Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
Da
Substituição
Tributária
“para a frente” no ICMS
Eduardo Maneira
- Mestre e Doutor em Direito Tributário pela
UFMG
- Professor Adjunto de Direito Tributário na
UFMG
Vive-se, neste início de
século XXI, a onda da pósmodernidade,
em
que
o
imediatismo e a velocidade que
movem a sociedade influenciam
diretamente o direito, impondo-se
a necessidade de soluções práticas
para as questões jurídicas em
geral.
O direito tributário também
foi contaminado por esta onda de
praticidade.
Vislumbram-se
no
chamado princípio da praticidade
tributária eficiência e celeridade na
imposição tributária, bem como
mecanismo
contra
a
evasão
tributária, e em seu nome
adotam-se técnicas simplificadoras
de
arrecadação
com
fatos
imponíveis
presumidos
e,
conseqüentemente,
bases
de
cálculos presumidas, muitas vezes
em flagrante afronta a princípios e
garantias constitucionais. Destacase,
dentre
as
técnicas
de
arrecadação,
a
chamada
substituição tributária progressiva,
utilizada hodiernamente em larga
escala para os mais variados
tributos.
A substituição tributária, em
matéria de ICM/ICMS, não é
novidade no nosso ordenamento,
estando prevista desde 1983, com
a Lei Complementar nº 43/83. No
entanto, a insurreição contra tal
técnica veio a ganhar força
somente no final dos anos oitenta,
início dos anos noventa, por
razões que serão mais adiante
apresentadas.
Antes de examinarmos os
motivos da rejeição à substituição
tributária
“para
a
frente”,
oportuno que se façam desde logo
algumas considerações sobre a
substituição tributária “para trás”
ou regressiva. É que, em relação a
esta,
nunca
houve
maiores
questionamentos quanto à sua
legitimidade, exatamente porque a
substituição
“para
trás”
não
trabalha
com
a
figura
da
presunção: o que se dá é o
diferimento do pagamento do
imposto de fato gerador já
ocorrido, pagamento este que
deverá ser feito por um substituto
tributário
que
tenha
alguma
vinculação com o “fato gerador” e
com aquele que o praticou, a fim
de que possa ser ressarcido
financeiramente da incumbência
legal da substituição.
Assim,
na
substituição
tributária
regressiva
não
se
presume a ocorrência de fato
gerador, porque o pagamento do
tributo somente ocorrerá numa
etapa posterior: não se presume a
base de cálculo porque ela será, à
data do pagamento do imposto,
velha conhecida; atribui-se o
dever do pagamento a um
substituto
tributário
que,
no
entanto, já deverá ter recebido do
contribuinte
substituído,
pela
forma do decote ou da retenção, o
valor do tributo a ser recolhido.
Por exemplo, nas operações com
leite in natura, o laticínio, ao pagar
ao produtor pelo leite, decotará do
preço o valor do imposto que ele,
laticínio, irá recolher no futuro em
prol do produtor, por substituição,
respeitando-se
a
capacidade
econômica de contribuir de todos
os envolvidos.
1
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
Em relação à substituição
tributária progressiva, a questão é
muito mais complexa. Em primeiro
lugar, a substituição só se
concretiza
se
amparada
na
presunção:
presume-se
a
ocorrência de um fato gerador
para antecipar a sua obrigação e,
conseqüentemente, presume-se a
base de cálculo do fato gerador
futuro. No entanto, vale relembrar
que a substituição “para a frente”
é assim desde o seu início, e
somente depois de vários anos de
existência
começou
a
ser
questionada em juízo. A razão
disso é simples. Quando a
substituição
progressiva
foi
implantada, viva-se um período de
economia controlada, com forte
intervenção do Estado em todos os
setores produtivos. Assim, a base
de cálculo não era presumida, mas
tabelada. Com a liberação da
economia e com a extinção das
tabelas
de
preços
é
que
começaram a surgir os problemas
com a substituição “para a frente”,
porque a base de cálculo passou a
ser realmente presumida e, salvo
raras exceções, presumidas em
patamares superiores aos reais,
causando
deformações
na
tributação antecipada e ferimento
ao
princípio
da
capacidade
contributiva dos sujeitos passivos,
conforme se verá mais adiante, de
forma mais detalhada.
O fenômeno da substituição
tributária
recebe
distintas
explicações
doutrinárias
que
variam de acordo com o enfoque
que se dá ao tema.
Entendemos
que
a
substituição tributária, seja “para
a frente” ou “para trás”, tem um
único
objetivo:
atender
à
praticidade tributária. O princípio
da praticidade tem Por finalidade
tornar o direito exeqüível, isto é,
aproximar a norma jurídica da
realidade que pretende regular.
Em termos de tributação, a
praticidade
manifesta-se
em
técnicas
de
fiscalização
e
arrecadação que, amparadas em
presunções, tornam possível a
tributação em massa de modo
célere e menos oneroso. De nada
adiantaria instituir-se um tributo
por uma lei cuja obediência por
parte do contribuinte e cuja
fiscalização por parte da Fazenda
fosse impraticável no mundo real.
Várias
técnicas
de
simplificação são previstas e
autorizadas por lei, como o
lançamento
do
imposto
por
estimativa e o diferimento do
tributo a pagar. Há ainda técnicas
de simplificação da execução da lei
previstas
em
“normas”
administrativas,
tais
como
decretos, instruções normativas,
cartas
circulares,
etc.
Como
exemplo, verificam-se as antigas e
declaradas
inconstitucionais
pautas de valores do ICM, as
plantas de valores de imóveis
urbanos, que servem de base para
o cálculo do IPTU, as tabelas de
valores de veículos automotores
para o pagamento do IPVA dos
veículos usados, etc.
A praticidade é, na essência,
um tributo da legalidade, no
sentido de que a lei deve ser
exeqüível e de possível aplicação
prática.
A
praticidade
como
princípio autônomo é princípio
vazio, sem conteúdo; a sua razão
de ser é garantir a aplicabilidade
da lei, por meio de técnicas de
simplificação
que
possibilitem
alcançar realidades de natureza
complexa.
Em vez de se fiscalizarem
milhares de pontos de venda de
cigarro, fiscalizam-se duas ou três
indústrias tabagistas; em vez de
fiscalizarem milhares de pontos de
bebida, fiscalizam-se cinco ou seis
fábricas de cerveja; em vez de
exigir de milhares de produtores
2
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
rurais a emissão de nota fiscal e o
recolhimento do ICMS pela venda
do leite, exigem-se tais obrigações
dos poucos laticínios existentes, e
assim por diante. O substituto é
recolhido pela lei para pagar
tributo devido por fato gerador
praticado pelo contribuinte.
Na hipótese de substituição
tributária “para a frente”, em que
a relação do substituto com o
substituído
é
de
vendedorcomprador,
o
substituído
acrescenta ao preço que paga pelo
produto o valor do imposto que o
substituto recolherá em seu favor;
nos
casos
de
substituição
tributária “para trás”, em que a
relação substituto-substituído é de
comprador-vendedor, o substituto
decota do preço do produto
adquirido o valor do imposto
objeto da substituição tributária.
O substituto só passa a
exigir depois de ocorrido o fato
praticado pelo substituído. Apesar
de, na substituição tributária, a
sujeição passiva ser conferida no
plano normativo diretamente ao
substituto, diferentemente do que
ocorre
nos
casos
de
responsabilidade, em que se exige
do responsável somente após
esgotadas as possibilidades de se
cobrar
do
contribuinte,
o
substituto não exclui a figura do
substituído da relação.
É que, como a obrigação
tributária decorre da ocorrência do
fato gerador, aquele que o
realizou, qual seja, o contribuinte,
se projeta para a relação jurídica
tributária, independentemente de
estar contemplado na norma como
sujeito passivo. Assim, dúvidas
não podem existir quanto ao fato
de que o regime tributário a ser
aplicado é sempre o do substituído
e de que a capacidade contributiva
a ser medida é sempre a deste.
Do Julgamento da ADIn
nº 1.851-4/AL
Examinando a ADIn nº
1.851-4/AL, que questionava o
Convênio ICMS nº 13/97, o
Supremo
Tribunal
Federal
concedeu limiar para suspender a
vigência da cláusula 2ª do referido
convênio, nos termos do voto do
Ministro-Relator Ilmar Galvão, do
qual se destaca o seguinte trecho:
“Salta aos olhos que o Confaz
conferiu interpretação literal ao texto da
norma do § 7º do art. 150 da CF, ao prever
a restituição do imposto pago tão-somente
na hipótese de inocorrência da operação
subseqüente, ou quando for esta realizada
sob regime de isenção, dispensando-a nas
hipóteses, supostamente mais freqüentes,
de operações posteriores por valor abaixo ou
acima do valor da base de cálculo
presumida.
Ao fazê-lo, é fora de dúvida que
desnaturou, por completo, a norma do
referido parágrafo 7º, que tem por essência
assegurar a pronta restituição do tributo
recolhido
por
antecipação
e
que,
eventualmente,
venha
a
mostrar-se
indevido, o que, obviamente, ocorre não
apenas na hipótese da cláusula segunda que,
por isso, não pode subsistir.”1
No entanto, ao julgar o
Recurso
Extraordinário
nº
213.396-5-SP,
surpreendentemente, o MinistroRelator Ilmar Galvão considerou
constitucional
o
regime
de
substituição tributária “para a
frente” adotado pelo Estado de
São Paulo relativamente a veículos
novos,
baseando-se
especificamente na doutrina de
Marco Aurélio Greco sobre o tema,
para justificar a possibilidade de a
obrigação tributária anteceder a
ocorrência efetiva do fato gerador.
Naquela oportunidade, assim se
pronunciou:
“Desnecessária muita agudeza de
raciocínio para perceber que a entrega de
veículos novos, feita pela montadora a suas
revendedoras autorizadas, atende aos três
requisitos que, segundo a lição transcrita,
1
ADIn nº 1.851-4/AL.
3
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
são
exigidos
para
configuração
da
compatibilidade e adequação entre a
substituição, como modelo de exigência do
tributo, e o respectivo pressuposto de fato,
em face da Constituição.
Com efeito,
trata-se
de
fato
econômico que constitui verdadeira etapa
preliminar do fato tributável (a venda do
veículo ao consumidor), que o tem por
pressuposto necessário; o qual, por sua vez,
é possível prever, com quase absoluta
margem de segurança, uma vez que nenhum
outro destino, a rigor, pode estar reservado
aos veículos que saem dos pátios das
montadoras,
senão
a
revenda
aos
adquirentes
finais;
sendo,
por
fim,
perfeitamente previsível, porque objeto de
tabela fornecida pelo fabricante, o preço a
ser exigido na operação final, circunstância
que praticamente elimina a hipótese de
excessos tributários.
(...)
Não é difícil perceber que a
substituição
tributária,
em
operações
subseqüentes, como é o caso dos autos,
convém às partes envolvidas na operação
tributada: ao Fisco, por simplificar o trabalho
de fiscalização, reduzido que fica ao pequeno
número de empresas montadoras de veículos
existentes no país; à montadora, por
permitir um controle do preço final pelo qual
os seus produtos são entregues ao
consumidor final, preço esse de ordinário
sugerido ao revendedor pelo fabricante; ao
concessionário revendedor, por exonerá-lo
de toda preocupação de ordem tributária,
desobrigado que fica do recolhimento do
ICMS sobre os veículos comercializados; e,
por fim, ao consumidor, por dar-lhe a
certeza de que o preço pago corresponde ao
recomendado pelo fabricante.
Trata-se de regime a que, na
prática, somente são submetidos produtos
com preço de revenda final previamente
fixado pelo fabricante ou importador, como é
o caso dos veículos, cigarros; ou tabelados
pelo
Governo,
como
acontecia
até
recentemente com os combustíveis; e como
acontece com a energia elétrica etc., razão
pela qual só eventualmente poderão ocorrer
excessos de tributação, de resto, facilmente
reembolsáveis,
por
via
de
simples
lançamento do respectivo crédito (cf. art. 10
da LC nº 87/96).”2
“A Constituição autorizou, com a
chamada „substituição tributária para frente‟,
tomar como fato gerador e presumido. É
claro que com sua dimensão material
igualmente presumida. É claro, também, que
esta presunção não pode ser arbitrária, mas
isso não se discute. Se ela é arrazoada, a
minha leitura do § 7º do art. 150 da
Constituição
é
que
aquele
fato,
antecipadamente levado em consideração,
os seus efeitos se tornem definitivos com a
única ressalva constitucional de não vir a
ocorrer o fato previsto.
Falou-se muito, aqui, na máxima
eficácia dos dispositivos constitucionais, mas
que é regra hermenêutica de mão dupla.
A Emenda Constitucional nº 03/93,
de que resultou o § 7º do art. 150, veio para
dar ao fisco um mecanismo eficaz para
determinado tipo de circulação econômica e
fez a ressalva. Agora, se esta ressalva é
interpretada de modo a inviabilizar o
instrumento fiscal que se autorizou, a meu
ver, o que se está é negando a efetividade
no sentido principal.”3
No
assentou
Sanches:
mesmo
julgamento,
o
Ministro
Sidney
“... bem ou mal, o § 7º do art. 150
da C.F. constitucionalizou a substituição
tributária,
que
a
antiga
legislação
infraconstitucional permitia e que nunca foi
declarada inconstitucional por esta Corte. E
o fez de modo a assegurar a restituição de
quantia paga, caso não se realize o fato
gerador presumido.
Chegou a essa solução, pela
praticidade que a substituição viabiliza, no
que concerne à arrecadação.
Se se entender que, tanto a
complementação
quanto
a
restituição,
decorrente
do
valor
da
operação
subseqüente, devem se r complementadas,
então estará esvaziado o próprio instituto da
substituição, em seus razoáveis objetivos.
E não se deve interpretar qualquer
norma
jurídica,
sobretudo
de
índole
constitucional, que a esvazie ou a torne
inócua.”4
A mesma linha de raciocínio
prevaleceu no julgamento do
mérito da ADIn nº 1.851-4-AL.
O
Ministro
Sepúlveda
Pertence,
no
julgamento
da
mesma ADIn nº 1.851-4-AL, assim
se pronunciou:
Em sentido contrário,
Ministro Carlos Velloso:
2
3
Recurso Extraordinário nº 213.396-5-São
Paulo.
o
“... na substituição tributária „para
frente‟, é assegurada a restituição de quantia
paga, caso não se realize o fato gerador
presumido. Ora, se o fato gerador tem, na
base de cálculo, a sua expressão valorativa,
4
ADIn nº 1.851-4-Alagoas.
ADIn nº 1.851-4-Alagoas.
4
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
ou a sua dimensão material, força é conviver
que o fato gerador se realiza nos termos
dessa sua dimensão material, nem mais,
nem menos.
(...)
Vejam, Srs. Ministros, a que ponto
pode-se chegar, se não for declarada a
inconstitucionalidade da cláusula 2ª do
Convênio ICMS 13/97, que nega o direito à
restituição do excesso de ICMS recolhido: o
Fisco poderá fixar, na pauta de valores, para
o fim de ser recolhido o ICMS, valor superior
ao de mercado, valor superior ao preço pelo
qual será o bem vendido. Não obtido, depois,
o preço da pauta de valores, terá o poder
público se locupletado ilicitamente, terá
havido enriquecimento ilícito, o que a teoria
geral do direito repele, o que o senso comum
dos homens não admite.”5
As decisões do Supremo
Tribunal Federal a respeito da
substituição tributária “para a
frente” devem ser examinadas sob
vários ângulos. Em primeiro lugar,
no que se refere à possibilidade de
adoção da substituição tributária,
entendemos que a posição do
Supremo é acertada. Exigir o
pagamento antecipado de fato
gerador que irá ocorrer no futuro
não é ficção, mas sim presunção
relativa e, portanto, admitida no
Sistema Tributário Brasileiro.
O dever de pagar, nos
termo do art. 150, § 7º, da
Constituição,
está
inexoravelmente
vinculado
à
ocorrência futura do fato gerador.
Tanto é assim que, na hipótese de
o fato gerador não ocorrer, o valor
pago antecipadamente deve ser
imediata
e
preferencialmente
restituído. Não se trata de ficção
porque não se está criando novo
fato gerador, como parte da
doutrina entende. É que, para
estes
doutrinadores,
somente
surge o dever de pagar com a
ocorrência
do
fato
gerador;
inversamente,
se
se
exige
pagamento,
é
porque
se
considera, por ficção, ocorrido o
fato gerador para o revendedor do
5
ADIn nº 1.851-4-Alagoas.
automóvel,
por exemplo,
no
momento em que o veículo é
retirado da fábrica, e não no
momento em que ele, revendedor,
o vende para o seu cliente.
No entanto, não é assim
que funciona. O dever de pagar o
imposto não decorre da ocorrência
de um fato previsto por uma ficção
jurídica, porque se assim fosse,
não estaríamos sequer diante de
uma antecipação de pagamento,
mas do cumprimento de uma
obrigação por fato gerador já
ocorrido, por força de uma ficção.
Na verdade, o que se dá é a
exigência
de
um
pagamento
antecipado em razão de um fato
gerador que, presume-se, irá
ocorrer no futuro. E, como se
disse, trata-se de presunção
relativa, bastando a prova de que
tal fato gerador futuro frustrou-se
para o contribuinte ter direito a
restituição.
No que se refere ao exame
da definitividade da base de
cálculo, a posição do STF deve ser
apreciada
em
razão
das
circunstâncias em que se deu o
julgamento. Uma coisa é o exame
da matéria em sede de controle
concentrado, no julgamento de
uma
ação
direta
de
inconstitucionalidade; diverso é o
seu exame em sede de controle
difuso, isto é, no julgamento de
um recurso extraordinário, em que
se aprecia um caso concreto.
Em sede de ADIn seria, em
tese, possível admitir que os
critérios estabelecidos em lei para
se chegar ao valor da base de
cálculo presumida sejam razoáveis
e
proporcionais
ao
conteúdo
econômico do fato gerador. Se a
lei se utiliza, por exemplo, de
tabela de preços ao consumidor
final sugerida pelo fabricante,
seria difícil para o Tribunal, em
tese, julgar inconstitucional o
critério legal adotado. Aliás, as
5
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
presunções no plano abstrato são
sempre absolutas, somente no
caso
concreto
é
que
se
diferenciam entre absolutas e
relativas, posto que as últimas
admitem prova em contrário.
Outra coisa seria, em sede
de
recurso
extraordinário,
havendo farta prova de que a base
de cálculo presumida encontra-se
distanciada da realidade, o STF
considerar,
assim
mesmo,
definitiva a presunção somente
para preservar o mecanismo da
substituição.
É que a presunção absoluta
só é admitida naqueles casos em
que o fato real não tem relevância
para aquela situação jurídica. E,
definitivamente, não se aplica ao
direito tributário, como fonte de
obrigação.
A fim de evidenciar o
equívoco
de
se
considerar
definitiva a base de cálculo em
qualquer circunstância, tomemos
alguns exemplos absurdos de base
de cálculo presumida e definitiva.
Imagine-se que, a partir de 2003,
todos os advogados inscritos na
OAB devam pagar imposto de
renda de acordo com a tabela de
honorários fixada pela instituição,
independentemente do real ganho
do profissional; imagine-se que,
por presunção, sejam fixados
como vencimentos do Ministro do
STF, para fins de imposto de
renda, os ganhos percebidos por
titulares de cartório de registro de
imóveis de São Paulo, ou que os
vencimentos
sejam
fixados
multiplicando-se o número de
votos proferidos no mês pelo
preço médio cobrado por um
parecer jurídico. Imagine-se que,
em nome da praticidade, tais
bases de cálculo não pudessem
ser questionadas, pois definitivas.
Imagine-se, agora, com apoio na
realidade, que em um prazo de
cinco anos, a diferença entre o
valor
da
base
de
cálculo
presumida nas operações com
veículos supere em mais de R$
10.000.000,00, para um único
revendedor, o valor da base de
cálculo real, e que aquele não
possa, mesmo fazendo prova da
discrepância entre a presunção e a
realidade, reclamar o que suportou
a mais.
Seria factível afirmar que,
nestes casos, os fatos são
irrelevantes, razão pela qual se
utilizou da presunção absoluta? A
resposta, por óbvio, é negativa.
Nos casos de substituição
tributária “para a frente” no ICMS,
a base de cálculo presumida
deverá espelhar o valor da
operação futura e preservar a
capacidade
contributiva
do
contribuinte-substituído. De que
modo?
Primeiramente,
cabe
relembrar
que,
tratando
de
imposto sobre o consumo, como é
o caso do ICMS, o contribuinte “de
direito” não deve suportar a carga
tributária, que deve ser repassada
integralmente para o consumidor.
Assim,
na
substituição
tributária “para a frente”, como o
substituído deve antecipar o valor
do ICMS que lhe será ressarcido
quando vender o produto para o
consumidor, ocorre evidentemente
uma redução ao princípio da
capacidade contributiva. Mas, se a
base de cálculo presumida for
absolutamente idêntica ao valor da
operação,
o
contribuinte
substituído terá repassado para o
consumidor todo o valor do
tributo, e o seu “prejuízo” ficará
restrito aos efeitos financeiros da
antecipação de caixa.
Agora, se o valor da
operação for inferior ao da base de
cálculo presumida, o prejuízo do
contribuinte substituído será bem
maior, e ele, numa deformação do
sistema, tornar-se-á não só o
6
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
contribuinte
de
direito,
mas
também contribuinte de fato.
Vamos exemplificar com as
vendas de veículos automotores. A
base de cálculo presumida de um
carro é de R$ 20.000,00; incidindo
o ICMS na alíquota de 12%,
teremos um imposto de R$
2.400,00.
Se
o
veículo
for
efetivamente vendido por R$
20.000,00, o consumidor terá
arcado com a totalidade da carga
tributária. No entanto, se o
negócio for realizado por R$
18.000,00, o consumidor arcará
somente
com
12%
de
R$
18.000,00, isto é, R$ 2.160,00. A
diferença de R$ 240,00 será
suportada
pelo
contribuintesubstituído. Nesta hipótese, o
contribuinte substituído teve a sua
capacidade
contributiva
duplamente arranhada: primeiro,
por ter de adiantar o valor do
imposto antes de receber do
consumidor o valor do carro, e
depois por não se ter ressarcido
integralmente do valor adiantado.
O exemplo acima demonstra
que a base de cálculo presumida
deve
ter
por
referência
constitucional
o
princípio
da
capacidade contributiva. Se, em
nome da praticidade, deve-se
adotar
a
base
de
cálculo
presumida, a sua aplicação deve
ser razoável e proporcional à
capacidade contributiva do sujeito
passivo.
Assim, a base de cálculo
presumida somente poderá ser
definitiva, nos casos em que for
comprovadamente inferior à base
de cálculo real. Isto é, base de
cálculo definitiva como forma de
presunção absoluta no direito
tributário só é aceitável se
deliberadamente for favorável ao
contribuinte.
É razoável, por exemplo,
termos como base de cálculo
presumida para o revendedor do
automóvel 90% do preço pelo qual
ele adquiriu o veículo na fábrica,
pois é razoável supor que tal
veículo será revendido por valor
superior a 90% do preço de
aquisição, isto é, com no máximo
10% de prejuízo. A partir desta
base de cálculo presumida, o
substituído adianta o valor do
imposto;
realizada
a
venda,
recolhe a diferença no regime
normal do ICMS. Atende-se a
praticidade,
respeita-se
a
capacidade
contributiva,
bem
como o princípio do não-confisco.
Uma palavra final sobre o
tema base de cálculo presumida e
a posição do Supremo Tribunal
Federal, a partir do que é
denominado pela doutrina de
realização do direito.
De acordo com Antonio
Carlos
Menezes
Cordeiro,
o
esquema clássico da realização do
Direito assentava em dois pilares
essenciais: a compartimentação
do
processo
interpretativoaplicativo
e
o
método
da
subsunção, que observava o
seguinte processo operacional:
determinação da fonte relevante,
a sua interpretação, a integração
de
eventuais
lacunas,
a
delimitação da matéria de fato
resultante, a sua qualificação
jurídica e a aplicação.
O esquema clássico foi
aprimorado
a
partir
da
constatação de que a realização do
direito é unitária, na medida em
que tudo está implicado, podendose por isso falar num círculo ou
espiral de realização do Direito,
onde se passa da interpretação à
aplicação, e destas às fontes e aos
fatos, tantas vezes quantas as
necessárias para obter-se uma
síntese que supere todas essas
fases, na decisão constituinte final.
O
reconhecimento
da
natureza constituinte da decisão é
o outro aspecto, ao lado da
7
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
unidade da realização do direito,
que possibilitou a superação do
modelo
clássico.
A
decisão
constituinte seria, por definição,
uma manifestação de vontade
humana, não de uma vontade
vinculada, mas uma manifestação
cognitivo-volitiva, no sentido de
que o julgador aprende certos
elementos e decide, criativamente,
em termos finais. Tal criatividade
existe desde a apreensão dos
fatos à localização das fontes, mas
não pode ser independentemente
destas. Assim, quanto mais vagos
os conceitos e maiores as lacunas,
maior a criatividade; quanto mais
rígidas as normas, menor a
criatividade.
Na base da realização do
direito está, portanto, a vontade
humana, que não pode ser
exercida
arbitrariamente,
mas
orientada por uma série de
proposições dadas pela Ciência do
Direito, que se articulam em
modelos de decisão. Dentre os
elementos
que
compõem
os
modelos
de
decisão
–
os
argumentos – estaria o préentendimento, isto é, o intérpreteaplicador carrega sempre consigo
uma pré-visão do problema, fruto
da sua experiência, dos seus
conhecimentos
e
das
suas
convicções. O outro elemento do
modelo de decisão é aquele que
lida com a idéia de sinépica ou
com
as
denominadas
conseqüências da decisão, assim
explicadas por Antonio Menezes
Cordeiro:
“Na origem, pode colocar-se o
utilitarismo, de Bentham a Jhering e
precisando através de Bierling, que veio
exigir, na interpretação, a indagação do
escopo
prosseguido
pelo
legislador.
Desenvolveu-se, assim, o factor teleológico
da interpretação, particularmente valorado
por Canaris.
Vai-se agora, mais longe. Para além
da finalidade do Direito, a consignar
condignamente nos modelos de decisão, há
que lidar com as conseqüências dessa
própria decisão. Na verdade, a seqüência da
decisão – domínio, em princípio, fora já da
esfera do julgador – pode sufragar ou
inviabilizar os objectivos da lei e do Direito.
Ignorá-lo,
enfraquece
a
mensagem
normativa; incluí-lo no próprio modelo de
decisão permite, em definitivo, superar
estádios meramente formais no domínio da
aplicação do Direito. Nessa linha, surge a
sinépica: trata-se de um conjunto de regras
que, habilitando o intérprete-aplicador a
„pensar em conseqüências‟, permitem o
conhecimento e a ponderação dos efeitos
das decisões. (...)
Perante um problema a resolver,
não
se
aplica,
apenas,
a
norma
primacialmente vocacionada para a solução:
todo o Direito é chamado a depor. Por isso,
há que lidar com os diversos ramos do
Direito, em termos articulados, com relevo
para a Constituição – a interpretação deve
ser conforme a Constituição, os diversos
dados normativos relevantes e os próprios
níveis instrumentais do processo.”6
Das lições acima transcritas,
o que se pretende destacar é a
questão relativa à sinépica, que
busca
não
somente
os
fundamentos e a finalidade de
uma decisão, mas as suas
conseqüências.
Assim,
examinemos
as
conseqüências
que
esse
precedente do STF em sede de
controle
concentrado
podem
acarretar, se não se permitir
analisar
caso
a
caso
a
razoabilidade da base de cálculo
presumida.
Primeiramente,
toda
a
consistência lógica da estrutura da
norma tributária desmonta-se a
partir do momento em que se
permite um descolamento entre o
aspecto material da hipótese de
incidência e a base de cálculo. É
que, se a base de cálculo
presumida pode ser definitiva e ao
mesmo tempo diferente, distante,
desconectada
da
dimensão
econômica do aspecto material do
6
CORDEIRO, Antonio Menezes. Os Dilemas da
Ciência do Direito no Final do Século XX,
prefácio à obra de CANARIS, Claus-Wilherm.
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema
na Ciência do Direito. 2ª ed., Lisboa: Fundação
Calauste Gulbenkian, 1996, pp. CIX-CXII.
8
Revista Dialética de Direito Tributário
Nº 95
fato imponível, descaracterizada
está toda a relação de pertinência
que deveria existir entre hipótese
e
conseqüência,
entre
fato
imponível e base de cálculo.
Depois, a definitividade de
uma base de cálculo irreal
representa total submissão dos
princípios
da
capacidade
contributiva,
não-confisco,
razoabilidade e proporcionalidade
à praticidade tributária, numa total
subversão
dos
valores
consagrados
pelo
Sistema
Tributário. Se compreendermos o
sistema jurídico como “ordem
axiológica
ou
teleológica
de
7
princípios jurídicos gerais” e se
recordarmos que há uma escala de
princípios na qual os princípios
gerais portadores de valores éticos
primários ganham concretização
com a aplicação de subprincípios
com eles conexos e interligados,
como admitir que a praticidade,
mero atributo da legalidade, possa
se
sobrepor
aos
princípios
fundamentais do direito tributário,
em especial aos princípios da
capacidade contributiva, do nãoconfisco e da razoabilidade?
A definitividade da base de
cálculo é antes de tudo injusta,
por submeter uma categoria de
contribuintes
–
aqueles
que
integram a substituição tributária
“para a frente” – a um regime que
permite ou que cristaliza uma base
de cálculo confiscatória, posto que
desarrazoada,
em
nome
da
praticidade. Ora, não pode haver
praticidade injusta. A praticidade
só se legitima se for instrumento
que possibilite a aplicação da lei
para todos, a fim de se evitar
evasão
fiscal,
jamais
como
instrumento de perpetuação de
irrealidades confiscatórias.
Por
todo
o
exposto,
entendemos que a posição do
Supremo
Tribunal
Federal
a
respeito do tema não é inflexível,
pois, no decorrer de sucessivos
julgamentos de casos concretos, o
Tribunal terá a oportunidade de
verificar que a adequação da base
de cálculo presumida à realidade é
medida
fundamental
para
a
preservação
dos
princípios
informadores
do
Estado
Democrático de Direito, do qual
ele, STF, deve ser o guardião.
7
CANARIS. Claus-Wilherm. Pensamento
Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência
do Direito. 2ª ed., Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996, p.280.
9
Download

A Execução Fiscal Adminis-trativa e os Direitos do Contribuinte