UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA ESTÉTICA Ludi Luswarghi Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira Ribeirão Preto 2013 LUDI LUSWARGHI RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA ESTÉTICA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Direito Privado e de Processo Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira Ribeirão Preto 2013 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. FICHA CATALOGRÁFICA Luwarghi, Ludi Responsabilidade civil do médico na cirurgia estética / Ludi Luswarghi. -- Ribeirão Preto, 2013. 134 p. ; 30cm Trabalho de Conclusão de Curso -- Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Orientadora: Marta Rodrigues Maffeis Moreira. 1. Responsabilidade civil. 2. Relação médico-paciente. 3. Cirurgia estética. 4. Obrigação de meio. 5. Obrigação de resultado. Presunção de culpa. I. Título Nome: LUSWARGHI, Ludi Título: Responsabilidade civil do médico na cirurgia estética Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovado em: Banca Examinadora Prof.(ª) Dr.(ª)___________________________ Instituição:____________________________ Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________ Prof.(ª) Dr.(ª) __________________________ Instituição:____________________________ Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________ Prof.(ª) Dr.(ª)___________________________ Instituição:____________________________ Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________ Aos meus pais. AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para que este trabalho pudesse ser realizado, em especial à minha família. À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Marta Rodrigues Maffeis Moreira, cuja dedicação foi fundamental para o desenvolvimento do tema. Aos docentes e funcionários da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. RESUMO O presente estudo analisa a responsabilidade civil do médico cirurgião estético, buscando, para tanto, assinalar quais são os elementos e objetos essenciais constantes de todo contrato médico e como carregam consigo especificidades aplicáveis aos contratos cujo escopo está no embelezamento do paciente. Outrossim, procura apontar qual a natureza jurídica da responsabilidade civil médica e o enquadramento normativo dado aos profissionais liberais numa relação de consumo, tal qual lançada no Código de Defesa de Consumidor, se objetiva ou subjetiva a responsabilização quando empreendem cirurgias estéticas. Por fim, objetiva identificar qual a obrigação médica assumida na formação do contrato sob a ótica da diferenciação entre obrigações de meio e de resultado, bem ainda, as possíveis consequências práticas e jurídicas dessa diferenciação, como inversão do ônus probatório e presunção de culpa, utilizando-se, assim, de estudos doutrinários sobre o tema, sem perder de vista o tratamento conferido pela jurisprudência nacional ao tema. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Relação médico-paciente. Cirurgia estética. Obrigação de meio. Obrigação de resultado. Presunção de culpa. ABSTRACT This thesis aims to analyze the civil responsibility of the aesthetic surgery, seeking to do so, note what are the essential elements and objects contained in every physician contract and how carry with specifics applicable to contracts whose scope is the beautification of the patient. Furthermore, seeks to highlight the legal nature of the medical liability and the normative framework given to professionals in a consumption relationship, as it fixed in the Consumer Protection Code, whether objective or subjective accountability when execute cosmetic surgeries. Finally, aims to identify the obligation assumed in medical contract formation from the perspective of differentiation between obligations known as “duty of best efforts” and “duty to achieve a result”, and also the possible practical and legal consequences of this differentiation, such as inversion of the burden of proof and presumption of fault, using thus the doctrinal studies on theme, without losing sight of the treatment given to the subject by national jurisprudence. Keywords: Civil responsibility. Doctor-patient relationship. Aesthetic surgery. “Duty of best efforts” obligation. “Duty to achieve a result” obligation. Presumption of fault. Sumário INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................17 1. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONABILIDADE CIVIL MÉDICA ......................................23 1.1 CONCEITO ............................................................................................................................................. 23 1.2 A RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL .............................................................................................. 25 1.3 BREVE RELATO HISTÓRICO ................................................................................................................... 26 1.3.1 Breve histórico da responsabilidade médica ................................................................................... 29 1.3.2 Histórico e modelo brasileiros ........................................................................................................ 31 ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................................................ 33 1.4 1.4.1 Responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva ................................................. 34 1.4.2 Responsabilidade civil contratual e extracontratual ....................................................................... 37 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ....................................................................................... 39 1.5 1.5.1 Conduta humana.............................................................................................................................. 40 1.5.2 A culpa ............................................................................................................................................. 42 1.4.2.1. Erro médico e culpa médica ....................................................................................................................44 1.5.2.2 A prova da culpa médica e perícias .........................................................................................................48 1.5.2.3 A inversão do ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor .......................................................50 1.5.3 O dano ............................................................................................................................................. 51 1.5.3.1 Requisitos do dano reparável ..................................................................................................................52 1.5.3.2 Espécies de dano .....................................................................................................................................54 1.5.3.2.1 Dano material ou patrimonial .............................................................................................................54 1.5.3.2.2 Dano moral .........................................................................................................................................56 1.5.3.2.3 Dano estético ......................................................................................................................................58 1.5.3.3 1.5.4 Nexo de causalidade ........................................................................................................................ 61 1.5.4.1 2. Os danos material, moral e estético nas cirurgias médicas ......................................................................59 Excludentes do nexo de causalidade .......................................................................................................64 1.5.4.1.1 Culpa exclusiva da vítima...................................................................................................................64 1.5.4.1.2 Culpa concorrente da vítima ...............................................................................................................65 1.5.4.1.3 Culpa comum .....................................................................................................................................65 1.5.4.1.4 Culpa de terceiro ou fato de terceiro ...................................................................................................66 1.5.4.1.5 Caso fortuito e força maior .................................................................................................................66 A ATIVIDADE PROFISSIONAL MÉDICA E A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE .......................69 2.1 OBJETO DO CONTRATO E SUAS PARTES ................................................................................................. 69 2.2 NATUREZA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA ................................................................ 70 2.2.1 Tutela jurídica diferenciada do contrato médico ............................................................................ 72 2.3 NATUREZA DO CONTRATO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE ................................................................. 75 2.4 DEVERES DO PROFISSIONAL NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E CONDUTAS INAPROPRIADAS ................ 76 2.4.1 Dever de conselho ............................................................................................................................ 77 2.4.2 Dever de cuidado ............................................................................................................................. 78 2.4.3 Obtenção de consentimento ............................................................................................................. 79 2.4.4 Abstenção de abuso ou desvio de poder .......................................................................................... 82 2.4.5 Dever de sigilo ................................................................................................................................. 83 2.4.6 Condutas inapropriadas .................................................................................................................. 85 2.5 DEVERES E DIREITOS DO PACIENTE ....................................................................................................... 86 2.6 OBRIGAÇÃO DE MEIO E RESULTADO ...................................................................................................... 89 2.6.1 INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO ....................................................................................................... 100 2.6.2 INEXECUÇÃO CONTRATUAL ................................................................................................................ 103 2.6.3 3. Responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida e responsabilidade objetiva .................... 105 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ....................................................................................................... 109 3.1 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (TJSP) ................................................................. 109 3.2 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (TJRJ) .......................................................... 112 3.3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (TJMG) .......................................................... 114 3.4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (TJRS) ................................................. 117 3.5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ) .............................................................................................. 120 CONCLUSÕES ........................................................................................................................................... 125 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 129 17 INTRODUÇÃO O homem está em constante busca da plenitude do bem-estar físico e psíquico. Entretanto, apesar de a preservação da vida e a integridade física serem bens tão caros nessa empreitada, muitas vezes são acometidos por maus inerentes à própria existência humana, como as enfermidades. Nesse contexto, surgem as figuras da Ciência Médica e dos seus aplicadores, dentre eles os médicos, que atuam pela manutenção da saúde, seja individualmente ou coletivamente considerada, tornando-se, pois, elemento central da própria sobrevivência da espécie em expectativa. Nesse contexto, o Brasil abriga uma proliferação exagerada de Faculdades de Medicina: há aproximadamente vinte anos o país contava com 83 cursos médicos, ao passo que em dezembro de 2012 já contava com 197. Trata-se de um crescimento elevado em período de tempo relativamente escasso. Em comparação absoluta, são números maiores que os dos Estados Unidos da América, país com 131 cursos, e até mesmo que os da China – cujo contingente populacional supera a casa do bilhão –, que conta com 150. O Brasil só perde para a Índia, cujas Escolas Médicas somam 272.1 Nada obstante, a criação dos novos cursos não foi feita de maneira equânime pelo território nacional, respresentando a perda da possibilidade de melhora assistencial em áreas ainda necessitadas, já que, segundo dados, a região Sudeste concentra 45% das Escolas Médicas.2 Em números de médicos, as regiões Sul e Sudeste concentram 70% deles.3 Não bastassem os números apresentados, em alguns casos, o prazo de formação do curso é tão exíguo que faltam profissionais capacitados para o ensino, bem ainda laboratórios e materiais necessários para a adequada formação dos profissionais. Somente em 2011, o 1 TREZE mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/12/treze-mil-medicos-sao-diplomados-ao-ano-mas-faltamprofissionais.html>. Acesso em: 30 jul. 2013. 2 NÚMERO de cursos de Medicina no Brasil cresce 82% em duas décadas. Disponível em: <http://www.institutosalus.com/noticias/medicina/numero-de-cursos-de-medicina-no-brasil-cresce-82-em-duasdecadas>. Acesso em: 30 jul. 2013. 3 TREZE mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais, op. cit. 18 Ministério da Educação (MEC) suspendeu 514 vagas oferecidas dentre dezesseis cursos de bacharelado em Medicina, todas instituições privadas.4 No ano de 1991 foi criada a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM) – integrada por inúmeras entidades representativas em nível nacional, como o Conselho Federal de Medicina – no intuito de coordenar e padronizar ações para a aferição do perfil das escolas médicas brasileiras e a qualidade dos profissionais formados a cada ano. Os resultados das avaliações, após a realização das três fases do projeto, concluíram pela ausência de recursos suficientes para educação e pesquisas nas faculdades, com predomínio de escolas com objetivos notadamente comerciais, além de comumente contarem com infra-estruturas sucateadas e inadequadas e com a falta de preparação específica dos docentes. Em relação à estrutura pedagógica, mencionaram a carga horária insuficiente para ensino, pesquisa e extensão e predileção teórica em oposição às necessidades práticas dos profissionais da saúde.5 A todo esse cenário de proliferação de Faculdades de Medicina de modo desmedido, comprovadamente pela precariedade do ensino em inúmeras instituições, somam-se as más condições de trabalho de que dispõem os profissionais da área da saúde, com hospitais públicos a cada dia dispondo de menos recursos e materiais adequados, tornando-se, pois, necessária ao sistema de saúde no país a atuação da iniciativa privada, a qual, como se sabe, além de difícil acesso, nem sempre corresponde à qualidade esperada. Ainda, o Poder Público credencia escolas médicas sem critérios técnicos adequados, não fiscaliza empresas conveniadas e inflaciona o mercado com aproximadamente doze mil médicos por ano sem preparo adequado e com o recebimento de baixos salários.6 Diante desse contexto, pode-se perceber toda uma situação que favorece o erro médico, aumentando sensivelmente os danos e as vítimas dos procedimentos realizados por esses profissionais. Não se olvide que ultimamente tem-se observado um número cada vez maior de demandas judiciais que visam apurar a responsabilidade civil do médico. Trata-se de tema 4 NÚMERO de cursos de Medicina no Brasil cresce 82% em duas décadas, op. cit. GOMES, Júlio César Meirelles; DRUMON, José Geraldo De Freitas; FRANÇA, Genival Veloso de. Erro médico. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p.83-84. 6 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.218. 5 19 debatido por juristas, médicos e membros da sociedade na busca por, de um lado, amparar o paciente, tutelando seu bem jurídico da saúde e, de outro, o médico, de modo a não desestimular o exercício da profissão. A discussão não é nova e já era tratada desde o direito romano, entretanto, o avanço das ciências tem se acelerado de tal forma que o ordenamento jurídico precisa dar respostas à situações nunca antes vistas, podendo-se afirmar, assim, existir interdisciplinariedade entre as Ciências Médicas e as Jurídicas, sempre pautada na busca por respostas adequadas aos conflitos existentes. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka lembra que o direito necessita trocar experiências e se contextualizar com os demais saberes para corrigir meios e modos de alcançar com êxito a própria função que exerce, qual seja construir uma sociedade livre, justa e solidária, preceitos constantes da Consituição Federal. Trata-se do objetivo inerente à humanidade em si: vida digna e paz social.7 É preciso lembrar, assim, que há muito o Direito não vê as condutas dos operadores da Medicina como inquestionáveis, ideia ultrapassada que entendia todo e qualquer ato médico acima de falhas e de maus resultados, mesmo que efetivamente tivesse desrespeitado preceito fundamental da profissão. Atualmente, outrossim, há demanda por médicos para a realização de procedimentos que não estão ligados intrinsecamente ao aumento da expectativa de vida ou ao combate de doenças, pelo menos não físicas, mas para que os pacientes obtenham um embelezamento, melhorando aspecto que considerava desagradável ou indesejável: são as cirurgias estéticas. A cirurgia estética, surgida como especialidade médica no período da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), era procurada pelos feridos da guerra que queriam corrigir e recuperar funcionalidades do seu corpo e, ao mesmo tempo, representaria melhora na aparência, esta que fora atingida em decorrência de ferimentos ocasionados pelas batalhas. A partir disso, seu 7 Cirugia plástica e responsabilidade civil do médico: para uma análise jurídica da culpa do cirurgião plástico. In: Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: divisão jurídica, Bauru, n. 39, jan. a abr. 2004. Quadrimestral, p.504. 20 crescimento foi cada vez maior por aqueles que, saudáveis de corpo, procuravam-na com fins de embelezamento.8 Para Teresa Ancona Lopez, a aparência externa é uma das dimensões da personalidade e, na medida em que significa a maneira como cada um vê a si mesmo, principalmente em relação à sociedade, é um dos elementos que a torna exclusiva, excepcional e distinta, fazendo com que exista, em alguma medida, para si e para os demais.9 Tendo conhecimento dessa dimensão humana, nunca houve publicidade tão massiva da mídia sobre os padrões de formato do rosto e do corpo a serem seguidos, acarretando a constante busca pela beleza pessoal, seja por meio de produtos comercializados, de academias de ginástica ou até mesmo da submissão a procedimentos cirúrgicos. Assim, as cirurgias plásticas estéticas tornaram-se tema de grande relevância para as áreas médicas e da saúde, necessitando, pois, trazer à tona o tratamento jurídico que deve ser dado às situações dessa natureza. Frise-se, outrossim, que as cirurgias plásticas vão muito além de mera decisão sobre intervir no paciente ou não pelo simples melhoramento estético, mas envolve problemas inerentes à técnica médica, à avaliação da situação física e psicológica do paciente, bem ainda, a seu diagnóstico e prognóstico, principalmente diante das peculiaridades de constituição fisiológica, além dos riscos e benefícios da operação. Dessa maneira, assume peculiar importância a investigação sobre como se dá a responsabilização civil dos médicos que assumem obrigações de natureza estética, ou seja, de realizar procedimentos muitas vezes considerados invasivos em corpos rigorosamente saudáveis pelo único objetivo de atingir o embelezamento e não o fazem ou, ainda, pior, causam uma lesão estética não antes existente e sequer esperada, danos patrimoniais e até mesmo morais aos pacientes. Tendo-se em vista o contexto apresentado, o presente trabalho buscará traçar as principais discussões referentes ao tema da responsabiliddade civil em cirurgias estéticas, abordando, como marco inicial, a responsabilidade civil como um todo. De forma gradativa, 8 GOMES, Alexandre Gir. Responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista Dos Tribunais, Vol. V, 2010, p.742. 9 O dano estético: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.15. 21 será analisado como se dá a responsabilidade civil dos médicos e suas pecualiaridades e, concomitantemente, a responsabilidade dos profissionais nas cirurgias estéticas Ao longo de todo o trabalho tentar-se-á reunir os principais doutrinadores que tratam do assunto, entretanto, para uma melhor abordagem, também serão utilizados alguns julgados pátrios para analisar como os tribunais têm tratado a questão, prezando-se, assim, por um enfoque não apenas doutrinário, mas prático e jurisprudencial atual, conforme poderá se observar em capítulo específico destinado a esse estudo. 22 23 1. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONABILIDADE CIVIL MÉDICA 1.1 Conceito Conceituar a responsabilidade não é tarefa fácil, pois, como lembra José de Aguiar Dias, “toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilidade”. A afirmação remete à amplitude de aspectos que o termo pode assumir, dependendo da teoria filosóficojurídica adotada.10 Originariamente, a palavra “responsabilidade” tem a raiz no vocábulo latino spondeo, resposta que deveria ser dada, no Direito Romano, para o aperfeiçoamento dos contratos verbais (stipulatio) por aquele que se responsabilizava pela obrigação.11 Assim, ainda que de maneira incipiente, já é possível ligar a ideia de responsabilidade ao surgimento de uma obrigação. Conclui José de Aguiar Dias, então: “A responsabilidade é, portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face desse dever ou obrigação”.12 Rui Stoco, por seu turno, deixa clara a diferenciação entre obrigação e resultado: aquela é o dever jurídico originário, ao passo que essa é o dever jurídico sucessivo, que decorre da violação de uma obrigação, pois não se pode lesar outrem sem que insurja, no campo civil, o dever de reparar.13 Nesse ponto, é necessário lembrar que o ordenamento jurídico se pauta pela máxima do neminem laedere e do alterum non laedere, ou seja, de não lesar ninguém e não lesar outrem, respectivamente, limites impostos à liberdade individual e que dão a noção de responsabilidade.14 10 Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.3. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Vol. V, 1995, p.159. 12 Op. cit., p.5. 13 Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.114-115. 14 Ibid., p.114. 11 24 Desse modo, duas possibilidades emergem: agir conforme estipula a obrigação, caso em que não haverá decorrências no sentido de reparação da obrigação descumprida, já que houve seu adimplemento; ou não agir conforme estipula a obrigação ou a norma, situação em que existirão decorrências do descumprimento. Assim, considerando os integrantes da sociedade em convivência harmônica, o ordenamento jurídico deve repudiar toda e qualquer violação do neminem laedere pelos indivíduos, razão pela qual, se isso ocorrer, haverá consequências ao infrator, passando a ser chamado, então, de “responsável”.15 Nesse aspecto, outrossim, frise-se que nem sempre o responsável é o infrator, o que ocorre basicamente em três situações trazidas pelo Código Civil16: responsabilidade por fato de terceiros, pela guarda da coisa inanimada e pela causada pelos animais.17 A responsabilidade por fato de terceiros se origina, segundo Silvio Rodrigues, na ideia de risco, pois se pais são os responsáveis por darem causa ao nascimento de seus filhos e se o patrão se vale dos serviços do empregado, devem ser responsabilizados pelas suas condutas perante terceiros.18 As hipóteses estão previstas no artigo 932, do Código Civil.19 Já a responsabilidade pela guarda da coisa inanimada se refere à responsabilidade pelos danos causados pela própria coisa, por vício próprio e sem interferência humana ou por ato irrefletido humano.20 Está normatizada nos artigos 937 e 938, do Código Civil21. Por fim, a responsabilidade pelo fato do animal é aquela gerada por um dano causado pelo animal, sendo que seu dono ou detentor deverá responder, segundo Rui Stoco, 15 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, Vol. III, 2008, p.2. 16 BRASIL. Lei n. 10.406, 10.01.2002. 2002. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 14 de abr. de 2013. 17 MAZEAUD, Henri et al. Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. 6. ed. Paris: Montchrestien, T. III, Vol. 2, 1983., p.23. 18 Direito civil: responsabilidade civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, Vol. 4, p.63. 19 São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia. 20 LOPES, op. cit., p.318. 21 Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta. Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido. 25 objetivamente, podendo apenas se eximir se provar caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.22 Está disposto no artigo 936, do Código Civil.23 É claro que a noção de responsabilidade não é tema exclusivamente jurídico, ligandose também a outros campos que envolvem relações entre o ser humano e ele mesmo ou entre o ser humano enquanto coletividade. Trata-se do campo da moral, religião, dentre outros, que trazem na ideia de um indivíduo responsável, por exemplo, aquele zeloso e cuidadoso nas suas atitudes e no desenvolvimento de suas atividades e que arca com as consequências caso aja de maneira diversa de um dever imposto.24 Entretanto, referindo-se à responsabilidade civil em seu sentido técnico e jurídico, não há como dissociá-la do cometimento de uma ação danosa causada por um agente, em desacordo com norma jurídica pré-existente e que, em virtude disso, deve sujeitar-se ao dever de reparação insurgente pela sua ação ou omissão. Obrigar o agente causador de um dano a repará-lo, segundo Sergio Cavalieri Filho, vai de encontro ao sentimento de justiça contido no âmago de cada um.25 Dessa maneira, trata-se da violação de um direito particular, em que ocorre a quebra do equilíbrio jurídico e econômico que antes existia entre agente e vítima. Deve, pois, haver reestabelecimento desse equilíbrio, em que o agente deve, preferencialmente, restituir ao lesado a situação que se encontrava anteriormente (status quo ante), ou, na impossibilidade, realizar o pagamento de uma prestação pecuniária proporcional ao dano sofrido.26 1.2 A responsabilidade do profissional 22 Op. cit., p.985. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior. 24 NADER, Paulo. Curso de responsabilidade civil: responsabilidade civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, Vol. 7, 2010, p.6 25 Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.13. 26 Ibid., p.13. 23 26 A medicina, em virtude de sua alta especialiazação, importância e até mesmo risco que pode representar para a sociedade, depende que o profissional esteja apto ao seu exercício. Para tanto, necessita cumprir requisitos legalmente estipulados tais como a diplomação em curso universitário reconhecido pelos órgãos estatais de controle e a inscrição no órgão profissional, qual seja o Conselho Regional de Medicina. Entretanto, mesmo existindo tamanho controle sobre o exercício da profissão, não se afasta do profissional a possibilidade de responder civilmente (ou mesmo penalmente e administrativamente) por danos que causar a outrem em virtude do não cumprimento de regras profissionais que deveriam ser observadas.27 Assim, nos últimos anos, latente o aumento do número de demandas propostas no judiciário a fim de verificar a ocorrência ou não de uma má conduta médica. Isso se dá em razão de múltiplos fatores, tais como excesso de universidades destinadas à formação acadêmica médica, situação que compromete a fiscalização governamental sobre tais escolas, muitas vezes mal preparadas para desempenharem sua função; o acesso à Justiça, direito entabulado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal 28/29, cujos avanços têm sido notórios, marcadamente pela implementação da Defensoria Pública; e, por fim, o maior conhecimento que os cidadãos têm de seus direitos, mormente em razão da atuação da mídia, atingidora da grande massa populacional. Seja em razão de um fator ou de outro, o certo é que a atuação do profissional médico deve ser questionada sempre que gerar um dano ao seu paciente, perscutrando-se se agiu em conformidade com técnica recomendada ou não e se cumpriu seus deveres. 1.3 Breve relato histórico 27 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.368. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05.10.1988. 1988. Constituição Federal. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1612-1830.htm>. Acesso em: 17 de abr. de 2013. 29 A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 28 27 A responsabilidade civil, historicamente, pode ser remontada aos povos preromânicos, que mantinham como concepção de justiça a vingança privada, pois não existiam critérios a serem observados, de modo que dependia das forças da vítima sofredora de uma lesão ou das pessoas a ela realacionadas.30 Essa primeira ideia é muito ligada à primeira forma da justiça privada, qual seja a vingança pessoal. Entretanto, a partir da Pena de Talião, posteriormente adotada em linhas na Lei das XII Tábuas, quebrou-se a lógica trazida anteriormente de ausência de parâmetros para ressarcimento dos danos e, apesar de ainda integrar a sistemática da justiça privada, estabeleceu-se a igualdade ou o mais próximo que disso se pudesse chegar entre o mal causado à vítima e os efeitos gerados ao seu causador.31 Ainda não se utilizava o termo dano, mas iniuria, traduzida, em acepção ampla, como o ato praticado sem que se tenha o direito e, em acepção estrita, como a modalidade particular de um delito, ocorrido a partir da ofensa à integridade física ou moral de alguém. Nesse sentido, a Lei das XII Tábuas carregava consigo penas de composição legal, estipulando penas de pagamento que variavam entre os valores de 24 a 300 asses, dependendo do caso, e a Pena de Talião, em que a vítima poderia causar ao ofensor a mesma lesão que havia sofrido.32 Não se pode deixar de considerar tais hipóteses como parâmetros reparatórios. O instituto foi aprimorado e sofreu uma série de mudanças, passando a prever a possibilidade de composição entre a vítima e o agente do dano a partir de uma maneira mais racional e humana, pois poderia haver o pagamento em dinheiro para encerrar a disputa.33 Deveria haver, entretanto, concordância da vítima para a composição voluntária.34 A partir desse período, com a composição, o lesado passou a perceber que de nada adiantaria ter retaliado o direito do lesionador, pois apenas duplicaria o efeito danoso, ou seja, não bastasse a existência de um prejudicado, com a retaliação seriam dois. Ao longo dos anos, assim, a vítima percebeu ser mais interessante entrar em composição com o autor do dano, 30 NADER, op. cit., p.47. Ibid., p.47. 32 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.587. 33 NADER, op. cit., p.48-49. 34 ALVES, op. cit., p.587. 31 28 que recomporia o dano por intermédio da prestação da poena, com uma função de resgate da culpa para o ofensor ganhar o direito de perdão do ofendido.35 Tal forma de composição, dita voluntária – uma vez que o ofensor e a vítima estipulavam livremente como se daria a reparação – passou para uma fase de composição tarifada, em que ambas as partes não mais se compunham de acordo com seus próprios critérios, mas sim pelos estabelecidos em lei, de forma fixa, tarifada para cada tipo de situação.36 Não há como negar o verdadeiro embrião37 que representou a Pena de Talião e suas evoluções para a responsabilidade civil, entretanto, o surgimento da Lex Aquilia pode ser apontado como um dos maiores avanços no tema, na medida em que estabeleceu a proporcionalidade da pena cominada em relação ao dano causado 38. Tamanha foi sua importância que, até os dias de hoje, a responsabilide civil extracontratual também pode ser denominada de aquiliana. A Lex Aquilia era dividida em três livros, constituindo o mais importante para verificação da origim da responsabilidade civil o terceiro deles, porque nele continha o denominado damnum injuria datum, responsabilidade gerada a partir de um dano causado em coisa alheia a partir de delito autônomo. Segundo José Carlos Moreira Alves, para a constatação da damnum injuria datum eram necessários três requisitos: a) a injuria (conduta em desacordo com preceitos legais; b) a culpa (em entendimento amplo), traduzindo-se no que se pode denominar de culpa em sentido estrito (negligência e imprudência); c) o damnum, ou seja, o dano gerado pela conduta.39 Após o período romano, outros momentos históricos desde a Escola de Direito Natural, passando pelo Código de Napoleão e pelo Código Civil Alemão, contribuíram para o tema da responsabilidade civil. Entretanto, como se pôde ver, a Lex Aquilia é um dos diplomas de maior relevância para o estudo da responsabilidade civil, pois trouxe os moldes do instituto na atualidade. 35 DIAS, op. cit., p.26. NADER, op. cit., p.48-49. 37 Ibid., p.49. 38 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.11. 39 Op. cit., p.589-590. 36 29 1.3.1 Breve histórico da responsabilidade médica O histórico da responsabilidade civil médica em muito se confunde com o próprio surgimento da responsabilidade civil, pois, desde os primórdios, doenças e problemas ligados à saúde acompanham o ser humano e, inicialmente, apesar de não existir ciência médica, existiam estudos baseados na prática, que conferiam a certas pessoas a atividade e não delas afastava possíveis sanções em caso de maus resultados do tratamento, pois não existia ainda a ideia de responsabilidade, mas de vingança imediata pelo mau causado, sem qualquer limitação. Foi somente com o desenvolvimento das ciências médicas e diante da importância crescente da atividade ao longo dos anos que se passou para uma fase de elaboração de normas capazes de enfrentar questões relativas às condutas profissionais dos médicos.40 O Código de Hamurabi delineou melhor a noção de responsabilidade médica, pois determinou a compensação dos médicos nas atividades empreendidas, ao passo que, para os profissionais, estipulou o dever de tomar o máximo cuidado no exercício da atividade para que não incorressem em penas que, dependendo do caso, eram severas a ponto de determinar a amputação de seus membros.41 Por seu turno, a Lei das XII Tábuas, com traços nitidamente baseados no Código de Hamurabi, previa em seus artigos 219 a 226 que se em decorrência da intervenção cirúrgica o paciente livre sucumbisse ou perdesse a visão, por exemplo, haveria a amputação da mão do cirurgião; se escravo, deveria o médico pagar seu preço. Segundo o Talmude, livro que reúne discussões históricas sobre lei e valores do judaísmo, apesar de num primeiro momento seu povo viver sob a Pena de Talião, inclusive com pena de morte e de prisão perpétua sem trabalhos forçados para os profissionais que causassem o óbito de seus pacientes, houve a substituição dessas medidas pelas de multa, prisão e imposição de castigos físicos.42 40 CROCE, Delton; CROCE JÚNIOR, Delton. Erro médico e o direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.6. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.38. 42 CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.6-7. 41 30 Já em Roma, destaca-se a Lei Cornélia, que passou a prever vários delitos que poderiam ser praticados na atuação do profissional da medicina e as consequências deles decorrentes.43 A Lex Aquilia, por seu turno, instituiu a responsabilidade do médico que desse causa à morte do escravo e substituiu a pena de morte pelo exílio ou deportação ao profissional que tivesse agido com negligência ou imperícia. Mesmo assim, a tolerância com os resultados das intervenções médicas eram altas, provavelmente pela própria dificuldade da época na criação de tipos legais.44 Assim, é possível perceber que já se tratava da possibilidade de imperícia por parte do médico e sua responsabilidade perante o paciente lesado. Na Grécia, iniciaram-se estudos mais profundos da medicina, simbolizados pelo Corpus Hippocraticum, que, além de trazer elementos empíricos, traziam outros de natureza racional e científica. A partir de então, lançou-se mão do entendimento de que não há presunção da culpa do médico pelo simples fato de não ter alcançado resultado no tratamento, mas ela deveria ser analisada e comprovada no caso concreto.45 No século XIII, a partir do surgimento das universidades, os médicos passaram a receber após sua formação um documento representativo de um reconhecimento público da preparação do profissional para o exercício da atividade. Com a prevalescência cada vez maior desse caráter científico da medicina, surgiu a possibilidade de uma análise mais objetiva da possibilidade de o profissional ter incorrido em erro ou imperícia.46 Na França do início do século XIX afastou-se quase por completo a responsabilidade civil do profissional médico, salvo casos em excepcionais de falta grave e inescusável. Entretanto a partir do emblemático caso acontecido em Dromfront – em 1825, relativo ao Dr. Hélie, que amputou os dois braços de um nascituro, filho da Sra. Foucault, com dificuldades para o nascimento e que acabou por sobreviver – operou-se uma verdadeira revolução na jurisprudência francesa liderada pelo Procurador Dupin, culminando com a condenação do médico pela falta grave cometida no exercício da profissão, mesmo após a Academia 43 KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.40. CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.8. 45 KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.42. 46 Ibid., p.43. 44 31 Nacional de Medicina da França ter se posicionado contrária à condenação. Desde então, passou-se a admitir a reparação da vítima acometida de imprudência médica.47 1.3.2 Histórico e modelo brasileiros Num primeiro momento, era aplicável ao tema da responsabilidade civil, por força das Ordenações do Reino, o próprio direito romano, pois subsidiário do direito pátrio para casos omissos, conforme previa a Lei da Boa Razão.48 A primeira legislação pátria sobre o tema de responsabilide civil surgiu em 1830, a partir da edição do Código Criminal49, em conformidade com os ditames da Constituição, o qual, a par de trazer matéria criminal, dedicou parte de sua atividade para trazer os moldes da “satisfação” do dano causado pelo autor do delito.50 O fato da incipiência do tema no Brasil não foi motivo para a ausência de robustês do diploma, o qual se revelou como uma verdadeira base presente até hoje na responsabilidade civil. O Código criminal de 1830 (...) transformou-se em um código civil e criminal fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade, prevendo a reparação natural quando possível, ou a indenização; a integridade da reparação, até onde possível; a previsão de juros reparatórios; a solidariedade, a transmissibilidade do dever de reparar e do crédito de indenização aos herdeiros etc.51 Alguns artigos merecem destaque, tamanha sua atualidade: “Art. 21. O delinquente satisfará o damno, que causar com o delicto” E também: 47 KFOURI NETO. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.45. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p.11. 49 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830, 16.12.1830. 1830. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 17 de abr. de 2013. 50 PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.11. 51 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, Vol. 4, 2008, p.9. 48 32 Art. 22. A satisfação será sempre a mais completa, que fôr possivel, sendo no caso de duvida á favor do offendido. Para este fim o mal, que resultar á pessoa, e bens do offendido, será avaliado em todas as suas partes, e consequencias. Apesar de se tratar de um dos artigos mais relevantes do Código no tocante à satisfação do dano, todo o capítulo IV revelou-se de suma importância para o tema, pois, segundo José de Aguiar Dias, estabeleceu a reparação natural – se possível fosse –, garantias da reparação, favorecimento do ofendido na solução de eventual dúvida, necessidade da reparação integral – pelo menos até onde fosse possível –, preferência pela reparação em detrimento do pagamento de multas e até a transmissibilidade aos herdeiros do dever de reparar, dentre outras inúmeras inovações.52 Interessa ainda notar que essa primeira fase de surgimento do “dever de reparar”, matéria tratada no âmbito cível, estava ligada ao Direito Penal porque surgia apenas posteriormente à condenação penal ou, sem sua existência, em situações excepcionais53, o que só foi se alterar num momento futuro. A primeira defesa de que a responsabilidade civil deveria se separar da responsabilidade criminal só veio com os ideias de, primeiramente, Teixeira de Freitas e, num segundo momento, Carlos de Carvalho, oportunidades em que, com a edição de nova legislação, a referida satisfação não mais seria ligada ao aspecto criminal, mas seria tratada pela legislação civil, surgindo, outrossim, diversos institutos pecualiares à responsabilidade civil.54 A normatização posterior surgiu apenas em 1916, com a edição do Código Civil55, que adotou a teoria subjetiva para aferição da responsabilidade civil, a mesma utilizada até hoje e que exige além do dano e nexo de causalidade entre este e conduta praticada pelo seu autor, a 52 Op. cit., p.33. Art. 31. A satisfação não terá lugar antes da condemnação do delinquente por sentença em juizo criminal, passada em julgado. Exceptua-se: (...) 3º O caso, em que o offendido preferir o usar da acção civil contra o delinquente. 54 PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.11. 55 BRASIL. Lei nº 3.071, 1º.01.1916. 1916. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 18 de abr. de 2013. 53 33 comprovação de que este agiu com culpa e dolo, elementos que serão melhor vistos oportunamente.56 Outros marcos normativos foram o projeto de Código das Obrigações, formulado por Caio Mário da Silva Pereira, que, apesar de não ter sido aprovado, contribuiu para o tema de responsabilidade civil quando da alteração do Código Civil de 1916, em 1975.57 Não se olvide, entretanto, da edição do Código Penal de 1890, que pouco acrescentou à redação anterior, e o de 1940, que preservou a relação existente entre a sentença condenatória para fins de indenização e trouxe substancial avanço no campo processual, na medida em que a sentença criminal poderia ser diretamente executada na instância cível em desfavor do agressor.58 Ainda que a teoria subjetiva seja a mais comum e tradicional do direito brasileiro, é preciso lembrar que surgiram outras, mormente em razão do aumento significativo dos casos de danos, muitas vezes difíceis de serem caracterizados e, consequentemente, reparados, se houvesse embasamento apenas nos elementos da teoria subjetiva. Dessa maneira, diante da busca enveredada pelo ordenamento jurídico em traduzir em normas os anseios da sociedade, surgiu a teoria da responsabilidade objetiva, que se desprende do elemento culpa para fins de apuração da responsabilidade.59 1.4 Espécies de responsabilidade civil Não há dúvida de que a responsabilidade civil, surgida a partir da existência conflituosa da relação humana em virtude do descumprimento de uma norma por um agente que deveria observá-la, compreende um todo indivisível. Entretanto, para melhor 56 GONÇALVES, op. cit., p.9. DIAS, op. cit., p.35. 58 Ibid., p.35. 59 GONÇALVES, op. cit., p.9-10. 57 34 compreensão dos temas abordados adiante, faz-se necessária a análise de algumas classificações tradicionalmente criadas pela doutrina.60 1.4.1 Responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva A responsabilidade subjetiva, regra geral e tradicional do ordenamento jurídico pátrio, já adotada pelo Código Civil de 1916 e mantida pelo de 2002, é aquela que exige como requisito fundamental, além da caracterização do nexo causal entre a conduta comissiva ou omissiva causadora de um dano, a existência do aspecto subjetivo do agente, traduzida em dolo ou culpa, ambos denominados de culpa em sentido lato. Dolo nada mais é do que a vontande livre e consciente do agente em agir intencionalmente na produção do dano, ao passo que a culpa em sentido estrito é a atuação danosa em razão de negligência, imprudência ou imperícia pelo agente.61 Logo, de acordo com essa teoria clássica, a culpa é o principal pressuposto da responsabilidade civil, sem a qual não haverá o dever de indenizar por parte do agente lesionador. Interessante notar que, seja dolo ou culpa, sempre existirá a conduta voluntária, entretanto, na primeira modalidade a própria conduta em si já é ilícita, pois o agente pratica a ação intencionalmente para lesar outrem, ao passo que na segunda, a conduta é lícita sem intenção de causar dano, mas produz resultados ilícitos, por acidente marcado pela falta cuidados. Assim, ainda que o agente tenha agido sem a intenção de provocar o dano, poderá responder pelo resultado lesivo a que deu causa, bastando, para tanto, a comprovação da culpa.62 Por oportuno, importante destacar que não apenas necessariamente a culpa será atribuída exclusivamente ao denominado lesionador, pois a culpa pelo evento danoso pode ser atribuída também ao lesionado, ou, ainda, dependendo do caso concreto, tanto ao lesionado 60 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.13. CAVALIERI FILHO, op. cit., p.16. 62 Ibid., p.31. 61 35 como ao lesionador, caso em que deverá ser verificada a parcela de culpa concorrente de cada um para aferição do ônus da recomposição.63 Assim, feito o sopesamento do quanto cada um contribuiu para o evento, poderá ser definido, proporcionalmente, o dever individual de indenizar. Por outro lado, a teoria da responsabilidade objetiva, ou do risco, apresenta um contraponto à teoria alhures exposta, na medida em que não leva em consideração aspectos subjetivos (dolo e culpa) para o surgimento da responsabilidade, mas apenas busca a comprovação do nexo de causalidade entre o dano e a conduta praticada pelo agente.64 Divide-se em duas: teoria do risco e teoria do dano objetivo. A primeira é caracterizada pela existência de uma situação de perigo em função da atividade exercida para a concretização do dever de indenizar gerado pela responsabilidade civil, como no caso em que um funcionário, diante de situação de risco inerente à sua condição, deve ser indenizado pelo seu empregador por danos sofridos em decorrência da atividade, independentemente de culpa.65 É o que dispõe o artigo 927, parágrafo único, in fine, do Código Civil.66 A segunda, por sua vez, não está liga a uma ideia de dever objetivo de reparação em virtude de situação de perigo, mas simplesmente à verificação do dano e, assim, sua reparação, tornando-se, pois, desnecessária, a análise da culpa no caso concreto. É a que se verifica no Código de Defesa do Consumidor67, por exemplo, pelo qual, se houver frustração do consumidor por uma expectativa legítima em relação ao produto ou serviço oferecido pelo fornecedor, este tem o dever de indenizar, independentemente da análise do elemento subjetivo da culpa.68 (...) A teoria da responsabilidade objetiva filiou-se essencialmente à ideia do risco, de modo que, seguindo-se a linha de raciocínio proposta, aquele que provoca o dano fica automaticamente obrigado à recomposição, independentemente da averiguação concernente à culpa. Basta, por assim dizer, a ocorrência da lesão e a sua vinculação 63 MATIELO, Fabrício Zamprogna. Dano moral, dano material e reparação. 4. ed. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, p.31. 64 GONÇALVES, op. cit., p.31. 65 Ibid., p.10. 66 Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 67 BRASIL. Lei n. 8.070, 11.09.1990. 1990. Leis. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 03 de mai. de 2013. 68 GONÇALVES, op. cit., p.11. 36 ao fato de que se originou, seguindo-se a isso a responsabilização do autor da conduta lesiva, afastada a imputação subjetiva 69 O Direito atua incisivamente naquelas situações em que há desigualdade, promovendo o reequilíbrio das relações, isso porque busca permanentemente não só a igualdade formal mas também a material, isômica, com fulcro em uma visão aristotélica de tratar desigualmente os desiguais na medida da desigualdade, conforme o princípio da igualdade estampado no artigo 5º, da Constituição Federal. Não é diferente a responsabilidade objetiva, surgida exatamente com o propósito de proteger um lesado que não conseguiria produzir prova da conduta culposa do agente ou, ainda, em razão da própria atividade e seus riscos produzidos para terceiros. Não se pode esquecer, ainda, que o direito tutela bens jurídicos e, nesse sentido, a teoria busca resguardar o direito do lesado para não incorrer na possibilidade de garantir a impunidade do transgressor à regra em contraposição à ausência de reparação do dano sofrido pela vítima.70 Evidentemente, o instituto mencionado deve ser utilizado com muita cautela e somente para situações não apenas especiais e que demandam uma maior proteção jurídica, mas também com previsão legal para tanto, como dispoe o próprio artigo 927 do Código Civil, sob pena de estar-se incorrendo numa verdadeira inversão à regra geral, exigente do requisito da culpa ou dolo do agente. Francisco Amaral elenca alguns casos expressos pela lei em que ser dará a responsabilidade objetiva: artigos 933 (responsabilidade dos representantes legais pelos representados, empregadores pelos prepostos, hoteleiros pelos hóspedes), 937 (ruínas de edifícios) e 938 (queda ou lançamento de coisas – effusis et dejectis), todos do Código Civil, nos acidentes de trabalho, acidentes de estrada de ferro e transporte coletivo, navegação aérea, o dano ambiental, o dano nuclear, na prestação de serviços públicos e pelo fato do produto ou serviço.71 Rubens Limongi França lembra, por fim, as quatro principais orientação pautadas pela teoria objetiva, formando, assim, subteorias: a da prevenção, pautada na ideia de que o sujeito 69 MATIELO, op. cit., p.33. MATIELO, op. cit., p.33. 71 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.589. 70 37 está adstrito ao dever de indenizar até a existência de prova em sentido contrário; a da repartição do dano, desvinculada da origem do dano, mas prezando sempre pela reparação, seja pelo seguro ou pelo próprio Estado; a da equidade, ligada à condição econômica, mitigadora em certa medida, pois da prevenção e, por fim; a do risco, ainda de muitas variações, pretendendo ora responsabilizar o iniciador do risco, ora quem cria o risco e ora do desvio de condições normais.72 1.4.2 Responsabilidade civil contratual e extracontratual De acordo com essa classificação, os prejuízos causados por uma pessoa podem derivar de duas situações distintas. A primeira, chamada de responsabilidade civil contratual, deriva da pré-existência de uma relação contratual entre agente e vítima e, uma vez descumprida no seu todo ou em parte, gera o dever de indenizar. Vale lembrar que há situações que independem da formalização de um contrato, sendo que este se forma tacitamente, como é o caso do passageiro que adentra ao ônibus para ser transportado para determinado local; há a formação tácita de um contrato em que a prestadora de serviço se compromete pela qualidade, manutenção e segurança do transporte em contraprestação a um valor previamente estipulado. Se a viagem do passageiro for frustrada de alguma maneira, ficará caracterizado o inadimplemento contratual e a empresa deverá ser responsabilizada pelos prejuízos que causar ao usuário.73 Por outro lado, existe a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, situação em que a responsabilidade não surge em razão da pré-existência de um contrato entre o agente causador do dano e a vítima. A infringência, então, não é mais à cláusula ou acordo estabelecido entre as partes, mas sim à disposição legal, em especial ao cometimento de ato ilícito, previsto nos artigos 186 e 187, do Código Civil e o consequente dever de reparação, lançado no artigo 927, caput, do referido codex.74 72 Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1988, p.876-877. GONÇALVES, op. cit., p.31. 74 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.15. 73 38 O Código Civil não trouxe qualquer elemento diferenciador entre as duas modalidades apresentadas, apesar de existir a possibilidade de individualizá-las nos artigos 186 a 188 e 927 e seguintes para a responsabilidade extracontratual e 389 e seguintes e 395 e seguintes para a contratual.75 Mesmo assim, importante frisar que a divisão não é estanque, pois os elementos da responsabilidade civil, que é um todo unitário, sempre serão os mesmos nas duas hipóteses, buscando-se, assim, nessa e nas demais classificações apenas a melhor compreensão da matéria. Logo não há dúvida de que artigos como o 927, por exemplo, são deveres impostos não apenas às relações extracontratuais, mas também às contratuais. Em bem da verdade, há muitas críticas à essa subdivisão, respresentadas pela corrente da tese unitária ou monista, extremada no sentido de entender a responsabilidade contratual absorvida pela extracontratual, na medida em que, ao fim, não há como se negar que inexecução contratual nada mais significa que um delito; e, também, pela corrente eclética, que entende pela unidade fundamental entre as modalidades, a qual sustenta existirem apenas diferenciações de ordem técnica.76 Miguel Maria de Serpa Lopes acredita na total impossibilidade de se admitir uma divisão entre as duas modalidades, principalmente rebatendo o argumento de que a responsabilidade contratual fica caracterizada pela pré-existência de uma relação contratual, o que não ocorreria na extracontratual, pois nas duas há obrigações pré-existentes, sendo, então, a diferença, meramente técnica, aderindo, então, à corrente eclética.77 Teresa Ancona Lopez se posicionou: Na verdade, nos países como o nosso, onde a responsabilidade é fundamentada na culpa, para que haja indenização é preciso que haja dano, mas que esse dano tenha vindo de uma ação voluntária (dolo) ou de negligência, imprudência ou imperícia (culpa em sentido estrito) e que seja também provado o nexo de causalidade entre culpa e o dano. Ora, esses requisitos se aplicam tanto à responsabilidade contratual como à aquiliana. A principal diferença técnica entre esses dois tipos baseia-se na questão da presunção de culpa que haveria na responsabilidade contratual, 75 GONÇALVES, op. cit., p.27. LOPES, op. cit., p.181. 77 Ibid., p.183. 76 39 acarretando a reversão do ônus da prova e, portanto, deixando a vítima em posição mais cômoda para conseguir sua indenização.78 De qualquer modo, três diferenças básicas podem ser tecidas às duas modalidades: a primeira é quanto à existência de uma relação jurídica prévia entre o agente e a vítima, conforme já explanado. A segunda diferenciação diz respeito ao ônus da prova, conforme já lembrado acima. Tomando-se por base que na responsabilidade civil contratual a violação decorre de um dever positivo de adimplir e na extracontratual decorre de um dever negativo representado pela vedação em não lesar outrem, tem-se que, nesta, a culpa ou o dolo do agente deve ser demonstrado pela vítima, mas, por outro lado, naquela, a vítima deve demonstrar apenas o descumprimento contratual, invertendo-se, assim, o onus probandi, pois caberá ao agente provar, para não ser responsabilizado, caso fortuito ou força maior, ou, ainda, culpa exclusiva da vítima.79 Por último, a terceira distinção remete à capacidade civil do agente lesionador, a qual é restrita na responsabilidade civil contratual, na medida em que menores, em regra, não podem se vincular contratualmente e, se o fizer, a convenção é nula e, consequentemente, sem efeitos indenizatórios. Dessa maneira, a responsabilidade civil extracontratual seria muito mais ampla, pois o prejuízo causado por um incapaz pode levar a reparação pelo patrimônio daqueles que são legalmente encarregados da sua guarda.80 1.5 Pressupostos da responsabilidade civil Segundo Sergio Cavalieri Filho, ato ilícito é um comportamento voluntário que viola dever jurídico.81 Em sentido estrito, é o conjunto de pressupostos da responsabilidade, ou seja, da geração do dever de indenizar, necessitando, para sua caracterização, do elemento culpa, fundamental, outrossim, para a caracterização da responsabilidade subjetiva. Em sentido 78 Responsabilidade civil dos médicos. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1988, p.319. 79 GONÇALVES, op. cit., p.28. 80 Ibid., p.29. 81 Op. cit., p.12. 40 amplo, ato ilícito significa apenas a conduta contrária ao ordenamento jurídico, violador do Direito, fundamento básico para a responsabilidade civil objetiva.82 O Código Civil de 2002 assumiu uma postura dúplice, pois a responsabilidade subjetiva, com base na culpa e com fulcro no ato ilícito em sentido estrito, está inserida em seu artigo 927 (que remete aos artigos 186 e 187); ao passo que a responsabilidade objetiva, desprovida da análise do elemento culpa e com base no ato ilícito em sentido amplo, está disposta no parágrafo único do mesmo artigo e no artigo 187, que abarca um conceito mais amplo de ato ilícito, independenetemente da culpa, mas presentes violação à boa-fé, bons costumes e outros.83 Assim, não resta dúvida, por tudo já exposto, que responsabilidade civil nada mais é do que a decorrência de um ato danoso violador de um dever de adimplir (contratual) ou de a ninguém prejudicar (extracontratual), seja causado ou não por culpa do agente à vítima. É, pois, a resposta jurídica ao ato ilícito. Dessa maneira, o dever de reparar é exigido pelo artigo 927 do Código Civil, que remete ao cometimento de um ato ilícito em sentido estrito, segundo o artigo 18684, do mesmo código. Diante da simples leitura do artigo 186, do Código Civil, é possível verificar que, para a caracterização do ato ilícito e seu consequente dever de reparação, quatro requisitos são de suma importância e merecem atenção: a conduta (comissiva ou omissiva), a culpa do agente, o dano (prejuízo) e o nexo de causalidade. 1.5.1 Conduta humana Segundo Edmilson de Almeida Barro Júnior, conduta, em termos jurídicos, é todo e qualquer ato humano que se deixa transparecer no meio social, devendo necessariamente carregar consigo a voluntariedade e a livre consciência, é desprovida, portanto, de vícios ou coações. Pode ser comissiva ou omissiva. A primeira se refere à ação em situação que o 82 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.10. Ibid., p.11. 84 Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 83 41 agente deveria se abster, já a segunda, à omissão para casos que tinha o dever de praticar o ato.85 Não se olvide, outrossim, que, quanto à conduta omissiva, não constitui elemento apto a gerar responsabilidade civil para qualquer um, mas apenas para aqueles que tinham o dever inafastável de agir, como o policial, defensor da sociedade, ou o médico, que, sem risco pessoal, deve agir para afastar perigo de vida de outrem.86 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona filho enfatizam que o cerne “da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz.”87 Assim, tendo o agente agido sem liberdade e consciência de atuação, ausente estará a responsabilidade em qualquer de suas modalidades em razão da inexistência do pressuposto essencial.88 Caio Mário da Silva Pereira deixa claro que a voluntariedade não se confunde com a vontade livre e consciente de causar o dano, esta que é a definição do dolo. Já a voluntariedade da culpa se resume na própria ação diante da consciência em realizar determinado procedimento, lícito, mas que previsivelmente, nas suas consequências, viola direito alheio.89 Por fim, como já asseverado quando da definição de responsabilidade civil, importante destacar que o responsável pela reparação do dano, muitas vezes, não se confunde com aquele que praticou o ato ilícito, mas incumbe a tarceiros nas hipóteses de responsabilidade por fato de terceiros, pela guarda da coisa inanimada e pela causada pelos animais.90 Estão lançadas nos artigos 932 – para ato de terceiro –, 936 – pelo fato do animal – e 937 e 938 – pelo fato da coisa –, todos do Código Civil. 85 Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.57-58. Ibid., p.58. 87 Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.27. 88 BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.58. 89 Responsabilidade civil, op. cit., p.39 e 77. 90 MAZEAUD et al., Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle, op. cit., p. 23. 86 42 1.5.2 A culpa A culpa, como pressuposto essencial da responsabilidade subjetiva, segundo Edmilson de Almeida Barros Júnior, “é a conduta voluntária contrária ao dever de cuidado imposto pelo Direito, com a produção de um evento danoso involuntário, porém previsto ou previsível”.91 Tendo o Código Civil obrigado o agente causador de uma dano mediante ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência, a repará-lo, é necessária, para a caracterização da responsabilidade subjetiva, a verificação do elemento subjetivo, consubstanciada na culpa em sentido lato.92 Segundo Álvaro Villaça Azevedo, a culpa carrega consigo duas faces: a subjetiva, representada pela imputabilidade do agente, ou seja, deve ter discernimento para a prática da conduta; e a face objetiva é puramente a violação do bem jurídico tutelado.93 Culpa, em sentido lato, pode significar dolo ou culpa em sentido estrito. Dolo é a vontade livre e consciente do agente em produzir o resultado danoso, ele quer o dano e atua no intuito de criá-lo.94 João de Matos Antunes Varela ainda ressalta que para a caracterização do dolo, além da vontade do agente em produzir o resultado lesivo, é necessário outro requisito, qual seja a presença do elemento intelectual, representado pelo necessário conhecimento, pelo agente, das “circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma tuteladora de interesses alheios e a consciência da ilicitude do facto”.95 Por seu turno, culpa em sentido estrito ocorre se o agente, ao praticar determinada conduta, não buscava causar dano, entretanto, a ação foi marcada por imprudência, negligência ou imperícia.96 91 Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.72. RODRIGUES, op. cit., p.16. 93 Conceito de ato ilícito e o abuso de direito. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da (Coord.). Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p.64. 94 RODRIGUES, op. cit., p.16. 95 Das obrigações em geral. 10. ed. Coimbra: Almedina, Vol. I , 2008, p.572. 96 RODRIGUES, op. cit., p.16. 92 43 Segundo Rui Stoco, “a imprudência é a falta de cautela, o ato impulsivo, o agir açodado ou precipitado, através de uma conduta comissiva, ou seja, um fazer (facere), como quando a pessoa dirige seu veículo em excesso de velocidade”. Já a “negligência é o descaso, a falta de cuidado ou de atenção, a indolência, geralmente o non facere quos debeatur, quer dizer, a omissão quando do agente se exigia uma ação ou conduta positiva.97 A imperícia é a demonstração de inabilidade por parte do profissional no exercício de sua atividade de natureza técnica, a demonstração de incapacidade para o mister a que se propõe, como o médico que, por falta de conhecimento técnico, erra no diagnóstico ou retira um órgão do paciente desnecessariamente ou confunde veia com artéria. Pode-se identificar a imperícia através de ação ou de omissão.98 Ainda, em relação à culpa (sentido estrito), uma vez inexistente, inexistente o ato ilícito e, consequentemente, a responsabilidade. Não se olvide que o ato ilícito tem duplo efeito: infração a dever previamente existente e que o resultado pode ser imputado à consciência do agente, como já mencionado; dessa maneira, para que se configure, segundo Maria Helena Diniz, deve haver violação à norma jurídica protetora de direito alheio ou direito subjetivo individual.99 Como lembra João de Matos Antunes Varela, a noção de culpa está, outrossim, muito ligada a ideia de reprovabilidade da conduta do agente, se este poderia ou deveria ter agido de maneira diferente; se a resposta for afirmativa, reprovável será a conduta e caracterizada a culpa estará para fins de responsabilização.100 Várias são as classificações que podem ser tecidas em relação à culpa: quanto à gradação (culpa grave, leve ou levíssima), quanto ao modo de apreciação (in concreto ou in abstrato), em relação ao conteúdo (in committendo, in faciendo, in eligendo, in vigilando ou in custodiendo) – Rubens Limongi França ainda fala da in contrahendo, in obligando e in negligendo –101 e, por último e mais importante para o tema em voga, em decorrência do dever violado (culpa contratual ou culpa extracontratual).102 97 Op. cit., p.134. Ibid., p.134. 99 Curso de direito civil brasileito: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, Vol. 7, 2007, p.39-40. 100 Op. cit., p.566. 101 Op. cit., p.876. 102 DINIZ, op. cit., p.42-45. 98 44 Segundo Washington de Barros Monteiro, culpa extracontratual ou aquiliana é “a resultante da violação de dever fundado num princípio geral de direito, como o desrespeito à pessoa e aos bens alheios”, ao passo que culpa contratual “é a violação de determinado dever, inerente a um contrato”.103 O doutrinador ainda lembra que o artigo 186, do Código Civil, é fonte da responsabilidade civil tanto na sua modalidade contratual quanto extracontratual e, partindose dela, chega-se aos artigos 389104 e 927, ambos do referido codex.105 A discussão referente à impossibilidade de divisão das culpas (contratual e extracontratual) também se mostra presente nesse tópico, bem como ficou assentando quando se diferenciou responsabilidade civil contratual e extracontratual. A análise da polêmica, entretanto, tem pouca utilidade prática e, a rigor, parece existir apenas no terreno técnico, devendo apenas ser trazido o principal efeito dela: se extracontratual, vítima deverá provar a culpa do agente, se contratual, haverá, se entabular obrigação de resultado, culpa presumida do agente.106 Por fim, vale lembrar que, em se tratando de responsabilidade objetiva, prescide-se da verificação do elemento culpa, na medida em que a reparação do dano será necessária independentemente de sua constatação. Tais hipóteses deverão estar previstas em lei ou decorrer do risco da atidade desenvolvida, conforme artigo 927, parágrago único, do Código Civil, pois se trata da exceção; a regra é a responsabilidade subjetiva.107 1.4.2.1. Erro médico e culpa médica Segundo Genival Veloso de França, o erro médico, quase sempre cometido por culpa, é uma conduta profissional inadequada, supondo-se, desde então, inobservância de regra técnica capaz, assim, de gerar dano à vida ou saúde do paciente. É diferente do acidente 103 Curso de direito civil: 2ª parte. 35.ª ed. São Paulo: Saraiva, Vol. 5, 2007, p.504. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. 105 MONTEIRO, op. cit., p.504. 106 LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.180-187. 107 AMARAL, op. cit., p.588. 104 45 imprevisível e do resultado incontrolável. O primeiro se caracteriza pela existência de um resultado lesivo seja ao físico ou ao psicológico do paciente durante o ato médico ou sua decorrência e que supõe-se ser proveniente de caso fortuito ou força maior, por isso incapaz de ser evitado, não só pelo médico responsável, mas por qualquer outro que estivesse em seu lugar. Já o resultado incontrolável decorre de situação grave que não pode ser impedida pelas atuais condições da ciência para as quais a capacidade profissional ainda não ofereça solução.108 Justamente dessa ideia apresentada pelo resultado incontrolável é que advém a natureza obrigacional da atividade médica como de meio, pois se empenha ao máximo em utilizar a melhor técnica possível, mas não se compromete com o sucesso. Assim, não se pode afirmar que todo resultado adverso oriundo de tratamentos médicos seja um caso de erro médico; aliás nem todo erro médico é causado por uma conduta pessoal do profissional, mas pode ter sido provocado por problemas de ordem estrutural, os quais têm sido também apontados como atuais responsáveis em grande parcela pela insuficiência ou ineficácia de respostas satisfatórias de tratamentos.109 Em relação à culpa, elemento da responsabilidade civil, consubstanciada no erro médico também pode decorrer de negligência, imprudência ou imperícia, de acordo com o que dispõe o artigo 186, do Código Civil, conforme já mencionado. Mais especificamente quanto à culpa inserida na responsabilidade civil do médico, a negligência decorre de uma omissão em relação a algum procedimento no tratamento, o que pode comprometer a vida ou a saúde do paciente. A título de exemplo, a negligência pode ser ligada ao abandono, situação em que o profissional deixa de acompanhar o paciente, ou lhe trata com descaso e desinteresse. Ligada, outrossim, a tipos grosseiros de culpa pela falta de atenção na intervenção cirúrgica, como quando o profissional esquece material dentro do corpo do paciente ou extrai determinado órgão quando na verdade era para extrair outro. Fora do ato cirúrgico, a negligência se dá quando há dispensa de exame clínico necessário para uma melhor verificação do diagnóstico ou, ainda, quando o tratamento é prescrito de maneira errada, causando danos à vida ou saúde do paciente.110 108 Op. cit., p.217. Ibid., p.217-218. 110 NADER, op. cit., p.408-409. 109 46 Para Miguel Kfouri Neto, os casos de negligência são fartos na jurisprudência em razão de a distração fazer parte da própria natureza humana, podendo ir desde o erro médico, que desatentamente receita um remédio pelo outro, até o esquecimento de objetos cirúrgicos no corpo do paciente.111 Teresa Ancona Lopez lembra que a negligência pode ser consequência de conduta passiva do médico, omisso em precauções ou medidas necessárias que deveria tomar, inclusive quando faz exames superficiais necessários para se chegar ao correto prognóstico do paciente.112 Delton Croce e Delton Croce Júnior lembram que a negligência deve ser analisada sob a figura do homem médio, ou seja, como medianamente o profissional capacitado para o exercício do ato agiria, para então caracterizar a negligência.113 A imprudência, por outro lado, é associada à tomada de decisões sem a devida cautela, de maneira precipitada. É o agir quando, na verdade, deveria ter que se abster.114 Miguel Kfouri Neto vê como imprudente a conduta do profissional que tem atitudes não justificadas e às vezes até mesmo precipitadas, sem o uso devido da cautela. A título de exemplo, se vale do cirurgião que aplica por ele mesmo a anestesia, sem esperar pelo anestesista, e o paciente morre de parada cardíaca, ou, ainda, o caso do médico que realiza cirurgia com duração normal de uma hora em apenas trinta minutos, causando danos sérios ao paciente.115 Para o doutrinador, a imprudência deriva da imperícia, de modo que o médico, ainda que consciente da sua insuficiente preparação ou capacidade profissional necessária, não se abstém de agir.116 Teresa Ancona Lopez lembra que a imprudência, basicamente, se refere a uma conduta comissiva, é o agir sem cuidados, é o receitar medicamentos injustificadamente ou precipadamente.117 111 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.86. Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.321. 113 Op. cit., p.23. 114 NADER, op. cit., p.409. 115 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.87. 116 KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.88. 112 47 Já se o profissional deixa de aplicar conhecimentos técnicos e científicos recomendados para determinada situação, o que muito ocorre quando assume uma obrigação de resultado, como nas cirurgias estéticas, fica caracterizada a imperícia.118 Para Delton Croce e Delton Croce Júnior, trata-se de flagrante ausência de conhecimento que o profissional deveria ter para exercer a profissão ou arte.119 Para aferir a imperícia, segundo Miguel Kfouri Neto, basta verificar, dentre aqueles que tenham diploma, a ausência de habilidade normalmente requerida para o exercício da profissão, que pode provir da carência de conhecimentos necessários, da inexperiência ou da inabilidade. Nesse sentido, a imperícia deve ser analisada objetivamente, não importando a postura psíquica do agente quanto a sua própria capacidade. Assim, para sua caracterização, bastará a confrontação entre a perícia média – normalmente esperada da situação – e o comportamento tomado pelo agente.120 O autor observa, ainda, que não há necessidade, para fins de reparação civil, da caracterização de uma culpa grave, mas apenas da aferição quanto à certeza de sua existência, pois o grau de culpa apenas terá a possibilidade de influenciar na quantificação da indenização.121 De qualquer forma, segundo o doutrinador, o fato é que os julgadores brasileiros – situação que será melhor analisada quando da análise jurisprudencial – tendem a ser muito rigorosos na verificação da busca pela existência ou não da culpa, o que, realmente não é tarefa fácil; mas devem, de todo modo, olhar o conjunto probatório sempre de maneira muito cautelosa, como quando existentes os laudos periciais, por exemplo, os quais, muitas vezes, podem estar acompanhados de um certo “espírito de corpo”.122 Por fim, insta lembrar da existência do erro profissional ou escusável, que não ocorre em razão da não observância de preceitos científicos, mas da própria medicina como ciência imperfeita e incompleta, não atinente às ciências exatas e precária diante dos conhecimentos humanos. O erro escusável, assim, fica caracterizado sempre que o profissional, embora 117 Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.321. NADER, op. cit., p.409. 119 Op. cit., p.25. 120 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.94. 121 Ibid., p.75-76. 122 KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.76-77. 118 48 aplique toda a técnica corretamente e de acordo com as ciências médicas, cause dano ao seu paciente.123 1.5.2.2 A prova da culpa médica e perícias Em se tratando de responsabilidade civil médica, a busca pela culpa do profissional também se mostra de suma importância, situação que não é de fácil verificação judicial, principalmente em razão da exigência de provas contundentes e da tecnicidade presente em tais demandas. Como será visto no item referente à tutela jurídica diferenciada do contrato médico, a responsabilização do médico sempre será analisada mediante a verificação da culpa, afirmação que também será levada em consideração quando da análise jurisprudencial. Para René Savatier, na busca pela culpa basicamente devem ser seguidos dois grandes postulados: primeiramente, para os casos em que não exista dúvida de ordem técnica, a prova testemunhal deve ser admitida, ao passo que, por outro lado, se existir questão de ordem técnica a ser apurada, a prova testemunhal não deve ser admitida, pois não teria condições para afirmar se o médico procedeu ou não da maneira dequada. Para os últimos casos, a perícia deve ser realizada, mas o julgador deve sopesá-la com cautela, principalmente se a conclusão estiver a favor do médico, pois não se pode descartar a possibilidade de uma opinião tendenciosa pelo fato de pertencerem a uma mesma classe profissional.124 Em segundo lugar, deve existir, rigorosamente, relação de causa entre a conduta praticada pelo médico e o efeito (dano), ainda que tal correlação não se dê de maneira imediata.125 Apesar do entendimento compilado de Savatier, Sergio Cavalieri Filho ressalta, ainda, que de fato o juiz não estaria adstrito à perícia, mas se deixar de considerá-la, dificilmente encontrará nos autos outros elementos suficientes para a condenação do médico. Diante disso, entente que não caberia ao Judiciário avaliar questões de ordem eminentemente científica ou, 123 CROCE; CROCE JÚNIOR, op. cit., p.32. Traité de la responsabilité civile em droit français: conséquences de la responsabilité. Responsabilités professionnelles et sportives. Paris: Librarie Generále de Droit et Jurisprudence. T. 2, 1939, nº 778, p.395. 125 SAVATIER, op. cit., p.395. 124 49 ainda, dizer qual seria o melhor procedimento na busca da cura do doente no caso concreto, mas deve se limitar ao exame da existência ou não de falha humana, verificando se o profissional se ateve aos padrões determinados pela ciência, sempre à luz do conjunto probatório coligido aos autos.126 Outro elemento a ser analisado na perícia e que influirá diretamente na formação da responsabilidade civil é a existência das concausas. Diferentemente da causa, considerada como a provável condição motivadora do resultado, a concausa é uma condição pré-existente, concomitante ou superveniente à ação e com ela concorre na formação do dano. Uma vez existente, o dano será considerado resultado desse feixe de fatores, alterando-se, destarte, a análise a ser feita do nexo de causalidade. Existem situações raras, por exemplo, em que determinados traumas não apresentam relação com o mal, pois este estava em estágio tão avançado que não poderia ser agravado.127 Na perícia, outrossim, devem estar constantes os aspectos circunstanciais do ato médico. Faz-se necessário, dessa maneira, determinar se o dano verificado decorreu de conduta inadequada do profissional, segundo os ditames da ciência médica, ou não, lembrando-se que não raro o resultado danoso pode ter sido oriundo de precárias condições de trabalho128, situação que alterará o foco da discussão, pois ainda assim poderá haver a responsabilidade do médico, mas não por sua má conduta, e sim por sua eventual responsabilidade sobre as condições cirúrgicas a ser verificada na situação concreta. Por fim, o estado anterior do paciente constitui outra importante investigação a ser realizada pela perícia, devendo-se determinar, segundo Genival Veloso de França, três hipóteses: a) a possibilidade de o trauma não ter agravado estado em que o paciente já se encontrava, tampouco ter tido influências negativas sobre ele; b) se o estado anterior em que se encontrava o paciente foi um fator agravante nas consequências do trauma e, ainda; c) se o trauma foi fator de agravamento do estado anterior do paciente ou apenas exteriorizou uma patologia latente.129 126 Op. cit., p.371. FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.254. 128 Ibid., p.255. 129 Op. cit., p.255. 127 50 1.5.2.3 A inversão do ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor Diverge a doutrina sobre a possibilidade de aplicação do direito do consumidor em relação à inversão do ônus da prova, tal qual lançado no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, para aproveitar autores cujas alegações estejam baseadas em danos causados por profissional liberal. Quanto a isso, o referido codex nada se pronunciou, limitando-se a estabelecer a responsabilidade subjetiva aos profissionais libeirais. Existem posicionamentos doutrinários, como de Sergio Cavalieri Filho, no sentido de aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no tocante à inversão do ônus probatório para fins de averiguação de responsabilidade civil do médico perante seu paciente. Sendo assim, diante da existência de complexidade não somente de ordem técnica, mas também econômica, na produção da prova da culpa do profissional, pode o juiz determinar a inversão do ônus probatório em desfavor do profissional, pois caracterizada estaria a hipossuficiência do paciente.130 Paulo Nader entende o mesmo: A inversão do ônus probatório (...) pode ser adotada nas relações de consumo, a critério do juiz, quando este verificar que a alegação for verossímil ou hipossuficiente o consumidor. Tal hipossuficiência pode ser tanto econômica quanto técnica.131 Miguel Kfouri Neto, por outro lado, entende que não se pode cair no erro de confundir os institutos necessários à compreensão do tema, como responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva, inversão do ônus da prova e culpa presumida. A partir do entendimento de cada um, chega-se a conclusão de que o sistema de responsabilidade objetiva, trazido pelo Código de Defesa do Consumidor, não é compatível com o da responsabilidade subjetiva, o qual é aplicável aos profissionais liberais; por isso se deve entender que o Código de Defesa do Consumidor excluiu taxativamente, em razão do artigo 14, §4º, os profissionais liberais da sua área de abrangência. Dessa maneira, aplicando-se a responsabilidade subjetiva aos profissionais liberais, o ônus da prova, a princípio, incumbe à 130 131 Op. cit., p.376. Op. cit., p.408. 51 vítima, não havendo que se falar, então, em inversão do ônus da prova, como ocorre nas relações consumeristas, não aplicáveis à espécie.132 Não há dúvida de que a referida hipossuficiência “consumidor-paciente” pode ser tanto de ordem técnica quanto econômica mas, seja de uma forma ou de outra, o fato é que a inversão do ônus probatório em muito lhe beneficiaria no caso concreto na busca pela culpa do profissional, o que pode não se mostrar alinhado à própria exceção feita pelo Código de Defesa do Consumidor no sentido de aplicar a responsabilidade subjetiva aos profissionais liberais. De todo modo, tal discussão apenas se mostra viável para os casos em que o médico assume obrigações de meio, pois, em se tratando de obrigações de resultado, doutrina e jurisprudência admitem a inversão do ônus da prova, esta que recai sobre o profissional liberal por ter contra si presunção de culpa em razão de não ter atingido o resultado esperado, cabendo, destarte, ao profissional, em tais casos, provas da culpa exclusiva da vítima, de terceiro, caso fortuito ou força maior.133 Quanto às obrigações de meio e resultado, serão tratadas em tópicos específicos nesse trabalho, quando da distinção entre ambas e quando da análise jurisprudencial. 1.5.3 O dano Indissociável, para fins de caracterização da responsabilidade civil, o dano, ou prejuízo, seja ele material, moral ou estético. O dano, nas palavras de Rubens Limongi França é a “diminuição ou subtração causada por outrem, de um bem jurídico” e, segundo o autor, ainda, “pode ser patrimonial ou moral, conforme seja ou não, por natureza, redutível a uma soma pecuniária”134 132 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.156. 133 Ibid., p.151. 134 Op. cit., p.875. 52 Miguel Maria de Serpa Lopes lembra do caráter dúplice assumido pelo elemento dano, uma vez que, para sua caracterização, deve atender aos seguintes requisitos: o elemento de fato, isto é, o prejuízo em si, e o elemento jurídico, qual seja a violação de direito.135 Dessa maneira, a existência de um dano não é capaz, por si só, de caracterizar um ato ilícito, pois, para que isso ocorra, é necessário algo além. Há, assim, que ficar demonstrado um dano injusto, lesionador da norma jurídica posta. Se uma conduta é permitida pelo ordenamento jurídico, ainda que cause dano a outrem, não haverá o dever de reparação. O artigo 188, do Código Civil, é claro ao afastar da ilicitude os atos praticados, dentre outros, em exercício regular de direito.136 Em suma, nem toda conduta violadora gera responsabilidade civil, uma vez que, segundo o artigo 186, do Código Civil, deve existir o dano. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, ainda mesmo que dolosa a conduta do agente em produzir certo resultado prejudicial à vítima praticando, com esse fim, ato violador legal ou contratual, se não houver efetivamente o dano, não haverá responsabilidade civil.137 1.5.3.1 Requisitos do dano reparável Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, são três os requisitos que atribuem a qualidade de reparabilidade de uma dano: a violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica, a certeza do dano e a subsistência do dano.138 Destarte, levando-se em consideração que a necessidade de reparação de um dano ocorrido em virtude da conduta de um agente decorre de uma resposta do ordenamento jurídico no intuito de promover o retorno da situação anterior – status quo ante – ou, pelo menos, diante da impossibilidade da hipótese anterior, de uma indenização, com intuito de 135 Op. cit, p.222. Ibid., p.222. 137 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.181. 138 Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.38-40. 136 53 compensação pelos eventuais prejuízos (de natureza patrimonial ou não) sofridos pela vítima, mister se faz atender aos três fatores supracitados para que exista a reparabilidade do evento danoso. A violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de pessoa física ou jurídica representa a suma de tudo o que até aqui foi exposto: não existirá dano sem conduta ofensora a bem jurídico tutelado pelo ordenamento, traduzida ou no desrespeito à norma existente ou à obrigação entabulada pelas partes.139 Quanto à certeza do dano, só poderá haver reparação de um dano que efetivamente existiu, ou seja, tem-se que o ordenamento pátrio prezou pela comprovação da existência do dano e impediu reparação de um dano incerto ou eventual. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, a ideia de certeza está ligada à de contemporaneidade, afastando-se, pois, indenização de danos hipotéticos ou eventuais, considerados como aqueles que não necessariamente ocorrerão.140 Evidentemente, em se tratando de regra geral, há exceções, as quais, principalmente ligadas ao dano moral, em virtude de sua difícil verificação em alguns casos concretos ou talvez, ao contrário, pela sua patente verificação de acordo com a sitação, têm sido trazidas e cada vez mais utilizadas pela jurisprudência brasileira, corroboradas por boa parte da doutrina concernente ao tema.141 Como terceiro requisito está a subsistência do dano, ou seja, para fins de ressarcimento, é necessária a ausência de reparação.142 Caio Mário da Silva Pereira concorda com esse requisito desde que comprovadamente tenha exisitido a conduta reparadora integral do dano.143 Por fim, Caio Mário da Silva Pereira lembra que não é requisito de reparabilidade o aspecto quantitativo, pois caracterizado o dano, seja de proporções pequenas ou grandes, 139 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.38-39. Responsabilidade civil, op. cit., p.46. 141 Um exemplo é a inserção indevida do nome em cadastros de inadimplentes, em que, basta a comprovação de tê-lo efetivamente ocorrido – primeiro dos três requisitos da repareabilidade de danos apresentado –, que a configuração dos danos morais é certa (in re ipsa, ou seja, decorre das próprias circunstâncias) e, consequentemente, também o é a necessidade de reparação. Não se olvide que, ainda assim, há a possibilidade de não se caracterizar os danos, morais, como a pré-existência de negativação devida, entretanto, de acordo com a ideia que se quer colocar aqui, trata-se da atenuação desse segundo requisito para algums hipóteses. 142 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.40. 143 Responsabilidade civil, op. cit., p.46. 140 54 haverá o dever de reparar. Se assim não fosse, estaria o julgador adstrito a aspectos muito subjetivos, pois um dano poderia ser elevado para uns e de pequena monta para outros, aspecto, então, ineficiente para fins de preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil, de modo que a orientação da justiça em termos de ressarcimento deve ser pautar pela lesão ao interesse da vítima.144 1.5.3.2 Espécies de dano Atualmente, os danos se dividem em três espécies, a saber: a) dano material ou patrimonial, b) dano moral e c) dano estético. Tal diferenciação se mostra importante porque cada um atua de forma interdependente em relação aos outros, ou seja, um determinado ato ilícito pode dar origem aos três tipos de reparação. Para alguns autores, como ficará mais claro adiante, o dano estético está inserido no dano moral, entretanto, de uma maneira ou de outra, em que pese a indubitável íntima relação entre ambas, o certo é que há possibilidade de serem cumulados distintamente. É o que preconiza a recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça por meio da edição da súmula n.º 387, in verbis: “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.” 1.5.3.2.1 Dano material ou patrimonial Nas palavras de Paulo Nader, o dano patrimonial se caracteriza: (...) quando provoca a diminuição do acervo de bens materiais da vítima ou, então, impede o seu aumento. Materializa-se por danos emergentes, com a diminuição do patrimônio, ou por lucros cessantes, quando a vítima se vê impedida da atividade que lhe traria proveito econômico.145 144 145 Responsabilidade civil, op. cit., p.44. Op. cit., p.84. 55 Dessa maneira, é possível perceber que se refere a uma lesão a bens que podem ser valorados economicamente, notando-se, ainda, que se divide em duas modalidades, como já apresentado: dano emergente e lucros cessantes. A primeira modalidade – dano emergente – se refere ao dano imediato ao patrimônio da vítima, ou seja, a sua diminuição de valor ocorrida diretamente em razão do evento danoso. Assim, existe lógica entre o que a vítima desembolsou ou vai desembolsar para repor seus bens à situação anterior ao evento danoso e o montante indenizatório, cuja apreciação será matematicamente precisa.146 Mas não é a única, pois um mesmo ato ilícito pode causar também dano patrimonial na modalidade lucros cessantes, aqueles em que o agente razoavelmente ganharia não fosse a eclosão do dano.147 Aliás, quanto à expressão razoavelmente trazida pelo artigo mencionado, importante destacar, segundo a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sua função interpretativa no sentido de se considerar com bom senso aquilo que o credor lucraria não fosse o dano, como se tudo ocorresse no seu “curso normal”.148 No mesmo sentido está o artigo 403149, do referido Código, que delineia a interpretação do aplicador do direito em, segundo Paulo Nader, “evitar uma elasticidade na apuração dos lucros cessantes, considerando-se contingências improváveis.”150 Dessa forma, vê-se que a apuração dos lucros cessantes deve se ater a uma visão ligada à realidade, aferindo-se, para tanto, o que realmente deixou-se de lucrar em razão única e direta ao evento danoso e, ainda, de uma maneira razoável. De qualquer modo, ambos tratam das perdas e danos, tais quais lançadas no artigo 402151, do Código Civil e, ainda que referente ao plano negocial, sua aplicabilidade se dá a todo ato ilícito cometido.152 146 BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.59. CAVALIERI FILHO, op. cit., p.72-73. 148 REsp 320417/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 20.05.2012. 149 Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. 150 Op. cit., p.85. 147 56 Por fim, outra modalidade de danos patrimoniais é denominada “pela perda de uma chance”, teoria ligada aos lucros cessantes por também carregar consigo a ideia de perda para a vítima de se encontrar em situação futura melhor em razão do evento danoso, entretanto trata-se da perda da oportunidade e não da própria vantagem. Também a possibilidade não pode ser hipotética, mas deve ser certa. Assim é a frustração de uma possibilidade certa a que teria direito o agente, logo, deve ser indenizado de acordo com o cálculo proporcional à possibilidade.153 Segundo Teresa Ancona Lopez, a teoria da perte d’une chance surgiu em 1965, na França, após reiteradas decisões jurisprudenciais com o intuito de conferir maior proteção às vítimas de procedimentos médicos, facilitando, assim, a formação da culpa do profissional. Num primeiro momento, especificamente ligada à área médica, pode ser traduzida na admição da culpa do médico que diminiu as chances de vida do paciente, não importando a verificação indubitável da culpa no proceder no caso concreto, mas a mera possibilidade já era suficiente, pois a culpa nada mais era do que a redução das chances do paciente.154 Hoje, entretanto, sua aplicação não se restringe apenas às especialidades médicas, mas a toda e qualquer situação que atinja a vítima da maneira descrita. O cuidado que se deve ter é apenas que a perte d’une chance não representa dano futuro, mas atual, na medida em que o resultado não mais será alcançado pela perda oportunidade presente no momento do dano, e esta é indenizável155 1.5.3.2.2 Dano moral Dano moral é aquele que atinge a esfera patrimonial do indivíduo composta por bens imateriais, que não admitem aferição pecuniária, diferentemente dos danos patrimoniais, que atingem bens materiais, portanto, passíveis de avaliação. Outrossim, não se restringem apenas 151 Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. 152 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.72-73. 153 Ibid., p.74-75. 154 Responsabilidade civil dos médicos, op. cit.,p.317 155 VASSILIEFF, Sílvia. Responsabilidade civil do advogado. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.69. 57 à dor e tristeza, mas sua tutela se estende a todos os bens personalíssimos, como nome, honra, intimidade, privacidade e liberdade.156 Yussef Said Cahali lembra que, em se tratando de resposta jurídica à ofensa ao direito de personalidade da vítima, tal qual aceito pelos tribunais como dano moral indenizável, não é possível estabelecer rol taxativo dos eventos passíveis de originá-los, até mesmo pela própria dificuldade de classificação dessa espécie de dano.157 Noutro giro, os danos morais não podem representar simplesmente a ideia de pagamento da dor ou do sofrimento com dinheiro. Em termos pecuniários, o dano moral atende a funções diversas das preconizadas pelos danos patrimoniais, cuja caracterização se dá pela equivalência entre dano e ressarcimento. O dano moral carrega consigo a compensação pessoal diante do dano para fins de minorar os maus sofridos, não representando, assim, propriamente sanção, mas compensação legal.158 Quanto à sua quantificação, cabe à doutrina e à jurisprudência estabelecer parâmetros para sua apuração, pois, diferentemente do dano patrimonial, inviável sua apuração por meio de aspectos objetivos ou quantificáveis. O certo é que, diante da sua difícil mensuração, o dano moral se utiliza de critérios subjetivos tais como razoabilidade, proporcionalidade, nível da gravidade da ofensa, condições econômicas159 e até mesmo sociais e psicológicas das partes. Frise-se quanto a isso que os danos morais, na sua fixação, são os únicos que carregam consigo uma carga repreensiva com o intuito de elevar sua quantificação como uma forma de retaliação ao agente praticador da conduta, objetivando, assim, não somente a simples reparação, mas um verdadeiro desestímulo de novas condutas geradoras de dano moral. Em contraposição, tais verbas nunca poderão significar um enriquecimento sem causa da vítima. Resta, assim, ao julgador, a tarefa de sopesar tal vedação legal, amenizadora do quantum indenizatório, e a repreensividade da prática do dano moral, majorador do quantum. Nesse sentido, é muito importante analisar as condições sociais e econômicas das vítimas, 156 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.80-81. Dano moral, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.59. 158 BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.63-64. 159 NADER, op. cit., p.91. 157 58 pois o que pode significar enriquecimento sem causa em um determinado caso, em outro não necessariamente significará.160 De uma forma ou de outra, o dano moral, derivado de conduta ilícita, é repudiado pelo ordenamento jurídico e, como tal, não pode significar uma “loteria” para a vítima, mas um compensação aos prejuízos sofridos. Mesmo assim, diante da sua natureza desestimulante, trata-se de uma importante ferramenta que, se usada da maneira correta e com ponderação, pode ajudar muito no combate às constantes práticas de ato ilícito geradores de dano moral, principalmente representadas por grandes fornecedores de produtos e serviços. 1.5.3.2.3 Dano estético Dano estético, segundo Paulo Nader, ocorre quando “o agente provoca lesões corporais indeléveis, seja deixando cicatrizes, aleijões ou quaisquer marcas incomuns, que prejudiquem a aparência da pesoa e abalam a sua autoestima”.161 Normalmente, o “estético” diz respeito ao campo da ciência que estuda o belo nas artes e na natureza. A definição do que é belo sempre foi motivo para inúmeras discussões filosóficas mas, por se tratar de acordo com a essência de cada corrente filosófica, pode ser associada à harmonia e equilíbrio das formas. Por isso, quando se diz “dano estético”, está-se fazendo referência a um dano das formas físicas, o qual, apesar da sua difícil conceituação, ficará caracterizado após uma mudança significativa corpórea da vítima, analisando-se o antes e o depois da lesão.162 Há autores, como Paulo Nader, que entendem não se confundir com o dano moral, pois o dano estético não se caracteriza por uma vergonha da vítima frente a sua exposição a terceiros, que poderia se traduzir numa angústia de ordem moral, mas simplesmente em razão da sequela física perputada pelo dano. Ora, ainda que oculto e não aparente a terceiros, o dano estético é indenizável, pois se traduz numa deformidade física para a vítima que decorreu de ato. Mesmo assim, ressalva que apesar de existir a possibilidade de um mesmo ato ilícito 160 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.93. Op. cit., p.92-93. 162 LOPEZ, O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.37. 161 59 gerar dano moral e dano estético, para que subsistam concomitantemente, o dano moral não pode valer-se de fundamento da lesão estética, pois, caso contrário, existirá apenas o dano estético.163 Trata-se da vedação jurisprudencial e doutrinária à dupla indenização por uma só causa. Por isso, a Súmula 387, do Superior Tribunal de Justiça, já mencionada quando se tratou das espécies de dano, deve ser lida com a devida cautela. Para parte da doutrina, como Sergio Cavalieri Filho, ainda que a jurisprudência pátria, representada pela própria edição da súmula alhures exposta, aparentemente esteja caminhando no sentido de traçar uma linha divisória entre os danos morais e os estéticos, não há diferença entre ambos, sendo estes incluídos naqueles, lembrando que, nada obstante o tal posicionamento, deve o dano moral ser majorado pelo sofrimento moral a que deu causa a deformidade física, já que a intensidade aflitiva perdura no tempo.164 Teresa Ancona Lopez, por seu turno, expõe de maneira contundente que “dano estético é dano moral.”165 Seja de uma maneira ou de outra, pode-se concluir que, apesar de o Código Civil nada dispor a respeito dos danos estéticos, sua possibilidade de caracterização, segundo Sergio Cavalieri Filho, talvez derive do artigo 949 e, estando incluído ou não nos danos morais, deve ser ressarcido; se não estiver inserido, dano moral e estético serão liquidados separadamente, se estiverem, o dano moral deverá ser majorado.166 1.5.3.3 Os danos material, moral e estético nas cirurgias médicas Conforme apresentadas de maneira geral acima as espécies de danos que podem originar a responabilidade civil, é importante verificar como esses danos podem decorrer da 163 Op. cit., p.93. Op. cit., p.102. 165 O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.19. 166 Op. cit., p.101-102. 164 60 atuação médica, principalmente no tocante às cirurgias, que podem representar a superveniência de inúmeras intercorrências ao paciente. Nesse sentido a realização da perícia médica também assume importância evidente, pois ela poderá demonstrar de maneira satisfatória outras responsabilidades do médico ou de sua equipe, buscando, para tanto, caracterizar do dano, estabelecer o nexo de causalidade, considerar a possibilidade de existirem concausas, analisar as circunstâncias do ato médico, fazer uma avaliação do estado em que se encontrava a vítima antes do procedimento e, por fim, estabelecer o padrão médico-legal.167 Em relação ao dano, faz-se importante ressaltar que não necessariamente significa apenas alterações anatômicas ou de estrutura funcional no paciente, mas pode se caracterizar igualmente como desordens da normalidade individual, estas que estão intrinsecamente ligadas aos padrões médico-legais, que procuram estimar o dano sofrido como bem patrimonial, intentando-se, destarte, à reparação da vítima por meio de um montante traduzido em pecúnia como indenização diante de perdas físicas, funcionais ou psíquicas sofridas pelo paciente. Genival Veloso de França elenca alguns tipos de dano que podem decorrer de cirurgias e gerar o dever de indenizar passíveis, inclusive, de aferição pela perícia: 168 Se do dano sobreveio incapacidade temporária, que é um tempo limitado de inaptidão, indo desde a produção do dano até a recuperação ou estabilização clínica; se do dano sobreveio quantum doloris, ou seja, existência de dor física advindas de lesões e suas consequências, bem ainda o sofrimento moral pela angústia, ansiedade e abatimento diante da possibilidade de morte, da expectativa de resultados e dos danos psicológicos, tudo a ser verificado de maneira subjetiva; se do dano sobreveio incapacidade permanente, considerado como um prejuízo de ordem anatomofuncional ou psicossensorial totais (a vítima deve ser assitida de forma permanente por alguém) ou parciais (apesar da definitividade, não torna a vítima incapaz totalmente para suas ocupações); se do dano sobreveio prejuízo estético, olhando-o sob um ângulo dos aspectos pessoais da vítima, tais como idade, sexo, estado civil, profissão, etc., de modo a ser avaliado em grau mínimo, moderado ou grave e classificado em prejuízo estético, deformidade ou aleijão ou, ainda, numa escala que varia de 1 a 7; se do dano sobreveio prejuízo de afirmação pessoal, ou seja, teve suas realizações pessoais frustradas, sendo tanto mais grave quanto mais jovem é a pessoa e quanto mais intensas forem as 167 168 FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.253. Ibid., p.255-256. 61 realizações de atividades de lazer, de dotes artísticos e de capacidade intelectual, quantificável numa escala de 1 a 5; se do dano sobreveio prejuízo do futuro, desde que certo, não meramente no campo das possibilidades; se do dano sobreveio a perda de uma chance, não mais o dano tido como certo, mas no campo da eventualidade e da suposição.169 Teresa Ancona Lopez lembra que, diante da existência de erro profissional, se sobrevier morte do paciente, a indenização deverá incluir todas as despesas de tratamento, funeral, luto da família e alimentos a quem o de cujus devia; em caso de ferimento, sem diminuição da capacidade laborativa, o paciente deve ser ser ressarcido nas despesas de tratamento e lucros cessantes até a possibilidade de voltar às funções normais; ocorrido aleijão ou deformidade, além das já citadas em caso de ferimento, prejuízos de ordem moral são verificáveis, não somente o prejuízo estético, aumentando-se, pois, o quantum referente aos danos morais; por fim, se a integridade física tiver sido violada a tal ponto que resulte inabilitação para o trabalho ou diminuição da capacidade laborativa, a diferença entre o que o paciente conseguirá auferir e o que já auferia, ou seja, a depreciação laborativa deve ser incluída no montante indenizatório.170 Assim, é possível perceber que o erro médico em uma cirurgias podem ocasionar prejuízos que necessitam ser apurados para a correta verificação da responsabilidade médica no caso concreto. 1.5.4 Nexo de causalidade Deve necessariamente existir uma ligação, uma relação de causa e consequência, entre a conduta humana praticada e o dano. Essa ligação é o nexo de causalidade.171 Nem sempre é fácil identificar se o dano foi efetivamente consequência da causa conduta humana, por isso três teorias tentam explicar como se dá essa verificação. 169 FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.257. Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.331. 171 BARROS JÚNIOR, Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.70-71. 170 62 A teoria da equivalência de condições ou da conditio sine qua non (elaborada pelo jurista alemão Von Buri para o Direito Penal172) leva em consideração todas as causas que tenham concorrido para a produção do resultado e a elas atribui igualdade de condições, ou seja, qualquer uma delas teria de maneira independente levado ao dano.173 Críticas a ela são severas no sentido de que “tende ao infinito”. Tomando o exemplo de Paulo Nader, no caso de um acidente aéreo, “Santos Dumont teria uma parcela de responsabilidade, pois, se não houvesse inventado o mais pesado que os ares, os danos ocasionados por aeronaves não se materializariam ao longo do tempo.”174 Noutro giro, a teoria da causalidade adequada, segundo Agostinho Alvim, é atribuída a Von Bar (por Espínola e Ripert) e a Von Kries (por Cardoso Gouveia) e, diferentemente da anterior, não considera todos os antecedentes como causa do dano, mas apenas aquele capaz de gerar o resultado lesivo.175 Caio Mário da Silva Pereira ressalta que em se tratando de demanda indenizatória, sempre o juiz considera para o desfecho danoso os fatos mais relevantes, aptos a produzi-lo, utilizando, para tanto, o critério de eliminação, ou seja, desconsiderando os eventos que ainda presentes não concorreram de qualquer modo para a superveniência do dano.176 Se de um lado a primeira teoria vai além do evento diretamente relacionado ao evento e investiga todas as suas causas, esta apresenta o problema da elevada discricionariedade atinente ao julgador em verificar no caso concreto se determinada causa efetivamente concorreu ou não para o evento danoso.177 Sergio Cavalieri Filho comentou a problemática: Como estabelecer, entre várias condições, qual foi a mais adequada? Não há uma regra teórica, nenhuma fórmula hipotética para resolver o problema, de sorte que a solução terá que ser encontrada em cada caso, atentando-se para a realidade fática, com bom-senso e ponderação.178 Por fim, a teoria da causalidade imediata estabelece como causa do dano, segundo Orlando Gomes, aquela que mais próxima dele estiver, ou seja, o último ato ligado ao evento 172 PEREIRA, Responsabilidade civil, op. cit., p.86. ALVIM, op. cit., p.345. 174 Op. cit., p.116. 175 Op. cit., p.345. 176 Responsabilidade civil, op. cit., p.87. 177 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.90. 178 Op. cit., p.48. 173 63 danoso; assim, com a requerida imediatidade (origem do nome), afasta-se quaisquer outros eventos indiretos e remotos e o nexo de causalidade passa a estabelecer, então, a causa necessária entre dano e fato.179 É tradicional o exemplo de um atropelamento que apenas causou lesões leves na vítima, mas, esta, quando está a caminho do hospital numa ambulância acionada, morre em virtude do capotamento do veículo de socorro. Perante a terceira teoria apresentada, o proprietário ou condutor do veículo causador do acidente não responde civilmente, já que quebrado o nexo de causalidade entre o evento acidentário e o evento morte; noutro giro, responde civilmente o motorista da ambulância se não demonstrar excludentes.180 No Direito Civil brasileiro há divergência doutrinária sobre a aderência à teoria da causalidade adequada ou à teoria da causalidade imediata. A título de exemplo, Sergio Cavalieri Filho é adepto da primeira, ao passo que Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, além de Carlos Roberto Gonçalves e Agostinho Alvim são adeptos da segunda. Quanto a estes, suas teses são baseadas principalmente na própria redação do artigo 403, do Código Civil, que assim dipõe: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.” Segundo seus defensores, a expressão “por efeito dela direto e imediato” se refere ao último evento diretamente realacionado ao dano, por isso a adoção da teoria do dano direto e imediato pelo Código Civil. Agostinho Alvim deixa isso claro ao se refrir ao artigo 1060, com redação praticamente idêntica à do Código Civil em vigor.181 Assim, em que pese a doutrina divergir sobre qual a teoria adotada pelo Código Civil e, por conseguinte, a jurisprudência, o caso concreto é que deverá dizer a melhor teoria a ser escolhida especificamente para a solução do impasse, pois nem uma nem outra, ao que parece, seria capaz de normatizar da maneira mais adequada o universo de situações concretas que podem ocorrer.182 179 Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.275. GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.90-91. 181 Op. cit., p.371. 182 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil, op. cit., p.94. 180 64 Caio Mário da Silva Pereira entende o mesmo, lembrando que o que realmente importa é estabelecer a violação do direito, o dano e que existe um nexo de causalidade, cabendo ao juiz decidir aveguar com ponderação os elemtnos no caso concreto, afinal se trata de questão fática.183 1.5.4.1 Excludentes do nexo de causalidade São cinco os motivos que ensejam rompimento do nexo de causalidade: a culpa exclusiva da vítima, a culpa concorrente da vítima, a culpa comum, a culpa de terceiro e a força maior e caso fortuito.184 1.5.4.1.1 Culpa exclusiva da vítima Ocorre a culpa exclusiva da vítima quando os prejuízos por ela suportados não podem ser atribuídos ao autor material do fato, mas à própria vítima. Assim, considerando a totalidade da culpa da vítima na causa do evento danoso, ela arcará por si só com os prejuízos experimentados,185 pois aquele que era tido como o agente causador do dano foi na verdade um mero instrumento para culminar no evento, motivo que dá ensejo ao rompimento do nexo de causalidade.186 Silvio Rodrigues também deixa clara a função de instrumento encarnada no agente causador do dano: 183 Responsabilidade civil, op. cit., p.90. DINIZ, op. cit., p.110-116. 185 LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.206. 186 DINIZ, op. cit., p.110. 184 65 Com efeito, no caso de culpa exclusiva da vítima, o agente que causa diretamente o dano é apenas um instrumento do acidente, não se podendo, realmente, falar em liame de causalidade entre seu ato e o prejuízo por aquela experimentado.187 1.5.4.1.2 Culpa concorrente da vítima Em oposição à primeira hipótese apresentada, se o autor material do fato contribuiu com determinada parcela para o resultado do evento danoso, em conjunto com a vítima, caracterizada estará a culpa concorrente, situação em que cada um deles responderá pelo prejuízo na medida da sua participação.188 Segundo Maria Helena Diniz, existem inúmeras formas de aplicação do instituto, como a compensação total de culpas, a divisão proporcional dos prejuízos ou a auferição da gravidade da conduta de cada um, de modo a não representar enriquecimento sem causa para a vítima que também contribuiu para o dano. Veja-se que, nesse caso, não desaparece o nexo de causalidade, pelo contrário, ele existe, mas servirá como atenuação da responsabilidade do agente.189 Para Silvio Rodrigues, se não houver provas contundentes sobre a maior ou menor participação de uma das partes na eclosão do evento, aa tese de repartição igual de responsabilidade entre agente e vítima é muito sustentável.190 1.5.4.1.3 Culpa comum Culpa comum pode ser caracterizada quando dois ou mais agentes cometem o dano de maneira conjunta,191 situação em que deve ser aplicada a compensação de reparações, ou seja, 187 Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.206. RODRIGUES, op. cit., p.165. 189 Op. cit., p.110-111. 190 Op. cit., p.168. 191 LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.208. 188 66 há neutralização da responsabilidade de ambas, logo não existirá indenização se estiverem em igual posição. Caso contrário, caracterizada a situação de desigualdade, a condenação por perdas e danos será proporcional, tomando-se por base a contribuição culposa no evento danoso.192 1.5.4.1.4 Culpa de terceiro ou fato de terceiro Trata-se da situação em que, num primeiro momento, considera-se o agente material como o causador do dano, e este, na verdade, aponta um terceiro como responsável pela eclosão do evento prejudicial, logo, são três as figuras envolvidas: a vítima relacionada por aquele que considera o agente lesionador e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade.193 Maria Helena Diniz reputa como necessárias quatro verificações para imputar ao terceiro a responsabilidade: a presença do nexo de causalidade entre o fato do terceiro e o dano, a imprescindibilidade de que o ato do terceiro não tenha se dado por provocação do ofensor, ser o ato do terceiro caracterizado como ilícito e, por fim, a imprevisibilidade ou inevitabilidade do acontecimento, ainda que desnecessária a absoluta irrestibilidade e imprrevisibilidade.194 Evidentemente, se o terceiro é alguém por quem o agente, por força da lei, deve responder, não poderá se eximir de responsabilidade. Trata-se da hipótese de responsabilidade por fato de terceiro.195 1.5.4.1.5 192 Caso fortuito e força maior DINIZ, op. cit., p.111. LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, op. cit., p.211. 194 Op. cit, p.112. 195 RODRIGUES, op. cit., p.169. 193 67 Agostinho Alvim acredita numa distinção pela doutrina, considerando, então, o caso fortuito como impedimento ligado ao devedor, ao passo que a força maior seria relativa a acontecimentos externos. Isso permitiria, assim, dar tratamento jurídico diverso para ambas, pois, se a responsabilidade se basear na culpa, caso fortuito e força maior serão aptas a exonerar o devedor, por outro lado, se fundada no risco, caso fortuito não será suficiente para escusar o devedor, mas apenas se existir força maior ou o também chamado caso fortuito externo, que inclui, dentre outros, culpa da vítima, fenômenos naturais e forças invencíveis, como guerra.196 Para Maria Helena Diniz, a força maior é ligada a evento da natureza, conhecendo-se, então, sua causa; já no caso fortuito, o que dá causa ao dano pode advir de suas situações diferentes, ou de causa desconhecida, como o rompimento de cabos inesperadamente ou de fato de terceiro, como greve, motins, etc.197 A doutrinadora ainda lembra da necessidade de existência do elemento subjetivo para a caracterização do caso fortuito e da força maior, qual seja a ausência de culpa, e que, quando somados, elemento objetivo – inevitabilidade – e elemento subjetivo – ausência de culpa –, há a exclusão da responsabilidade do sujeito, salvo se convencionado que ainda assim deveria existir o pagamento ou no casos em que a própria lei afasta essa excludente, como a responsabilidade objetiva.198 Por seu turno, Orlando Gomes expõe, antes mesmo da diferenciação entre caso fortuito e força maior, a discussão sobre a conceituação de caso fortuito: para a corrente objetiva ou positiva, o termo é ligado à ideia de imprevisibilidade (evento que não pode ser previsto) ou irresistibilidade (evento que não se pode resistir) ou da junção de ambas, dependendo do autor (três posicionamentos); já para a corrente subjetiva ou negativa, é ligado à da ausência de culpa. A evolução, então, da discussão, deu origem à diferenciação entre o caso fortuito e a força maior: aquele estaria marcado pela imprevisibilidade, ao passo que esta pela irresistibilidade.199 De todo modo, Orlando Gomes lembra que as tantas discriminações criadas ao longo do tempo pela doutrina resultaram em tamanha confusão que, atualmente, é preferível 196 Op. cit., p.330-331. Op. cit., p.113. 198 Ibid., p.112-113. 199 Obrigações, op. cit., p.148-149. 197 68 contornar a discussão ou até mesmo ignorá-la, já que as consequências atribuídas pela legislação são as mesmas em ambos os casos.200 Para Caio Mário da Silva Pereira, no mesmo sentido de Orlando Gomes, não existe na lei e na doutrina moderna ou clássica diferenciação nítida entre as duas figuras. De qualquer modo, segundo o artigo 393, parágrafo único, do Código Civil201, ambas são o fato necessário a cujos efeitos eram inevitáveis ou impossíveis de se impedir, impossibilitando, destarte, o cumprimento da obrigação, sem que tenha existido culpa do devedor.202 200 Obrigações, op. cit., p.149. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 202 Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, Vol. 2, 2008, p.384385. 201 69 2. A ATIVIDADE PROFISSIONAL MÉDICA E A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE 2.1 Objeto do contrato e suas partes O médico é o principal elemento no combate das moléstias que acompanham o ser humano desde sua existência. Nesse sentido, a ciência médica atua na constante busca pela preservação da vida, bem-estar e da saúde do homem, verdadeiros objetivos de todo e qualquer contrato médico. Em 1946, para a Organização Mundial da Saúde, a saúde foi reconhecida como um direito fundamental, sendo conceituada como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de doenças ou outros agravos”, afirmação que leva ao entendimento de que saúde não pode ser considerada apenas no âmbito individual, mas coletivo, enfatizando ainda mais sua importância.203 A Constituição Federal trouxe, no artigo 196, que “ a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Dessa maneira, idissociável do contrato médico a busca do profissional pela preservação da vida, bem-estar e saúde do paciente, informação que também fornece as partes do contrato: paciente, na busca de completo bem-estar físico ou psíquico, ou da eliminação de enfermidades que tenha conhecimento portá-la previamente ou não; e o médico, capaz de analisar com cuidado o estado de quem avalia e indicar os melhores caminhos a serem traçados. 203 ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.16. 70 O Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009, do Conselho Federal de Medicina204) dispõe, quando trata dos princípios fundamentais: “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”. Para as relações médico-pacientes, regem-se, a princípio, as normas constantes do Código Civil e, conjuntamente, os dispositivos constantes do Código de Defesa do Consumidor. Como contrato de locação de serviço, dispõe o Código Civil nos artigos 594 a 609. Entretanto, não se olvide da hipótese, segundo alguns doutrinadores, de aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre médicos e pacientes, na medida em que, a uma, o paciente poderia ser considerado como consumidor, nos moldes do artigo 2º e, a duas, o médico como fornecedor, segundo o artigo 3º, e a três o artigo 14, §4º, que fez uma ressalva quanto à aplicabilidade da responsabilização subjetiva para os profissionais liberais, todos os artigos do referido Código.205 Entretanto, isso será melhor visto no tópico referente à tutela jurídica diferenciada do contrato médico. 2.2 Natureza jurídica da responsabilidade civil médica Muitas discussões já foram travadas na perquirição da natureza jurídica contratual ou extracontratual da responsabilidade civil decorrente da atuação médica. Hodiernamente, segundo Sergio Cavalieri Filho, a responsabilidade de médicos e hospitais dividem-se em dois ângulos a serem analisados distintamente: o primeiro quanto à responsabilidade direta e pessoal do médico na atuação profissional liberal, já a segunda quanto a responsabilidade médica pela prestação de um serviço médico revestido de forma empresarial, tais como clínicas, hospitais, casas de saúde.206 204 Disponível: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=category&id=9&Itemid=122>. Acessado em: 22 jul. 2013. 205 FARAH, Elias. Contrato profissional médico-paciente: reflexões sobre obrigações básicas. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2010, Vol. V, p.367 e 371. 206 Op. cit., p.370. 71 Mesmo assim, em relação ao tema em voga, as discussões referentes à natureza jurídica da responsabilidade civil se fazem de suma importância. Quanto à natureza contratual ou extracontratual, não há como negar que se há o exercício da atividade profissional realizada pelo médico, dificilmente existirá outra relação que não contratual.207 Nas palavras de Miguel Kfouri Neto: A jurisprudência tem sufragado o o entendimento de que, quando o médico atende a um cliente, estabelece-se entre ambos um verdadeiro contrato. A responsabilidade médica é de natureza contratual.208 Ora, a atuação do profissional liberal só se dará se houver a realização de um negócio jurídico entre ele e o paciente para o desempenho da atividade esperada. Maria Helena Diniz também se posicionou no sentido de a responsabilidade do médico ser contratual, ainda que o Código Civil tenha trazido a matéria no capítulo destinado aos atos ilícitos, pois o exercício médico só poderia resultar de natureza delitual a partir de ilícito penal ou da violação de normas atinentes à prófissão.209 Para Teresa Ancona Lopez, a discussão quanto à natureza contratual ou exatrcontratual do médico já está superada, pois, nitidamente, é contratual, mesmo que tal responsabilidade seja tratada pelo Código Civil [de 1916] no capítulo dos atos ilícitos.210 Miguel Maria de Serpa Lopes, ao se referir ao artigo 1545, do Código Civil de 1916, entende também que mesmo inserido no capítulo referente aos atos ilícitos não significa se tratar apenas de responsabilidade extracontrual, de modo que o Código Civil (de 1916) apenas quis resguardar o ressarcimento de prejuízos se ocorrer ato ilícito.211 É importante frisar que, atualmente, o artigo correspondente ao citado 1545 do Código Civil de 1916 (provavelmente artigo em comento também da Maria Helena Diniz, e não 948, do Código Civil) não mais se encontra no capítulo dos atos ilícitos, mas sim no capítulo referente às indenizações (artigo 951, do Código Civil). De qualquer modo, isso apenas reforça a tese de que a responsabilidade civil médica tem natureza contratual, pois, se o artigo 207 GONÇALVES, op. cit., p.238. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.65. 209 Op. cit., p.299. 210 Responsabilidade civil dos médicos, op. cit., p.318-319. 211 Op. cit., p.229-230. 208 72 no Código Civil de 1916 estava inserido no capítulo dos atos ilícitos e ainda assim os doutrinadores entendiam pela não exclusiva responsabilidade extracontratual, ainda com maior razão hoje, retirado do capítulo dos atos ilícitos. Para a atuação médica revestida de forma empresarial, a situação não é diferente, mesmo diante da possibilidade de existir a figura de um intermediador entre os polos da relação, pois em nada alterará a situação de relação como contratual, apesar de essa relação estar pautada num contrato firmado entre paciente e instituição, e não entre paciente e médico. Mas, de fato, diretamente, entre médico e paciente, não há contrato. Pontes de Miranda lembra, outrossim, que: Se o serviço médico provém de direito público, ou de prestação caridosa ou beneficente ao público, sem qualquer remuneração pela pessoa que recebe o serviço ou a obra, ou qualquer contribuição à entidade, tem-se de afastar a contratualidade da responsabilidade.212 Pode surgir, ainda, a responsabilidade médica que não tenha origem em um contrato em situações específicas, como um caso em que o médico atenda uma pessoa desmaiada ou que não esteja bem em qualquer ambiente do quotidiano. Mesmo assim, havendo o dano, seja por intermédio de contrato ou não, existirá o dever de indenizar.213 Nesse sentido, Maria Helena Diniz lembra que apenas em situações específicas o médico responderá de maneira extracontratual, utilizando-se dos seguintes exemplos: se o médico fornece atestado falso, consente com o exercício da medicina por pessoa não habilitada ou se vale de técnica de tratamento cientificamente repudiada, dentre outros.214 2.2.1 Tutela jurídica diferenciada do contrato médico Tendo sido observada a natureza contratual da relação entre médico e paciente, tal conclusão deve ser vista com cautela quando analisada em conjunto com disposições legais 212 Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, T. 53, 2008, p.533. KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.64. 214 Op. cit., p.299. 213 73 especiais quando do tratamento específico conferido à responsabilidade médica. É importante dizer que, como será visto abaixo, a partir desse regramento específico é possível entender o porquê de a responsabilidade médica ser, ainda que contratual, subjetiva e com necessidade de prova da culpa. A responsabilidade do profissional não decorrerá, assim, da simples demonstração da ausência de resultados no diagnóstico ou tratamento, perfazidos de maneira clínica ou cirúrgica, mas dependerá da prova a ser feita pelo paciente de culpa do profissional médico, seja por negligência, imprudência ou imperícia.215 Miguel Kfouri Neto se posicionou: A responsabilidade médica é de natureza contratual. Contudo, o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar, mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão. 216 Dessa maneira, ainda que diante de um contrato, que normalmente bastaria ao credor demonstrar o inadimplemento para presumir culpa do devedor, não é o que deve ser considerado nos contratos médicos, já que, nessas hipóteses, o médico não se obriga a alcançar a cura, mas apenas a empregar diligentemente os conhecimentos técnicos, necessitando, pois, para responsabilização do profissional, a prova de que agiu com culpa, o que deverá ser produzida pelo autor. Trata-se, pois, via de regra, da assunção de obrigação de meio, e não de resultado, esta que poderá existir, excepcionalmente, como será apresentado em tópico específico. Entretanto, tal entendimento quanto à necessidade de prova da culpa do médico, mesmo em se tratando de relação contratual, decorre da própria postura adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, no artigo 14, §4º, o qual se posicionou quanto à atuação de determinados profissionais liberais que, a despeito de prestarem atividade de risco, caso do próprio exercício da medicina, não estariam sujeitos à responsabilização objetiva trazida pelo caput do artigo, entendimento que se mostra consonante com a disciplina do Código Civil, em seu artigo 951. Assim dispõe o artigo 14, caput, do Código de Defesa do Consumidor: 215 216 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.370. Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.65. 74 O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. E seu parágrafo 4º: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. O artigo 951 do Código Civil assim tratou da matéria: O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. Assim, embora seja o médico um prestador de serviços, segundo alguns posicionamentos, não deixará de responder, a princípio, mediante a verificação da culpa. Importante destacar que essa escolha do legislador se mostra condizente com o próprio exercício da profissão médica, que exige, muitas vezes, tomadas rápidas de decisão sem ao menos a possibilidade de consulta ao paciente ou aos familiares, principalmente diante de urgências que o caso concreto pode apresentar e, outrossim, trabalha com as incertezas da própria ciência médica. Ora, aplicar a responsabilidade objetiva seria um verdadeiro desestímulo à atuação do profissional, seja perante portadores de doenças graves ou não. Por isso, necessários à apuração do dano os critérios subjetivos, que não podem, em hipótese alguma, afastar o julgador da análise de todas as circunstâncias que envolvem o atendimento, como a necessidade de tomadas de decisão rápidas pelo médico em caso de urgência, das condições em que se encontrava o paciente, quais eram os recursos materiais disponíveis no momento do atendimento, a própria presteza do profissional e, por fim, e talvez a mais importante, os métodos utilizados pelo médico, se de acordo ou não com o que recomenda a ciência.217 217 NADER, op. cit., p.406. 75 Maria Helena Diniz, utilizando-se dos artigos acima mencionados – 948, do Código Civil, e 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor – também acredita que a responsabilidade dos médicos deve ser apurada subjetivamente, salvo exceções.218 Por outro lado, existem autores que se posicionam pela não aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações travadas entre médicos e seus pacientes na defesa de que não se trata de uma relação de consumo. Entretanto, a maior parte da doutrina entende pela aplicabilidade do diploma, até mesmo em razão da precisão do que dispõe em seu já citado §4º do artigo 14. Se traz uma exceção explícita apenas quanto à responsabilização dos profissionais liberais é porque os considera inseridos no seu âmbito de aplicação. De qualquer forma, vale dizer que, independentemente de aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil também trouxe a necessidade de verificação da culpa do profissional para que exista o dever de indenizar. 2.3 Natureza do contrato da relação médico-paciente Há divergência doutrinária quanto à natureza do contrato que permeia a relação entre médico e paciente. Basicamente, são duas as principais correntes: para alguns, como José de Aguiar Dias219 e Gualter Adolpho Lutz220, trata-se de verdadeiro contrato sui generis, na medida em que o médico não se mostra apenas como um consultor técnico ou como destinado apenas a executar o ato previamente estipulado, mas também representa a figura de um conselheiro e guardião do paciente e de toda sua família; para outros, trata-se de contrato de prestação de serviços.221 José de Aguiar Dias lembra que entender a relação como simples locação de serviço é desconsiderar, de maneira desatenta, “a feição especial da assistência médica”, pois o contrato 218 Op. cit., p.299. Op. cit., p.330. 220 Erros e acidentes em odontologia. Rio de Janeiro, 1938, p.44. 221 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.370. 219 76 exige “consciência profissional”, que não poderia ser alcançada pela definição da locação dos serviços.222 Paulo Nader, por outro lado, explicita dois motivos para adoção do contrato como prestação de serviços: o primeiro é o de que o contexto dos laços de amizade e orientação que antes uniam médicos e seus pacientes não se mostra mais amparada pela realidade atual que permeia a profissão, uma vez que os atendimentos médicos se mostram cada vez mais massificados pelos atendimentos ligados aos convênios de planos de saúde, que pouco valorizam a atuação do profissional, inclusive remunerando-o de maneira insuficiente. O segundo é o de que muitas vezes as orientações possam estar baseadas em interesses e conveniências, tais quais ocorrem numa relação entre fornecedor e consumidor.223 Assim, ainda que exista posicionamento em sentido contrário, o mais acertado aparentemente é que se trata de uma contrato de prestação de serviço, a uma porque relações de amizade, conselho, proteção e guarda tão antes presentes em ralações entre médico e pacientes de mais a mais se mostram raras na atualidade e, a duas, pela aplicação à espécie, como discutido alhures, o Código de Defesa do Consumidor, motivo pelo qual, supostamente, perdeu a discussão razão de ser.224 2.4 Deveres do profissional na relação médico-paciente e condutas inapropriadas Analisados o objeto do contrato médico-paciente e sua natureza jurídica, e vista a natureza jurídica da responsabilidade civil médica, cabe agora estudar os deveres de ambas as partes desse contrato: médico e paciente. Não há dúvida de que numa relação entre médico e paciente vários são os cuidados que devem ser tomados por ambas as partes para a melhora sensível da possibilidade de se alcançar o resultado esperado e pretendido. 222 Op. cit., p.330. Op. cit., p.407. 224 CAVALIERI FILHO, op. cit., p.371. 223 77 Em relação ao médico, conforme já exposto, ficou evidenciado uma dos maiores empenhos que deve ter em relação ao paciente, qual seja o agir com cuidado e diligência no desenvolver de suas atividades, seguindo-se, assim, os ditames consagrados pela ciência médica. Mas não é só. José de Aguiar Dias expõe outras obrigações que estariam implícitas do contrato médico: conselhos, cuidados, obtenção do consentimento, abstenção de uso ou desvio de poder e dever de sigilo.225 2.4.1 Dever de conselho O dever de conselho se refere à necessidade de o médico instruir a pessoa sob seus cuidados sobre as precauções indispensáveis que devem ser tidas diante do estado em que se encontra. Há infringência a esse dever quando o médico não recomenda uma internação necessária, por exemplo, ou quando não alerta seu paciente sobre algum procedimento que deve ou não pode ser realizado em seu domicílio.226 Ainda incorre nessa infração o médico que não adverte seu paciente dos riscos de intervenções e tratamentos, traduzindo-se, assim, num verdadeiro dever de informação, que não pode ser negligenciado, tomando maior importância de acordo com o perigo da intervenção.227 Em que pese existir uma grande discussão a respeito dos limites ao dever de informação, principalmente ligados a aspectos do estado emocional e da psique do paciente, bem ainda da dificuldade técnica, muitas vezes, em compreender os detalhes procedimentais, o mais correto, quanto a isso, aparentemente está nos ensinamentos de René Savatier: não deve haver tratamento perante o paciente que não esteja dotado da razão e da liberdade, e a dificuldade de explanação técnica não pode se mostrar como um entrave para o mínimo aconselhamento dos eventuais riscos do tratamento. Por fim, ainda que a moral impeça o profissional de informar ao paciente sobre as conduções de seu tratamento, situação que de 225 Op. cit., p.337. Ibid., p.337. 227 Ibid., p.337. 226 78 acordo com o que a ciência médica recomenda deve ser vista como muita cautela, os membros da família com autoridade sobre o doente devem ter informações completas.228 Inclusive o artigo 34, do Código de Ética Médica dispõe que é vedado ao médico: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. Por outro lado, aparentemente claro está que o discutido acima não se aplica aos casos de cirurgia estética, situação que exige a maior exaustividade possível de informações prestadas pelo médico, não só em relação aos riscos da cirurgia, mas também em relação aos medicamentos e procedimentos necessários.229 2.4.2 Dever de cuidado Quanto ao dever de cuidado, trata-se da impossibilidade da prática de abandono do paciente pelo médico, infração que pode ocorrer, por exemplo, se o profissional não atende ao chamado do enfermo. Por outro lado, para se caracterizar a infração, deve existir no acordo entre as partes entendimento no sentido ou haver necessidade de atendimento no caso concreto, de acordo com a moléstia sofrida pelo paciente.230 Outro caso de violação ao dever contratual implícito de cuidado ocorre quando o médico negligencia o doente que, em virtude de seu estado, morbidez, impossibilidade de se autodeterminar ou inconsciência pela anestesia, por exemplo, pode causar danos a si mesmo, os quais, se verificados no caso concreto, geram o dever de reparar do profissional. Lembrese, outrossim, que diante da infringência ao dever imposto, o médico pode responder não só pelos danos que o paciente vier a sofrer, mas também pelos que vier a causar a terceiros.231 228 Op. cit., nº 782, p.398. AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista Dos Tribunais, Vol. V, 2010, p.512. 230 DIAS, op. cit., p.338. 231 Ibid., p.339. 229 79 2.4.3 Obtenção de consentimento A terceira obrigação implícita do contrato médico, segundo José de Aguiar Dias, se refere à necessidade da obtenção do consentimento do paciente pelo médico para qualquer intervenção ou tratamento de risco, lembrando que, via de regra, toda operação envolve risco. Assim, o dever abarca não apenas uma resposta positiva do paciente, mas uma vontande livre e consciente de se submeter ao procedimento depois de receber todas as explanações sobre seus riscos e possíveis consequências.232 A regra, evidentemente, é excepcionada para os casos de urgência e, diante dela, pelos prejuízos que podem ser causados ao paciente, o médico está autorizado a agir sem seu consentimento. José de Aguiar Dias expõe esta e outras hipóteses em que seria incompatível com a realidade exigir o consentimento do paciente: (...) a) quando se trata de alienado ou de menor: o consentimento não pode, evidentemente, ser obtido deles, mas sim das pessoas sob cuja guarda estejam; b) quando a operação ou tratamento se imponha como decisão de emergência, em face do estado de necessidade ou de situação de perigo; se é possível obter o consentimento dos parentes da pessoa em iminente perigo de vida, é claro que o médico não agirá sem o haver obtido; c) quando em face do propósito suicida do paciente: o médico não poderia, decerto, ater-se à consideração da vontade de quem manifesta claramente não a possuir, intentando um gesto que se considera como revelador de perturbação mental.233 Saliente-se, desde já, que a aquiescência não pode ser dada minutos ou até mesmo horas antes da intervenção, na medida que a vontade do paciente deve ser construída ao longo de um período de internalização e sopesação de todo o conjunto de informações, podendo buscar outras fontes e motivos para a sua tomada de decisão. Um parco espaço de tempo ou, ainda, a pressão do procedimento, não seria capaz de lhe oferecer tal gama de liberalidade ou, pior, viciar-lhe-ia o consentimento. 232 233 Op. cit., p.340. Ibid., p.341-342. 80 José de Aguiar Dias, ainda, lembra quais são os procedimentos que necessitam do consentimento prévio: operações cirúrgicas, anestesias, inoculação de vírus ou sérum, tratamentos à base de eletricidade ou radiologia e, por fim, em tudo o mais que possa oferecer perigo real.234 Para os demais casos, em que o médico dispense a obtenção do consentimento por achá-lo desnecessário diante da ausência de contra-indicações, não há falta de advertência da sua parte, dada a dispensabilidade do tratamento que não apresenta inconvenientes. Se, entretanto, sobrevierem resultados inesperados e indesejados, a responsabilidade do profissional se dará pela análise da culpa, vista sob o ângulo de fatos que poderiam ocasionar o resultado danoso, em virtude de uma consequência normalmente não observada, e não pela simples ausência de consentimento.235 Quanto a isso, Pontes de Miranda lembra: “o consentimento não afasta a responsabilidade do médico por seus erros, ou descuidos, inclusive quanto ao diagnóstico”236 Como assevera José de Aguiar Júnior, se a intervenção, que era imprescindível, causou dano, pouco importa a falta de informações ao paciente e, consequentemente, do consentimento, a não ser para o pleito de danos morais, que ainda assim poderiam se configurar; se o procedimento, diferentemente, era dispensável, o total esclarecimento do paciente é de suma importância, já que de acordo com elas decide correr ou não o risco.237 Por outro lado, existem determinados casos em que, mesmo tendo sido o paciente informado dos riscos da operação e ainda assim tenha decidido correr o risco, não pode o médico, de maneira alguma, eximir-se de responsabilidade sob argumentação de ter cumprido o dever de informação: são aqueles em que existe excessiva desproporção entre as vantagens e desvantagens ou riscos de se submeter ao procedimento, como no caso da cirurgia estética. Nesse casos, deve o médico se recusar a realizar a cirurgia.238 Miguel Kfouri Neto, no mesmo sentido, entende que se o médico decide prosseguir com a cirurgia mesmo sabendo que os riscos que o paciente corre são desproporcionais em relação aos benefícios vindouros pelo procedimento, nem a comprovação de causa adversa 234 Op. cit., p.341. Ibid., p.340. 236 Op. cit., p.534 237 Op. cit., p.512. 238 DIAS, op. cit., p.342. 235 81 estaria apta a elidir sua responsabilidade. Assim, ainda que tenha informado o paciente sobre tais riscos e mesmo tendo obtido seu consentimento expresso, será o médico responsável pelos danos.239 Para José de Aguiar Dias, o médico deve recusar-se, ainda que reconhecida a necessidade da cirurgia, a realizar o procedimento se este é desproporcional em relação aos perigos e benefícios que trará ao paciente. Completa, ainda, ser impossível não atribuir ao profissional responsabilidade pelo eventual dano ocorrido em cirurgia estética contrária ao preceituado acima, de modo que sempre estaria ele obrigado a produzir prova de que a operação, uma vez realizada normalmente, não ofereceria riscos desproporcionais aos fins pretendidos.240 Henri Mazeaud, Léon Mazeaud e Jean Mazeaud partilham da mesma ideia ao lembrarem que, em se tratando de ato cirúrgico perigoso com fins meramente estéticos, ainda que exista não apenas informação ao paciente, mas também seu consentimento expresso, aceitando os riscos e suplicando ao médico a intervenção, não há a possibilidade de se afastar a ilicitude do ato cometido pelo cirurgião.241 De qualquer modo, tamanha a importância da obtenção do consentimento, obrigação a ser observada pelo médico, que, hoje, fala-se em consentimento esclarecido. Genival Veloso de França assim define o termo: (...) o obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar razoavelmente uma proposta ou uma conduta médica, isenta de coação, influência ou indução.242 Complementa, ainda, lembrando que deve ser desconsiderado o consentimento obtido pelo singelo ato de assinatura do formulário escrito com textos minúsculos e lido de maneira apressada momentos antes do procedimento médico, pois existe a real necessidade de uma linguagem acessível ao nível de conhecimento e compreensão do paciente, imperativo do princípio da informação adequada.243 239 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.172. Op. cit., p.379. 241 Traité theórique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. 6. ed. Paris: Montchrestien, T. II, 1970, p.603. 242 Op. cit., p.210. 243 Ibid., p.210. 240 82 Assim, o consentimento esclarecido vai além do simples informar ao paciente, ou tomar o médico sua anuência por meio de formulário técniccos e muitas vezes difícieis de serem entendidos; é o ter certeza de que o paciente tem a exata noção do que lhe pode acontecer, com segurança e confiança, utilizando, o médico, para tanto, de liguagens menos técnicas e conferindo tempo suficiente para o discernimento. Para Edmilson de Almeida Barros Júnior, a ausência da obtenção do consentimento é afronta à autonomia da vontade do paciente e aos seus direitos de personalidade, sendo que o verdadeiro consentimento se baseia em escolhas tomadas a partir de informações claras e precisas, para uma avaliação consciente de todas as opções e riscos. Considerando que o paciente tem pouco ou nenhum conhecimento da técnica médica, é dever de seu médico guiálo na tomada de uma decisão esclarecida.244 2.4.4 Abstenção de abuso ou desvio de poder Por seu turno, o dever de abstenção de abuso ou de desvio de poder se refere à vedação de o médico praticar experiências médicas sobre o corpo humano, a não ser no ímpeto de frear mal que acomete o paciente de riscos à sua vida ou integridade. Ainda que aja desinteressadamente, a responsabilidade do médico por violação a esse dever persiste. 245 René Savatier lembra que a vedação persiste até mesmo com o consentimento do paciente, pois ainda assim a intervenção experimental não se justificaria diante da ausência de benefícios à saúde do paciente246, mas, pelo contrário, poderia colocá-lo em risco. Nesse mesmo sentido, está o médico proibido de extrapolar os limites contratuais estabelecidos; logo responderia por eventuais danos decorrentes da recusa em chamar médico especialista a pedido do doente ou de sua família ou, ainda, se o médico assistente se recusar a cumprir determinação do médico especialista, salvo expressa autorização contratual em poder fazê-lo.247 244 Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.36. DIAS, op. cit., p.343. 246 Op. cit., nº 787, p.404. 247 DIAS, op. cit., p.344. 245 83 Não só o contrato, mas também não pode violar a lei, podendo ser administrativamente ou penalmente responsabilizado e, ainda, obrigado a reparar os danos decorrentes. Tal violação pode ocorrer, por exemplo, se se valer de auxiliares não habilitados, praticar aborto em casos não permitidos pela legislação e receitar substâncias tóxicas que satisfaçam o vício do paciente. Segundo José de Aguiar Dias, estaria caracterizada presunção de culpa do médico pelas lesões causadas ao seu paciente em se tratanto de exercício ilegal da medicina.248 2.4.5 Dever de sigilo Já o dever de sigilo se mostra como outra importante obrigação constante do contrato médico. Por ela, restringe-se a atuação do profissional no sentido de não divulgar informações relativas aos seus pacientes a outrem, admitindo-se, quando muito, informações genéricas em situações especiais, como quando envolver pessoas públicas, por exemplo.249 O Código de Ética Médica tem, em seu capítulo I, como princípio fundamental, o sigilo: “XI – o médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.” Mas vai além e dedica um capítulo inteiro ao tema, tamanha sua importância. Trata-se do capítulo IX, que contempla os artigos 73 a 79. Em suma, o sigilo médico é o verdadeiro guardião da confiança que permeia a relação entre o médico e paciente, na medida em que, não há como se negar, aquele se torna um confidente deste, obrigando-se, então, a manter sigilo das informações obtidas pela sua atuação profissional. Desnecessário mencionar, assim, que, se houver desrespeito a essa confiança, caracterizado estará o dano moral e talvez até mesmo danos patrimoniais de difícil cálculo.250 248 Op. cit., p.344. Ibid., p.346. 250 BARROS JÚNIOR, Edmilson de Almeida. Código de ética médica comentado e interpretado (resolução CFM 1.931/2009). São Paulo: Atlas, 2011, p.66-67. 249 84 Pontes de Miranda comenta que, na verdade, o dever do médico é de discrição, ainda mais amplo que o dever de sigilo, na medida em que o profissional não pode divulgar até mesmo os fatos que teve conhecimento pelo paciente não necessariamente ligados ao exercício da profissão.251 Para Genival Veloso de França, a quebra do sigilo profissional é grave ofensa à liberdade do indivíduo, agressão a sua privacidade ou mesmo atentado ao exercício da sua vontade, podendo ainda ser considerado como cospiração à ordem pública e aos interesses coletivos.252 Ora, intimidade e privacidade do paciente, como regra, não podem ser violadas. Tratase de verdadeiro pilar constitucional trazido pelo artigo 5º, inciso X: São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelos danos material ou moral decorrente de sua violação. Evidentemente, assim como os demais princípios constitucionais, o sigilo não é absoluto, podendo ser mitigado se sopesado em ralação a outros deveres do profissional. São três, taxativamente, as situações em que o sigilo pode ser quebrado: dever legal, justa causa e autorização expressa, prévia e por escrito do paciente ou representante legal. O dever legal é a necessidade de revelação do segredo em virtude de determinação expressa legal; são os casos de de doenças com notificação compulsória, mormente ligados a saúde pública ou deveres sociais, como suspeitas de maus-tratos a crianças e idosos. Já a justa causa caracteriza-se se a revelação do segredo for o único meio apto a afastar perigo injusto e atual ou iminente que recaia sobre o profissional ou terceiros.253 Genival Veloso de França lembra que hodiernamente o sigilo médico não se reveste mais da sacralidade e inviolabilidade da confissão, mas constitui instrumento social em favor do bem comum e da ordem pública. Logo sua revelação em situações justificáveis não podem 251 Op. cit., p.536. Op. cit., p.131. 253 BARROS JÚNIOR, Código de ética médica 2010 comentado e interpretado (resolução CFM 1.931/2009), op. cit., p.67-68. 252 85 configurar infrações éticas ou legais, principalmente em situações que envolvam a proteção de um interesse contário superior.254 Não se deve esquecer, entretanto, que, com exceção das hipótes mencionadas, a quebra do sigilo será vista como falta de ética profissional, podendo gerar responsabilizações administrativas, cíveis e até mesmo penais do profissional médico e de todos os outros funcionários administrativos ou que manuseiem as informações de alguma forma em razão do ofício ou profissão.255 É o que se pode inferir do entabulado no artigo 154, do Código Penal, tipificando como conduta criminosa a violação de segredo profissional: Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Além desses verdadeiros deveres do profissional enumerados por José de Aguiar Dias, Genival Veloso de França frisa a importância de outro: é o dever de atualização.256 Segundo o doutrinador, a simples habilitação legal não é requisito único para o regular exercício da profissão. Manter-se atualizado e num aprimoramento continuado, como adquirir constantemente o conhecimento de técnicas de exame e meios de tratamento mais recentes é condição essencial ao bom exercício médico. Lembre-se que avaliações em juízo do profissional podem ser feitas, buscando-se se agiu com a falta de conhecimentos ou habilidades.257 2.4.6 Condutas inapropriadas Genival Veloso de França ainda enumera de maneira sistemática quais são algumas condutas inapropriadas que pode o médico cometer e que representam fatores de risco contribuidores de maneira significativa para um possível e futuro mau resultado da intervenção: relação médico-paciente desgastada; a falta de condições adequadas de trabalho; 254 Op. cit., p.131. BARROS JÚNIOR, Código de ética médica 2010 comentado e interpretado (resolução CFM 1.931/2009), op. cit., p.69. 256 Op. cit., p.212. 257 Ibid., p.212. 255 86 o abuso de poder, ou seja, precipitação, inoportunismo ou insensatez da conduta; a falsa garantia de resultado; a falta de consentimento esclarecido; o preenchimento inadequado de prontuários; a precária documentação dos procedimentos realizados, dentre outros. Tais fatores mostram desde já sua íntima relação com os deveres dos médicos que, quando cumpridos, podem significar sobremaneira a redução de maus resultados em intervenções médicas.258 Em relação aos prontuários, por oportuno lembrar Edmilson de Almeida Barros Júnior no sentido de que tudo o que envolva o paciente deve estar documentado de forma exaustiva no prontuário, pois se trata de elemento primordial da demonstração da verdade, fator buscado pelas cognições judicias. Destarte, não se pode considerar o prontuário como mera burocracia, devendo ser formulado sempre com vistas a possíveis implicações de ordem técnica, ética ou até mesmo legal, situações em que o documento carregará consigo valor probatório fundamental.259 2.5 Deveres e direitos do paciente A análise da responsabilidade civil do médico, muitas vezes, pode levar o estudioso a incorrer no erro não incomun de acreditar que apenas o médico, como agente ativo em relação ao tratamento, tem deveres. Tal equívoco é facilmente percebido quando se nota que o paciente é sujeito diretamente envolvido no seu próprio tratamento. Dessa maneira, antes de mais nada, o paciente tem o dever de remunerar o médico, de acordo com o estipulado no contrato de prestação de serviço, seja ele realizado por escrito ou verbalmente. Importante lembrar que tal remuneração pode se dar de maneira direta, com 258 259 Op. cit., p.243-244. Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.111. 87 recursos próprios do paciente oferecidos ao médico, ou indireta, para os casos em que o paciente se vale de sua condição de usuário do Sistema Único de Saúde, por exemplo.260 Outrossim, a segunda obrigação do paciente em relação médico, mais importante que a primeira para o presente estudo, já que reflete diretamente sobre o tema de responsabilidade civil do profissional, é o dever de seguir todas as recomendações terapêuticas e conselhos dos profissionais, tais como prescritos, pois isso refletirá diretamente no resultado do tratamento.261 Não se pode esquecer que a constatação de o paciente ter seguido ou não as recomendações do médico é premissa básica para apuração de responsabilidade deste. Se o paciente não se mostrou comprometido em seguir o que lhe foi prescrito, torna-se praticamente impossível aferir se, em caso de não se obter o resultado esperado pela intervenção médica, a culpa foi efetivamente do médico ou do paciente. Inclusive, o descumprimento de qualquer um dos deveres impostos ao paciente significa resilição do contrato, podendo o médico abster-se de continuar o tratamento.262 Vale lembrar que o não cumprimento pelo paciente das recomendações médicas pode significar rompimento do nexo de causalidade entre conduta e dano, seja por culpa exclusiva da vítima ou por culpa concorrente, esta difícil de ser caracterizada na prática médica. De qualquer modo, Maria Leonor de Souza Kühn lembra que, em se tratando de causa concorrente, pode haver a diminuição da responsabilidade do agente.263 Nesse mesmo sentido, não pode também o paciente omitir aspectos da sua vida e de seus parentes, devendo prestar informações que entender necessárias e as solicitadas pelo médico com toda a fidelidade, pois somente assim poderá o médico receitar o tratamento adequado à circunstância.264 Noutro giro, como é cediço, ao paciente são assegurados alguns direitos essenciais à sua condição, tais quais já tratados alhures quando das obrigações implícitas ao contrato médico. 260 MÉMETEAU, Gérard; MÉLENNEC, Louis. Traité de droit médical. Paris, Maloine, 1982, T. 2, p.14-15, apud KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p. 28. 261 Ibid., p. 28. 262 Ibid., p. 28. 263 Responsabilidade civil: a natureza jurídica da relação médico paciente. Barueri: Manole, 2002, p.30. 264 ALCÂNTARA, Hermes Rodrigues de. Responsabilidade médica. Rio de Janeiro: José Konfino, 1971, p. 79. 88 O primeiro direito, base da relação entre o médico e o paciente, é o relacionado à confiança que este deve ter sobre aquele, pois, segundo Hermes Rodrigues de Alcântara, ante a ausência de confiança, dificilmente haverá êxito no procedimento. Assim, o paciente tem não só o direito de confiar no médico escolhido, mas também de dele desconfiar se julgar que é caso.265 O direito à informação merece outras considerações. Lembre-se que o tema é amplamente discutido pela doutrina atual, procurando definir quais são os limites do dever de informação na relação médico-paciente. É certo que tal discussão não será aprofundada para os fins dedicados por esse estudo, entretanto, tal aspecto se revela como um verdadeiro direito do paciente, na medida em que, para tomar todas suas decisões de maneira livre e consciente, deve ter pleno conhecimento sobre tudo aquilo que envolve o seu caso. Ernst Christian Gauderer aponta que é direito do paciente obter todas as informações que envolvam o seu caso de alguma forma, de maneira legível e, inclusive, cópias de sua documentação, como prontuários, exames – desde raios X a anotações de enfermagem –, laudos diversos e avaliações realizadas.266 Nesse sentido, quanto à importância do paciente ter conhecimento sobre tudo aquilo que envolve os aspectos do seu tratamento, ela pode ser também explicitada por meio do mecanismo criado pelo ordenamento jurídico para possibilitar o seu alcance aos documentos necessários para tanto: trata-se do habeas data. Ernst Christian Gauderer lembra que o cabimento do habeas data só é possível em razão de as informações sobre a saúde pertencerem ao próprio paciente, não ao médico ou ao hospital: O paciente ou o seu responsável têm o direito de saber todos os dados a respeito do seu corpo, de sua saúde ou de sua doença, uma vez que esse corpo, essa saúde e inclusive a doença lhe pertencem, e não ao médico. O paciente permite ao médico ou ao profissional de saúde lidar com ele, mas não lhe outorga necessariamente o direito de, unilateralmente, na maioria das vezes, decidir por ele.267 Hermes Rodrigues de Alcântara volta à ideia já colocada quanto ao dever de informação posto ao médico em relação ao seu paciente quando se refere ao consentimento. A integridade corporal é intangível e constitui princípio não só jurídico, mas também filosófico 265 Op. cit., p. 78. Os direitos do paciente. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.47 e seguintes. 267 Ibid., p.47. 266 89 essencial. Nesse sentido, não basta a simples liberdade conferida ao paciente para tomar suas decisões, mas precisa ser capaz de entender e avaliar a situação como um todo, inclusive quanto às possíveis consequências que podem decorrer da atitute tomada.268 Mas não é só: Ernst Christian Gauderer aponta como direito do paciente a ampla gravação de atos cirúrgicos e demais procedimentos médicos para posterior análise e melhor aferição do que lhe foi dito, até mesmo para evitar interpretações equivocadas de tudo o que é feito ou discutido durante a relação médico-paciente; isso serve para melhorar inclusive o amadurecimento emocional a respeito de se sujeitar ou não a determinado procedimento médico, já que a situação fora do consultório pode favorecer a compreensão269. Em bem da verdade, o ponto-chave da questão não é descobrir se, cada dia mais, há maior ingerência por parte do paciente em relação ao médico, mas o fato é que o paciente está se valendo de todos os artifícios que lhe estão disponíveis para coibir com todas as forças erros cometidos pelos profissionais da saúde. 2.6 Obrigação de meio e resultado Vistas todas as obrigações que incumbem a cada uma das partes no contrato médico, cumpre estudar, para fins de apuração da responsabilidade do profissional, qual o tipo de obrigação assumida por ele, ou seja, se ela tem caráter de meio ou de resultado. A distinção entre obrigação de meio e de resultado é atribuída ao jurista francês René Demogue.270 Na obrigação de meio, o profissional assume a obrigação de empreender todos os seus esforços com intutito de alcançar o resultado esperado, sem, no entanto, garanti-lo. Obriga-se, assim, a utilizar a melhor técnica e todo o cuidado e diligência na realização de sua 268 Op. cit., p. 77. Op. cit., p.22 270 DEMOGUE, René. Traité des obligations em general. Paris: Librairie Arthur Rousseau, T. 5, 1925, nº 1.237, p.537 e seguintes, apud LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, p.186. 269 90 atividade na tentativa de alcançar determinado resultado, o qual não se sabe se será desfrutado ou não.271 Por outro lado, a obrigação de resultado impõe ao profissional o dever de atingir determinado resultado ajustado com o paciente, sem o qual não terá adimplido a obrigação assumida.272 Na grande maioria das obrigações assumidas pelos médicos, vê-se que são obrigações de meio, na medida em que, mesmo utilizando a melhor técnica e o melhor empenho, não garantem o resultado. A partir disso, tem-se por essencial a busca incessante do profissional pelo diagnóstico do paciente, ou seja, análise clínica que concluirá pelo estado sadio ou doentio e, assim, apontar a necessidade do tratamento específico ou não.273 As maneiras para apuração do estado clínico do paciente são muitas e vão desde a própria experiência do médico até a necessidade de exames laboratoriais. Assim, o médico, ao prescrever o tratamento, deve se ater à melhor solução para o caso concreto, situação em que não poderá ser responsabilizado, ainda que sobrevenha insucesso do procedimento realizado. Se o médico, entretanto, optou pelo tratamento não mais adequado ao caso, deve ser responsabilizado, uma vez que agiu com culpa baseada na imperícia.274 Entender o contrário seria cair no absurdo de responsabilizar médicos que não curam seus pacientes em situações de doenças incuráveis ou ligadas ao próprio organismo humano, que é imprevisível, o que não condiz com a própria atuação do profissional dessa área. É preciso lembrar que o médico age na tentativa de livrar o seu paciente de agruras e doenças, bem ainda, em determinados casos, postergar-lhe a vida, mas não garante a cura, tampouco a vida eterna. Logo, não há falar-se em inadimplemento contratual pelo não alcance da cura ou do resultado esperado com o tratamento. Entretanto, existem outros tipos de obrigações assumidas pelos médicos que ganham maior destaque pela doutrina e jurisprudência em razão da diculdade em classificá-las como de meio ou de resultado. Trata-se da cirurgia estética, que, segundo Miguel Kfouri Neto, tem 271 LOPES, Curso de direito civil: fontes acontratuais – responsabilidade civil, p.187. Ibid., p.187. 273 LOPEZ, O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.53. 274 NADER, op. cit., p.410. 272 91 como gênero a cirurgia estética propriamente dita, e como espécies desta a cirurgia de caráter estritamente estético e a cirurgia estética “lato sensu”.275 Para o autor, a cirurgia de caráter estritamente estético é aquela realizada com intenção única e exclusiva do paciente de promover alteração física, com fim puramente embelezador, no próprio corpo, este que não apresenta qualquer imperfeição; o que se busca, desse modo, é tornar uma parte do corpo que não destoa das demais ainda mais bela. De se notar que tal cirurgia apresenta um grande risco para o paciente, pois o médico pode lesionar aquilo que já se encontra em perfeitas condições, motivo pelo qual o profissional se obriga ao resultado, submetendo-se à presunção de culpa pelo eventual dano causado e ao ônus de prova para eximir-se de responsabilidade.276 Por outro lado, a cirurgia estética “lato sensu” não apresenta grandes riscos ao paciente, na medida em que busca a correção de pequena deformidade física congênita causadora de incômodo de ordem psíquica à pessoa. Seria o caso do paciente de rosto belo mas que apresenta um nariz irregular e destoante do conjunto. Realizado o procedimento, não estaria o médico obrigado a atingir resultado específico, mas apenas a empregar todo o cuidado e diligência próprios da profissão. De todo modo, ainda que possa se tratar de uma valoração subjetiva do paciente quanto aos resultados277, nada impede que ingresse com um pedido para o julgador analisar a situação.278 Diferenciam-se, de plano, da cirurgia plástica reparadora, que ocorre na busca pelo profissional em reverter enfermidade física de origem congênita ou traumatológica; assim, a obrigação assumida é a de meio, pois não poderia o cirurgião ser responsabilizado em não ter conseguido alcançar o resultado, mesmo que tenha utilizado toda a técnica recomendada pela medicina.279 O certo é que a doutrina e jurisprudência pátria não subdividem a cirurgia estética propriamente dita e acabam por considerá-la como uma só, sendo que, em se tratando de 275 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. Ibid., p.175. 277 VERÓN, Michel. Traté de droit médical. Paris: Maloine, T. 3, 1984, p.27-28 apud KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. 278 KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.175. 279 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. 8. ed. São Paulo: Saraiva, Vol.II, 2007, p.97. 276 92 cirurgia plástica com fins exclusiva ou preponderantemente embelezadores, são consideradas não como obrigações de meio, mas de resultado. Genival Veloso de França divide as cirurgias plásticas em reparadora ou restauradora e estética. Em relação às primeiras, defende a ideia de se tratarem de obrigações de meio, na medida em que o cirurgião da especialidade enfrente momentos de complicação e delicadeza pecualiar, principalmente diante de situações de urgência e emergência, quando são enfrentadas condições excepcionais e precárias, tal como a dramática eminência de morte.280 No mais, considerando tudo o que foi explanado sobre as obrigações de meio, em que há apenas o comprometimento do profissional em empregar todos os esforços ao alcance da ciência médica e de recursos existentes para o alcance de um resultado, sem, no entanto, garanti-lo, não teria como afastar tal modalidade de obrigação do cirurgião plástico no ato reparador ou reconstrutor, pois o objeto do contrato é a assitência ao paciente, mas nunca a garantia do resultado. Segundo o doutrinador, entender o contrário seria não considerar a própria função da cirurgia reparadora, qual seja não a simples atribuição ao paciente de uma aparência de normalidade, mas salvar, recuperar ou reconstruir órgãos. E mais: não em uma situação quotidiana, mas levando em consideração todas as condições fisiológicas e patológicas do paciente, bem ainda as limitações impostas pela ciência médica.281 Isso não significa, entretanto, que o cirurgião reparador não cometa erros ou incorra em condutas prejudiciais culposas ao paciente, como em qualquer outro procedimento médico, seja no diagnóstico, terapias ou técnicas, mas, conforme visto, não pode ser considerada como obrigação de resultado.282 Situação diferente é encontrada na cirurgia plástica estética, em que, para Genival Veloso de França, existe uma tendência de se aceitar tal obrigação como de resultado sob o argumento de que ninguém, gozando de boa saúde, procuraria um médico unicamente pelo intuito de melhor aspecto seu se não lhe fosse garantido certo resultado.283 280 Op. cit., p.270. Ibid., p.270-271. 282 Ibid., p.271. 283 Ibid., p.272. 281 93 Evidentemente, existe corrente minoritária no sentido de que a cirurgia estética se insere nos mesmos moldes de quaisquer outras atividades médicas, devendo o cirurgião estético receber tratamento semelhante a qualquer profissional da área.284 Genival Veloso de França lembra que a jurisprudência francesa, por exemplo, quando se pronunciou sobre os primeiros casos dessa natureza, era pouco favorável aos médicos, e considerava culpável todo e qualquer dano proveniente da modalidade de cirurgia estética, considerando, inclusive, dispensável a análise de imprudência, imperícia ou negligência do profissional, salvaguardando a vida e a saúde do paciente praticamente sob o véu de uma responsabilidade objetiva.285 De qualquer forma, os tribunais pátrios, conforme será observado quando da análise jurisprudencial, parecem dividir de maneira estanque as cirurgias plásticas entre reparadoras (ou reconstrutoras) e em estéticas, considerando, de forma geral, as primeiras como obrigação de meio e a segunda como obrigação de resultado286. Genival Veloso de França, por seu turno, deixa clara a tese de que independentemente da forma de obrigação assumida, seja de meio ou de resultado, o que deve ser apurado após o surgimento do dano é a responsabilidade, que levará em conta grau de culpa, nexo de causalidade e dimensão do dano. Obrigação de meio e de resultado definem apenas o ônus probatório.287 Neri Tadeu Câmara de Souza também já se pronunciou quanto ao tema: E, não resta dúvida, sendo uma obrigação de meios (é a unanimidade na doutrina e jurisprudência brasileiras) aquela através da qual o médico contratou com o paciente, cabe ao médico agir com diligência e prudência, dentro da "lex artis", para que tenha adimplido com aquilo pelo qual se obrigou. Ou seja, deve atuar dentro da melhor técnica compatível ("estado da arte") com o local e tempo do atendimento médico que realizar. A cura não pode ser o objetivo maior devido à característica de imprevisibilidade do organismo humano – mormente em estado de doença, o que se reflete em limitações no exercício da medicina. Já não se pode dizer o mesmo quando estivermos frente a um atendimento médico por ocasião de uma cirurgia plástica estética (para os casos de cirurgia plástica reparadora cabe a afirmação de caracterizar-se como uma obrigação de meios). A doutrina e a jurisprudência 284 KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.159. Op. cit., p.272. 286 Vale lembrar que no caso de cirurgias plásticas que têm como finalidade sanar deformidade oriunda de outra cirurgia plástica a obrigação assumida é de meio e não de resultado. 287 Op. cit., p.272. 285 94 brasileira são unânimes, pelo menos até o presente momento, em considerar os casos de cirurgia plástica estética como um contrato cujo objeto é uma obrigação de resultado.288 Para Flávio Murilo Tartuce Silva, a questão vai além da presunção de culpa do médico, pois não mais se está no campo da verificação subjetiva da responsabilidade do cirurgião, mas, sim, de acordo com outros posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, trata-se de responsabilidade objetiva do cirurgião estético.289 Para Nehemias Domingos de Melo, predomina na doutrina e jurisprudência nacionais o entendimento amplamente majoritário, referindo-se até mesmo numa unanimidade, de que cirurgias plásticas estéticas são obrigações de resultado, baseando-se, para tanto, numa lógica de tratamento diferenciado pelo fato de um paciente saudável sujeitar-se ao procedimento para melhor sua aparência. Existe, pois, um fim determinado e definido de maneira clara, aceito pelo médico, que está adstrito ao resultado e, se não alcançá-lo, apenas se exonerará de responsabilidade, se provar, a seu encargo – independenetemente da possibilidade de inversão do ônus probatório admitido pela lei consumerista – caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro. Diferencia, por fim, o tratamento que deve ser dada à cirurgia reparadora, a qual se insere dentre as obrigações de meio em razão da busca por correções de lesões congênitas ou adquiridas, e não pela simples melhora na aparência.290 Para Caio Mário da Silva Pereira, outrossim, a cirurgia estética encerra obrigação de resultado, não de meio, pois para o autor não há enfermidade, mas apenas a busca para a correção de uma imperfeição, devendo o profissional, dessa maneira, se recusar a relaizar o procedimento se não tem condições de alcançar o resultado.291 Rui Stocco, por seu turno, seguindo a mesma linha se Silvio Rodrigues, José de Aguiar Dias e Caio Mário da Silva Pereira, vê a cirurgia estética como obrigação de resultado e acredita ser difícil sustentar a tese de que na verdade encerra obrigação de meio, em primeiro lugar porque o resultado é peculiar ao tipo de intervenção cirúrgica e, em segundo lugar, porque a propaganda é tão massiva em cima do embelezamento pessoal e dos 288 Responsabilidade civil do médico. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2582/responsabilidadecivil-do-medico>. Acesso em: 07 mai. 2013. Acessado em 7 mai. 2013. 289 Informação fornecida por Flávio Murilo Tartuce Silva em aula ministrada on-line no curso LFG. Acesso em 16 jul. 2013. 290 Responsabilidade civil por erro médico: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2008, p.71. 291 Responsabilidade civil, op. cit, p.169. 95 excelentes resultados que tais operações causam, que deixam evidente a expectativa de resultado.292 Orlando Gomes também vê a cirurgia estética como obrigação de resultado, já que, tendo o médico prometido determinado resultado ao paciente, o adimplemento do contrato apenas se dará quando do alcance do resultado. Não alcançado o resultado, indubitável o dever de indenizar, a não ser que prove ter o malogro ocorrido por fatores alheios ao seu bom procedimento.293 Lembre-se que, basicamente, como já dito, o principal argumento para aqueles que defendem a cirurgia plástica como obrigação de resultado é o de que ninguém se submeteria, plenamente são e saudável, a procedimento que poderia vir a piorar-lhe a situação; por isso a necessidade de certeza do resultado, tal quel acordado com o médico. Para Miguel Kfouri Neto, então, este é o grande mote de inúmeros julgados que vão de encontro ao explicitado, que ainda se impressionam com o fato de pessoas que têm leves incorreções, com as quais poderiam perfeitamente conviver durante toda a vida, acabam, no caso de insucesso da cirurgia, com aleijões irrecuperáveis.294 Por outro lado, observando-se doutrinas estrangeiras, julgados e posicionamentos pátrios, a “unanimidade” apresentada por Neri Tadeu Câmara de Souza e Nehemias Domingos de Melo parece não ser tão contundente. É o caso de Luís Andorno, jurista argentino que vê, principalmente em razão do comportamento da pele humana, a imprevisibilidade em toda e qualquer intervenção cirúrgica; logo, não estaria o cirurgião plástico adstrito a um resultado, mas tão-somente em empregar as técnicas e meios adequados para obtenção do melhor resultado possível.295 Destarte, aponta, cada vez mais tem ganhado força a tese de que cirurgias plásticas estéticas não são meras futilididades modernas, mas têm finalidades terpêuticas e curativas; não apenas do corpo, é certo, mas nas interferências que este causa no equilíbrio da psique humana, ainda mais se considerada a interdependência entre ambos os fatores verificados no 292 Op. cit., p.571. Questões de direito civil: pareceres, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.451. 294 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 295 ANDORNO, Luis O. La responsabilidad civil médica. Porto Alegre: Ajuris, 1993, n. 59, p.235, apud KFOURI NETO, Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.177. 293 96 atual estágio de desenvolvimento cultural. Assim, não se poderia ignorar que o melhoramento estético reflete na saúde do paciente e lhe gera bem-estar físico e mental, o que altera significativamente a visão tradicional da cirurgia estética como obrigação de resultado, já que não se estaria buscando uma cura, mas os cuidados que são tão caros à medicina.296 Dessa maneira, continua Miguel Kfouri Neto, a busca da cura ou dos cuidados da medicina estará ligada ao grau de previsibilidade adquirido pelas inúmeras especialidades médicas, ou seja, apenas atos médicos de extrema simplicidade se amoldariam às obrigações de resultado. Não é o caso da cirurgia estética, que, como qualquer outra especialidade médica, se submete ao imprevisível de cada organismo humano.297 Edmilson de Almeida Barros Júnior admite, outrossim, que ainda prevalece majoritariamente o posicionamento da cirurgia estética como obrigação de resultado, mas que tal entendimento é equivocado. Para ele, o magistrado deve ter consciência de que a pessoa que se submete à cirurgia é doente, pois é portadora de uma patologia tão grave quanto uma enfermidade meramente física. Para muitos, a aparência representa um bem superior, logo, o tratamento estético se mostra como um solucionador de uma aflição moral causadora de grande sofrimento, inclusive retração social e pessoal, lembrando que atualmente o conceito de saúde ultrapassou a mera ausência de enfermidade e atingiu a psique ao entender saúde também como bem-estar.298 Não se olvide ainda que para o autor o campo de trabalho da cirurgia estética está na imprevisibilidade do corpo humano. E complementa com a inaceitação de atribuir ao médico obrigação de resultado:299 Exigir do médico a obrigação de resultado é o mesmo que exigir do profissional a onipotência, a onisciência e a infalibilidade divina, sendo ele senhor absoluto da vida, da saúde e da morte e, por que não dizer, da beleza e da resposta controlada dos fenômenos fisiopatológicos do corpo de seu paciente. 300 296 KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.263. 297 Ibid., p.267. 298 Direito médico: abordagem constitucional da responsabilidade médica, op. cit., p.141. 299 Ibid., p.142-143. 300 Ibid., p.143. 97 Gualter Adolpho Lutz já se pronunciou a esse respeito e lembrou que ainda em tratamentos legítimos, acidentes podem ocorrer mesmo que todas as precauções estejam sendo tomadas. É o caso de medicamentos ativos que, por si só, são nocivos; logo até mesmo o sal de cozinha é capaz de matar. Assim, procedimentos adequados, que não necessariamento importem em erro profissional, podem gerar resultados não esperados.301 Segundo Miguel Kfouri Neto, muitas vezes os julgadores parecem não sofrer influência diante da correta realização da cirurgia, pois, uma vez não alcançado o resultado pretendido (melhoramento estético), a procedência do pedido indenizatório seria certa. Assim, o autor critica o posicionamento desses julgadores, pois eles desconsideram, em cirurgias estéticas, influências de condições peculiares dos paciente, afirmando que elas poderiam ser conhecidas previamente à cirurgia.302 Interessante, nesse sentido, o caso citado pelo doutrinador e exposto pelo cirurgião plástico Walter Soares Pinto: tendo, em 1981, o cirurgião e professor Ivo Pitanguy realizado um procedimento de blefaroplastia (para rugas e bolsas palpebrais) no então presidente João Figueiredo, sobreveio hematoma na pálpebra inferior esquerda, que perdurou visivelmente no rosto do estadista por vários meses. Inquestionável que o rosto do governante em exercício é sua figura maior de destaque. Por outro lado, seria inapropriado considerar a intervenção de um dos maiores cirurgiões brasileiros como imperita. Assim, errôneo seria considerar na situação um caso de erro médico.303 Nesse sentido é que o cirurgião Walter Soares Pinto, elenca, no mesmo informativo, algumas peculiaridades de cada paciente: a) qualidade da pele (fina, grossa, gordurosa, tendência a manchas e quelóides); b) ausência de reações alérgicas: medicamentos, esparadrapos, fio de sutura, luvas de borracha, etc.304 301 Op. cit., p.21. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 303 PINTO, Walter Soares. Informativo Incijur: Instituto de Ciências Jurídicas, Joinville, ano 2, nº 13/9, ago. 2000 apud KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.260-261. 304 Ibid., p. 260-261. 302 98 E também entende pela possibilidade de superveniência de problemas na cirurgia plástica estética como em qualquer outra cirurgia: “Deiscência (abertura dos pontos de sutura); Infecção (seja de origem hospitalar ou não)”.305 Assim, com isso, conclui pela possibilidade do surgimento de intercorrências (“problemas surgidos após a cirurgia que devidamente orientados não prejudicam o resultado final”) e complicações (“problemas que, mesmo devidamente orientados, afetam o resultado final”). Por isso, importante seria, na aferição da imperícia, segundo o especialista, levar em consideração apenas o ato sob exame, pois mesmo o melhor cirurgião, em situações específicas, poderá revelar imperícia. Assim, a constatação da culpa é indissociável apenas ao caso posto em questão.306 Hildegard Taggesell Giostri, por seu turno, é adepta da corrente de que nenhuma área médica pode trazer consigo uma obrigação de resultado, já que esta obrigação é marcada pela característica de apenas o credor poder interferir no resultado final.307 No mais, se vale do exemplo da França, onde questionamentos de algumas áreas da Medicina como obrigações de resultado datam de aproximadamente trinta anos atrás e, após inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais, chegou-se a conclusão de que no campo médico sempre a natureza da obrigação será de meio.308 Ruy Rosado de Aguiar Júnior, outrossim, pode ser apontado como um dos maiores defensores nacionais sobre a aplicabilidade das obrigações de meios aos contratos médicos que entabulem a cirurgia estética. O autor, se valendo de doutrinadores estrangeiros, como Luís Andorno e a maior aceitação dessa teoria na França, seja pela doutrina ou jurisprudência, explica que toda intervenção no corpo humano carrega consigo uma álea inafastável diante da imprevisibilidade da reação de cada organismo. Assim, ainda que o cirurgião assuma o dever de resultado, não há alteração na natureza obrigacional assumida, sendo esta sempre de meio em se tratando da prestação de serviços médicos.309 305 PINTO, Walter Soares. Informativo Incijur: Instituto de Ciências Jurídicas, Joinville, ano 2, nº 13/9, ago. 2000 apud KFOURI NETO, Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit, p.260-261. 306 Ibid., p.260-261. 307 GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico à luz da jurisprudência. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004, p.83. 308 Ibid., p 139. 309 Op. cit., 518-519. 99 Teresa Ancona Lopez tenta colocar um ponto final na discussão ao entender que ainda que se considere a cirurgia estética como o empenho de uma obrigação de meio, como muitos autores recentes pretendem demonstrar, o médico, não tendo cumprido o que estava estipulado no contrato, deve ser responsabilizado, pois ninguém se sujeita à operação, com todos os seus riscos e inconvenientes apenas para esperar o melhor desempenho do profissional, sem esperar melhora no resultado.310 Assim, equaciona a problemática em três subdivisões: todo e qualquer ato cirúrgico carrega consigo a álea, portanto, quanto a isso, a obrigação será de meio; quanto à alteração estética prometida, trata-se de obrigação de resultado, na medida em que, feito o esboço, é álea do médico o alcance do resultado, pois responderá se não alcançá-lo ou se não informar corretamente o paciente sobre as mudanças posteriores à cirurgia, ainda que melhores do que a própria promessa; por fim, podem sobrevir outros danos em virtude da cirurgia, de natureza extracontratuais, podendo ser cumulada com a responsabilidade contratual até a efetiva reparação da vítima, seja por danos materiais, morais ou estéticos.311 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka resume o cerne da problemática em poucas linhas, lembrando que a obrigação de ressultado em cirurgias estéticas dependerá sempre do que foi prometido pelo médico ao paciente; afirma que, para o direito, se o médico prometer alcançar determinado resultado, deverá fazê-lo, pouco importando para o julgador ter o profissional se valido de todos os saberes científicos, destreza e saber, tampouco se a inexecução pode ser atribuída à álea de reações inesperadas do organismo do paciente; o que importa é o resultado, nada mais, salvo excepcionalíssimas hipóteses que escapam ao controle.312 A autora expõe que o problema sempre está na frustração, pois a defesa largamente utilizada pelos médicos de que apenas se obrigam pelo emprego da melhor técnica muitas vezes é desmentida por eles próprios, que não deixam de apresentar montagens do tipo “antes e depois” para mostrar ao paciente como ele ficará após a cirurgia. Não alcançado o resultado, caracterizada estará a frustração.313 310 O dano estético: responsabilidade civil, op. cit., p.93. Ibid., p.93. 312 Op. cit., p.506. 313 Ibid., p.507. 311 100 Para que isso não ocorra, ou seja, obrigar-se o médico pelo meio e não pelo resultado, são necessárias algumas cautelas: devem ser realizados todos os tipos de exames para saber se o paciente é suscetível de problemas que podem influenciar no resultado, como problemas de cicatrização, formação de quelóides, etc.; deixar claro ao paciente que não pode garantir o resultado, mas existem apenas possibilidades, inclusive informando sobre as possibilidades de reações adversas do organismo e sobre todos os riscos que envolvem a operação, inclusive não o fazendo por meio de formulários impressos, pois eles podem dar a impressão de contrato de adesão, em que o paciente não tem exata noção dos riscos. Além disso, deve o médico aplicar a técnica corretamente no operatório e, após, fazer todos os tipos de alerta ao paciente sobre os cuidados que deverão ser observados.314 Percebe-se, pois, com todo o explanado, não existir um consenso doutrinário a respeito do tema, cujas discussões são permeadas por argumentos contudentes de ambos os lados. Mesmo assim, o posiocionamento de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka parece ser aquele que melhor relaciona Medicina e Direito, pois, para este basta o comprometimento do médico com o resultado para caracterizar obrigação de resultado. Assim, se ele tomar todas as precauções em deixar evidente que não está se comprometendo com o resultado, não pode a ele ser imputada uma obrigação de fim. De todo modo, o Superior Tribunal de Justiça é praticamanete unânime em entender a cirurgia plástica estética como obrigação de resultado. Entretanto, há Ministros com posições opostas às tradicionalmente adotadas, como demonstra o principal expoente Carlos Alberto Menezes Direito, situação que oportunamente será melhor analisada na tentativa de se estabeler parâmetros mais seguros sobre o comportamento atual dos Tribunais. 2.6.1 Inversão do ônus probatório Diverge, outrossim, a doutrina, referente à possibilidade de inversão do ônus da prova para os casos de inadimplemento contratual do médico que empenhou obrigação de resultado. 314 HIRONAKA, op. cit., p.508-509. 101 Voltando a citar Neri Tadeu Câmara de Souza, o qual entendeu pela cirurgia estética como obrigação de resultado, se pronuncia quanto ao descumprimento contratual: Assim, há presunção de culpa, se o médico cirurgião plástico não adimplir integralmente a sua obrigação (o adimplemento parcial é considerado uma não execução da obrigação pela qual se comprometeu com o paciente contratante). Cabe, pois, devido à presunção de culpa, ao médico, nos casos de cirurgia plástica estética, fazer prova de que agiu na execução da tarefa com prudência, zelo e perícia (opostos, que são, da imprudência, negligência e imperícia).315 Para Flávio Murilo Tartuce Silva, adepto do entendimento de que a cirurgia estética constitui obrigação de resultado, conforme já mencionado, o cerne da questão não está na presunção de culpa do médico, pois não mais se está no campo da verificação subjetiva da responsabilidade do cirurgião, entretanto, de acordo com posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, trata-se de responsabilidade objetiva do cirurgião estético.316 Para Miguel Kfouri Neto, nas obrigações de meio o credor (o paciente) é que deve provar que o devedor (o médico) não teve o grau de diligência que dele se esperava; contudo, o autor admite que a tendência atual é de que, nas obrigações de resultado, o médico é que deve provar ter agido com toda a diligência, já que sobre ele recai presunção de culpa, culpa esta que poderá ser afastada apenas na hipótese de comprovação de causa adversa317: Há, indiscutivelmente, na cirurgia estética, tendência generalizada a se presumir a culpa pela não obtenção do resultado. Isso diferencia a cirurgia estética da cirurgia geral.318 Tal tendência pode ser demonstrada pelo posicionamento de Sergio Cavalieri Filho: Se o contratante assumiu a obrigação de alcançar um determinado resultado (...) e não conseguiu, haverá culpa presumida, ou, em alguns casos, até responsabilidade objetiva; se a obrigação assumida no contrato foi de meio, a responsabilidade, embora, contratual, será fundada na culpa provada.319 Por outro lado, Miguel Kfouri Neto acredita que não deve militar em desfavor do cirurgião estético presunções de culpa nem da responsabilidade sem culpa, o que está de 315 Op. cit., acessado em 07 jul. 2013. Aula ministrada on-line no curso LFG, acessada em 16 jul. 2013. 317 Responsabilidade civil do médico, op. cit., p.169. 318 Ibid., p.174. 319 Op. cit., p.276-277. 316 102 acordo com as novas tendências de ditribuição dinâmica do encargo probatório. Assim, não se justicaria de maneira alguma tratamento diferenciado – e mais gravoso – aos cirurgiões plásticos, os quais devem se submeter à verificação da culpa como as demais especialidades. Para ele, o que se justifica sim, e com muita propriedade, é um dever de informação excepcionalmente agravado, na medida em que o que estaria dando causa às demandas judiciais seria o distanciamento entre aquilo que é prometido pelo cirurgião e o esperado pelo paciente.320 Caio Mário da Silva Pereira também entende que o dever de informação e de vigilância são especialmente agravados na obrigação cirúrgica estética, apesar de discordar de Miguel Kfouri Neto quanto à natureza da obrigação, pois considera-na como de resultado.321 Miguel Kfouri Neto ainda complementa sua ideia e expõe a necessidade de o médico delimitar de maneira muito clara e expressa, inclusive por escrito, aquilo que poderá ser alcançado na cirurgia, verificando com exatidão o que o paciente dela espera, deixando-o informado, inclusive, sobre o imprevisível que acomete toda e qualquer intervenção cirúrgica. Uma vez não alcançado o resultado esperado e formada a demanda judicial, caberá ao juiz, no caso concreto, verificar em que medida se deu a frustração e definir se houve ou não culpa do cirurgião.322 Giselda Maria Fernandes Novaes Horonaka, como já mencionado, entende de forma semelhante a de Miguel Kfouri Neto, acreditando que isso dependerá de como tudo foi acordado. Se observados determinados preceitos (constantes do tópico anterior), caracterizada estará a obrigação de meio e, ocorrido o dano, caberá ao paciente a prova de que o médico agiu com culpa. Por outro lado, entendendo-se se tratar de obrigação de resultado porque o médico prometeu alcançar o esperado, haverá presunção de culpa em desfavor do profissional, que poderá se eximir de responsabilidade se provar que não agiu com culpa e que, na verdade, o paciente deu causa ao dano ou, ainda, que a ausência de resultado pode ser 320 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, p.266. 321 Responsabilidade civil, op. cit, p.169. 322 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.266. 103 atribuída a outra causa que não à cirurgia, rompendo-se, pois o nexo de causalidade entre o dano e conduta médica.323 De todo modo, aponta a autora, a jurisprudência não pode considerar as obrigações assumidas pelo cirurgião estético como de resultado em qualquer hipótese, e, consequentemente, aplicar a responsabilidade independentemente da culpa, pois não se pode ter um parâmetro previamente estabelecido, marcado por generalizações, devendo o caso ser analisado concretamente e, se todas as recomendações anteriormente suscitadas forem vericadas, trata-se, evidentemente, da assunção de obrigações de meio pelo médico, que só poderá ser responsabilizado se o paciente comprovar sua culpa.324 2.6.2 Inexecução contratual Diante da discussão apresentada sobre a natureza das obrigações médicas estéticas, duas alternativas se mostram viáveis em relação ao inadimplemento contratual cometido pelo médico. A primeira, se considerada a obrigação médica estética como de meio, tal qual alguns autores defenderam, o adimplemento do contrato independe da cura, que no caso seria a melhora do aspecto físico do paciente e, consequentemente, do seu estado psíquico. Isso se dá porque para ter o médico cumprido sua parte no acordo, basta ter empregado todo o cuidado, esforço, empenho e, o mais importante, toda a técnica e conhecimento da ciência médica disponíveis, ainda que tudo isso, quando somados, não tenham sido suficientes para o atingimento do resultado satisfatório, evidentemente, olhando-se sob o prisma do credor (o paciente), pois a ele caberá intentar ação sobre o descumprimento da obrigação. Nehemias Domingos de Melo expôs: (...) Assim, o adimplemento do contrato não é a cura, mas a dedicação, zelo e esforço do profissional. Provando que assim agiu, isto é, que aplicou toda sua técnica e conhecimento para que o paciente atingisse a cura, o médico terá cumprido 323 324 Op. cit., p.510-511. Ibid., p.512. 104 sua parte no contrato e não se poderá falar em inadimplemento se o paciente não se curou, pois a obrigação terá sido de meio e não de resultado.325 Vale dizer que, em se tratando de uma obrigação de meio, não será suficiente demonstrar que não foi atingido o que esperava da situação, mas deverá o paciente deixar evidente também que houve culpa médica no não atingimento do resultado esperado, ou seja, que o profissional tenha agido com imprudência, negligência, ou imperícia, desconhecendo ou utilizando de maneira errônea técnica indicada pela ciência. Nesses casos, não haverá presunção da culpa médica, que deverá ser provada, normalmente pelas provas periciais. Não se olvide que a culpa é o aspecto mais importante quando se fala em ato ilícito pela inexecução contratual, uma vez que não há dúvida de que nele reside todo o fundamento jurídico da responsabilidade civil do médico.326 Mais uma vez, remete-se ao artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, que exige a verificação da culpa dos profissionais liberais para fins de reparação de danos causados em consonância com a regra do artigo 927 cumulado com o 951, ambos do Código Civil. Nesse mesmo sentido, portanto, deverá o paciente demonstrar que sofreu o dano, o que, de certa forma, deverá ser apurado de maneira subjetiva pelo julgador na análise de uma possível piora no aspecto físico do paciente se comparado ao estado anterior à cirurgia ou se, ao fim, houve uma pequena melhora (mas ainda insuficiente na visão do operado) ou até mesmo uma alteração não significativa, nem para melhor, nem para pior, casos estes em que será ainda mais difícil de comprovar o requisito e, consequentemente, a responsabilidade. De qualquer maneira, frise-se, predomina na doutrina e jurisprudência que, no caso de atividade do cirurgião plástico, a inexecução parcial da obrigação, representada pela frustração do resultado, equivale à inexecução total.327 Não se olvide, ainda, que deverá ser comprovado o nexo de causalidade entre a conduta culposa do médico e o resultado danoso pois, eventualmente, o resultado não esperado poderá ser consequência de fatores adversos à conduta médica, como culpa exclusiva da vítima, de terceiro, caso fortuito ou força maior. 325 Op. cit., p.66. FRANÇA, Genival Veloso de, op. cit., p.215. 327 GOMES, Orlando. Questões de direito civil: pareceres, op. cit., p.451. 326 105 Por outro lado, se encarada a cirurgia como obrigação de resultado, grande parte do caminho já foi trilhado e se inserirá, nesse âmbito, segundo tem admitido maior parte da doutrina e jurisprudência, conforme já explicitado, presunção de culpa do médico pelo não alcance do que foi prometido, o que caracteriza a inadimplência contratual e faz com que que o devedor assuma todos os ônus da inexecução, normalmente estampados no dever de arcar com uma nova cirurgia e na reparação de dano moral, podendo elidir-se de responsabilidade apenas se comprovar que a inexecução se deu por fatores adversos a sua vontade, como culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito. A exceção fica evidenciada por Miguel Kfouri Neto, que vê a ausência de um dever de informação específico como principal motivo do crescente número de demandas judiciais relativas à inexecução de um contrato para a realização de cirurgias plásticas. Para ele, existe um desnivelamento entra o que verdadeiramente o paciente espera da cirurgia e o que o médico pode realizar.328 Nesse sentido, é necessário voltar a citar Caio Mário da Silva Pereira, que não deixa dúvidas de que, primeiramente, as cirurgias estéticas estão pautadas nos mesmos direitos e deveres do médico e paciente relatadas quando se tratou da relação médico-paciente e, em segundo lugar, que, em se tratando de cirurgias estéticas, o dever de informação é muito mais agravado, pela intervenção não feita especificamente para tratamento, mas para melhora no aspecto físico. Por esse motivo, o paciente não pode correr riscos, devendo o médico, inclusive, se recusar a realizar o procedimento, se os riscos forem maiores que os benefícios, como já mencionado, inclusive, por José de Aguiar Dias quando se tratou das obrigações de meio e resultado.329 2.6.3 Responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida e responsabilidade objetiva 328 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 329 Responsabilidade civil, op. cit., p.168-169. 106 Quando da discussão entre obrigações de meio e de resultado do cirurgião estético, foi possível observar que os autores que entendem pelas obrigações de resultado divergem quanto às consequências desse posicionamento: alguns acreditam se tratar de responsabilidade civil subjetiva com culpa presumida e outros de responsabilidade objetiva. Em ambos os casos, entretanto, os autores se referem unicamente a possibilidade de o cirurgião estético eximir-se de responsabilidade se comprovado o caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima, bem como os julgadores o fizeram, como será possível observar com a análise dos julgados. Em que pese existir tal diferenciação, José de Aguiar Dias lembra que ela existe apenas no plano teórico, razão pela qual pode-se dizer em responsabilidade objetiva apenas para os casos flagrantemente vinculados ao sistema, trazidos expressamente pela legislação.330 Nas palavras do autor: Não confundimos, pelo menos propositadamente, os casos de responsabilidade objetiva com os de presunção de culpa. Na realidade, como já tivemos ocasião de dizer, o expediente da presunção de culpa é, embora o não confessem os subjetivistas, mero reconhecimento da necessidade de admitir o critério objetivo. Teoricamente, porém, observa-se a distinção, motivo por que só incluímos como casos de responsabilidade objetiva os que são confessadamente filiados a esse sistema.331 Assim, não se pode cair na confusão de acreditar que o médico que assumiu obrigação de resultado está inserido numa questão meramente processual de inversão do ônus probatório. Trata-se de um passo além, pois se se tratasse de inversão do ônus da prova, bastaria ao médico demonstrar não ter agido com culpa, o que, como se viu pela doutrina e como será observado na jurisprudência, não é o suficiente para eximir o profissional de responsabilidade, mas apenas conseguirá fazê-lo se ficar evidente caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Alexandre Gir Gomes não é diferente, dizendo que alguns doutrinadores, a despeito de adotarem a responsabilidade na cirurgia estética como inserida na presunção da culpa, apenas 330 331 Op. cit., p.99. Ibid, p.99. 107 omitem a expressão “responsabilidade objetiva”, mas a diferenciação não passa de terminologias, ou em suas palavras, “uma forma tímida de se aplicar a teoria do risco”.332 Para Miguel Kfouri Neto, mesmo em se tratando de culpa presumida do profissional, ainda presente estaria a responsabilidade subjetiva, que necessita da verificação da culpa333, mas não é de fato o que se pode observar no entendimento jurisprudencial sobre o tema e de grande parte dos doutrinadores nacionais. Para os Tribunais, frise-se novamente, apesar de recorrente a menção da possibilidade de o cirurgião estético eximir-se de responsabilidade pela demonstração de que não agiu com culpa334, a tendência atual é de responsabilização pelo simples não alcance do resultado. 332 Op. cit., p.751. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.166. 334 TJRS, Apelação nº 597183383, 3ª Câmara Cível, rel. Tael João Selistre, data de julgamento de 05.03.1998. Responsabilidade civil. Médico. Responsabilidade contratual. Cirurgia plástica. Erro médico. Obrigação de resultado. Indenização por danos material e moral. Cobrança do saldo dos honorários. Prescrição. Procedência, em parte, da ação e improcedência da reconvenção. A responsabilidade civil do médico, como sabido, é contratual, sendo a obrigacao, em princípio, de meio e não de resultado. Todavia, em se tratando de cirurgia plástica, a obrigacao é de resultado, assumindo o cirurgião a obrigação de indenizar pelo não cumprimento da mesma obrigação. Demonstrado o inadimplemento, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao médico a obrigação de demonstrar que não houve culpa ou que ocorreu caso fortuito ou força maior. Indenização pelos danos de ordem material e moral. Procedência, em parte, da ação, por ter sido excluído o pedido de dote. Prescreve em um ano a ação para a cobrança de honorários médicos, contado o prazo a partir da data do último serviço prestado. Tendo isso ocorrido em maio de 1993 e a reconvenção protocolada em outubro de 1994, caracterizada está a prescrição. Sentença mantida. Apelação não provida. 333 108 109 3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL Feita uma abordagem principalmente baseada em aspectos doutrinários, faz-se necessário uma breve análise do comportamento jurisprudencial dado ao tema de responsabilidade civil em cirurgia estética. Para tanto, foram selecionados julgados recentes pertinentes ao tema e que responderam ao parâmetro de pesquisa “responsabilidade civil cirurgia estética” dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que, aparentemente, representam o posicionamento majoritário. Por fim foram reunidos alguns outros julgados do Superior Tribunal de Justiça, que apontam na mesma direção dos tribunais anteriormente verificados, à exçeção de um voto vencido proferido pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito quando da votação do Recurso Especial 81.101, oriundo do Paraná. Apesar de o voto já contar com mais de dez anos, pode significar a quebra de paradigmas atuais e, assim, empreender visões diferentes num futuro próximo, ainda mais considerando o aprofundamento dado ao tema pelo ministro. 3.1 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foram selecionados dois julgados que reuniram importantes questões abordadas anteriormente. O primeiro é a apelação cível nº 0005819-76.2004.8.26.0001335, oriunda da Comarca de São Paulo, segundo o qual o apelante, 335 TJSP, 10ª Câmara de Direito Privado, rel. Marcia Regina Dalla Déa Barone, data de julgamento de 18.06.2013. Ação de indenização por danos morais e materiais. Pedido de manutenção dos benefícios da Justiça Gratuita inserido nas contrarrazões recursais, juntadas no processo principal. Inadequação da via eleita. Decisão que deveria ser impugnada nos autos em apenso, em petição recursal própria. Publicação válida em nome dos atuais advogados da autora. Impossibilidade de se alegar falta de ciência da decisão. Pedido não conhecido. Ação de indenização por danos morais e materiais. Quadro infeccioso decorrente de intervenção estética para emagrecimento. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Responsabilidade subjetiva do profissional liberal. Obrigação de resultado. Culpa presumida do médico, que não comprovou ter tomado as medidas adequadas para o caso, antes, durante e após a realização do procedimento estético. Presentes os requisitos capazes de atestar a obrigação de reparar os danos sofridos. Possibilidade de cumular os danos morais e estéticos. Ausência de impugnação específica em relação ao quantum fixado a título de danos morais e estéticos. Danos materiais demonstrados pela autora. Afastamento da indenização por lucros cessantes. Não comprovação. Sentença de parcial procedência. Recurso não provido. Não se conhece do pedido de reforma da decisão que revogou os benefícios da gratuidade. Nega-se provimento ao recurso de apelo. 110 condenado em primeira instância, teria sido procurado pela apelada para a realização de procedimento estético com fins de emagrecimento no qual sobreveio quadro infeccioso. Foram pleiteados danos morais e danos estéticos. Para o deslinde do impasse, a relatora levanta algumas questões que merecem destaque. A primeira é a de que, conforme visto, trata-se de um evidente caso de aplicação do Código de Defesa do Consumidor naquilo que prescreve quanto aos profissionais liberais em seu artigo 14, §4º, ou seja, cumpre a análise dos requisitos subjetivos capazes de gerarem o dever de indenizar, quais sejam a culpa, mediante negligência, imprudência ou imperícia, dano, ato ilícito e o nexo de causalidade. Outra verificação importante feita pela desembargadora é a de que primordialmente as obrigações médicas são consideradas como de meio, entretanto, em se tratando de cirurgia estética, é pacífico o entendimento de que o médico assume o compromisso de proporcionar ao paciente determinado resultado, caracterizando, pois, sua obrigação, como de resultado, e não de meio. Para reafirmar seu posicionamento, cita outros três precedentes da mesma câmara julgadora em tela. A consequência da diferenciação feita, segundo a magistrada, que utiliza as lições de Sergio Cavalieri Filho, é a da presunção de culpa do médico que assumiu obrigação de resultado, podendo elidir-se de responsabilidade apenas se comprovar a ocorrência de “fatos alheios aos seus poderes”. Assim, no caso concreto, não tendo o médico afastado a presunção em seu desfavor, todos os demais elementos indicaram a verificação da negligência, tais como a existência de laudo pericial apontando que o procedimento realizado não era adequado às especificidades do caso, a ausência de realização dos procedimentos em centros cirúrgicos adequados, mas na própria clínica do apelante, na ausência de anestesista, bem ainda, a falta de cuidados prestados pelo profissional após a cirurgia. Dessa maneira, ficou verificado nexo de causalidade das condutas médicas negligentes aos resultados danosos verificados, como a infeccção e a formação de cicatrizes permanentes. Algumas conclusões podem ser tiradas do caso apresentado: a primeira é a necessidade de verificação da culpa do profissional. A segunda é a filiação da desembargadora à posição majoritária da doutrina no sentido de considerar a obrigação 111 médica estética como de resultado e, desse modo, pesar sobre o profissional presunção de culpa. Uma questão, entretanto, que não ficou clara e que poderia ter sido abordada, ainda que despicienda no caso concreto diante da ampla constatação de negligência médica, é quanto à possibilidade de afastamento da responsabilidade do médico se esse tivesse feito prova de que não agiu com culpa. Parece que, conforme citado por Miguel Kfouri Neto336, existe uma tendência em não se importar com o correto procedimento médico, pois o próprio não alcance do resultado esperado nas obrigações de resultado já seria motivo para responsabilização do médico. A desembargadora apenas frisou ser possível o afastamento da responsabilização do médico se comprovadas ocorrências que fugiram do seu alcance, dentre elas, possível de se inferir as peculiaridade da paciente que poderiam ter influência no resultado da intervenção. Por seu turno, a apelação nº 0003414-47.2010.8.26.0360337, oriunda da Comarca de Mococa, elenca uma situação em que a apelante procurou o apelado para realização de cirurgias de correção de desvio de septo (septoplastia e turbinectomia) juntamente com outra para alteração no formato do nariz, ambos os resultado que não teriam sido alcançados. Em relação às cirurgias para desvio de septo, para o desembargador, a necessidade de verificação do elemento subjetivo da culpa para apuração da responsabilidade do médico é evidente, já que se trata de profissional liberal, de acordo com o disposto no artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor e, segundo Ruy Rosado de Aguiar Júnior, toda intervenção no corpo humano é carregada de certa álea, marcada pela imprevisibilidade de reações de cada organismo às agressõs trazidas pelo ato cirúrgico. Dessa maneira, em outras palavras, referindo-se ao autor Antonio Cabanillas Sanchez, encerrando uma obrigação de meio, o insucesso do tratamento ou evolução do quadro indesejado, não há automática verificação do inadimplemento contratual médico, uma vez que ao médico cabe apenas agir com conduta diligente. Não tendo sido verificada imperícia do 336 Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado – responsabilidade civil em pediatria responsabilidade civil em gineco-obstetrícia, op. cit., p.264. 337 TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Francisco Loureiro, data de julgamento de 13.06.2013. Responsabilidade civil. Erro médico. Cirurgia de correção de desvio de septo nasal concomitante a cirurgia estética do nariz. Responsabilidade subjetiva do médico não afastada diante da caracterização da cirurgia plástica como obrigação de resultado, que gera apenas a presunção de culpa deste. Prova pericial que não constatou ausência de danos funcional e estético. Inexistência de prova nos autos que confirmem as acusações de imperícia feitas na inicial. Ação improcedente. Recurso de apelação desprovido. 112 cirurgião no caso concreto, bem ainda existindo laudo pericial que concluiu pela permanência do desvio de septo mesmo após a cirurgia, mas sem prejuízos funcionais (ausência de dano), não há que se falar no dever de reparar. No tocante ao procedimento estético, o relator reconhece que, embora exista discussão sobre a natureza obrigacional que empenha, se de meio ou de resultado, segue a corrente prevalente no Superior Tribunal de Justiça, adotante da segunda hipótese. Mesmo assim, lembra, adotar a obrigação como de resultado, não significa que a responsabilidade do médico seja objetiva, continua a ser subjetiva, mas altera o ônus, a ele cabendo provar que o insucesso da cirurgia se deu por fatores externos. Ausentes provas do próprio insucesso da cirurgia, da falta do médico ao dever de informação, e de conclusões periciais no sentido quanto à existência de dano estético, ausente responsabilidade civil do médico nesse ponto. Diante do exposto, mais uma vez pode ser vista a adoção pelo julgador à natureza da obrigação do cirurgião estético como de resultado, ao passo que do cirurgião reparador como de meio. Nestes casos, a comprovação da culpa incumbe ao paciente, naqueles, adota-se a presunção de culpa em desfavor do médico, o que não significa, de qualquer maneira, responsabilidade objetiva, diferentemente, por exemplo, de posicionamentos como o de Flávio Tartuce, baseado, segundo ele, na doutrina e jurisprudência.338 3.2 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) Do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi selecionado um único julgado pertintente ao tema e que respondeu ao parâmetro de pesquisa anteriormente mencionado. Trata-se, da apelação de nº 0008252-91.2008.8.19.0006339, em que a autora do pedido 338 Aula ministrada on-line no curso LFG, acessada em 16 jul. 2013. TJRJ, 18ª Câmara Cível, rel. Celia Meliga Pessoa, data de julgamento de 23.01.2013. Apelação cível. Responsabilidade civil de médica. Procedimento estético. Obrigação de resultado. Responsabilidade subjetiva com presunção de culpa. Nexo de causalidade demonstrado. Dano moral configurado. Quantum indenizatório. A responsabilidade civil de médica cirurgiã, apesar de ser profissional liberal, assume obrigação de resultado em razão da natureza do serviço oferecido. Cirurgia plástica estética. E, não obstante permanecer com responsabilidade subjetiva, entende o Superior Tribunal de Justiça que há presunção de culpa em seu atuar, 339 113 indenizatório de danos morais, pela piora do estado anterior ao ato cirúrgico e danos materiais, para cobrir os custos da realização de uma nova cirurgia, tinha contratado uma das rés para procedimento cirúrgico estético de melhoria nos constonos de seu nariz. De plano, a desembargadora assume a orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar a natureza da obrigação assumida pela médica como de resultado, o que, apesar de não ter o condão de de sair do campo da responsabilidade subjetiva, gera sobre sua conduta presunção de culpa, invertendo-se, assim, o ônus probatório em seu desfavor. Tomando-se por base, então, de acordo com a desembargadora, fotografias da autora antes e depois da cirurgia, bem ainda laudo pericial acostado, ficou evidente que o resultado pretendido pela autora não foi alcançado. Mas não é só: formaram-se granulomas decorrentes da cirurgia plástica, o que, para a julgadora, ensejou a responsabilidade da médica pelos danos morais causados à paciente em decorrência do agravamento da situação. Entretanto, no tocante aos danos materiais para o pagamento de uma nova cirurgia estética (já que não alcançado o resultado), tal pleito foi afastado pela conclusão da perícia de que não seria necessária nova cirurgia em razão de o nariz guardar as mesmas caracteríticas que apresentava antes do procedimento. Não há como se afastar certo estranhamento da decisão, pois, considerando a obrigação de resultado, o pedido de uma nova cirurgia não necessariamente precisaria estar pautado na correção de alterações ocasionadas pela cirurgia, mas no mero inadimplemento contratual; não produzido o resultado, deve o valor ser ressarcido, sob possibilidade de enriquecimento sem causa. De qualquer maneira, não se tendo acesso aos moldes do pleito formulado, não é possível elucidar melhor a questão, mesmo sendo preciso frisar que, se adotado o entendimento de cirurgia estética empreenderem obrigações de resultado, tal como o direcionamento tomado pela jurisprudência pátria, ideia já vista em parte pelos julgados selecionados e que ainda será reforçada, é devido pelo médico, a título de danos materiais, gastos necessários à realização de um novo procedimento ou, alternativamente, os valores pagos ao médico pela cirurgia. invertendo-se, em consequência, o ônus da prova em seu desfavor. Sob esse prisma, não tendo sido demonstrada a ocorrência de qualquer causa excludente de nexo causal e restando comprovado que o resultado pretendido pela paciente não foi alcançado, há dano que deve ser reparado. Verba indenizatória, fixada de forma proporcional e razoável. Sentença que se mantém. Recursos manifestamente improcedentes, que estão em confronto com o ordenamento processual e com a jurisprudência dominante deste Tribunal. Art. 557, caput, do CPC. Recursos a que se nega seguimento. 114 Contudo, no caso concreto, ficou consignado a não caracterização de danos materiais para a realização de nova cirurgia em razão da conclusão pericial no sentido da desnecessidade de intervenção cirúrgica para “reparar as consequências da fracassada bioplastia”. 3.3 Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) Do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais foram reunidos dois julgados, que trouxeram aspectos interessantes para serem analisados. O primeiro é a apelação nº 1.0518.04.071229-2/002340, que traz em seu cerne a responsabilidade civil do apelado pela relização de cirurgia estética na apelante, esta que sofreu por um longo período de tempo com se abdome sem cicatrização, o que lhe rendeu um quadro infeccioso e posteriores cicatrizes diversas. Inicialmente, o relator apresenta a necessidade, assim, como constante dos julgados anteriores, de aplicação da verificação subjetiva da responsabilidade do médico em virtude do artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, em consonância com o disposto no artigo 951, do Código Civil. Outrossim, se vale da tese de que no caso de cirurgias estéticas, o médico assume uma obrigação de resultado, presumindo-se sua culpa se houver frustrações da promessa. Isso se dá em razão do trtamento jurídico diferenciado a que se submetem os cirurgiões plásticos, pois o 340 TJMG, 11ª Câmara Cível, rel. Marcos Lincoln, data de julgamento de 25.01.2013. Apelação cível. Ação de indenização. Cirurgia estética. Abdominoplastia. Obrigação de resultado. Deformidade. Culpa presumida. Responsabilidade civil. Danos morais e estéticos. Cumulação. Possibilidade. Danos materiais. Ocorrência. Lucros cessantes. Não comprovação. Recurso provido em parte. - Responde o cirurgião plástico pelo insucesso da cirurgia, com apresentação de necroses e deformidades estéticas, uma vez que, pela natureza do contrato, assumiu uma obrigação de resultado, sendo presumível a sua culpa. - É perfeitamente possível a cumulação dos danos morais e estéticos, quando a paciente tenha sido profundamente atingida em sua esfera psicológica e física. - A quantificação do dano extrapatrimonial obedece ao critério do arbitramento judicial, que, norteado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, fixará o valor, levando-se em conta o caráter compensatório para a vítima e o punitivo para o ofensor. - Para o ressarcimento dos danos materiais e lucros cessantes é necessária a efetiva comprovação. Tendo havido a comprovação apenas dos danos materiais consubstanciados no desembolso com a cirurgia, devem ser indenizados. - Deve o réu ser condenado ao ressarcimento em razão de cirurgia reparadora a ser realizada na autora. 115 paciente os procuram para melhorar algo que em tese se encontra em perfeito estado de saúde; logo inadmissível que o paciente, após a cirurgia, se encontre em situação pior a que estava anteriormente. Dessa maneira, cabe ao profissional analisar todos os riscos antes de assumir sua obrigação, pois lhe caberá o dever de indenizar o resultado danoso ainda que inexistentes imprudência, imperícia ou negligência. No caso em tela, demonstrado de maneira satisfatória que o resultado não foi alcançado e ainda sobrevieram extensas marcas cicatriciais, presente o dever de reparar, seja pelos danos estéticos suportados, indubitavelmente visíveis, seja pelos danos morais, decorrentes de angústia e desgosto suportados, seja, ainda, pelos danos patrimoniais, representados pelo custeamento de cirurgia reparadora e devolução das quantias pagas pela cirurgia. Dessa maneira, não há dúvida do tratamento rigoroso dado pelos julgadores ao tema. Em determinado ponto, o desembargador chega até mesmo em falar no dever de indenizar do cirurgião pelo resultado danoso ainda que não estejam presentes negligência, imprudência ou imperícia, levando a entender, num primeiro momento, estar se referindo a uma responsabilidade objetiva; entretanto, na leitura do conjunto do julgado, é possível perceber sua inclinação à verificação da responsabilidade mediante verificação da culpa. De qualquer modo, como pode se observar, pouco tratamento é dado ao questionamento da possibilidade de os resultados danosos terem ocorrido por fatores diversos ao alcance do médico. A título de exemplo, interessante rememorar o ponto suscitado pelo cirurgião quanto ao tabagismo que acomete a autora, levantando a hipótese de culpa exclusiva da vítima ou, ao menos, concorrente, no deslinde da ausência de cicatrização e, consequentemente, dos demais danos. Quanto a isso, em que pese haver evidências científicas da maior dificuldade de cicatrização em razão do tabagismo, sendo até mesmo recomendação médica que não se fume por longos períodos antes e depois da cirurgia, o desembargador entendeu pela não aplicação da excludente de nexo de causalidade levantada em virtude da ausência de provas suficientes da influência concreta, no caso em tela, do tabagismo, sobre a cicatrização. Mesmo assim não há como negar a decisão como alinhada às demais considerações anteriores, na medida em que se há presunção de culpa em desfavor do médico, caberia a ele 116 produzir prova de que o resultado danoso se deu exclusivamente, ou em grande medida, pela conduta do pós-operatório tomada pela paciente, o que não se verificou. Por seu turno, a apelação cível nº 1.0112.06.061226-7/001341 traz situação diferente que permitiu ao julgador tomar decisão a favor do médico por duas razões bem evidenciadas: a ausência de culpa e a existência de fatores externos à suas condutas. Tratou-se de uma cirurgia para reparação de cicatrizes oriundas de outros dois procedimentos (vesícula e cesariana), tida como de resultado em razão do claro propósito de melhoramento estético, sem entretanto, dissociar-se de caráter reparador que resultou em nova cicatriz, além de ainda manter as outras duas já existentes. O desembargador reconhece que apesar da discussão existente entre obrigações de meio ou de resultado em cirurgias estéticas, a maior parte da doutrina e jurisprudência pátrias reconhecem a natureza dessas obrigações como de resultado. Independentemente disso, não se pode deixar de levar em consideração se houve conduta culposa por parte do médico e se existiram fatores externos que influenciaram no resultado da cirurgia. Para tanto, vale-se do laudo pericial, que atesta a ausência de qualquer conduta negligente, imprudente ou imperita do cirurgião, ainda que tenha resultado numa nova cicatriz e, mesmo assim, o próprio laudo ainda concluiu por uma pequena melhora, uma vez que as cicatrizes não apresentaram mais quelóides, mas apenas um alargamento e hipertrofia. Outrossim, segundo o laudo pericial, à paciente sobreveio gravidez, que enfraquece as paredes abdominais e contribui para o aparecimento de estrias e flacidez da pele, levando à perda de resultados da cirurgia estética realizada anteriormente. Quanto aos resultados da cirurgia, contribuiu também significativamente para que não ocorressem de forma esperado o ganho de peso da paciente, outro fator que contribui significativamente para a cicatrização abdominal deficiente. 341 TJMG, 14ª Câmara Cível, rel. Antônio de Pádua, data de julgamento de 25.08.2011. Civil e processual civil. Apelação. Ação de indenização. Danos morais e materiais. Requisitos da responsabilidade civil médica. Presença. Cirurgia estética. Obrigação de resultado. Dano estético. Erro médico não demonstrado. Sentença reformada. O profissional ciente de seu ofício, de suas responsabilidades e de suas limitações, não pode se esquecer desse seu dever de informação ao paciente, pois não lhe é permitido criar perspectivas que, de antemão, ele sabe serem inatingíveis ou incertas. Comprovado que não houve imperícia do cirurgião, aliado a fatores outros que interferiram no resultado da cirurgia, não se acha presente o dever de indenizar. 117 Dessa maneira, ausência de culpa do paciente somados a fatores que fugiram do seu controle, como a gravidez e o ganho de peso da paciente, de rigor foi a improcedência da demanda indenizatória. Com o resultado do processo, é possível perceber a atenção dispensada às causas do não alcance do resultado na cirurgia estética, essenciais para afastar a responsabilidade do médico. Por fim, não se olvide mais uma vez o elevado grau de importância que os laudos periciais assumem em processos dessa natureza, ajudando significativamente os magistrados na tomada da decisão. Decisivo foi nesse caso para atestar as condutas da paciente que contribuíram, ou até mesmo determinaram, o mau resultado. De qualquer maneira, a tendência dos julgados é aceitar as quebras de nexo de causalidade entre conduta e dano muito severamente, considerando-os apenas se inequivocamente demonstrados, conclusão a que se pode chegar na confrontação entre este julgado ora analisado e o anterior. 3.4 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram reunidos dois julgados, os quais, como será demonstrado alinham-se às decisões anteriormente apresentadas, delineando, assim, o atual entendimento jurisprudencial pátrio conferido o tema. A apelação cível nº 70049146731342 traz outro caso em que, em cirurgia estética, não foi alcançado o resultado esperado pela paciente, além de sobrevierem cicatrizes, segundo o relator, “grosseiras”. 342 TJRS, 9ª Câmara Cível, rel. Leonel Pires Ohlweiler, data de julgamento de 27.03.2013. Apelação cível. Responsabilidade civil. Conhecimento da apelação. Nulidade da sentença. Inocorrência. Obrigação de resultado. Inversão do ônus da prova. Possibilidade. Cirurgia plástica. Dever de indenizar. Danos morais e estéticos. Danos materiais. Quantum. Sucumbência. Apelação - Recurso Conhecido - Preliminar contrarrecursal rejeitada, uma vez que a apelação interposta preenche o pressuposto básico exigido nos inc. I, II e III do art. 514 do CPC. Nulidade da Sentença. Afastamento. A responsabilidade do médico, tratando-se de cirurgia eminentemente estética, gera obrigação do resultado para o qual o profissional foi especificamente contratado pela paciente. É admissível a inversão do ônus da prova, sobretudo quando caracterizada a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência técnica da parte consumidora. E a inversão no caso em tela deu-se em momento adequado, pois pode ser realizada pelo julgador mesmo quando proferida a sentença, pois se trata de regra de julgamento. 118 No voto, faz-se uma extensa análise das diferenciações que permeiam as obrigações de meio de resultado e conclui pela aplicação das regras atinentes à esta última, tal como o faz os precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Sendo assim, lembra o relator, para caracterizar a responsabilidade do médico, basta a demonstração de que o resultado não foi atingido, evidenciando, pois, o inadimplemento contratual. Não se olvide que o simples não alcance do resultado, nesses casos, gera a presunção de culpa do médico, ou seja, presume-se ter ele cometido erro médico, eximindo-se de responsabilidade apenas se elidir o nexo causal. Outrossim, aplicável à espécie o Código de Defesa do Consumidor, segundo o desembargador, na sua inteireza nas relações entre médicos e pacientes, na medida em que são relações de consumo com a única especificidade de não se enquadrarem na responsabilização objetiva. Assim, cabível, inclusive, inversão do ônus probatório diante da vulnerabilidade e hipossuficiência presumidas do consumidor. Não se esqueça que tal aplicação, conforme já tratado, foi amplamente discutida, de modo que, para alguns, a regra da inversão do ônus da prova preceituada pelas normas consumeristas não se aplicariam aos profissionais liberais. De qualquer modo, o certo é que, na prática, a depender do caso, como o em tela, o juiz, verificando a necessidade da inversão do ônus da prova, poderá aplicá-la, a despeito de alguns doutrinadores acreditarem que o Julgamento Extra Petita. Inocorrência. A causa deve ser decidida de acordo com os limites definidos no pedido inicial e na contestação. Pela análise da contestação, percebe-se que o demandado rebateu a pretensão inicial sob o argumento de que a autora teria sido informada dos riscos da cirurgia e da presença de cicatrizes mesmo depois da cirurgia estética realizada, sendo do demandado o ônus da prova a esse respeito; tal tema não implica julgamento extra petita, mormente porque a decisão proferida não se afastou da tese jurídica explanada pelo demandado, de modo que ela encontra respaldo na própria contestação ofertada nos autos. Havendo os limites balizadores da lide, foram considerados pela sentença, a qual julgou a lide conforme as questões controvertidas na espécie. Responsabilidade civil do médico. Na hipótese de responsabilidade civil por erro médico oriunda de cirurgia estética, a qual se notabiliza pela obrigação de resultado a ser atingido pelo profissional, são aplicáveis as regras da responsabilidade subjetiva com culpa presumida. Situação concreta dos autos. Na espécie, a melhora estética pretendida (remodelagem do abdômen), embora adequada a escolha da técnica cirúrgica, à evidência, não foi alcançada pelo resultado insatisfatório do procedimento a que se submeteu a autora; dele resultou a presença de uma cicatriz grosseira e posicionada de uma forma muita alta, causando deformidade física. Configurado o ato ilícito, pelo qual tem responsabilidade o demandado, e o dever de indenizar os danos estéticos e morais, bem como os materiais, sofridos pela autora. Quantum indenizatório por danos estéticos. Súmula 387 do STJ. Caso em que se evidenciam os danos estéticos na autora, justificados em razão da permanente deformidade física no abdômen pela presença de grosseira cicatriz, capaz de causar complexo de inferioridade. Quantia majorada para adequar aos valores institucionalizados pela jurisprudência do Tribunal. Quantum indenizatório por danos morais. O valor a ser arbitrado a título de indenização por danos morais deve refletir sobre o patrimônio do ofensor, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da ordem jurídica ao resultado lesivo produzido, sem, contudo, conferir enriquecimento ilícito ao ofendido. Quantum mantido. Sucumbência recíproca. Afastamento. Verba honorária sucumbencial mantida. Como é meramente estimativo o quantum relativo ao pedido indenizatório por danos morais e estéticos, não há falar em sucumbência recíproca, mesmo porque a autora obteve igualmente o acolhimento dos danos materiais. O demandado deve responder integralmente pelas custas processuais e os honorários advocatícios em 15% sobre o valor atualizado da condenação. Preliminares afastadas. Apelação desprovida. Recurso adesivo parcialmente provido. Unânime. 119 Código de Dfesa do Consumidor, ao fazer a ressalva do artigo 14, §4º, tenha expressamente excepcionado do seu âmbito de aplicação os profissionais liberais. No caso em voga, o desembargador, olhando subjetivamente para as fotos anteriores e posteriores ao procedimento, percebeu não só pela ausência de alcance do resultado, como pela superveniência de visíveis cicatrizes e, considerando a culpa presumida do médico, que não logrou demonstrar que o resultado deixou de ser alcançado por motivos exteriores a sua conduta, é responsável, devendo reparar os danos estéticos sofridos, os morais, bem como os materiais, develvendo, neste caso, os valores despendidos pela paciente para a realização da cirurgia. A apelação cível nº 70051647840343, por sua vez, mantém o mesmo tratamento jurídico dispensado às obrigações de resultado assumidas pelo médico cirurgião estético e sua culpa presumida como os demais julgados já vistos, de forma que o profissional pode elidir sua responsabilidade apenas se provar não ter agido com culpa ou se afastar o nexo de causalidade. 343 TJRS, 10ª Câmara Cível, rel. Paulo Roberto Lessa Franz, data de julgamento de 29.11.2012. Apelações cíveis. Responsabilidade civil. Cirurgia estética. Colocação de próteses mamárias. Obrigação de resultado. Responsabilidade subjetiva. Culpa presumida. Nulidade da sentença. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Ausente mínimo indício probatório de que o réu tenha protocolado documentos juntamente com a contestação, os quais não teriam sido juntados aos autos, por erro cartorário, não há falar em cerceamento de defesa. Hipótese em que, ademais, a juntada tardia dos documentos não trouxe prejuízo à parte, não havendo razão para decretar a nulidade. Preliminar rejeitada. Resultado insatisfatório. Dever de indenizar. A obrigação assumida pelo cirurgião plástico na cirurgia estética embelezadora é de resultado, e sua responsabilidade é subjetiva, com culpa presumida, sendo do profissional o ônus de comprovar que não agiu com culpa em qualquer das modalidades: negligência, imprudência ou imperícia. Aplicação do art. 14, § 4º do CDC. Hipótese em que restou demonstrado nos autos a conduta culposa do réu, presumida pela não obtenção do resultado estético legitimamente esperado pela paciente ao submeter-se à cirurgia plástica de aumento de mamas, ensejando o dever de indenizar do médico. Dano material. O dano material a que faz jus à autora deve corresponder às despesas decorrentes da realização de novo procedimento cirúrgico para correção do resultado, cujo montante deve ser apurado em liquidação de sentença. Reforma da sentença, no ponto. Dano moral. Configuração. São evidentes os infortúnios decorrentes da submissão à cirurgia plástica embelezadora com resultado manifestamente insatisfatório, diante do presumível sofrimento, frustração de expectativas e impotência, capazes de retirar a pessoa de seu equilíbrio psíquico, colorindo-se, assim, a figura do dano moral in re ipsa. Condenação mantida. Quantum indenizatório. Majoração. Na fixação da reparação por dano extrapatrimonial, incluindo, in casu, o dano estético, incumbe ao julgador, atentando, sobretudo, para as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado, e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, arbitrar quantum que se preste à suficiente recomposição dos prejuízos, sem importar, contudo, enriquecimento sem causa da vítima. A análise de tais critérios, aliada às demais particularidades do caso concreto, conduz à majoração do montante indenizatório em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), corrigidos monetariamente, conforme determinado no ato sentencial. Juros de mora. Termo inicial. Em se tratando de responsabilidade civil contratual, os juros de mora incidem a contar da citação, nos termos do art. 405 do Código Civil, sendo inaplicável a Súmula 54 do STJ. Manutenção da sentença, no tópico. Apelação da autora parcialmente provida. Apelação do réu desprovida. 120 3.5 Superior Tribunal de Justiça (STJ) A análise dos julgados do Superior Tribunal de Justiça tem dois grandes sentidos: o primeiro é reforçar todo o posicionamento adotado pelos Tribunais Estaduais, o que não podia ser diferente, já que a Corte assume a posição de responsável pela uniformização jurisprudencial pátria. O segundo sentido é o surgimento de um voto divergente quanto à natureza obrigacional assumida pelo médico no procedimento estético, o que pode demonstrar a alteração gradativa do tratamento jurisprudencial dado ao tema. Quanto ao alinhamento aos posicionamentos já explicitados, temos o Recurso Especial nº 236.708/MG344, o de nº 985.888/SP345, que, mais uma vez, reafirmam o posicionamento 344 STJ, Quarta Turma, rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal convocado Do TRF 1ª Região), data de julgamento de 10.02.2009. Civil. Processual civil. Recurso especial. Responsabilidade civil. Nulidade dos acórdãos proferidos em sede de embargos de declaração não configurada. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Dano comprovado. Presunção de culpa do médico não afastada. Precedentes. 1. Não há falar em nulidade de acórdão exarado em sede de embargos de declaração que, nos estreitos limites em que proposta a controvérsia, assevera inexistente omissão do aresto embargado, acerca da especificação da modalidade culposa imputada ao demandado, porquanto assentado na tese de que presumida a culpa do cirurgião plástico em decorrência do insucesso de cirurgia plástica meramente estética. 2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que objeto do contrato estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profissional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica na busca pela cura. 3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a alcançar um determinado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o entendimento nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios. 4. No caso das obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu de culpa por parte do médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta que a vítima demonstre, como fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para que a culpa se presuma, havendo, destarte, a inversão do ônus da prova. 5. Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da "vítima" (paciente). Recurso especial a que se nega provimento. 345 STJ, Quarta Turma, rel. Rel. Ministro. Luis Felipe Salomão, data de julgamento de 16.02.2012. Cirurgia estética. Danos morais. Nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com presunção de culpa. Esse é o entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial, manteve a condenação do recorrente – médico – pelos danos morais causados ao paciente. Inicialmente, destacou-se a vasta jurisprudência desta Corte no sentido de que é de resultado a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendose o profissional com o efeito embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja de resultado, a responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da prova, cabendo-lhe comprovar que os danos suportados pelo paciente advieram de fatores externos e alheios a sua atuação profissional. Vale dizer, a presunção de culpa do cirurgião por insucesso na cirurgia plástica pode ser afastada mediante prova contundente de ocorrência de fator imponderável, apto a eximi-lo do dever de indenizar. Considerou-se, ainda, que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC o caso fortuito e a força maior, eles podem ser invocados como causas excludentes de responsabilidade dos fornecedores de serviços. No caso, o tribunal a quo, amparado nos elementos fático-probatórios contidos nos autos, concluiu que o paciente não foi advertido dos riscos da cirurgia e também o médico não logrou êxito em provar a ocorrência do fortuito. 121 adotado pela Corte no sentido de que, em se tratanto de cirurgias plásticas estéticas, a obrigação assumida pelo cirurgião é de resultado, ainda que a doutrina seja divergente. Mesmo assim, a grande discussão que permeia demanda indenizatórias pelo insucesso da cirurgia estética, que ocasionou danos ao paciente pela obtenção de resultados inversos aos esperados, é quanto à existência da presunção da culpa em desfavor do cirurgião. Nesse sentido, ambos os relatores são enfáticos ao concordarem com a referida presunção de culpa, que não significa, de maneira alguma, responsabilidade objetiva, a teor do disposto no artigo 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor. Assim, em casos tais, basta que a vítima do dano comprove o dano, ou seja, que o médico não alcançou o resultado prometido tal qual contratado, para a presunção da culpa, invertendo-se, pois, o ônus da prova. Não desvencilhando-se da culpa que lhe foi presumidamente imputada, por meio de comprovação de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima, o médico deverá indenizar. Não se olvide outrossim que eventuais fatores e reações estranhas à cirurgia, ainda que não altere a natureza obrigacional assumida pelo médico como de resultado, são causas suficientes e autônomas que podem romper o nexo de causalidade entre o dano e a conduta do profissional. Assim, a presunção de culpa do médico pode ser afastada pela comprovação de fator imponderável. Dessa maneira, apesar de não haver análise fática na Corte, de acordo com a Súmula nº 7 346 , do Superior Tribunal de Justiça, os relatores frisaram de maneira clara a necessidade de verificação da culpa do médico nas cirurgias estéticas, já que sua responsabilidade não é objetiva, mas que há a inversão do ônus probatório, recaindo ao profissional o dever de provar caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Outro ponto que merece ser levantado é a aceitação do “fator imponderável” como fator de rompimento do nexo de causalidade, quebrando a ideia já levantada de que a análise da responsabilidade pelo insucesso em cirurgia plástica estética está adstrita pura e simplesmente à inexecução contratual. Na verdade, como ficou demonstrado, fatores que fogem à diligência do cirurgião são levados em consideração, podendo-se concluir, assim, Assim, rever os fundamentos do acórdão recorrido importaria necessariamente no reexame de provas, o que é defeso nesta fase recursal ante a incidência da Súm. n. 7/STJ. 346 A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. 122 que, não existindo culpa, pode o cirurgião afastar-se de responsabilidade, mas deverá provar a existência de circunstâncias que não poderia prever, ante sua presunção de culpa. Já no Recurso Especial nº 81.101/PR347, anterior aos demais julgados do Superior Tribunal de Justiça apresentados, a solução da controvérsia também não é diferente e são tecidos pelo relator, Ministro Zveiter, grande parte dos comentários já expostos sobre a obrigação de resultado da cirurgia estética e a presunção de culpa do cirurgião. Entretanto, a novidade fica por conta do voto do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, um dos maiores expoentes da tese de que a cirurgia estética não seria regida pela obrigação de resultado, mas pela de meio, como a grande maioria das obrigações que permeiam médicos e pacientes. Para o Ministro, que teve seu voto vencido mesmo após contundente argumentação, as várias modalidades de especialidades cirúrgicas não guardam entre si diferenças essenciais ou constitutivas, concluindo que toda cirurgia representa uma forma de tratamento. Quanto às de natureza estética, não há dúvida da possibilidade de extremo sofrimento psíquico daqueles que buscam esse tipo de cirurgia para o embelezamento de determinada parte do corpo; não significa, portanto, que a cirurgia estética não busca curar uma patologia. Nada obstante, a realização de cirurgias necessita de profissional habilitado, que age com prudência, perícia e diligência. Mesmo assim, Direito lembra que, apesar da relação médico-paciente estar permeada pela expectativa de bons resultados, ela também guarda a possibilidade da superveniência de maus resultados, mesmo diante da ausência de imprudência, imperícia e negligência, já que depende de fatores alheios, como o próprio comportamento do corpo humano. Dessa maneira, para o Ministro, nenhuma cirurgia guarda certeza absoluta quanto ao seu êxito, pois toda e qualquer cirurgia pode apresentar resultados que não são esperados mesmo na ausência de erro médico. A literatura médica, mormente no tocante à cirurgia 347 STJ, Quarta Turma, rel. Rel. Ministro Waldemar Zveiter, data de julgamento de 13.04.1999. Civil e processual. Cirurgia estética ou plástica. Obrigação de resultado (responsabilidade contratual ou objetiva). Indenização. Inversão do ônus da prova. I - Contratada a realização da cirurgia estética embelezadora, o cirurgião assume obrigação de resultado (Responsabilidade contratual ou objetiva), devendo indenizar pelo não cumprimento da mesma, decorrente de eventual deformidade ou de alguma irregularidade. II - Cabível a inversão do ônus da prova. III - Recurso conhecido e provido. 123 estética, é vasta nesse sentido, tanto que em outros países, como a maior parte do Canadá, adotante do sistema da Common Law, destaca a responsabilidade dos médicos como limitada a uma obrigação de meios, pois não estão vinculados aos resultados, mas apenas a fornecer competentes informações e tratamentos aos seus pacientes, posição partilhada pelo Ministro. Dessa maneira, em demandas indenizatórias, a simples afirmação do paciente de que o médico não teria alcançado o resultado prometido não é suficiente para gerar a presunção de culpa do cirurgião e consequente inversão do ônus probatório, de acordo com o voto do Ministro, pois o paciente deve provar a culpa ou pelo menos não ter recebido as informações competentes sobre a cirurgia. Segundo Direito, ainda, não bastasse todos os argumentos já elencados para caracterizar a obrigação médica como de meios, sempre, também não poderia ser aplicado o artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, que trata da possibilidade de inversão do ônus da prova, porque o próprio codex afastou essa possibilidade quando da redação do artigo 14, §4º, que não faz qualquer diferenciação ou ressalva quanto à cirurgia estética. De acordo com o exposto, é possível notar o alinhamento do Ministro Menezes Direito ao posicionamento doutrinário já destacado que considera a cirurgia estética como de meio e não como de resultado em razão das inúmeras incertezas presentes no ramo médico e na natureza de tratamento que a ela também deve ser conferida, já que também procura curar patologias. Assim, nota-se o surgimento de divergência jurisprudencial que, apesar de ainda representar muito pouco diante de todos os outros julgados analisados, pode ser considerado como uma parâmetro para decisões futuras. A última consideração a ser tecida de maneira geral em relação aos julgados é quanto à tamanha importância assumida pelos laudos periciais colacionados aos autos. Os juízes, normalmente leigos no assunto, baseiam suas decisões principalmente nas informações fornecidas pelos experts, necessárias muitas vezes no sopesamento das demais provas produzidas. Outrossim, na análise dos casos, não foi possível perceber uma certa predisposição dos peritos em afastar a conduta culposa ou errônea do médico por espírito de corpo profissional, 124 tese levantada alhures por alguns doutrinadores defendedores da não supervalorização do laudo pericial. 125 CONCLUSÕES É certo que algumas conclusões foram delineadas no transcorrer do desenvolvimento do tema, entretanto faz-se necessário organizá-las sinteticamente. O exercício da medicina, vista sob os olhares atuais da sociedade e do Direito, não pode ser encarado como intocável ou inquestionável e, se não observados os parâmetros estabelecidos pela ciência, ainda que se trate de um campo permeado pelo contínuo avanço e, também, muitas vezes, pela inexatidão, poderá ensejar a responsabilização civil do médico. Nesse sentido, a grande maioria dos procedimentos médicos é tida pela doutrina e jurisprudência como a assunção de obrigação de meio, ou seja, o profissional se obriga única e exclusivamente a empregar todo o cuidado e diligência, segundo os ditames da ciência, para alcançar o resultado que dele se espera, sem, entretanto, garanti-lo, ante as incertezas do comportamento físico e até mesmo psicológico do corpo humano. Assim, ainda que não alcançado o resultado do procedimento, teria o médico adimplido com sua obrigação. Dessa maneira, para alguns autores, não poderia de maneira alguma o médico se comprometer ao alcance de determinados resultados, pois não há hipóteses em que se pode prever com exatidão a resposta do organismo humano ao procedimento. O resultado não depende, assim, exclusivamente da atuação do profissional, mas está sujeito a fotores que não podem ser controlados, concluindo-se, pois, que as obrigações assumidas pelos médicos sempre serão de meios, nunca de resultados, pois apenas deverão atuar com o zelo e destreza no exercício do ofício. Para outros autores, entretanto, apesar de considerarem como regra a obrigação assumida pelos médicos como de meio, existem situações excepcionais em que empreendem obrigações de resultado, tais como quando o procedimento depender apenas de caráter puramente técnico, caso dos exames laboratoriais de baixa complexidade ou, ainda, se o profissional prometeu e garantiu o sucesso da intervenção, devendo, nestes casos, responder civilmente pela ausência dos resultados esperados. Em se tratando da cirurgia estética, tema posto em voga, apesar de inúmeros outros países entenderem-na como uma obrigação de meio, no Brasil prevalece a aceitação tanto por 126 parte da doutrina como da jurisprudência de que se trata de uma obrigação de resultado, baseando-se, para tanto, na argumentação de que ninguém, plenamente saudável, se submeteria à procedimento cirúrgico se não tivesse certeza da melhora do seu estado. Evidentemente, não há unanimidade. O principal efeito desse entendimento é o de que, para procedimentos considerados como obrigações de meio, ao paciente caberá provar que o médico agiu com culpa; por outro lado, para os procedimentos em encerrarem obrigação de resultado, basta o paciente demonstrar o dano, traduzido na inexecução contratual, que, em desfavor do médico, pesará presunção de culpa, cabendo a ele elidi-la por meio de provas que demonstrem que os resultados sobrevierem por fatores externos a sua conduta. Noutro giro, considerando as disposições legais sobre o tema, o Código de Defesa do Consumidor traz expressamente a necessidade de verificação de culpa dos profissionais liberais. Dessa maneira, aparentemente, ainda que a cirurgia estética seja considerada com obrigação de resultado e gere presunção de culpa do profissional, pelos disposto no referido codex, se houver prova de que não incorreu em imperícia, negligência ou imprudência, também estaria afastado o dever de indenizar, como se se tratasse unicamente de inversão processual do ônus da prova. Entretanto, a abordagem é diferente por parte da doutrina e praticamente não observado na jurisprudência atual, uma vez que, presente a inexecução contratual, presente também estará o dever de indenizar, como se responsabilidade objetiva fosse, mas com absoluta impropriedade o uso do termo, pois, na verdade, como já mencionado, trata-se de hipóteses de responsabilidade subjetiva com culpa presumida. Assim, o mais correto, a princípio, seria o entendimento apresentado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, no sentido de que a verificação do tipo da obrigação assumida pelo cirurgião dependerá do caso concreto: se prometeu alcançar determinado resultado, apresentando fotografias “antes e depois” e levando o paciente a concluir que ficará de determinada maneira, caracterizada estará obrigação de fim; deixando claro que se não garante o resultado, será obrigação de meio. Entretanto, na prática, se assim fosse, difícil imaginar uma situação em que alguém se submeteria a esse tipo de cirurgia, principalmente sem ter a exata noção de como ficará depois; por isso a obrigação de resultado parece mais alinhada às expectativas dos pacientes que se submetem a esse tipo de cirurgia. 127 O grande cuidado que deve ser tomado é para que os Tribunais não considerem a questão de maneira tão estanque, ou seja, não alcançado o resultado, presente o dever de indenizar, mas se existir inexecução que fuja do seu alcance, como caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima, não deve ser o médico responsabilizado; e nesse tocante se insere a álea do corpo, pois se impossível de ser aferido motivo físico próprio do paciente que impeça a execução, caracterizado estaria o rompimento do nexo de causalidade. Quanto à inversão do ônus da prova, presente no Código de Defesa do Consumidor, há discussão sobre sua aplicabilidade ou não para as obrigações médicas. De todo o modo, em se tratando de obrigação de resultado, tal discussão se torna irrelevante, pois pela sua própria natureza, existirá inversão do ônus da prova, já que existe presunção de culpa em desvafor do profissional, conforme o entendimento que prevalece atualmente na jurisprudência nacional. O tema, enfim, carrega consigo tamanha complexidade que necessita, pois, de estudos e discussões contínuos. O presente trabalho apenas buscou delinear o tratamento jurídico conferido pela doutrina e jurisprudência atual ao tema, na busca de facilitar o entendimento quanto à interação que sempre existirá entre as ciências médicas e as jurídicas, mormente no tocante à responsabilidade civil decorrente das cirurgias estéticas, assunto cada vez mais em voga diante da utilização cada vez mais comum dos referidos procedimentos. Em se tratando de um tema ligado aos constantes avanços das ciências médicas, não poderia ser tratado, de modo algum, com exaustão ou com soluções estanques. 128 129 BIBLIOGRAFIA ALCÂNTARA, Hermes Rodrigues de. Responsabilidade médica. Rio de Janeiro: José Konfino, 1971. AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria de (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista Dos Tribunais, Vol. V, 2010. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ANDORNO, Luis O.. La responsabilidad civil médica. Porto Alegre: Ajuris, 1993. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Conceito de ato ilícito e o abuso de direito. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da (Coord.). 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