Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 Da Substituição Tributária “para a frente” no ICMS Eduardo Maneira - Mestre e Doutor em Direito Tributário pela UFMG - Professor Adjunto de Direito Tributário na UFMG Vive-se, neste início de século XXI, a onda da pósmodernidade, em que o imediatismo e a velocidade que movem a sociedade influenciam diretamente o direito, impondo-se a necessidade de soluções práticas para as questões jurídicas em geral. O direito tributário também foi contaminado por esta onda de praticidade. Vislumbram-se no chamado princípio da praticidade tributária eficiência e celeridade na imposição tributária, bem como mecanismo contra a evasão tributária, e em seu nome adotam-se técnicas simplificadoras de arrecadação com fatos imponíveis presumidos e, conseqüentemente, bases de cálculos presumidas, muitas vezes em flagrante afronta a princípios e garantias constitucionais. Destacase, dentre as técnicas de arrecadação, a chamada substituição tributária progressiva, utilizada hodiernamente em larga escala para os mais variados tributos. A substituição tributária, em matéria de ICM/ICMS, não é novidade no nosso ordenamento, estando prevista desde 1983, com a Lei Complementar nº 43/83. No entanto, a insurreição contra tal técnica veio a ganhar força somente no final dos anos oitenta, início dos anos noventa, por razões que serão mais adiante apresentadas. Antes de examinarmos os motivos da rejeição à substituição tributária “para a frente”, oportuno que se façam desde logo algumas considerações sobre a substituição tributária “para trás” ou regressiva. É que, em relação a esta, nunca houve maiores questionamentos quanto à sua legitimidade, exatamente porque a substituição “para trás” não trabalha com a figura da presunção: o que se dá é o diferimento do pagamento do imposto de fato gerador já ocorrido, pagamento este que deverá ser feito por um substituto tributário que tenha alguma vinculação com o “fato gerador” e com aquele que o praticou, a fim de que possa ser ressarcido financeiramente da incumbência legal da substituição. Assim, na substituição tributária regressiva não se presume a ocorrência de fato gerador, porque o pagamento do tributo somente ocorrerá numa etapa posterior: não se presume a base de cálculo porque ela será, à data do pagamento do imposto, velha conhecida; atribui-se o dever do pagamento a um substituto tributário que, no entanto, já deverá ter recebido do contribuinte substituído, pela forma do decote ou da retenção, o valor do tributo a ser recolhido. Por exemplo, nas operações com leite in natura, o laticínio, ao pagar ao produtor pelo leite, decotará do preço o valor do imposto que ele, laticínio, irá recolher no futuro em prol do produtor, por substituição, respeitando-se a capacidade econômica de contribuir de todos os envolvidos. 1 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 Em relação à substituição tributária progressiva, a questão é muito mais complexa. Em primeiro lugar, a substituição só se concretiza se amparada na presunção: presume-se a ocorrência de um fato gerador para antecipar a sua obrigação e, conseqüentemente, presume-se a base de cálculo do fato gerador futuro. No entanto, vale relembrar que a substituição “para a frente” é assim desde o seu início, e somente depois de vários anos de existência começou a ser questionada em juízo. A razão disso é simples. Quando a substituição progressiva foi implantada, viva-se um período de economia controlada, com forte intervenção do Estado em todos os setores produtivos. Assim, a base de cálculo não era presumida, mas tabelada. Com a liberação da economia e com a extinção das tabelas de preços é que começaram a surgir os problemas com a substituição “para a frente”, porque a base de cálculo passou a ser realmente presumida e, salvo raras exceções, presumidas em patamares superiores aos reais, causando deformações na tributação antecipada e ferimento ao princípio da capacidade contributiva dos sujeitos passivos, conforme se verá mais adiante, de forma mais detalhada. O fenômeno da substituição tributária recebe distintas explicações doutrinárias que variam de acordo com o enfoque que se dá ao tema. Entendemos que a substituição tributária, seja “para a frente” ou “para trás”, tem um único objetivo: atender à praticidade tributária. O princípio da praticidade tem Por finalidade tornar o direito exeqüível, isto é, aproximar a norma jurídica da realidade que pretende regular. Em termos de tributação, a praticidade manifesta-se em técnicas de fiscalização e arrecadação que, amparadas em presunções, tornam possível a tributação em massa de modo célere e menos oneroso. De nada adiantaria instituir-se um tributo por uma lei cuja obediência por parte do contribuinte e cuja fiscalização por parte da Fazenda fosse impraticável no mundo real. Várias técnicas de simplificação são previstas e autorizadas por lei, como o lançamento do imposto por estimativa e o diferimento do tributo a pagar. Há ainda técnicas de simplificação da execução da lei previstas em “normas” administrativas, tais como decretos, instruções normativas, cartas circulares, etc. Como exemplo, verificam-se as antigas e declaradas inconstitucionais pautas de valores do ICM, as plantas de valores de imóveis urbanos, que servem de base para o cálculo do IPTU, as tabelas de valores de veículos automotores para o pagamento do IPVA dos veículos usados, etc. A praticidade é, na essência, um tributo da legalidade, no sentido de que a lei deve ser exeqüível e de possível aplicação prática. A praticidade como princípio autônomo é princípio vazio, sem conteúdo; a sua razão de ser é garantir a aplicabilidade da lei, por meio de técnicas de simplificação que possibilitem alcançar realidades de natureza complexa. Em vez de se fiscalizarem milhares de pontos de venda de cigarro, fiscalizam-se duas ou três indústrias tabagistas; em vez de fiscalizarem milhares de pontos de bebida, fiscalizam-se cinco ou seis fábricas de cerveja; em vez de exigir de milhares de produtores 2 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 rurais a emissão de nota fiscal e o recolhimento do ICMS pela venda do leite, exigem-se tais obrigações dos poucos laticínios existentes, e assim por diante. O substituto é recolhido pela lei para pagar tributo devido por fato gerador praticado pelo contribuinte. Na hipótese de substituição tributária “para a frente”, em que a relação do substituto com o substituído é de vendedorcomprador, o substituído acrescenta ao preço que paga pelo produto o valor do imposto que o substituto recolherá em seu favor; nos casos de substituição tributária “para trás”, em que a relação substituto-substituído é de comprador-vendedor, o substituto decota do preço do produto adquirido o valor do imposto objeto da substituição tributária. O substituto só passa a exigir depois de ocorrido o fato praticado pelo substituído. Apesar de, na substituição tributária, a sujeição passiva ser conferida no plano normativo diretamente ao substituto, diferentemente do que ocorre nos casos de responsabilidade, em que se exige do responsável somente após esgotadas as possibilidades de se cobrar do contribuinte, o substituto não exclui a figura do substituído da relação. É que, como a obrigação tributária decorre da ocorrência do fato gerador, aquele que o realizou, qual seja, o contribuinte, se projeta para a relação jurídica tributária, independentemente de estar contemplado na norma como sujeito passivo. Assim, dúvidas não podem existir quanto ao fato de que o regime tributário a ser aplicado é sempre o do substituído e de que a capacidade contributiva a ser medida é sempre a deste. Do Julgamento da ADIn nº 1.851-4/AL Examinando a ADIn nº 1.851-4/AL, que questionava o Convênio ICMS nº 13/97, o Supremo Tribunal Federal concedeu limiar para suspender a vigência da cláusula 2ª do referido convênio, nos termos do voto do Ministro-Relator Ilmar Galvão, do qual se destaca o seguinte trecho: “Salta aos olhos que o Confaz conferiu interpretação literal ao texto da norma do § 7º do art. 150 da CF, ao prever a restituição do imposto pago tão-somente na hipótese de inocorrência da operação subseqüente, ou quando for esta realizada sob regime de isenção, dispensando-a nas hipóteses, supostamente mais freqüentes, de operações posteriores por valor abaixo ou acima do valor da base de cálculo presumida. Ao fazê-lo, é fora de dúvida que desnaturou, por completo, a norma do referido parágrafo 7º, que tem por essência assegurar a pronta restituição do tributo recolhido por antecipação e que, eventualmente, venha a mostrar-se indevido, o que, obviamente, ocorre não apenas na hipótese da cláusula segunda que, por isso, não pode subsistir.”1 No entanto, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 213.396-5-SP, surpreendentemente, o MinistroRelator Ilmar Galvão considerou constitucional o regime de substituição tributária “para a frente” adotado pelo Estado de São Paulo relativamente a veículos novos, baseando-se especificamente na doutrina de Marco Aurélio Greco sobre o tema, para justificar a possibilidade de a obrigação tributária anteceder a ocorrência efetiva do fato gerador. Naquela oportunidade, assim se pronunciou: “Desnecessária muita agudeza de raciocínio para perceber que a entrega de veículos novos, feita pela montadora a suas revendedoras autorizadas, atende aos três requisitos que, segundo a lição transcrita, 1 ADIn nº 1.851-4/AL. 3 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 são exigidos para configuração da compatibilidade e adequação entre a substituição, como modelo de exigência do tributo, e o respectivo pressuposto de fato, em face da Constituição. Com efeito, trata-se de fato econômico que constitui verdadeira etapa preliminar do fato tributável (a venda do veículo ao consumidor), que o tem por pressuposto necessário; o qual, por sua vez, é possível prever, com quase absoluta margem de segurança, uma vez que nenhum outro destino, a rigor, pode estar reservado aos veículos que saem dos pátios das montadoras, senão a revenda aos adquirentes finais; sendo, por fim, perfeitamente previsível, porque objeto de tabela fornecida pelo fabricante, o preço a ser exigido na operação final, circunstância que praticamente elimina a hipótese de excessos tributários. (...) Não é difícil perceber que a substituição tributária, em operações subseqüentes, como é o caso dos autos, convém às partes envolvidas na operação tributada: ao Fisco, por simplificar o trabalho de fiscalização, reduzido que fica ao pequeno número de empresas montadoras de veículos existentes no país; à montadora, por permitir um controle do preço final pelo qual os seus produtos são entregues ao consumidor final, preço esse de ordinário sugerido ao revendedor pelo fabricante; ao concessionário revendedor, por exonerá-lo de toda preocupação de ordem tributária, desobrigado que fica do recolhimento do ICMS sobre os veículos comercializados; e, por fim, ao consumidor, por dar-lhe a certeza de que o preço pago corresponde ao recomendado pelo fabricante. Trata-se de regime a que, na prática, somente são submetidos produtos com preço de revenda final previamente fixado pelo fabricante ou importador, como é o caso dos veículos, cigarros; ou tabelados pelo Governo, como acontecia até recentemente com os combustíveis; e como acontece com a energia elétrica etc., razão pela qual só eventualmente poderão ocorrer excessos de tributação, de resto, facilmente reembolsáveis, por via de simples lançamento do respectivo crédito (cf. art. 10 da LC nº 87/96).”2 “A Constituição autorizou, com a chamada „substituição tributária para frente‟, tomar como fato gerador e presumido. É claro que com sua dimensão material igualmente presumida. É claro, também, que esta presunção não pode ser arbitrária, mas isso não se discute. Se ela é arrazoada, a minha leitura do § 7º do art. 150 da Constituição é que aquele fato, antecipadamente levado em consideração, os seus efeitos se tornem definitivos com a única ressalva constitucional de não vir a ocorrer o fato previsto. Falou-se muito, aqui, na máxima eficácia dos dispositivos constitucionais, mas que é regra hermenêutica de mão dupla. A Emenda Constitucional nº 03/93, de que resultou o § 7º do art. 150, veio para dar ao fisco um mecanismo eficaz para determinado tipo de circulação econômica e fez a ressalva. Agora, se esta ressalva é interpretada de modo a inviabilizar o instrumento fiscal que se autorizou, a meu ver, o que se está é negando a efetividade no sentido principal.”3 No assentou Sanches: mesmo julgamento, o Ministro Sidney “... bem ou mal, o § 7º do art. 150 da C.F. constitucionalizou a substituição tributária, que a antiga legislação infraconstitucional permitia e que nunca foi declarada inconstitucional por esta Corte. E o fez de modo a assegurar a restituição de quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Chegou a essa solução, pela praticidade que a substituição viabiliza, no que concerne à arrecadação. Se se entender que, tanto a complementação quanto a restituição, decorrente do valor da operação subseqüente, devem se r complementadas, então estará esvaziado o próprio instituto da substituição, em seus razoáveis objetivos. E não se deve interpretar qualquer norma jurídica, sobretudo de índole constitucional, que a esvazie ou a torne inócua.”4 A mesma linha de raciocínio prevaleceu no julgamento do mérito da ADIn nº 1.851-4-AL. O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da mesma ADIn nº 1.851-4-AL, assim se pronunciou: Em sentido contrário, Ministro Carlos Velloso: 2 3 Recurso Extraordinário nº 213.396-5-São Paulo. o “... na substituição tributária „para frente‟, é assegurada a restituição de quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Ora, se o fato gerador tem, na base de cálculo, a sua expressão valorativa, 4 ADIn nº 1.851-4-Alagoas. ADIn nº 1.851-4-Alagoas. 4 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 ou a sua dimensão material, força é conviver que o fato gerador se realiza nos termos dessa sua dimensão material, nem mais, nem menos. (...) Vejam, Srs. Ministros, a que ponto pode-se chegar, se não for declarada a inconstitucionalidade da cláusula 2ª do Convênio ICMS 13/97, que nega o direito à restituição do excesso de ICMS recolhido: o Fisco poderá fixar, na pauta de valores, para o fim de ser recolhido o ICMS, valor superior ao de mercado, valor superior ao preço pelo qual será o bem vendido. Não obtido, depois, o preço da pauta de valores, terá o poder público se locupletado ilicitamente, terá havido enriquecimento ilícito, o que a teoria geral do direito repele, o que o senso comum dos homens não admite.”5 As decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da substituição tributária “para a frente” devem ser examinadas sob vários ângulos. Em primeiro lugar, no que se refere à possibilidade de adoção da substituição tributária, entendemos que a posição do Supremo é acertada. Exigir o pagamento antecipado de fato gerador que irá ocorrer no futuro não é ficção, mas sim presunção relativa e, portanto, admitida no Sistema Tributário Brasileiro. O dever de pagar, nos termo do art. 150, § 7º, da Constituição, está inexoravelmente vinculado à ocorrência futura do fato gerador. Tanto é assim que, na hipótese de o fato gerador não ocorrer, o valor pago antecipadamente deve ser imediata e preferencialmente restituído. Não se trata de ficção porque não se está criando novo fato gerador, como parte da doutrina entende. É que, para estes doutrinadores, somente surge o dever de pagar com a ocorrência do fato gerador; inversamente, se se exige pagamento, é porque se considera, por ficção, ocorrido o fato gerador para o revendedor do 5 ADIn nº 1.851-4-Alagoas. automóvel, por exemplo, no momento em que o veículo é retirado da fábrica, e não no momento em que ele, revendedor, o vende para o seu cliente. No entanto, não é assim que funciona. O dever de pagar o imposto não decorre da ocorrência de um fato previsto por uma ficção jurídica, porque se assim fosse, não estaríamos sequer diante de uma antecipação de pagamento, mas do cumprimento de uma obrigação por fato gerador já ocorrido, por força de uma ficção. Na verdade, o que se dá é a exigência de um pagamento antecipado em razão de um fato gerador que, presume-se, irá ocorrer no futuro. E, como se disse, trata-se de presunção relativa, bastando a prova de que tal fato gerador futuro frustrou-se para o contribuinte ter direito a restituição. No que se refere ao exame da definitividade da base de cálculo, a posição do STF deve ser apreciada em razão das circunstâncias em que se deu o julgamento. Uma coisa é o exame da matéria em sede de controle concentrado, no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade; diverso é o seu exame em sede de controle difuso, isto é, no julgamento de um recurso extraordinário, em que se aprecia um caso concreto. Em sede de ADIn seria, em tese, possível admitir que os critérios estabelecidos em lei para se chegar ao valor da base de cálculo presumida sejam razoáveis e proporcionais ao conteúdo econômico do fato gerador. Se a lei se utiliza, por exemplo, de tabela de preços ao consumidor final sugerida pelo fabricante, seria difícil para o Tribunal, em tese, julgar inconstitucional o critério legal adotado. Aliás, as 5 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 presunções no plano abstrato são sempre absolutas, somente no caso concreto é que se diferenciam entre absolutas e relativas, posto que as últimas admitem prova em contrário. Outra coisa seria, em sede de recurso extraordinário, havendo farta prova de que a base de cálculo presumida encontra-se distanciada da realidade, o STF considerar, assim mesmo, definitiva a presunção somente para preservar o mecanismo da substituição. É que a presunção absoluta só é admitida naqueles casos em que o fato real não tem relevância para aquela situação jurídica. E, definitivamente, não se aplica ao direito tributário, como fonte de obrigação. A fim de evidenciar o equívoco de se considerar definitiva a base de cálculo em qualquer circunstância, tomemos alguns exemplos absurdos de base de cálculo presumida e definitiva. Imagine-se que, a partir de 2003, todos os advogados inscritos na OAB devam pagar imposto de renda de acordo com a tabela de honorários fixada pela instituição, independentemente do real ganho do profissional; imagine-se que, por presunção, sejam fixados como vencimentos do Ministro do STF, para fins de imposto de renda, os ganhos percebidos por titulares de cartório de registro de imóveis de São Paulo, ou que os vencimentos sejam fixados multiplicando-se o número de votos proferidos no mês pelo preço médio cobrado por um parecer jurídico. Imagine-se que, em nome da praticidade, tais bases de cálculo não pudessem ser questionadas, pois definitivas. Imagine-se, agora, com apoio na realidade, que em um prazo de cinco anos, a diferença entre o valor da base de cálculo presumida nas operações com veículos supere em mais de R$ 10.000.000,00, para um único revendedor, o valor da base de cálculo real, e que aquele não possa, mesmo fazendo prova da discrepância entre a presunção e a realidade, reclamar o que suportou a mais. Seria factível afirmar que, nestes casos, os fatos são irrelevantes, razão pela qual se utilizou da presunção absoluta? A resposta, por óbvio, é negativa. Nos casos de substituição tributária “para a frente” no ICMS, a base de cálculo presumida deverá espelhar o valor da operação futura e preservar a capacidade contributiva do contribuinte-substituído. De que modo? Primeiramente, cabe relembrar que, tratando de imposto sobre o consumo, como é o caso do ICMS, o contribuinte “de direito” não deve suportar a carga tributária, que deve ser repassada integralmente para o consumidor. Assim, na substituição tributária “para a frente”, como o substituído deve antecipar o valor do ICMS que lhe será ressarcido quando vender o produto para o consumidor, ocorre evidentemente uma redução ao princípio da capacidade contributiva. Mas, se a base de cálculo presumida for absolutamente idêntica ao valor da operação, o contribuinte substituído terá repassado para o consumidor todo o valor do tributo, e o seu “prejuízo” ficará restrito aos efeitos financeiros da antecipação de caixa. Agora, se o valor da operação for inferior ao da base de cálculo presumida, o prejuízo do contribuinte substituído será bem maior, e ele, numa deformação do sistema, tornar-se-á não só o 6 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 contribuinte de direito, mas também contribuinte de fato. Vamos exemplificar com as vendas de veículos automotores. A base de cálculo presumida de um carro é de R$ 20.000,00; incidindo o ICMS na alíquota de 12%, teremos um imposto de R$ 2.400,00. Se o veículo for efetivamente vendido por R$ 20.000,00, o consumidor terá arcado com a totalidade da carga tributária. No entanto, se o negócio for realizado por R$ 18.000,00, o consumidor arcará somente com 12% de R$ 18.000,00, isto é, R$ 2.160,00. A diferença de R$ 240,00 será suportada pelo contribuintesubstituído. Nesta hipótese, o contribuinte substituído teve a sua capacidade contributiva duplamente arranhada: primeiro, por ter de adiantar o valor do imposto antes de receber do consumidor o valor do carro, e depois por não se ter ressarcido integralmente do valor adiantado. O exemplo acima demonstra que a base de cálculo presumida deve ter por referência constitucional o princípio da capacidade contributiva. Se, em nome da praticidade, deve-se adotar a base de cálculo presumida, a sua aplicação deve ser razoável e proporcional à capacidade contributiva do sujeito passivo. Assim, a base de cálculo presumida somente poderá ser definitiva, nos casos em que for comprovadamente inferior à base de cálculo real. Isto é, base de cálculo definitiva como forma de presunção absoluta no direito tributário só é aceitável se deliberadamente for favorável ao contribuinte. É razoável, por exemplo, termos como base de cálculo presumida para o revendedor do automóvel 90% do preço pelo qual ele adquiriu o veículo na fábrica, pois é razoável supor que tal veículo será revendido por valor superior a 90% do preço de aquisição, isto é, com no máximo 10% de prejuízo. A partir desta base de cálculo presumida, o substituído adianta o valor do imposto; realizada a venda, recolhe a diferença no regime normal do ICMS. Atende-se a praticidade, respeita-se a capacidade contributiva, bem como o princípio do não-confisco. Uma palavra final sobre o tema base de cálculo presumida e a posição do Supremo Tribunal Federal, a partir do que é denominado pela doutrina de realização do direito. De acordo com Antonio Carlos Menezes Cordeiro, o esquema clássico da realização do Direito assentava em dois pilares essenciais: a compartimentação do processo interpretativoaplicativo e o método da subsunção, que observava o seguinte processo operacional: determinação da fonte relevante, a sua interpretação, a integração de eventuais lacunas, a delimitação da matéria de fato resultante, a sua qualificação jurídica e a aplicação. O esquema clássico foi aprimorado a partir da constatação de que a realização do direito é unitária, na medida em que tudo está implicado, podendose por isso falar num círculo ou espiral de realização do Direito, onde se passa da interpretação à aplicação, e destas às fontes e aos fatos, tantas vezes quantas as necessárias para obter-se uma síntese que supere todas essas fases, na decisão constituinte final. O reconhecimento da natureza constituinte da decisão é o outro aspecto, ao lado da 7 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 unidade da realização do direito, que possibilitou a superação do modelo clássico. A decisão constituinte seria, por definição, uma manifestação de vontade humana, não de uma vontade vinculada, mas uma manifestação cognitivo-volitiva, no sentido de que o julgador aprende certos elementos e decide, criativamente, em termos finais. Tal criatividade existe desde a apreensão dos fatos à localização das fontes, mas não pode ser independentemente destas. Assim, quanto mais vagos os conceitos e maiores as lacunas, maior a criatividade; quanto mais rígidas as normas, menor a criatividade. Na base da realização do direito está, portanto, a vontade humana, que não pode ser exercida arbitrariamente, mas orientada por uma série de proposições dadas pela Ciência do Direito, que se articulam em modelos de decisão. Dentre os elementos que compõem os modelos de decisão – os argumentos – estaria o préentendimento, isto é, o intérpreteaplicador carrega sempre consigo uma pré-visão do problema, fruto da sua experiência, dos seus conhecimentos e das suas convicções. O outro elemento do modelo de decisão é aquele que lida com a idéia de sinépica ou com as denominadas conseqüências da decisão, assim explicadas por Antonio Menezes Cordeiro: “Na origem, pode colocar-se o utilitarismo, de Bentham a Jhering e precisando através de Bierling, que veio exigir, na interpretação, a indagação do escopo prosseguido pelo legislador. Desenvolveu-se, assim, o factor teleológico da interpretação, particularmente valorado por Canaris. Vai-se agora, mais longe. Para além da finalidade do Direito, a consignar condignamente nos modelos de decisão, há que lidar com as conseqüências dessa própria decisão. Na verdade, a seqüência da decisão – domínio, em princípio, fora já da esfera do julgador – pode sufragar ou inviabilizar os objectivos da lei e do Direito. Ignorá-lo, enfraquece a mensagem normativa; incluí-lo no próprio modelo de decisão permite, em definitivo, superar estádios meramente formais no domínio da aplicação do Direito. Nessa linha, surge a sinépica: trata-se de um conjunto de regras que, habilitando o intérprete-aplicador a „pensar em conseqüências‟, permitem o conhecimento e a ponderação dos efeitos das decisões. (...) Perante um problema a resolver, não se aplica, apenas, a norma primacialmente vocacionada para a solução: todo o Direito é chamado a depor. Por isso, há que lidar com os diversos ramos do Direito, em termos articulados, com relevo para a Constituição – a interpretação deve ser conforme a Constituição, os diversos dados normativos relevantes e os próprios níveis instrumentais do processo.”6 Das lições acima transcritas, o que se pretende destacar é a questão relativa à sinépica, que busca não somente os fundamentos e a finalidade de uma decisão, mas as suas conseqüências. Assim, examinemos as conseqüências que esse precedente do STF em sede de controle concentrado podem acarretar, se não se permitir analisar caso a caso a razoabilidade da base de cálculo presumida. Primeiramente, toda a consistência lógica da estrutura da norma tributária desmonta-se a partir do momento em que se permite um descolamento entre o aspecto material da hipótese de incidência e a base de cálculo. É que, se a base de cálculo presumida pode ser definitiva e ao mesmo tempo diferente, distante, desconectada da dimensão econômica do aspecto material do 6 CORDEIRO, Antonio Menezes. Os Dilemas da Ciência do Direito no Final do Século XX, prefácio à obra de CANARIS, Claus-Wilherm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2ª ed., Lisboa: Fundação Calauste Gulbenkian, 1996, pp. CIX-CXII. 8 Revista Dialética de Direito Tributário Nº 95 fato imponível, descaracterizada está toda a relação de pertinência que deveria existir entre hipótese e conseqüência, entre fato imponível e base de cálculo. Depois, a definitividade de uma base de cálculo irreal representa total submissão dos princípios da capacidade contributiva, não-confisco, razoabilidade e proporcionalidade à praticidade tributária, numa total subversão dos valores consagrados pelo Sistema Tributário. Se compreendermos o sistema jurídico como “ordem axiológica ou teleológica de 7 princípios jurídicos gerais” e se recordarmos que há uma escala de princípios na qual os princípios gerais portadores de valores éticos primários ganham concretização com a aplicação de subprincípios com eles conexos e interligados, como admitir que a praticidade, mero atributo da legalidade, possa se sobrepor aos princípios fundamentais do direito tributário, em especial aos princípios da capacidade contributiva, do nãoconfisco e da razoabilidade? A definitividade da base de cálculo é antes de tudo injusta, por submeter uma categoria de contribuintes – aqueles que integram a substituição tributária “para a frente” – a um regime que permite ou que cristaliza uma base de cálculo confiscatória, posto que desarrazoada, em nome da praticidade. Ora, não pode haver praticidade injusta. A praticidade só se legitima se for instrumento que possibilite a aplicação da lei para todos, a fim de se evitar evasão fiscal, jamais como instrumento de perpetuação de irrealidades confiscatórias. Por todo o exposto, entendemos que a posição do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema não é inflexível, pois, no decorrer de sucessivos julgamentos de casos concretos, o Tribunal terá a oportunidade de verificar que a adequação da base de cálculo presumida à realidade é medida fundamental para a preservação dos princípios informadores do Estado Democrático de Direito, do qual ele, STF, deve ser o guardião. 7 CANARIS. Claus-Wilherm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p.280. 9