1 A TENSÃO CONSTITUTIVA AO DIREITO DEMOCRÁTICO ENTRE IGUALDADE E LIBERDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: O VOTO DO MINISTRO CARLOS BRITTO NO HC 82.424/RS José Emílio Medauar Ommati* Neste artigo, pretendo analisar o voto do Ministro Carlos Britto, nos autos do HC 82.424/RS, em que o referido julgador concedeu o habeas corpus requerido pelo paciente, Siegfried Ellwanger, por entender que, no caso, o paciente não houvera cometido qualquer crime, albergado que estava pelo direito de liberdade de expressão. Mas, antes, gostaria de agradecer e, ao mesmo tempo, dedicar esse artigo a algumas pessoas. Esse artigo é, inicialmente, para minha mãe, Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati, e para meus irmãos, Larissa Veloso Mendes Ommati e Ricardo Emílio Veloso Mendes Medauar Ommati. Aos meus amigos da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina, que discutiram comigo muitas passagens desse texto: Adalberto Antonio Batista Arcelo, Ewerton Belico de Souza, Herman Nébias Barreto e Rodrigo Prado Mudesto. Ao professor Menelick de Carvalho Netto, pela firme e segura orientação, tanto no Mestrado quanto no Doutorado, pela paciência e amizade. Ao professor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, pela abertura para o diálogo e pela amizade. Por fim, mas o mais importante, esse trabalho é para Sarah, pela paciência, apoio e estímulo. Pois bem. Esse artigo pretende discutir, a partir do voto do Ministro Carlos Britto, a relação interna e sempre tensa entre igualdade e liberdade em um ordenamento democrático, * Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina; Membro Consultivo da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB; Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. 2 retomando, em grande parte, as análises já por mim realizadas em trabalho anterior1. Para isso, o fio condutor será as análises de Ronald Dworkin sobre a liberdade de expressão, enquanto decorrência do princípio da liberdade, e sua relação com o princípio da igualdade. Para entendermos a proposta de Ronald Dworkin, necessário será, mesmo que rapidamente, retomarmos a análise que o autor americano realiza do ordenamento jurídico. Ora, se é verdade que podemos encontrar uma teoria jurídica, outra política e outra ética ou sobre a justiça nos escritos de Ronald Dworkin, também é verdade que essas teorias se entrelaçam na obra do referido autor, em um intuito holístico. Não é por outro motivo que Dworkin se denomina um filósofo ouriço, ou seja, que tenta unificar diversas perspectivas em uma teoria compreensiva da comunidade democrática.2 Esse texto está dividido em duas partes. Na primeira parte, apresento o voto do Ministro Carlos Britto. A seguir, na segunda e última parte, critico o voto do Ministro Carlos Britto a partir das reflexões de Ronald Dworkin sobre os princípios da igualdade e liberdade em um ordenamento democrático, demonstrando todo o problema do citado voto, que não tratou os judeus com a mesma consideração e respeito, já que não considerou que o paciente do habeas corpus explícita e publicamente revelou-se intolerante para com o diferente, ferindo, dessa forma, os princípios da igualdade e liberdade, inegociáveis em um Estado Democrático de Direito. Ainda na parte final, uma breve discussão sobre o conceito de ciência do Ministro Carlos Britto será apresentada, com o intuito de deixar mais claro o equívoco de seu posicionamento. 1. A IGUALDADE E A LIBERDADE EM TENSÃO: O VOTO DO MINISTRO CARLOS BRITTO Após fazer um breve retrospecto da causa3, o Ministro Carlos Britto inicia seu voto afirmando que o cerne da questão diz respeito à contraposição de princípios jurídicos. Para o Ministro, seja qual for o ângulo jurídico de análise da questão de fato, o decididor se vê na insólita dificuldade de aplicar certos comandos jurídico-positivos em concreto estado de tensão, 1 Trata-se da minha defesa de Mestrado, que foi publicada pela Editora Sérgio Antônio Fabris, intitulada A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito, em que, a partir de Ronald Dworkin, discuti qual o possível sentido do princípio da igualdade em um ordenamento democrático. 2 Para maiores detalhes, vide: PÉREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofía para Erizos: Una Aproximación al Pensamiento de Ronald Dworkin. IN: DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 26, Alicante, 2003, p. 5 a 93. 3 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit., p. 134 a 137. 3 pressionando, cada um deles, por uma exclusiva ocupação de espaço. E o que é mais trabalhoso e delicado é que se trata de comandos expressionais daqueles princípios que, de tão excelsos, a Constituição incluiu nos próprios fundamentos da República Federativa do Brasil(como desenganadamente são os protoprincípios da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa e do pluralismo político). E perpassantes, além do mais, do preâmbulo e dos objetivos fundamentais da mesma Federação Republicana.4 Mostra o Ministro, em seu voto, as dificuldades metodológicas de se trabalhar com os princípios, para, em suas palavras, “[...] demarcar o campo da lídima expressão de cada princípio em estado potencial de atrito, a fim de evitar o concreto sacrifício de um deles.”5 Assim, o Ministro, na esteira dos votos anteriores, utilizará o princípio da proporcionalidade, tratando o Direito e a Constituição como uma ordem concreta de valores, para tomar uma decisão. Para atingir seu objetivo, o Ministro Carlos Britto mostrará que o crime de racismo decorre diretamente da Constituição de 1988 e que o termo “prática” é utilizado pela Constituição em seu sentido coloquial. Assim, conclui pela possibilidade de que a edição de livros e publicação de livros próprios possam configurar prática de racismo, pois o substantivo “prática” pode ser considerado tanto como realização de condutas concretas como abstratas.6 Uma diferença interessante entre o voto do Ministro Carlos Britto e dos seus colegas de Tribunal foi o fato de que o Ministro citado buscou ler tanto as obras do paciente, Siegfried Ellwanger, quanto dos autores que o mesmo publicou, no intuito de, segundo ele, verificar se as mesmas tinham uma feição racista ou não. Mas, como mostrarei, parece que o Ministro não conseguiu entender as obras que leu, já que não visualizou o caráter racista, discriminatório, das obras, tanto do paciente quanto dos outros autores publicados pelo mesmo. Assim, depois de realizar profundas discussões sobre o sentido dos termos racismo, prática, uso e abuso da liberdade de expressão, preconceito e discriminação7, o Ministro Carlos Britto passa a discutir o concreto agir do condenado, então paciente. Assim, afirma o Ministro: 4 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit., p. 137. Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit., p. 138. 6 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit., p. 142 a 143. 7 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit. p. 144 a 155. 5 4 Numa síntese, o estudo em causa pretende-se multifário o bastante para transitar pelos concomitantes domínios da liberdade de manifestação do pensamento e da produção intelectual, científica e de comunicação, afunilando para o campo da convicção política. Ou da convicção político-ideológica, mais exatamente. Logo, 8 estudo situado no campo do livre debate das idéias. Diz o Ministro Carlos Britto que realizou cuidadosa e penosa leitura do livro do paciente, tanto na primeira quanto na última edição. Para ele, o estilo do autor é pouco atraente, e a distribuição dos temas é um pouco baralhada, tentando produzir uma obra objetivamente convincente. Esforçou-se por transitar no puro domínio das idéias e se valeu de farto material de pesquisa: livros, revistas, jornais, filmes, documentários, entrevistas, fotos, mapas, etc., com indicação das respectivas fontes. Tudo isso para mostrar que o paciente tentou realizar um trabalho de cunho científico, amparado, portanto, pela liberdade de expressão e de manifestação de pensamento. Mais uma vez, as palavras do Ministro do STF, Carlos Aires Britto, merecem ser transcritas: Uma coisa é não gostar ou até mesmo discordar do que se leu(como, de fato, não gostei e ainda discordei, em boa parte). Outra, bem ao contrário, é desqualificar a obra quanto à perspectiva revisionista do seu objeto e quanto à consistência da metodologia empregada na sua elaboração(caso dos autos). É que os episódios e personalidades que marcaram a Segunda Grande Guerra comportam mais de uma explicação e toda pessoa é livre para se posicionar nessa ou naquela direção. A menos que, a pretexto de escrever um livro, em realidade passe a trilhar os aleivosos caminhos do panfleto, da ridicularia ou da pasquinada(sem nenhuma alusão ao criativo e bem humorado jornal brasileiro “O Pasquim”). Do achincalhe e da prestidigitação intelectual. Que não é – convictamente afirmo – o caso da obra que li e reli com o máximo de atenção que me foi possível.9 É claro que, como afirma Aires Britto, o paciente apresenta um determinado viés ideológico, através de suas obras, mas está protegido pela Constituição de 1988 o direito a defender as mais diversas ideologias. Assim, na própria defesa do paciente na 1ª instância há a afirmação que o intuito do mesmo é o de realizar a revisão histórica, nunca o de praticar ou induzir a prática do racismo. Pretende realizar um debate intelectual. 10 Também, como demonstra o Ministro do STF em seu voto, o escritor-paciente demonstra uma simpatia pelo 8 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit. p. 157. Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit. p. 157. 10 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit. p. 158 a 159. 9 5 Estado e povo alemães, chegando, até mesmo, a demonstrar simpatia por Adolf Hitler, mas não fala de superioridade de uma raça ou qualquer outra coisa. Na lógica do paciente, quem sofreu o Holocausto foi o povo alemão!!!11 Para Siegfried Elwanger, são os judeus que se colocam como superiores e não o contrário. Mais uma vez, na lógica do paciente, a postura do Sionismo acaba sendo prejudicial aos próprios judeus, porque desperta contra esse povo um sentimento de aversão. Por fim, o Ministro Carlos Britto passa a analisar as outras obras editadas por Siegfried Ellwanger. São os livros de Louis Marschalko, Henry Ford e Gustavo Barroso. De acordo com Carlos Britto, também esses livros pretendem re-estudar a História. Assim, também protegidos pela liberdade de expressão. Por força de tudo isso, o Ministro Carlos Britto concluiu seu voto no sentido de conceder a medida pleiteada, pois não visualizara qualquer prática de racismo. A seguir, mostrarei que também o voto do Ministro Carlos Britto é inadequado ao marco do paradigma do Estado Democrático de Direito ao não considerar a própria reconstrução dos fatos realizada pelas partes, quando o próprio paciente do habeas corpus afirma no processo que houvera discriminado, mas que não cometera crime de racismo. Mostrarei também que a perspectiva do Ministro Carlos Britto é inadequada tanto quando consideramos o moderno conceito de ciência quanto no que se refere aos princípios da igualdade e liberdade. 2. CRÍTICAS AO VOTO DO MINISTRO CARLOS BRITO: O DIREITO COMO INTEGRIDADE E OS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E LIBERDADE NA TEORIA DE RONALD DWORKIN Na parte final deste trabalho, pretendo, inicialmente, mostrar que a intuição de Maria de Lourdes Santos Perez12 no sentido de que a filosofia de Ronald Dworkin só pode ser corretamente entendida se articularmos a parte jurídica com a parte política e a parte ética ou de teoria da justiça, revela-se correta. Para isso, iniciarei tratando da teoria jurídica de Ronald Dworkin para, a seguir, apresentar as teorias política e da justiça do autor. Na parte final do trabalho, pretendo mostrar que, apesar do acerto da posição majoritária do STF, ao condenar o 11 12 Ministro CARLOS BRITTO, nos autos do HC 82.424/RS, op.cit. p. 159. PEREZ, Maria de Lourdes Santos. Op.cit., p. 7. 6 paciente do habeas corpus por crime de racismo, e o desacerto dos votos minoritários que o inocentavam, essa posição majoritária do STF é problemática, já que não considera o caráter deontológico do Direito, tornando a decisão jurídica uma questão de mero gosto, preferência pessoal. Ou, para dizermos com Ronald Dworkin, a decisão do STF não busca dar integridade ao Direito. Pois bem. Podemos dizer sem medo de errar que toda a produção teórica de Ronald Dworkin concentra-se na defesa da tese de que o aplicador do Direito não possui discricionariedade judicial, ao contrário do que pensam os autores positivistas. Em sua discussão com H.L.A. Hart, um positivista importante do direito anglo-saxão, Ronald Dworkin demonstrará que quando o juiz decide um caso aparentemente fora das regras jurídicas existentes no Direito, não significa dizer que ele está usando de discricionariedade permitida pelo Direito. O aplicador está usando outro padrão de comportamento, que Dworkin denomina de princípios. Assim, ao contrário do que pensa Hart, Dworkin, a partir de vários casos concretos, demonstra que o Direito é formado não apenas por regras, mas também por princípios.13 Neste ponto, já temos uma primeira incompreensão do pensamento do jurista norteamericano. Ao falar que o Direito é composto por regras e princípios e ao estabelecer as distinções entre essas duas categorias de normas14, Dworkin não estabelece um esquema rígido e semântico de diferenciação entre essas categorias. Ao contrário. Para Dworkin, a diferença entre as duas espécies normativas somente pode ser visualizada no caso concreto. Assim, uma regra pode funcionar como princípio e um princípio pode funcionar como regra, dependendo da situação. A distinção não é sintática ou semântica, ou seja, não se apresenta na estrutura da norma, mas sim no seu uso. Aqui já percebemos uma primeira aproximação com o pensamento de Wittgenstein, quando afirma que o sentido das palavras é dado pelo contexto, pelo uso, depende dos jogos de linguagem envolvidos. Da mesma forma, o que vai mostrar se uma norma é regra ou princípio será a situação concreta, o uso que o caso exige que se faça dos textos normativos para a produção da decisão correta, única, porque irrepetível. É por isso que Dworkin afirma que não existem casos fáceis e difíceis, como afirmava Hart, mas todo caso pode se transformar em um 13 Nesse sentido, vide: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 23 a 72. 14 Assim, regras contrárias são eliminadas, porque sua lógica é do tudo ou nada; enquanto princípios em colisão devem ser harmonizados na esfera do peso. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit., p. 23 a 72. 7 caso difícil, se for utilizado um princípio não pensado até então para a possível solução da situação. Isso porque, para Dworkin, só existe uma única decisão correta no Direito, no sentido de mais adequada, mais justa para regular as pretensões dos envolvidos no processo. E essa única decisão correta só pode ser encontrada se o juiz mergulhar no contexto fático, nos argumentos das partes, com seus preconceitos e pré-concepções, tentando olhar todos os lados com igual respeito e consideração. Esse juiz só poderá assim agir, segundo Dworkin, se possuir o conhecimento de todo o Direito, não só atual, mas também a história institucional do Direito, paciência e conhecimento sobre-humanos. Como esse juiz não existe na prática, Dworkin vai denominar seu juiz de Hércules. Mais uma vez, é óbvio que Dworkin “brinca” com seus leitores e com os intérpretes. É claro que, como afirma Maria de Lourdes Santos Perez, a teoria de Dworkin aqui descansa em fortes pressuposições idealizantes. Mas, elas não são aleatórias. Elas estão baseadas em algumas pressuposições normativas em que descansa a atividade jurisdicional: a necessidade de fundamentação das decisões com base no direito vigente e o pressuposto de que o juiz conhece todo o direito.15 Assim, ao contrário do que dizem alguns críticos, o juiz de Dworkin não é um ser imaginário e nem é um sujeito solipsista. O intérprete, principalmente o juiz, deve fazer prevalecer o ideal de integridade do Direito. Ora, como já afirmado, o juiz Hércules deve conhecer toda a história institucional do Direito, ou seja, o que ele foi, o que ele é, e o que ele deve ser. Isso se justifica pelo fato de que, para Dworkin, o Direito não é apenas uma questão de fato, mas é principalmente uma questão interpretativa. Dessa forma, quando as pessoas divergem sobre o sentido do Direito, normalmente não estão divergindo sobre os fatos, mas sobre o que o Direito deve ser. Em outras palavras, o conceito de Direito é eminentemente interpretativo.16 O que seria esse ideal de integridade do Direito? Basicamente, a idéia de que o Direito é um projeto político para uma determinada comunidade que se vê como uma associação de homens livres e iguais.17 E mais: que o ideal do Direito como integridade exige dos juízes e dos 15 PEREZ, Maria de Lourdes Santos. Op.cit., p. 19 a 20. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 3 a 54. 17 É nesse sentido que Dworkin comparará a democracia como uma parceria entre pessoas livres e iguais, em que, apesar das diferenças, todos devem se respeitar mutuamente para a concreção de um objetivo comum. Assim: DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Buenos Aires, Isla de la Luna, 2003; DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Barcelona, Paidós, 2003. 16 8 aplicadores que haja uma coerência entre as decisões passadas e as decisões presentes, a partir dos princípios da igualdade e liberdade, como se os juízes prosseguissem uma obra coletiva. É uma interpretação em cadeia, tal como um romance escrito em várias mãos. Como diz Dworkin: Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então.[...] Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.18 Esse é o ideal da integridade na jurisdição. No entanto, existe ainda a integridade na legislação que significa que aqueles que criam a lei devem mantê-la coerente com seus princípios como se a lei tivesse sido feita por uma única pessoa: a comunidade corporificada.19 Em outras palavras: A integridade a que se refere Dworkin significa sobretudo uma atitude interpretativa do Direito que busca integrar cada decisão em um sistema coerente que atente para a legislação e para os precedentes jurisprudenciais sobre o tema, procurando discernir um princípio que os haja norteado. Ao contrário da hermenêutica tradicional, baseada fortemente no método subsuntivo, numa aplicação mecânica das regras legais identificadas pelo juiz ao caso concreto, o modelo construtivo de Dworkin propõe a inserção dos princípios, ao lado das regras, como fonte do Direito.20 Ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade no Direito não significa simplesmente uma mera repetição do Direito anterior pelos juízes atuais, pois para Dworkin, o direito como integridade começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, isso sim, justificar 18 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 238. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 121. 20 BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade Democrática e Instrumentos de Realização. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 85. 19 9 o que eles fizeram em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual poder ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que “lei é lei”, bem como o cinismo do novo “realismo”.21 Ou, para lembrarmos de Gadamer, essa prática interpretativa do Direito proposta por Dworkin faz aproximar o historiador e o jurista, na medida em que o sentido atual do texto deve ser contextualizado a partir da história, não como mera repetição do passado, mas no sentido de atualização do texto jurídico, enquanto fusão de horizontes de sentido entre o texto originário e o intérprete atual. Também ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade não significa simplesmente coerência, enquanto decidir casos semelhantes da mesma maneira. A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e eqüidade na correta proporção. Dessa forma, uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastarse da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo.22 E que princípios seriam esses? Dworkin ora os nomeia em três(justiça, certeza do Direito e devido processo)23, ora em simplesmente em dois(igualdade e liberdade)24, mas o certo é que, para o autor o Direito, através desses princípios, deve realizar um projeto político, com base em um determinado modelo de sociedade. Aqui, algumas palavras devem ser ditas sobre a tradução brasileira da obra de Dworkin. Quando o autor americano faz referência à integridade e fala dos princípios de justiça, certeza do Direito(que também pode ser entendido como respeito às regras do jogo) e devido processo, o autor, para falar da certeza do Direito utiliza o termo em inglês fairness. A tradução brasileira desse termo entendeu fairness como eqüidade, o que é equivocado. De fato, o termo é 21 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 274. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 263 a 264. 23 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit., p. 36. 24 DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit. 22 10 de difícil tradução. Fairness pode significar várias coisas: correção, equanimidade, justeza. Esses significados são, digamos assim, mais rebuscados. Mas, em um sentido mais pobre, e entendo que esse é o utilizado por Dworkin, significa também certeza, no caso, do Direito, ou respeito às regras do jogo. Por que afirmo que Dworkin utiliza esse sentido mais pobre para fairness? Exatamente porque quando o autor americano vai explicar o ideal de integridade no Direito, afirma que esse ideal só é possível se a justiça for realizada caso a caso. E ela só é realizada caso a caso se for respeitado o devido processo e se as partes trabalharem com a idéia de certeza do Direito que significa que as regras do jogo serão cumpridas e seguidas. É nesse sentido que podemos manter a história institucional de uma comunidade política: na medida em que realizamos a justiça a cada caso, através do devido processo e do respeito às regras jurídicas existentes(certeza do Direito). Assim, percebe-se porque afirmei, no início, que as partes jurídica, política e ética da teoria de Dworkin devem ser vistas em um contexto unitário. É o que o autor denomina de modelo liberal de comunidade, baseado em uma leitura moral da Constituição. Todavia, ao contrário do que pensam alguns autores, tais como Ingeborg Maus25, a leitura moral da Constituição de Dworkin não significa uma moralização do Direito, ou uma confusão entre as esferas do Direito e da Moral. A leitura moral da Constituição de que nos fala Dworkin é uma leitura deontológica da Constituição, baseada em princípios jurídicos, que, é verdade, possuem alta carga moral, mas não são mais normas morais: Os juízes não devem ler na Constituição suas próprias convicções. Eles não devem ler cláusulas morais abstratas como se expressassem algum tipo particular de julgamento moral, não importa quanto esse julgamento moral lhes seduza, a não ser que eles o achem consistente com a estrutura da Constituição como um todo, e também com os precedentes dominantes da interpretação feita no passado por outros juízes. Eles devem considerar a si mesmos como parceiros de outros agentes públicos, levando em conta tanto o passado quanto o futuro, que juntos constroem uma moralidade constitucional coerente, e devem observar se suas contribuições são coerentes com o todo já construído (Eu já escrevi em outro lugar que os juízes são como autores coletivos que criam um romance em cadeia no qual cada um deles escreve um capítulo coerente da história desse romance.” (Tradução livre)26 25 MAUS, Ingeborg. Op.cit., p. 186. DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The Moral Reading of American Constitution. 3ª edição, Cambridge, Harvard University Press, 1999, p. 10. No original: “Judges may not read their own convictions into the Constitution. They may not read the abstract moral clauses as expressing any particular moral judgement, no matter 26 11 Essa perspectiva leva a que se entenda o Direito a partir de uma perspectiva deontológica, e não axiológica, tal como defendido por Robert Alexy. Nesse sentido, sobre as medidas de exceção empregadas por George W. Bush para combater o terrorismo, Dworkin deixa clara sua posição deontológica: Não podemos responder a essa questão também, como a metáfora da balança tenderia a sugerir, imaginando uma escala gradual que nos indicaria como os direitos que reconhecemos aos acusados diminuem em razão do perigo representado pelo crime do qual eles são acusados. É verdade que os direitos tradicionais podem ser uma ameaça para nossa segurança. Poderíamos muito bem decidir sermos uma sociedade mais segura, autorizando à polícia a prender as pessoas suspeitas de cometerem crimes no futuro, ou a presumir a culpabilidade ao invés da inocência, ou ainda a gravar as conversas entre os advogados e seus clientes. Mas, nosso sistema judiciário não foi construído sob o cálculo preciso dos riscos que aceitamos correr se queremos dar a uma categoria particular de acusados um certo grau de proteção contra as acusações injustificadas. Não demos menos garantias, por exemplo, para as pessoas acusadas de morte do que para aquelas acusadas de cometerem crimes menos graves.27 Portanto, o Direito serve para realizar os princípios ou ideais de igualdade e liberdade. E esses princípios são inegociáveis. Aqui me parece que se encontra a diferença central entre as posturas deontológica e axiológica do Direito. Na postura deontológica, que vê e assume o how much that judgement appeals to them, unless they find it consistent in principle with the structural design of the Constitution as a whole, and also with the dominant lines of past constitutional interpretation by other judges. They must regard themselves as partners with other officials, past and future, who together elaborate a coherent constitutional morality, and they must take care to see that what they contribute fits with the rest. (I have elsewhere said that judges are like authors jointly creating a chain novel in which each writes a chapter that makes sense as part of the story as a whole.) No mesmo sentido, vide: DWORKIN, Ronald. La Lectura Moral y la Premisa Mayoritarista. IN: KOH, Harold Hongju e SLYE, Ronald C.(Compiladores). Democracia Deliberativa y Derechos Humanos. Barcelona, Gedisa, 2004, p. 101 a 139. 27 DWORKIN, Ronald. George W. Bush, une menace pour le patriotisme américan. In: Esprit. Nº 285, junho de 2002, Paris, p. 17 a 18. No original: « On ne peut pas non plus y répondre, comme la métaphore de la balance tendrait à le suggérer, en imaginant une échelle graduée qui nos indiquerait comment les droits que nous reconnaissons aux accusés diminuent en raison du danger représenté par le crime dont ils sont accusés. Il est vrai que les droits traditionnels peuvent être une menace pour notre sécurité. Nous pourrions aussi bien décider d’être une société plus sûre en autorisant la police à enfermer les gens susceptibles de commettre des crimes dans l’avenir, ou à présumer la culpabilité et non l’innocence, ou encore à enregistrer les conversations entre les avocats et leurs clients. Mais notre système judiciaire ne s’est pas construit dans le calcul précis des risques que nous acceptons de courir si nous voulons donner à une catégorie particulière d’accusés un certain degré de protection contre les accusations injustifiées. Nous n’accordons pas moins de garanties, par exemple, aux personnes accusées de meurtre qu’à celles à qui l’on reproche des escroqueries mineures. » 12 Direito como integridade, os princípios da igualdade e liberdade são o cerne do ordenamento jurídico e, portanto, são inegociáveis, não aceitam qualquer espécie de relativização. Na postura axiológica, por outro lado, até mesmo os princípios da igualdade e liberdade podem ser ponderados se um bem maior, por exemplo, a segurança nacional, estiver em jogo. Mas, como devemos entender esses princípios? De acordo com Dworkin, só podemos entender corretamente os princípios de igualdade e liberdade se compreendermos corretamente o que vem a ser uma democracia, pois para o autor há uma relação intrínseca entre igualdade, liberdade e regime democrático. Ao contrário do que possa parecer, democracia não se resolve com a regra da maioria. Em outras palavras, democracia não significa necessariamente regra da maioria. Resumindo bastante o pensamento do autor americano, democracia significa que as pessoas se vêem como parceiras de um empreendimento político comum. É por isso que Dworkin várias vezes utiliza a figura de uma orquestra como analogia para explicar o que vem a ser uma comunidade democrática.28 Assim como uma orquestra é formada por pessoas as mais diferentes, de localidades diferentes, com línguas, tradições, culturas diferentes, mas que, no entanto, estão unidas por um projeto comum(tocar determinada peça musical, fazer uma apresentação, etc.), também uma comunidade democrática apresenta as mesmas características. Assim, o que caracteriza uma democracia não é a regra da maioria, mas o respeito pela diversidade, ou a mesma consideração e respeito por todos que se encontram unidos tendo em vista um projeto comum. Aqui, a idéia de parceria para a realização de um projeto comum. Central, portanto, para que a democracia funcione que os princípios de igualdade e liberdade tenham livre curso e que sejam entendidos adequadamente. Como já mostrei em trabalhos anteriores29, o princípio da igualdade não pode mais ser entendido como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam, pois sempre fica o problema de se saber quem são os iguais e quem são os desiguais. Igualdade, seguindo as trilhas de Ronald Dworkin, só pode ser entendido como tratar a todos com 28 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Op.cit., p. 62 e seguintes. OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit., p. 128 a 137; OMMATI, José Emílio Medauar. A Teoria Jurídica de Ronald Dworkin: O Direito como Integridade. IN: CATTONI, Marcelo(Coordenação). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 151 a 168. 29 13 a mesma consideração e respeito, não tendo, assim, um conteúdo fixo, mas levando a sério a sua própria natureza de princípio jurídico. Essa idéia de igualdade pressupõe, de acordo com Dworkin, um modelo de repartição de bens, termo aqui entendido não apenas em sentido econômico, mas englobando também as capacidades físicas, os gostos, etc.30 Em linhas gerais, esse modelo de repartição de recursos está baseado na idéia de inveja. Ao contrário do modelo de Rawls em que as pessoas não têm conhecimento de sua situação na vida real, já que cobertas pelo véu da ignorância31, o modelo dworkiniano pressupõe que as pessoas têm todas as informações disponíveis para melhor decidir a repartição dos bens. Contudo, isso não leva que alguns consigam uma melhor repartição do que os outros, pois aquele responsável pela repartição, o leiloeiro, deverá repartir o pacote de bens tendo em vista o princípio da inveja. Esse princípio significa que a repartição dos bens deve ser tal que cada um se sinta satisfeito com o quinhão recebido, a partir de seus dotes físicos, suas habilidades, limitações, etc. Esse modelo liberal de sociedade, baseado no princípio da igualdade, leva Dworkin afirmar que uma sociedade justa é aquela em que eu possa escolher ser um jardineiro pelo simples fato de que minhas habilidades e minha vocação me levam para essa escolha. Em outras palavras, uma sociedade justa, para Dworkin, é aquela que consegue realizar os mais diversos projetos de vida boa, sem que esses projetos sejam massacrados por questões políticas, econômicas ou morais. Nesse exemplo dado por Dworkin, poderei ser jardineiro, pois terei a certeza de que conseguirei sobreviver com dignidade e respeito.32 Mas, como se relacionam os princípios da igualdade e liberdade nesse modelo liberal da sociedade pensado por Dworkin? Depende do que entendemos por igualdade e liberdade. Ora, para Dworkin, igualdade e liberdade são ideais normativos e não devem ser divididos no leilão hipotético. Devemos entender que liberdade não significa uma licença para se fazer o que se bem entende. Se assim 30 Nesse sentido: DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit., p. 21 a 131. Aqui, interessante é perceber que apesar das críticas de Amartya Sen ao modelo de Dworkin, percebemos uma grande semelhança entre eles. Assim, Sen fala, ao invés de potencialidades, de funcionamentos, para demonstrar as possibilidades que devem ser dadas igualmente às pessoas. Nesse sentido: SEN, Amartya. Desigualdade Reexaminada. São Paulo, Record, 2001. 31 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo, Martins Fontes, 2000. 32 DWORKIN, Ronald. Ética Privada e Igualitarismo Político. Barcelona, Paidós, 1993. 14 for, obviamente a liberdade entrará em conflito com a igualdade e, assim, tenderá sempre a perder.33 Por outro lado, devemos entender a igualdade como a sombra que cobre a liberdade, ou seja, que os dois princípios são complementares, se pressupõem mutuamente e proteger a liberdade leva necessariamente a proteger a igualdade: “Si la libertad es valiosa porque una vida en libertad es una vida más valiosa, entonces el principio igualitario mismo exige que el gobierno preste atención a la libertad, pues ello exige que el gobierno trate con consideración la vida de 34 los que gobierna”. E quais seriam as liberdades básicas? Afirmando não haver um catálogo taxativo, Dworkin cita os direitos de liberdade de expressão, liberdade de consciência, de associação, liberdade religiosa e a liberdade de eleição em assuntos que afetam aspectos centrais ou importantes da vida pessoal, como emprego, questões familiares, escolha sexual e tratamentos médicos.35 À semelhança de Rawls, tanto a igualdade quanto a liberdade não entrariam no pacote básico de distribuição de recursos no modelo imaginário proposto por Dworkin. Todos, então, teriam o mesmo direito à igualdade e à liberdade. Em outras palavras, os princípios da igualdade e liberdade são inegociáveis. Esses direitos são essenciais, para Dworkin, exatamente para promover o ideal de democracia proposto pelo autor, enquanto associação de homens livres e iguais. Assim, para Dworkin, a democracia, que deve ser vista como associativa, apresenta três dimensões. A primeira dimensão é a da soberania popular, que implica uma relação entre a comunidade ou o povo no seu conjunto e os diferentes funcionários que formam o governo. A democracia exige que o povo governe e não os funcionários. Já a segunda dimensão, é a igualdade dos cidadãos. Essa igualdade exige que os cidadãos participem como iguais. Isso se reflete na idéia de que todas as pessoas devem ter o mesmo impacto com o voto. Por fim, a terceira dimensão da democracia associativa é o discurso democrático. Essa é a mais importante para o presente trabalho. De acordo com Dworkin, se o discurso público está restringido pela censura, ou fracassa 33 DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit., p. 139 a 144. DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit., p. 143. 35 DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit., p. 140. 34 15 porque as pessoas gritam ou insultam-se mutuamente, então não temos um autogoverno coletivo.36 Assim, essenciais as liberdades básicas para a democracia, tais como liberdade de sufrágio, de consciência, de escolhas pessoais, de expressão e de reunião. Mas, e os discursos racistas, como o caso aqui analisado? Eles devem ser proibidos? E mais: como compatibilizar esses discursos com a proibição de racismo insculpida na norma constitucional do artigo 5º, XLII, da Constituição Brasileira? Inicialmente, com Dworkin, entendo que os discursos de ódio, sejam eles contra uma raça, um grupo étnico ou um gênero não devem ser proibidos a priori, em decorrência do princípio democrático. Em outras palavras, o que a liberdade de expressão impede é a censura prévia. Em um regime democrático, as idéias devem circular livremente e é um contra-senso achar que a proteção da democracia deve se dar através da censura prévia. Isso porque a priori ninguém é capaz de realizar discurso de ódio ou discurso racista. Para que um discurso possa ser visto como racista ou discriminador, ele deve passar pelo espaço público, pela discussão pública, e aí o proferidor do discurso tem a proteção constitucional para mostrar que seu discurso não fere os direitos de igualdade e liberdade. Se ficar comprovado que esse discurso fere a igualdade e liberdade das categorias as quais se refere, obviamente deve ser proibido e o proferidor responsabilizado, por não ter tratado a todos com a mesma consideração e respeito, requisito mínimo para que a parceria democrática continue. Como diz Dworkin, temos de tentar organizar nossa política de maneira a que todos os cidadãos tenham motivos para se sentir parceiros. Teria sido absurdo que os judeus da Alemanha nazista ou que os negros da África do Sul do apartheid tivessem motivos para se considerar parceiros de regimes que tentavam aniquilá-los ou submetê-los. Ora, é exatamente nesse momento que intervém o constitucionalismo. Assim, os cidadãos só podem se sentir parceiros em um empreendimento coletivo de governo dos cidadãos se lhes são assegurados certos direitos individuais. Dentre eles, os direitos antidiscriminatórios, com certeza. A parceria é uma questão de respeito mútuo: não posso ser parceiro de uma sociedade cujas leis me declaram cidadão de segunda classe. A liberdade de expressão é outro direito indispensável. Não sou um parceiro se a maioria considera minhas opiniões ou meus gostos tão perigosos, chocantes ou indignos que ninguém esteja autorizado a ouvi-los. Isto é válido mesmo se eu for um neonazista que nega o 36 DWORKIN, Ronald. Virtud Soberana: La Teoría y la Práctica de la Igualdad. Op.cit., p. 393 a 395. 16 holocausto ou um seguidor sectário e racista de Le Pen. É ilegítimo aplicar leis contra mim, qualquer que seja sua justeza ou sabedoria, se o papel de parceiro no debate político que as produziu não me é reconhecido.37 No entanto, ao contrário do que se poderia pensar, isso não autoriza que, uma vez o racista proferindo seu discurso e mostrando que é racista, ele não seja responsabilizado por seu ato. Seria um atentado contra a própria parcela da população que sofreu a discriminação se o racista não fosse punido. Teríamos alguns mais iguais e mais livres do que outros. O que Dworkin tenta mostrar com essa passagem é mais uma vez que uma democracia não se coaduna com a censura prévia, tendo em vista os princípios da igualdade e liberdade. Assim, a proibição de racismo constante na Constituição de 1988 não deve ser entendida como a proibição de divulgação de idéias pretensamente racistas, mas deve ser interpretada como a proibição de utilização seja do espaço público seja do espaço privado para tentar aniquilar parceiros desse projeto comum. Dessa forma, devemos entender a proibição da prática de racismo apenas caso a caso, de maneira a não inviabilizarmos a liberdade de expressão e os próprios princípios da igualdade e liberdade. Portanto, a Constituição de 1988, ao proibir o racismo, não pretendeu proibir o discurso de ódio, enquanto discurso prévio. Pretendeu, sim, proibir discursos racistas depois de publicamente proferidos. Em outras palavras, a proibição de racismo se dá quando se comprova publicamente que houve a prática do racismo, o que é o caso do HC 82.424/RS, aqui analisado. Publicamente o paciente do habeas corpus, Siegfried Ellwanger, afirmou ter cometido discriminação, mas não racismo, tudo para abusar do Direito, e tentar não ser enquadrado no crime de racismo, imprescritível, de acordo com a Constituição. Assim, se o caráter deontológico do Direito tivesse sido considerado pelos Ministros do STF, a decisão teria sido unânime pela condenação do paciente, já que esse fato era incontroverso, pois que afirmado pelo próprio paciente do habeas corpus. Daí porque afirmei que a decisão se baseou em gosto, nas preferências dos Ministros, com a perda do caráter deontológico do Direito e de sua própria racionalidade. Também fica mais claro após todo o exposto que o voto do Ministro Carlos Britto também foi inadequado no marco do paradigma do Estado Democrático de Direito, pois não 37 DWORKIN, Ronald. A Democracia e os Direitos do Homem. In: DARNTON, Robert e DUHAMEL, Olivier. (Organizadores). Democracia. Rio de Janeiro, Editora Record, 2001, p. 160 a 161. 17 tratou o Direito como integridade, ao desconsiderar tanto a reconstrução fática e jurídica realizada pelas partes como o correto entendimento dos princípios da igualdade e liberdade. Aqui, uma palavra, mesmo que breve, sobre um aspecto do voto do Ministro Carlos Britto, relacionado com o seu conceito de ciência. Como mostrei no início desse texto, o Ministro Carlos Britto foi levado a conceder a medida pleiteada por Siegfried Ellwanger, pelo fato de ter lido as obras e por considerá-las científicas e, portanto, albergadas pelo direito de liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Contudo, como mostrarei rapidamente, o conceito de ciência do Ministro Carlos Britto é inadequado tendo em vista os próprios avanços produzidos pela Filosofia da Ciência. O Ministro Carlos Britto considerou a obra de Siegfried Ellwanger científica simplesmente porque o mesmo se baseou em artigos, jornais, obras científicas, ou seja, em citações, em argumentos de autoridade. Mas, será que a ciência está baseada simplesmente em argumentos de autoridade? Será que hoje seria científico afirmar, por exemplo, que a Terra está no centro do Universo e que todos os astros giram em redor dela? Óbvio que não. Com Gadamer e Thomas Kuhn, sabemos que a ciência não pode abdicar de seus preconceitos, suas pré-compreensões. O que a diferencia do saber do senso comum é que a ciência baseia-se em métodos, pesquisas que, obviamente, não garantem por si só a verdade, mas que permitem um diálogo com a comunidade científica que testará os resultados obtidos. De acordo com Thomas Kuhn, a ciência evolui por paradigmas, por esquemas de compreensões que melhor permitem explicar e resolver os problemas. Assim, percebemos o caráter científico de algo se esse algo for testado e discutido em determinada comunidade e conseguir convencer a comunidade de que tudo aquilo que está sendo afirmado resolve melhor os problemas não resolvidos até então. Não são citações ou argumentos de autoridade que garantem a cientificidade de uma obra, mas se ela encontra respaldo nos fatos comprovados e na comunidade científica. Assim, por exemplo, não posso, mesmo que respaldado por autoridades científicas(pensemos nos trabalhos anteriores a Galileu) defender que a Terra está no centro do Universo e que todos os astros giram em seu redor, porque essas idéias foram já há muito refutadas e não são mais plausíveis para nossa comunidade. Aqui, uma diferença não percebida pelos Ministros no caso analisado. Uma coisa é proibir e retirar do espaço público as obras de Siegfried Ellwanger. Outra, completamente 18 diferente, é proibir e retirar do espaço público obras de autores como Oliveira Viana ou Gustavo Barroso. Na obra de Siegfried Ellwanger, há um abuso de pretensas autoridades científicas para tentar demonstrar o indemonstrável: que os judeus são piores, inferiores, aos demais seres humanos. Já nas obras de Oliveira Viana ou Gustavo Barroso, temos todo o pensamento científico de uma época, que entendia que o racismo tinha base científica. É óbvio que hoje esse paradigma científico encontra-se superado, mas até para garantir o aprendizado, é interessante que essas obras circulem, mostrando toda a incompreensão científica de uma época e os próprios perigos da ciência, quando se encontra imune à crítica da comunidade. Só para finalizar, pensemos, mais especificamente, nos trabalhos de Lombroso que, no Direito Penal fez escola. À época, Lombroso acreditava que os caracteres físicos levariam as pessoas a delinqüir. Era científico seu trabalho, porque baseado em todo um pensamento de uma época, mais uma vez falsificado pelos avanços da ciência. Assim, podemos perceber toda a correção das leis francesas que proibiram qualquer espécie de revisionismo histórico em relação ao Holocausto, exatamente porque anti-científico, já que a moderna ciência histórica não discute mais todos os fatos ocorridos durante o período nazista. Assim, demonstra-se que, mesmo pretendendo assegurar direitos, o STF nesse caso, acabou por fragilizá-los, ao transformar o Direito e a Constituição em uma questão de preferência, já que os direitos são ponderáveis através do princípio da proporcionalidade. Também demonstrada a inadequação, especificamente do voto do Ministro Carlos Britto, pois se baseou em um equivocado conceito de ciência, em argumentos de autoridade, não percebendo que o próprio paciente do habeas corpus afirmou que houvera cometido discriminação, mas não crime de racismo. Todos os votos desconsideraram o caráter deontológico do Direito, que o Direito deve ser visto como integridade, no sentido de que homens livres e iguais se dão normas para regular suas vidas em comunidade e que o ordenamento jurídico deve pretender garantir os direitos de igualdade e liberdade, no sentido de que todos devem ser tratados como iguais, com a mesma consideração e respeito. 19 Referência Bibliográfica BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Belo Horizonte, Del Rey, 2000. BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade Democrática e Instrumentos de Realização. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo, Martins Fontes, 2002. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1999. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2000. DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. 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