XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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COMPARTILHANDO PRÁTICAS E SABERES NO DIÁLOGO ENTRE A
FORMAÇÃO INICIAL E A FORMAÇÃO CONTINUADA DOCENTE
Mairce ARAUJO
UERJ/FFP/FAPERJ
Resumo
A comunicação objetiva intercambiar experiências e reflexões sobre formação docente,
a partir da pesquisa: “Alfabetização, Memória e Formação de Professores: entrelaçando
práticas e saberes no diálogo com a escola básica”, desenvolvida em São Gonçalo, Rio
de Janeiro. Reafirmando a escola como lócus privilegiado de circulação e resgate de
saberes, histórias e memórias, bem como, de preservação e (re) criação da cultura local,
vimos percebendo que o trabalho memorialístico no e com cotidiano escolar, além de
inspirar novas práticas de formação docente, representa um rico caminho para o
fortalecimento de ambientes alfabetizadores potentes para docentes e crianças das
escolas públicas. Recolhendo/acolhendo as narrativas dos sujeitos escolares buscamos,
sobretudo, complexificar “naturalizações” sobre o "mundo da escola" ainda tão
presente entre nós. As "narrativizações" tem sido um valioso instrumento de
(auto)formação para professores e professoras, na medida em que possibilita trazer à
tona “o investigador que existe em cada um de nós” (JOSSO, 2002) que aprende
consigo próprio e na interlocução com o outro, se formando e se re-formando ao ser
formado (FREIRE, 1996). Nesse sentido, temos investido na formação do grupo como
investigador coletivo, a partir do diálogo entre futuras professoras do Curso de
Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores e professoras em exercício da E.
M. Profª. Zulmira Ribeiro, escola com a qual vimos construindo uma parceria desde
2004. As reflexões produzidas em encontros investigativos-formativos, tendo a própria
prática docente como objeto de investigação, ora tensionam, ora fortalecem práticas de
leitura e escrita, desvelando armadilhas e caminhos potentes para a (re)invenção da
escola, confirmando a fertilidade do movimento reflexivo como exercício de
(auto)formação e “tomada da palavra”. Temos como interlocutores teóricos além de
Freire (1996) e Josso, (2002), Benjamim (1994), Park (2003) e Santos (2006), dentre
outros.
Palavras-chave: cotidiano escolar, formação docente, narrativa
Introdução
Tratar a memória como coisa viva, bicho inquieto:
assim faz Eduardo Galeano quando escreve.
Pensar a memória como coisa viva, bicho inquieto, definição encontrada para o
trabalho de Eduardo Galeano (2000) na obra “O livro dos abraços”, tem me inspirado na
construção de caminhos investigativos-formativos, na Faculdade de Formação de
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Professores da UERJ, no campo da Alfabetização e da Prática de Ensino, elegendo o
diálogo com a escola como um eixo central de formação e (auto)formação.
A enxurrada de pequenas historietas recolhidas por Galeano, em suas andanças
incessantes de caçador de histórias, dando relevância aos pequenos momentos, aos
anônimos, aos menos importantes, lembram-me da recomendação de Benjamin (1994),
ao defender a importância do cronista “que narra os acontecimentos, sem distinguir
entre os grandes e os pequenos” e, com isso, mostra que “nada do que um dia aconteceu
pode ser considerado perdido para a história” (p. 223).
Professores e professoras são contadores e portadores de histórias. Impregnadas
nas práticas pedagógicas cotidianas, memórias coletivas do magistério nos alertam para
a necessidade de ouvir as vozes da escola para problematizá-las e dialogar com elas.
Em minha trajetória de professora-pesquisadora, engajada no chão da escola,
tenho buscado nas narrativas e depoimentos dos sujeitos escolares pequenos momentos,
acontecimentos menos importantes, comprometida em não deixar que nada do que um
dia aconteceu possa ser considerado perdido para a história. Acredito assim, estar
contribuindo para a construção de um novo olhar sobre a história da educação, um olhar
que possa ver nas narrativas dos sujeitos simples uma versão outra dos acontecimentos,
versão tantas vezes sufocada pela historiografia oficial.
Os depoimentos, histórias e memórias de professores/as, alunos/as e
funcionários/as recolhidos em nossas investigações têm nos ensinado a perceber a
escola como um “lugar de memória” (NORA, 1993) onde se cruzam memórias
individuais e coletivas; familiares e institucionais; sindicais e patronais; estatais e da
sociedade civil, entre outras, que se materializam na arquitetura, nos prédios, nos
documentos, nas paredes, mas também nas práticas, nos rituais, nos cheiros, nos
“sujeitos memórias”, a partir dos quais a própria escola se reconhece.
Nessa perspectiva, temos caminhado na direção do que alguns autores como
Josso (2002), Dominicé (1988) e Souza (2006) têm chamado de investigação-formação.
Nela, somos levadas por caminhos que, ao invés de apartar universidade e escola, vê
nessa parceria possibilidades de (re)construção de um conhecimento que possa
responder as demandas colocadas pelo e no cotidiano escolar (ARAUJO; MORAIS,
2011).
Por entendermos que é preciso complexificar a concepção de que a universidade
seria o lugar privilegiado de produção de conhecimento e, portanto, de proposições
acerca da formação "do outro", temos buscado em nossas pesquisas construir um
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diálogo com a escola, nos recusando a reconhecê-la apenas como locus de aplicação de
projetos pensados sobre ela, para ela. As vozes da escola anunciam formas outras de
pensar e viver a formação continuada e nos convidam a tecer com ela o que Canário
(2005) tem chamado de formação centrada na escola (ARAUJO; MORAIS, 2011).
Na perspectiva de Canário, uma formação centrada na escola pode ser
entendida:
(...) como uma estratégia [que] compõe-se de tres elementos
principais: o primeiro (...) consiste em fazer coincidir ( no tempo e no
espaço e nas pessoas) o trabalho e a formação, ou seja, fazer com que
o exercício do trabalho permita aprender a aprender com a
experiência, instituindo um processo de aprendizagem permanente; o
segundo elemento (...) que implica organizar a formação sob forma
de projectos de acção para responder problemas identificados em
contexto; o terceiro elemento consiste em abandonar a idéia de
transferência de formação, segundo a lógica da aplicação” (
CANÁRIO, 2005, p 139)
Janelas sobre a pesquisa (i) breve apresentação:
A pesquisa “Alfabetização, Memória e Formação de Professores: entrelaçando
práticas e saberes no diálogo com a Escola Básica”, que fundamenta a presente
comunicação, articulada ao Núcleo de Pesquisa e Extensão: Vozes da educação: história
e memória das escolas de São Gonçalo, é um desdobramento de ações investigativas
realizadas desde 2004. No momento atual, a pesquisa conta com o financiamento da
FAPERJ, através do Edital “Apoio à melhoria do ensino na escola pública”.
Criado em 1996, na FFP da UERJ/SG, o VOZES é constituído atualmente por
dez professoras/es doutoras/es, cujas pesquisas dialogam entre si e tem como objetivo
principal contribuir na reconstrução da memória e da história da educação de São
Gonçalo, tendo como princípio a articulação pesquisa, ensino, extensão. Ao longo dos
quinze anos desenvolvemos diferentes ações investigativas buscando constituir espaços
de memória, narração e formação com estudantes, bolsistas, professores/as,
funcionários/as e dirigentes das escolas gonçalenses, representantes sindicais,
representantes do poder público em um permanente diálogo com São Gonçalo.
Durante esse período temos construído parcerias com diferentes escolas da rede
pública de São Gonçalo e socializado as nossas discussões em diferentes espaços
acadêmicos. Concebemos, em nossas investigações, o quotidiano escolar como espaçotempo de tensão entre conhecimentos e práticas de regulação e emancipação (SANTOS,
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2006) e, também, como locus privilegiado de circulação e resgate de saberes, histórias e
memórias, bem como de preservação e (re)criação da cultura local.
Privilegiamos uma metodologia de investigação-formação (JOSSO, 2002)
buscamos constituir no e com o quotidiano escolar um movimento coletivo de ação–
reflexão-ação, envolvendo professoras em formação inicial do Curso de Pedagogia e
professoras já atuantes da rede pública em formação continuada. Da mesma forma,
trazemos essas reflexões para o espaço acadêmico, durante o período de aulas,
exercitando com os/as futuros/as docentes uma escuta sensível (BARBIER, 1992), que
percebe a relação Universidade-Escola como uma via de mão dupla na qual os
conhecimentos circulam do interior da universidade para a escola, mas, também, do
cotidiano escolar para a universidade.
A pesquisa tem como seus objetivos centrais contribuir para o fortalecimento de
novas práticas de leitura e escrita na escola, favorecendo um movimento de reflexão
dos/as professores/as acerca de sua própria prática, com vistas a garantir a
sistematização e a organização dos registros da memória e, ao mesmo tempo, fortalecer
a dimensão pesquisadora da formação docente.
Coerente com esses propósitos mais amplos, ao longo de seus oito anos, a
pesquisa investiu na constituição de núcleos de memória nas escolas buscando construir
parcerias com os sujeitos escolares. Por meio de “oficinas da memória” - que na
perspectiva trabalhada, são reconhecidas como espaços de produção coletiva de
conhecimentos - professores(as), funcionários(as) e dirigentes vem sendo convidados a
resgatar/reconstruir a memória da escola e da própria trajetória profissional com vista ao
movimento da (auto)formação.
As oficinas como espaço de reflexão sobre a própria prática, que a nosso ver,
mobilizam movimentos de (auto)formação, buscam contribuir para o reconhecimento do
“investigador (que há) em cada um de nós” e “só avança na medida em que é capaz de
se aprender a si próprio”, como Josso (2002) nos ajuda a pensar:
Trata-se, primeiro que tudo, de admitir que há um investigador em
cada um de nós e que este investigador só avança na medida em que é
capaz de se aprender a si próprio, graças ou apesar das interações
com os outros, o que deve fazer consigo mesmo e com os outros para
ser um autêntico investigador, para formular as suas questões de
investigação, os seus métodos, os seus recursos e, finalmente, a suas
fontes de informação. (p. 27).
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Nessa perspectiva, descobrindo-se investigadora e aprendendo-se a si própria, a
partir da reflexão coletiva, professoras em exercício e futuras professoras vivenciam o
processo (auto)formação, como nos mostram Abreu e Matos:
O trabalho de campo da pesquisa envolve o planejamento e a
coordenação das “oficinas da memória”, atividade de
responsabilidade das bolsistas do projeto, que são duas estudantes do
curso de Pedagogia e duas professoras da escola. Esse movimento em
si, de planejar, estudar, coordenar, discutir junto com as professoras
da escola, avaliar a atividade desenvolvida, articular teoricamente a
experiência, sintetiza, a nosso ver, a relação prática de formaçãoprática de investigação, pois na reflexão sobre as experiências da
pesquisa tanto na escola, quanto na faculdade, ao mesmo tempo,
estamos nos formando e investigando essa própria formação (2011, p.
4).
De forma geral, as oficinas acontecem nas escolas, quinzenal ou mensalmente,
com uma duração de duas horas, num calendário acordado previamente, dentro do
horário reservado pela Secretaria de Educação de São Gonçalo como centro de estudos.
Tal dinâmica vem sendo desenvolvida de forma mais sistemática com duas escolas da
rede: E. M. Raul Veiga e E. M. Profª. Zulmira M. N. Ribeiro, e ainda de forma menos
sistemática com outras escolas tais como E. M. Luiz Gonzaga, Jardim de Infância
Menino Jesus.
Buscando configurar as “oficinas da memória” como um espaço de compartilhar
experiências sobre as práticas pedagógicas na escola, instigamos professores e
professoras a contar a própria história para refletir sobre essa história. Como
dispositivo provocador para as rememorações propomos algumas atividades tais como:
livros de Literatura Infantil que tenham como eixo a memória, análise de fotografias,
montagem de dobraduras etc.
Para a presente comunicação selecionamos experiências vividas na E. M. Profª.
Zulmira M. N. Ribeiro, durante o ano de 2011.
Janelas sobre a pesquisa (ii): “Baú de memórias e beleléu”
Buscando fortalecer o diálogo entre as experiências de (auto) formação entre
professoras em formação inicial e professoras em formação continuada propusemos em
um dos encontros na E. M. Profª. Zulmira M. N. Ribeiro, em 2011, uma oficina da
memória. Tal oficina, posteriormente, deu origem a comunicação produzida em parceria
pelas bolsistas do projeto: Ruttyê Abreu (estudante de Pedagogia) e Kaytre Matos (
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professora da escola) e foi apresentada na XV Semana da Educação da FE da UERJ,
2011, tendo como título “Baú de memórias e beleléu: lembrar e esquecer como práticas
alfabetizadoras”.
A oficina contou com a participação de oito professoras da escola, que atuam na
alfabetização (primeiro, segundo e terceiro ano de escolaridade), dentro do horário do
centro de estudos, como informado anteriormente.
A leitura do livro “Guilherme Augusto de Araújo Fernandes” (FOX, 2005) foi o
dispositivo do qual nos valemos para criar um ambiente propício ao intercâmbio de
experiências. Sensibilizadas pela narrativa do livro professoras da escola e futuras
professoras foram convidadas a compartilharem suas memórias quentes, antigas,
alegres, tristes, de ouro a partir de objetos selecionados em suas próprias bolsas.
O livro traz a história de um menino que morava ao lado de um asilo e era muito
amigo de seus moradores, mas, em especial de Dona Antonia, uma senhora que havia
perdido a memória. Interessado em ajudá-la a reencontrar sua memória, indaga aos
demais moradores do asilo o que é memória e descobre que é algo antigo, que faz
chorar, que faz rir, que vale ouro e é quente. A partir das respostas, Guilherme organiza
numa cesta os objetos que equivalem a estes sentidos para ele e leva para Dona Antônia,
que recobra as lembranças perdidas.
Na tensão entre lembranças e esquecimentos, instalada no grupo, emergiam
práticas docentes que contribuíam para nos ajudar a refletir sobre como nos tornamos a
professora que somos, que invenções temos feito de nós mesmas, mediadas pelo mundo
sócio-cultural no qual estamos imersos (ARAUJO; PÉREZ E TAVARES, 2006).
Lembro-me de uma caixa que confeccionei quando trabalhava com a
Educação Infantil. O nome da caixa era “beleléu” – uma referência à
expressão popular “foi para o beleléu”. Utilizávamos a caixa para
guardar objetos ou brinquedos que as crianças levavam para a sala,
durante a “hora de coisa séria” (as atividades didáticas). Ao término
das aulas, os objetos poderiam ser resgatados do “beleléu” para as
crianças brincarem (relato de Kaytre).
Um olhar simplificado e menos atento sobre a experiência narrada poderia
conduzir a uma crítica apressada e superficial sobre a prática da professora, que num
primeiro momento revelava-se apenas como um dispositivo de controle das crianças.
O desafio que se colocava, então, naquele momento era como problematizar a
situação apresentada fugindo das armadilhas de um olhar simplificador? (PÉREZ;
ARAÚJO, 2006).
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Um dos caminhos encontrados para enfrentar o desafio foi solicitar que a
professora, produzisse um relato escrito do projeto desenvolvido com as crianças.
Tínhamos um dia na semana reservado para as crianças trazerem um
brinquedo de casa para brincar na escola, porém as crianças traziam
brinquedos todos os dias e queriam brincar todo o tempo com eles e,
muitas vezes não os guardavam para o horário do recreio. Além disso,
durante os momentos das brincadeiras livres não gostavam de guardar
os brinquedos coletivos e cada um pegava o seu e continuavam com a
brincadeira durante as atividades em sala. Pesquisando na biblioteca da
escola, achei um livro que me pareceu um tesouro, o nome do livro não
me recordo, mas a história era de um menino que não gostava de
arrumar seus pertences e deixava tudo uma bagunça e, quando ia
procurar algo que queria, sua mãe dizia que tinha ido para o “beleléu”,
o menino começou a imaginar que “beleléu” seria um “Ser” que pegava
os brinquedos espalhados e levava com ele e que, por isso, precisava
começar a guardar tudo em seus lugares. A partir da leitura deste livro,
imaginei que poderia usá-lo em sala para persuadir as crianças a
arrumar a sala. Foi, então, que elaborei um projeto com o nome do
livro. Este projeto consistia na construção coletiva de um boneco
chamado Beleléu, aproveitando as características humanas do
personagem para trabalhar o corpo humano; construção de uma caixa
nomeada de “caixa do beleléu” onde todo objeto que estava fora do
lugar era colocado nesta caixa e só poderia ser entregue no final da
semana; construção coletiva de uma “lista” de atitudes que poderíamos
ter para deixar a sala sempre em ordem; e construção de um cartaz do
“ranking” dos alunos que menos tinham brinquedos pessoais na caixa
do beleléu. No início as crianças queriam trazer os brinquedos de casa
para deixá-los na caixa do beleléu. Eu e as crianças nos divertimos
muito durante o projeto (teve até uma vez em que meu celular foi parar
na caixa, pois esqueci de desligá-lo e tocou na hora da aula, foi muito
engraçado!!!). Ao final, as crianças passaram a trazer os brinquedos
somente no dia determinado para que seu nome aparecesse no cartaz do
“ranking” semanal.
A produção escrita, trazida posteriormente para a roda de discussão,
possibilitou-nos refletir sobre o papel do registro escrito no fortalecimento da natureza
pesquisadora da prática docente, como nos dizia Freire (1996), na medida em que
escrever sobre a própria prática favorece a produção de memórias coletivas, como
afirma Park (2003)
as memórias das professoras povoam suas práticas, às vezes de
forma errante, sem grandes reflexões, assumidas após trabalhos de
análises solitárias ou de grupo. Trabalhadas como memórias
coletivas, irão produzir um texto que possibilitará a compreensão de
práticas assumidas no cotidiano (p. 34).
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Assim, o “beleléu” que nos parecia, no momento da discussão na escola, apenas
em seu caráter disciplinador para moldar as crianças às exigências escolares e sociais, a
partir do registro escrito, ganhava um novo sentido. Confirmando a criatividade da
professora, pesquisando na biblioteca da escola, achei um livro que me pareceu um
tesouro, o registro confirmava que a criatividade, a pesquisa, a construção de novas
propostas, ou seja, alternativas pedagógicas também estão presentes no cotidiano
escolar, que, inúmeras vezes, tem sido representado, como apenas o espaço-tempo da
repetição e da mesmice. De um simples depósito de objetos, o “beleléu” se
transformava num personagem que pode ajudar crianças e professora na re-invenção do
cotidiano da sala de aula.
Janelas sobre a pesquisa (iii): “palavras, lembranças e sentimentos”
Em outro momento de (auto)formação, tendo a escola como centro de nossas
referências, mais uma vez nos deparamos com "o/a professor/a da escola básica que
interroga a sua prática, investiga, documenta o seu trabalho, analisa, faz leituras, dialoga
e constrói uma forma de compreensão da realidade" (PRADO; CUNHA, 2007, p. 19).
Colocando as próprias memórias na roda, tomando a prática como objeto de
reflexão, professoras em diferentes momentos de formação ultrapassavam os limites
impostos por uma dada racionalidade técnica que as reconhece apenas como quem
aplica teorias, indo em direção a afirmação e reconhecimento de si e das outras
professoras como produtoras/autoras de uma teoria em movimento produzida no e com
o cotidiano escolar (PRADO; ARAÚJO; MORAIS, 2011).
O episódio que instigou as reflexões acima foi desencadeado por outra “oficina
da memória”, cujas experiências deram origem a comunicação produzida em parceria
pelas bolsistas do projeto: Swylane Diana (estudante de Pedagogia) e Francine Azevedo
(professora da escola) e apresentada na XV Semana da Educação da FE da UERJ, 2011,
com o título “Palavras, lembranças e sentimentos”: reflexões acerca da prática
alfabetizadora”. A oficina, como as demais, registrada em áudio e vídeo, também
aconteceu na E. M. Profª. Zulmira M. N. Ribeiro, durante o ano de 2011, contando com
a participação de oito professoras da escola, que atuam na alfabetização (primeiro,
segundo e terceiro ano de escolaridade), dentro do horário do centro de estudos.
Nos espaços narrativos propostos às escolas, apostamos que as experiências
docentes, em função do muito que têm a nos ensinar, não podem ser consideradas
perdidas para a história. Nesses momentos, a contribuição das histórias de Galeano, nas
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quais a memória é coisa viva, bicho inquieto revela-se ainda mais em seu potencial de
produzir encantamentos a partir dos pequenos acontecimentos.
A leitura do texto de Galeano e a produção de pequenas caixas a partir de
dobraduras foram os dispositivos usados por nós para sensibilizar o exercício narrativoreflexivo:
Magda Lemonnier recorta palavras nos jornais, palavras de todos os
tamanhos, e as guarda em caixas. Numa caixa vermelha guarda as
palavras furiosas. Numa verde, as palavras amantes. Em caixa azul, as
neutras. Numa caixa amarela, as tristes. E numa caixa transparente
guarda as palavras que têm magia. Às vezes, ela abre e vira as caixas
sobre a mesa, para que as palavras se misturem do jeito que quiserem.
Então, as palavras contam para Magda o que acontece e anunciam o
que acontecerá (1994, p. 69).
Inspiradas pela história de Magda, as professoras também foram estimuladas a
confeccionar suas caixas e nelas depositarem palavras furiosas, neutras, mágicas,
amantes, tristes que remetessem a prática alfabetizadora.
A temática envolvendo a exigência ou não do uso da letra manuscrita pelas
crianças nos processos iniciais de alfabetização já circulava pelo grupo e fora objeto de
discussão no último conselho de classe.
a proposta municipal de São Gonçalo para o ensino da leitura e da
escrita na Educação Infantil, não engloba a letra cursiva. Portanto, não
existe a exigência de se ensinar caligrafia e eu vejo a letra manuscrita
como uma questão de hábito, não como um pré-requisito para
alfabetizar. Hoje em dia observamos mais a escrita bastão e não a de
“mãos dadas” como é conhecida popularmente a letra cursiva e aponta
também a falta de conhecimento de algumas professoras sobre esta
questão. “Na dúvida, elas ensinam a caligrafia” (transcrição da fala de
Kaytre).
Lia toma a palavra e questiona:
Será que quando a escola tiver recursos e for toda informatizada ainda
valorizaremos a letra cursiva? Porque só a escola usa letra cursiva? Em
nenhum outro local ela é tão utilizada como na escola. (recuperado após
transcrição (transcrição).
Concordando com a professora que a exigência do uso da letra cursiva, nos
tempos atuais, acaba sendo uma prerrogativa da escola, outra componente do grupo
ampliando a discussão acrescenta:
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podemos também refletir até que ponto essa exigência, meramente
escolar, contribui para a produção dos fracassos, quando vemos
crianças ainda sendo consideradas com “problemas de alfabetização”
por não dominarem a letra cursiva. Nesse sentido, os exercícios
exaustivos de caligrafia podem representar palavras furiosas da
prática alfabetizadora (transcrição).
Desafiando o grupo e pensar a partir de outra perspectiva, contudo Janete
intervém:
Eu acredito que se a humanidade deixasse a caligrafia, isso significaria
uma desumanização, porque teríamos nos transformado em máquina. A
letra cursiva é importante pois hoje em dia tudo o mais é mecânica e
digital (transcrição).
A afirmação da professora, colocando sua contra-palavra no diálogo que
circulava no grupo, nos desafiando a pensar a partir do valor estético da letra manuscrita
ou cursiva, nos fazia refletir sobre o processo de massificação e controle que foi se
intensificando na modernidade, tanto na sociedade, quanto na escola.
Como afirma Kramer (1993) dialogando com Benjamin,
Professor e alunos são cada vez mais impedidos de deixar rastros. São,
progressivamente, submetidos a uma extensa rede de controle: fichas
de freqüência, números de matrícula, notas, informações mensuráveis
substituem conhecimentos e experiências comuns (p. 58).
Nesse sentido, abandonar o uso da letra cursiva, individualizada, autoral, aquela
que “deixa a marca” de cada sujeito escrevente, também poderia ser mais um sinal do
empobrecimento da experiência do qual nos fala Benjamin.
No exercício coletivo de narrar a prática, rever o discurso, estranhar o banal, o
comum, o ordinário, novos sentidos iam se colocando para o grupo, nos ajudando a
compreender que se por um lado, exigir de uma criança, ou mesmo de um adulto em
processo de apropriação da leitura e da escrita, o uso da letra manuscrita ou cursiva
como condição para ser reconhecido como alfabetizado ou promovido em sua
escolaridade é uma forma de interdição, por outro, é preciso, igualmente, não deixar de
lado a dimensão estética do processo ensinoaprendizagem.
O exercício coletivo de narrar a prática permitia ao grupo ora tensionar, ora
fortalecer práticas de leitura e escrita, desvelando armadilhas e caminhos potentes para a
(re)invenção da escola...
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Janelas sobre a pesquisa (iv): anotações finais sobre um processo inacabado
No diálogo Universidade-Escola temos procurado investir na formação do grupo
como investigador coletivo (ARAUJO; PÉREZ, 2006).
O caráter colaborativo da
pesquisa requer um questionamento constante das relações de poder-saber no grupo e
uma circularidade de papéis que implica no compartilhamento da mediação. Nesse
sentido, o outro (no caso, as professoras) é co-participante da pesquisa, e não apenas um
informante.
Investir na formação do grupo de professoras como investigador coletivo tem
nos possibilitado complexificar lugares e papéis tradicionalmente demarcados nos
espaços acadêmicos. A partir de tal opção acreditamos estar contribuindo para a
produção de um conhecimento solidário e emancipatório que faça eco na escola.
Afirmar uma concepção de pesquisa que vê a investigação como uma prática de
formação e faz das práticas de formação instrumentos de investigação tem nos
possibilitado questionar verdades estabelecidas, desnaturalizar práticas consideradas
banais, problematizar as ações cotidianas, enfrentando, coletivamente, o desafio de
pensar alternativas para que outros modos de funcionamento se instituam no cotidiano
da escola. Cremos e defendemos a possibilidade do diálogo se constituir, de fato, numa
forma democrática de produção de conhecimentos.
Referências bibliográficas
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Ruttyê;
MATOS,
Kaytre.
Baú
de
memórias
e
beleléu:
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Junqueira&Marin Editores
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