PEDRO HENRIQUE SEREJO DO NASCIMENTO ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL E BUROCRÁTICA Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª MSc. Luciana Mees Abreu Brasília 2012 Dedico este trabalho aos meus pais, que possibilitaram esta conquista. AGRADECIMENTOS Ao meu pai, Alcimar do Nascimento, pelo exemplo de perseverança que sempre demonstrou em sua vida. A minha mãe, Mércia Serejo, pelo eterno apoio e carinho, acompanhados de incontáveis xícaras de café. A minhas irmãs, Carla e Marianne, exemplos de alegria e companheirismo. À Professora Luciana Mees Abreu, pelo inestimável auxílio na produção deste trabalho, e por ter-me dado a oportunidade de tê-la como orientadora. Aos colegas e professores da Universidade Católica de Brasília, que me acompanharam e apoiaram por toda a caminhada da graduação. A todos os que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este sonho se concretizasse. RESUMO Referência: NASCIMENTO, Pedro Henrique Serejo. Administração Pública Burocrática e Gerencial. 2012. 73 folhas. Direito – Universidade Católica de Brasília, 2012. O estudo deste trabalho foi dirigido para a análise da evolução histórica da administração pública brasileira em relação aos modelos burocrático e gerencial. O modelo burocrático inicia-se no Brasil a partir de 1930, com o governo de Getúlio Vargas, em um regime com traços autoritários, permanecendo até 1985, ano em que chega ao fim a ditadura militar. O sistema que sucede a burocracia é o gerencial, ainda hoje predominante na administração pública. A burocracia foi adotada pelo Brasil na tentativa de se banirem práticas de corrupção e nepotismo, comuns no período que antecedeu a reforma. Concluída a reforma burocrática, ainda era possível identificar traços do modelo anterior. O mesmo ocorre atualmente com a reforma gerencial, em que se percebem características do modelo burocrático na atual administração pública. Assim, pode-se afirmar que não existem modelos administrativos puros, já que todos se constroem a partir de um sistema préexistente. Então, para se compreender a presente situação da administração pública brasileira, é necessário estudar a evolução e os marcos históricos que antecederam a reforma gerencial. Deve-se ainda analisar, de forma pormenorizada, o modelo burocrático, que serviu de suporte para a administração pública gerencial. Palavras-Chave: Administração Pública. Burocracia. Eficiência no serviço público. ABSTRACT This work was directed towards the analysis of the historical evolution of the Brazilian public administration in relation to managerial and bureaucratic models. The bureaucratic model starts in Brazil since 1930, with the government of Getúlio Vargas, in a regime with authoritarian traits, remaining until 1985, the year that comes to an end the military dictatorship. The system that succeeds is the managerial administration, still prevalent in public administration. The bureaucracy was adopted by Brazil in an attempt to banning corrupt practices and nepotism, common in the previous model. Once the bureaucratic reform was finished, it was still possible to identify traces of the previous model. The same happens today with management reform, which are perceived characteristics of the bureaucratic model in the current administration. Thus, it can be stated that there are no pure administrative models, since all are constructed from a pre-existing system. So, to understand the present situation of the Brazilian public administration, it is necessary to study the evolution and milestones leading to the management reform. We must also analyze in detail the bureaucratic model, which served as support for managerial public administration. Keywords: Public Administration. Bureaucracy. Efficiency in the public service. LISTA DE SIGLAS CF/88 Constituição Federal Cedam Centro de Desenvolvimento da Administração Pública CEPA Comissão de Estudos e Projetos Administrativos COSB Comissão de Simplificação Burocrática DASP Departamento Administrativo do Serviço Público DL Decreto-Lei Enap Escola Nacional de Administração Pública MARE Ministério da Administração e Reforma do Estado PDRAE Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado Semor Subsecretaria de Modernização e Reforma Administrativa STF Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9 1 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA ................. 12 1.1 IMPÉRIO DO BRASIL ............................................................................................................ 12 1.2 REPÚBLICA DO BRASIL ...................................................................................................... 14 1.3 ERA VARGAS, REFORMA BUROCRÁTICA E O DEPARTAMENTO ADMINISTRATIVO DO SERVIÇO PÚBLICO ................................................................... 15 1.4 O GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK E O DL 200/1967 ................................. 17 1.5 PROGRAMA NACIONAL DA DESBUROCRATIZAÇÃO ................................................ 21 1.6 GOVERNO SARNEY ............................................................................................................ 23 1.7 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – RETROCESSO ADMINISTRATIVO ............ 25 1.8 PLANO DIRETOR DE REFORMA DO APARELHO DO ESTADO ............................... 29 2 A ADMINISTRAÇÃO BUROCRÁTICA............................................................................. 31 2.1 AUTORIDADE, PODER E LEGITIMIDADE ....................................................................... 31 2.2 FORMAS DE AUTORIDADE ................................................................................................ 32 2.2.1 Autoridade tradicional ................................................................................... 34 2.2.2 Autoridade Carismática................................................................................. 34 2.2.3 Autoridade Burocrática ................................................................................. 35 2.3 CARACTERÍSTICAS DA BUROCRACIA ........................................................................... 36 2.3.1 Impessoalidade.............................................................................................. 37 2.3.2 Controle e rotinas .......................................................................................... 37 2.3.3 Hierarquia....................................................................................................... 38 2.3.4 Meritocracia ................................................................................................... 39 2.3.5 Formalidade das comunicações................................................................... 39 2.4 CHEFE NÃO BUROCRÁTICO ............................................................................................. 40 2.5 VANTAGENS DA BUROCRACIA ........................................................................................ 41 2.6 DISFUNÇÕES DA BUROCRACIA ...................................................................................... 42 2.7 CONTROLE ............................................................................................................................. 45 2.7.1 Formas de controle ....................................................................................... 46 3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL ..................................................................... 49 3.1 DISTINÇÕES ENTRE A ADMINISTRAÇÃO BUROCRÁTICA E A GERENCIAL ........ 50 3.2 EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE ......................................................................... 53 3.2.1 Eficiência........................................................................................................ 53 3.2.2 Eficácia ........................................................................................................... 57 3.2.3 Efetividade ..................................................................................................... 59 3.3 TÉCNICAS MODERNAS DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL .................. 60 3.3.1 Organizações Sociais.................................................................................... 61 3.3.2 As Ouvidorias Públicas ................................................................................. 64 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................... 72 9 INTRODUÇÃO Estudar a evolução histórica dos modelos administrativos é necessário para que se entenda com maior clareza a organização da administração pública atual, suas qualidades e a origem de suas falhas. Apesar de não existirem países com modelos administrativos completamente idênticos, é possível identificar três grandes modelos com características bastante distintas, quais sejam: o patrimonialismo, a burocracia e o gerencialismo. O patrimonialismo, modelo de administração pública mais rudimentar já estudado, caracterizava-se pela falta de distinção entre o patrimônio público e o do administrador. O modelo, não mais presente nos Estados democráticos, encontrava suporte no poder soberano das monarquias, em que o rei decidia de forma absoluta sobre todos os assuntos da nação, sob a legitimidade da crença religiosa. As sociedades democráticas naturalmente baniram da administração pública as práticas patrimonialistas, seja por meio da legislação – a Constituição Federal de 1988 (CF/88), por exemplo, no caput de seu art. 37, consagra, entre outros, os princípios da impessoalidade e moralidade, em claro repúdio ao patrimonialismo – ou através de decisões judiciais. Cite-se, por exemplo, a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal (STF), que vedou o nepotismo na administração pública, prática que define um dos principais traços do patrimonialismo. Os princípios evocados como fundamento para as decisões que precederam a aprovação da Súmula foram, principalmente, o da moralidade e o da impessoalidade. Asseverou-se nas discussões que, em virtude da ênfase dada pela CF/88 aos princípios administrativos, a proibição ao nepotismo independe de regulamentação legal, sendo mera consequência da fiel observância aos princípios constitucionais. Pode-se afirmar que, apesar de adotar o modelo gerencial, a administração pública brasileira ainda detém características e práticas patrimonialistas de administração, que se originam na própria criação do Estado. A administração patrimonial é frequentemente utilizada para defender interesses escusos das minorias que ascendem ao poder, e em razão de não constituir um modelo de administração racionalizado e concebido pela doutrina, mas 10 aceito pelos costumes e práticas rotineiras, não será alvo de estudo por este trabalho. A burocracia e o gerencialismo, ao contrário, são formas racionais de administração pública, que objetivam, em princípio, proporcionar eficiência e celeridade na prestação dos serviços públicos, em prol de interesses coletivos. Assim, o estudo de ambos os modelos, a respeito de suas características comuns, distinções, contexto histórico e efeitos sociais são essenciais para se entender os motivos pelos quais os serviços públicos se encontram na situação atual. Este trabalho intenta analisar as transformações sofridas pela administração pública brasileira durante suas diversas reformas e evidenciar a necessidade de se concluir a reforma gerencial administrativa, condição indispensável para suprir as crescentes demandas de uma sociedade que exige não apenas a prestação dos serviços públicos, mas sua eficiência e qualidade. O alto custo de execução dos serviços públicos, a falta de eficiência e o engessamento dos métodos de trabalho gerados pela burocracia levam países do mundo inteiro a repensar o modelo burocrático. A administração pública no Brasil sequer conseguiu consolidar a burocracia pura, mas já sofreu diversas tentativas de reforma no fito de adotar os ideais da administração gerencial. A qualidade e presteza não são características apenas desejáveis no serviço público, mas obrigatórias. Isso porque a CF/88 elenca expressamente a eficiência no rol de princípios que devem balizar a atuação da administração pública. Iniciam-se, a partir desta percepção, as reformas gerenciais brasileiras. Inicialmente, para se compreender que fatores levaram o Brasil a efetuar diversas reformas administrativas, passando pelos períodos burocrático e gerencial, é necessário estudar a evolução histórica da administração brasileira, desde o início da República até aos dias atuais. A seguir, procede-se ao estudo detalhado do modelo burocrático de administração pública, conforme o que fora idealizado por Max Weber. É importante abordar, nesse ponto, temas como legitimidade, dominação e autoridade. Por fim, estuda-se a administração pública gerencial. O novo modelo de administração pública proposto pela doutrina leva o cidadão ao foco do serviço público, buscando mais qualidade e celeridade no atendimento. A adoção de novas 11 técnicas de administração, como as ouvidorias públicas e as organizações sociais, proporcionaram grandes avanços na gestão do setor público. Para atingir este objetivo, a metodologia da pesquisa consistirá em: coletar informações sobre as práticas administrativas atualmente utilizadas no Brasil e identificar tendências de reforma; construir conhecimento e propor a discussão acerca de novos modelos administrativos aplicáveis à administração pública moderna; e identificar os modelos teóricos de administração pública propostos pela doutrina e adotados no Brasil. Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, a pesquisa baseia-se em conhecimento obtido por meio de livros e revistas especializadas, e seu método de abordagem visa expor a teoria da administração pública gerencial e analisar sua aplicabilidade de forma concreta. 12 1 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA O estado brasileiro já nasceu sob um modelo centralizado e patrimonialista. Segundo Sônia Amorim1, sempre foi poderoso, autoritário e autolegitimado, subordinando a sociedade. Nunca houve uma distinção nítida entre o interesse público e o privado, propiciando um ambiente fértil para a corrupção, envolvendo fisiologismo, a dilapidação do patrimônio público e o nepotismo. A análise do histórico da administração pública nacional inicia-se em 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. 1.1 IMPÉRIO DO BRASIL Muito embora houvesse, antes da transferência da corte portuguesa para o Brasil, uma espécie de administração na colônia, reinava a desorganização naquele período. Não havia uma definição precisa de funções e atribuições, cargos e poderes. Frederico Lustosa da Costa2 afirma que: Foi a instalação da corte que transformou uma constelação caótica de organismos superpostos em um aparelho de Estado. Pois o Estado representado pela administração colonial era, ao mesmo tempo, um todo que abrangia o indivíduo em todos os aspectos e uma miríade de instâncias e jurisdições que iam do rei até o mais modesto servidor, cujas atribuições se superpunham, se confundiam e se contradiziam. O ponto de partida para o desenvolvimento do estado e da administração pública, portanto, aconteceu em 1808, quando a família real portuguesa e sua corte chegaram ao Rio de Janeiro. Posteriormente estabeleceu-se a capital do Reino de Portugal na cidade do Rio de Janeiro, que à época era também a capital brasileira. Os alicerces do Estado nacional surgiram ao se transferir a corte portuguesa para o Brasil e, logo após, ao se elevar o Brasil a parte do reino português. Obtiveram-se, com essa série de acontecimentos, todas as ferramentas administrativas necessárias à formação de um governo soberano e autônomo. 1 Vide AMORIM, Sônia Naves David. Ética na esfera pública: a busca de novas relações. Revista do Serviço Público. Brasília: Enap, ano 51, n. 2, abr-jun/2010. p. 100. 2 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 831. 13 Além da corte portuguesa, vieram também ao Brasil milhares de pessoas, entre nobres, súditos e funcionários do império, que passaram a habitar as residências dos comerciantes mais ricos. Como forma de compensação aos comerciantes que foram desalojados de suas residências, e aos súditos que acompanharam a coroa até ao Brasil, o rei Dom João VI instituiu diversos cargos e títulos. Vislumbra-se, neste ponto, que os problemas de nepotismo e corrupção enfrentados pelo Brasil têm suas origens na formação do estado. Com o posterior retorno de Dom João VI a Portugal, em 1821, seu filho Dom Pedro I assume o controle da nação, e em sete de setembro de 1822 proclama a independência. Dois anos mais tarde seria outorgada a Constituição de 1824, que contava com a previsão de quatro poderes, o legislativo, judiciário, executivo e moderador. A divisão dos poderes, no entanto, não existia. O poder moderador, exercido pelo imperador, subjugava todos os demais. A presença do poder moderador, na Constituição de 1824, foi apenas uma ratificação do regime despótico e tirânico em que o Brasil se encontrava, provido de uma administração pública completamente patrimonialista. O trecho extraído do texto constitucional de 1824 completa o entendimento: Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos (sic). Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma (sic). Afirma Bresser Pereira3 que, neste período, a elite nacional compunha-se de senhores de terra, juristas, militares e políticos patrimonialistas que dominavam amplamente o país. A função do estado, àquela época, era servir aos interesses da elite abastada. 3 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 4. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf>. Acesso em: 19 set. 2012. 14 Trata-se de um estamento, termo que, segundo Faoro4, define uma ―camada social, uma comunidade de membros que pensam e agem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, qualificado para o exercício do poder‖. Bresser Pereira5 descreve o que Faoro definiu como o estamento que dominava o Brasil à época: É essa elite política letrada e conservadora que manda de forma autoritária ou oligárquica. Não há democracia. As eleições são uma farsa. A distância educacional e social entre a elite política e o restante da população, imensa. E no meio dela temos uma camada de funcionários públicos, donos antes de sinecuras do que de funções, dada a função do Estado patrimonial de lhes garantir emprego e sobrevivência. Para se pertencer aos estamentos não era necessário possuir boas condições financeiras, apenas prestígio e influência na sociedade. Os estamentos utilizavam o poder público para obter vantagens pessoais, à custa do erário, e seus integrantes eram denominados burocratas patrimonialistas. Esse modelo de administração, típico dos regimes monárquicos, reinou na nação durante todo o período do Brasil império, sendo substituído apenas em 1889, quando um grupo de militares tomou o poder e destituiu o imperador, proclamando a república. 1.2 REPÚBLICA DO BRASIL A proclamação da república, liderada pelo marechal Deodoro da Fonseca, em 1889, foi o primeiro esforço para expurgar do serviço público as práticas de corrupção e despotismo que dominavam a época. O golpe militar possibilitou que, em 1891, fosse promulgada nova constituição, em que se reduziram os poderes para três, os mesmo que existem atualmente, e criou-se o Tribunal de Contas. No período após a proclamação da república e que antecedeu a era Getúlio Vargas, não houve uma administração pública centralizada e organizada. Em virtude da recente ruptura com o regime despótico, a influência dos coronéis e burocratas patrimonialistas ainda se estendia por uma parcela extensa do setor público, e o 4 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Disponível em: <http://www.4shared.com/rar/vOr4tBc0/faoro_raymundo_os_donos_do_pod.html>. Acesso em: 30 maio 2012. 5 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 7. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf>. Acesso em: 19 set. 2012. 15 poder público, por consequência, realizava o interesse dos particulares, em detrimento do público. Em muitos estados os coronéis detinham mais poder do que os próprios governadores. Por este motivo surgem diversos movimentos sociais na segunda década do século XX, que reclamam reformas na administração pública. Protestava-se, principalmente, em razão: do aumento das demandas sociais; do crescimento econômico do país, que exigia uma melhor gestão pública para alavancar o desenvolvimento nacional; do necessário combate ao nepotismo e a corrupção. Essas revoltas, aliadas à quebra da política ―café com leite‖, em que havia a alternância no poder entre presidentes de São Paulo e Minas Gerais, culminaram com a revolução de 1930, quando Vargas assumiu o Governo. Nos anos seguintes houve modificações radicais na administração pública do estado, com o implemento das teorias de Weber e o consequente enfraquecimento dos costumes patrimoniais que ainda impregnavam a república. 1.3 ERA VARGAS, REFORMA BUROCRÁTICA E O DEPARTAMENTO ADMINISTRATIVO DO SERVIÇO PÚBLICO O Estado Brasileiro, que consistia em uma mistura de patrimonialismo e clientelismo, onde imperava a compra de cargos públicos e votos, finalmente passa por uma reforma radical. A maioria dos países do mundo, naquele período, já havia adotado a administração burocrática. A reforma burocrática foi essencial para o país, que se encontrava em um cenário de intenso crescimento econômico, aceleração industrial com a crescente necessidade de um estado eficiente e que incentivasse o desenvolvimento. Estas circunstâncias proporcionaram um momento de grande modernização para o aparelho do estado. O momento histórico era propício para a ascensão da indústria nacional. Os Estados Unidos enfrentavam a crise de 1929, conhecida como a grande depressão, quando houve a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, o que causou graves efeitos na economia Brasileira. Com a queda na exportação do café, o Brasil não tinha mais receitas para importar produtos industrializados americanos e europeus, visto que não era mais 16 possível manter a balança comercial em superávit. Por conseguinte, a indústria brasileira desenvolveu-se com foco no mercado interno, para a substituição de importações6. Lustosa7 afirma que a revolução de 1930 foi muito mais do que a tomada do poder por um grupo distinto, mas representa a transição do Brasil agrário para o Brasil industrial. Vargas implantou no Brasil a burocracia de Max Weber, copiada de diversos países europeus que já haviam passado por esta transição. A burocracia de Vargas tinha como princípios a impessoalidade, hierarquia, formalidade das comunicações, separação entre o patrimônio público e o privado, a meritocracia e a responsabilidade. Objetivou-se, naquele período, adotar a obrigatoriedade de se prestar concurso público para ingressar nas carreiras públicas, embora sem muito sucesso. A criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) foi um dos principais esforços do governo Vargas a fim de reestruturar o estado. Seus principais objetivos eram inserir na administração pública8: 1) A obrigatoriedade de prestação de concursos para o ingresso nas instituições públicas; 2) A classificação de cargos segundo critérios gerais e uniformes; aperfeiçoamento constante dos servidores públicos; 3) A administração orçamentária; 4) A racionalização dos métodos. Além disso, a criação de empresas estatais, naquele período, contribuiu para desenvolver a indústria focada na substituição de importações. O Estado e a administração pública, após os primeiros anos de implementação das políticas de Vargas, tornaram-se completamente diferentes do que existia no início da república. A condição completamente tradicional da administração patrimonial havia sido abandonada, dando lugar à burocracia racional de Weber. 6 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 11. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf>. Acesso em: 19 set. 2012. 7 Conforme COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 841. 8 PEREIRA, op. cit. 17 Segundo Bresser Pereira, o estado patrimonial teve duração extensa, mas a burocracia foi sucinta. Afirma o autor que a industrialização chegou tarde ao país, e logo houve sua substituição pela sociedade pós-industrial, caracterizada pela forte expansão dos setores de prestação de serviços. Assim, a reforma burocrática logo foi substituída pela reforma gerencial, necessária naquele momento de globalização e crescimento do capitalismo. As posteriores tentativas de reforma administrativa justificavam-se em razão da lentidão e da falta de eficiência constatadas no serviço público, disfunções conhecidas da burocracia. O período seguinte, em especial o governo de Juscelino Kubitschek, teve como principal característica a criação de uma administração direta eficiente e de qualidade, ao mesmo tempo em que se negligenciou a administração direta, tida como retrógrada e cara. 1.4 O GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK E O DL 200/1967 Começam a surgir, a partir do governo JK, diversas tentativas de reforma, que encontraram terreno fértil para se desenvolverem na ausência do autoritarismo de Vargas. O contexto social em relação às reformas empreendidas por Vargas era de insatisfação, de um lado estavam os que acreditavam que a burocracia era formal em excesso e, por conseguinte, ineficiente, e de outro aqueles simpatizantes ao antigo modelo patrimonialista da administração. Tendo em vista as inadequações do modelo, a administração burocrática implantada a partir de 30 sofreu sucessivas tentativas de reforma. Não obstante, as experiências se caracterizaram, em alguns casos, pela ênfase na extinção e criação de órgãos, e, em outros, pela constituição de estruturas paralelas visando alterar a rigidez burocrática. Na própria área da reforma administrativa esta última prática foi adotada, por exemplo, no Governo JK, com a criação de comissões especiais, como a Comissão de Estudos e Projetos Administrativos, objetivando a realização de estudos para simplificação dos processos administrativos e reformas ministeriais, e a Comissão de Simplificação Burocrática, que visava à elaboração de projetos 9 direcionados para reformas globais e descentralização de serviços. Criou-se, naquele período, a Comissão de Simplificação Burocrática (Cosb), que objetivou encontrar meios de descentralização de serviços, definir formas de 9 Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 19. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em 18 set. 2012. 18 delegação de competência, fixar responsabilidade e aprimorar a prestação de contas das autoridades10. Além disso, no mesmo período nasceu a Comissão de Estudos Administrativos, que tinha por finalidade prestar assistência às casas legislativas, sobre assuntos das reformas administrativas. Do ponto de vista institucional, a década que vai de 1952 a 1962 foi marcada pela realização de estudos e projetos que jamais seriam implementados. A criação da Cosb (Comissão de Simplificação Burocrática) e da Cepa (Comissão de Estudos e Projetos Administrativos), em 1956, representa as primeiras tentativas de realizar as chamadas reformas globais. A primeira tinha como objetivo principal promover estudos visando à descentralização dos serviços, por meio da avaliação das atribuições de cada órgão ou instituição e da delegação de competências, com a fixação de sua esfera de responsabilidade e da prestação de contas das autoridades. A Cepa teria a incumbência de assessorar a presidência da República em tudo que se referisse aos projetos de reforma 11 administrativa. As tentativas de reforma executadas pelo governo JK, todavia, não foram completamente realizadas. O que se verificou, afinal, foi uma maior centralização da administração direta, tornando-se mais lenta e ineficiente, ao lado de uma administração indireta completamente distinta, que já adotava, ao menos em parte, os conceitos de administração gerencial e eficiência. Surge neste momento o conceito de ―ilhas de excelência‖, que descreve a dicotomia entre a administração indireta, desenvolvida, e a administração direta, retrógrada. Lustosa relata: Esse período se caracteriza por uma crescente cisão entre a administração direta, entregue ao clientelismo e submetida, cada vez mais, aos ditames de normas rígidas e controles, e a administração descentralizada (autarquias, empresas, institutos e grupos especiais ad hoc), dotados de maior autonomia gerencial e que podiam recrutar seus quadros sem concursos. Constituíram-se assim ilhas de excelência no setor público voltadas para a administração do desenvolvimento, enquanto se deteriorava o núcleo 12 central da administração. Em 1963, sob o governo de João Goulart, o deputado Amaral Peixoto foi nomeado Ministro Extraordinário, e teve a incumbência de coordenar grupos de estudos, no intuito de sugerir os rumos que a reforma administrativa deveria tomar. 10 Vide PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 88. COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 848. 12 Ibidem. 11 19 O resultado desses estudos, aliados ao que foi produzido pela Cosb e pela Cepa, foi o Decreto-Lei nº 200/1967. O DL 200/67 foi concebido em pleno regime militar, período de intensas reformas nos mais diversos setores, tais como tributário, bancário, de ensino e administrativo. O decreto teve como ponto mais marcante a descentralização administrativa, distinguindo bem a administração direta e a indireta. Esse dispositivo legal era uma espécie de lei orgânica da administração pública, fixando princípios, estabelecendo conceitos, balizando estruturas e determinando providências. O Decreto-Lei nº 200 se apoiava numa doutrina consistente e definia preceitos claros de organização e funcionamento da máquina administrativa. Em primeiro lugar, prescrevia que a administração pública deveria se guiar pelos princípios do planejamento, da coordenação, da descentralização, da delegação de competência e do controle. Em segundo, estabelecia a distinção entre a administração direta — os ministérios e demais órgãos diretamente subordinados ao presidente da República — e a indireta, constituída pelos órgãos descentralizados — autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Em terceiro, fixava a estrutura do Poder Executivo federal, indicando os órgãos de assistência imediata do presidente da República e distribuindo os ministérios entre os setores político, econômico, social, militar e de planejamento, além de apontar os órgãos essenciais comuns aos diversos ministérios. Em quarto, desenhava os sistemas de atividades auxiliares- pessoal, orçamento, estatística, administração financeira, contabilidade e auditoria e serviços gerais. Em quinto, definia as bases do controle externo e interno. Em sexto, indicava diretrizes gerais para um novo plano de classificação de cargos. E finalmente, estatuía normas de aquisição e contratação de bens e 13 serviços. Instituíram-se na administração pública, a partir do DL 200/67, alguns dos mais importantes princípios que hoje norteiam a estrutura administrativa do estado: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competência e controle. Quanto à estrutura da administração, houve a expansão de toda a administração indireta, englobando as sociedades de economia mista, empresas públicas, autarquias e fundações públicas. A administração direta, por sua vez, não teve um crescimento significativo, pois o aumento no número de ministérios se deu com o desmembramento de outros. A autonomia da administração indireta era tão grande que havia até mesmo a possibilidade de se contratar funcionários regidos pelo regime celetista. Essa autonomia, em especial dada às empresas públicas e às sociedades de economia 13 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 848. 20 mista, possibilitou a execução de projetos de industrialização baseados em empresas estatais de grande porte, focadas principalmente no setor de infraestrutura e prestação de serviços. Bresser Pereira considera que o Decreto Lei nº 200 de 1967 (DL 200/67) foi o primeiro ímpeto de reforma para se superar o regime burocrático e atingir a administração gerencial no Brasil. Foram constatados, porém, problemas inesperados. A faculdade de se contratar funcionários sem a obrigatoriedade de concursos públicos não trouxe a eficiência esperada ao setor público, ao contrário, possibilitou que surgissem novamente os hábitos clientelistas. Além disso, não houve a preocupação de se reestruturar a administração direta, não havia concursos e previsão de carreiras no núcleo do estado. Em síntese o Decreto-Lei 200 foi uma tentativa de superação da rigidez burocrática, podendo ser considerado como um primeiro momento da administração gerencial no Brasil. A reforma, teve, entretanto, duas conseqüências inesperadas e indesejáveis. De um lado, ao permitir a contratação de empregados sem concurso público, facilitou a sobrevivência de práticas clientelistas ou fisiológicas. De outro lado, ao não se preocupar com mudanças no âmbito da administração direta ou central, que foi vista pejorativamente como ‗burocrática‘ ou rígida, deixou de realizar concursos e de desenvolver carreiras de altos administradores. O núcleo estratégico do Estado foi, na verdade, enfraquecido indevidamente através da estratégia oportunista ou ad hoc do regime militar de contratar os escalões superiores da administração através das empresas estatais. Desta maneira, a reforma administrativa prevista no Decreto-Lei 200 ficou prejudicada, especialmente pelo seu pragmatismo. Faltavam-lhe alguns elementos essenciais para que houvesse se transformado em uma reforma gerencial do Estado brasileiro, como a clara distinção entre as atividades exclusivas de estado e as nãoexclusivas, o uso sistemático do planejamento estratégico ao nível de cada organização e seu controle através de contratos de gestão e de competição administrada. Faltava-lhe também uma clara definição da importância de 14 fortalecer o núcleo estratégico do Estado. Diante da enorme expansão da administração indireta proporcionada pelo DL 200/67, viriam nos anos seguintes vários programas e políticas objetivando valorizar as carreiras da administração direta e amenizar o crescimento desenfreado da indireta. 14 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf> Acesso em 19 setembro 2012. 21 1.5 PROGRAMA NACIONAL DA DESBUROCRATIZAÇÃO No início da década de 1980, uma das principais tentativas do governo para atingir o objetivo de aumentar a eficiência do setor público foi a criação do Programa Nacional de Desburocratização, elaborado pela Subsecretaria de Modernização e Reforma Administrativa (Semor), órgão do Ministério do Planejamento. A Semor foi criada no fim da década de 1960, e passou a tratar dos assuntos de reforma administrativa do Estado, com o auxílio do Dasp. O Programa Nacional de Desburocratização, criado por este órgão, teria o intuito de direcionar a administração pública para atender as demandas da sociedade, incutindo no serviço público a noção de que atender o cidadão com qualidade e eficiência é o fim maior almejado. Segundo Hélio Beltrão, idealizador do programa, o intuito era ―retirar o usuário da condição colonial de súdito para investi-lo na de cidadão, destinatário de toda a atividade do Estado‖15. O programa de desburocratização tentaria tornar mais ágil o sistema administrativo por meio da supressão de rotinas e etapas desnecessárias, beneficiando funcionários e clientes. Lustosa16 afirma que o programa tinha um caráter inédito justamente porque privilegiava o usuário do serviço público, posicionando-o como verdadeiro cliente. Neste aspecto encontra-se seu valor social e político. Outro programa lançado no mesmo período e que merece destaque foi a desestatização, também criado para aumentar a eficiência e eficácia na administração pública. Seu principal intuito era diminuir o tamanho da administração indireta, repassando ao setor privado funções não exclusivas do Estado. O núcleo estratégico do governo poderia, pois, focar esforços em políticas mais importantes ao cidadão. O programa de desestatização tinha os seguintes pressupostos17: 15 BELTRÃO, Hélio. Descentralização e Liberdade. Rio de Janeiro: Record. 1984. p. 11, apud PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf> Acesso em 19 setembro 2012. 16 Vide COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 853. 17 Ibidem, p. 854. 22 1) Competiria preferencialmente ao setor privado a exploração e organização das atividades econômicas. O Estado não deveria atuar diretamente no setor privado, mas apenas fomentar e apoiar o setor privado, em caráter suplementar; 2) O governo deveria realizar a privatização de empresas públicas nos casos em que o controle governamental do setor tenha se tornado desnecessário. 3) As privatizações não deveriam ocorrer no caso de instituições que devam permanecer sobre o controle estatal, seja por motivos de segurança nacional ou porque o a presença direta do Estado em determinado setor seja determinante para o desenvolvimento nacional. Segundo Beatriz Wahrlich18: A necessidade de um programa de desestatização indica que na questão da organização para o desenvolvimento, a administração pública brasileira ultrapassou suas metas e chegou a hora de corrigir a disfunção existente, para atender à opção constitucional do país por uma economia de mercado. Com esta política, objetivou-se reverter a excessiva descentralização pública proporcionada pelo Decreto-Lei 200/1967, sem prejudicar os benefícios obtidos com o processo. Importantes serviços públicos passaram a ser transferidos ao setor privado, como o financeiro, elétrico, de telecomunicações, saneamento básico e rodovias. O processo, que durou vários anos e se intensificou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, proporcionou mais qualidade na prestação dos serviços, na medida em que eram exigidos investimentos constantes dos novos titulares dos serviços. O regime militar, vetor de importantes mudanças ocorridas na administração brasileira, termina em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves à presidência da república. O candidato nunca chega a tomar posse, vindo a falecer antes do momento oportuno. O vice presidente, José Sarney, assume a presidência, e 18 WAHRLICH, Beatriz Marques de Souza. Desburocratização e desestatização: novas considerações sobre as prioridades brasileiras de reforma administrativa na década de 80. Revista de Administração Pública, v. 18, n. 4, p. 72-87, 1984 apud COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. p. 854. 23 inaugura uma nova era da administração pública brasileira, sob um regime democrático. 1.6 GOVERNO SARNEY Com o fim da ditadura militar, em 1985, José Sarney assume a presidência, em razão do falecimento de Tancredo Neves antes da posse. A nação passou, novamente, a adotar um regime democrático, com a descentralização do poder para os governadores e prefeitos, com consequente aumento de autonomia dos estados e municípios. O aparato administrativo recebido pelo novo governo democrático, em 1985, caracterizava-se por uma enorme centralização do poder político. Apesar de o Decreto Lei 200/1967 intentar mudanças gerenciais no modelo de gestão – algumas bem sucedidas, a exemplo da expansão e melhoria da administração indireta –, deixou também resquícios negativos. Em primeiro lugar, o ingresso de funcionários sem concurso público permitiu a reprodução de velhas práticas patrimonialistas e fisiológicas. E, por último, a negligência com a administração direta — burocrática e rígida — que não sofreu mudanças significativas na vigência do decreto, enfraquece o núcleo estratégico do Estado, fato agravado pelo senso oportunista do regime militar que deixa de investir na formação de quadros especializados para os 19 altos escalões do serviço público . Ao fim do regime militar, as instituições públicas continuaram ―mesclando iniciativas burocráticas com medidas de cunho gerencial‖20. Era necessário, naquele momento, conter as antigas práticas clientelistas e patrimonialistas ressurgidas com o Decreto Lei 200/1967 e diminuir o tamanho da administração indireta ao mínimo necessário para a prestação de serviços essenciais do Estado. Por fim, dever-se-ia fortalecer o núcleo estratégico do governo, a administração direta, com a contratação de mais servidores e a criação de planos de carreira que valorizassem a área. 19 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 855. 20 PEREGRINO, Fernando Otávio de Freitas. A Nova Administração Pública no Brasil. Disponível em: <http://cbpfindex.cbpf.br/publication_pdfs/TESE060809-vF.2009_11_05_18_30_30.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012. 24 Para atingir estes objetivos, foi criado um novo projeto de reforma administrativa, aprovado em 1985, por meio do Decreto 91.309/1985. Segundo Lustosa21, o documento tinha as seguintes propostas de reestruturação do aparato administrativo do estado: 1) Restauração da cidadania para prover os cidadãos de meios para a realização de seus direitos, obedecendo aos critérios de universalidade e acesso irrestrito; 2) Democratização da ação administrativa em todos os níveis do governo, por meio de dinamização, redução do formalismo e transparência dos mecanismos de controle, controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pela sociedade, e articulação e proposição de novas modalidades organizacionais de decisão, execução e controle administrativo-institucional; 3) Descentralização e desconcentração da ação administrativa com o objetivo de situar a decisão pública próxima do local de ação, além de reverter o processo de crescimento desordenado da administração federal; 4) Revitalização do serviço público e valorização dos serviços; 5) Melhoria dos padrões de desempenho a fim de promover a alocação mais eficiente de recursos. Entendia-se que a administração direta havia sido desprezada, enquanto a administração indireta, que aumentava seu tamanho anualmente, havia sido valorizada em excesso. Assim, foi criada a primeira versão Lei Orgânica da Administração Pública Federal, que iria suceder o Decreto-Lei 200/1967. Seus objetivos primários eram interromper o crescimento exagerado da administração indireta e promover a valorização da administração direta. Objetivando melhorar o serviço público e renovar o quadro de servidores da administração direta, o governo de José Sarney criou a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e o Centro de Desenvolvimento da Administração Pública (Cedam). Caberia à Enap a função de formar dirigentes do serviço público. A Cedam, por sua vez, teria a incumbência de treinar e reciclar servidores, a fim de 21 Vide COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008. p. 855. 25 alocar os funcionários de forma mais lógica e racional22. Além disso, para complementar este projeto, houve reestruturação em diversas carreiras públicas, com a inserção do sistema de mérito. Essas políticas, no entanto, não foram bem sucedidas. Na prática, a reforma gerencial não aconteceu, e deu lugar a uma reforma muito mais tradicional e burocrática: a racionalização dos meios. No campo da política de recursos humanos do setor público, o governo não conseguiu instituir um sistema de carreiras, apoiando o progresso profissional na formação dos servidores, que justificasse a existência desses organismos. Deixou para seu sucessor o projeto de um regime único para os servidores públicos, determinado pela Constituição de 1988 que, cedendo a pressões de interesses corporativos, estabelecia mais de 100 direitos, uns dois ou três deveres e alguns poucos dispositivos sobre o 23 processo disciplinar e as sanções cabíveis em caso de falta grave. Enquanto o governo empreendia esforços para reformar a administração, havia sido eleita, em 1986, a Assembleia Nacional Constituinte, que começou seus trabalhos no ano seguinte, em face da demanda social por uma carta política condizente com o novo regime democrático da nação. Dos trabalhos da Assembleia resultou a promulgação da Constituição Federal de 1988, que inaugura a nova fase democrática brasileira. 1.7 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – RETROCESSO ADMINISTRATIVO Pretendia-se, com a nova carta magna, consolidar a república, além de ditar novas regras sobre a soberania nacional, valorizar a cidadania e a ordem social, reorganizar o estado, criar novas possibilidades de participação coletiva nas decisões políticas e promover a gestão responsável e eficiente dos gastos públicos. A promulgação da Constituição de 1988 representou uma ampla reforma em todo o Estado. A valorização dos direitos sociais promovida por ela é patente, o que lhe valeu o apelido de ―Constituição Cidadã‖. Lustosa observa as principais mudanças proporcionadas pela nova carta política: A Constituição de 1988 proclamou uma nova enunciação dos direitos de cidadania, ampliou os mecanismos de inclusão política e participação, 22 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2009. p. 857. 23 Ibidem. p. 857. 26 estabeleceu larga faixa de intervenção do Estado no domínio econômico, redistribuiu os ingressos públicos entre as esferas de governo, diminuiu o aparato repressivo herdado do regime militar e institucionalizou os 24 instrumentos de política social, dando-lhes substância de direção. Apesar dos avanços no campo dos direitos sociais e individuais, no contexto da administração pública o que se observou foi um retrocesso administrativo, com engessamento e encarecimento do aparelho estatal25. Segundo Paludo26, as principais causas do retrocesso foram: estender para a administração indireta as regras rígidas da administração direta, reduzindo sua flexibilidade; e a perda da autonomia do poder executivo para organizar a administração pública e para criar, transformar e extinguir cargos. Esta disfunção só se amenizou com a Emenda Constitucional nº 32/2001, que deu ao Presidente da República autonomia para dispor sobre a organização e funcionamento da administração pública, e para extinguir cargos e funções vagos, por meio de decreto autônomo. Bresser Pereira27 afirma que muitos dos dispositivos sobre a administração pública presentes na nova Constituição foram resultado de esforços de grupos burocráticos que objetivavam concluir a reforma burocrática 1936. Como consequência disso, a administração tornou-se mais rígida, foram abandonadas as práticas gerenciais, e as reformas efetuadas pelo país desde o Decreto-Lei 200/1967 foram desconsideradas. A administração pública voltava a ser hierárquica e rígida, a distinção entre administração direta e indireta praticamente desaparecia. O regime jurídico dos funcionários passava a ser único na União, e em cada nível da federação. As novas orientações da administração pública, que vinham sendo implantadas no país desde 1967, foram mais que ignoradas, destruídas, enquanto a burocracia aproveitava para estabelecer para si privilégios, como a aposentadoria com vencimentos plenos sem qualquer relação com o tempo e o valor das contribuições, e a estabilidade adquirida quase que automaticamente a partir do concurso público. Um grande mérito, porém, teve a Constituição de 1988: exigiu concurso público para entrada no serviço público, assim reduzindo substancialmente o 28 empreguismo que tradicionalmente caracterizou o Estado patrimonialista. 24 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 858. 25 Vide PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 98. 26 Ibidem. 27 Conforme PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 19. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf>. Acesso em: 19 set. 2012. 28 Ibidem. 27 Paludo29 elenca as principais transformações havidas na administração pública advindas da promulgação da Constituição Federal de 1988: 1) Necessidade de autorização do Poder Legislativo quanto a criação, transformação e extinção de órgãos/entidades, e criação de cargos, empregos e funções públicas; 2) Extensão às entidades da Administração indireta de procedimentos e mecanismos de controle aplicáveis à Administração direta, ocasionando perda de flexibilidade; 3) Descentralização para Estados e Municípios de parcela de recursos orçamentários e da responsabilidade pela execução de serviços públicos (repartição de competências); 4) Estabelecimento de isonomia salarial entre os três poderes (atualmente revogada); 5) Instituição do direito à associação sindical para os servidores públicos civis; 6) Criação do regime jurídico único para a União, Estados e Municípios; 7) Instituição de plano de carreira para servidores da Administração direta e indireta (autarquias e fundações); 8) Garantia de estabilidade para os servidores concursados após dois anos de efetivo exercício; 9) Aposentadorias com salários integrais, independente do tempo de contribuição; 10) Ampliação das competências dos órgãos de controle. Apesar do retrocesso administrativo provocado pela Carta de 1988, houve alguns avanços gerenciais importantes no aparato estatal, principalmente no que se refere à participação social no controle da gestão pública. Em resposta à pressão da sociedade por novos mecanismos de participação dos cidadãos nas decisões públicas, com a nova carta política promulgada em 1988 ―foram institucionalizados mecanismos de democracia direta, favorecendo um maior 29 Vide PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 99. 28 controle social da gestão estatal, incentivou-se a descentralização políticoadministrativa e resgatou-se a importância da função de planejamento‖30. Além disso, a obrigatoriedade de se prestar concurso público para compor o quadro de servidores públicos inibiu práticas clientelistas, trazendo mais ética ao setor público. Foram duas as principais consequências do retrocesso burocrático trazido pela nova Constituição. Primeiramente, abandonou-se o caminho que vinha sendo trilhado, desde 1967, em direção à administração gerencial, ratificando-se as práticas burocráticas. Em segundo lugar, em razão da influência da alta burocracia no processo de criação do texto constitucional, foram institucionalizados vários privilégios completamente avessos à própria burocracia, como a estabilidade concedida aos servidores civis e a aposentadoria com proventos integrais independente do tempo de contribuição31. Bresser Pereira, ao descrever o retrocesso administrativo, afirma que: Em síntese, o retrocesso burocrático ocorrido no país entre 1985 e 1989 foi uma reação ao clientelismo que dominou o país naqueles anos, mas também foi uma afirmação de privilégios corporativistas e patrimonialistas incompatíveis com o ethos burocrático. Foi, além disso, uma conseqüência de uma atitude defensiva da alta burocracia, que, sentindo-se acuada, injustamente acusada, defendeu-se de forma irracional. O resultado foi o desprestígio da administração pública brasileira, não obstante o fato de que esta seja majoritariamente formada por profissionais competentes, honestos 32 e dotados de espírito público. Paludo33 salienta, por fim, que não se pode atribuir o retrocesso administrativo ao fracasso da descentralização e da flexibilização da administração pública que o Decreto-lei nº 200/1967 promoveu. Apesar dos problemas que decorreram da grande autonomia dada pelo decreto às instituições da administração indireta, não é correto afirmar que o retrocesso administrativo foi uma forma de corrigir as disfunções da administração indireta. Segundo o autor, a transição democrática, acompanhada por uma campanha contra a estatização, levou o constituinte originário a aumentar os controles burocráticos nas empresas públicas, estabelecendo regras rígidas de administração. 30 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 859. 31 Vide PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 102. 32 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. p. 21. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf>. Acesso: em 19 set. 2012. 33 Vide PALUDO. op. cit. p. 102. 29 O Estado só vislumbra novas reformas gerenciais em 1995, já sobre o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando foi elaborado o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), sob a responsabilidade do extinto Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE). 1.8 PLANO DIRETOR DE REFORMA DO APARELHO DO ESTADO A reforma gerencial no Brasil começou a ser discutida nos anos 1990, mas é no governo de Fernando Henrique Cardoso que encontra solo fértil para se desenvolver de fato. No primeiro ano de governo, o Presidente cria o Ministério da Administração e Reforma do Estado e nomeia Luiz Carlos Bresser Pereira como ministro. O Brasil enfrentava uma crise àquela época, que surgiu em decorrência do crescimento exagerado do setor público. A ausência de controle por resultados, aliada ao fato de a administração pública ter sofrido um retrocesso burocrático quando da promulgação da Constituição de 1988, trouxe muita ineficiência ao setor público. O Estado contava com um aparato imenso, caro e pouco eficiente. Discutiu-se, naquele momento, o papel do Estado como agente de inclusão social e construção da cidadania. A partir de então, estudou-se a reforma do estado com foco em dar mais eficiência à administração pública e voltá-la para o cidadão. Considerava-se que o Estado não deveria ser responsável pela produção de bens e serviços, mas estabelecer-se apenas como controlador do setor privado. Com essas ideias consolidadas, é elaborado o PDRAE, em 1995, pelo MARE, que apresenta a principal proposta de inaugurar a administração gerencial no país. A reforma envolvia vários aspectos, como a política fiscal, privatizações e a publicização, que caracteriza a transferência para o setor privado de atividades não essenciais do Estado, executadas com o fomento governamental. Objetivou-se, ademais, reduzir o papel do estado como produtor de bens e serviços ao mínimo possível, reafirmando seu papel de controlador e fomentador do setor privado. A reforma do Estado deve ser entendida dentro do contexto da redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, para se tornar seu promotor e regulador. O Estado assume um papel menos executor ou prestador direto 30 de serviços mantendo-se, entretanto, no papel de regulador e provedor destes. Nesta nova perspectiva, busca-se o fortalecimento das suas funções de regulação e de coordenação, particularmente no nível federal, e a progressiva descentralização vertical, para os níveis estadual e municipal, das funções executivas no campo da prestação de serviços sociais e de 34 infra-estrutura. Segundo Lustosa, a reforma do PDRAE possui cinco diretrizes principais35: 1) Institucionalização, considera que a reforma só pode ser concretizada com a alteração da base legal, a partir da reforma da própria Constituição; 2) Racionalização, que busca aumentar a eficiência, por meio de cortes de gastos, sem perda de ―produção‖, fazendo a mesma quantidade de bens ou serviços (ou até mesmo mais) com o mesmo volume de recursos; 3) Flexibilização, que pretende oferecer maior autonomia aos gestores públicos na administração dos recursos humanos, materiais e financeiros colocados à sua disposição, estabelecendo o controle e cobrança a posteriori dos resultados; 4) Publicização, que constitui uma variedade de flexibilização baseada na transferência para organizações públicas não-estatais de atividades não exclusivas do Estado, sobretudo nas áreas de saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia e meio ambiente; 5) Desestatização, que compreende a privatização, a terceirização e a desregulamentação. O Plano Diretor se inseriu na legislação nacional por meio da Emenda Constitucional nº 19/98. A maior parte de suas realizações tem relação com a desestatização, como os setores de telefonia, energia elétrica e financeiro, cumprindo seu objetivo de tornar o Estado mais enxuto e eficiente. 34 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008, p. 863. 35 Ibidem, p. 863. 31 2 A ADMINISTRAÇÃO BUROCRÁTICA A burocracia foi o sistema concebido para combater as práticas dominantes no modelo patrimonialista, como forma de repelir a corrupção. Ela surge da necessidade de se administrar de forma mais justa e equânime, tanto o setor privado quanto o público. Evidentemente, as mudanças que levaram os Estados a abandonarem o sistema patrimonialista foram lentas e demandaram diversas lutas políticas, que buscavam uma administração mais democrática dos recursos públicos, voltada a atender as necessidades do cidadão. Pode-se afirmar que a burocracia decorre naturalmente de regimes democráticos, e com eles se identificam36. A forma de organização burocrática baseia-se na racionalidade, que é a adequação dos meios aos objetivos pretendidos, a fim de garantir eficiência no alcance desses objetivos, por meio de rígidos métodos de controle. 2.1 AUTORIDADE, PODER E LEGITIMIDADE Max Weber, criador da sociologia da burocracia, afirma que cada sociedade corresponde a um tipo de autoridade, que por sua vez representa o exercício do poder dentro de uma instituição37. Em âmbito estatal, trata-se de poder positivado, justificado por lei latu sensu. Poder, segundo Amitai Etzioni38, representa a imposição da própria vontade frente aos outros integrantes de uma relação social, havendo ou não resistência dos demais. É, portanto, a faculdade de subjugar a vontade alheia para impor a própria. Deve-se salientar que a autoridade proporciona o poder, mas ter poder não necessariamente significa ter autoridade. Isso porque pode haver o exercício do poder de forma legítima ou ilegítima, conforme haja ou não aceitação e motivação 36 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Introdução à Organização Burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1987 37 Conforme CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 7. v. II 38 Vide ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.69. 32 para que os dominados obedeçam às ordens de quem detém o poder. Chiavenato esclarece39: A legitimidade é o motivo que explica por que um determinado número de pessoas obedece às ordens de alguém, conferindo-lhe poder. Essa aceitação, essa justificação do poder é chamada legitimação. A autoridade é legítima quando é aceita. Legitimidade, portanto, é a aceitação e justificação do poder, que não se confunde com o fato de o administrado concordar ou não com a maneira como é exercido o poder. Assim, se a população de determinado município não concordar com a forma de administração dos recursos financeiros estabelecida pelo poder local, não deixará de haver legitimidade nas ações do prefeito e vereadores, visto que o poder ainda está positivado nas leis que compõem aquela sociedade, embora seu exercício possa não condizer com a vontade de todos. A combinação de poder e legitimidade compõe a autoridade. Etzioni40 afirma que as formas de autoridade concebidas por Weber baseiam-se no tipo de legitimidade, e não no poder aplicado. A classificação feita a seguir obedece ao critério determinado por Etzioni, e é útil por facilitar a compreensão a respeito da forma como se manifesta o poder nas instituições. Vejamos, então, cada uma delas. 2.2 FORMAS DE AUTORIDADE A forma como se organiza uma sociedade está intimamente ligada com o tipo de autoridade nela existente. Assim, é possível classificar as sociedades de acordo com o poder que os dominadores detêm. Ao tratar das formas de autoridade legítima, Weber41 define três principais tipos, classificando-as de acordo com a origem do poder: autoridade tradicional, carismática e burocrática. Todas são formas poder e dominação, que se distinguem em diversos aspectos. 39 CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração. 8.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 258. 40 Vide ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.69. 41 Ibidem, p. 83 33 O objetivo do trabalho de Weber, ao estudar a tipologia da autoridade, foi descobrir até que ponto pode-se esperar que os funcionários de uma organização aceitem os regulamentos porque ―sempre foram assim‖, se é razoável esperar que se que os empregados submetam às ordens dos superiores porque concordam com uma lei reconhecida pela maioria dos participantes, ou o quão convincente precisa ser a pessoa que dá a ordem, para que seja obedecida42. Para a melhor compreensão, pode-se dividir o conceito de sistema de autoridade em três aspectos: o exercício da autoridade; as relações autoritárias de papéis; e a legitimação43. O exercício da autoridade é a manifestação da ordem por um indivíduo e o consequente consentimento pelo outro. Trata-se, assim de interação entre o dominador e o dominado. As relações autoritárias caracterizam-se pela divisão de atividades de comando para um indivíduo e, para outro, as ações de consentimento. Essa relação é constante e estável, podendo-se observar com nitidez o papel do dominado e do dominador. A legitimação, conforme visto anteriormente, são os valores e normas de determinado grupo social que justificam a existência do sistema de autoridade e as regras que definem seus papéis e interações. A legitimação do sistema burocrático é obtida em valores racionais e legais, descritos por Weber, e possibilitam tratar de forma impessoal questões que, em regra, seriam tratadas de forma pessoal. Os sistemas burocráticos de autoridade ocorrem no contexto de grupos que possuem certo topo de sistema de valores e certo tipo de organização e que sejam, eles próprios, por outro lado, caracterizados por certos trações 44 estruturais distintivos. Passa-se ao estudo das formas de autoridade legítima conforme a origem do poder. 42 Vide ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.69. 43 Conforme HOPKINS, Terrence K. O conceito de sistema de autoridade. In Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p.74. 44 Ibidem. p. 74. 34 2.2.1 Autoridade tradicional Verifica-se a autoridade tradicional quando os dominados acatam a vontade do dominador e consideram-na legítima porque assim as coisas sempre foram e assim devem se repetir. Caso as relações de poder se auto justifiquem em razão de se perpetuarem em um modelo inquestionável, estar-se-á diante de uma autoridade tradicional. Não há racionalidade no exercício do poder tradicional, pois ele é transmitido, em regra, de forma hereditária. O poder tradicional é deveras conservador e, por este motivo, menos propenso a aceitar mudanças ou rompimentos com a tradição. Embora não se observe essa forma de autoridade na administração dos países democráticos, a autoridade tradicional é comum no ambiente familiar, especialmente em grupos mais conservadores, cujo líder é a figura do patriarca. O patriarca possui poder obtido como forma de herança de seu antecessor, e assim continua a se transferir de modo perene. O poder é arbitrário e despótico, e encontra limites apenas na cultura dos indivíduos. A autoridade tradicional não se confunde com a carismática, na medida em que o detentor do poder tradicional não cativa os subordinados a fim de legitimar seu poder. Ao contrário, esta autoridade encontra legitimidade nas tradições da sociedade. 2.2.2 Autoridade Carismática A autoridade carismática é identificada quando os dominados aceitam a vontade do dominador e consideram-na legítima em função das características do líder. Em regra seu poder de convencimento está na capacidade de seduzir as pessoas, tratando-se de qualidades capazes de arrebatar multidões de seguidores. Weber45 utilizou o termo ―carisma‖ para definir características indescritíveis e excepcionais de uma pessoa, qualidades extraordinárias e indefiníveis. Esta forma de autoridade, por obter respaldo na aceitação do líder sobre os demais, é passível de inconstâncias, na medida em que a opinião pública pode sofrer variações em relação à legitimidade das ações do dominador. 45 Conforme CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 8. v. II. 35 A autoridade carismática, de forma diversa da tradicional, não se transmite de forma hereditária ou por herança, não é racional e não se justifica de forma legal. As características do líder não podem ser repassadas a sucessores, o que impede que a transmissão do poder seja semelhante ao que ocorre na autoridade tradicional. O aparato de dominação da autoridade carismática dispõe de adeptos e devotos escolhidos diretamente pelo dominador, de forma completamente arbitrária. Por este motivo, é inconsistente, pois o critério de seleção não analisa a qualificação pessoal ou técnica, mas a confiabilidade dos seguidores. Destarte, considera-se instável a autoridade carismática, se comparada à burocrática. 2.2.3 Autoridade Burocrática Observa-se a autoridade burocrática, também chamada de racional, quando as normas e leis, aceitas pela sociedade, respaldam a legitimidade das ordens dos superiores. É a autoridade baseada na técnica e no mérito dos agentes públicos. A noção de legitimidade parte do pressuposto de que os cidadãos escolheram seus governantes e estes promulgaram as leis, agindo como procuradores da sociedade. Logo, se o poder dos agentes públicos fundamenta-se na lei, tal poder é legítimo, na medida em que a lei é legítima. Segundo Bresser46, a burocracia é ―um sistema social racional, ou um sistema social em que a divisão do trabalho é racionalmente realizada tendo em vista os fins visados‖. Karl Mannheim47 define a organização burocrática como: Um tipo de cooperação no qual as funções de cada parte do grupo são precisamente pré-ordenadas e estabelecidas e há uma garantia de que as atividades planejadas serão executadas sem maiores fricções. A burocracia é, para Weber, um tipo de poder, de organização. É um sistema racional, com divisão de trabalho feita racionalmente visando os fins. A ação racional-burocrática é a coerência da relação entre meios e fins48. 46 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Introdução à Organização Burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 8 47 Ibidem. 48 Como ensina TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Atica, 1992, p. 139. 36 Depara-se com o conceito de racionalidade intimamente ligado à ideia de burocracia. Racionalidade traduz a noção de adequação entre fins e meios, de forma a obter os resultados almejados da forma mais econômica possível. Significa, portanto, eficiência. Neste contexto, pode-se considerar racional todo sistema social em que haja a previsão da atuação de cada um de seus membros, utilizando regras para dirigir os comportamentos individuais, a fim de se atingir a máxima eficiência 49. Weber, no início do século XX, definiu a burocracia como uma forma de dominação da conduta humana, exercida, no setor estatal, pelos administradores públicos sobre os administrados. Trata-se de uma forma de poder que obtém legitimidade a partir de normas legais e da racionalidade. Foi o sociólogo quem idealizou as bases da burocracia que visavam combater o patrimonialismo e que ainda sustentam a forma da administração pública atual. A autoridade burocrática é apenas uma das características das organizações burocráticas. Paludo50 afirma que Weber não conceituou burocracia, mas apresentou suas características. 2.3 CARACTERÍSTICAS DA BUROCRACIA Popularmente consideram-se burocráticas as organizações em que dominam a morosidade, o apego excessivo às regras e rotinas e o grande volume de papelório, que impedem a eficiência e qualidade no atendimento51. Tais características, no entanto, correspondem ao que os estudiosos e teóricos apontam como defeitos da burocracia, não suas características. As pessoas passaram a chamar de burocracia os defeitos do sistema, e não o próprio sistema. A burocracia, portanto, é o contrário do que consideram os leigos. Trata-se de sistema criado com o fito de racionalizar o comportamento dos integrantes na organização, de forma a maximizar sua eficiência. 49 Vide CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração. 8. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 258. 50 Segundo PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 61. 51 Conforme CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 22. v. II. 37 São características do sistema burocrático apontadas por Weber como principais52: impessoalidade, controle de rotinas, hierarquia, meritocracia e formalidade das comunicações. Vejamos, brevemente, cada uma delas. 2.3.1 Impessoalidade Impessoalidade significa a existência de distinção entre os cargos e as pessoas que os ocupam. Na burocracia, não se obedece às pessoas dentro de uma organização, mas às leis e aos cargos que lá detêm poder. Segundo o autor, ―os membros da associação, enquanto obedientes àquele que representa a autoridade, não devem obediência a ele como um indivíduo, mas à ordem impessoal.‖ 53 A impessoalidade traz estabilidade ao sistema burocrático, pois a ausência ou falecimento de um indivíduo apenas demanda sua substituição por outro funcionário, de mesma qualificação técnica. O sistema burocrático eleva os cargos a um status superior ao das próprias pessoas que os ocupam. As pessoas que compõem a organização, então, deixam de ser indispensáveis. Há situações em que, mesmo em uma organização burocrática, não se observa o princípio da impessoalidade. É o caso, por exemplo, do chefe nãoburocrático. Neste caso, as características carismáticas do líder se sobressaem diante do cargo que ele ocupa, o que o torna uma pessoa mais importante do que o próprio cargo. Este fenômeno faz com que as relações entre os funcionários e o chefe, antes impessoais, tornem-se pessoais. O assunto será abordado mais adiante, no tópico 1.4. 2.3.2 Controle e rotinas No tocante à rotina dos métodos e meios de trabalho no modelo burocrático, verifica-se que aqueles são constantemente controlados, além de haver previsão legal para cada tipo de atuação do agente. O gestor público detém pouca margem de discricionariedade, pois a legislação prevê e normatiza a execução de todas as atividades. 52 Vide ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.71. 53 WEBER, Max. Sociologia da Burocracia. Tradução de Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p.16. 38 A organização burocrática fixa regras e normas técnicas para o desempenho de cada cargo. O funcionário que ocupar o cargo não tem margem de atuação segundo a própria vontade, ele faz apenas o que a burocracia deseja 54. Tal característica, ao ser aplicada ao setor público, coaduna-se com o princípio da legalidade, que restringe a atuação do agente público ao estritamente previsto em lei. O correto desempenho das funções e a disciplina exigida para cada cargo são assegurados pelas regras e normas, que preveem as rotinas de trabalho, e pelos superiores hierárquicos, que detêm o poder de controle55. 2.3.3 Hierarquia Na organização burocrática, todos os cargos são hierarquizados. A administração é vertical, possuindo uma longa cadeia de posições entre as autoridades. As repartições possuem competências individuais e subordinam-se às superiores. Há regras que definem os limites da submissão e do poder, para que se evitem conflitos entre os funcionários. Cada posto é necessariamente inferior a outro, e assim subsequentemente até o dirigente máximo da organização. O sistema de cargos em escalas facilita a supervisão e controle na instituição. A dominação dos superiores sobre os demais não significa completa sujeição dos empregados inferiores, pois deve haver regramento com previsão das obrigações inerentes a cada função, assim como a limitação de seus poderes e privilégios. Segundo Weber56, o funcionário ―está sujeito a uma rígida e sistemática disciplina e controle no desempenho do cargo‖. O poder de gerência é inerente aos chefes. Não há que se falar de dominação entre funções de mesma escala, pois ela decorre necessariamente da superioridade de um posto sobre outro. Observa-se, então, que o poder de direção é consequência da disposição dos encargos presentes na instituição, e não dos indivíduos. Portanto, o chefe de uma 54 Vide CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 13. v. II. 55 Ibidem. p. 14. 56 WEBER, Max. Sociologia da Burocracia. Tradução de Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 18. 39 repartição tem o poder dever de controlar os atos de seus subordinados, para que todos atuem em consonância com os objetivos da organização. A partir do momento em que mudam as relações hierárquicas, altera-se a competência do controle. 2.3.4 Meritocracia O principal critério para a seleção de novos funcionários, promoção na carreira, aumentos salariais e outros benefícios dentro da organização é o mérito. Weber descreve os cargos como um sistema de promoção, baseado na antiguidade e no merecimento, em que a promoção depende do julgamento dos superiores 57. No serviço público a seleção para o ingresso na carreira é feita por concurso público, que visa a selecionar o candidato mais competente e, portanto, o mais apto a exercer determinada função. A exigência de se realizar concurso público, prevista na Constituição Federal, art. 37, II, é uma clara demonstração de que o direito brasileiro ampara a administração pública burocrática. Rompe-se com as práticas arbitrárias do patrimonialismo, onde o nepotismo era a regra. 2.3.5 Formalidade das comunicações No modelo burocrático ocorre, essencialmente, por via escrita. As ações, decisões, regras e procedimentos são escritos, a fim de facilitar seu entendimento inequívoco, além de proporcionar comprovação e documentação adequadas58. Tanto os atos administrativos quanto as normas e contratos devem ser escritos e registrados em documentos, ainda nos casos em que a oralidade é a regra, o que possibilita maior rigor na interpretação dos atos da administração59. Assim, evitam-se interpretações equivocadas das ordens emanadas pelos superiores. 57 Vide WEBER, Max. Sociologia da Burocracia. Tradução de Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 20. 58 Como ensina CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 12. v. II. 59 WEBER, op. cit. p. 18. 40 Como as comunicações são feitas de forma constante e repetitiva, a burocracia utiliza formulários para rotinizar seu preenchimento e formalização.60 Os formulários tornam mais eficiente a comunicação entre setores distintos, pois preveem todas as informações que devem necessariamente ser encaminhadas ao destinatário da mensagem, evitando assim missivas inconsistentes ou incompletas. 2.4 CHEFE NÃO BUROCRÁTICO Os conceitos apresentados acima se aplicam a todo o corpo administrativo da organização burocrática, desde os cargos mais inferiores até os mais altos dirigentes. Weber aponta, porém, a existência de chefes não burocráticos. Os burocratas seguem as regras da instituição, mas é o chefe quem as define, frequentemente de forma unilateral. Os burocratas obtêm seus cargos segundo critérios de merecimento, competência e antiguidade, ao passo que o chefe não burocrata é eleito ou recebe sua posição de forma hereditária. Observa-se que enquanto os burocratas representam as engrenagens da instituição, contribuindo mutuamente para atingir seus objetivos e metas, o chefe não burocrático é o indivíduo que define quais objetivos serão perseguidos, e auxilia a ligação do racional com o emocional61. Neste ponto percebe-se que o chefe não burocrático apresenta traços de autoridade carismática, o que corrobora o entendimento de que não existem, na prática, sistemas de dominação puros. A maioria das instituições possui resquícios de todos os tipos de autoridade, embora seja possível determinar qual espécie mais se destaca. Os agentes políticos, tais como deputados, governadores e o próprio presidente da república, por exemplo, são líderes burocráticos, pois sua autoridade é racional, legitima-se nas leis e na constituição do país. Não se pode afirmar, porém, que estes agentes não possuam características de liderança carismática. A capacidade de arrebatar e seduzir multidões, a fim de obter votos e alcançar a eleição, é intrínseca à atividade política. 60 Vide CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 12. v. II. 61 Conforme ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.73. 41 A sucessão do chefe não burocrático pode ocasionar crises de instabilidade na instituição burocrática. Isso porque a autoridade do líder não se baseia exclusivamente nas normas e leis, mas em seu carisma e influência sobre os demais. Afirma Weber que os sucessores do chefe carismático ―são como a lua, que reflete o sol‖, e jamais se igualam ao carisma do antecessor, mas ―gastam gradativamente o carisma que a função mais elevada recebera do fundador, até exauri-lo e a estrutura perder sua legitimidade‖62. A instabilidade diante da crise de sucessão de um chefe não burocrático é inevitável, mas pode ser também benéfica à instituição, pois o momento é adequado a efetuar mudanças e inovações. 2.5 VANTAGENS DA BUROCRACIA São diversas as vantagens obtidas ao se adotar o modelo burocrático nas instituições, sejam elas públicas ou privadas. Embora atualmente considerem-na um modelo retrógrado e ultrapassado, a burocracia representou, à época em que foi concebida, um enorme avanço em relação ao modelo anterior de administração pública. Weber acreditava na superioridade da burocracia sobre as demais formas de gestão especialmente em razão da eficiência que se obteria. Os serviços estatais tornar-se-iam mais técnicos, com profissionais especializados, sem margens para arbitrariedades e desvio de poder. Ademais, a superioridade da administração burocrática ―reside no papel do conhecimento técnico que, através do desenvolvimento da moderna tecnologia e dos métodos econômicos na produção de bens, tornou-se totalmente indispensável‖63. Weber citou ainda, como vantagens daquele modelo64: 1) O alcance mais célere dos objetivos da instituição, proporcionado pela racionalidade da gestão; 2) A exata definição dos cargos, explicitando seus benefícios, deveres e atribuições; 62 ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.73. WEBER, Max. Sociologia da Burocracia. Tradução de Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 25. 64 Vide PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 61. 63 42 3) Tomada rápida de decisões, pois todos devem saber como as coisas são feitas e por quem; 4) Rotinas e procedimentos uniformes e padronizados, o que reduz os erros e o custo de produção; 5) Perpetuidade da instituição, com a substituição daqueles que são afastados; 6) A interpretação inequívoca das comunicações, que são sempre escritas, em razão da formalidade exigida, além de garantir que apenas os destinatários da comunicação a recebam; 7) Há menos atrito entre as pessoas, pois os funcionários sabem a função de cada um, suas responsabilidades e o que pode ser exigido de cada cargo; 8) A previsibilidade da atuação de todo o corpo administrativo, obtida em razão da definição prévia de cargos, funções, rotinas e métodos de trabalho, gera confiança nos funcionários. Além disso, o processo de decisão é previsível, pois é despersonalizado e exclui ―sentimentos irracionais, como o amor, a raiva, as preferências pessoais, elimina a discriminação pessoal‖65. Desta forma, a instituição como um todo se torna mais profissional e valoriza aspectos como mérito e competência, em detrimento de práticas de corrupção e nepotismo. 2.6 DISFUNÇÕES DA BUROCRACIA Conforme já afirmado antes, Weber concebeu a burocracia como um sistema criado para maximizar a eficiência das organizações, por meio da previsão de seu funcionamento. A impessoalidade e o formalismo da burocracia objetivavam, primariamente, tornar previsível a conduta de todas as pessoas. A previsibilidade seria possível com a normatização do comportamento de todos os funcionários nos regulamentos da organização. Na prática, entretanto, não é possível prever todas as situações com que os burocratas irão lidar cotidianamente. O burocrata é um funcionário que deve agir em estrita conformidade com as regras da organização, nunca de forma autônoma. 65 MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: Foco nas Instituições e Ações Governamentais. São Paulo: Atlas, 2009. p. 55. 43 Assim, na ocorrência de situações imprevistas, quando não há normas, rotinas e métodos de trabalho indicando ao burocrata como proceder, o fluxo de trabalho fica obstruído, o que compromete a eficiência e gera diversas disfunções da burocracia, como definiu Robert K. Merton66. As disfunções decorrem, principalmente, da falha em se prever o comportamento humano. A origem da imprevisibilidade encontra-se na burocratização e formalismo excessivos. Como consequência, o funcionário torna-se um especialista em determinado setor apenas porque conhece com perfeição as normas da instituição, e não porque possui formação e detém conhecimentos hábeis a auxiliar o setor a atingir suas metas e objetivos. Conhecer e cumprir meticulosamente as regras tornase mais importante do que atingir os fins almejados pelas mesmas regras. A partir daí, os funcionários cumprem as regras não apenas com vistas aos benefícios que serão obtidos por cumpri-las, mas apenas por que elas existem e devem ser cumpridas. As pessoas passam a obedecer, sem raciocinar sobre a validade e legitimidade das normas, independente das condições do caso concreto, mesmo diante de circunstâncias que indiquem que a norma não possui mais validade. O funcionário torna-se inflexível, rígido, levando ineficiência à organização. Segundo Bresser Pereira67: Ele esquece que uma organização é, antes de mais nada, um organismo vivo, dinâmico, que participa de um ambiente físico e social em constante mutação. Ele esquece que a qualidade primeira de qualquer organismo vivo é sua capacidade de se adaptar, de se ajustar a um mundo em que nada permanece imutável. Uma vez adotada pela administração pública, nos moldes acima elencados, a burocracia não se mostrou o sistema ideal. Constatou-se que sua principal disfunção era a normatização excessiva, pois a grande quantidade de regras e regulamentos internos tornaram os serviços públicos lentos. O objetivo da administração pública não era atender as demandas dos cidadãos, mas obedecer com rigor às regras, o que a tornou lenta e auto-referida68. Deste problema resultou o entendimento 66 Vide MERTON, Robert K, Social Theory and Social Structure, Free Press, 1949, Glencoe, Illinois, apud PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Introdução à Organização Burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.58. 67 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. op. cit. p.60. 68 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. 7 ed. Rio de Janeiro: FGV. 2006. p. 241. 44 popular de que burocracia é um sistema ineficiente, moroso, com muitos funcionários desinteressados. Outra disfunção da burocracia citada por diversos doutrinadores é grande volume de papel, que também decorre do excesso de formalismo, pois todas as comunicações devem ser escritas, e os acontecimentos documentados e arquivados. O formalismo é uma característica muito vantajosa para a administração burocrática, pois proporciona comunicação eficiente para a instituição, além de constituir uma excelente forma de controle. Seu excesso, porém, pode gerar o papelório, quando não há um critério eficaz para determinar se a utilização dos papéis é de fato necessária69. Bresser Pereira aponta, ainda, como consequência do excesso de burocratização, os frequentes atritos entre os funcionários burocratas e o público externo, clientes da organização. Segundo o autor, o conflito surge da despersonalização característica da administração burocrática. O cliente acredita que seu caso apresenta características que merecem um tratamento especial, já o funcionário permanece distante, impessoal, quanto trata de problemas de pessoas externas à organização, pois foi treinado para aplicar as normas gerais para resolver tais problemas, e aí resulta o conflito70. Em síntese, os principais problemas são: o excesso de formalismo, pois todas as comunicações e atos administrativos deveriam ser escritos, o que gera uma profusão de papéis e arquivos inúteis que ocupam espaço nas repartições; e a falta de flexibilidade, pois todo o comportamento do agente público é previamente estabelecido, não permitindo inovações por parte dos servidores. As falhas encontradas na burocracia levaram a doutrina a teorizar novos modelos de administração pública, que fossem capazes de satisfazer as necessidades da sociedade de forma econômica e eficaz, concentrando-se, portanto, nos resultados obtidos pelos gestores, e não mais nos procedimentos. As reformas que sucederam o modelo burocrático culminaram na criação da administração pública gerencial. Conquanto a administração pública burocrática não seja mais adotada em toda a sua essência na administração pública brasileira, não é certo dizer que ela foi 69 Conforme CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 22. v. II. 70 Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Introdução à Organização Burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.63. 45 completamente superada. Pelo contrário, os novos modelos de gestão pública, como a administração gerencial, são apenas uma forma de aperfeiçoar a burocracia, na busca de suprimir suas disfunções e introduzir novas práticas que visam dar mais flexibilidade e rapidez na atuação da instituição. 2.7 CONTROLE A necessidade de se instituir métodos rígidos de controle dentro das organizações deriva da distinção entre os interesses da organização e os dos funcionários. Em tese, tais interesses são semelhantes, pois aumentar o lucro da companhia pode proporcionar aumentos de salários, gratificações e melhores condições de trabalho. Se ambos os interesses são similares, o controle é pouco necessário, pois os funcionários perseguem com mais disposição os objetivos da instituição, pois assim também se beneficiarão. Fora do plano hipotético, todavia, percebe-se que as necessidades das empresas nunca coincidem totalmente com os interesses dos funcionários, e raramente são semelhantes. O aumento da renda da organização pode aumentar, sem que isso reflita nos salários dos funcionários. Assim, torna-se premente que a organização disponha de métodos de controle, a fim de alinhar, mesmo que de forma coercitiva, os interesses dos burocratas aos da companhia. A capacidade de controlar seus integrantes é condição para o sucesso de uma organização. Existe controle em todas as formas de sociedade, seja na família, em grupos religiosos, comunidades, etc. O que difere tais sociedades das organizações burocráticas, e consequentemente seus métodos de controle, é o fato de que as burocracias são sociedades artificiais, criadas para atingir fins específicos. Amitai Etzioni explica porque os métodos de controle nas burocracias são muito mais complexos do que nas sociedades naturais: A característica de artificialidade das organizações – sua grande preocupação com a realização, sua tendência para serem muito mais complexas que as unidades naturais – torna inadequado o controle informal que impede que se confie na identificação com a tarefa. Quase nunca as organizações podem confiar que a maioria dos participantes interiorize suas obrigações e, sem outros incentivos, cumpra voluntariamente seus compromissos. Por isso, as organizações exigem uma distribuição 46 formalmente estruturada de recompensas e sanções para apoiar a 71 obediência a suas normas, regulamentos e ordens. Para realizar o controle, a organização deve instituir um sistema de gratificações e punições, conforme a observância de cada funcionário às normas da empresa, recompensando aqueles que mais respeitam as normas, e punindo aqueles que as desconsideram. É mais comum que países e setores menos modernos distribuam recompensas sem levar em conta as realizações. Essa é uma das razões pelas quais o controle da organização é menos eficiente nos países menos desenvolvidos72. 2.7.1 Formas de controle Para melhor compreender a forma como se distribui o poder dentro de diversos grupos sociais, a doutrina identificou diversas formas de controle, que se distinguem segundo a forma como o dominador atinge o dominado. Etzioni classifica os meios de controle em três categorias, segundo os métodos utilizados para obter o controle e as consequências sociais no controlado. Tais espécies são: física, material e simbólica. Explica o autor que o controle físico abrange toda forma de dominação que se utiliza de meios físicos, ou seja, atinge o corpo do dominado. É o caso da utilização de uma arma, chicote ou prisão. Mesmo que a punição física nunca seja aplicada, a simples ameaça já caracteriza o controle físico, pois sua consequência é semelhante à utilização. Objetiva obter o poder por meio de ameaças e punições físicas. A utilização dos meios físicos para conseguir o controle dos dominados é característica do poder coercitivo73. O controle material caracteriza-se por conceder benefícios e gratificações materiais aos dominados que seguirem precisamente as ordens e regras da instituição. Tais benefícios podem ser o fornecimento de bens materiais, prestação de serviços, pagamento em dinheiro ou qualquer espécie de direito que possibilite a obtenção de bens materiais. Nota-se que o controle material incentiva a obediência 71 ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas. 8. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p.78. Vide ABEGGLEN, J.C, The Japanese Factory: Aspects of its social organization, apud ETZIONI, Amitai, op. cit. p.78. 73 ETZIONI, op. cit. p. 78 72 47 dos subordinados, pois assim poderão obter benefícios materiais. De forma diretamente oposta, o controle físico não incentiva a obediência, mas reprime a desobediência. A aplicação deste método de controle, por meio de incentivos econômicos, caracteriza o poder utilitário, que se baseia na troca, nos bens e serviços. O controle simbólico, por fim, constitui todos os métodos que não utilizam ameaça física ou compensação material para dominar. É chamado pela doutrina de poder normativo, e se vale do controle moral e ético, baseado em conceitos de fé, crença e ideologia para dominar. Observa-se tal tipo de poder, principalmente, em igrejas, partidos políticos, organizações sociais. É possível observar na administração pública, em maior ou em menor grau, todas as espécies de controle citadas por Etzioni. O controle material é, por óbvio, o mais evidente, tanto no setor público quando nas entidades privadas, simplesmente porque é característica de qualquer relação de emprego ou prestação de serviços. O funcionário é pago para trabalhar e seguir as ordens do patrão ou de seu superior hierárquico, caso não o faça, corre o risco de ser demitido ou exonerado. O exemplo mais comum são as gratificações desempenho, presentes em várias instituições públicas, onde os funcionários que conseguem superar as metas estabelecidas recebem gratificações extras e outros benefícios materiais. O controle físico, embora em menor grau, também está presente no setor público, sem afrontar o regime constitucional. Trata-se, por exemplo, da prisão militar disciplinar, necessária para a manutenção da ordem e subordinação em um ambiente em que a hierarquia é de extrema importância. É uma forma de controle físico, utilizado no ordenamento jurídico atual e que não vai de encontro à Constituição Federal. O controle simbólico pode ser observado nos diversos códigos de ética e conduta das instituições públicas atuais. Tais regulamentos, em sua maioria, consignam mecanismos duais de dominação, com a aplicação dos controles moral e material simultaneamente. É o caso, por exemplo, da regra que se justifica com base nos preceitos morais e éticos da instituição, e que, caso não seja cumprida, pode gerar multas ou outras punições financeiras ao funcionário. A essência da cultura burocrática, embora não seja mais completamente aplicada atualmente, é de grande importância para a maioria das organizações do 48 mundo, sejam estatais ou privadas. Pode-se afirmar que, enquanto durou a administração patrimonial, era premente a criação de um modelo administrativo capaz de proporcionar o controle rígido e racional sobre os dominados. Sem as burocracias seria pouco provável que ocorresse a revolução industrial, evento que culminou em outros diversos avanços e que proporcionou à humanidade o veloz desenvolvimento tecnológico que hoje se testemunha. Ao se estudar a história da administração pública no Brasil e sua evolução, nota-se que desde o Brasil Império até os dias atuais a burocracia desempenha um papel fundamental para impulsionar o desenvolvimento da nação. 49 3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL A administração pública gerencial é o modelo adotado atualmente no Brasil e foi criado com o intuito de solucionar os problemas surgidos com o modelo burocrático. Para atingir este objetivo, adotaram-se na administração pública cultura e técnicas gerenciais provenientes da iniciativa privada. Consta do PDRAE o contexto histórico em que se encontrava o mundo quando ganham força as reformas gerenciais: Emerge na segunda metade do século XX, como resposta, de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado, e, de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados à adoção do modelo anterior. A eficiência da administração pública - a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário - torna-se então essencial. A reforma do aparelho do Estado passa a ser orientada predominantemente pelos valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos e pelo desenvolvimento de 74 uma cultura gerencial nas organizações. Sabe-se que a reforma burocrática surgiu com o fito de eliminar toda a cultura administrativa patrimonial, em um claro rompimento com o modelo anterior. A reforma gerencial, todavia, ocorreu de forma distinta. Surgiram, de fato, mudanças profundas na gestão dos serviços e bens públicos, mas de forma mais contida do que como ocorreu na reforma burocrática, visto que alguns dos princípios fundamentais da administração gerencial são também princípios burocráticos. As ideias gerenciais objetivam implantar um sistema de administração mais flexível, eficiente, descentralizado e participativo, inspirado na administração do setor privado. As reformas da nova administração trazem o cidadão para o foco do serviço público, que passa a ser visto não apenas como dono da coisa pública, mas torna-se cliente. É necessário, portanto, oferecer serviços de qualidade, conforme exige o cidadão-cliente. A administração gerencial é um aperfeiçoamento da burocracia, pois adota algumas de suas características principais, a exemplo da meritocracia, da 74 Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em: 18 set. 2012. 50 obrigatoriedade de se prestar concurso público para tornar-se funcionário público e da competência técnica dos servidores. Na administração pública gerencial, o cidadão deixa de ser visto apenas como contribuinte de impostos para tornar-se cliente dos serviços oferecidos pelo Estado. Neste sistema, considera-se bom o serviço que supre as necessidades do cidadão, e não o serviço cujos processos administrativos são rigidamente controlados. A este aspecto dá-se o nome de efetividade dos serviços públicos, na medida em que o trabalho do Estado se reflete em melhorias na qualidade de vida dos indivíduos. 3.1 DISTINÇÕES ENTRE A ADMINISTRAÇÃO BUROCRÁTICA E A GERENCIAL Apesar das grandes distinções entre os modelos administrativos burocrático e gerencial, não se pode dizer que a administração gerencial contraria completamente as práticas burocráticas. É mais adequado encarar o modelo gerencial como a evolução da burocracia, visto que conserva algumas de suas qualidades, como os processos impessoais de admissão e ascensão no serviço público, as avaliações de desempenho dos servidores e a ênfase no conhecimento técnico. A administração pública gerencial constitui um avanço e até um certo ponto um rompimento com a administração pública burocrática. Isto não significa, entretanto, que negue todos os seus princípios. Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante 75 de desempenho, o treinamento sistemático. É bem grande a diferença entre administração a pública gerencial e a burocrática, pois elas possuem perspectivas distintas em relação aos cidadãos, aos funcionários e ao Estado. José Matias-Pereira76 facilita o entendimento ao elencar as principais distinções entre os dois modelos: 1) Orientação do serviço público: a burocracia é autorreferente e se concentra nos processos, em suas próprias necessidades e perspectivas, 75 Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em 18 set. 2012. 76 Vide MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: Foco nas Instituições e Ações Governamentais. São Paulo: Atlas, 2009. p. 55. 51 sem considerar a alta ineficiência envolvida. A administração gerencial, ao contrário, é orientada para o cidadão, ao consumidor de seus serviços. Este modelo se concentra na demanda do cidadão-cliente. Procura-se, enfim, atender ao cidadão, e não ao processo burocrático. 2) Racionalidade: segundo a cultura burocrática, haveria uma racionalidade absoluta, que a burocracia estaria encarregada de garantir. Já a administração pública gerencial pensa na sociedade como um campo de conflito, cooperação e incerteza, na qual os cidadãos defendem seus interesses e afirmam suas posições ideológicas. 3) Controle: é a diferença fundamental entre os dois modelos. Para a burocracia, o método mais eficaz de se evitarem abusos, tais como o nepotismo e a corrupção, é o controle rígido dos processos e procedimentos. O gerencialismo, por sua vez, também preocupa-se com o combate da corrupção e do nepotismo, mas utiliza-se de métodos diferentes, como indicadores de desempenho e gestão por resultados. O controle, na administração gerencial, deixa de ser prévio e torna-se posterior. 4) Confiança concedida ao agente público: a burocracia parte do pressuposto de que todos os agentes públicos são corrompíveis e, por isso, devem trabalhar com permanente supervisão hierárquica, a fim de se obter um controle rígido de seu trabalho. Na administração gerencial existe certa confiança no servidor, apesar de limitada. Assim, o administrador possui uma margem de discricionariedade maior para executar seu trabalho, que também sofrerá controle. Tal controle, porém, será posterior, efetuado por meio de indicativos de cumprimento das metas fixadas e dos resultados obtidos. 5) Centralização e autoritarismo: a administração pública burocrática é centralizada e autoritária, ao passo que a gerencial tende a ser mais descentralizada, prega a delegação de poderes, atribuições e responsabilidades aos servidores de hierarquia inferior. 6) Formalidades: a administração burocrática possui a formalidade como um de seus ideais, o que a torna rígida em demasia. A administração gerencial é pautada na confiança e na multiplicidade de agentes com poder de decisão. Por isso, são necessários modelos de gestão mais flexíveis, 52 estruturas horizontais, descentralização de funções e incentivos à criatividade e inovação. Conforme afirmado, a forma de controle é a principal diferença entre os dois modelos de administração pública estudados. Enquanto a burocracia controla os métodos de trabalho, a administração gerencial preocupa-se com os resultados obtidos pelos gestores, e deixa a cargo deles a decisão sobre a forma mais adequada a se atingirem os objetivos. A estratégia da administração pública gerencial é: definir de forma precisa os objetivos a serem atingidos pelo administrador e sua unidade; garantir a autonomia do administrador na gestão de recursos humanos e financeiros que forem de sua responsabilidade, para atingir os objetivos fixados; controlar a gestão de forma posterior; por meio de aferição de resultados; deslocar a o foco do serviço público para os fins, não para os meios.77 Pode-se afirmar que a administração gerencial possui diversas características da administração de empresas do setor privado, mas com estas não se confunde. A principal razão que diferencia os dois modelos de gestão é o interesse público que permeia a atuação do Estado, mas inexiste no setor privado. Além disso, o PDRAE consolida outras diferenças: Enquanto a receita das empresas depende dos pagamentos que os clientes fazem livremente na compra de seus produtos e serviços, a receita do Estado deriva de impostos, ou seja, de contribuições obrigatórias, sem contrapartida direta. Enquanto o mercado controla a administração das empresas, a sociedade - por meio de políticos eleitos - controla a administração pública. Enquanto a administração de empresas está voltada para o lucro privado, para a maximização dos interesses dos acionistas, esperando-se que, através do mercado, o interesse coletivo seja atendido, a administração pública gerencial está explícita e diretamente voltada para o 78 interesse público. É importante notar, ademais, que o conceito de ―interesse público‖ para a administração gerencial difere ligeiramente do ―interesse público‖ burocrático. Com efeito, o interesse público na burocracia é frequentemente confundido com o próprio interesse do Estado. Trabalhar com esta perspectiva determina que os serviços 77 Conforme PALUDO, Augustinho. Administração Pública. Elsevier: Rio de Janeiro, 2010. p. 69. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em: 18 set. 2012. 78 53 públicos voltem grande parte das atividades e dos recursos para atender as necessidades da burocracia, em detrimento das necessidades dos cidadãos. O conteúdo das políticas públicas, na burocracia, torna-se objetivo secundário. ―A administração pública gerencial nega essa visão do interesse público, relacionandoo com o interesse da coletividade e não com o do aparato do Estado‖79. O gerencialismo, ao contrário, eleva o interesse público a um novo patamar, tornando o bem-estar dos cidadãos o principal objetivo a ser atingido. 3.2 EFICIÊNCIA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE Como visto, a administração pública gerencial pauta-se pelo ideal de eficiência, com vistas a oferecer serviços públicos essenciais aos cidadãos. Neste tipo de gestão, existe uma maior preocupação em atender, com qualidade, o maior número possível de pessoas. Como os recursos disponíveis ao Estado são finitos e esparsos, existe também a necessidade de se produzir o máximo, utilizado no mínimo de recursos. Neste contexto, é importante diferenciar os conceitos de eficiência, eficácia e efetividade. Apesar de possuírem significados distintos, todos estão interligados, e juntos formam as bases necessárias para suportar a administração gerencial. É fundamental salientar que nenhum dos conceitos apresentados são sinônimos. Assim, é possível que uma atividade estatal seja executada com eficiência, mas com falta de eficácia, e vice-versa. 3.2.1 Eficiência Pode-se conceituar eficiência como a capacidade de se produzir mais com menos. Trata-se não apenas de economizar recursos, mas de utilizá-los da melhor forma possível. 79 Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 16. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em: 18 set. 2012. 54 Chiavenato80 afirma que ―eficácia é uma medida normativa do alcance dos resultados, enquanto eficiência é uma medida normativa da utilização dos recursos nesse processo‖. A eficiência é uma relação entre custos e benefícios. Assim, a eficiência está voltada para a melhor maneira pela qual as coisas devem ser feitas ou executadas (métodos), a fim de que os recursos sejam aplicados da forma 81 mais racional possível [...]. A eficiência, portanto, trata de uma preocupação quanto aos meios, ao processo de execução. Segundo Matias-Pereira82, trata-se de uma relação entre os custos e benefícios. É a relação entre os custos aplicados e o produto final recebido, após o processo de produção. O autor afirma que eficiência é a razão entre o esforço e o resultado, entre a despesa e a receita, entre o custo e o benefício resultante. ―A eficiência se preocupa em fazer corretamente as ações e/ou atividades a que se propõe, e da melhor forma possível. Daí a ênfase nos métodos e procedimentos internos‖83. É similar o entendimento de Torres84, que enfatiza o aspecto interno do princípio da eficiência: Eficiência: aqui, mais importante que o simples alcance dos objetivos estabelecidos é deixar explícito como esses foram conseguidos. Existe claramente a preocupação com os mecanismos utilizados para obtenção do êxito da ação estatal, ou seja, é preciso buscar os meios mais econômicos e viáveis, utilizando a racionalidade econômica que busca maximizar os resultados e minimizar os custos, ou seja, fazer o melhor com menores custos, gastando com inteligência os recursos pagos pelo contribuinte. O princípio da eficiência, previsto na Constituição Federal, foi introduzido ao rol de princípios que regem a administração pública por meio da Emenda Constitucional nº 19/98. A emenda representou uma das primeiras tentativas para reverter o retrocesso burocrático advindo da promulgação da nova Constituição, e trouxe o seguinte texto: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos 80 CHIAVENATO, Idalberto. Recursos humanos na Empresa: pessoas, organizações e sistemas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 70. 81 Ibidem. p. 70. 82 Vide MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: Foco nas Instituições e Ações Governamentais. São Paulo: Atlas, 2009. p. 62. 83 Ibidem. 84 TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 175. 55 princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. Outra modificação importante trazida pela Emenda Constitucional nº 19/98 foi o acréscimo do § 8º ao art. 37: § 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade [...]. O referido parágrafo trata do contrato de gestão, citado no PDRAE como um dos objetivos para modernizar as atividades exclusivas do Estado. Por meio dele, o núcleo estratégico do estado concede mais autonomia a autarquias e fundações públicas. Em troca, a instituição que celebrar o contrato deve atingir os objetivos qualitativos e quantitativos previamente acordados no contrato. A partir deste momento, muda-se o paradigma da administração pública no Brasil, pois há autorização legal, por meio da previsão constitucional, para se proceder novamente às reformas gerenciais, dirigindo o foco do serviço público para a eficiência dos serviços. A eficiência é o pilar mais importante que sustenta a administração pública gerencial. Neste ponto, vale citar a eminente doutrinadora Di Pietro85, que explica com clareza o significado do princípio constitucional da eficiência: O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público. Em que pese a importância do princípio para a nova administração pública, é essencial ressaltar que não existem, na Constituição de 1988, princípios absolutos, tampouco hierarquia entre eles. Significa dizer que, em caso de conflitos entre normas constitucionais, procede-se a uma interpretação mais restritiva dos dispositivos, ponderando-se as consequências de se limitar as normas constitucionais conflituosas. 85 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 98. 56 Este assunto é alvo de discussão por Jesus Leguina Villa86, ao tratar da aparente colisão entre os princípios da eficiência e legalidade. Segundo o autor, o princípio da eficiência não deve ser subestimado, pois importa em serviços de mais qualidade prestados aos cidadãos. A eficiência que se exige na Constituição, todavia, não é a mesma das instituições privadas, tampouco pode se sobrepor aos demais princípios constitucionais, em especial a legalidade. Villa87 afirma que a eficiência do serviço público deve ser sempre suscetível de ser alcançada em obediência ao ordenamento jurídico, nunca o contrariando. Significa dizer que, caso a legislação constitua um obstáculo para a efetivação do princípio da eficiência, deve-se reformá-la. A eficiência não pode justificar, de forma alguma, uma atuação oposta ao direito. Vale dizer que a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança 88 jurídica e ao próprio estado de direito. O princípio da eficiência não se confunde com o princípio da economicidade. Este objetiva poupar os recursos do erário e evitar prejuízos e gastos necessários. A eficiência, ao contrário, não visa diminuir dispêndios, apenas busca aproveitar melhor os recursos que se encontram à disposição do Estado. Em síntese, pode-se afirmar que o princípio da eficiência orienta a administração pública a executar todas as tarefas de modo a atingir o melhor desempenho possível. Tal princípio é citado inúmeras vezes no PDRAE de 1995, e apresenta-se como um dos principais objetivos da reforma. Reformar o aparelho do Estado significa garantir a esse aparelho maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição de implementar as leis e políticas públicas. Significa tornar muito mais eficientes as atividades exclusivas de Estado, através da transformação das autarquias em ―agências autônomas‖, e tornar também muito mais eficientes os serviços sociais competitivos ao transformá-los em organizações públicas não-estatais de um tipo especial: as ―organizações sociais‖. Com este intuito de promover a eficiência no setor público, o PDRAE sugere a criação das chamadas Organizações Sociais, entidades de direito privado 86 Vide VILLA, Jesus Leguina. A Constituição Espanhola e a Fuga do Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo Aplicado. n. 6. set. 1995. apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 98. 87 Ibidem. p. 98. 88 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. op. cit. p. 99. 57 prestadoras de serviços públicos não exclusivos do Estado e que não possuam fins lucrativos. Trata-se do programa de publicização, em que o Estado passa a atuar como fomentador das atividades, por meio de dotação orçamentária. Este tipo de parceria é bem sucedida por que os serviços passam a ser administrados por uma entidade independente, com mais autonomia. Não se abre mão do controle do Estado sobre os recursos públicos administrados pelo setor privado, apenas se modifica a forma de controle, por meio da avaliação do desempenho da Organização Social. Este assunto e outras técnicas modernas de administração, advindas do gerencialismo serão alvo de estudo mais pormenorizado no item 4.3. 3.2.2 Eficácia A eficácia traduz a preocupação em se executar corretamente os serviços e atividades da instituição, necessários para atingir seus objetivos e metas. A eficácia, portanto, preocupa-se com os fins. À medida que o administrador se preocupa em fazer corretamente as coisas, ele está se voltando para a eficiência (melhor utilização dos recursos disponíveis). Porém, quando ele utiliza estes instrumentos fornecidos por aqueles que executam para avaliar o alcance dos resultados, isto é, para verificar se as coisas bem feitas são as que realmente deveriam ser feitas, então ele está se voltando para a eficácia (alcance dos objetivos através 89 dos recursos disponíveis) Pode-se imaginar, como exemplo de distinção entre os conceitos, uma empresa que produza em grandes quantidades, no menor tempo possível, e com baixo custo de produção. Se a citada empresa faz mercadorias que não possuem demanda no mercado, falta-lhe eficácia, muito embora sua produção seja eficiente. A capacidade de uma organização atingir seus objetivos representa sua eficácia. Trata-se, portanto, de avaliar o resultado final alcançado, sem preocupar-se com os meio utilizados para chegar àquele fim. Eficácia: basicamente, a preocupação maior que o conceito revela se relaciona simplesmente com o atingimento dos objetivos desejados por 89 CHIAVENATO, Idalberto. Recursos humanos na Empresa: pessoas, organizações e sistemas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 70. 58 determinada ação estatal, pouco se importando com os meios e 90 mecanismos utilizados para atingir tais objetivos. Segundo Matias-Pereira, eficácia é: A capacidade de satisfazer uma necessidade da sociedade por meio do suprimento de seus produtos (bens ou serviços) [...] A eficácia se preocupa em fazer de forma correta as ações e/ou atividades a que se propõe para 91 atender às necessidades da empresa e do ambiente que a envolve. Este conceito está ligado ao próprio objetivo das organizações, e representa uma relação entre os resultados almejados e os efetivamente atingidos. Trata-se de uma instituição eficaz aquela que consegue alcançar totalmente seus resultados, com capacidade de se concluir aquilo que se almejou. O fenômeno de globalização que afeta o mundo e integra o comércio de diversas nações é uma forma de incentivo para que as empresas aprimorem o modelo de administração, com vistas a obter mais eficácia e eficiência. As novas tecnologias de transporte e comunicação possibilitam que empresas de todos os lugares do mundo obtenham novos mercados. As empresas que não inovarem, a fim de conseguirem maior inserção no mercado, estão fadadas ao insucesso. Neste contexto, a eficácia de uma empresa mede sua capacidade de resistir à concorrência das novas empresas que invadem seu mercado, ou sua capacidade de se introduzir de forma bem sucedida em novos mercados, mantendo assim sua perene atividade e alcançando seu objetivo principal, o lucro. Na prestação de serviço público, de forma distinta ao setor privado, não há concorrência. De forma geral, o Estado presta serviços sem o intuito de se obter lucro, em regime de exclusividade ou fomentando instituições de direito privado. A eficácia do serviço público, portanto, não consiste em dominar o mercado, resistir a concorrência ou obter lucro. A eficácia no serviço público é pautada pelo interesse público e consiste em satisfazer, o quanto possível, a demanda dos cidadãos. É eficaz o serviço público que atende com presteza e qualidade e executa suas atividades em conformidade com os desejos da sociedade. 90 TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 175. 91 MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: Foco nas Instituições e Ações Governamentais. São Paulo: Atlas, 2009. p. 62. 59 A falta de eficácia, em contraposição, corresponde à incapacidade do serviço público de atender as expectativas dos seus usuários, seja em razão de prestar um serviço de forma incorreta ou sem qualidade. Até a prestação de um serviço com qualidade pode ser considerado ineficaz, caso seu objeto não corresponda aos anseios da sociedade. Atender bem o cidadão, que passa ser encarado, na administração gerencial, como cliente do serviço público, é o foco principal da gestão eficaz. Assim, quanto mais clientes são atendidos, mais metas são atingidas e, consequentemente, o Estado cumpre seu papel de prestar serviços de qualidade aos verdadeiros donos da coisa pública. Eficácia, enfim, diz respeito a objetivos, resultados. É a competência para se realizar o que se espera da instituição, independentemente dos métodos utilizados e de quão dispendioso foi o processo. 3.2.3 Efetividade Efetividade é um conceito mais moderno, incorporado à literatura da administração pública para descrever algo mais complexo que a eficiência e a eficácia, mas que possui ambas as características. A nova administração pública utiliza o termo efetividade para aferir o quanto as ações estatais trazem, de fato, benefícios aos cidadãos. Assim, efetividade possui maior amplitude do que eficácia, visto que enquanto a eficácia apenas busca atingir os objetivos, a efetividade procura alinhar os objetivos das políticas públicas às necessidades reais dos cidadãos. A efetividade objetiva descobrir se os serviços públicos trazem melhorias na qualidade de vida dos cidadãos. Torres 92 descreve a complexidade do conceito: Efetividade: é o mais complexo dos três conceitos, em que a preocupação central é averiguar a real necessidade e oportunidade de determinadas ações estatais, deixando claro que setores são beneficiados e em detrimento de que outros atores sociais. Essa averiguação da necessidade e oportunidade deve ser a mais democrática, transparente e responsável possível, buscando sintonizar e sensibilizar a população para a implementação das políticas públicas. Este conceito não se relaciona estritamente com a ideia de eficiência, que tem uma conotação econômica 92 TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 175. 60 muito forte, haja vista que nada mais impróprio para a administração pública do que fazer com eficiência o que simplesmente não precisa ser feito. Diferente da eficiência, que se preocupa com a relação entre custo e benefício, a efetividade concentra-se em avaliar a melhoria na qualidade de vida da população, que é alvo primário da atividade pública. Avalia-se, então, a qualidade dos serviços. Serviço público efetivo é aquele capaz de produzir resultados que resolvem os problemas de uma sociedade. Para esclarecer sua compreensão, pode-se imaginar um serviço público de saúde que atende a população de baixa renda. Supondo-se que o serviço possua profissionais competentes e em número suficiente para atender todos os que necessitem de tratamento médico, pode-se afirmar que tal entidade possui eficácia máxima. Se, no entanto, medicamentos de fornecimento obrigatório pelo governo estiverem em falta, com consequente prejuízo no tratamento dos doentes, o serviço certamente não será capaz de atingir a efetividade exigida pelos cidadãos. Efetividade é provavelmente o conceito mais difícil de atingir ou aferir, pois trata de avaliações subjetivas a respeito da qualidade dos serviços. A opinião dos consumidores e o nível de inserção de uma política na sociedade, por exemplo, são dados muito relevantes e só obtidos mediante pesquisas de opinião e outras formas de diálogo entre a sociedade e o poder público. Tais pesquisas são capazes de discriminar o quanto as ações públicas são capazes de causar impactos na vida das pessoas, transformando positivamente realidades. 3.3 TÉCNICAS MODERNAS DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL Há diversas técnicas de administração pública nascidas na cultura gerencial que contribuem para o aperfeiçoamento dos serviços prestados aos cidadãos. Como já comentado, o objetivo primário destas técnicas é livrar o serviço público dos obstáculos burocráticos, concedendo maior independência às instituições, em troca de uma cobrança mais intensa por resultados eficazes. As ouvidorias públicas e organizações sociais são dois institutos de grande importância na nova administração pública. As organizações sociais contribuem para tornar mais eficazes e eficientes os serviços públicos prestados aos cidadãos, na 61 medida em que são executadas em regime de direito privado, portanto livres dos problemas crônicos de morosidade que assolam o serviço público. Passa-se a uma breve análise dos institutos citados 3.3.1 Organizações Sociais O processo de publicização, previsto no PDRAE, idealizou a criação das chamadas Organizações Sociais, no intuito de promover a reforma gerencial na administração pública indireta. Trata-se de um processo de transferência da titularidade de diversos serviços públicos para o setor privado. As entidades qualificadas como organizações sociais possuem respaldo, em âmbito federal, na Lei nº 9.637/98. Estas organizações constituem pessoas jurídicas de direito privado, não possuem fins lucrativos e são criadas sem a intervenção estatal, por iniciativa particular. Sua atividade fim são serviços sociais não exclusivos do poder público, executados com fomento do Estado, por meio de contrato de gestão. As organizações sociais foram citadas no PDRAE como um dos objetivos da reforma para os serviços não exclusivos: Transferir para o setor publico não-estatal estes serviços, através de um programa de ―publicização‖, transformando as atuais fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária. Aprovada a criação deste novo instituto jurídico, as Organizações Sociais passaram a ser regidas pela Lei nº 9.637/98. Di Pietro93 elenca algumas das características do regime jurídico da Organização Social, estabelecidas pela referida lei: a) é definida como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos; b) criada por particulares, deve habilitar-se perante a Administração Pública, para obter a qualificação de organização social; ela é declarada, pelo artigo 11 da Lei nº 9.637/98, como ―entidade de interesse social e utilidade pública‖; c) ela pode atuar nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde; 93 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 486. 62 d) seu órgão de deliberação superior tem que ter representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral; e) as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social são definidas por meio de contrato de gestão, que deve especificar o programa de trabalho proposto pela organização social, estipular as metas a serem atingidas, os respectivos prazos de execução, bem como os critérios objetivos de avaliação de desempenho, inclusive mediante indicadores de qualidade e produtividade; f) A execução do contrato de gestão será supervisionada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada; o controle que sobre ela se exerce é de resultado; g) O fomento pelo Poder Público poderá abranger as seguintes medidas: destinação de recursos orçamentários e bens necessários ao cumprimento do contrato de gestão, mediante permissão de uso, com dispensa de licitação; cessão especial de servidores públicos, com ônus para a origem; dispensa de licitação nos contratos de prestação de serviços celebrados entre a Administração Pública e a organização social; h) A entidade poderá ser desclassificada como organização social quando descumprir as normas do contrato de gestão. Como consequência da criação de diversas organizações sociais que atuam nos mais variados setores, a tendência é a extinção de alguns órgãos e entidades públicas. Os bens móveis e imóveis destas entidades extintas passam a ser utilizados pela organização social, que conta inclusive com o apoio de servidores públicos do órgão extinto. Desta forma, alguns serviços da área social deixam de ser prestados pelo Estado, que se limita a fomentar o setor provado. Este processo foi chamado de ―publicização‖ pelo PDRAE. Esta ideia baseia-se na concepção de que o Estado não pode ser o único fornecedor de bens serviços e serviços à sociedade, especialmente se tratando de funções que são públicas, mas não exclusivas do Estado. Cite-se o exemplo das Santas Casas de Misericórdia, organizações outrora mais comuns que destinam-se a prestar assistência médica a comunidades carentes. A transferência de serviços não exclusivos do Estado para a esfera privada, por meio das organizações sociais, é um dos grandes méritos da administração gerencial. De fato, é evidente que a administração privada é muito mais versátil e eficiente do que a pública, em razão possuir um processo decisório célere e autônomo. Assim, configura-se um dos principais institutos jurídicos que aumentam a eficiência na administração pública. 63 O PDRAE ainda descreve os objetivos que se pretende atingir por meio do processo de ―publicização‖94: a) Lograr, assim, uma maior autonomia e uma conseqüente maior responsabilidade para os dirigentes desses serviços. b) Lograr adicionalmente um controle social direto desses serviços por parte da sociedade através dos seus conselhos de administração. Mais amplamente, fortalecer práticas de adoção de mecanismos que privilegiem a participação da sociedade tanto na formulação quanto na avaliação do desempenho da organização social, viabilizando o controle social. c) Lograr, finalmente, uma maior parceria entre o Estado, que continuará a financiar a instituição, a própria organização social, e a sociedade a que serve e que deverá também participar minoritariamente de seu financiamento via compra de serviços e doações. d) Aumentar, assim, a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor. Este entendimento, porém, não é unânime na doutrina. Di Pietro, por exemplo, encara as organizações sociais como um fator de imoralidade e risco ao patrimônio público e aos direitos dos cidadãos. Segundo a autora, a intenção do legislador, ao criar tal instituto, foi de ―instituir um mecanismo de fuga ao regime jurídico de direito público a que se submente a administração pública‖95. O fato de a organização social absorver atividade exercida por ente estatal e utilizar o patrimônio público e os servidores públicos antes a serviço desse mesmo ente, que resulta extinto, não deixa dúvidas de que, sob a roupagem de entidade privada, o real objetivo é o de mascarar uma situação que, sob todos os aspectos, estaria sujeita ao direito público. É a mesma atividade que vai ser exercida pelos mesmos servidores públicos e com utilização do mesmo patrimônio. Por outras palavras, a idéia é de que os próprios servidores da entidade a ser extinta constituam uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e se habilitem como organizações sociais, para exercer a mesma atividade que antes exerciam e utilizem o mesmo patrimônio, porém sem a submissão àquilo que se costuma chamar de ―amarras‖ da Administração Pública. Em que pese a opinião da ilustre doutrinadora, é inegável o avanço que as organizações sociais proporcionaram na qualidade dos serviços públicos. A gestão destas entidades é mais flexível especialmente por não se submeterem às regras de licitação, contratação e demissão que regem o setor público. Isso significa que estas organizações são livres para, segundo juízos próprios de conveniência, definir quem será contratado para compor o quadro de funcionários, não se sujeitando à obrigatoriedade de realizar concursos públicos. 94 Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, 1995, p. 19. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Documents/MARE/PlanoDiretor/planodiretor.pdf>. Acesso em: 18 set. 2012. 95 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 488. 64 3.3.2 As Ouvidorias Públicas O instituto das Ouvidorias Públicas surge em um momento em que se repensa a efetividade da democracia. As sociedades modernas, em razão de sua pluralidade, percebem que o sistema democrático representativo não dá voz a uma larga parcela de cidadãos. A participação da sociedade nas questões públicas torna-se requisito essencial de legitimidade da atividade estatal. As Ouvidorias Públicas apresentamse neste contexto como a ferramenta ideal para a participação de toda a sociedade no processo de tomada de decisão. A democracia representativa, assolada pela crise de legitimidade, deve ser repensada buscando uma aproximação com o novo paradigma de democracia procedimental no qual a participação do cidadão se traduz como algo fundamental para a garantia dos Direitos Fundamentais. Para assegurar a participação, faz- se necessária a criação de instrumentos que possibilitem a cada membro da sociedade ser coautor e parceiro na 96 construção do direito. Procura-se um modelo diferente de democracia, em razão da falta de legitimidade do sistema atual, não mais capaz de garantir a dignidade e a igualdade entre os cidadãos. Busca-se, acima de tudo, um modelo democrático sustentado pelo diálogo entre os diversos setores da sociedade e o poder público. As decisões devem ser construídas de forma racional, por meio da ponderação a respeito de interesses opostos, a fim de se atingir o acordo. O consenso que se obtém desta forma é o que constrói uma democracia legítima de fato. Constrói-se a democracia por meio da participação de toda a sociedade, obtendo-se o diálogo entre o setor público e o privado. Assim, resta legitimado o ato da administração pública que tenha sido praticado com a participação de todos os interessados no processo de tomada de decisão. Para que esta participação social se efetive, porém, é necessário que se criem novos instrumentos que permitam a integração social. A democracia construída desta forma permite colocar o cidadão na posição de destinatário final do serviço público, deixando de ser apenas o meio. 96 NASSIF, Gustavo Costa. As Ouvidorias Públicas no contexto de um novo modelo de governança. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. out-dez 2009. v.73 n.4. p. 47. 65 Gustavo Costa Nassif97 explica a origem da validade da democracia baseada no diálogo entre sociedade e o poder público A democracia que se concretiza perenemente acontece porque sua validez está na possibilidade de acordos extraídos do debate prático dos diversos membros sociais, pois a deliberação pública é capaz de provocar o efeito da legitimação. Esse é um conceito processual do sistema democrático em que a discussão argumentada deve prevalecer sobre as decisões individuais e voluntárias do poder. O diálogo com a sociedade é princípio democrático, e ocorre por meio de ―participação popular, domesticação dos meios de comunicação, unidos a procedimentos plebiscitários, como referendum e iniciativa popular, e com as Ouvidorias Públicas, que possibilitam o exercício da democracia participativa‖98. O discurso entre os detentores do poder e a sociedade é tão importante para a legitimação da democracia quanto é o voto universal. Nassif afirma que estes instrumentos de comunicação, onde se manifestam as várias vozes da sociedade, produzem um efeito de autorização sobre o legislador. No caso das ouvidorias públicas, de forma distinta, tal autorização é concedida ao administrador público. Explica o autor que a partir do momento em que o gestor público é obrigado a ouvir a opinião da sociedade antes de agir, cria-se um ―antídoto‖ contra a discricionariedade e o despotismo, comportamentos que representam um obstáculo para a legitimidade da democracia. A discricionariedade concedida pela lei ao gestor público não pode justificar arbitrariedades. Caso permaneça introspectiva, a administração não será capaz de obter a legitimidade necessária para representar a vontade geral. Deve-se, portanto, abrir canais de comunicação com a sociedade, para que o Estado seja capaz de averiguar quais são os interesses coletivos. A administração pública instrumentalizada com canais de comunicação permanentes cria a possibilidade, ao receber da sociedade suas diversas tendências ou preferências, de angariar juízo confiável para lastrear suas decisões. [...] A consensualidade na administração é a diferença entre o modelo de democracia burguesa consubstanciada exclusivamente no exercício da 97 NASSIF, Gustavo Costa. As Ouvidorias Públicas no contexto de um novo modelo de governança. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. out-dez 2009. v.73 n.4. p. 49. 98 Ibidem. p. 47. 66 escolha dos governantes e o modelo de democracia participativa voltada à 99 escolha de como se quer ser governado [...]. As Ouvidorias Públicas representam um instituto eficaz para que se supere a crise de legitimidade que hoje ocorre na democracia representativa, pois aperfeiçoa a democracia e possibilita que as decisões sejam legitimadas, visto que a sociedade civil participa do processo decisório. Encontram-se as Ouvidorias Públicas em países democráticos ou com tendências democráticas. Regimes ditatoriais, por suas características inerentes, dispensam a opinião dos cidadãos e governam sem o respaldo do apoio popular. No Brasil, especialmente, as Ouvidorias Públicas complementam os institutos de proteção do cidadão e de controle da administração pública100. A participação de todos nas decisões que objetivam o bem-estar da sociedade produz mudanças profundas no controle da administração pública. O cidadão, antes apenas destinatário do serviço público, passa a influenciar a tomada de decisão dos agentes públicos. Torna-se, também, agente de fiscalização da administração pública. Ao efetuar este controle, por meio das Ouvidorias Públicas, o cidadão estreita os canais de comunicação com os gestores públicos. Cria-se a possibilidade de se resolverem questões administrativas sem a necessidade de se recorrer ao poder judiciário. Surge, com as Ouvidorias Públicas, o diálogo permanente entre a administração e todos os interessados. A administração melhora seus serviços por meio das informações adquiridas pelo diálogo, objetivando sempre satisfazer os desejos dos usuários dos serviços públicos. O usuário, por sua vez, avalia a qualidade dos serviços prestados, e torna-se uma valiosa fonte de informações a respeito da efetividade das políticas públicas. O controle da sociedade efetuado por meio das Ouvidorias Públicas também modifica a forma de agir dos agentes públicos, que se tornam mais responsáveis por suas atividades e resultados. Os cidadãos ocupam o lugar de fiscais, analisando o desempenho, a qualidade e o resultado dos serviços, além de apontarem problemas e exigirem soluções. Conforme explica Gustavo Costa Nassif: 99 NASSIF, Gustavo Costa. As Ouvidorias Públicas no contexto de um novo modelo de governança. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. out-dez 2009. v.73 n.4. p. 49. 100 Ibidem. p. 49. 67 A descentralização de procedimentos para tomada de decisões, ao deslocarem-se do centro para a periferia, aproxima os interessados/afetados, permite um maior controle da sociedade sobre as ações da administração pública e de seus servidores, afastando as velhas 101 práticas corporativas, ineficientes e burocratizantes. No Brasil, as Ouvidorias Públicas são um instituto de direito administrativo autônomo e independente, com natureza não contenciosa. Elas devem, no entanto, prestar contas de suas atividades ao órgão a que se vinculam, conforme sejam parte dos Poderes Judiciário, Executivo ou Legislativo 102. Tais instituições são voltadas, em regra, à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, e atuam com o intuito de ampliar e facilitar o acesso da população ao poder público. O papel das Ouvidorias Públicas, ao mediar os interesses da sociedade e prover uma forma de fiscalização participativa, garante a observância de um direito fundamental de toda a sociedade: a garantia da ordem democrática. Com efeito, não é incomum que os agentes políticos eleitos pelo povo se afastem da vontade dos eleitores. As ouvidorias funcionam, neste contexto, como um aparato estatal capaz de alinhar as decisões administrativas à vontade do povo. As Ouvidorias Públicas são, portanto, órgão controlador de caráter democrático, possibilitando ao cidadão influir diretamente no centro de tomada de decisões. A noção de democracia participativa é indissociável da figura das Ouvidorias Públicas, em virtude do tratamento constitucional dado aos direitos e garantias fundamentais dos interessados/afetados. As decisões das Ouvidorias Públicas possuem um caráter informativo e persuasivo para induzir a correção de falhas, omissões e ilegalidades cometidas pela administração pública. É vedado intrometer-se em outras formas de controle existentes ou mesmo imiscuir-se em questões de 103 natureza política. Assim, percebe-se que a função das Ouvidorias Públicas limita-se ao campo administrativo, não possuindo legitimidade para tratar de assuntos políticos. Possuem, porém, poderes para criar processos, encaminhar queixas a outros órgãos e receber reclamações e denúncias da população. Os cidadãos, destinatários do serviço público, ao participarem do processo de decisão, defendendo seus interesses no âmbito das ouvidorias públicas, conferem legitimidade às decisões emanadas pelos órgãos administrativos. Incentivar as 101 NASSIF, Gustavo Costa. As Ouvidorias Públicas no contexto de um novo modelo de governança. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. out-dez 2009. v.73 n.4. p. 54. 102 Ibidem, p. 55. 103 Ibidem. p. 55. 68 pessoas a participarem dos processos de decisão é o mesmo que ampliar e fortalecer o regime democrático. As Ouvidorias Públicas constituem um instrumento hábil a modernizar toda a administração pública por meio da conexão entre os cidadãos e o poder público, a fim de garantir a efetividade dos direitos fundamentais e a legitimidade da administração pública. Abre-se a possibilidade para que seja exercida a soberania popular. Nassif observa, porém, que ainda há obstáculos a serem superados para que efetive a presença das Ouvidorias Públicas nos vários setores da sociedade: O desconhecimento social sobre as Ouvidorias e o desprezo da administração pública por esse instituto ainda são grandes. Este descaso, em especial, dos agentes políticos reduz as Ouvidorias Públicas a órgãos secundários, cujas funções se limitam a receber as lamentações sociais sem produzir qualquer resultado prático. Muito mais que para ouvir é para 104 se fazer calar. Um ponto importante a ser abordado, necessário para que se consolide a autonomia das Ouvidorias Públicas em sua função de receber denúncias e reclamações dos cidadãos, é o controle externo. As Ouvidorias, embora sejam obrigadas a prestar contas e se subordinem aos deveres que caracterizam as instituições públicas, não podem ser controladas pelos mesmos órgãos aos quais se dedicam. [...] um ouvidor que é eleito ou escolhido pela própria instituição dificilmente conseguirá se desvencilhar das demandas e lógicas particularistas que regem o funcionamento da instituição em questão. Quando isso acontece, a própria nomeação do ouvidor já pode ser considerada como uma ação que corresponde a um uso privado da razão, o que compromete já na partida qualquer possibilidade de romper com a lógica imediatista da instituição. Assim, sem controle externo e autonomia plena, o ouvidor estará muito mais sujeito a todo tipo de interferência e limitação na sua função, isto é, ele reproduzirá a lógica particularista que conduz o funcionamento de cada 105 instituição pública. É necessário, portanto, que a Ouvidoria Pública possua a autonomia necessária para executar seu serviço público. Isso não significa, todavia, que estas instituições devem ser imunes ao controle externo. Pelo contrário, a prestação de contas e o controle são princípios indissociáveis do regime democrático. Faz-se 104 NASSIF, Gustavo Costa. As Ouvidorias Públicas no contexto de um novo modelo de governança. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. out-dez 2009. v.73 n.4. p. 57. 105 CARDOSO, Antônio Semeraro Rito; ALCANTARA, Elton Luiz da Costa; NETO, Fernando Cardoso Lima. Ouvidoria Pública e Governança Democrática. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/participacao/images/OUVIDORIA%20P%C3%9ABLICA%20E%20GOVERNA N%C3%87A%20DEMOCR%C3%81TICA_VF%20_%20Antonio%20Rito.pdf>. Acesso em: 26 out. 2012. 69 necessário, ao menos, que haja distinção entre a instituição alvo da Ouvidoria Pública e a instituição que detém o controle externo sobre a Ouvidoria. O controle externo, ademais, é realizado de forma simultânea ao controle social, nas instituições que possuem ouvidorias. Isso por que o controle social não pode prejudicar a avaliação técnica executada pelos órgãos de controle externo, ou configurar-se-ia afronta à própria Constituição Federal, que prevê a existência das cortes de contas para este propósito. O controle concomitante da sociedade e do Estado na avaliação dos serviços e políticas públicas é fundamental para que se fortaleça a integração entre o governo e os cidadãos, gerando melhorias na qualidade de vida de todos. 70 CONCLUSÃO O desenvolvimento da Administração Pública Brasileira passou por três principais sistemas, o patrimonialismo, a burocracia e o gerencialismo. Embora superados, o patrimonialismo e a burocracia ainda deixam resquícios de sua cultura na administração pública moderna. A administração burocrática, no intuito de banir do serviço público o despotismo e a corrupção, surgem em um contexto em que era necessário valorizar o serviço público. A adoção desta cultura foi muito importante para se instituir no serviço público as noções de probidade, distinção entre o patrimônio público e privado, supremacia do interesse público, impessoalidade formalismo, hierarquia e eficiência. A eficiência das burocracias, conforme já visto, é questionável, em razão de suas características intrínsecas. Embora tenha sido concebida no fito de tornar o serviço público eficiente, a prática demonstrou exatamente o contrário. As diversas disfunções que advêm deste modelo, em função de seus rígidos métodos de controle, tornaram-no, popularmente, sinônimo de ineficiência. Apesar de suas disfunções, como a ineficiência e o fato de ser auto-referida, a burocracia possui qualidades importantes que serviram de base para implementar as mudanças trazidas pela administração pública gerencial. Parte das falhas decorre dos rígidos métodos de controle deste sistema, que tomam o foco da administração pública, em detrimento do cidadão. A administração gerencial é criada visando a complementação do modelo burocrático, mantendo muitas de suas qualidades e eliminando seus defeitos. Por isso, é razoável afirmar que a administração gerencial não representa um rompimento com o passado, mas a evolução natural de um sistema racionalizado, concebido para ser modificado segundo as necessidades da organização. Seu foco, afinal, é facilitar o alcance dos objetivos das instituições. No serviço público evidentemente, tais objetivos se alinham ao interesse público. O motivo principal para se adotar a administração gerencial nos órgãos públicos é o ganho de eficiência que isso representa. É visível que a sociedade atual, com as diversas tecnologias de comunicação que dispõe, está muito mais ciente de seus direitos constitucionais e é muito mais exigente em relação à 71 qualidade dos serviços públicos prestados pelo Estado. Os entes públicos, diante de uma maior cobrança por parte dos cidadãos, veem-se obrigados a aprimorar o fornecimento dos serviços. O gerencialismo traz uma nova visão em relação aos papéis do Estado e do cidadão. Se antes o indivíduo era visto apenas como contribuinte compulsório, obrigado a pagar seus impostos e a se resignar diante da supremacia e poder do Estado, agora os cidadãos são vistos como clientes e financiadores do serviço público. A administração gerencial, portanto, inspira-se na administração de empresas, e passa a focar toda a sua atenção para o cidadão. Como consequência às mudanças ocorridas desde a reforma burocrática até hoje, diante da consolidação da reforma gerencial, o Estado sofreu profundas mudanças. O imperador que governava segundo seus interesses e os de sua classe não mais existe; o gestor público que trata o patrimônio público como próprio agora é criminoso. O aparato estatal não mais trabalha para satisfazer suas próprias demandas e as da burocracia, mas as da sociedade. Percebe-se, porém, que a reforma não está completa, e talvez jamais esteja. Isso porque as reformas administrativas sempre surgem para tentar suprir as demandas cotidianas e, mal são realizadas, logo surgem novas ideias, propostas que acompanham as necessidades das pessoas. Assim ocorreu com a reforma burocrática no Brasil, assim ocorre com a reforma gerencial, que já vislumbra uma onda de reformas que visa trazer mais legitimidade e democracia à gestão pública, por meio de Ouvidorias Públicas e outros institutos. As mudanças sempre surgem no intuito de inovar ou coibir antigas práticas consideradas superadas. Com efeito, é evidente que as reformas jamais conseguem abandonar completamente a cultura administrativa anterior. A corrupção e o nepotismo, ainda existentes no Brasil, são vestígios da antiga administração patrimonial. O formalismo exagerado, herança da reforma burocrática, ainda encontra-se presente em vários órgãos estatais, afetando sua eficiência. Aumentar a eficiência dos serviços públicos e ampliar o número de cidadãos atendidos, sem comprometer o controle característico que existe no setor público, são alguns dos grandes obstáculos a serem superados pelo Poder Público para dar continuidade à reforma gerencial e atender de forma mais efetiva o cidadão. 72 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 AMORIM, Sônia Naves David. Ética na esfera pública: a busca de novas relações. Revista do Serviço Público. Brasília: Enap, ano 51, n. 2, abr-jun/2010. 2 COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, set-out/2008. 3 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonialGerencial.pdf> Acesso em: 19 set. 2012. 4 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Disponível em: <http://www.4shared.com/rar/vOr4tBc0/faoro_raymundo_os_donos_do_pod.html>. 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