XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 26 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E HISTÓRIAS DE VIDA NO CONTEXTO DO PROGRAMA LER E ESCREVER Sirlei Ivo Leite Zoccal – UNISANTOS Sanny Silva da Rosa – UNISANTOS RESUMO O artigo descreve caminhos para a compreensão das articulações entre os saberes prévios dos professores, aqueles trabalhados nos cursos de formação continuada e os desenvolvidos nas ações de sala de aula. O estudo teve como objeto a análise das concepções e práticas de professoras alfabetizadoras participantes do Programa Ler e Escrever da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, com objetivo de compreender as relações que estabelecem com os saberes instituídos por essa política pública, com apoio em autores como Charlot (2000), Ball (2005) e Contreras (2002). A pesquisa foi realizada com professores alfabetizadores de escolas estaduais, pertencentes à Diretoria de Ensino de Santos abrangendo os municípios de Santos, Cubatão e Guarujá. Os resultados obtidos apontaram para o entendimento de que há uma relação contraditória e ambígua com os conhecimentos do Programa que se expressam, em alguns momentos, em atitudes de submissão e também de resistência na tentativa de afirmarem sua identidade própria no exercício de suas práticas pedagógicas. Palavras-chave: práticas pedagógicas; saberes docentes; Programa Ler e Escrever Este trabalho visa refletir sobre algumas questões que emergiram no processo de formação de educadores do Ensino Fundamental de Ciclo I promovidos pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, dentre as quais se destacam: será que os cursos atingem o objetivo de proporcionar aos professores uma formação continuada que garanta um melhor desempenho dos alunos no processo ensino aprendizagem? Como os professores transformam o conhecimento adquirido nos cursos em ações de sala de aula? Por que alguns professores envolvem-se criativamente com os saberes de sua profissão, enquanto outros parecem manter uma relação de submissão às expectativas externas de seu trabalho? Enfim, por que, com tanta formação, os resultados continuam insatisfatórios? Essas questões se intensificaram na implementação do Programa Ler e Escrever, na capital do estado em 2007 e iniciado na Baixada Santista em 2009. A comparação dos mapas de sondagem das escolas realizadas nos anos iniciais do ensino fundamental permitiu constatar que a defasagem na aquisição da base Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005364 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 alfabética dos alunos permanecia praticamente inalteradas. Observou-se, também, certa inconsistência na aplicação e análise das avaliações que pressupõem o domínio, por parte dos professores, de conceitos e procedimentos trabalhados nos cursos de formação. Daí a necessidade de investigar o que se passa “entre” os processos de formação de professores e as práticas de sala de aula. Este artigo apresenta e discute resultados de pesquisa realizada em três Unidades Escolares de bairros periféricos dos municípios de Santos, Cubatão e Guarujá, com a finalidade de conhecer a realidade vivida pelos educadores no contexto escolar, bem como as relações entre o modo de conduzir as práticas pedagógicas de sala de aula e os processos formativos das professoras alfabetizadoras pesquisadas. A análise resultou da combinação da observação do trabalho de sala de aula e das narrativas produzidas pelas professoras durante discussão em grupo focal. O Programa Ler e Escrever no contexto das reformas educacionais Em 2007, o governo federal estabeleceu metas e prazos para que a educação pública brasileira atingisse os níveis de desempenho médio verificado nos países mais desenvolvidos, até 2021. Essas metas estão inseridas no PDE - Plano de Desenvolvimento de Educação. Naquele mesmo ano, o Governo do Estado de São Paulo e a Secretaria Estadual da Educação lançaram o plano para a educação paulista, conhecido como São Paulo Faz Escola, do qual faz parte o Programa Ler e Escrever, idealizado e proposto para reverter o quadro de fracasso escolar identificado pelo SAEB de 2003 em relação às competências de leitura e de escrita dos alunos, especialmente nas séries iniciais do ensino fundamental. O Programa, implantado na capital do estado em 2007, foi ampliado no ano seguinte para as escolas do interior, tendo início na Baixada Santista, em 2009. Tais políticas se inserem no contexto das reformas educacionais, iniciadas a partir dos anos de 1990, que trouxeram para os sistemas um mecanismo indutor das mudanças por meio das avaliações de larga escala. O SAEB, por exemplo, foi estruturado no sentido de produzir informações sobre o desempenho da educação básica em todo o país e sua utilização como subsídio para planejar programas de capacitação docente vem sendo feita desde 1995. As transformações resultantes dessa abordagem gerencial do trabalho pedagógico (BALL, 2005) colocam em evidência a Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005365 27 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 íntima interrelação entre as políticas públicas em educação, o currículo e as práticas docentes. De acordo com o educador espanhol José Contreras, “as reformas não são apenas mudanças que se introduzem na organização e no conteúdo da prática educativa, mas também formas de pensá-la” (2002, p. 228). A proposta pedagógica e os conteúdos do Programa Ler e Escrever já faziam parte do trabalho de formação de professores realizado no Estado de São Paulo e, particularmente, nesta região da Baixada Santista desde 2003, por meio do Programa “Letra e Vida”, que, por sua vez, é uma reedição do PROFA (Programa de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores), desenvolvido entre 2000 e 2003. A concepção pedagógica central desses dois Programas pauta-se no pressuposto de que, tanto a didática quanto a metodologia dos processos de alfabetização devem ser realizados em contextos de letramento, isto é, “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 2001, p.47). Trata-se, portanto, de trazer para dentro da escola a escrita e a leitura que acontecem fora dela, isto é, aproximar ao máximo a “versão escolar” da “versão social”. Este modelo de ensino apoia-se na capacidade do sujeito de refletir sobre as características e o funcionamento da escrita e, assim, inferir, estabelecer relações, processar e compreender informações, transformando-as em conhecimento. Trata-se, portanto, de uma abordagem que pressupõe um trabalho de formação do professor, que implica não apenas o domínio teórico dessa abordagem pedagógica como principalmente a mudança de postura em relação aos processos de ensino e de aprendizagem dos alunos. Deste ponto de vista, este é um trabalho de desafios, pois os professores têm dificuldades de transformar os conhecimentos adquiridos anteriormente em conteúdos ensináveis. Entende-se que, cada vez mais, seja necessário que as disciplinas do curso de formação inicial sejam verdadeiramente entrecruzadas para que o aluno-futuro-professor possa conscientizar-se do entrelaçamento entre a profundidade necessária de sua aprendizagem e as adaptações didáticas pertinentes ao ensino desse conhecimento em sua sala de aula. Formar professores pressupõe desenvolver com eles uma reflexão acerca de como se dá a aprendizagem de um profissional responsável pelo ensino e pela aprendizagem de outros, ou seja, envolve uma preocupação com o quê o professor precisa aprender para poder ensinar e isso requer entendimento das formas de Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005366 28 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 organização do aprendizado dos conhecimentos, saberes e competências profissionais necessárias ao desenvolvimento de sua ação pedagógica. De acordo com Rosa, “o conhecimento depende de uma experiência de comunicação vital com um objeto que, em sala de aula, se dá por intermédio e no encontro de / entre dois seres: o aluno e o professor” (2007, p. 10) Assim, é na condição de uma “pessoa” que o professor se relaciona com os conhecimentos e com seus alunos, carregando para o interior da sala de aula os seus valores, sua cultura, suas vivências e histórias de vida. Por isso também é possível defender a ideia de que é necessário desenvolver uma proposta de trabalho em que os professores atuem como sujeitos e não apenas como meros executores de programas e projetos prescritos, uma vez que lhes são requeridos saberes próprios sem os quais eles não têm condições de participar da proposta de forma ativa e autônoma. Foi com esta perspectiva que se pretendeu compreender as articulações entre os saberes prévios dos professores, aqueles trabalhados nos cursos de formação continuada e os desenvolvidos nas ações de sala de aula, com a finalidade de obter algumas respostas às questões e dilemas suscitados e enfrentados na prática cotidiana dos professores e nas tensões existentes entre as expectativas de resultados do sistema e a realidade vivida pelos educadores no contexto escolar. Breve discussão teórica sobre o conceito de ‘relação com o saber’ Para examinar a problemática da tradução dos saberes dos cursos de formação em ações de sala de aula, partiu-se da discussão da noção de “relação com o saber” desenvolvida por Bernard Charlot (2000) que se constitui pela articulação de três dimensões: a relação com o mundo, relação consigo mesmo e a relação com os outros. Assim, para este autor, “analisar a relação com o saber é analisar uma relação simbólica, ativa e temporal. Essa análise concerne à relação com o saber que um sujeito inscreve num espaço social (CHARLOT, 2000, p. 79). Isto nos faz pensar que o educador, na condição de aprendiz, só entrará em contato verdadeiro com os saberes do processo de sua própria formação continuada se atribuir sentido a aos conhecimentos, integrando-os à sua subjetividade e à sua prática profissional. Assim, a questão central a pesquisa foi colocada nos seguintes termos: como ocorre a relação dos professores alfabetizadores com os saberes teóricos, pedagógicos e metodológicos do Programa Ler e Escrever? Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005367 29 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 30 A temática da “relação com o saber” passou a ser estudada desde a década de 1980 por Bernard Charlot e outros pesquisadores franceses, a partir do interesse em compreender o significado de ir à escola e aprender para jovens de escolas profissionais do subúrbio de Paris. Ao estudarem o “fracasso” escolar a partir do paradigma teórico de Bourdieu, depararam-se com o estranhamento provocado pela constatação de que nem todos os estudantes das classes menos privilegiadas fracassavam na escola. Foi assim que estes pesquisadores passaram a considerar a importância de postular uma “sociologia do sujeito”, entendendo-o como: um ser social, que nasce em uma família (ou em um substituto da família) que ocupa uma posição e um espaço social, que está inscrito em relações sociais”, mas também é “um ser singular” (...) que tem uma história, interpreta o mundo, dá um sentido a esse mundo, à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história, à sua singularidade. (CHARLOT, 2000, p.33) Com base neste pressuposto, o estudo da relação com o saber pressupõe indagar sobre a trajetória de vida e de escolarização dos sujeitos, a fim de identificar os sentidos atribuídos por eles ao aprender, ao estudar, à escola. Este mesmo raciocínio é válido para o processo de formação de professores. De um lado, sabemos que há percalços, conflitos e dilemas educacionais comuns às instituições de uma mesma rede de ensino. De outro, é preciso que sejam considerados o modo singular como cada sujeito, em cada sala de aula, lida e se envolve com os problemas de sua realidade, para compreender como os professores apreendem os conhecimentos e os traduzem em sua prática pedagógica. Pois, como nos ensina Charlot, a informação não é o mesmo que saber: “a informação se torna um saber quando traz consigo um sentido, quando estabelece um sentido de relação com o mundo, de relação com os outros, de relação consigo mesmo” (2005, p. 31). Nesta linha de raciocínio, também concordamos com Tardif ao afirmar que: [...] o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estudá-lo relacionando-o com esses elementos constitutivos do trabalho docente (TARDIF, 2010, p. 11) Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005368 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Se o professor não estiver mobilizado a se envolver com os saberes de sua profissão, dificilmente os programas e propostas de formação trarão os resultados esperados. Além disso, é preciso considerar a ‘esterilidade’ discursiva para as práticas pedagógicas, como alerta Antônio Nóvoa quando afirma que: Sentimos a necessidade da mudança, mas nem sempre conseguimos definir-lhe o rumo. Há um excesso de discursos, redundantes e repetitivos, que se traduz numa pobreza de práticas. Há momentos em que parece que todos dizemos o mesmo, como se as palavras ganhassem vida própria e se desligassem da realidade das coisas. (...) O campo da formação de professores está particularmente exposto a este efeito discursivo, que é também um efeito de moda. E a moda é, como todos sabemos, a pior maneira de enfrentar os debates educativos. Os textos, as recomendações, os artigos e as teses sucedem-se a um ritmo alucinante repetindo os mesmos conceitos, as mesmas ideias, as mesmas propostas. (1993, p.27) Inúmeros e complexos conceitos, organizados em torno de propostas e discursos pedagógicos têm sido trabalhados em programas formação de professores no sistema oficial de ensino do estado de São Paulo – como o Letra e Vida e o Ler e Escrever, por exemplo. No entanto, insiste-se na espera de “bons resultados”, sem que se conheça quais são e o que pensam os professores. Ao tomarmos de empréstimo o conceito de “relação com o saber”, procuramos dar “visibilidade” aos professores, com a finalidade de compreendermos melhor de que modo os participantes do Programa Ler e Escrever se relacionam com pressupostos teóricos, metodológicos e pedagógicos desta proposta pedagógica. Metodologia e resultados da pesquisa O cenário em que se desenvolveu a pesquisa, ao longo dos anos de 2010 e 2011, era composto, na ocasião, por um universo de 401 (quatrocentas e uma) classes de Ciclo I da DER - Santos, distribuídas em 31 (trinta e uma) Unidades Escolares com Ensino Fundamental, nos municípios de Cubatão, Guarujá e Santos. Por tratar-se de uma investigação de abordagem qualitativa, optou-se por trabalhar com a amostra de três escolas, uma de cada município da região, localizadas em bairros de periferia, de difícil acesso e que apresentavam diferentes entraves intervenientes no trabalho pedagógico evidenciados nos resultados abaixo do esperado em avaliações externas de desempenho (SARESP/ IDESP). Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005369 31 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Com o objetivo de compreendermos as relações entre as práticas pedagógicas de sala de aula e os processos formativos das professoras alfabetizadoras pesquisadas, optou-se por combinar as técnicas de observação e a discussão em grupo focal. Assim, acompanhamos o trabalho de quatro professoras do 2º ano / 1ª série (entende-se como equivalentes 2ª ano do ensino de nove anos e 1ª série no ensino de 8 anos) do Ensino Fundamental do Ciclo I, para verificar como elas lidavam, em sala de aula, com os saberes conceituais, procedimentais e atitudinais do Programa Ler e Escrever. O debate em grupo focal visou identificar os sentidos e significados atribuídos aos processos de aprender das professoras Ana, Beatriz, Cristine e Debora, nomes ficticiamente por elas mesmas atribuídos. Apesar de se identificarem com a proposta teórica do programa, foi possível perceber, pelas observações das práticas de sala de aula, que duas professoras caminhavam com mais autonomia, demonstrando domínio dos conceitos e procedimentos didáticos da proposta, enquanto outras duas tendiam apenas a reproduzir o discurso e as “técnicas’ prescritas e as orientações didáticas do “guia” do professor. Embora se veja como ‘adepta’ da proposta pedagógica do Programa, a professora Ana demonstra, em certas ocasiões, desatenção a alguns procedimentos recomendados para ensinar aos alunos a função social da escrita, como por exemplo, o de iniciar a rotina diária colocando na lousa a ‘pauta’ do dia. Tal ‘esquecimento’ parece sugerir que, para ela, esse “detalhe” não seja relevante. Observamos, porém, que após uma visita inesperada da coordenadora na sua sala, Ana, constrangida, apressou-se em anotar a rotina na lousa, mesmo já tendo avançado nas atividades programadas naquele dia. Essa atitude pode ser interpretada como manifestação de seu receio em desapontar sua coordenadora, mais do que uma real demonstração de reconhecimento da importância pedagógica do procedimento. A professora Débora, ao contrário, faz uso da ‘pauta’ diária no quadro fazendo com que os alunos interajam com as informações, escrevendo na pauta o nome dos colegas que faltaram, o que revela que esta professora utiliza esse recurso com desenvoltura e como um estimulador para a criação de situações de aprendizagem com foco na aquisição da base alfabética. Esta professora costuma desenvolver atividades com jogos, fazendo com que todos os alunos participem efetivamente e desenvolvam atitudes de colaboração, respeito e organização para Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005370 32 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 o trabalho. Débora demonstra, particularmente, organizar a rotina com ações didáticas significativas para os alunos, de acordo com os pressupostos do projeto. Um exemplo de equívoco conceitual, revelado por meio dos procedimentos didáticos, foi observado na de sala de aula da professora Cristine. No momento da realização da ‘sondagem’, esta professora dividiu os alunos em dois grupos: os que, já escreviam com certa autonomia e os que, segundo com ela, “não dariam conta” de escrever, posicionando estes últimos perto dela, na frente da sala. Este procedimento, como se sabe, contraria os objetivos da sondagem realizada, justamente, para diagnosticar as hipóteses de escrita em que cada criança se encontra. Ao agrupá-los desta forma a professora, na realidade, se antecipou ao diagnóstico na tentativa de ajudá-los na execução da tarefa, o que evidentemente, comprometeria o resultado da ‘sondagem’. Observamos também que os alunos da professora Cristine costumavam trabalhar quase sempre individualmente. Este nos parece outro indicador importante de que esta professora não estava suficientemente convencida da importância da interação entre pares no processo de aprendizagem. Já na sala da professora Beatriz, observamos que os alunos costumavam trabalhar em duplas, promovendo a troca e auxílio cognitivo entre eles durante as atividades. Estes procedimentos são recomendados pelo Programa e parecem ter sido bem compreendidos e trabalhados pela professora. Além disso, no fundo da classe, há um espaço destinado à leitura, com mesas, cadeiras e diferentes materiais como livros, revistas, caixa plástica com acervo de paradidáticos, mapas, alfabeto móvel, jogos, dentre outros. Convém ressaltar, porém, que a permanência de organização da sala, como um “ambiente alfabetizador”, e favorecida pelo fato de que, nesta escola, não há turmas que a utilizem no período noturno. Isto, porém é praticamente impossível na escola onde Ana trabalha, pois, segundo ela, os alunos dos outros períodos ‘destroem tudo’ (rasgam, riscam e quebram os materiais). Este depoimento é bastante fidedigno, considerando características da comunidade local e as precárias condições físicas desta escola localizada no alto do morro da Rodovia Anchieta no município de Cubatão, o que nos faz concluir que nem sempre as professoras dispõem de condições concretas para o desenvolvimento de seu trabalho em consonância com as orientações pedagógicas do projeto. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005371 33 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Como foi dito anteriormente, as observações de sala de aula foram complementadas com as discussões em grupo focal, ocasião em que se procurou compreender aspectos das histórias de vida e de formação desses professores. A análise comparativa dos dados coletados nessas duas etapas da pesquisa nos possibilitou constatar que as professoras que demonstram estabelecer uma relação mais autônoma com os saberes do Programa são aquelas que tiveram experiências positivas no processo de sua aprendizagem desde a infância, seja no âmbito da família ou na escola. Beatriz conta, por exemplo, que apesar do pouco estudo “meu pai sempre olhou pra mim (...) eu lembro bem, ele lia aquela literatura de cordel, todas as noites, minha mãe me fazia estudar. Aprendi com eles a respeitar os outros, a dividir...” Já Débora lembra de sua professora, Dona Brasilina: “era uma mãezona, foi muito boa a minha infância, eu aprendi a ter responsabilidade com essa professora. Ela passava muito isso e também passava e beijava a gente ...” Ana, porém, não teve a mesma sorte, revelando que tinha medo de sua professora: “ela gritava e eu tinha medo, eu fazia xixi na sala porque tinha medo de pedir para ir ao banheiro.” Cristine, por sua vez, recorda que: “na minha casa, aprendi organização (...) mas não fui incentivada à leitura. Eu não tive isso, nem na escola e nem em casa. (...) Eu não tenho o hábito, mas eu incentivo eles (sic, os alunos) a ler.” O cruzamento desses dados nos fazem pensar que a práticas de sala de aula dessas professoras mantém particular relação com o modo elas como construíram a sua relação com o aprender, com os objetos da cultura e com os outros, como argumenta Charlot (2000). Compreende-se, assim, porque essas professoras estabelecem uma relação contraditória e ambígua com os conhecimentos do Programa, expressa em atitudes de submissão e resistência na tentativa de afirmar uma identidade própria de seu fazer profissional. Considerações finais As narrativas das professoras obtidas nas discussões do grupo focal contribuíram para que compreendêssemos melhor suas ações de sala de aula quando relacionadas a aspectos da história de vida de cada sujeito. Assim, o que poderia ser considerado, a partir dos pressupostos teóricos do Programa, como equívoco, resistência, falta de estudo ou de entendimento, pode ser interpretado como formas particulares de conceber o processo de ensino e aprendizagem aos olhos de cada sujeito da pesquisa, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005372 34 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 construídas no curso de suas vivências como estudantes, nas suas práticas docentes e nos conhecimentos adquiridos nos cursos de formação. Vem-nos então à lembrança uma atividade desenvolvida com os alunos de classes de aceleração, intitulada “Um só lugar e muitos olhares”. A atividade era pautada em duas pinturas de Vincent Van Gogh, retratando a ponte de Arles (sul da França) de margens diferentes. O lugar era o mesmo, a ponte era a mesma, a única coisa que se alterava era o ponto de observação. Esta é uma boa metáfora para expressar o que a análise dos dados coletados possibilitou para o nosso atual entendimento acerca da temática da tradução de conhecimentos teóricos em ações de sala de aula, a partir da escuta atenda das narrativas desses quatro sujeitos. Mas, para além dessa dimensão subjetiva, convém lembrar e mencionar as condições objetivas nas quais os docentes desenvolvem o seu trabalho. Considerando as difíceis condições de trabalho a que estão submetidas, foi possível constatar que aquelas professoras buscam soluções para problemas que se apresentam no dia a dia, nem sempre cogitadas por aqueles que idealizam e monitoram a implementação de programas e políticas educacionais com foco em resultados. Nesta linha de raciocínio, é possível pensar que algumas professoras se empenhem em “executar” o projeto e atingir as “metas” prescritas pelo sistema na tentativa de responder às expectativas das equipes gestora ou apenas obter os “bônus” prometidos por seu bom desempenho. Nesses casos, porém, a apropriação dos saber torna-se frágil, pois adere a outro sistema de sentido. Como agentes envolvidos na formação continuada de professores, concluímos que “...nenhuma mudança substantiva nessa área prescinde do envolvimento dos educadores” (ROSA, 2007). Nesse sentido, a construção da autonomia profissional dos educadores é parte fundamental desse processo. Por esta razão, os mesmos cuidados que se pretende que os professores tenham com relação aos conhecimentos prévios de seus alunos, é necessário ter em relação aos seus saberes. Em outras palavras, para que se sintam como sujeitos ativos e autônomos no exercício de sua prática pedagógica, é preciso que se leve em consideração e que se incorpore, nos processos de formação de professores, os conhecimentos e saberes acumulados ao longo da trajetória em que estes sujeitos se constroem e transformam. Pois, como nos ensinam Tardif (2010) e Freire (2008) é impossível compatibilizar um discurso progressista com uma prática autoritária. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.005373 35 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Referências bibliográficas BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Vol. 35, n.126, set/dez, 2005. CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre, Ed. Artmed, 2000. 148 p. CONTRERAS, José. A autonomia dos professores. São Paulo: Cortez Editora, 2002. FREIRE, Paulo. 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