XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
26 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E HISTÓRIAS DE VIDA NO CONTEXTO
DO PROGRAMA LER E ESCREVER
Sirlei Ivo Leite Zoccal – UNISANTOS
Sanny Silva da Rosa – UNISANTOS
RESUMO
O artigo descreve caminhos para a compreensão das articulações entre os
saberes prévios dos professores, aqueles trabalhados nos cursos de formação continuada
e os desenvolvidos nas ações de sala de aula. O estudo teve como objeto a análise das
concepções e práticas de professoras alfabetizadoras participantes do Programa Ler e
Escrever da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, com objetivo de
compreender as relações que estabelecem com os saberes instituídos por essa política
pública, com apoio em autores como Charlot (2000), Ball (2005) e Contreras (2002). A
pesquisa foi realizada com professores alfabetizadores de escolas estaduais,
pertencentes à Diretoria de Ensino de Santos abrangendo os municípios de Santos,
Cubatão e Guarujá. Os resultados obtidos apontaram para o entendimento de que há
uma relação contraditória e ambígua com os conhecimentos do Programa que se
expressam, em alguns momentos, em atitudes de submissão e também de resistência na
tentativa de afirmarem sua identidade própria no exercício de suas práticas pedagógicas.
Palavras-chave: práticas pedagógicas; saberes docentes; Programa Ler e
Escrever
Este trabalho visa refletir sobre algumas questões que emergiram no processo
de formação de educadores do Ensino Fundamental de Ciclo I promovidos pela
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, dentre as quais se destacam: será que
os cursos atingem o objetivo de proporcionar aos professores uma formação
continuada que garanta um melhor desempenho dos alunos no processo ensino
aprendizagem? Como os professores transformam o conhecimento adquirido nos
cursos em ações de sala de aula? Por que alguns professores envolvem-se
criativamente com os saberes de sua profissão, enquanto outros parecem manter uma
relação de submissão às expectativas externas de seu trabalho? Enfim, por que, com
tanta formação, os resultados continuam insatisfatórios?
Essas questões se intensificaram na implementação do Programa Ler e
Escrever, na capital do estado em 2007 e iniciado na Baixada Santista em 2009.
A comparação dos mapas de sondagem das escolas realizadas nos anos iniciais do
ensino fundamental permitiu constatar que a defasagem na aquisição da base
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alfabética dos alunos permanecia praticamente inalteradas. Observou-se, também,
certa inconsistência na aplicação e análise das avaliações que pressupõem o
domínio, por parte dos professores, de conceitos e procedimentos trabalhados nos
cursos de formação. Daí a necessidade de investigar o que se passa “entre” os
processos de formação de professores e as práticas de sala de aula.
Este artigo apresenta e discute resultados de pesquisa realizada em três
Unidades Escolares de bairros periféricos dos municípios de Santos, Cubatão e
Guarujá, com a finalidade de conhecer a realidade vivida pelos educadores no
contexto escolar, bem como as relações entre o modo de conduzir as práticas
pedagógicas de sala de aula e os processos formativos das professoras
alfabetizadoras pesquisadas. A análise resultou da combinação da observação do
trabalho de sala de aula e das narrativas produzidas pelas professoras durante
discussão em grupo focal.
O Programa Ler e Escrever no contexto das reformas educacionais
Em 2007, o governo federal estabeleceu metas e prazos para que a educação
pública brasileira atingisse os níveis de desempenho médio verificado nos países mais
desenvolvidos, até 2021. Essas metas estão inseridas no PDE - Plano de
Desenvolvimento de Educação. Naquele mesmo ano, o Governo do Estado de São
Paulo e a Secretaria Estadual da Educação lançaram o plano para a educação paulista,
conhecido como São Paulo Faz Escola, do qual faz parte o Programa Ler e Escrever,
idealizado e proposto para reverter o quadro de fracasso escolar identificado pelo
SAEB de 2003 em relação às competências de leitura e de escrita dos alunos,
especialmente nas séries iniciais do ensino fundamental. O Programa, implantado na
capital do estado em 2007, foi ampliado no ano seguinte para as escolas do interior,
tendo início na Baixada Santista, em 2009.
Tais políticas se inserem no contexto das reformas educacionais, iniciadas a
partir dos anos de 1990, que trouxeram para os sistemas um mecanismo indutor das
mudanças por meio das avaliações de larga escala. O SAEB, por exemplo, foi
estruturado no sentido de produzir informações sobre o desempenho da educação
básica em todo o país e sua utilização como subsídio para planejar programas de
capacitação docente vem sendo feita desde 1995. As transformações resultantes dessa
abordagem gerencial do trabalho pedagógico (BALL, 2005) colocam em evidência a
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íntima interrelação entre as políticas públicas em educação, o currículo e as práticas
docentes. De acordo com o educador espanhol José Contreras, “as reformas não são
apenas mudanças que se introduzem na organização e no conteúdo da prática
educativa, mas também formas de pensá-la” (2002, p. 228).
A proposta pedagógica e os conteúdos do Programa Ler e Escrever já
faziam parte do trabalho de formação de professores realizado no Estado de São
Paulo e, particularmente, nesta região da Baixada Santista desde 2003, por meio
do Programa “Letra e Vida”, que, por sua vez, é uma reedição do PROFA
(Programa
de
Formação
Continuada
de
Professores
Alfabetizadores),
desenvolvido entre 2000 e 2003. A concepção pedagógica central desses dois
Programas pauta-se no pressuposto de que, tanto a didática quanto a metodologia
dos processos de alfabetização devem ser realizados em contextos de letramento,
isto é, “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e
exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 2001, p.47). Trata-se,
portanto, de trazer para dentro da escola a escrita e a leitura que acontecem fora
dela, isto é, aproximar ao máximo a “versão escolar” da “versão social”.
Este modelo de ensino apoia-se na capacidade do sujeito de refletir sobre
as características e o funcionamento da escrita e, assim, inferir, estabelecer
relações,
processar
e
compreender
informações,
transformando-as
em
conhecimento. Trata-se, portanto, de uma abordagem que pressupõe um trabalho
de formação do professor, que implica não apenas o domínio teórico dessa
abordagem pedagógica como principalmente a mudança de postura em relação
aos processos de ensino e de aprendizagem dos alunos. Deste ponto de vista, este
é um trabalho de desafios, pois os professores têm dificuldades de transformar os
conhecimentos adquiridos anteriormente em conteúdos ensináveis. Entende-se
que, cada vez mais, seja necessário que as disciplinas do curso de formação inicial
sejam verdadeiramente entrecruzadas para que o aluno-futuro-professor possa
conscientizar-se do entrelaçamento entre a profundidade necessária de sua
aprendizagem e as adaptações didáticas pertinentes ao ensino desse conhecimento
em sua sala de aula.
Formar professores pressupõe desenvolver com eles uma reflexão acerca de
como se dá a aprendizagem de um profissional responsável pelo ensino e pela
aprendizagem de outros, ou seja, envolve uma preocupação com o quê o professor
precisa aprender para poder ensinar e isso requer entendimento das formas de
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organização do aprendizado dos conhecimentos, saberes e competências
profissionais necessárias ao desenvolvimento de sua ação pedagógica. De acordo
com Rosa, “o conhecimento depende de uma experiência de comunicação vital
com um objeto que, em sala de aula, se dá por intermédio e no encontro de / entre
dois seres: o aluno e o professor” (2007, p. 10)
Assim, é na condição de uma “pessoa” que o professor se relaciona com os
conhecimentos e com seus alunos, carregando para o interior da sala de aula os seus
valores, sua cultura, suas vivências e histórias de vida. Por isso também é possível
defender a ideia de que é necessário desenvolver uma proposta de trabalho em que os
professores atuem como sujeitos e não apenas como meros executores de programas
e projetos prescritos, uma vez que lhes são requeridos saberes próprios sem os quais
eles não têm condições de participar da proposta de forma ativa e autônoma. Foi com
esta perspectiva que se pretendeu compreender as articulações entre os saberes
prévios dos professores, aqueles trabalhados nos cursos de formação continuada e os
desenvolvidos nas ações de sala de aula, com a finalidade de obter algumas respostas
às questões e dilemas suscitados e enfrentados na prática cotidiana dos professores e
nas tensões existentes entre as expectativas de resultados do sistema e a realidade
vivida pelos educadores no contexto escolar.
Breve discussão teórica sobre o conceito de ‘relação com o saber’
Para examinar a problemática da tradução dos saberes dos cursos de
formação em ações de sala de aula, partiu-se da discussão da noção de “relação
com o saber” desenvolvida por Bernard Charlot (2000) que se constitui pela
articulação de três dimensões: a relação com o mundo, relação consigo mesmo e
a relação com os outros. Assim, para este autor, “analisar a relação com o saber é
analisar uma relação simbólica, ativa e temporal. Essa análise concerne à relação
com o saber que um sujeito inscreve num espaço social (CHARLOT, 2000, p. 79).
Isto nos faz pensar que o educador, na condição de aprendiz, só entrará em
contato verdadeiro com os saberes do processo de sua própria formação
continuada se atribuir sentido a aos conhecimentos, integrando-os à sua
subjetividade e à sua prática profissional. Assim, a questão central a pesquisa foi
colocada nos seguintes termos: como ocorre a relação dos professores
alfabetizadores com os saberes teóricos, pedagógicos e metodológicos do
Programa Ler e Escrever?
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30 A temática da “relação com o saber” passou a ser estudada desde a
década de 1980 por Bernard Charlot e outros pesquisadores franceses, a partir
do interesse em compreender o significado de ir à escola e aprender para
jovens de escolas profissionais do subúrbio de Paris.
Ao estudarem
o
“fracasso” escolar a partir do paradigma teórico de Bourdieu, depararam-se
com o estranhamento provocado pela constatação de que nem todos os
estudantes das classes menos privilegiadas fracassavam na escola. Foi assim
que estes pesquisadores passaram a considerar a importância de postular uma
“sociologia do sujeito”, entendendo-o como:
um ser social, que nasce em uma família (ou em um substituto
da família) que ocupa uma posição e um espaço social, que está
inscrito em relações sociais”, mas também é “um ser singular”
(...) que tem uma história, interpreta o mundo, dá um sentido a
esse mundo, à posição que ocupa nele, às suas relações com os
outros, à sua própria história, à sua singularidade. (CHARLOT,
2000, p.33)
Com base neste pressuposto, o estudo da relação com o saber pressupõe
indagar sobre a trajetória de vida e de escolarização dos sujeitos, a fim de
identificar os sentidos atribuídos por eles ao aprender, ao estudar, à escola. Este
mesmo raciocínio é válido para o processo de formação de professores. De um
lado, sabemos que há percalços, conflitos e dilemas educacionais comuns às
instituições de uma mesma rede de ensino. De outro, é preciso que sejam
considerados o modo singular como cada sujeito, em cada sala de aula, lida e se
envolve com os problemas de sua realidade, para compreender como os
professores apreendem os conhecimentos e os traduzem em sua prática
pedagógica. Pois, como nos ensina Charlot, a informação não é o mesmo que
saber: “a informação se torna um saber quando traz consigo um sentido, quando
estabelece um sentido de relação com o mundo, de relação com os outros, de
relação consigo mesmo” (2005, p. 31).
Nesta linha de raciocínio, também
concordamos com Tardif ao afirmar que:
[...] o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos
professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a
identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua
história profissional, com as suas relações com os alunos em
sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por
isso, é necessário estudá-lo relacionando-o com esses elementos
constitutivos do trabalho docente (TARDIF, 2010, p. 11)
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Se o professor não estiver mobilizado a se envolver com os saberes de sua
profissão, dificilmente os programas e propostas de formação trarão os resultados
esperados. Além disso, é preciso considerar a ‘esterilidade’ discursiva para as
práticas pedagógicas, como alerta Antônio Nóvoa quando afirma que:
Sentimos a necessidade da mudança, mas nem sempre
conseguimos definir-lhe o rumo. Há um excesso de discursos,
redundantes e repetitivos, que se traduz numa pobreza de
práticas. Há momentos em que parece que todos dizemos o
mesmo, como se as palavras ganhassem vida própria e se
desligassem da realidade das coisas. (...) O campo da formação
de professores está particularmente exposto a este efeito
discursivo, que é também um efeito de moda. E a moda é, como
todos sabemos, a pior maneira de enfrentar os debates
educativos. Os textos, as recomendações, os artigos e as teses
sucedem-se a um ritmo alucinante repetindo os mesmos
conceitos, as mesmas ideias, as mesmas propostas. (1993, p.27)
Inúmeros e complexos conceitos, organizados em torno de propostas e
discursos pedagógicos têm sido trabalhados em programas formação de
professores no sistema oficial de ensino do estado de São Paulo – como o Letra e
Vida e o Ler e Escrever, por exemplo. No entanto, insiste-se na espera de “bons
resultados”, sem que se conheça quais são e o que pensam os professores. Ao
tomarmos de empréstimo o conceito de “relação com o saber”, procuramos dar
“visibilidade” aos professores, com a finalidade de compreendermos melhor de
que modo os participantes do Programa Ler e Escrever
se relacionam com
pressupostos teóricos, metodológicos e pedagógicos desta proposta pedagógica.
Metodologia e resultados da pesquisa
O cenário em que se desenvolveu a pesquisa, ao longo dos anos de 2010 e
2011, era composto, na ocasião, por um universo de 401 (quatrocentas e uma)
classes de Ciclo I da DER - Santos, distribuídas em 31 (trinta e uma) Unidades
Escolares com Ensino Fundamental, nos municípios de Cubatão, Guarujá e
Santos. Por tratar-se de uma investigação de abordagem qualitativa, optou-se por
trabalhar com a amostra de três escolas, uma de cada município da região,
localizadas em bairros de periferia, de difícil acesso e que apresentavam diferentes
entraves intervenientes no trabalho pedagógico evidenciados nos resultados
abaixo do esperado em avaliações externas de desempenho (SARESP/ IDESP).
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Com o objetivo de compreendermos as relações entre as práticas
pedagógicas de sala de aula e os processos formativos das professoras
alfabetizadoras pesquisadas, optou-se por combinar as técnicas de observação e a
discussão em grupo focal. Assim, acompanhamos o trabalho de quatro professoras
do 2º ano / 1ª série (entende-se como equivalentes 2ª ano do ensino de nove anos e
1ª série no ensino de 8 anos) do Ensino Fundamental do Ciclo I, para verificar
como elas lidavam, em sala de aula, com os saberes conceituais, procedimentais e
atitudinais do Programa Ler e Escrever. O debate em grupo focal visou identificar
os sentidos e significados atribuídos aos processos de aprender das professoras
Ana, Beatriz, Cristine e Debora, nomes ficticiamente por elas mesmas atribuídos.
Apesar de se identificarem com a proposta teórica do programa, foi possível
perceber, pelas observações das práticas de sala de aula, que duas professoras
caminhavam com mais autonomia, demonstrando domínio dos conceitos e
procedimentos didáticos da proposta, enquanto outras duas tendiam apenas a
reproduzir o discurso e as “técnicas’ prescritas e as orientações didáticas do
“guia” do professor.
Embora se veja como ‘adepta’ da proposta pedagógica do Programa, a
professora Ana demonstra, em certas ocasiões, desatenção a alguns procedimentos
recomendados para ensinar aos alunos a função social da escrita, como por
exemplo, o de iniciar a rotina diária colocando na lousa a ‘pauta’ do dia. Tal
‘esquecimento’ parece sugerir que, para ela, esse “detalhe” não seja relevante.
Observamos, porém, que após uma visita inesperada da coordenadora na sua sala,
Ana, constrangida, apressou-se em anotar a rotina na lousa, mesmo já tendo
avançado nas atividades programadas naquele dia. Essa atitude pode ser
interpretada como manifestação de seu receio em desapontar sua coordenadora,
mais do que uma real demonstração de reconhecimento da importância
pedagógica do procedimento.
A professora Débora, ao contrário, faz uso da ‘pauta’ diária no quadro
fazendo com que os alunos interajam com as informações, escrevendo na pauta o
nome dos colegas que faltaram, o que revela que esta professora utiliza esse
recurso com desenvoltura e como um estimulador para a criação de situações de
aprendizagem com foco na aquisição da base alfabética. Esta professora costuma
desenvolver atividades com jogos, fazendo com que todos os alunos participem
efetivamente e desenvolvam atitudes de colaboração, respeito e organização para
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o trabalho. Débora demonstra, particularmente, organizar a rotina com ações
didáticas significativas para os alunos, de acordo com os pressupostos do projeto.
Um exemplo de equívoco conceitual, revelado por meio dos procedimentos
didáticos, foi observado na de sala de aula da professora Cristine. No momento da
realização da ‘sondagem’, esta professora dividiu os alunos em dois grupos: os
que, já escreviam com certa autonomia e os que, segundo com ela, “não dariam
conta” de escrever, posicionando estes últimos perto dela, na frente da sala. Este
procedimento, como se sabe, contraria os objetivos da sondagem realizada,
justamente, para diagnosticar as hipóteses de escrita em que cada criança se
encontra. Ao agrupá-los desta forma a professora, na realidade, se antecipou ao
diagnóstico na tentativa de ajudá-los na execução da tarefa, o que evidentemente,
comprometeria o resultado da ‘sondagem’. Observamos também que os alunos da
professora Cristine costumavam trabalhar quase sempre individualmente. Este nos
parece outro indicador importante de que esta professora não estava
suficientemente convencida da importância da interação entre pares no processo
de aprendizagem.
Já na sala da professora Beatriz, observamos que os alunos costumavam
trabalhar em duplas, promovendo a troca e auxílio cognitivo entre eles durante as
atividades. Estes procedimentos são recomendados pelo Programa e parecem ter
sido bem compreendidos e trabalhados pela professora. Além disso, no fundo da
classe, há um espaço destinado à leitura, com mesas, cadeiras e diferentes
materiais como livros, revistas, caixa plástica com acervo de paradidáticos,
mapas, alfabeto móvel, jogos, dentre outros. Convém ressaltar, porém, que a
permanência de organização da sala, como um “ambiente alfabetizador”, e
favorecida pelo fato de que, nesta escola, não há turmas que a utilizem no período
noturno. Isto, porém é praticamente impossível na escola onde Ana trabalha, pois,
segundo ela, os alunos dos outros períodos ‘destroem tudo’ (rasgam, riscam e
quebram os materiais). Este depoimento é bastante fidedigno, considerando
características da comunidade local e as precárias condições físicas desta escola
localizada no alto do morro da Rodovia Anchieta no município de Cubatão, o que
nos faz concluir que nem sempre as professoras dispõem de condições concretas
para o desenvolvimento de seu trabalho em consonância com as orientações
pedagógicas do projeto.
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Como foi dito anteriormente, as observações de sala de aula foram
complementadas com as discussões em grupo focal, ocasião em que se procurou
compreender aspectos das histórias de vida e de formação desses professores. A
análise comparativa dos dados coletados nessas duas etapas da pesquisa nos
possibilitou constatar que as professoras que demonstram estabelecer uma relação
mais autônoma com os saberes do Programa são aquelas que tiveram experiências
positivas no processo de sua aprendizagem desde a infância, seja no âmbito da família
ou na escola. Beatriz conta, por exemplo, que apesar do pouco estudo “meu pai
sempre olhou pra mim (...) eu lembro bem, ele lia aquela literatura de cordel, todas
as noites, minha mãe me fazia estudar. Aprendi com eles a respeitar os outros, a
dividir...” Já Débora lembra de sua professora, Dona Brasilina: “era uma mãezona,
foi muito boa a minha infância, eu aprendi a ter responsabilidade com essa
professora. Ela passava muito isso e também passava e beijava a gente ...”
Ana, porém, não teve a mesma sorte, revelando que tinha medo de sua
professora: “ela gritava e eu tinha medo, eu fazia xixi na sala porque tinha medo
de pedir para ir ao banheiro.” Cristine, por sua vez, recorda que: “na minha
casa, aprendi organização (...) mas não fui incentivada à leitura. Eu não tive isso,
nem na escola e nem em casa. (...) Eu não tenho o hábito, mas eu incentivo eles
(sic, os alunos) a ler.” O cruzamento desses dados nos fazem pensar que a
práticas de sala de aula dessas professoras mantém particular relação com o modo
elas como construíram a sua relação com o aprender, com os objetos da cultura e
com os outros, como argumenta Charlot (2000). Compreende-se, assim, porque
essas professoras estabelecem uma relação contraditória e ambígua com os
conhecimentos do Programa, expressa em atitudes de submissão e resistência na
tentativa de afirmar uma identidade própria de seu fazer profissional.
Considerações finais
As narrativas das professoras obtidas nas discussões do grupo focal contribuíram
para que compreendêssemos melhor suas ações de sala de aula quando relacionadas a
aspectos da história de vida de cada sujeito. Assim, o que poderia ser considerado, a
partir dos pressupostos teóricos do Programa, como equívoco, resistência, falta de
estudo ou de entendimento, pode ser interpretado como formas particulares de
conceber o processo de ensino e aprendizagem aos olhos de cada sujeito da pesquisa,
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construídas no curso de suas vivências como estudantes, nas suas práticas docentes e
nos conhecimentos adquiridos nos cursos de formação.
Vem-nos então à lembrança uma atividade desenvolvida com os alunos de
classes de aceleração, intitulada “Um só lugar e muitos olhares”. A atividade era
pautada em duas pinturas de Vincent Van Gogh, retratando a ponte de Arles (sul
da França) de margens diferentes. O lugar era o mesmo, a ponte era a mesma, a
única coisa que se alterava era o ponto de observação. Esta é uma boa metáfora
para expressar o que a análise dos dados coletados possibilitou para o nosso atual
entendimento acerca da temática da tradução de conhecimentos teóricos em ações
de sala de aula, a partir da escuta atenda das narrativas desses quatro sujeitos.
Mas, para além dessa dimensão subjetiva, convém lembrar e mencionar as
condições objetivas nas quais os docentes desenvolvem o seu trabalho.
Considerando as difíceis condições de trabalho a que estão submetidas, foi
possível constatar que aquelas professoras buscam soluções para problemas que se
apresentam no dia a dia, nem sempre cogitadas por aqueles que idealizam e
monitoram a implementação de programas e políticas educacionais com foco em
resultados. Nesta linha de raciocínio, é possível pensar que algumas professoras se
empenhem em “executar” o projeto e atingir as “metas” prescritas pelo sistema na
tentativa de responder às expectativas das equipes gestora ou apenas obter os
“bônus” prometidos por seu bom desempenho. Nesses casos, porém, a
apropriação dos saber torna-se frágil, pois adere a outro sistema de sentido.
Como agentes envolvidos na formação continuada de professores, concluímos
que “...nenhuma mudança substantiva nessa área prescinde do envolvimento dos
educadores” (ROSA, 2007). Nesse sentido, a construção da autonomia
profissional dos educadores é parte fundamental desse processo. Por esta razão, os
mesmos cuidados que se pretende que os professores tenham com relação aos
conhecimentos prévios de seus alunos, é necessário ter em relação aos seus
saberes. Em outras palavras, para que se sintam como sujeitos ativos e autônomos
no exercício de sua prática pedagógica, é preciso que se leve em consideração e
que se incorpore, nos processos de formação de professores, os conhecimentos e
saberes acumulados ao longo da trajetória em que estes sujeitos se constroem e
transformam. Pois, como nos ensinam Tardif (2010) e Freire (2008) é impossível
compatibilizar um discurso progressista com uma prática autoritária.
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CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria.
Trad. Bruno Magne. Porto Alegre, Ed. Artmed, 2000. 148 p.
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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 10 Ed,
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