INOVAÇÕES EDUCACIONAIS NO BRASIL E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO1 EDUCATIONAL INNOVATIONS IN BRAZIL AND THE CONSTITUTION OF THE INDIVIDUAL José Cosme Drumond* Resumo Este artigo analisa o que se convencionou chamar, no Brasil, de inovações educacionais. As inovações educacionais são movimentos produzidos em municípios brasileiros com o intuito de construir alternativas para as práticas das escolas públicas, sustentando-se em reformas curriculares em que as bases principais vinculam-se a reordenações de espaços e tempos de escolarização na forma de ciclos. Esses movimentos têm vínculos com a militância profissional e tentam implementar práticas de poder sustentadas em discursos democratizantes nas relações internas e com as comunidades. Os discursos que sustentam os movimentos vinculam-se às teorias críticas da educação, portanto com a visão de modelo de sujeito crítico-emancipado, o que produz contradição com os discursos pós-críticos da diferença e de subjetividade em que se sustenta a busca da heterogeneidade pedagógica da escolarização em ciclos. Palavras-chave: Inovações Educacionais, Reforma Curricular, Constituição do Sujeito. Abstract This article analyses what has conventionally come to be called, in Brazil, educational innovations. Educational innovations are movements made in Brazilian towns with the aim of finding alternatives for the public school practices, based on curricula reformulation in which the main basis lies in the re-organization of spaces and times of schooling, dividing the program in cycles. These movements are linked to professional policies and try to implement power practices supported by the discourse of democratization in the internal as well as extra-mural relations. The discourse that supports these movements come from the critical theories of education, thus keeping the concept of the emancipated critical individual, one which contradicts the post-critical discourse of difference and subjectivity which sustains the search for pedagogical heterogeneity of the cycle schooling. Key words: Educational innovations, Curricula reformulation, the making of the individual. I Introdução As duas últimas décadas do século XX, no Brasil, foram ricas em experiências e projetos de inovação educacional, como ocorrera na Europa, anteriormente. Essas experiências têm suas ações produzidas em municípios, predominantemente em capitais de Estados, na maioria das vezes, como políticas públicas abrangendo os sistemas próprios de ensino por inteiro. Podem ser citados os projetos desenvolvidos em São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte, dentre outros. Para efeito deste estudo, inovação educativa é entendida como um movimento implementado em escolas ou sistemas educacionais com o propósito de criar novas formas de organizar e implementar currículos e práticas educativas (Pacheco, 1996). Esses movimentos intentam ultrapassar as perspectivas reformistas presentes na educação, em períodos anteriores, uma vez que seu propósito é produzir alternativas para sustentar práticas inovadoras, no interior das escolas, alterando a organização de tempos e espaços nas práticas educativas, implicando novas relações intersubjetivas nas salas de aula e nos espaços institucionais. Os teóricos2 que analisam a questão das inovações educacionais atribuem ao que chamam de crise da educação tanto as tentativas de reforma quanto a esses movimentos. Assim, as reformas e os movimentos de inovação estão no mesmo processo histórico, embora tenham características bem distintas. No caso brasileiro, essa crise pode ser configurada em dois problemas tão intensos quanto extensos, uma vez que o sistema de escolarização passa rapidamente pela necessidade de abrigar todos no interior das escolas, ao mesmo tempo em que deve ser capaz de produzir uma pedagogia que sustente a efetividade educativa dessa grande tarefa. Esse cenário é propício ao aparecimento de políticas reformistas feitas pelo Estado e movimentos de inovação educacional. Ao contrário das propostas de inovação educacional, as reformas são tentativas que podem produzir resultados de caráter meramente quantitativo, não produzindo transformações substantivas, como sustenta Carbonell (2002): Por outro lado, comprovou-se também que algumas propostas pedagógicas introduzidas pelas reformas são aplicadas nas escolas há muito tempo; que outras jamais serão aplicadas em alguns destes, menos ainda se impostas por decreto e não mediante a um amplo processo de sedimentação formativa; e, finalmente, em outros casos, os postulados reformistas abortaram interessantes inovações educativas (p. 23). 2 Inovações Educacionais no Brasil: busca de alternativas para a escola pública As discussões em torno dos projetos de inovação educacional, no Brasil, têm ocupado teóricos da educação em vários lugares e recebido um acompanhamento bastante intenso dos meios de comunicação de massa. Os vários trabalhos acadêmicos e teóricos, na maioria das vezes, são focados em algum projeto específico ou em alguns de seus elementos e, via de regra, são elaborados por integrantes desses movimentos 3. A preocupação da sociedade com os projetos de inovação educacional fica evidenciada com o espaço que o tema ocupa nos meios de comunicação de massa, além de, durante as campanhas eleitorais, serem temas de propostas e debates entre candidatos. Embora seja importante que os teóricos e a mídia venham se ocupando em analisar esses projetos, a pertinência do tema está no fato de que, desde as duas últimas décadas do século XX, eles estejam presentes no cenário educacional e já se constituem como parte da história da educação do país. As reformas educacionais estão vinculadas a movimentos que buscam transformar a educação por meio de intervenções pelas políticas públicas de caráter amplo, como ocorre com as propostas das Leis de Diretrizes e Bases e suas reformas parciais destinadas a níveis específicos de ensino, como foi o caso da Lei 5.692/71, por exemplo. Essas reformas tiveram por objetivo operar mudanças globais e, para isso, produziam regulamentações que orientavam a educação escolar para o país como um todo. Via de regra, buscavam atingir um duplo objetivo: reorganizar as etapas da escolarização e fornecer prescrições curriculares que as viabilizassem. O processo centralizado da formulação dessas reformas baseia-se na premissa de que é possível transformar a escola por meio de intervenções indutoras de fora para dentro, ou seja, é viável que as escolas sejam induzidas a produzir práticas que tornem reais os princípios prescritos a partir das normas legais e das políticas públicas formuladas nos órgãos de gestão dos sistemas educacionais. Essa era, também, a posição dos reformistas vinculados aos movimentos de esquerda, cujas idéias se sustentavam nas teses das teorias críticas da educação e julgavam ser necessário que as transformações fossem produzidas de forma global. A perspectiva de inovação educacional é a tentativa de tornar substanciais as alternativas criadas a partir das práticas realizáveis nas escolas, compreendendo que a idéia de reforma deve ser superada, pois busca, apenas, a transformação estratégica de políticas educacionais, enquanto as inovações são a invenção, a criação de novas alternativas educativas. Ora, se inovare é renovar, tornar novo, inventar, criar, se reformare é reconstituir, restaurar, corrigir, modificar, melhorar, se meliorare é melhorar, reformar, aperfeiçoar, então não se justifica uma caracterização pormenorizada de cada um dos conceitos quando aplicados às questões educativas (Pacheco, 1996, p. 150). Sustentados nessa percepção, os movimentos de inovação educacional buscam criar alternativas práticas para a educação em cidades brasileiras, em que se instalam governos municipais ligados à esquerda (Moreira, 2000) e produzem tentativas de solução para superar a crise da escola, que deve fornecer educação para todos. Esses movimentos produzem projetos educacionais que buscam alternativas práticas para a escolarização, pela participação da militância profissional, tanto pela via sindical quanto pela presença de profissionais que intentam promover mudanças no interior das escolas de forma individual ou coletiva. Arroyo (2004) deixa clara essa preocupação dos movimentos em reconhecer o papel dos docentes: É difícil avaliar e pesquisar práticas educativas sem estarmos abertos a que elas nos reeduquem, nos deixem menos seguros – inclusive teoricamente menos seguros. Seriam esses os produtos com que nos brindam essas análises sobre propostas de inovação educativa? Seriam também os produtos com que nos brindam milhares de professoras e professores sujeitos das ações inovadoras? Teríamos de agradecer-lhes por tamanha coragem (p. 17). É importante ressaltar o papel da militância profissional na concepção e implementação dos projetos de inovação educacional, uma vez que estes incluem entre seus pressupostos a vinculação com o magistério, como categoria profissional, tornando relevantes suas contribuições na transformação prática da educação escolar. Configura-se, assim, a relação entre essa característica e o fato de que esses movimentos, na sua maioria, estejam vinculados a propostas políticas da esquerda, quando assume o poder público municipal. A participação da militância profissional no percurso do projeto e seus reflexos nas práticas escolares é um dado importante a ser considerado para entender os movimentos de inovação educacional no Brasil. É possível distinguir, nos movimentos de inovação educativa, algumas características importantes, além do vínculo com os movimentos dos professores. A primeira refere-se à preocupação em articular os processos sistêmicos com os microprocessos das práticas escolares, como orientação para a elaboração das políticas públicas, como diz Vares (1995): “o esforço que empreendemos para a construção de uma Nova Qualidade de Ensino nos exige um repensar criativo e reflexivo, tanto em relação à esfera macro – políticas educacionais –, como nas micro-relações – ações na sala de aula” (p. 7). Ressalte-se, também, que a viabilização desse processo de produção de políticas públicas é possibilitada pelas práticas participativas pela instituição de fóruns de debates e deliberações em congressos, seminários e conselhos, em que há a participação de professores, pais, alunos, gestores, organizações comunitárias, entidades profissionais, instituições educacionais e agentes políticos, dentre outros. Outra característica, nos movimentos de inovação educacional, é a centralidade nas práticas educativas como solução para a transformação da escola na busca pela superação de seus problemas com a educação de seus alunos. Na apresentação do documento-síntese do II Congresso Político-Pedagógico da Rede Municipal de Ensino/Escola Plural, em Belo Horizonte, reconhecido como um dos projetos de inovação educacional, a Secretaria Municipal de Educação afirma que a Escola Plural é um projeto que colocou para as escolas da Rede Municipal novas possibilidades de organizar o trabalho dos educadores. Mas a Escola Plural não é um projeto teórico, ela só acontece na prática, durante as nossas atividades escolares cotidianas. Por isso, a importância deste Congresso para criar momentos de discussão, debate, reflexão na nossa prática formadora (Silva, 2002, s/p). Acrescenta-se a essas características o reconhecimento de que a solução para a educação está na escola, onde são realizadas as práticas educativas com o objetivo de produzir a formação dos sujeitos incluídos em seu interior, cujo papel central cabe a professoras e professores, que vêm realizando em suas práticas uma escola renovada e cheia de possibilidades, como bem traduz Moll (2004): A pluralidade de possibilidades pedagógicas produzidas nessas escolas – [A autora refere-se às escolas da rede municipal de Porto Alegre] – em seu conjunto ou por grupos de professores – anunciava, repetidamente, que o entendimento comum acerca de uma escola acolhedora, que desenrijece seus tempos a partir da compreensão dos tempos da vida, não conduziria necessariamente a procedimentos iguais em termos de planejamento, avaliação e organização do espaço escolar para as aprendizagens (p. 20). 3 Movimentos de Renovação Educacional e Reforma Curricular Pensados sob o ponto de vista da organização e desenvolvimento curricular, os movimentos de inovação educacional compõem um processo de reforma curricular cujas características centrais podem ser, assim, delineadas: 1. Esses movimentos têm caráter claramente político e compõem um processo de reformulações das práticas das políticas públicas, cujo empreendimento ocorre em municípios brasileiros, em que grupos de esquerda assumem o poder. Assim, buscam respostas curriculares com a tonalidade própria das esquerdas, cujos teóricos são produtores do pensamento crítico da educação. Essa característica é registrada por Moreira (2000): A meu ver, a coloração político-partidária das reformas é inevitável, por refletir o compromisso e o posicionamento de um grupo escolhido por uma população. No caso de governos que se opõem às políticas ideológicas dominantes, a coloração certamente se intensifica, ao se evidenciar o esforço para atenuar as dificuldades sofridas pelas camadas mais desfavorecidas da população, dentre as quais se inclui a vivência de uma escola ainda pouco democrática e ainda excludente (p. 125). 2. Há a tendência em centralizar o movimento no desenvolvimento curricular em cada unidade escolar, como solução para superar a idéia de currículo único, universalmente válido, mesmo que isso tenha sido propósito dos teóricos de linha crítica que imaginavam grandes transformações da realidade social, pela via da educação, em épocas recentes. Assim, o currículo em processo em cada sala de aula proporciona, ao mesmo tempo, a superação das induções oriundas tanto do currículo prescrito nos planos, nos programas e orientações oficiais como das mediações curriculares contidas em livros didáticos. Buscase, assim, superar a separação entre concepção e realização, entre teoria e prática. 3. Os fundamentos e princípios dos movimentos de inovação educacional buscam inspiração nas teorias críticas desenvolvidas pelas teorias curriculares, podendo ser encontradas categorias como reprodução cultural, poder, conscientização, emancipação e resistência que foram desenvolvidas, principalmente na Sociologia Crítica de Currículo norte-americana, com Apple e Giroux, dentre outros. Podem ser encontradas, ainda, outras categorias presentes nas chamadas teorias pós-críticas, como identidade, diferença, subjetividade, saber-poder, cultura, raça, etnia e multiculturalismo, dentre outras. 4. Sob o ponto de vista das alternativas das práticas curriculares, nas salas de aula, os movimentos de inovação inspiram-se nos princípios de Paulo Freire (Moreira, 2000) para fundamentar as propostas de integração, especialmente em relacionar tempos de vida e tempos de escola. As teorias construtivistas, especialmente as teorias de Piaget, Vygotsky e Wallon, produzem o arcabouço para as definições de ciclos de vida escolar e sua correspondência entre cronologia vital e desenvolvimento cognitivo. Grande parte desses movimentos adota, então, a organização em Ciclos, em que as bases são a recomposição de tempos e espaços curriculares na perspectiva dos ciclos de vida, como descreve Dalben (2000a), no caso da Escola Plural: Na perspectiva política da inclusão social e garantindo o direito à educação, o Programa Escola Plural amplia o tempo de permanência do aluno no Ensino Fundamental de 8 para 9 anos. Propõe a organização por ciclos de formação buscando a continuidade do processo de escolarização, eliminando a seriação e visando à construção de identidade do aluno. Esses ciclos assim se organizam: 1º ciclo (infância) com alunos de 6 a 9 anos de idade; 2º ciclo (pré-adolescência) com alunos de 9 a 12 anos de idade; 3º ciclo (adolescência) com alunos de 12 a 14 anos de idade (p. 13). 4 Movimentos de Renovação Educacional e Reorganização do Trabalho Escolar Outro ponto importante, nos movimentos de inovação curricular, refere-se à reorganização do trabalho escolar, em que há o predomínio das ações de natureza coletiva para planejar o funcionamento e o desenvolvimento das práticas educativas, como constata Dalben (2000b), no caso da Escola Plural: Uma das grandes mudanças introduzidas com o programa Escola Plural foi a priorização dos tempos coletivos no ambiente escolar. “Tudo é decidido coletivamente”. As reuniões pedagógicas possuem uma posição de destaque neste contexto. Não existe mais uma direção ou uma coordenação que decide e impõe. Existe uma gestão democrática. Conteúdos, projetos, horários são decididos e aprovados pelo conjunto dos profissionais da escola. Tudo é compartilhado (p. 65). Essa forma coletivizada de organizar os trabalhos escolares busca “reinventar a escola como local de trabalho não alienado, ou seja, ‘desalienar o trabalho escolar’ representa uma démarche essencial ao projeto de democratização da escola e do seu modo de governação” (Lima, 2006, p. 24). É a busca pela reordenação das relações de poder na escola, com a superação da desvinculação entre saber e poder, a separação entre concepção de realização. Os projetos de inovação educacional que foram implantados, a partir desses movimentos, reordenam o trabalho escolar com um duplo processo que visa reorganizar a gestão interna e a implementação de novas práticas educativas. A articulação entre as práticas de poder e as práticas educativas fica evidente nos documentos produzidos nos fóruns e congressos, nos locais em que ocorrem. A busca pela democratização interna é incorporada pelos movimentos relacionando saber e poder, na organização escolar, como bem o traduz Tragtenberg (2002): A possibilidade de vincular saber e poder, no plano escolar, reside na criação de estruturas horizontais em que professores, alunos e funcionários formem uma comunidade real. É um resultado que só pode provir de muitas lutas, de vitórias setoriais, derrotas, também. Mas, sem dúvida, a autogestão da escola pelos trabalhadores da educação – incluindo os alunos – é uma condição de democratização escolar (p. 16). 5 Questões de Fundo nas Inovações Emocionais: dificuldades, contradições e possibilidades Esse cenário sobre as inovações educacionais tem algumas questões de fundo que as tornam, em muitos momentos, frágeis em seus resultados e atacadas por muitos em suas práticas. É possível reconhecer que, em sua maioria, resultam de movimentos semelhantes que se sustentam, inicialmente, no seu caráter de militância profissional e política, mas carregam diferenças que os tornam identificáveis, uma vez que são produzidos por grupos diferenciados em seu tempo histórico e em espaços sociais diferentes. Assim, a duração deles é, também, diferenciada, destacando-se o caso da Escola Plural, que surge em 1995 e é adotada, até hoje, como proposta oficial pelos governos municipais de Belo Horizonte. Outros projetos são abandonados com a troca de grupos no comando político dos municípios onde foram implantados, ficando evidente sua vinculação a grupos de orientação política de esquerda, como constata Moreira (2000). A busca de solução para as práticas metodológicas nas salas de aula levou os projetos a alternativas diferenciadas, embora possam ser alinhavadas semelhanças entre elas, uma vez que todas buscam superar o ensino organizado em séries anuais, com a utilização de conteúdos formais, que dificultam uma dinâmica pedagógica para a organização em ciclos. Assim, uns adotam uma forma adaptada do tema gerador criado por Paulo Freire, outros buscam a solução nos temas transversais ou no ensino por projetos. Esses movimentos atribuem à escola a função emancipadora, a partir de um modelo de homem consciente/transformador, no interior de uma sociedade a ser transformada e superada nas suas contradições, que produzem as desigualdades, dominações de várias ordens e impedem o acesso e a inclusão de grupos sociais marginalizados (Moll, 2004). O princípio da inclusão adotado por vários projetos leva a inserção em seu ideário de questões como a constituição da subjetividade, identidades e diferenças dos sujeitos, diversidade cultural e multiculturalismo, teses centrais adotadas pelas teorias curriculares denominadas pós-críticas, conforme Silva (1999). O sujeito adquire a centralidade nas análises e, conseqüentemente, sua constituição subjetiva, sua identidade e alteridade individual e social, cultural, de gênero, étnica, racial e sexual. As análises sustentam-se, portanto, nas diferenças, na diversidade social e na multiplicidade dos indivíduos. Há, pois, que se considerar a diversidade e a complexidade da vida humana na escolarização e nos projetos educativos. Essas análises trazem à tona uma contradição nos projetos resultantes dos movimentos de inovação educacional com relação ao que fundamentam as práticas de escolarização, ou seja, todos os princípios de formulação desses projetos sustentam-se na concepção de sujeito crítico emancipado e transformador de uma sociedade injusta sustentada numa ideologia de dominação e reprodução das condições e dos lugares sociais dos sujeitos. Há, pois, uma concepção de modelo de sujeito a ser constituído e formado nos discursos escolares, para que a sociedade seja revolucionada. A idéia da inclusão pressupõe que os sujeitos, na sua multiplicidade, são dotados de identidades e diferenças e reconhecidos em sua alteridade e sua subjetividade. A subjetividade individual constitui-se nos movimentos em que cada sujeito se insere ou produz, nas redes de intersubjetividades de que participa, nos vários espaços sociais e vitais em que transita. As teorias pós-críticas do currículo (o Multiculturalismo, os Estudos Culturais, o Pós-colonialismo, o Pósmodernismo e o Pós-estruturalismo), também chamadas de Teorias da Diferença, privilegiando o papel das categorizações e divisões estabelecidas pela linguagem e pelo discurso nas definições da realidade (Silva, 1995), fornecem alguns subsídios para os projetos de inovação educacional, notadamente o Multiculturalismo (Moreira, 2000). Esses teóricos da Diferença consideram que diferentes tipos de discursos interagem na constituição das identidades e subjetividades. Nesse sentido, as próprias teorias e os demais materiais curriculares podem ser pensados como discursos que participam do processo contínuo de construção de significados, cujos resultados são sempre híbridos e marcados tanto pela dominação como pela resistência. Daí a importância de considerar os processos pelos quais determinados discursos se tornam mais verdadeiros que outros e as suas implicações na produção de determinados tipos de sujeitos (Silva, 1999). Entretanto, a atribuição da função da escola em formar o sujeito crítico-transformador é produto das Teorias Críticas da Educação, cujas categorias centrais são Resistência, Conscientização, Emancipação e Mudança Social. Outra influência presente nesses movimentos são as posições de Paulo Freire (Moreira, 2000), cujos pontos principais estão ligados às concepções de ciclos de vida, ciclos de cultura e centralidade na prática como solução para a educação. A articulação das duas perspectivas teóricas traz uma questão de fundo, que é como realizar práticas educativas que sustentem ao mesmo tempo a busca pela formação de um sujeito modelar – crítico – transformador, com práticas que, possivelmente, estarão sustentadas numa visão de sujeito pós-crítico, que pode ser sintetizada na idéia da diferença, que é marcada por representações simbólicas que atribuem significado às relações sociais, mas a exploração da diferença não nos diz por que as pessoas investem nas posições que elas investem nem por que existe esse investimento pessoal na identidade. Descrevemos alguns processos envolvidos na construção das posições de identidade, mas não explicamos por que as pessoas assumem essas identidades (Woodward, 2000, p. 54). Assim, as formas de organização dos espaços curriculares e as práticas educativas que viabilizam os projetos de inovação convivem com essa dualidade. A educação, que visa formar um sujeito modelar, adota, necessariamente, uma perspectiva homogeneizadora para que seja possível a realização de seu objetivo. A escolarização organizada a partir dos ciclos de vida, conjugada com os princípios da inclusão 4 como obrigação legal, cujas bases conceituais e práticas estão vinculadas ao princípio da diferença, produz uma contradição importante para que esses projetos de inovação sejam viabilizados, demandando uma perspectiva heterogeneizadora para as práticas educativas. 6 Práticas Educativas e Constituição de Sujeito nos Movimentos de Inovação Educacional Como já foi dito, as práticas dos projetos de inovação educacional se sustentam em discursos, nos quais é possível haver uma contradição na concepção de sujeito, cujas matrizes são as teorias educacionais críticas e pós-criticas. Essas contradições presentes nesses projetos teriam um efeito complicador, para que sejam elaboradas práticas articuladas e orientadas em um sentido coerente. Acrescente-se, ainda, a questão da homogeneização e heterogeneização pedagógicas que compõe essa discussão. Assim, é preciso considerar que a questão pedagógica dos projetos de inovação educacional implica a produção de discursos que sustentem as novas práticas educativas e a possível convivência com práticas constituídas nos processos históricos da formação da mentalidade centrada na perspectiva homogeneizadora resultante da escolarização seriada. Os significados desses discursos não são fixos. Ainda que muitas vezes reflitam as posições tradicionais dominantes na mentalidade dos profissionais, podem ser desconstruídos e rompidos no processo contínuo de interpretação, pois seu próprio texto (o que está presente e o que está ausente) pressupõe novos movimentos, idéias e significados. Segundo Cherryholmes (1993), antigas construções curriculares são desconstruídas por novas práticas discursivas, que contestam os antigos padrões de pensamento e novos discursos produzidos no campo curricular, e aquilo, que antes era considerado verdadeiro e legítimo, mudou porque mudaram também as relações de poder na sociedade. Outro ponto é que as concepções e práticas dos projetos de inovação formulam um modelo de sujeito e um modelo de processo de escolarização que devem contribuir para sua constituição, dentro de concepção de sujeito das teorias críticas. Essas concepções estão em contradição com o modelo inclusivista, que busca o sujeito tal como é, em sua subjetividade complexa e que produzirá sua constituição, inclusive na escola, de forma imprevisível e não controlada, pois será resultante dele próprio, de seu próprio eu (Morin, 2003). O princípio da escola para todos que presidiu os movimentos pela escola, agora, é transformado na questão ensino para todos os sujeitos, com um modelo pedagógico que não seja prescritivo e fechado. Para concluir esta discussão, é possível considerar que as práticas educativas nos modelos críticos, assim como nos modelos tradicionais, são estruturadas por critérios de homogeneização pedagógica, enquanto a escola inclusiva, na acepção atual, deve buscar a heterogeneização pedagógica. É possível apreender essa contradição entre essas concepções de sujeito nas práticas educativas, nas situações em que: § a busca pela heterogeneidade de conteúdos, que visam incorporar as questões dos sujeitos incluídos, contrapõe-se à centralidade nos conteúdos prescritos oficialmente e/ou interpretados nos materiais didáticos praticados nas propostas homo-geneizadoras; § a necessidade de organizar os alunos incluídos, a partir de sua multiplicidade identitária nas práticas escolares, contrapõe-se às formas sustentadas em critérios de uniformização dos alunos por idade e cognição, que é prática comum nos processos de escolarização com os fundamentos homogeneizadores da escola seriada; § a necessidade de que o ensino seja realizado com base nas possibilidades diferenciadas de cada aluno e cujos resultados sejam produto de suas condições subjetivas contrapõe-se ao ensino realizado com sustentação em metodologias que implicam coletivização das ações e buscam resultados uniformes de aprendizagem. Finalmente, é preciso entender que a organização em ciclos de aprendizagem, que é amplamente utilizada pelos movimentos de inovação educacional, tem sido vista como uma solução para a escolarização inclusiva, embora haja as contradições aqui apontadas a serem consideradas. 7 Considerações Finais, Problematizações e Perguntas sobre as Inovações Educacionais Compreender o desenvolvimento desses movimentos de inovação educacional como solução para as escolas públicas realizarem a formação escolar adequada a seus alunos é um problema ainda sem resposta. Algumas questões precisam ser elucidadas para que as inovações educacionais no Brasil possam ser melhor explicadas, o que tornará mais clara a compreensão de como tem sido a implementação dos projetos escolhidos e adotados por esses movimentos e se há ou não dificuldades em sua implementação e execução plena e permanente. Primeiro, é preciso ficar mais claro como se dá a participação, ao longo do tempo, da militância profissional que sustenta os movimentos de inovação educacional desde sua concepção e transformação em política pública até sua posterior transformação em diretriz político-pedagógica adotada pelos vários governos. É preciso analisar, a partir desse momento, se há mudanças na forma de participação da militância profissional e como os militantes lidam com essa institucionalização, no contexto estatal, e como isso repercute no contexto das escolas. Será preciso explicar até que ponto a coexistência entre duas concepções contraditórias de sujeito, que sustentam o ideário desses movimentos, influencia no desenvolvimento desses projetos. Não é demais relembrar que o problema central dessa questão refere-se ao fato de que as concepções adotadas pelos projetos de inovação educacional têm princípios vinculados às teorias educacionais críticas, que buscam a formação do sujeito crítico-transformador. Por outro lado, a organização curricular em ciclos de formação pressupõe a adoção da concepção de sujeito vinculada às chamadas teorias educacionais pós-críticas, cuja concepção de sujeito é sustentada pela idéia da multiplicidade e da diferença para que seja possível a inclusão de todos nas práticas educativas, de acordo com suas características identitárias e diferenciações individuais. Nessa perspectiva, a formação do sujeito dá-se no seu percurso nas redes de intersubjetividades em que esteja inserido. Assim, há a convivência de discursos discrepantes na mesma contingência de formação escolar, e seus sentidos e significados merecem ser compreendidos. Considere-se, ainda, a questão de como a homogeneização pedagógica da tradição educacional, que sustenta a escolarização seriada, é transformada em práticas para viabilizar o ensino em ciclos que tem por base a idéia da heterogeneidade pedagógica. A contradição entre as duas perspectivas poderá ser explicada pelos discursos que sustentam sua concepção de sujeito, ou seja, formar um sujeito a partir de modelos conservadores ou críticos; portanto, buscar formar subjetividades com caráter homogêneo ou formar sujeitos a partir da idéia da multiplicidade subjetiva com caráter heterogêneo. Os discursos contraditórios produzem conseqüências ou não sobre seus processos e seus resultados são a pergunta que, reiteradamente, surge nesse contexto. É preciso perguntar-se, também, sobre as práticas de poder no governo das escolas e dos sistemas educacionais e sua influência no desenvolvimento dos projetos de inovação educacional e sobre seus significados na organização e desenvolvimento do trabalho escolar na implementação dos projetos oriundos dos movimentos de inovação educacional. As políticas de gestão e de pessoal, bem como a viabilização da participação de trabalhadores e da comunidade, estão no bojo dessa questão. Essas perguntas sobre os movimentos de inovação educacional podem ser respondidas na medida em que seja possível estabelecer a genealogia de cada percurso dos projetos desenvolvidos nos diversos locais em que se implantaram. A compreensão de sua duração, efetivação e resultados pode ser elucidada nos discursos dos vários grupos que se interpuseram na sua consecução, como representantes políticos, profissionais da educação militantes ou não, estudantes e membros da comunidade. A avaliação sobre sua relevância histórica na educação brasileira será compreendida nas suas conseqüências sobre os discursos educacionais veiculados na sociedade, em especial nos contingentes em que a educação seja objeto dessas práticas discursivas. Notas O tema do artigo é objeto da pesquisa de doutorado do autor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFMG. 1 2 Dentre esses teóricos podem ser citados Garcia (2001), Pacheco (1996) e Carbonell (2002). Entre esses trabalhos, pode ser citada a publicação organizada por Jaqueline Moll, que contém artigos nos quais é analisada a experiência de Porto Alegre ou é feita reflexão teórica sobre questões vinculadas ao projeto. Podem ser citados, também, os trabalhos coordenados por Ângela Dalben sobre a Escola Plural, em Belo Horizonte, em iniciativa do GAME – Grupo de Avaliação 3 e Medidas Educacionais – da Faculdade de Educação da UFMG. Um trabalho focado em um aspecto desses projetos é a pesquisa coordenada por Antônio Flávio Barbosa Moreira, em que é investigada a questão do multiculturalismo nos projetos da Escola Plural, em Belo Horizonte, e na rede de ensino do município do Rio de Janeiro. A Inclusão é princípio adotado no Brasil e regulamentado em lei, tornando obrigatória a inserção indiscriminada de todos na escola. 4 Referências ARROYO, M. G. Prefácio. In: MOLL, Jaqueline et al. Ciclos na escola, tempos na vida: criando possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 11-17. CARBONELL, J. A aventura e inovar: a mudança na escola. Porto Alegre: Artmed, 2002. CHERRYHOLMES, Cleo H. Um projeto social para o currículo: perspectivas pós-estruturais. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 143-172. DALBEN, Ângela (Org.). Singular ou plural? Eis a escola em questão. Belo Horizonte: GAME/FaE/UFMG, 2000a. ______ (Org.). 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