. 10 necessário que retomemos alguns conceitos anteriormente tratados, como por exemplo, o de superação da metafísica e evidentemente os de composição e quadratura. A nossa linha argumentativa, para mostrar a copertença presente na composição e na quadratura enquanto reunião antecipadora e produtora da realidade, fundamenta-se no pressuposto de que tanto a composição quanto a quadratura exprimem, cada uma a seu modo, a diferença ontológica ao mesmo tempo em que indicam a possibilidade de superação do princípio da metafísica ocidental. Enquanto possibilidade de superação, a composição e a quadratura podem contribuir para pensar a instituição de um novo princípio para a metafísica ocidental e enquanto tal podemos dizer que eles contribuem para pensar o início do acabamento da metafísica. Como? Na medida em que ambos se mostram como o horizonte de abertura, no qual o ente aparece como reserva do ser. Aí a metafísica não se apresentaria mais como esquecimento do ser e sim como sentido e guarda do ser. Pensar “ser” significa: co-responder ao apelo de seu vigor. [...] Ao apelo do ser pertence o ter-sido já desvelado (alétheia, lógos, phýsis) bem como o advento velado daquilo que se anuncia, na virada do esquecimento do ser (na verdade de seu vigor). [...] A possibilidade de errância é, num pensamento assim, imensa. [...] Tudo repousa no passo atrás, ele mesmo muito errante, em direção ao pensamento, que cuida da virada do esquecimento do ser, a qual se prenuncia no destino de ser. O passo atrás, que se dá a partir do pensamento representador da metafísica, não rejeita esse pensamento, mas entreabre a distância, que dá lugar ao apelo da verdade do ser, na qual se coloca e acontece o co-responder.15 A reunião antecipadora pode ainda aproximar o modo de ser da composição e da quadratura porque enquanto ela é horizonte de abertura para a mundanização do mundo, ela responde pela verdade e vigor do ser enquanto destino do ser e não como esquecimento do ser. Podemos ver, claramente, esse movimento na composição, pois ela reúne em si tanto o asseguramento no ente, ou seja, o esquecimento do ser quanto a experiência do ser, isto é, o destino do ser. “Denominamos de destino a força de reunião encaminhadora, que põe o homem a caminho de um desencobrimento”16, de uma verdade. Como na composição o homem corre o perigo de manter-se numa única forma de verdade do ser, a do esquecimento do ser, ela apresenta-se como a expressão mais concreta da metafísica moderna e expressa a completude da metafísica ocidental. Mas ao passo que da composição podemos também fazer a experiência do ser, o homem 15 16 Ibidem, p. 161 a 163. HEIDEGGER, A questão da técnica, p. 27. 11 pode manter-se junto ao destino do ser, junto a “reunião encaminhadora que põe o homem a caminho” do desdobramento do sentido do ser e a caminho de “pensar o ser como correspondência de seu vigor.” No primeiro modo de desencobrimento da composição encontra-se o pensamento calculador, metódico e representativo e, no segundo, o pensamento meditativo que consiste na virada do pensamento do esquecimento do ser para o destino do ser. O segundo modo de desencobrimento da composição advém do primeiro, quer dizer, o pensamento meditativo, que “prenuncia o destino do ser” advém do “pensamento representador da metafísica”, assim ao passo em que o pensamento meditativo aproxima-se do pensamento representativo para pensar a verdade do ser, ele se distancia e entreabre um horizonte de abertura, no qual acontece o apelo do vigor do ser como correspondência do destino do ser. O primeiro modo de desencobrimento da composição mostra a forma mais completa e absoluta da metafísica ocidental enquanto o segundo modo aponta para o início da superação da metafísica, para “a trans-missão da metafísica em sua verdade”17, que não coincide com o fim da metafísica mas com a inauguração de um outro modo de pensar o princípio da metafísica ocidental. Dessa forma, a composição é a reunião antecipadora que guarda o ser em sua reserva e enquanto tal pode ser considerada como um pensamento inaugural em relação ao acabamento e completude da metafísica ocidental. É nessa perspectiva, que a composição e a quadratura copertencem enquanto reunião antecipadora que promove a mundanização do mundo, pois a quadratura, enquanto reúne no jogo de espelho do mundo o reflexo da essência de terra e céu, mortais e imortais, é um modo de desencobrimento do ser que guarda e reserva o destino da verdade do ser. A quadratura assim como a composição põe o homem a caminho da superação da metafísica, visto que aponta para pensar a diferença ontológica enquanto dobra do ser e, portanto, pensam o apelo e vigor do ser, que caracterizam o pensamento meditativo. A dobra do ser é a dobra do ser e do ente. “A dobra se mostra, pelo menos, nas expressões “ser dos entes” e “sendo no ser”. Só que com o “no” e o “dos” o que se desdobra fica, em seu vigor de essência, mais escondido do que explicitado”18, porque o que se desdobra é o ser. Como a metafísica ocidental está marcada pelo esquecimento do ser, podemos dizer que o que foi esquecido foi a própria dobra, transmitida na história da metafísica como entificação do ser. A dificuldade em tratar da dobra do ser 17 18 Idem, A superação da metafísica, p. 68. Idem, Moira. In: Ensaios e Conferências, p. 213. 12 está no limite da nossa forma de compreender e expressar o ser, visto que somente podemos falar da dobra do ser a partir das expressões “ser dos entes” e “sendo no ser”, as quais não nos esclarecem exatamente onde a dobra acontece ou em que consiste tal dobra, pois a maneira que temos de falar da dobra é a partir do ente, do “sendo no ser” e do ser enquanto “ser dos entes”. Podemos dizer então que as expressões “no” e “dos” correspondem a dobra do ser, aquilo que desdobra como destino do ser. O desdobramento da dobra contido nas expressões “no” e “dos” convergem então para a verdade do ser. A verdade “como o desdobramento da dobra no sentido de descobrir [...], como o descobrir da dobra”19 responde pela experiência do ser, modo de desencobrimento da composição e pelo jogo de espelho do mundo, modo de desencobrimento da quadratura. Enquanto dobra do ser, a composição e a quadratura reúnem, antecipadamente, a guarda e a reserva do ser, o desencobrimento e o encobrimento do destino do ser. Porém vale ressaltar que “fora da dobra não há jamais qualquer vigência de coisas vigentes, pois vigência como tal reside na dobra”20, reside no ser, visto que “somente o ser ‘é’; é somente no ser e como ser que advém isso que nomeamos o ‘é’.”21 Isto significa que fora do ser nada é, por isso quando afirmamos que alguma coisa é, referimos-nos ao seu ser, ou seja, ao “sendo no ser”. Percebemos explicitamente aqui o limite de nossa forma de compreender e expressar a dobra: tudo o que é, é ser e, no entanto, cotidianamente, nomeamos tudo isto que é como ente, como o “ser dos entes”. Eis aí a ambigüidade e a dificuldade presente na dobra do ser, na diferença ontológica. Ambigüidade porque não conseguimos compreender e expressar ser senão “no” ente e dificuldade porque quando nos referimos aos entes é como ser “dos” entes. É possível pensar na dobra do ser sem referir-nos a essa ambigüidade? 5. Podemos pensar a dobra “no sentido de reunir e recolher, numa unidade, as diferenças”22, enquanto um responder e dever que reúne, antecipadamente, as diferenças na unidade, ou seja, que reúne céu e terra, mortais e imortais (quadratura), asseguramento no ente e experiência do ser (composição) como modo de desencobrimento e, portanto, de verdade do ser. Segundo Heidegger, podemos pensar a dobra do ser como responder e dever a partir das quatro causas estabelecidas por 19 Ibidem, p. 221. Ibidem, p. 221. 21 Cf. nota 3. 22 HEIDEGGER, A coisa, p. 155. 20 13 Aristóteles na Metafísica. As quatro causas corresponderiam assim aos quatro modos de responder e dever, que por sua vez correspondem à mesma dinâmica que jogam as essências de céu e terra, mortais e imortais. Sendo assim, esses quatro modos são distintos entre si, apesar da copertença de essências entre eles, quer dizer, apesar de um refletir a essência do outro em uma unidade de ser ao mesmo tempo em que guardam sua própria essência a partir do espelhamento do reflexo em si da essência do outro. Ora, se os quatro modos de responder e dever correspondem a dinâmica da quadratura então eles também podem ser considerados como uma reunião antecipadora assim como a composição e a quadratura e enquanto tal respondem pela mundanização do mundo e desencobrimento do ser. Enumeramos aqui três modos de reunião antecipadora: a composição, a quadratura e os quatro modos de responder e dever. Como se articulam esses quatro modos? Os quatro modos são a matéria que responde por aquilo que sustenta uma coisa, e assim a coisa deve à matéria a sustentação de seu ser coisa. O segundo modo é a forma, que responde pelo fato de a coisa ser de um modo e não de outro e, portanto a coisa deve à forma o fato de ela ser em um determinado modo que a distingue das demais coisas. O terceiro modo é o fim, que responde pela plenitude da coisa, ou seja, a coisa deve a esse modo de responder a prontidão de seu ser, é nele que a matéria e a forma articulam o jogo de responder e dever e que a coisa vem a ser o que ela é. Nesse sentido, o fim é a articulação que antecipa os modos de ser de uma coisa. O quarto modo de responder e dever corresponde à causa motora, que nesse jogo de essências responde pela reunião dos outros modos de ser da coisa; assim a coisa deve a esse modo a reunião dos outros três em uma unidade de essência. Dessa maneira, os quatro modos de responder e dever, que são distintos entre si, copertencem em uma unidade de essências, na qual um modo reflete e acolhe em si a essência do outro, expondo a coisa naquilo que ela é, realizando a mundanização do mundo, ou seja, o desencobrimento ou a verdade do ser. Podemos afirmar então que os quatro modos de responder e dever, enquanto reunião antecipadora, deixa que o ente apareça em sua verdade. “No sentido deste deixar, responder e dever são um deixar-viger. [...] Estes modos soltam algo numa vigência e assim deixam viger, a saber, em seu pleno advento.”23 23 Idem, A questão da técnica, p. 15. 14 Esse pleno advento da coisa em sua vigência, que reúne antecipadamente os quatro modos de responder e dever, de deixar-viger, Heidegger nomeia de verdade, no sentido de desencobrimento, vigência e produção. É importante notar aqui que em sua conferência Moira, ele correlacionou a verdade ao descobrir da dobra. Donde podemos dizer que o desencobrimento: a verdade, a vigência do vigente, acontece na própria dobra, pois como já afirmamos nada é fora da dobra. Verdade e dobra se copertencem na medida em que ambas consistem na vigência disto que é, e nesta perspectiva, elas dizem o ser do vigente. “Ser significa: o vigorar do vigente, dobra. [...] É como localidade que a dobra acolhe o vigorar do vigente.”24 É como destino, como reunião antecipadora, que a dobra do ser acolhe a verdade do ente. Reunião antecipadora (composição, quadratura e os quatro modos de responder e dever) diz o mesmo que produção, verdade, destino e desdobramento da dobra do ser. Sendo assim produção é verdade na perspectiva de desencobrimento do ser e vigorar do vigente. A produção, como verdade do ser e vigência do ente, concerne tanto à produção no sentido de fabricar, modo próprio da composição enquanto estrutura essencial da técnica moderna e expressão do esquecimento do ser, quanto em virtude da doação e do destino do ser, quer dizer, em virtude da experiência do ser, modo próprio da composição enquanto essência da técnica moderna. Dessa forma, o produzir como fabricação corresponde ao produzir como asseguramento no ente ou esquecimento do ser e o produzir como experiência do ser corresponde ao produzir como criação, porque na criação a mundanização do mundo acontece como apropriação e apresentação da verdade do ser como desvelamento, ao passo que na fabricação a mundanização do mundo acontece como expropriação e representação da verdade do ser como certeza e valor. Por que concluímos que a essência da técnica moderna é o produzir como criação e não como fabricação? Porque no produzir como fabricação a mundanização do mundo é encomendada e determinada, antecipadamente, pelos procedimentos racionais que estruturam a técnica moderna, provocando o asseguramento no ente e a entificação do ser. Já no produzir como criação a mundanização do mundo está atrelada à experiência do ser, ou seja, ao destino e doação do ser como acontecimento do mundo e apropriação do ser. O produzir como criação pode ainda ser considerado como essência da técnica moderna, como experiência do ser, porque a criação antecede o produzir como fabricação, visto que para se aplicar procedimentos racionais antes faz-se necessário 24 Idem, Moira, p. 223, 225. 15 criá-los, somente então eles podem orientar e controlar o modo de acontecimento do mundo. Por isso, a composição, enquanto essência da técnica moderna, consiste no produzir como criação, como experiência do ser, o qual descobre a dobra do ser e desvela a mundanização do mundo, retirando o homem do asseguramento no ente, modo de produzir como fabricação, o qual estrutura e funda a técnica moderna ao mesmo tempo em que encobre a dobra do ser. Em que medida a composição, reunião antecipadora da técnica moderna, pode refletir-se no jogo especular do mundo, reunião antecipadora da quadratura? 6. O que a composição reflete no jogo especular da quadratura é a sua essência, isto é, a experiência do ser, que pode ser vista como desdobramento da dobra, ou seja, como criação e mundanizar do mundo. O reflexo provocado pela composição no jogo de espelho do mundo expõe a reunião de essências que acontece na composição, na quadratura e no deixar-viger como responder e dever, reunião essa que expõe a verdade do ser e a mundanização do mundo. Tal reunião, por sua vez, somente pode se tornar vigente como essência da linguagem, visto que à linguagem também pertence o produzir criativo e ainda porque o produzir criativo da linguagem permite nomear o vigorar do ser e a vigência do ente, isto significa que a linguagem espelha e reflete a verdade do ser. Dessa forma, a reunião antecipadora carece e exige a copertinência com a essência da linguagem. A reunião antecipadora, enquanto o jogo de essências travado entre as essências da composição, da quadratura e dos quatro modos de responder e dever, reflete e espelha a copertinência entre ser e linguagem, que acontece da seguinte maneira: a reunião antecipadora reflete e guarda em si a essência da linguagem, qual seja, o produzir criativo. Portanto, é na interseção dos reflexos de essências que a mundanização do mundo acontece. O produzir criativo da reunião antecipadora pode ser visto como copertencente com o produzir criativo da linguagem porque ambos dependem da experiência do ser para deixar viger a verdade e o desdobramento da dobra do ser e assim produzir o acontecimento do mundo enquanto doação do ser. A reunião antecipadora sem a criação seria apenas o asseguramento no ente e a linguagem sem a criação seria apenas metalinguagem. Por este motivo, tanto uma como outra espelham a criação e a conservam como reserva de acontecimentos. 16 Por um lado, podemos afirmar que o acontecimento da verdade está marcado pela reserva do ser e duração do ente e, por outro, que tal acontecimento se mostra através da reunião antecipadora inerente à composição, ao jogo especular do mundo e ao jogo de responder e dever, copertencentes ao produzir como criação. Podemos então dizer que a mundanização do mundo conserva em si o traço da criação, qual seja, colocar em jogo a experiência do ser. O que nos permite pensar a criação como um jogo da experiência do ser consiste no fato de que no momento da criação um modo de ser é apropriado e uma realidade é edificada. Como experiência do ser a criação retém a verdade e o descobrimento da dobra do ser, a vigência do vigente e a duração do ente em sua verdade. A criação enquanto espelhamento da experiência do ser é o fundamento que reúne o ente em seu ser e mantém-se como reserva no íntimo de cada ente desvelado. O que mantém a força instauradora da experiência do ser no jogo da reunião antecipadora é a criação e o que assegura o ente em sua verdade é a duração; donde podemos inferir que a criação permanece presente na duração e reciprocamente. O elo que ata criação e duração no jogo de essências da reunião antecipadora com o asseguramento no ente e a vigência do vigente é a experiência do ser enquanto dobra do ser. O que é refletido no jogo de essências da reunião antecipadora é a experiência do ser enquanto criação e fundamento da mundanização do mundo. É nesse sentido que a essência da linguagem pode ser considerada o reflexo da essência da reunião antecipadora, ambas participam de uma relação de intimidade no que diz respeito a criação e a experiência do ser. A intimidade de essência da reunião antecipadora e da linguagem ressalta a unidade originária do desdobramento da dobra do ser e do ente. A intimidade da criação como intimidade de essência da verdade do ser inaugura a mundanização do mundo e o advento do ente em sua vigência. “A intimidade essencializa-se como mistério. Mistério é apenas onde a intimidade reina. (...) A intimidade mesma é o ser.” 25 A intimidade é a própria dobra, fora da qual nada é e nenhuma vigência vige. A intimidade diz o ser como reserva, ou seja, a criação é a essência oculta do jogo da experiência do ser, no qual acontece o desdobramento da dobra do ser e o redobramento da dobra do ente. A intimidade diz, portanto, o jogo de apropriação do ser e do ente e a duração do ente em seu ser, enquanto redobramento da dobra, no jogo de experiência do ser. A apropriação e a duração fundamentam-se na 25 HEIDEGGER, Hölderlins Hymnen “Germanien” und “Der Rhein”, p. 251, 256. 17 intimidade de essência do jogo de experiência do ser. A intimidade marca a essência da reunião antecipadora como reflexo da essência da linguagem no desdobramento da dobra do ser, do descobrimento da verdade do ser. A intimidade que reina como essência no jogo de experiência do ser é o incontornável do desdobramento da dobra, quer dizer, é a própria dobra. Assim a copertinência de essências entre a linguagem e a reunião antecipadora reflete o incontornável, o desdobrável – a dobra - no jogo de experiência do ser. Como criação é a essência oculta do jogo da experiência do ser então podemos considerá-la como o incontornável, a dobra mesma, que enquanto tal não se desdobra, ao contrário se redobra, porque enquanto ela está em processo ela ainda não inaugurou nenhuma realidade e na medida em que institui uma realidade o processo de criação já se deu e o que se tem é a duração do que foi criado, ou seja, o asseguramento no ente. A criação como o incontornável da dobra é a situação latente que sustenta o jogo de experiência do ser produtor do acontecimento da verdade e da mundanização do mundo. Sophia: Mito e arte. Volume X, números 13 e 14. Vitória: Editora da UFES, 2005, p. 55-76.