PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Juliana Oliveira Domingues Defesa da concorrência e comércio internacional no contexto do desenvolvimento: os cartéis de exportação como isenção antitruste DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Juliana Oliveira Domingues Defesa da concorrência e comércio internacional no contexto do desenvolvimento: os cartéis de exportação como isenção antitruste DOUTORADO EM DIREITO Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Direito das Relações Econômicas Internacionais sob a orientação do Prof. Doutor Cláudio Finkelstein. SÃO PAULO 2010 Banca Examinadora __________________________________ __________________________________ __________________________________ __________________________________ __________________________________ “Porque para Deus nada é impossível.” Lucas 1:37. AGRADECIMENTOS A DEUS, pois Ele sabe exatamente tudo o que foi necessário passar para terminar esse projeto e capacitou-me para superar todos os obstáculos. Somente tenho a agradecer tudo o que Ele me proporcionou nesses pouco mais de 30 anos de vida. Ao meu querido e amado marido Eduardo Molan Gaban, que esteve ao meu lado nesse período de fé e perseverança. Não só um grande companheiro, mas, acima de tudo, um grande amigo, que soube apoiar-me nos momentos mais difíceis para que essa etapa fosse cumprida. Agradeço-lhe também pela leitura de todo material produzido, assim como pelos nossos debates, longos e profícuos. Aos meus queridos e amados pais Sandra e Jayro e minha querida e amada irmã Jordana, minha base, que apesar de não terem intimidade com o universo jurídico, sempre me apoiaram, com muito amor e carinho, em todos os meus projetos. À Jordana também agradeço pela leitura atenta de parte desse trabalho. Ao Prof. Dr. Cláudio Finkelstein, com quem sempre pude contar e que jamais duvidou da minha capacidade. Além de um professor extremamente querido, seu entusiasmo e confiança foram fundamentais para a conclusão desse trabalho. Aos queridos amigos Fabiola Wust Zibetti, Rodrigo C. de Abreu Lima e Gustavo Assed Ferreira, excelentes professores e advogados, que despenderam tempo com a leitura parcial da tese, ajudando-me no aprimoramento do material produzido. Certamente não é fácil listar todos que, ao longo desses anos, ajudaram-me, de diversas formas, na elaboração desta tese. Assim, peço desculpas, desde logo, por alguma falta. A CAPES, pelo apoio fundamental que me foi dado no financiamento dessa pesquisa. Aos professores com quem pude discutir ou abordar o meu tema ao longo dos anos. Agradeço especialmente aos Professores Ivo Waisberg, Vladmir Oliveira da Silveira, Umberto Celli Junior, Alberto do Amaral Junior, Richard Whish, Daniel Sokol, Florian Becker e Fábio Nusdeo. À New York University (NYU), por ter aberto as portas para a minha pesquisa e cujo acervo bibliográfico foi fundamental para suportar a tese aqui desenvolvida. A minha querida amiga Emily Ikeda, não apenas pelos mais de 25 anos de amizade, mas por ter aberto as portas de sua casa em New York em um momento fundamental. Aos meus familiares e amigos, incluindo meus cunhados, sogros, tios, primos, que sempre acreditaram em meu potencial e que, em determinados momentos, privaram-se da minha presença diante da necessidade de conclusão desse trabalho. Às acadêmicas Eloá Fígaro e Maria Fernanda Madi, pelo auxílio com a bibliografia. Aos meus avós (in memorian), que sempre me incentivaram em todas as pequenas conquistas. Agradeço a Deus pelo tempo que me permitiu conviver com pessoas tão maravilhosas e que me amaram tanto. Por fim, agradeço à compreensão dos meus colegas do L.O. Baptista Advogados, que permitiram que eu desenvolvesse, no último mês, as minhas atividades em casa, facilitando a conclusão dessa tese. RESUMO A discussão sobre a relação entre a defesa da concorrência e o comércio internacional não é nova. Entretanto, mesmo no mundo globalizado existem países que ainda carecem do conhecimento necessário para tratar das condutas de agentes estrangeiros que possam distorcer a concorrência em seus mercados. As organizações internacionais têm envidado esforços para discutir as melhores práticas e para oferecer suporte aos países que desejam criar ou aprimorar suas leis e políticas de concorrência, especialmente para combater os efeitos de práticas anticoncorrenciais. No passado houve muita argumentação sobre a necessidade de se criar um conjunto de regras multilaterais de concorrência em razão das condutas anticoncorrenciais que tem dimensão internacional e também pelo uso de medidas artificiais com fins protecionistas direcionados a anular a concorrência dos produtos importados. No entanto, a criação de regras multilaterais de concorrência não tem sido o foco dos debates recentes. No presente estudo, parte-se da premissa que o direito possui um papel fundamental na promoção do desenvolvimento. A noção de desenvolvimento adotada é mais ampla, baseada principalmente no novo institucionalismo (Douglass North) e no desenvolvimento como liberdade (Amartya Sen). A análise realizada voltou-se à prática dos cartéis de exportação, que são isenções antitruste em grande parte das jurisdições e que podem prejudicar o processo de desenvolvimento. Os cartéis de exportação podem gerar distorções ao comércio internacional, especialmente aos países menos desenvolvidos ou em desenvolvimento que não possuem expertise para lidar com essas condutas. Esse tema tem sido pouco debatido até mesmo por tratar-se de conduta com muitas particularidades e que conta, muitas vezes, com o apoio governamental. Contudo, diante da necessidade de fomentar o desenvolvimento e com base nas premissas adotadas neste estudo, entende-se que o tema precisa ter um tratamento adequado, considerando a interface existente entre a concorrência e o comércio internacional. Assim, o presente estudo aprofundará a análise das isenções aos cartéis de exportação e, dentro do contexto de desenvolvimento adotado, apontará a necessidade de criação de regras multilaterais específicas que regulem essa prática. Palavras-chave: Comércio Internacional, Concorrência, Desenvolvimento, Isenções Antitruste, Cartéis de Exportação, Cooperação. ABSTRACT The discussion about the relationship between competition defense and international trade is not a novelty. However, even in the globalized world there are countries that still lack the necessary expertise to deal with conducts of foreign agents that may distort the competition within their markets. International organizations have taken steps to discuss best practices and offer support to countries that intend to develop or improve their competition laws and policies and, in particular, to fight against the effects of anticompetitive practices. In the past it was argued that a set of multilateral competition rules should be created in view of international anticompetitive conducts and the use of artificial protectionist measures directed to annul the competition of imported products. However, the creation of multilateral competition rules has not been the focus of recent debates. The present study starts from the premise that the law is fundamental to development. The notion of development adopted herein is extensive, and based mainly in the new institutionalism (Douglass North) and in development as freedom (Amartya Sen). The analysis performed in this study was directed to export cartel practices that are antitrust exemptions in most jurisdictions and may be harmful to development. Export cartels may generate international trade distortions, especially in less developed or developing countries that do not have the expertise to handle such conducts. This theme has not been sufficiently debated even because it is a very particular conduct that relies on governmental support more often than not. Notwithstanding, in light of the need to foment development and based on the premises adopted in the present study, it is clear that such theme should be granted proper treatment considering the existing interface between competition and international trade. So, this study intends to deepen the analysis of export cartel exemptions and, within the development context that was adopted, indicate the need to create specific multilateral rules to regulate such practice. Key Words: International Trade, Competition, Development, Antitrust Exemptions, Export Cartels, Cooperation. SIGLAS AAD — Acordo Antidumping da OMC ACCC — Competition and Consumer Commission ACR — Acordos Regionais de Comércio ANZCERTA — Australia-New Zeland Closer Economic Relations Trade Agreement APEC — Asia-Pacific Economic Cooperation ASMC — Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias BIRD — Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento CADE — Conselho Administrativo de Defesa Econômica CAMEX — Câmara de Comércio Exterior CAPES — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CARC — Comitê de Acordos Regionais de Comércio CCM — Comissão de Comércio do MERCOSUL CDCS — Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas do MERCOSUL CDPC — Comitê de Direito e Política de Concorrência CE — Comunidades Européias CF/88 — Constituição Federal de 1988 CLP — Competition Law and Policy CPR — Código de Conduta sobre Práticas Comerciais Restritivas da ONU DECOM — Departamento de Defesa Comercial DPDE — Departamento de Proteção e Defesa Econômica DRAMS — Dynamic Random Access Memory Semiconductors EFTA — European Free Trade Association EUA — Estados Unidos da América FBI — Federal Bureau of Investigation FMI — Fundo Monetário Internacional FTC — Federal Trade Comission FSIA — Foreign sovereign immunity Act GATS — Acordo Geral sobre Comércio de Serviços GATT — Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio IAEAA — International Antitrust Enforcement Assistance Act IBRAC — Instituto Brasileiro de Estudo das Relações de Concorrência e de Consumo ICN — International Competition Network LDCs — Least Developed Countries MDIC — Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio MERCOSUL — Mercado Comum do Sul MITI — Minister of International Trade and Industry NCM — Nomenclatura Comum do MERCOSUL MRE — Ministério das Relações Exteriores NMF — Nação Mais Favorecida OCDE — Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico OIC — Organização Internacional do Comércio OMC — Organização Mundial do Comércio ONG — Organização Não-Governamental ONU — Organização das Nações Unidas OPEP — Organização dos Países Exportadores de Petróleo PEDs — PTN — Princípio do Tratamento Nacional RPC — República Popular da China RNV — Reclamação de Não Violação RVE — Restrições Voluntárias às Exportações SBDC — Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência SDE/MJ — Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça SEAE/MF — Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda SNDE — Secretaria Nacional de Direito Econômico SGP — Sistema Geral de Preferências TED — Tratamento Especial e Diferenciado UE — União Européia UNCTAD — Conferência das Desenvolvimento USDOC — United States Department of Commerce USDOJ — Departamento de Justiça Norte-Americano USITC — United States International Trade Commission WGTCP — Working Group on the Interaction between Trade and Competition Policy WPA — Webb-Pomerene Export Trade Act of 1918 Países em Desenvolvimento Nações Unidas sobre Comércio e LISTA DE TABELAS TABELA 01 – Adoção de leis de concorrência................................................... 55 TABELA 02 – Cooperação técnica e capacity-building – UNCTAD................... 79 TABELA 03 – FSIA case law: Interpretação de ato comercial............................ 179 TABELA 04 – Pedidos de Aprovação de Ações Concertadas............................ 193 TABELA 05 – Isenções a partir da Lei Nacional da Concorrência – Países Selecionados........................................................................................................ 194 TABELA 06 – Número de isenções para cartéis de exportação em vigor entre 1980 – 2003......................................................................................................... 201 TABELA 07 – Grau de consenso relativo aos padrões normativos em nível nacional e multilateral.......................................................................................... 228 TABELA 08 – Acordos Regionais de Comércio em vigor - 2010......................... 233 TABELA 09 – Lista de Acordos Bilaterais e Regionais relativos à Política de Concorrência – 1998…………………………………………………………………. 242 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................... Parte I - A DIMENSÃO INTERNACIONAL CONCORRÊNCIA E O DESENVOLVIMENTO DA POLÍTICA 1 DE 1 A CONCORRÊNCIA E O COMÉRCIO INTERNACIONAL............................ 1.1 Breve contexto histórico............................................................................... 1.2 A sobreposição de regimes de concorrência no contexto internacional...... 1.3 A interface entre o direito do comércio internacional e o direito da concorrência...................................................................................................... 1.4 As diferentes perspectivas de análise......................................................... 1.4.1 Análise da legislação brasileira: pontos de divergência e objetivos comuns.............................................................................................................. 1.4.2 Estudo de casos: exemplos de interação entre as políticas..................... 1.4.2.1 A análise antitruste do caso da insulina................................................ 1.4.2.1.1 Comentários sobre os ajustes realizados após a decisão do CADE 1.4.2.2 A investigação de dumping dos alto-falantes........................................ 1.4.3 Observações adicionais sobre os estudos de casos................................ 2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E O CONTEXTO DAS ECONOMIAS EM DESENVOLVIMENTO.......................................................... 2.1 O surgimento “tardio” das políticas de concorrência.................................... 2.1.1 O processo de adoção nas economias em desenvolvimento................... 2.1.2 O problema da ausência de tradição e de conhecimento......................... 2.2 As organizações internacionais como fomentadoras das políticas de concorrência....................................................................................................... 2.2.1 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). 2.2.2 Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)........................................................................................................... 2.2.3 International Competition Network (ICN)................................................... 2.2.4 Organização Mundial do Comércio (OMC)................................................ 3 O DESENVOLVIMENTO: TEORIAS E PRINCÍPIOS...................................... 3.1 O desenvolvimento e sua relação com as políticas de concorrência........... 3.2 O conceito de desenvolvimento aplicável..................................................... 3.2.1 A Escola da Nova Economia Institucional e Douglass C. North................ 3.2.2 O Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen.............................. 3.2.3 Ponderações sobre as teorias de North e Sen no contexto da defesa da concorrência....................................................................................................... 3.3 Regulação, concorrência e desenvolvimento............................................... 3.3.1 Observações com base na Constituição Federal de 1988........................ 3.4 A teoria do comércio estratégico, o protecionismo liberal e o princípio da intervenção assimétrica...................................................................................... 3.5 A aplicação do Tratamento Especial e Diferenciado (TED) na OMC........... 3.6 A concorrência como um bem público.......................................................... 15 15 23 25 31 32 37 38 40 45 51 53 53 56 59 61 62 69 80 85 95 95 98 99 103 106 107 111 113 119 122 PARTE II – OS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO E A PROPOSTA DE UMA POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA MULTILATERAL 4 OS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO.................................................................. 4.1 O que é um cartel de exportação................................................................. 4.2 Os cartéis de exportação como cartéis hard-core e a questão da extraterritorialidade............................................................................................ 4.2.1 A teoria dos efeitos................................................................................... 4.2.2 A abordagem unilateral da extraterritorialidade........................................ 4.3 A experiência das Comunidades Européias (CE)....................................... 4.3.1 O caso Wood Pulp e a teoria dos efeitos................................................. 4.4 A experiência dos EUA................................................................................ 4.4.1 Os casos Alcoa e Timberlane e a teoria dos efeitos................................. 4.4.2 O Export Trading Company Act of 1982 (ETC)……………………………. 4.5 A cortesia positiva e a assimetria normativa................................................ 127 128 5 O CASO DA OPEP E AS DIFERENTES APLICAÇÕES DAS ISENÇÕES... 5.1 A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).................... 5.1.1 O Foreign sovereign immunity Act (FSIA)................................................. 5.1.2 A doutrina do Act of State.......................................................................... 5.1.3 Outros possíveis argumentos.................................................................... 5.1.4 Observações complementares sobre a OPEP.......................................... 5.2 A situação das isenções aos cartéis de exportação..................................... 5.2.1 O tratamento das isenções em diferentes jurisdições............................... 5.3 A situação dos cartéis de exportação no contexto internacional.................. 5.4 Breves considerações sobre o tema no direito brasileiro............................. 176 176 178 183 186 187 189 190 201 204 6 A MULTILATERALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA E O TRATAMENTO DOS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO......................................... 6.1 O possível tratamento dos cartéis de exportação na OMC.......................... 6.2 O Princípio do Tratamento Nacional (PTN).................................................. 6.3 O Acordo sobre Salvaguardas...................................................................... 6.4 As Reclamações de Não Violação (RNV).................................................... 6.5 A possibilidade de convergência ou de harmonização das leis de concorrência....................................................................................................... 6.5.1 Os Acordos Regionais de Comércio (ACR) no contexto da OMC............ 6.5.2 Considerações sobre o MERCOSUL........................................................ 6.5.3 A cooperação em Acordos Bilaterais........................................................ 6.6 A promoção do desenvolvimento por meio de hard law e soft law...................................................................................................................... 136 138 142 146 150 152 159 163 169 208 211 217 219 222 226 231 237 242 244 7 CONCLUSÃO.................................................................................................. 253 8 REFERÊNCIAS............................................................................................... 261 1 INTRODUÇÃO O presente estudo tratará da defesa da concorrência no contexto do comércio internacional, especialmente levando-se em consideração a conduta dos cartéis de exportação, considerada como isenção antitruste em grande parte das jurisdições. Assim, é valido já nesse início traçar breves comentários sobre essa conduta, assim como apontar os tópicos que serão explorados em cada capítulo. Os cartéis exercem sobre os empresários uma grande atração que é reconhecida há muito tempo. Adam Smith escreveu, em 1776, uma clara referência sobre essa “atração” ao colocar em seu estudo que as pessoas que atuam no mesmo ramo comercial raramente se encontram sem que a conversa termine em uma conspiração contra o povo, ou em algum tipo de acordo para elevar preços1. Ao estudar o tema na década de 70, BANDEIRA explica que a liberdade de concorrência, conhecida como mola propulsora do capitalismo, acabaria promovendo a expropriação do capitalista pelo capitalista, transformando muitos capitais pequenos em poucos capitais grandes2. De fato, em seu estudo, o autor identifica o surgimento de grandes empresas capitalistas ou grupos de empresas capitalistas, que concentravam parte considerável da produção ou da venda de determinadas mercadorias, dominando determinados mercados3. Em sua maioria as empresas buscam a proteção dos acordos de colusão (i.e., acordos de cartel) para facilitar o enfrentamento aos desafios do mercado. Cabe esclarecer que o ajuste, ou acordo entre empresas, não se restringe às empresas concorrentes entre si em um mesmo mercado (formação igualitária – ou horizontal), mas podem incluir em suas definições os acordos entre empresas fornecedoras e clientes entre si (formação hierárquica – ou vertical) 4. 1 SMITH, Adam. A riqueza das nações. V. 1. São Paulo: Nova cultural, 1988, p. 109. BANDEIRA, Moniz. Cartéis e desnacionalização. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979, p. 1. 3 BANDEIRA, 1979, p. 2. 4 BARBIERI FILHO, Carlos. Disciplina jurídica da concorrência. São Paulo: Resenha tributária, 1984, p. 142. 2 2 A colusão compromete seriamente o processo natural de competição, ao suprimir a rivalidade entre as empresas. Em adição, a eliminação da concorrência faz com que as empresas passem a atuar como um tipo de monopólio5, o que gera um efeito negativo sobre os consumidores. A colusão é também nociva na medida em que compromete a confiança pública no sistema de mercado competitivo6. Historicamente, esses tipos de organizações monopolistas emanaram por volta da segunda metade do século XIX, identificados principalmente nos Estados Unidos da América (EUA)7, onde a concentração de capital se desenvolveu rapidamente. Considerando este problema nos EUA, os americanos elaboraram o Sherman Act - lei antitruste8 norte-americana, numa tentativa de coibir os problemas relacionados principalmente ao abuso de poder econômico. Essa legislação é considerada como o mais significativo diploma legal no qual se corporificou a reação contra a concentração de poder em mãos de alguns agentes econômicos, e onde se procurou discipliná-la9. Contudo, defende FORGIONI que não é correto dizer que o Sherman Act é uma reação ao liberalismo econômico, uma vez que essa lei visava, justamente, corrigir as distorções trazidas pelo excesso de acumulação do capital e pretendia corrigir as distorções criadas pelo sistema liberal10. Neste panorama, a concorrência passou a ser vista como primordial para o sistema econômico, exigindo uma atuação do Estado para eliminar as distorções que podem ser causadas ao sistema. Deste modo, o Sherman Act tornou-se o 5 O monopólio “corresponde a uma situação na qual apenas uma pessoa ou uma empresa se apresenta como vendedora de um dado produto. Manifesta-se aqui em toda a sua plenitude o poder econômico, pois o monopolista está em condições de atuar simultaneamente nas duas variáveis que caracterizam a compra e venda, isto é, o preço e a quantidade.” NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3.ed. São Paulo: RT, 2001, p. 269. 6 OCDE, Diretrizes para elaboração e implementação de política de defesa da concorrência. São Paulo: Singular, 2003, p. 65. 7 De acordo com LOWENFELD: “Cartels are agreements among competitors to lessen the competition among them. In the United States, the most commom form of cartel is the price-fixing agreement.” LOWENFELD, Andreas F. Modern Competition Law: Substantive Rules and Principles, Oxford; New York: Oxford University Press, 2002, p. 354-355. 8 Os termos “lei antitruste” e “lei de defesa da concorrência” ou “direito antitruste” e “direito da concorrência” são utilizados como sinônimos. 9 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 65. 10 FORGIONI, 1998, p. 65. 3 núcleo de toda a atividade antitruste nos EUA, servindo como base, ou modelo, para a legislação de outros países11. No que diz respeito ao Brasil, a Constituição Federal de 1934 trouxe em seu artigo 11512 as primeiras preocupações relativas à liberdade econômica. Entretanto, não havia lei destinada à regular a concorrência, com a exceção do Código de Propriedade Industrial que tinha elementos destinados a evitar a vantagem competitiva13. Em 1945 surgiu a primeira lei brasileira de orientação antitruste, cujo autor era o então Ministro do Trabalho Agamennon Magalhães. Conhecida como Lei Malaia, o Decreto-Lei n.º 7.666, criava a Comissão de Defesa Econômica e dava poderes ao governo para expropriar qualquer organização que possuísse negócios que lesassem o interesse nacional, mencionando de forma específica, as empresas nacionais e estrangeiras vinculadas aos trustes14 e cartéis15. Posteriormente, o presidente Getúlio Vargas, que assinou a Lei Malaia, foi deposto por um golpe de Estado, e em 09 de novembro de 1945 o presidente provisório, José Linhares, desfez o seu ato16. No Brasil a repressão ao abuso de poder econômico foi trazida pela primeira vez de forma expressa na Constituição Federal de 1946. O seu art. 148 dizia que haveria repressão a qualquer forma de abuso de poder econômico nos seguintes termos: Art. 148. A lei reprimirá a toda e qualquer forma de abuso de poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua a natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.17 11 BANDEIRA, 1979, p. 3. Art. 115: A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses ditames, é garantida a liberdade econômica. 13 CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. Direito Antitruste & Relações Internacionais – Extraterritorialidade e Cooperação. Curitiba: Juruá, 2001, p. 119. 14 “Truste é combinação entre empresas para assegurar controle econômico sobre determinados mercados, a fim de afastar eventuais concorrentes e administrar os preços de vendas de seus produtos, em busca de lucros elevados.” RUDGE, Luiz Fernando. Dicionário de termos financeiros. 1.ed. São Paulo: Santander Banespa, 2003, p. 324. 15 BANDEIRA, 1979, p. 3. 16 BANDEIRA, 1979, p. 3. 17 Assim afirmava Pontes de Miranda a respeito do art. 148 da Constituição de 1946: “[...] é dificílimo manobrar as duas políticas a de intervenção na econômica e a luta contra os trustes. Acaba o Estado por ter tantas armas debaixo do braço – e tantos sabres e machados – que não possa ou não saiba 12 4 É importante mencionar a Lei n.º 1.521, de 26 de dezembro de 1951, pois embora alterasse os dispositivos da legislação sobre crimes contra a economia popular, continha uma série de dispositivos basicamente de antitruste, como ficou claramente disposto em seu art. 3º, III18. Em que pese essas iniciativas no Brasil, não houve nenhum diploma legal que regulamentasse a repressão ao abuso de poder econômico, conforme previa o art. 148 da Constituição Federal, até a promulgação da Lei n.º 4.137 de 10 de dezembro de 1962, que teve origem no projeto 122, de 1948, de autoria do Deputado Agamennon Magalhães. O art. 8º de referida lei criou o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), incumbido da apuração e repressão dos abusos ao poder econômico. O art. 2º da Lei nº 4.137 considerava abuso do poder econômico as seguintes práticas na medida em que pudessem produzir os seguintes resultados: domínio do mercado ou eliminação total ou parcial da concorrência; elevação sem justa causa dos preços, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros, sem aumentar a produção; condições monopolísticas ou abuso da posição dominante, com o fim de promover a elevação temporária dos preços; formação de grupo econômico19. Portanto, nos termos da Lei n.º 4.137/62, a associação de empresas seria considerada ilícita se, e somente se, produzisse determinado resultado ou objetivo que estivesse tipificado em lei de uma forma bastante aberta. Não foi significativo o número de casos durante a vigência da Lei n.º 4.137/62, uma vez que até 1975, apenas onze processos foram julgados pelo CADE20. Nas palavras de BANDEIRA: [...] o CADE, em todos os seus anos de existência sempre se caracterizou pela inoperância, jamais tomando qualquer atitude para usar, com acerto, nenhuma. Fixar preço e perseguir trustes, sem aparelhamento quase genial, se não genial, de economia e de administração públicas, é o mais perigoso dos empirismos”. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2ª edição aumentada. Vol. I. São Paulo: Max Limond, 1953, p. 28. 18 O Art. 3º, III, condena o acordo entre empresas com o fim de impedir ou dificultar, para efeito de aumento arbitrário de lucros, a concorrência em matéria de produção, transporte ou comércio. 19 “É ao cartel e ao grupo empresarial de coordenação que se refere a Lei 4.137, de 1962, ao falar em ‘atos, ajustes, acordos ou convenções entre empresas, de qualquer natureza, ou entre pessoas ou grupo de pessoas vinculadas a tais empresas ou interessadas no objeto de seus negócios’, que tenham por efeito uma das finalidades previstas [...]”. COMPARATO. Fabio Konder. Concorrência desleal. São Paulo: Revista dos Tribunais 375, 1976, p. 27. 20 FORGIONI, 1998, p. 126. 5 coibir os abusos do poder econômico, que lhe chegaram ao conhecimento 21. Entendendo a necessidade de ajustes e procurando melhorar a regulação da concorrência, em 1991 o governo promulgou a Lei n.º 8.158, prevendo uma abertura do mercado brasileiro e a liberalização da economia. Pretendia-se, com este novo diploma, dar maior celeridade aos procedimentos administrativos e apuração das práticas de violação à ordem econômica, com a criação da SNDE (Secretaria Nacional de Direito Econômico, do Ministério da Justiça - que depois passou a ser denominada Secretaria de Direito Econômico, do Ministério da Justiça – SDE/MJ)22. Pouco tempo depois surgiu a Lei n.º 8.884 de 1994, que sistematiza, ainda hoje, a matéria antitruste no Brasil23, que transformou o CADE em autarquia federal24. O art. 20 tipifica os atos considerados como contrários à ordem econômica, que são aqueles que tenham por objeto, ou produzam, os seguintes efeitos: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros; ou exercer de forma abusiva posição dominante. No contexto da Lei n.º 8.884 de 1994, se um acordo não restringe a livre concorrência, ou não acarreta a incidência de qualquer inciso do art. 20 de referida lei, não se pode falar na existência de cartel. A prática de cartel que geralmente é coibida caracteriza-se pelo ajuste entre agentes cuja função ou resultado seja o de restringir a concorrência. Por meio do cartel os agentes econômicos (i.e., produtores, fornecedores etc.) explicitamente concordam em cooperar por meio de acordos que alteram a concorrência artificialmente. Essa forma de cooperação empresarial é caracterizada pela uniformização de certos comportamentos ou pela realização de certa atividade conjunta, sem interferir na autonomia de cada empresa que permanece 21 BANDEIRA, 1979, p. 136. Veja-se nesse sentido: FORGIONI, 1998, p. 132. Cabe ressaltar também que não houve revogação da Lei n.º 4.137/62, e o CADE passou a funcionar junto à SNDE. 23 Vale observar que há um projeto de lei que busca alterar a estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Veja-se nesse sentido: BRASIL. CÂMARA. Projeto de Lei da Câmara N.º 06/2009 (PL Nº 3937/2004); Projeto de Lei Nº 2731/2008 (PLS 75/2005) e Projeto de Lei Complementar Nº 265/2007. Disponível em:< http://www.camara.gov.br> Acesso em 20 jul. 2010. 24 "[...] Pode-se conceituar autarquia como a pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de auto-administração, para o desempenho de serviços público descentralizado, mediante controle administrativo exercido nos limites da lei. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 429. 22 6 substancialmente independente naqueles aspectos da atividade que não estão sujeitos ao acordo25. Esse tipo de cartel é conhecido como cartel hard-core26. O cartel pode ser nacional ou internacional. Nesse sentido, várias condutas podem ser descritas como cartéis internacionais, sendo possível, de forma simples, classificá-los em três tipos: i) os cartéis hard-core, criados por produtores privados de pelo menos dois países, que cooperam no controle de preços e/ou dividem mercados no mundo; ii) os cartéis privados de exportação, não ligados ao Estado, cujos produtores são de um mesmo país e que fixam preços e/ou dividem o mercado de exportação; iii) os cartéis de exportação do Estado (que possuem algum tipo de envolvimento do Estado)27. É pacífico o entendimento de que as atividades dos cartéis chamados hardcore, especialmente que tenham dimensão internacional, provocam distorções no comércio internacional e diminuem os benefícios que a liberalização comercial pode oferecer. Com a crescente globalização, pode-se afirmar que existem condutas de cartel no plano internacional que requerem a ação de prevenção e repressão de diversos países28. No entanto, ainda hoje não existe uma opinião pacífica sobre como tratar dos possíveis efeitos dos cartéis de exportação e quase nada no meio jurídico brasileiro foi escrito sobre o tema. Há escassez bibliográfica, uma vez que os estudos que envolvem cartéis internacionais geralmente abordam os cartéis internacionais do tipo hard-core, até mesmo pelo consenso que existe de que os cartéis do tipo hard-core são condutas que merecem ser punidas. Assim, a proposta do presente estudo é estudar de forma aprofundada os cartéis de exportação que é o tipo de cartel menos explorado na literatura (mesmo na literatura internacional) em razão se suas características e objetivos. Vale destacar, neste início, que existem diversos tipos de cartéis, mas a doutrina 25 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 227. 26 Por ser “hard-core”, uma terminologia em inglês, preferiu-se não traduzir a expressão. 27 Em estudo, EVENETT, LEVENSTEIN e SUSLOW apontam que o cartel privado de exportação não atuaria no país dos agentes, ou seja, seriam direcionados ao mercado externo. Cf. EVENETT, S.J.; LEVENSTEIN, M.C.; SUSLOW, V.Y. International Cartel Enforcement: lessons from the 1990s. The Economist. Oxford, 2001, p. 1222-1223. Entretanto, veremos nesse estudo que existe uma classificação que aponta que existem os cartéis de exportação “mistos” que atuam dentro dos país e não apenas afeta o mercado externo. 28 Veja-se no mesmo sentido: OLIVEIRA, Gesner. Concorrência no Brasil e no mundo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 53. 7 majoritária defende que todos tendem a redução da produção e elevação dos preços, eliminando a concorrência entre as partes do acordo. O problema que torna os cartéis internacionais de exportação ainda mais complexos reside no fato de que as leis de concorrência de praticamente todos os países não punem esse tipo de cartel se não há produção de efeitos em seus territórios, sendo essa conduta, em geral, isenta pelas autoridades locais. No contexto desta pesquisa, a Parte I será dedicada à dimensão internacional do direito da concorrência. No Capítulo 1 se verá que, embora não exista uma instituição internacional ou acordo multilateral entre Estados29, os regimes nacionais de concorrência possuem conexão e, na maioria das vezes, interesses comuns. Como o tratamento (ou a ausência de tratamento dos cartéis de exportação) ainda carece de uma avaliação mais profunda, a Parte II desse estudo será dedicada aos cartéis de exportação e à proposta de um acordo multilateral do direito da concorrência. Entende-se que o tema proposto poderá contribuir para o aprimoramento e ainda colaborar para o discernimento da melhor forma de análise dos cartéis de exportação pelas autoridades, que ainda têm grandes dificuldades oriundas da interdisciplinaridade do tema, que envolve questões de direito, de economia e de comércio internacional (especialmente relacionada à aplicação de medidas de defesa comercial30). Assim, é importante esclarecer o contexto em que essa conduta está inserida, suas características e os elementos que diferenciam os cartéis de exportação dos outros tipos de cartéis internacionais. Em parte deste estudo será realizada uma análise das experiências, assim como das propostas e tendências para o tratamento do tema, inclusive em esfera multilateral (i.e., pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, Organização Mundial do Comércio - OMC etc.). 29 GUZMAN, Andrew T. The Case for International Antitrust. UC Berkeley: Boalt Hall. 2003, p. 3. Vale dizer que as condutas consideradas como violadoras ao comércio internacional podem ser neutralizadas por meio do uso de instrumentos de defesa comercial, isto é, pela imposição de medidas antidumping, medidas compensatórias, ou pela aplicação de medidas de salvaguarda – hipóteses que serão apresentadas no presente estudo. Os instrumentos de defesa comercial visam evitar danos à indústria nacional ou recompor o equilíbrio financeiro no mercado. As práticas consideradas como desleais no comércio internacional podem ser executadas por empresas (i.e., dumping) ou governos de terceiros países (i.e, subsídios), ou assegurar condições de proteção temporária a um setor produtivo que sofra forte concorrência com a importação (i.e. salvaguardas). 30 8 Ainda hoje a investigação e a punição de cartéis internacionais envolvem muitas dificuldades que necessitam ser ultrapassadas (como é o caso da obtenção de provas ou de indícios do conluio) e no caso específico dos cartéis de exportação a questão é ainda mais delicada, uma vez que, embora tenham, na maioria das vezes, características dos chamados cartéis hard-core, chamados também no Brasil de cartéis clássicos31 (acordos voltados a reduzir a concorrência), tratam-se de condutas permitidas ou até mesmo incentivadas por várias jurisdições. Conforme indicado anteriormente, o foco atual da análise antitruste tem sido os cartéis hard-core, conceito que tradicionalmente não inclui os cartéis de exportação. Ou seja, esta categoria não inclui acordos, práticas concertadas, ou arranjos que: a) estão relacionados razoavelmente à autorização legal de redução de custo ou produção, aumentando eficiências; b) quando são excluídos diretamente ou indiretamente da cobertura da própria lei do país; c) quando autorizados conforme essas leis32. Existe, de fato, um entendimento geral de que os cartéis do tipo hard-core são negativos à concorrência. Nesse sentido, veja-se que em 1998 a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)33 publicou uma recomendação sobre uma ação efetiva contra os cartéis hard-core (Cartel Recommendation). Neste documento, foi colocado que os cartéis hard-core são as mais graves violações da lei de concorrência, uma vez que prejudicam os consumidores em diversos países, aumentando os preços e restringindo a oferta, tornando as mercadorias e serviços completamente impossíveis para compra de alguns consumidores, ou aumentando 31 Há outra classificação, no Brasil, definida pela jurisprudência do CADE, que traz um sinônimo para o cartel hard-core, denominando-o como cartel clássico, conforme voto do ex-Conselheiro Luis Carlos Delorme Prado: “Distingo o Cartel Clássico do que chamo Cartel Difuso. Este último é um ato de coordenação da ação entre as empresas com objetivo similar ao do Cartel Clássico, mas de caráter eventual e não institucionalizado. Esse é o caso quando um grupo de empresas decide reunir-se para coordenar um aumento de preço, muitas vezes em função de um evento externo que as afetou simultaneamente. Isto é, tal ação pode ser considerada eventual e não decorreu de uma organização permanente para coordenar as ações das empresas envolvidas.” BRASIL. CADE. Processo Administrativo n. 08012.002127/02-14, 2005. No mesmo sentido: BRASIL. CADE. Voto do Conselheiro-Relator Luis Carlos Delorme Prado no Processo Administrativo n. 08012.000099/200373, 2006. 32 Segundo a OCDE, todas as exclusões e autorizações do que seriam casos contrários aos cartéis hard-core deveriam ser transparentes e deveriam ser revisadas periodicamente para verificação se elas são necessárias para alcançar os objetivos da política perseguida pelos países. Após esta Recomendação, a OCDE colocou que seus Membros deveriam prover à Organização a notificação anual de qualquer exclusão nova ou estendida ou categoria autorizada. Conforme será visto nesse estudo, os cartéis de exportação são condutas que muitas vezes possuem autorização legal ou são indiretamente aceitos por diversas jurisdições. 33 Essa Organização será vista com maior detalhe no Capítulo 2. 9 os valores de forma desnecessária para outros34. Vale dizer que nessa recomendação não houve um estudo aprofundado sobre os efeitos dos cartéis de exportação. Dois anos após essa publicação, o Cartel Report de 2000 denotou que um importante passo no fortalecimento da luta contra os cartéis seria a abertura de conhecimento relativo aos danos que os mesmos podem causar35. O Relatório também salientou a importância do trabalho adicional de sanções contra cartéis, reconhecendo que o propósito principal dessas sanções é servir como elementos de inibição para quem pratica essa conduta36. Observa-se, então, que desde o início desta década há um movimento forte, em um contexto internacional, para a implementação de políticas de defesa da concorrência e para o aumento à repressão de condutas anticoncorrenciais, especialmente os cartéis. Atualmente existem numerosos processos e procedimentos realizados pelo Departamento de Justiça Norte-Americano (USDOJ), pela Comissão Européia vinculada às Comunidades Européias (CE) e até mesmo pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC, que é composto pela SEAE/MF – Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, SDE/MJ e CADE), para combater os chamados cartéis hard-core, mas pouquíssimos esforços para o controle ou monitoramento dos cartéis de exportação, justamente por tratar-se, muitas vezes, de condutas que possuem isenção antitruste. Entretanto, independente de qual tipo seja o cartel, há entendimento por parte de economistas e juristas que, por meio dessa conduta, ocorre uma perda de bemestar que é resultante dos consumidores passarem a comprar menos do produto em razão da elevação de preços (preço de cartel) e, ao mesmo tempo, que é resultante dos consumidores terem que pagar um preço mais alto, pela mesma quantidade do produto37. Desta maneira, os cartéis “eficientes”, ou seja, que conseguem reduzir com sucesso a produção e/ou aumentar o preço acima dos valores do mercado, fazem 34 OCDE, 2003, p. 75. OCDE. Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Cartel Report of 1998, p. 13. Disponível em: <http:www.oecd.org> Acesso em: 22. set. 2009. 36 OCDE, 1998, p. 19-20. 37 OCDE, 2003, p. 76. 35 10 com que os consumidores, coletivamente, passem a comprar menos do produto cartelizado, e pagar mais pela mesma quantidade que era adquirida anteriormente. Vale lembrar que esses efeitos também podem ser vislumbrados nos cartéis de exportação, em que pese a ênfase dada a esses efeitos nas práticas dos cartéis hard-core. É difícil ser indiferente aos efeitos totais que os cartéis podem ocasionar38. As circunstâncias, somadas aos consensos internacionais sobre o propósito das leis e políticas de concorrência (os quais serão vistos durante este estudo), fazem com que os estudiosos da concorrência considerem a transferência de riquezas como um dos principais danos gerados pelos cartéis. Contudo, são poucos os estudos sobre os danos e os efeitos específicos gerados pelos cartéis de exportação, até mesmo porque as trocas de informações entre as agências e autoridades de defesa da concorrência estão focadas nos cartéis hard-core. Conforme se verá do Capítulo 2, as trocas de informações entre as autoridades são importantes em matéria de concorrência, pois ajudam a tratar dos desdobramentos internacionais, pois nem sempre existe um acordo formal de cooperação39. As organizações internacionais têm desempenhado um papel relevante no que diz respeito principalmente à divulgação e ao suporte aos países em desenvolvimento. Nesse sentido, além da OCDE e da OMC merecerá destaque neste estudo o trabalho que vem sendo realizado pela UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). Ainda, para facilitar os trabalhos das agências de concorrência, uma Rede Internacional de Concorrência (International Competiton Network - ICN) foi criada em 2001. Trata-se de fórum especializado em discutir temas relacionados à concorrência, que já adquiriu respeitabilidade nos últimos anos 38 Os cartéis podem ter outros efeitos econômicos prejudiciais além da alocação de recursos descrita, pois desta prática pode ocorrer como resultado a redução da pressão para controlar custos e inovar. 39 Os acordos freqüentemente têm os seguintes conteúdos: i) mútua notificação das investigações iniciadas em cada país; ii) possibilidade de visita no curso das investigações de funcionários de uma agência à outra; iii) possibilidade de solicitação ao outro país signatário para que inicie uma investigação das condutas anticompetitivas que ocorrem em seu país, ainda que os efeitos desta somente sejam sentidos no país solicitante; iv) previsão de assistência recíproca na localização de testemunhas, coleta de evidências e depoimentos no território do outro signatário; e v) previsão de encontros regulares das autoridades, a fim de discutir a evolução destas políticas e permitir trocas de informação. MARTINEZ, Ana Paula. Defesa da concorrência: o combate aos cartéis internacionais. Revista do IBRAC, São Paulo, v. 10, n.º 1, p. 175-198. 2003, p. 188. 11 e está voltado ao desenvolvimento das “melhores práticas” e ao aprimoramento das regras de concorrência. Conforme ser verá, a ICN possui um papel de incentivador de debates e discussões, e apesar de não estar voltada especificamente à elaboração de uma política antitruste comum ou multilateral, tem auxiliado o intercâmbio de experiências entre as autoridades40. Veja-se que a defesa da concorrência torna necessário o intercâmbio técnico intenso, ainda mais diante da natureza aberta dos tipos de infração à ordem econômica. Como bem salienta OLIVEIRA: Para um país adotar práticas convergentes com o resto do mundo é fundamental que ele promova o intercâmbio com as diversas agências. Assim, atividades de cooperação técnica assumem papel fundamental na integração sub-regional e multilateral.41 Esse estudo apresentará também argumentos de que atualmente a organização que se mostra mais apta a desenvolver regras multilaterais é a OMC. Sem dúvida, existem argumentos contrários no sentido de que a concorrência não é, em regra, matéria de comércio internacional42. Entretanto, veja-se que em 1996, durante reunião ministerial da OMC em Cingapura, a concorrência recebeu uma especial atenção com a instituição de um grupo de trabalho - Working Group on the Interaction between Trade and Competition Policy (WGTCP)43 - para discutir e estudar as interações entre o comércio e a política de concorrência. Ainda, na Declaração Ministerial de Doha44, ficou definido que uma das atribuições do WGTCP seria, até a 5ª Reunião Ministerial, trabalhar para a formação 40 O fundamento principal dos acordos entre Estados ou agências de defesa da concorrência é o chamado princípio da cortesia positiva (positive comity). Isso significa que a cortesia se fará presente toda vez que dois países que assinam um acordo de cooperação decidirem aplicar de forma recíproca suas leis (conforme o princípio da extraterritorialidade que também será objeto de estudo). Sobre os princípios de cortesia positiva veja-se: EUA E CE. Acordo entre Comunidades Européias e o governo dos Estados Unidos da América relativo aos princípios de cortesia na aplicação dos respectivos direitos de concorrência. Disponível em: <http://europa.eu.int/abc/doc/off/bull/pt/ 9806/p103067.htm> Acesso em: 12 jun. 2009. 41 OLIVEIRA, Gesner. Concorrência no Brasil e no mundo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 40. 42 Sobre esta questão veja-se: ANDRADE, Maria Cecília. Concorrência. In: BARRAL, Welber. O Brasil e a OMC. Curitiba: Juruá, 2002, p. 295-324. Veja-se também: CARVALHO, 2001, p. 172-185. Cf. GUZMAN, Andrew T. Global governance and the WTO. Research Paper No. 89, US: UC Berkeley School of Public Law and Legal Theory, 2002, p. 5-88. 43 WT/MIN(96)/DEC, parágrafo 20. 44 A declaração diz que o trabalho tem que levar em conta as necessidades de desenvolvimento. Isto inclui cooperação técnica e capacidade de construção nestes tópicos (como análise política e de desenvolvimento), de forma que países em desenvolvimento tenham capacidade de avaliar as 12 de cláusulas sobre cartéis hard-core. Desse modo, tem sido salientado que os efeitos dos cartéis são capazes de alcançar vários países em um só momento, fato que por si evidenciava que a regulamentação sobre o tema deveria ser multilateral45. Por outro lado, países em desenvolvimento e aqueles de economias mais frágeis expressam preocupação sobre os custos adicionais que um acordo de concorrência, no âmbito da OMC, poderia trazer especialmente para membros que não têm políticas ou leis de concorrência na atualidade. Assim, ao mesmo tempo em que as economias desenvolvidas não entraram em consenso sobre o tema, muitas economias em desenvolvimento ainda avaliam a inclusão do tema concorrência com bastante apreensão. De fato, esses países de economia mais sensível e os Países em Desenvolvimento (PEDs) preocupam-se com os custos que uma implementação sobre política concorrencial, ou regras de concorrência, poderia gerar para suas economias. No entanto, EVENETT aponta que esta apreensão é excessiva46. Em princípio, o requerimento multilateral de fortalecimento de uma legislação que combata e regule a atuação dos cartéis em geral (não apenas os chamados hard-core) parece ser positivo numa perspectiva global, pois poderia reduzir práticas negativas ao comércio. Nas reuniões da OMC, inclusive, pode ser defendida a notificação desses cartéis internacionais para um órgão centralizado, o que evitaria custos maiores para as economias mais frágeis (com a criação de agências, por exemplo). Em adição, poderia haver economia de tempo que é necessário para formalização de acordos (sejam regionais, ou bilaterais) de cooperação47. No entanto, para que regras multilaterais sejam bem sucedidas, entende-se que as negociações com os países menos desenvolvidos devem levar em consideração as diferenças e as dificuldades que estes têm para implementar regras e políticas novas em razão de seu estágio de desenvolvimento e de seus sistemas implicações da cooperação multilateral na busca por esses objetivos. A cooperação com outras organizações, como a ONU – UNCTAD, também foi incluída. 45 Sobre esta questão veja-se o documento: WTO. Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/W/191. Disponível em: <http://www.wto.org> Acesso em: 30 ago. 2009. 46 EVENETT, Simon J. Can developing economies benefit from WTO negotiations on binding disciplines for hard-core cartels? Switzerland: Word Trade Institute, 2003a, p. 35. 47 EVENETT, 2003a, p. 40-3. 13 jurídicos. Assim, a criação de regras de concorrência em âmbito multilateral precisa ser avaliada dentro de um contexto de desenvolvimento mais amplo48. As teorias contemporâneas que tratam do desenvolvimento serão vistas no Capítulo 3. Analisada sob a ótica institucionalista, defende-se nesse estudo que a OMC pode ser o eixo de um regime que torna mais transparente o fluxo da diplomacia comercial e que poderia tratar do tema, uma vez que a permissão de um cartel de exportação pode gerar distorções ao comércio. Vale destacar que, não havendo um sistema multilateral responsável pelas diretrizes a serem seguidas pelos países, e também para o intercâmbio de informações, torna-se mais complicada a adequação dessas condutas que podem ser negativas ao comércio em um contexto global. Apesar de ter havido debates no passado para a criação de regras de concorrência em âmbito multilateral, recentemente esse tema não foi retomado com maior seriedade e os cartéis de exportações não estão sendo abordados nas propostas, justamente por tratar-se de tema mais complexo conforme se verá nos Capítulos 4 e 5. Entretanto, entende-se que dadas às potenciais distorções que podem ser causadas no comércio internacional e especificamente a relação que o tema tem com os instrumentos de defesa comercial, defende-se que o tema dos cartéis de exportação precisa tornar-se pauta também em âmbito multilateral conforme se verá no Capítulo 6. Veja-se que, por meio de uma política de concorrência eficaz possibilita-se o alcance de objetivos econômicos mais amplos, por estimular a eficiência e o crescimento econômico. Deste modo, esse estudo também procura mostrar que a premissa de criação de um instrumento multilateral é possível e que os mercados competitivos podem melhorar, de maneira geral, o seu desempenho no comércio internacional. Com relação à metodologia a ser utilizada, esclarece-se que os métodos intuitivo, dialético e dedutivo serão aplicados para defender a tese principal de que os cartéis de exportação não podem permanecer sem uma regulação internacional e 48 Sobre o direito ao desenvolvimento veja-se também: ONU (Organização das Nações Unidas). Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/ direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm> Acesso em 10 jan. 2010. 14 que o foro mais adequado para a criação de regras que tratem dessa conduta seria a OMC. O estudo está dividido em duas partes (Parte I e Parte II), cada uma contendo 03 Capítulos numerados seqüencialmente. Na primeira parte será abordada a interface entre o comércio internacional (principalmente a defesa comercial) e o direito da concorrência (Capítulo 1), e como a concorrência em um contexto internacional (i.e., organizações e fóruns multilaterais) tem sido discutida (Capítulo 2). Para consecução do que será proposto ao final deste estudo, também será apontado o conceito de desenvolvimento que se entende aplicável e necessário para que todos os países - inclusive os menos desenvolvidos - beneficiem-se de políticas de concorrência em um contexto global (Capítulo 3), uma vez que políticas globais e/ou multilaterais têm o potencial de impactar o comércio internacional em geral. Na segunda parte deste estudo será dado enfoque à prática dos cartéis de exportação. Assim, o conceito será explorado (Capítulo 4), assim como seus potenciais efeitos. Outro ponto relevante que será estudado diz respeito à caracterização dos cartéis de exportação como isenção antitruste, as diferenças no tratamento desta conduta e a aplicação extraterritorial das leis nacionais (Capítulo 5). Por fim, se explorada a proposta de inclusão do tema na OMC como medida adequada para mitigar os potenciais efeitos negativos dos cartéis de exportação no comércio internacional, como a criação de regras em âmbito multilateral, de acordo com o contexto de desenvolvimento proposto no presente estudo (Capítulo 6). 15 PARTE I - A DIMENSÃO INTERNACIONAL DA POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA E O DESENVOLVIMENTO 1 A CONCORRÊNCIA E O COMÉRCIO INTERNACIONAL 1.1 Breve contexto histórico Conforme explica Campos, foi em 1925, sob a égide da Liga das Nações, que ocorreram as primeiras iniciativas para a definição de princípios gerais que fossem capazes de orientar uma legislação concorrencial no âmbito internacional49. Nesse período também foram consideradas diversas propostas para o estabelecimento de um código antitruste internacional, mas estas foram rejeitadas parcialmente pelos mesmos motivos que levaram ao fim da Liga da das Nações, e principalmente porque a maior parte das nações considerava os cartéis como instituições importantes para fomentar o desenvolvimento econômico. De todo modo, àquela época (após a Primeira Guerra Mundial), ainda não havia a consciência de que instrumentos adequados de comércio e mercados abertos eram condições fundamentais para possibilitar o crescimento do comércio internacional. Tal concepção surgiu apenas a partir de um maior desenvolvimento das relações internacionais, cujas dificuldades e adversidades possibilitaram a criação de uma consciência maior a respeito da importância do comércio internacional e, assim, da criação de mecanismos e normas internacionais que assegurassem melhores relações entre os países. Nesse contexto, pode-se dizer que o período entre guerras, em que se verificou a tentativa de criação de 49 Veja-se: CAMPOS, Marcos Vinícius de. Concorrência, cooperação e desenvolvimento – do falso dilema entre competição ou cooperação ao conceito de concorrência cooperativa. São Paulo: Singular, 2008, p. 297. 16 mecanismos de colaboração entre Estados que incluíam disposições relativas ao comércio internacional, foi de fundamental importância. Voltando ao contexto histórico é importante explicar que com o fim da Primeira Guerra Mundial os países envolvidos nos conflitos encabeçados por Woodrow Wilson passaram a reconhecer a necessidade da criação de normas e instituições internacionais mais eficazes, como forma de evitar a utilização de força armada para solucionar conflitos de natureza comercial, e para que houvesse políticas de balanço de poder nas relações internacionais. Como apontado por NYE, tais políticas, dentre outras, tinham a intenção de balancear poderes estrangeiros de forma a prevenir que um Estado ganhasse preponderância de poder50. Ou seja, os Estados envolvidos na guerra reconheciam que algumas políticas haviam sido fundamentais para a ocorrência dos conflitos, de forma que se fazia necessária uma mudança de paradigma nas relações internacionais para a instituição de políticas mais colaborativas. Dessa forma, os Estados envolvidos, liderados por Woodrow Wilson (presidente americano à época), passaram a buscar a estruturação de um sistema internacional pautado em princípios de segurança coletiva. Sobre o modo de implantação do sistema de segurança coletiva, NYE explica os principais objetivos: Em primeiro lugar, tornar a agressão ilegal e banir guerras ofensivas. Segundo, deter agressões por meio da formação de uma coalizão de todos os Estados não agressivos. Se todos se comprometessem a auxiliar qualquer Estado que fosse uma vítima em qualquer lugar do mundo, uma preponderância de poder existiria do lado das forças não agressivas. Terceiro, se tal dissuasão falhasse e um ataque ocorresse, todos os Estados concordariam em punir aquele que cometeu a agressão51. A tentativa de institucionalização de tal sistema deu-se pela assinatura, em 28 de junho de 1919, do Tratado de Versailles, composto de quinze seções que incluíam: i) previsões relativas a mudanças políticas eliminatórias do balanço de poder, ii) medidas preventivas contra novas guerras, e iii) dispositivos relacionados à 50 Conforme o autor, o termo balanço de poder pode também descrever: (i) a distribuição de poder no sistema internacional; e (ii) os balanços de poder militar que existiram no sistema multipolar europeu no século XIX. Veja-se: NYE, Joseph. Understanding international conflicts: an introduction to theory and history. Longman classics in political science. New York: Pearson Longman, 2009. p. 289. 51 NYE, 2009, p. 90. 17 abolição de barreiras econômicas entre os Estados como forma de se atingir maior cooperação. Por meio do Tratado de Versailles é que foi instituída a Liga das Nações52. A Liga das Nações, embora fracassada, desempenhou papel importante naquele período no tratamento de questões atinentes ao comércio internacional. BARRAL explica que as modernas origens do atual sistema jurídico do comércio internacional retroagem a 1890, com a criação de uma União Internacional para a Publicação de Tarifas Aduaneiras, cujas negociações se prolongaram após a Primeira Guerra Mundial, com a sua conseqüente promoção pela Liga das Nações, que passou a incentivar o estudo dos problemas do comércio internacional53. Não obstante, a despeito de tais esforços para prevenção de novos conflitos para a mudança de paradigma das relações internacionais, a análise da história demonstra o fracasso da Liga das Nações no atendimento desses objetivos. As falhas no seu estabelecimento foram decisivas para a ocorrência de novos conflitos entre os Estados, destacando a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Como razões para esse fracasso, NYE explica que havia relutância por parte dos Estados, de modo geral, em abrir mão de parcela de sua soberania54 em nome da adoção das propostas de segurança coletiva. Ademais, os EUA desempenharam papel decisivo nesse fracasso, embora as propostas iniciais de segurança coletiva e da Liga das Nações tenham sido idealizadas por Woodrow Wilson. 52 “Liga das Nações foi uma organização internacional criada em abril de 1919, quando a Conferência de Paz de Paris adotou seu pacto fundador, posteriormente inscrito em todos os tratados de paz. [...] A Liga possuía uma Secretaria Geral permanente, sediada em Genebra, e era composta de uma Assembléia Geral e um Conselho Executivo. A Assembléia Geral reunia, uma vez por ano, representantes de todos os países membros da organização, cada qual com direito a um voto. Já o Conselho, principal órgão político e decisório, era composto de membros permanentes (GrãBretanha, França, Itália, Japão e, posteriormente, Alemanha e União Soviética) e não-permanentes, estes últimos escolhidos pela Assembléia Geral. Não possuindo forças armadas próprias, o poder de coerção da Liga das Nações baseava-se apenas em sanções econômicas e militares. Sua atuação foi bem-sucedida no arbitramento de disputas nos Bálcãs e na América Latina, na assistência econômica e na proteção a refugiados, na supervisão do sistema de mandatos coloniais e na administração de territórios livres como a cidade de Dantzig. Mas ela se revelou impotente para bloquear a invasão japonesa da Manchúria (1931), a agressão italiana à Etiópia (1935) e o ataque russo à Finlândia (1939). Em abril de 1946, o organismo se autodissolveu, transferindo as responsabilidades que ainda mantinha para a recém-criada Organização das Nações Unidas, a ONU.” FGV. CPDOC. A Era Vargas: dos anos 20 a 1945. Liga das Nações. Disponível em: < http://cpdoc.fgv.br/producao/ dossies/AEraVargas1/anos20/CentenarioIndependencia/LigaDasNacoes> acesso em 13 fev. 2010. 53 BARRAL, Welber. Dumping e comércio internacional: a regulamentação antidumping após a rodada Uruguai. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 75. 54 Para NYE, o conceito de soberania está ligado à idéia de que um Estado tenha um governo que exerça autoridade sobre seu território. NYE, 2009, p. 292 (tradução livre). 18 Ocorre que o Congresso norte-americano acabou por recusar-se a ratificar o Tratado de Versalhes, cujo conteúdo continha as disposições para a criação da Liga das Nações. Com a ausência da participação dos EUA, que já se despontava como importante figura internacional, cada vez menos Estados mostravam-se motivados a aderir a uma idéia que não havia sido implantada nem mesmo por seus idealizadores55. Tais divergências ocorridas são apresentadas constantemente como causa essencial da Segunda Guerra Mundial56. No plano comercial, os esforços envidados também acabaram por não atingir os objetivos de liberalização e o contexto da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, colaborou ainda mais com a adoção de políticas que iam à contramão da liberalização idealizada. De acordo com CARR: A Crise dos Anos Trinta eliminou parcela considerável desses esforços. Como regra geral, os Estados passaram a adotar práticas protecionistas, na tentativa de assegurar o mercado para suas indústrias domésticas e manter o nível de emprego. Exemplo paradigmático (e que provocou imediata retaliação) foi a aprovação, pelo Congresso dos EUA, de um aumento médio de tarifas de 60% em 1930, através do Smoot-Hawley Tariff Act57. Em resumo, passado esse período de grande protecionismo e após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os problemas econômicos estavam ligados principalmente: i) à restauração da economia da Europa, dada a fragilidade do sistema de exportações quase inexistente e considerando a elevada inflação e grandes importações que superavam a capacidade de pagamento; ii) à reestruturação do sistema monetário internacional; e iii) à necessidade de desenvolvimento dos países considerados subdesenvolvidos58. 55 CARR faz interessante análise sobre esse aspecto do fracasso da Liga das Nações: “Infelizmente, os políticos europeus mais influentes negligenciaram a Liga durante seus anos críticos de formação. O racionalismo abstrato ganhou a primeira mão, e de 1922 em diante, em Genebra, essa corrente levou a Liga decididamente na direção da utopia (por uma curiosa ironia esse desenvolvimento foi fortemente encorajado por um grupo de intelectuais americanos; e alguns entusiastas europeus imaginaram que, seguindo este curso, apaziguariam a opinião pública americana. O abismo entre a teoria dos intelectuais e a prática do governo, que desenvolveu-se na Grã-Bretanha a partir de 1932, começou nos Estados Unidos em 1919). [...] Houve esforços determinados para aperfeiçoar o mecanismo, para padronizar o processo, para preencher os ‘lapsos’ do Pacto através de um veto absoluto contra todas as guerras, e para tornar a aplicação de sanções ‘automática’. [...] O fato de que os pratos utópicos preparados durante esses anos em Genebra eram intragáveis para a maioria dos governos interessados constitui um sintoma do divorcio entre teoria e prática.” CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. Brasília. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 41-42. 56 Cf. JACKSON, John. Sovereignty, the WTO and changing fundamentals of international law. Cambridge: Cambridge. University Press, 2006, p. 92. 57 CARR, 2001, p. 76. 58 ELLSWORTH, 1974, apud MACERA, Andrea Pereira. A interação entre antitruste e antidumping: 19 Além disso, durante esse período, os EUA apontavam que um dos principais fatores desencadeadores da guerra havia sido a excessiva concentração de poder econômico existente na estrutura industrial e comercial da Alemanha e do Japão, o que também teria sido um obstáculo para a reestruturação do comércio internacional59. Nesse contexto no qual se desenhava um sistema multilateral de comércio, vale destacar o encontro de Bretton Woods, que ocorreu em 1944, próximo ao final da Segunda Guerra Mundial. O objetivo primordial consistia na criação de mecanismos destinados ao estabelecimento de maior cooperação entre os Estados, tendo em vista a magnitude das duas grandes guerras que haviam ocorrido em menos de trinta anos. Para a obtenção de tal cooperação, reuniram-se na cidade de Bretton Woods, New Hampshire - EUA, as quarenta e quatro nações aliadas, com o propósito específico da reformulação do sistema monetário internacional. De maneira geral, um sistema monetário internacional possibilitaria o ajuste de taxas de câmbio e, dessa forma, uma maior fluidez das relações econômicas internacionais que, por sua vez, teria a capacidade de maximizar lucros provenientes do comércio internacional e dos movimentos de capital. Nesse sentido, vejam-se observações de BAUMANN: O uso de um instrumento monetário aceitável como meio de pagamento e como unidade de conta para os participantes das transações internacionais é um pré-requisito para o desenvolvimento do comércio internacional. Sem um meio de pagamento aceitável e uma unidade de conta, o comércio internacional tende a reverter simples trocas.60 A reformulação do sistema monetário internacional mostrava-se, à época, como medida essencial para a superação do desequilíbrio econômico marcante do período entre guerras e para a motivação de uma maior cooperação entre os Estados. Portanto, uma das providências essenciais a serem tomadas pelos países participantes da Conferência era a criação de um sistema monetário efetivo em substituição ao chamado “padrão ouro”61. problema ou solução? SEAE/MF Documento de Trabalho n. 36, dez. 2006, p. 3. 59 CAMPOS, 2008, p. 297. 60 BAUMANN, Renato. Economia internacional: teoria e experiência brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 364. 61 Tal padrão consistia na freqüente conversão de moedas nacionais em ouro, além do estabelecimento de normativos que criavam relações entre as riquezas circulantes dentro dos Estados e os estoques de ouro por eles disponíveis. 20 Assim, tal reformulação consistia na criação de condições que tratassem de maneira mais adequada das finanças internacionais, além da retomada do desenvolvimento dos Estados no período pós-guerra, pois muitos se encontravam economicamente fragilizados. Nesse âmbito, cabe mencionar que os idealizadores dessas medidas foram principalmente John Maynard Keynes (representante dos ideais britânicos na negociação) e Harry White (representante dos interesses norte-americanos), presentes nas negociações realizadas durante a conferência. Como preceitua SCHWARTZ, Keynes “nunca acreditou na existência efetiva de um padrão monetário baseado no metal ouro”62. O autor completa com observações sobre o economista que é fundamental para a compreensão de suas influências para o estabelecimento do sistema de Bretton Woods: Para Keynes, em lugar da “crença irracional” no Padrão Ouro, a economia depende de convenções e regras criadas por governos, empresas e mercados. Seu pensamento coloca mais importância na criação dos contratos do que nos mecanismos de mercado. Entre os contratos sociais e econômicos, sem dúvida o mais fundamental é aquele em que se traduz, a cada momento, nosso estado de confiança no futuro da economia.63 Considerando-se a hegemonia dos interesses norte-americanos que se consolidava à época, as proposições de Keynes que favoreciam a Grã-Bretanha não foram adotadas, embora o afastamento do Padrão Ouro tenha persistido. Inversamente, e considerando-se que as idéias de Harry White também se adequavam ao Padrão Ouro, a solução foi a adoção de padrões baseados no dólar americano. Assim, nos termos de SCHWARTZ, ao final “a ordem de Bretton Woods acabou refletindo a tríade de políticas de estabilidade de preços, de mercados flexíveis e de comércio internacional tendente ao liberalismo que era advogada por Washington”.64 Destarte, com base nesses preceitos e na importância da criação de regras de fomento à economia, os países reunidos objetivaram a criação de órgãos que 62 SCHWARTZ, Gilson. Conferência de Bretton Woods (1944). In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História da Paz. São Paulo: Contexto, 2008, p. 250. 63 SCHWARTZ, 2008, p. 247. 64 SCHWARTZ, 2008, p. 259. 21 regulassem a economia internacional. Dessa maneira, houve consenso sobre a necessidade de criação de um Fundo Monetário Internacional (FMI), de um Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD ou Banco Mundial65, direcionados principalmente à financiar a reconstrução européia) e, por fim, de uma organização internacional que regulamentasse os fluxos comerciais: a Organização Internacional do Comércio (OIC).66 A função do FMI estava relacionada, em especial, com a regulamentação de políticas cambiais, tendo-se como objetivo maior a manutenção de volumes consideráveis do comércio internacional. Competia também ao FMI a concessão de facilidades de crédito aos Estados membros. Quanto ao Banco Mundial, sua função maior ligava-se à reconstrução das economias européias que muito haviam se desgastado durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, esse papel acabou, na prática, por ser assumido pelo Plano Marshall67, ficando o Banco Mundial encarregado de promover condições ao desenvolvimento econômico de uma maneira geral, com atuação muitas vezes dedicada aos países de menor desenvolvimento relativo por meio do financiamento de projetos de infra-estrutura, educação, agricultura e urbanização, entre outros. Veja-se que o estabelecimento da OIC não era tarefa fácil naquele período. Conforme explica THORSTENSEN, essa organização teria a função de “coordenar e supervisionar a negociação de um novo regime para o comércio mundial baseado nos princípios do multilateralismo e do bilateralismo”.68 65 Embora comumente denominados como sendo o mesmo organismo, uma vez que o seu estabelecimento inicial foi dado dessa forma, é importante ressaltar que o chamado BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), estabelecido em 1946 após número suficiente de ratificações do Acordo de Bretton Woods, configura-se como uma dentre as outras agências existentes atualmente dentro do Banco Mundial. Outras agências do Banco Mundial que podem ser citadas são a Associação Internacional para o Desenvolvimento, estabelecida em 1960, a Corporação Financeira Internacional, estabelecida em 1956 e a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos, estabelecida em 1988. Para mais informações sobre as datas e o estabelecimento das outras agências veja-se a seguinte obra: ROURKE, John T. International politics on the world stage. 12 ed. McGraw Hill, 2009. p. 429. 66 BARRAL, Welber. O Brasil e a OMC. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2002, p. 12. 67 O Plano Marshall foi o primeiro grande programa de ajuda internacional, lançado pelos Estados Unidos sob o nome oficial de “Programa de Reconstrução Européia”. Tal programa forneceu valores da monta de 13 bilhões de dólares (aproximadamente 100 bilhões em valores atualizados) aos países da Europa Ocidental entre 1948 e 1951. Veja-se: ROURKE, 2009, p. 410. 68 THORSTENSEN, Vera. OMC – Organização Mundial do Comércio: as regras do comércio internacional e a nova rodada de negociações multilaterais. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Aduaneiras, 2003, p. 29. 22 Sobre a participação dos EUA e sua influência para a não concretização da OIC, veja-se observação de SATO: [...] a questão central que se colocava para a viabilização de uma Organização Internacional do Comércio, inevitavelmente, era a participação dos Estados Unidos, mas esse país, exatamente em decorrência da enorme diferença que o separava das demais nações, na prática, podia prescindir do multilateralismo como forma de resolver seus problemas comerciais. [...] A não existência de uma organização formal, que delineasse direitos e obrigações através de estatutos, permitia, como de fato aconteceu ao longo dos anos, que os padrões de comércio fossem sendo estabelecidos através de rodadas de negociação, em que cada país podia usar amplamente seu poder de barganha, o que, obviamente, punha os Estados Unidos em situação bastante privilegiada.69 Apenas o BIRD e o FMI foram criados70. A OIC não obteve sucesso em razão de divergência da política interna norte-americana. Assim, como a formação dessa organização, sem a participação dos EUA, não era possível, em 1947 foi aprovado o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT). Conforme explica SATO: Pode-se dizer que o GATT foi, de um lado, a forma contratual possível dentro do quadro das dificuldades econômicas e limitações institucionais do pós-guerra e, de outro, o arranjo que melhor se adequava à economia política internacional que se configurou na esteira da Segunda Guerra Mundial. 71 O GATT, realmente, era o acordo possível à época, criado como um conjunto de normas direcionadas, primeiramente, à redução das tarifas alfandegárias no comércio internacional72. Entretanto, mesmo não havendo a criação de uma organização internacional, o GATT servia como um amplo foro de negociações e seus principais pilares eram a Cláusula da Nação Mais Favorecida (NMF)51 e o Princípio do Tratamento Nacional (PTN)73. 69 SATO, Eiiti. Mudanças estruturais no sistema internacional: do fracasso da OIC à OMC.UFRGS: 2001, p. 9-10. 70 Consagrando-se novamente a influência dos Estados Unidos à época, as duas instituições foram estabelecidas nos Estados Unidos, motivando protestos por parte de Keynes. 71 SATO, 2001, p. 20. 72 BARRAL, 2002, p. 13. 73 Tratam-se de princípios que serão explorados ao longo deste estudo. 23 No GATT 1947, o propósito da Cláusula NMF foi o de promover a redução gradativa das restrições tarifárias, diminuindo as barreiras alfandegárias e as medidas de proteção aos mercados (por exemplo, restrições quantitativas). Para tanto foi introduzido o método das rodadas multilaterais periódicas de negociações, objetivando eliminar ou reduzir os obstáculos ao comércio internacional e, ao mesmo tempo, fiscalizar o cumprimento dos direitos e obrigações decorrentes das transações mundiais. O princípio da não discriminação foi elaborado com a finalidade de proteger o livre comércio, estando instrumentalizado pela Cláusula NMF. A criação da Cláusula NMF demonstra a necessidade de se abolir as discriminações ocasionadas pela concessão de preferências comerciais que geralmente prejudicam os países de menor representatividade econômica e comercial. Neste contexto, as reduções tarifárias passaram a ser negociadas em longas rodadas periódicas Em suma, foram estabelecidos vários acordos comerciais, em oito rodadas de negociações multilaterais74. No âmbito do GATT, a mais abrangente foi a oitava, chamada de Rodada Uruguai, iniciada em 1986 e finalizada em 1993. No entanto, os acordos finais que consubstanciaram na criação da OMC foram firmados em Marraqueche, no Marrocos, em abril de 1994 e o início das atividades da Organização foram fixadas para 1.º de janeiro de 199575. 1.2 A sobreposição de regimes de concorrência no contexto internacional Atualmente ainda não existem regras internacionais de direito da concorrência (ou direito antitruste), sendo aplicáveis as leis nacionais de cada país. Conforme tem 74 O Art. XXVIII do GATT prevê as rodadas como forma dos Membros da OMC negociarem. Entre 1947 a 1994 ocorreram 8 Rodadas de Negociação e uma (a Rodada Doha) ainda está em curso: 1ª Rodada: Genebra-1947-23; 2ª Rodada: Annecy - 1949; 3ª Rodada: Torquay-1950-51; 4ª Rodada: Genebra-1955-56; 5ª Rodada: Dillon-1960-61; 6ª Rodada: Kennedy-1964,67 (dastaque para o tratamento das medidas antidumping); 7ª Rodada: Tóquio-1973-79 (onde foi tratada a questão da cláusula de habilitação); 8ª Rodada: Uruguai-1986-93 (momento em que houve um novo marco jurídico e estabelecimento da OMC); 9 ª Rodada: Doha-2001-cuja previsão de término era 2006. A Rodada Doha chegou a um impasse, mas esperasse que seja concluída em 2010. Nesse sentido veja-se: EUA/CANADA. WTO’s Lamy says Doha preparing for final deal. Agência Reuters. Disponível em:<http://in.reuters.com/article/idINIndia-50171720100716> acesso em 20 jul. 2010. 75 A OMC será analisada melhor nos Capítulos 2 e 6. 24 ponderado GUZMAN, é possível se afirmar que, de certo modo, vive-se em um mundo de política de concorrência internacional (ainda que difuso), embora não exista uma instituição internacional ou acordo internacional que regule uma política global de concorrência entre os países76. A conclusão de GUZMAN, indicada acima, deve-se muito ao fato de que, na prática, as empresas acabam por fazer negócios internacionalmente enfrentando a sobreposição dos regimes nacionais de defesa da concorrência, o que obriga que haja uma adequação. Entretanto, apesar de a sociedade vivenciar o mercado cada vez mais globalizado que acaba “ajustando-se” independentemente de um acordo internacional que trate do direito da concorrência, ainda existem poucos estudos que enfrentam a suposta necessidade de se criar um acordo internacional para regular a política de concorrência em um contexto internacional. Veja-se que o sistema atual, tal como se encontra (ou seja, de sobreposição de regimes), precisa ser analisado de forma mais profunda para que se possa concluir se seria melhor do que qualquer outro que possa existir. Existem evidências de que os Estados são, na verdade, tendenciosos na aplicação de suas políticas de concorrência. A evidência mais óbvia, também identificada por GUZMAN, refere-se à existência de isenções nas exportações77, uma vez que diversos países que possuem lei de concorrência possibilitam que empresas exportem via cartéis de exportação78. Ao mesmo tempo, a repressão às violações na prática pode ser “seletiva”, ou seja: mais agressiva quando do envolvimento de empresas estrangeiras do que quando do envolvimento de empresas nacionais. Isto pode ocorrer quer porque os próprios órgãos reguladores, governos, ou agências de defesa da concorrência, tratem as empresas locais de forma mais favorável, ou porque os líderes políticos exercem pressão sobre os órgãos regulatórios no sentido de incentivá-los a prosseguir investigações que envolvam empresas estrangeiras ao invés das nacionais. 76 GUZMAN, 2003, p. 03. GUZMAN, 2003, p. 05. 78 Veja-se a Parte II do presente estudo. 77 25 Assim, não é possível inferir que a sobreposição de regimes ocorre de forma adequada até mesmo porque muitos países ainda carecem de políticas ou leis antitruste (sendo que muitos necessitariam de tais leis para aumentar suas chances de proteção às condutas anticoncorrenciais). Já que existe essa diferença entre as jurisdições, e considerando-se os compromissos de abertura comercial que são assumidos no âmbito da OMC, a sobreposição de regimes poderá apresentar diversas falhas, além de dar vantagem aos países que possuem leis e políticas antitruste mais desenvolvidas. Considerando que o tema proposto analisará a conduta específica dos cartéis de exportação, é necessário também explorar a relação entre o direito do comércio internacional e o direito da concorrência, para que seja possível adiante avaliar como essa conduta pode ser tratada e qual seria a forma mais adequada, considerando-se a interdisciplinaridade do tema e os diferentes graus de desenvolvimento dos países que adotam, ou pretendem adotar, políticas adequadas de defesa da concorrência. 1.3 A interface entre o direito do comércio internacional e o direito da concorrência A discussão sobre a interface entre o direito antitruste (ou direito da concorrência como também é chamado)79 e o direito do comércio internacional não é nova no âmbito nacional e internacional. Entretanto, o tema segue instigando os pesquisadores por diversas razões. Conforme bem pontua STEPHAN “excetuando uma economia fechada, concorrência e política comercial são as duas faces da mesma moeda”80. No mesmo sentido, para LEVINSOHN o comércio internacional e a concorrência não existem 79 Veja-se que direito antitruste (ou direito da concorrência) é diferente de “política” antitruste ou de defesa da concorrência. No entendimento de HOEKMAN, antitruste é um subconjunto da política concorrencial como um todo. Enquanto a legislação antitruste relaciona-se com instrumentos que controlam ou regulam o comportamento permissível de agentes privados ou pessoas, a política concorrencial está ligada às medidas e instrumentos que podem ser perseguidos por governos para aumentar a contestabilidade dos mercados. Cf. HOEKMAN, Bernard. Competition Policy and Preferential Trade Agreements. World Bank and Center for Economic Policy Research, 1998, p. 03. 80 STEPHAN, Paul B. Competitive Competition Law? An Essay Against International Cooperation. University of Virginia Law & Economics Research Paper No. 03-3, Spring, 2003, p. 05. 26 um sem o outro e ignorar as relações entre as duas matérias pode levar à criação de diretrizes políticas enganosas81. De modo análogo, a realização de análise eficaz sobre o intercâmbio entre os dois temas pode ser vantajosa, pois há uma imbricada relação entre o direito do comércio internacional e o direito da concorrência, que remonta até mesmo as bases históricas exploradas no início deste capítulo. Avaliar as interações entre os temas pode fomentar a geração de benefícios, em que pese as lógicas de análise de cada um desses direitos apresentarem diferenças e determinadas particularidades. Inicialmente, cabe ressaltar que, em uma economia globalizada, as políticas nacionais de uma maneira geral, e em especial aquelas relacionadas ao direito da concorrência, podem ter implicações relevantes em um contexto internacional. Em um panorama internacional, em que a grande maioria dos Estados compromete-se a liberalizar cada vez mais o comércio, por meio de compromissos assumidos em âmbito bilateral, regional ou multilateral - como é o caso dos compromissos assumidos dentro da OMC -, as políticas concorrenciais nacionais (que têm relações diretas com padrões de produção, prática de preços e comercialização) podem ter impactos decisivos no desenvolvimento do comércio internacional. Sobre esse aspecto do relacionamento entre as duas matérias, vejam-se as importantes considerações de HOEKMAN: [...] práticas anticompetitivas nacionais podem limitar as oportunidades de acesso ao mercado e efetivamente anular ou prejudicar os compromissos de um país a liberalização do comércio; de tal modo os regimes nacionais de defesa da concorrência podem impor externalidades negativas em outros países (por exemplo, a tolerância aos cartéis de exportação); ou para a eficaz aplicação da legislação antitruste contra as empresas com poder de mercado global requer-se certo grau de harmonização das regras e da cooperação entre as agências nacionais de controle, igualmente para ser eficaz e para reduzir os custos de compliance e de incerteza para as empresas multinacionais.82 (tradução livre). A relação entre os dois temas pode ser verificada sob diferentes perspectivas. Em primeiro lugar, entende-se que a relação entre o direito do 81 “[...] neglecting interactions between the two types of policies may provide misleading policy guidelines. Trade and competition policies typically promote competing interests”. LEVINSOHN, James. Competition Policy and International Trade. National Bureau of Economic Research. Working Paper No. 4972, 1994, p. 12. 82 HOEKMAN, 1998, p.1. 27 comércio internacional e o direito da concorrência pode ser analisada em dois níveis: i) Genérico - quando da realização de análise teórica sobre a interação das matérias; e ii) Específico - quando da realização de análise prática sobre a interação dos temas, ou seja, sobre os efeitos da adoção de políticas comerciais e concorrenciais dentro de um Estado ou entre os Estados. Nesse segundo nível, importante é enfatizar que as interações sofrerão modificações conforme a influência de variáveis, tais como: o tamanho da economia dos países, as políticas por eles adotadas, o grau de envolvimento com as regras de liberalização do comércio, dentre outras. No plano genérico das interações entre as matérias, podem ser mencionados, por exemplo, os reflexos das medidas antidumping. O dumping definido por BARRAL e BROGINI é: [...] a prática de discriminação de preços em mercados nacionais distintos: uma empresa exportadora vende um produto no mercado importador a um preço inferior ao valor normal praticado em seu mercado de origem.83 A medida antidumping é mecanismo de defesa comercial que relaciona, de modo intrínseco, as duas matérias em seu sentido genérico. A relação entre as matérias resta demonstrada uma vez que o comércio internacional dos produtos importados a preço injustificável pode prejudicar a concorrência representada pelos produtores nacionais do bem envolvido84. Nesse âmbito, LEVINSOHN, em estudo sobre a questão, já ponderou que a discussão sobre as interações entre a política da concorrência e a política de comércio internacional não seria completa sem pelo menos alguma menção às relações entre a discriminação de preços (ligada à política da concorrência) e o direito antidumping (ligada à política de comércio internacional)85. 83 BARRAL, Welber; BROGINI, Gilvan Damiani. Manual prático de defesa comercial. São Paulo: Aduaneiras, 2007, p. 236. De acordo com BAGNOLI: “Dumping é a prática de introduzir um produto no mercado de outro país a preço inferior ao “valor normal”, ou seja, o preço de exportação é inferior ao preço efetivamente praticado para produto semelhante em operações comerciais normais, que destinem o tal produto ao consumo interno no país exportador.” BAGNOLI, Vicente. Introdução ao direito da concorrência. 1.ed. São Paulo: Singular, 2005, p. 128. 84 Ademais, o conceito de dumping assemelha-se com o conceito de “preço predatório”, tema freqüentemente abordado em legislações concorrenciais nacionais. 85 “Further, price discrimination is only possible with market power in a domestic setting or segmented markets in a international setting”. LEVINSOHN, 1994, p. 17. 28 No plano específico das interações entre as matérias, ressalta-se a influência que as políticas de comércio internacional podem ter na alteração dos cenários concorrenciais e vice-versa. LEVINSOHN analisa situações peculiares presentes em diferentes países e tamanhos de economias. Vejam-se, nesse contexto, as observações do autor quando da realização de uma análise com a utilização de diferentes variáveis no plano específico de interações entre comércio internacional e concorrência: Como um primeiro exemplo de interações entre política comercial e concorrencial, considere o caso de um país que implementa uma política concorrencial muito restritiva. Empresas que antes podiam aliar-se ou formar conluios livremente são agora forçadas a competir. Em um padrão de estrutura neoclássica, a política mais rigorosa, que perde retornos de escala, conhecimento ou outras sinergias, aumentaria o bem estar econômico. [...] Se as firmas produzem produtos diferenciados, como é o caso da maioria das indústrias manufatureiras, que competem umas com as outras ajustando preços, uma taxa de exportação ou tarifa de importação tem o efeito de aumentar os preços e os lucros à custa dos consumidores. Numa situação de oligopólio, essa política comercial tem o efeito de deslocar implicitamente as firmas para mais perto do equilíbrio do conluio - exatamente o contrário do objetivo da restritiva política concorrencial. Suponha, então, que uma tarifa ou taxa de exportação é implementada enquanto a política concorrencial é fortalecida. Então, se uma política comercial não é considerada quando a política concorrencial é mais rigorosa, os ganhos do consumidor em relação à política concorrencial são diminuídos.86 (tradução livre). Ainda, analisando a interação entre direito do comércio internacional e o direito da concorrência que é aplicado no âmbito nacional, sob a influência de variáveis específicas, o autor complementa suas explicações com importante observação: [...] A política comercial é muitas vezes dirigida para permitir que as empresas nacionais exerçam poder de mercado para deslocar para longe os lucros das empresas estrangeiras, enquanto a política de concorrência é geralmente orientada para restringir o exercício do poder de mercado. A exceção óbvia é quando a política de concorrência explicitamente permite cartéis de exportação.87 (tradução livre). Vale destacar, com base nas observações de LEVINSOHN transcritas acima, assim como nas de HOEKMAN previamente apresentadas, que os cartéis de exportação, objeto deste estudo, são exemplos importantes da ligação entre o direito 86 87 LEVINSOHN, 1994, p. 15. LEVINSOHN, 1994, p. 15. 29 do comércio internacional e o direito da concorrência. De uma maneira geral (e considerando-se também o nível da análise da interação entre as matérias), pode-se dizer que parte da relação entre comércio internacional e concorrência nacional dáse em referência à cartelização para fins de exportação. Essas características aparecem especialmente quando da análise detalhada de políticas comerciais e concorrenciais de diversos países. As diferentes políticas adotadas pelos Estados tornam ainda mais complexa a relação entre essas duas matérias. Para isso, alguns autores fazem propostas de harmonização de políticas como forma de melhorar o desempenho da relação entre os temas88. No entanto, não obstante a relação de interação e até de complementaridade que se verifica entre o direito do comércio internacional e o direito da concorrência é importante notar que também há diferenças na forma de adoção de políticas comerciais e políticas concorrenciais pelos Estados, o que traduz a existência de determinados antagonismos entre as matérias. De modo geral, e conforme apontado por LEVINSOHN, as políticas de comércio internacional podem ser classificadas de maneira simples, uma vez que variam de modelos mais liberais aos mais conservadores89. As políticas concorrenciais, por sua vez, possuem caracterização mais complexa na medida em que, embora também envolvam a existência de modelos mais ou menos severos, estes se relacionam à diferentes mercados, quais sejam: o mercado doméstico e o mercado internacional (ou de exportação)90. Em adição, vale lembrar que não existe um modelo único de legislação nacional antitruste ou de política antitruste. De maneira geral, verifica-se que muitos países realizam uma diferenciação na adoção de políticas antitruste, no que se refere ao grau de severidade em relação a mercados domésticos e aos mercados de exportação. Em grande parte dos casos, os governos acabam por ser mais negligentes no que se refere aos efeitos nos mercados de exportação do que com relação aos mercados domésticos, considerando fatores como o lucro91 que poderá ser gerado pelas operações de 88 Para mais informações sobre harmonização de políticas, veja-se LEVINSOHN, 1994, p. 18-27. Ainda, vale lembrar que existem os compromissos assumidos no âmbito da OMC. 90 LEVINSOHN, 1994, p. 3. 91 Sobre o lucro como fator determinante para políticas concorrenciais mais negligentes com relação aos mercados de exportação, vejam-se as observações de LEVINSOHN: “The basic trade-off that countries face in constructing their competition policies is that between firms profits and consumer 89 30 exportação, assim como pelo simples fato de incentivar os produtores nacionais a ter mais força na competição internacional. LEVINSOHN bem resume essa tendência ao lembrar que vários países são mais rigorosos com as empresas que atuam no mercado nacional, já que o governo reconhece o interesse do consumidor em preços baixos e em uma grande variedade de mercadorias. No entanto, esses mesmos governos, também reconhecem que os lucros auferidos no exterior podem ser positivos e, assim, as firmas exportadoras que praticam condutas que poderiam ser condenadas com rigor nacionalmente passam a ter tratamento muito diferenciado ao praticar a conduta no exterior92. Com base nesse tipo de incentivo, é possível a constatação clara da permissibilidade de cartéis de exportação em diversos países, como é o caso, por exemplo, do Japão e dos EUA93. Cumpre denotar que essa “permissibilidade” dos cartéis de exportação, que geralmente ocorre por meio das isenções antitruste, pode ser verificada como exemplo claro da relação entre comércio internacional e o direito da concorrência, pois ocorre uma alteração artificial dos padrões de concorrência em razão de um incentivo para os produtores e/ou empresas locais nas exportações. Voltando à relação entre concorrência e comércio internacional, veja-se também que apesar dos pontos de intereção e de influência, existem características divergentes entre os temas as quais se referem a dois pontos em especial: (i) alcance das normas; e (ii) sujeitos beneficiados pelas normas. Quanto ao primeiro ponto, vale lembrar que as políticas de concorrência são geralmente definidas em nível nacional, sem distinção com relação às indústrias ou aos mercados abrangidos pelas normas, enquanto as políticas de comércio internacional são, de modo geral, delimitadas pelas regras multilaterais da OMC, mas também possuem algumas particularidades, considerando as características de indústrias específicas. Quanto ao segundo ponto, pode-se dizer que as políticas de comércio internacional são implementadas tendo em vista os interesses de produtores, enquanto as políticas concorrenciais visam, em geral, ao atendimento welfare. When the consumers effected by collusion are not citizens, since the firms are exporters, the trade-off vanishes and the search for firm profits guides policy.” (1994, p. 10). 92 LEVINSOHN, 1994, p. 5. 93 Veja-se o Capitulo 05. 31 dos interesses dos consumidores94, ou da manutenção de um ambiente concorrencial saudável. Independentemente das relações, interações ou diferenças existentes entre esses direitos, ou até mesmo do nível em que essa análise pode ocorrer (genérico ou específico, teórico ou prático), é essencial ressaltar a inegável existência de importantes relações entre as duas matérias e o fato de que, em meio a essas relações, encontram-se as condutas dos cartéis de exportação, que serão analisados em profundidade ao longo deste estudo. 1.4 As diferentes perspectivas de análise Conforme explicado anteriormente, embora tanto o comércio internacional e a política de concorrência busquem a melhoria do bem-estar e tenham pontos comuns ou pontos que influenciam uma a outra, não se pode dizer que seus objetivos e características sejam idênticos. Por exemplo, as leis desenvolvidas no contexto do comércio internacional, aplicadas à defesa comercial, estão mais preocupadas com o acesso dos traders aos mercados estrangeiros, enquanto o objetivo central das leis nacionais de concorrência costuma ser o de preservar a competição nos mercados, assim como atender ao interesse dos consumidores que buscam preços competitivos e uma concorrência saudável no mercado. Apesar deste não ser o objetivo central do presente estudo, vale observar, como exemplo, as perspectivas diferentes e os problemas de convergência encontrados no Brasil. Nesse sentido, entende-se que também é válido avaliar exemplos práticos. Com isso ficará mais claro e será possível concluir que, apesar de diferentes, as políticas se comunicam e podem interferir e/ou contribuir uma com a outra. 94 LEVINSOHN, 1994, p. 12. 32 1.4.1 Análise da legislação brasileira: pontos de divergência e objetivos comuns No Brasil, assim como em diversos países - especialmente os que são Membros da OMC - existem leis distintas que regem o direito da concorrência e os compromissos assumidos no âmbito do comércio internacional. No Brasil, a lei de concorrência vigente é a Lei n˚. 8.884, de 11 de junho de 1994,95 enquanto as políticas de defesa comercial estão previstas em outros instrumentos legais, pautados pelos Acordos firmados no âmbito da OMC, os quais foram devidamente incorporados96. Conforme destaca MACERA, pode-se dizer que “de certo modo, a política de concorrência e a política de liberalização comercial apresentam objetivos comuns, à medida que visam à remoção de barreiras concorrenciais”97. Entretanto, é necessário que sejam ponderadas algumas diferenças relevantes, uma vez que há uma dicotomia jurídica e procedimentos diferenciados de análise e aplicação dessas medidas. A chamada “política de concorrência”98 visa proteger o processo competitivo, ou seja, não pretende dar proteção meramente aos agentes privados (competidores). Por meio da boa aplicação da política concorrencial, procura-se garantir à sociedade maior eficiência econômica, que se reflete, por exemplo, em preços melhores, melhor qualidade dos produtos e incentivo às inovações. 95 De acordo com o art. 1.º da Lei n. 8.884/94: “Esta Lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão do abuso do poder econômico”. 96 Veja-se: BRASIL. Lei n˚. 9.019, de 30 de março de 1995. Dispõe sobre a aplicação dos direitos previstos no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios, e dá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9019.htm> Acesso em: 10 abr. 2010 e BRASIL. Decreto n˚. 1.602, de 23 de agosto de 1995. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1995/d1602.htm> Acesso em 10 abr. 2010. 97 MACERA, 2006, p. 5. 98 Conforme bem coloca MUNHOZ: “A política de concorrência, conforme já foi apontado, não pode ser usada como sinônimo de direito da concorrência, pois constitui um conceito mais amplo, que abarca este último. Parte-se do princípio de que a vigência de uma legislação concorrencial não garante a manutenção de um ambiente concorrencial, sendo cada vez mais necessária a existência de uma infra-estrutura jurídica e econômica que complemente a legislação antitruste, de forma a garantir o processo competitivo” MUNHOZ, Carolina Pancotto Bohrer. Direito, livre concorrência e desenvolvimento. São Paulo: Lex, 2006, p. 151. 33 De outro lado, a política de liberalização comercial busca facilitar o acesso aos mercados por meio da redução de tarifas ou restrições quantitativas e também por meio da eliminação de barreiras ao investimento estrangeiro direto99. Vale destacar também que as análises de mercado realizadas no âmbito da tutela concorrencial e da defesa comercial são bem distintas. Veja-se que, ao analisar um mercado, o direito antitruste define o chamado “mercado relevante” no aspecto do produto e no aspecto geográfico100, critério que não é usado nas investigações de defesa comercial. Fixados os limites do mercado analisado (na análise antitruste), passa-se então a avaliar o comportamento dos consumidores e produtores diante de mudanças nos preços. Para essa análise é aplicável o “teste do monopolista hipotético”101 que avalia o grau de substitutibilidade entre bens e serviços para a definição do mercado relevante. Conforme explica a própria SEAE/MF em Parecer preparado para o famigerado caso Ambev, a definição de um mercado nem sempre é simples, pois envolve a identificação do conjunto de agentes econômicos (consumidores e produtores) que teriam potencial efetivo de limitar as decisões economicamente 99 GUASCH, J. Luis e RAJAPATIRANA, Sarath. 1998, p. 03. Cf. MACERA, 2006, p. 5. O mercado relevante se determinará em termos de produtos e serviços que o compõem (dimensão produto) e da área geográfica para a qual a venda destes produtos é economicamente viável (dimensão geográfica). BRASIL. SEAE/MF. Guia para análise econômica de atos de concentração. Disponível em: <http://www.seae.fazenda.gov.br/ central_documentos/notas_imprensa/1999-1/guiapara-analise-economica-de-atos-de-concentracao-1999> Acesso em: 10 jun. 2008. 101 “Segundo o teste do monopolista hipotético, o mercado relevante é definido como o menor grupo de produtos e a menor área geográfica necessários para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento de preços. [...] O teste do ‘monopolista hipotético’ consiste em considerar, para um conjunto de produtos e área específicos, começando com os bens produzidos e vendidos pelas empresas que estão se concentrando e com a extensão territorial em que estas empresas atuam, qual seria o resultado final de um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento dos preços para um suposto monopolista destes bens nesta área. Se a resposta é que a redução das vendas seria suficiente para fazer com que o suposto monopolista não considere o aumento de preços rentável, então a SEAE acrescentará o produto que é o mais próximo substituto do produto da empresa concentrada e a região de onde provém a produção que é a melhor substituta da produção da empresa em questão à definição original de mercado relevante. O exercício é, em seguida, repetido com referência a este novo mercado e assim sucessivamente, até o ponto em que seja identificado um grupo de produtos e um conjunto de localidades para o qual seja economicamente interessante, para um suposto monopolista, impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório aumento’ dos preços. O primeiro grupo de produtos e localidades identificado segundo este procedimento será o menor grupo de produtos e localidades necessário para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um ‘pequeno porém significativo e não transitório’ aumento dos preços, sendo este o mercado relevante delimitado”. BRASIL. SEAE/MF, 1999, p. 09. 100 34 relevantes, tais como aquelas referentes a preços e quantidades. Assim, nos termos do próprio Parecer: Dentro dos limites de um mercado, a reação dos consumidores e produtores a mudanças nos preços relativos - o grau de substituição entre os produtos ou fontes de produtores - é maior do que fora destes limites. Assim, um mercado pode ser definido como a área em que a concorrência entre as empresas é mais acirrada. A possibilidade de substituir produtos, entretanto, não termina nos limites do mercado. A economia como um todo é uma cadeia de possibilidades de substituição. A substitutibilidade e, portanto, a competição econômica são uma questão de grau. O teste do “monopolista hipotético”, descrito a seguir, é o instrumental analítico utilizado pela SEAE para a aferição do grau de substitutibilidade entre bens ou serviços. Segundo essa metodologia, o mercado relevante é definido como o menor grupo de produtos e a menor área geográfica necessários para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um “pequeno porém significativo e não transitório” aumento de preços.102 De modo diferente é realizada a análise e investigação para a eventual aplicação do direito antidumping, que cuida da definição da “indústria doméstica”: a totalidade dos produtores nacionais do produto similar ao importado, ou aqueles cuja produção conjunta constitua parcela significativa da produção nacional total da mercadoria em análise. Veja-se que o bem tutelado, nesse caso, é a indústria nacional, não existindo uma análise de mercado tal qual a realizada pelo direito antitruste. No que se refere à indústria doméstica, conforme os termos do art. 17 do Decreto n˚. 1.602, de 23 de agosto de 1995103, que regulamenta as normas que disciplinam os procedimentos administrativos, relativos à aplicação de medidas antidumping explica: Para os efeitos deste Decreto, o termo ‘indústria doméstica’ será entendido como a totalidade dos produtores nacionais do produto similar, ou como aqueles, dentre eles, cuja produção conjunta constitua parcela significativa da produção nacional total do produto, salvo se: I – os produtores estejam vinculados aos exportadores ou aos importadores, ou seja, eles próprios, importadores do produto alegadamente importado a preços de dumping, situação em que a expressão ‘indústria doméstica’ poderá ser interpretada como alusiva 102 BRASIL. SEAE/MF. Parecer n.º 188/99/MF/SEAE/COGSE/COGDC, Brasília, 11 de novembro de 1999, p. 6. 103 Esse decreto foi o resultado do Acordo Relativo à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio - GATT/1994, aprovado pelo Decreto Legislativo nº 30, de 15 dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, e na Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, na parte que dispõe sobre a aplicação dos direitos previstos no Acordo Antidumping. 35 ao restante dos produtores; II – em circunstâncias excepcionais, como definidas no § 4.º deste artigo, o território brasileiro puder ser dividido em dois ou mais mercados competidores, quando então o termo ‘indústria doméstica’ será interpretado como o conjunto de produtores de um daqueles mercados. Além disso, no que diz respeito ao mercado do produto, o conceito de like product utilizado nas investigações de dumping é realmente bastante vago, não havendo um critério de substitutibilidade tal como ocorre no “teste do monopolista hipotético” aplicável ao direito antitruste brasileiro. Em complemento, conforme explicam SCHMIDT, SOUSA e LIMA: [...] enquanto as medidas antidumping são aplicadas independentemente da estrutura de mercado em questão ou da capacidade de financiamento da empresa acusada, pois se referem ao tema da defesa comercial (em que há uma violação no fluxo do comércio), estes fatores são de extrema relevância sob uma ótica antitruste.104 Veja-se que, apesar de inexistir levantamentos oficiais detalhados sobre analises de definição do “like product” no Brasil, existem alguns exemplos interessantes de segmentações realizadas pelo DECOM (Departamento de Defesa Comercial, inserido na estrutura da Secretaria de Comércio Exterior - SECEX, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC) no que diz respeito à definição de produto em investigações de dumping, tais como as seguintes: i) no caso do dumping dos ventiladores105 - em que os ventiladores foram diferenciados em ventilador de mesa e de coluna; ii) no caso do dumping do papel106 – em que houve distinção entre o cartão de papéis em geral; iii) o caso do dumping do leite107 – em que o leite foi diferenciado em leite em pó genérico de leite em pó integral ou desnatado, não acondicionado para varejo; entre outras. Obviamente há casos que a definição do like product pode instigar discussões e debates, até mesmo porque a lei dá margem para interpretação ao colocar que na ausência de produto idêntico pode ser considerado como similar o 104 SCHMIDT; SOUSA; LIMA, 2002, p. 11. BRASIL. Processo MDIC/SECEX - 52500.004770/2006-98. Veja-se também: Resolução n˚. 23, de 19 de Junho de 2007. 106 BRASIL. Processo MDIC/SECEX-RJ 52500-017061/2006-72 107 BRASIL. MDIC. SECEX. Processo MDIC/SECEX-RJ 52500.023916/2005-13. No mesmo sentido, veja-se Circular N.˚ 60, de 5 de setembro de 2006, publicada no DOU de 08/09/2006. 105 36 produto que apresente características muito próximas às do produto que está sendo investigado108. A definição do produto objeto da investigação, com base na qual será definido o produto similar (like product), é um dos mais importantes conceitos para efeito da aplicação de uma medida antidumping. É por meio desse conceito que se define a indústria doméstica, os exportadores – prováveis causadores de dano à indústria doméstica – e o mercado sobre o qual será feita a análise. Na análise antidumping, diferentemente da antitruste, não há preocupação em avaliar alterações ao bem-estar do consumidor ou a manutenção de um ambiente concorrencial. De fato existem óticas diferentes: enquanto as regras antidumping têm como objetivo proteger os produtores domésticos contra as importações com suposto dumping, as regras concorrenciais têm a finalidade proteger a concorrência saudável no mercado e viabilizar o estado de bem-estar econômico. Outro ponto bem diferente diz respeito à utilização pelas autoridades de defesa comercial da melhor informação disponível (best information avaiable) que também é controversa, uma vez que essa informação pode não corresponder à realidade do mercado que se está analisando na investigação109. Há também diferença na análise do dano. Veja-se que, na investigação de dumping, quando se avalia o dano causado, ou o dano potencial, as autoridades não buscam avaliar o dano ao consumidor, mas apenas à indústria doméstica. Nas regras antitruste, apesar do dano ao consumidor não ser o fator determinante (uma vez que outras questões são analisadas considerando o mercado) este pode ser um elemento sensível para a decisão das autoridades responsáveis pela investigação. Por outro lado, veja-se que, em tese, ao se sobretaxar um produto (e.g., aplicação de medida antidumping) que chega aos consumidores a um preço melhor e com boa qualidade pode ocorrer a redução das opções de compra e diminuir o 108 Sobre a definição do produto para fins de aplicação de direito antidumping, o art. 5.º, § 1.º, do Decreto n. 1.602, de 23 de agosto de 1995 determina que: “O termo ‘produto similar’ será entendido como produto idêntico, igual sob todos os aspectos ao produto que se está examinando, ou, na ausência de tal produto, outro produto que, embora não exatamente igual sob todos os aspectos, apresente características muito próximas às do produto que se está considerando”. 109 Basicamente, a utilização da melhor informação disponível ocorre quando qualquer parte interessada negar acesso à informação necessária; quando a parte não fornecer a informação solicitada dentro do prazo; ou quando a parte criar obstáculos à investigação antidumping. 37 bem estar do consumidor que poderá ficar limitado há poucos ou apenas uma única opção, a depender do produto em questão. Essa perspectiva não é relevante para a aplicação das regras de dumping, por exemplo, que analisam o dano sobre outro viés. Conforme bem pontua MACERA: O impacto econômico da aplicação de medidas antidumping é considerável, visto que afeta o processo concorrencial nos mercados nacionais e internacionais. À medida que o antidumping tem como foco o dano à indústria e não à concorrência, é natural que se estabeleça um viés protecionista.110 Vale destacar que, em alguns mercados, a concorrência das importações torna-se essencial, especialmente quando existem elevadas barreiras à entrada, pois por meio da concorrência das importações é possível contestar o eventual exercício de poder de mercado da(s) empresa(s) considerada(s) dominante(s) no território nacional. O SBDC (formado pela tríade SEAE/MF, SDE/MJ e CADE) tem sido sensível a essa questão, conforme se observará no próximo tópico que analisa um estudo de caso que ilustra essa interação. 1.4.2 Estudo de casos: exemplos de interação entre as políticas Existem alguns casos que foram analisados no âmbito do SBDC que ilustram a interface e/ou comunicação entre a defesa da concorrência e os elementos de comércio internacional. Em que pese não ter sido encontrado no Brasil um caso típico de cartel de exportação que tenha sido analisado (o que seria o ideal ao tema proposto), foram escolhidos dois exemplos distintos de casos analisados - um sob a ótica antitruste e outro sob a ótica de defesa comercial - que demonstram a interação e/ou a interface desses dois direitos na prática. Assim, serão analisados: i) o caso Novo Nordisk e Biopart Ltda (Ato de Concentração n˚. 08012.007861/2001-81), e ii) o caso da investigação de dumping sobre as importações de alto-falantes quando originárias da República Popular da China - RPC. 110 MACERA, 2006, p. 6. 38 1.4.2.1 A análise antitruste do caso da insulina O caso Novo Nordisk e Biopart Ltda refere-se à operação celebrada entre a NN Brasil e a Biopart, mediante a qual a maioria das ações da Biobrás S.A. (pertencentes à Biopart e aos seus quotistas), passou à propriedade da NN Brasil. Em decorrência da operação, foi criada a empresa Biomm S.A., parte cindida da Biobrás, que seria detentora da patente norte-americana para o processo de produção de cristais de insulina111. Ao realizar a análise do mercado, a SEAE/MF ponderou que essa operação resultava em elevadas concentrações horizontais, com possibilidade de exercício unilateral de poder de mercado nos seguintes mercados relevantes:112 i) mercado mundial de cristal de insulina animal (setor privado); ii) mercado nacional de insulina humana formulada (setor público e privado); iii) mercado nacional de insulina animal formulada (setor público). Em resumo, após detalhada análise, ao concluir que esse Ato de Concentração resultava em elevadas concentrações horizontais nos mercados público e privado de insulina humana, e também que a baixa probabilidade de exercício de poder de mercado estava condicionada à entrada de novos laboratórios 111 De acordo com o Voto do Conselheiro Relator Thompson Almeida Andrade: “A NN Brasil é uma sociedade de participações do Grupo Novo, de origem dinamarquesa, que desenvolve suas atividades no setor de fabricação de medicamentos para o tratamento de diabetes, produzindo insulina, medicamentos antidiabéticos orais (OHA) e diversos outros produtos usados no tratamento desta doença” [...]. Enquanto a Biobrás S.A. “é uma empresa de nacionalidade brasileira, integrante do Grupo Biopart, cuja atividade inclui, também, a produção de insulina e medicamentos antidiabéticos orais (OHA) e diversos outros produtos usados no tratamento do diabetes”. p. 03. 112 Quando realizou a análise da probabilidade do exercício unilateral do poder de mercado pela empresa concentrada, foram identificadas as seguintes situações pela SEAE/MF: 1) Mercado mundial de cristal de insulina animal (setor privado): existe um forte processo de substituição do cristal de insulina animal pelo cristal de insulina humana, uma vez que este reflete o desvio de demanda do medicamento de insulina animal para o medicamento de insulina humana. Portanto, foi considerada baixa a probabilidade de exercício de poder de mercado; 2) Mercado nacional de insulina humana formulada (setor público e privado): a entrada no referido mercado sob a forma de importação dependente pode ser considerada provável, tempestiva e suficiente; ademais, verificou-se a existência de concorrentes potenciais. Além disso, foi identificado pela SEAE que a empresa Eli Lilly seria capaz de rivalizar com a firma concentrada. Logo, também nesse caso foi considerada como baixa a probabilidade de exercício de poder de mercado; 3) Mercado nacional de insulina animal formulada (setor público): apesar de a entrada ter sido considerada como improvável e ter sido observado o processo de substituição da insulina animal pela humana, verificou-se que uma empresa havia obtido à época registro para a comercialização deste produto junto à ANVISA, e que essa empresa possuía capacidade de abastecer e disciplinar os preços nesse mercado. Portanto, também nesse caso, a SEAE considerou baixa a probabilidade de exercício de poder mercado. Veja-se: BRASIL. SEAE/MF. Parecer técnico n.˚ 199. CONDU/COGPI/COGPI/MF. Ato de Concentração n˚. 08012.007861/2001-8. 39 no mercado brasileiro de insulina humana, para manter condições mínimas de concorrência nos referidos mercados até a entrada de novos participantes, a SEAE/MF considerou que a operação poderia ser aprovada, sugerindo, para tanto, duas condições: i) o cancelamento da cláusula de não concorrência fixada no contrato entre as requerentes; e ii) o cancelamento do art. 2.º da Resolução n. 2, de 23 de fevereiro de 2001, da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), que homologava Compromisso de Preços, para as importações do produto originárias dos EUA e da França, de interesse da Eli Lilly and Company e da Lilly France S.A. O Conselheiro-Relator responsável pelo caso, Thompson Almeida Andrade, divergiu da SEAE/MF no que diz respeito à definição dos mercados relevantes. Para o Conselheiro-Relator, na dimensão do produto, o mercado deveria ser definido como: i) o mercado público de insulinas em geral; e ii) o mercado privado de insulinas em geral113. Já o mercado relevante geográfico nessas duas hipóteses foi definido como nacional114. Em observação ao mercado de insulina, o Conselheiro-Relator teceu algumas importantes considerações, uma vez que aquele já era concentrado antes da operação, além de ser um mercado dependente do conhecimento de tecnologias específicas para a sua produção, conforme se extrai do excerto abaixo: Como se pode ver, estamos tratando de um produto cujo mercado é altamente concentrado no Brasil. Na realidade, como mostrado nos autos, este é um mercado bastante concentrado em todas as partes do mundo, uma vez que são poucas as empresas que produzem e comercializam o mesmo. O conhecimento e o domínio da tecnologia necessária à produção da insulina são bastante limitados, o que faz com que haja poucas empresas capacitadas a produzi-la. Não foi a presente operação que produziu a concentração observada deste mercado no Brasil; visto que esta característica já existia antes da operação, embora seja inegável que a mesma veio a ampliar o nível de concentração. Ponderando que a elevada concentração é uma característica deste mercado, é importante considerar para a aprovação da presente operação se existem no mercado brasileiro empresas que se apresentam como competidores efetivos ou potenciais com capacidade de ter um comportamento rival.115 113 BRASIL. CADE. Voto do Conselheiro Relator Thompson Almeida Andrade. Ato de Concentração n. 08012.007861/2001-8, de 25 de junho de 2003, p. 13. 114 BRASIL. CADE. Voto do Conselheiro Relator Thompson Almeida Andrade. Ato de Concentração n. 08012.007861/2001-8, de 25 de junho de 2003, p. 15. 115 BRASIL. CADE. Voto do Conselheiro Relator Thompson Almeida Andrade. Ato de Concentração n. 08012.007861/2001-8, de 25 de junho de 2003, p. 18. 40 Portanto, dadas as características do mercado, houve a necessidade de avaliar a presença de rivalidade. Nesse sentido, por meio da avaliação dos autos, o Conselheiro-Relator apontou que existiam rivais fortes, com elevada capacidade econômica nos mercados envolvidos na operação, tais como as empresas Aventis e Eli Lilly. Assim, compreendeu-se que esses concorrentes seriam capazes de confrontar qualquer tentativa de eventual abuso de poder de mercado116 pela Novo Nordisk. Contudo, o Conselheiro-Relator advertiu que, por existir Compromisso de Preços assinado junto ao MDIC/DECOM, resultante de investigação de dumping, a capacidade da Eli Lilly de disputar o mercado oferecendo um preço mais baixo estaria prejudicada. Portanto, para que houvesse o reforço da rivalidade, foi ponderada a importância de se afastar esta restrição. Ainda no que concerne aos potenciais rivais, o Conselheiro-Relator destacou que, durante a realização da operação, uma parte da Biobrás não entrou nas negociações, sendo constituída a Biomm: empresa que também poderia ser considerada como concorrente potencial nesse mercado. Entretanto, para viabilizar a potencial rivalidade, também foi destacado que a cláusula de não concorrência, fixada em 3 (três) anos no contrato, também teria que ser afastada.117 1.4.2.1.1 Comentários sobre os ajustes realizados após a decisão do CADE Esse caso demonstra como uma decisão de comércio internacional (no caso de defesa comercial – aplicação de medida antidumping) pode interferir no mercado 116 “Na tradição da Organização Industrial, e por extensão na análise econômica antitruste, poder de mercado é simplesmente - e de forma algo simplista - definido como poder de fixação discricionária de preços num dado mercado.” (destaque no original). POSSAS, Mario Luiz. Os conceitos de mercado relevante e de poder de mercado no âmbito da defesa da concorrência. p. 11. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/grc/pdfs/os_conceitos_de_mercado_relevante_e_de_poder_ de_mercado.pdf> Acesso em 20 jul. 2010. 117 Conforme os termos do voto: “uma parte da Biobras não entrou nas negociações, sendo constituída a Biomm, a qual é uma potencial concorrente neste mercado, com patentes modernas para a produção de insulina e conhecimento técnico suficientes para entrar neste mercado tão logo sejam eliminados os impedimentos que por enquanto são obstáculos intransponíveis para a sua operação. Estes impedimentos resultam da cláusula de não concorrência por três anos prevista no ‘Swap Agreement’. A rivalidade potencial se transformará em efetiva em um prazo razoavelmente curto (um ano) se for afastada esta limitação, a qual pode ser entendida como razoável do ponto de vista privado em uma transação deste tipo, mas que não pode ser aceita no quadro de um mercado tão concentrado como este”. BRASIL. CADE, 2003, p. 17. 41 de forma a alterar a análise e a decisão que pode ser tomada em um caso de aplicação do direito antitruste. Veja-se que o contrário também poder ser afirmado e por isso é interessante avaliar a sugestão dada na decisão do CADE. No entanto, antes de apresentar o que de fato ocorreu como resultado dessa decisão, vale a pena tecer breves explicações sobre os resultados do pedido da Biobrás de abertura de investigação para a aplicação de direito antidumping sobre os medicamentos originários da Dinamarca (referentes à Novo Nordisk), EUA e da França (referentes à Eli Lilly), que ocorreu antes da decisão do CADE. Após a investigação e análise de dados pelo DECOM118, responsável pelo processo de investigação de dumping, foi celebrado com a empresa Eli Lilly um Compromisso de Preços, por meio do qual essa empresa se comprometeu a não vender seus medicamentos contendo insulina abaixo de determinado preço. Ao mesmo tempo, decidiu-se pela aplicação de sobretaxa antidumping, afetando os produtos da Novo Nordisk, que, diferentemente da Eli Lilly, não assinou um Compromisso de Preços. Entretanto, conforme bem destaca a decisão do CADE e nos termos do voto do Conselheiro-Relator do caso, a cobrança da alíquota fixada para combater o dumping não chegou a se tornar exeqüível em razão de haver decisão judicial à época suspendendo a aplicação do direito antidumping119. Contudo, com a aquisição da Biobrás pela Novo Nordisk (que ocorreu após o término da investigação de dumping), as condições no mercado de insulina restavam totalmente distorcidas: de um lado a concorrente Eli Lilly teve os seus preços amarrados pelo compromisso firmado com o DECOM, ou seja, não possuía qualquer mobilidade e, de outro, a Novo Nordisk, que nunca chegou a ser efetivamente sobretaxada em razão de decisão judicial, passou também a ter o controle acionário da empresa que produzia esses medicamentos no Brasil. Logo, durante a análise do SBDC, anteviu-se que a Novo Nordisk poderia usar o Compromisso de Preços para excluir a empresa Eli Lilly do mercado e a situação seria mais sensível após a aprovação da operação, porque, ao mesmo 118 Veja-se: BRASIL. CAMEX. Resolução CAMEX n˚. 02 de 23 de fevereiro de 2001, publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 06 de março de 2001. 119 Quando da análise do Ato de Concentração pelo CADE, havia decisão no Mandado de Segurança 2001.34.00.006298-1, que à época estava em trâmite na 8.ª Vara Federal de Brasília – DF. 42 tempo, esta empresa passaria a deter, em conjunto com a sua controlada Biobrás, quase 100% do mercado nacional de insulina. Diante desse cenário, o SBDC verificou que algo deveria ser feito para restabelecer a concorrência no mercado nacional e que, portanto, a medida ideal seria a cessação do compromisso de preços. No entanto, essa medida não era da competência dos órgãos de defesa da concorrência, não sendo possível que as autoridades antitruste realizassem diretamente esse ajuste no mercado. Cabia ao CADE apenas apontar essa distorção e pedir para que providências fossem tomadas para que o compromisso de preços não se transformasse em um instrumento de dominação naquele mercado. De acordo com o voto do Conselheiro-Relator Thompson Andrade: [...] o Compromisso de Preços não pode ser um instrumento de dominação de mercado. Seu objetivo é proteger empresas nacionais de condutas anticompetitivas por parte de empresas estabelecidas fora do território nacional. Assim, cessado o Compromisso de Preços firmado entre o DECOM e a empresa Eli Lilly, estariam restabelecidas as condições de concorrência no mercado nacional de insulina”.120 Conforme já mencionado, a análise do caso motivou a aprovação da operação com a restrição referente à cláusula de não concorrência e foi indicada também a necessidade de se oficiar o DECOM/MDIC, para que tomasse providências relacionadas à imposição da alíquota antidumping: Como complemento importante desta decisão e elemento essencial para que se efetivem os efeitos esperados provenientes da aprovação deste Ato de Concentração, com maior rivalidade competitiva neste mercado altamente concentrado, indico que caberá ao CADE oficiar o DECOM sobre a necessidade de ser revisto o ato que gerou a imposição de alíquota antidumping contra a Novo Nordisk (preliminarmente sustada pela limitar concedida a esta) e do Compromisso de Preços assinado pela Lilly. Registre-se que a Novo Nordisk cumpriu adequadamente até agora os termos do APRO assinado com o CADE121. Uma vez que o Plenário venha aprovar a operação, como faz este Relator, e satisfeita a condição estabelecida neste voto e outras que venham a ser estabelecidas pelos outros Conselheiros, ficará esgotado o seu objetivo, sendo o mesmo arquivado. 120 BRASIL. CADE, 2003, p. 21-22. O APRO - Acordo de Preservação de Reversibilidade de Operação, é um instrumento que as partes podem estabelecer com o CADE, com a finalidade de impedir que durante a instrução processual ocorram mudanças decorrentes do negócio que sejam de difícil reversão (ou irreversíveis) caso seja necessário retornar ao status quo ante. Geralmente o APRO é assinado antes da preparação dos pareceres por parte da SEAE/MF e da SDE/MF e do julgamento pelo CADE. 121 43 É o voto.122 Em que pese existir esta decisão pedindo providências, vale ressaltar que não havia – como de fato não há - qualquer obrigatoriedade para a adoção da recomendação do CADE pelo DECOM/MDIC, já que não existe uma hierarquia entre as autoridades, cujas competências são distintas. Entretanto, decorrente da decisão do CADE, foi motivada a revisão da decisão pelas autoridades responsáveis pela aplicação das medidas de defesa comercial, conforme se pode observar nos termos da Resolução n˚. 04, de 03 de março de 2005123. Assim, o Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), em reunião realizada em 03 de março de 2005, com fundamento no inc. XV do art. 2.º do Decreto n. 4.732/2003124 e considerando os termos do Processo MDIC/SAA/CGSG52000.028532/2003-66, resolveu suspender, pelo prazo de um ano, as medidas antidumping – notadamente o direito antidumping definido com a alíquota ad valorem de 76,1% sobre as importações originárias da Dinamarca (relacionadas à empresa Novo Nordisk A/S e outras) e compromisso de preços sobre as importações originárias dos EUA e da França (relacionadas às empresas Eli Lilly and Company e Lilly France S.A.), – aplicadas às importações de medicamentos contendo insulina, classificados no item 3004.31.00 da Nomenclatura Comum do MERCOSUL, que haviam sido estabelecidas pela Resolução CAMEX n˚. 2, de 23 de fevereiro de 2001. Na fundamentação da decisão da CAMEX foi explicado que o DECOM/MDIC havia recebido um ofício, encaminhado pelo CADE, em que este último informava que havia aprovado por unanimidade a operação do Ato de Concentração n˚. 122 BRASIL. CADE, 2003, p. 24. O acórdão dessa decisão foi o seguinte: “ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, na conformidade dos votos e das notas eletrônicas, acordam o Substituto Eventual do Presidente e os Conselheiros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, por unanimidade, aprovar a operação com a exclusão da cláusula de não concorrência e com a recomendação ao DECOM para revisar a decisão de impor medidas antidumping à Novo Nordisk e à Eli Lilly. Participaram do julgamento o Substituto Eventual do Presidente Conselheiro Thompson Almeida Andrade e os Conselheiros Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, Miguel Tebar Barrionuevo, Fernando de Oliveira Marques e Cleveland Prates Teixeira. Presente a Procuradora-Geral Maria Paula Dallari Bucci. Ausente, justificadamente, o Presidente João Grandino Rodas. Brasília, 06 de agosto de 2003”. BRASIL. CADE. Acórdão do Ato de Concentração n. 08012.007861/2001-8. Requerentes: Novo Nordisk Holding do Brasil Ltda. e Biopart Ltda. 123 BRASIL. CAMEX. Resolução CAMEX nº 04, de 03 de março de 2005. Disponível em:< http://www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1197658477.pdf> Acesso 20 jan. 2010. 124 O Decreto n˚. 4.732/2003, assim determina no art. 2.º, XV: “Compete à CAMEX, dentre outros atos necessários à consecução dos objetivos da política de comércio exterior: [...] XV – fixar direitos antidumping e compensatórios, provisórios ou definitivos, e salvaguardas”. 44 08012.007861/2001-91, com a recomendação de que fosse revisada a decisão de impor medidas antidumping à Novo Nordisk A/S da Dinamarca, e às empresas Ely Lilly and Company da França e dos EUA. Nesse contexto, também foi colocado pelo CADE, como anexo a esse ofício, cópia do referido Ato de Concentração, assim como os demais votos dos Conselheiros e o acórdão publicado125. Ainda, para demonstrar a sua competência para modificar essa medida, foi apontado na Resolução que a legislação que regulamenta os procedimentos aplicáveis aos processos antidumping (no caso o Decreto n˚. 1.602, de 1995), confere à autoridade investigadora a atribuição para proceder à revisão de medidas aplicadas (direito antidumping ou um compromisso de preços)126. Veja-se que, o art. 60 do Decreto n˚. 1.602/95, prevê a possibilidade de suspensão de aplicação de medidas pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período, em caso de alterações temporárias nas condições de mercado e desde que o dano não se reproduza ou subsista em função da suspensão. Em complemento, a indústria doméstica deve ser ouvida. A CAMEX concluiu que, em razão de o prazo de vigência das medidas aplicadas às importações de insulina encerrar-se em 06 de março de 2006, a suspensão por um ano, prorrogável por mais um, seria suficiente para atender ao pedido do CADE. Assim, este foi o meio encontrado para adequar a situação que tinha potencial de modificar a estrutura concorrencial do mercado, diante da decisão do caso pelo CADE. Com esse breve resumo do caso é possível observar que a análise realizada pelo SBDC foi bastante interessante e precisou do auxílio das autoridades de defesa comercial para manter a competitividade no mercado. Vale destacar que, por se tratar de mercado altamente concentrado, com poucos players, ao invés de meramente vetar a operação – o que poderia ser alvo de críticas e/ou gerar fortes impactos entre os agentes envolvidos –, tanto a SEAE/MF quanto o CADE analisaram cuidadosamente o mercado para verificar a possibilidade de alternativas para aprovar a operação, mas ao mesmo tempo que 125 126 Veja-se: BRASIL. CAMEX. Resolução CAMEX n˚. 04, de 03 de março de 2005, p. 2. BRASIL. CAMEX, 2005, p. 3. 45 pudessem promover uma rivalidade potencial, que somente seria possível com a revisão da medida de defesa comercial. Nesse sentido, foram pontuadas pelas autoridades algumas medidas que deveriam necessariamente ser tomadas para facilitar o aumento da concorrência nos mercados afetados pela operação. Dessa maneira, uma alternativa foi encontrada com o pedido de suspensão do Compromisso de Preços para manter a rivalidade no mercado mediante importações, sem que para isso fosse desconstituída a operação. Contudo, conforme explicado acima, essa medida só poderia ser implementada pelas autoridades de defesa comercial (DECOM/MDIC e CAMEX), as quais compreenderam as preocupações colocadas na decisão do CADE e autorizaram então as modificações necessárias para a suspensão da aplicação da medida antidumping que estava em vigor. Portanto, esse caso ilustra bem como na prática uma decisão de direito antitruste pode interferir no comércio internacional e vice-versa. No caso em questão, as autoridades procuraram ajustar as medidas adotadas de defesa comercial considerando a operação notificada e aprovada pelo CADE, mas isso foi feito de forma cooperativa entre as autoridades, já que a CAMEX e o MDIC possuem autonomia em suas decisões e não estão obrigadas a implementar as sugestões. 1.4.2.2 A investigação de dumping dos alto-falantes Existem também alguns casos que foram analisados no âmbito do direito do comércio internacional que ilustram aspectos sensíveis da análise de defesa comercial que podem receber contribuição do direito da concorrência. Um desses aspectos refere-se à definição do “produto” nas investigações de dumping conforme se verá a seguir. No Brasil, um caso interessante envolveu como produto os alto-falantes. Nesse caso, em 26 de julho de 2006, as Peticionárias (Reclamantes) protocolizaram pedido de abertura de investigação de dumping, dano e relação causal nas exportações para o Brasil, de alto-falantes da República Popular da China - RPC, bem como de aplicação de direito antidumping provisório sobre as importações do produto objeto da investigação. 46 Nesse contexto, por meio da circular SECEX n.º 63, de 14 de setembro de 2006, foi iniciada a investigação e, em 29 de junho de 2007, seguindo recomendação do Parecer DECOM n°. 11, de 14 de junho de 2007 (ou seja, após 09 meses de investigação), foi aplicado direito antidumping provisório específico, de US$ 2,75 por quilograma, sobre as importações brasileiras de alto-falantes (montados ou desmontados) provenientes da China, classificados nos itens NCMs 8518.29.00, 8518.21.00, 8518.22.00 e 8518.29.90 (Resolução CAMEX nº 127 25/2007 ). A Resolução foi posteriormente retificada em nova publicação, realizada em 13 de julho de 2007. Com relação à determinação preliminar, vale esclarecer que a lei brasileira é clara ao estabelecer que esta é um juízo de valor provisório a respeito das condições necessárias para a aplicação de medida antidumping. Portanto, não há obrigatoriedade de aplicação de medida provisória nas investigações de dumping no Brasil, conforme o artigo 2º do Decreto n°. 1.602/95 que afirma que “poderão” ser aplicados direitos provisórios. Essa aplicação, em regra, só é possível se o DECOM, quando da sua análise preliminar, encontrar indícios da prática de dumping e verificar que tal prática causa dano ou ameaça de dano à indústria nacional. Por uma questão de transparência, o ato de imposição dos direitos provisórios deve indicar uma descrição bem detalhada do produto atingido e as próprias razões pelas quais a decisão foi tomada, nos termos do parágrafo único, art. 6º da Lei nº. 9.019/95. Contudo, quando da imposição da determinação preliminar de media antidumping no caso dos alto-falantes entende-se que a análise restou prejudicada em razão da definição do produto, como se verá a seguir. No exemplo do caso dos alto-falantes, por não haver conclusões iniciais sobre a definição do produto, acabou considerando diversos tipos de alto-falantes128 quando da imposição da medida antidumping provisória, alcançando produtos que apenas ao final foram excluídos da investigação. 127 Veja-se: BRASIL. CAMEX. Resolução CAMEX nº 25, de 27 de junho de 2007. Disponível em:< http://www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1197398519.pdf> Acesso 20 jan. 2010. 128 De acordo com o Parecer DECOM nº. 11, de 14 de junho de 2007: “[...] o DECOM entende que, nessa etapa da investigação, não cabe exclusão desses tipos de alto-falantes da definição do produto objeto da investigação. Isso porque as informações obtidas até a data considerada na elaboração deste parecer não permitem alcançar uma determinação final quanto à matéria.” BRASIL. DECOM, 2007, p. 20. 47 Veja-se que a imposição da medida provisória com base nos NCMs dos altofalantes, englobava diversos modelos de diversos tamanhos, tecnologias e capacidades. Isto acabou distorcendo a aplicação da medida, pois para efeito da aplicação de uma medida antidumping o produto similar (like product) deve ser bem definido. É por meio deste conceito que se define a indústria doméstica, os exportadores (prováveis causadores de dano à indústria doméstica) e o mercado sob o qual será feita a análise. Nos termos do Acordo Antidumping da OMC - AAD, produto similar é o produto idêntico e, caso não haja esse, o produto com semelhanças físicas muito próximas ao produto produzido no mercado importador (conceito incorporado à legislação brasileira – Decreto n˚. 1.602, de 23 de agosto de 1995). Para evitar equívocos na aplicação de uma medida de defesa comercial, entende-se que o produto objeto de investigação deve ser definido com base em critérios apropriados, tais como: características, aplicações, grau de intercambialidade. Vale destacar que esses elementos são avaliados de forma detalhada na análise antitruste quando da definição do mercado relevante, mas nem sempre usados de forma apropriada nas investigações de defesa comercial. Assim, a distorção que pode ser observada quando da aplicação da medida antidumping provisória nesse caso especifico demonstra que apenas com base em critérios (i.e., aplicações, grau de intercambialidade) é que seria possível concluir que produtos cobertos por uma mesma definição (NCM) destinam-se efetivamente ao mesmo mercado129. No caso de distintos produtos estarem cobertos por uma única definição, conforme indica o documento TN/RL/W/31, assinado pelo Brasil e outros Membros da OMC, deveria ser avaliada a aplicação desses produtos para afastar eventuais dúvidas sobre tratar-se de produtos similares. É interessante observar que nesse documento há sugestões sobre os critérios que deveriam ser usados para definir a 129 Sobre códigos e descrições da NCM, veja-se: BRASIL. MDIC. SECEX. Seções e Capítulos da TEC - Tarifa Externa Comum. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area =5&menu=1095> Acesso em 22 jun. 2010. 48 similaridade, tais como a substitutibilidade, a fungibilidade e a intercambialidade130 (que estão muito próximos dos critérios usados na definição de mercado na análise antitruste). O próprio governo brasileiro já adotou posição de que a ausência clara de critérios para definição do produto, objeto de investigação dumping, implica a possibilidade de adoção de definições amplas que podem gerar determinações arbitrárias de existência de dumping e dano, como acabou por ocorrer na fase preliminar de análise na investigação dos alto-falantes. De fato existem investigações que são iniciadas com uma definição ampla de produto, entretanto, a prática tem sido a de verificar, no curso da investigação, a propriedade dessa definição, de forma a garantir se a mesma não engloba produtos distintos; isto é, produtos que se destinem a segmentos de mercado distintos131. No entanto, na investigação de dumping dos alto-falantes, a despeito do DECOM: i) ter sido informado sobre a existência de distintos segmentos de mercado e da existência de características técnicas diferenciadas dos alto-falantes destinados para cada segmento; ii) ter aceitado a solicitação das peticionárias de excluir os altofalantes para celular, sob a alegação de que, em função de suas características técnicas o mesmo não concorreria com alto-falantes destinados para os outros segmentos; iii) ter recebido manifestações de importadores a respeito das diferenças observadas entre os alto-falantes em função dos segmentos a que se destinam; mesmo assim fez uma definição ampla do produto investigado, ainda que em caráter preliminar. 130 “We consider that the basic criteria to determine the product scope should be, for example, the characteristics of the product, uses of the products that correspond to those characteristics as well as the degree of interchangeability, fungibility or substitutability of those products. Based on these criteria, it would be possible to determine whether the products covered by a description are effectively destined to the same market or whether they are destined to different markets. If the products referred to by petitioners or reviewed ex officio by authorities for possible investigation are destined to different markets, i.e. they have different applications and are not closely substitutes, they could not be considered as a single product covered by a single antidumping investigation”. WTO. TN/RL/W/31, 25 November 2002. Paper by Brazil, Chile, Colombia, Costa Rica, Hong Kong, China, Israel, Japan, Korea, Norway, Separate Customs Territory of Taiwan, Penghu, Kinmen, and Matsu, Singapore, Switzerland, and Thailand. 131 Nesse sentido, vale citar o precedente do caso da investigação do dumping de leite em pó. Conforme a Circular SECEX nº 17, de 23 de agosto de 1999, a investigação foi aberta para o “produto – leite em pó”. Contudo, posteriormente, para efeito de determinação preliminar e final, o produto em questão foi restrito ao “leite em pó, integral ou desnatado, não acondicionado para varejo”, visto que foi considerado que os produtos destinados para varejo e para as indústrias não seriam concorrentes entre si, não sendo, portanto, cabível englobá-los em uma única definição de produto. 49 Dessa maneira, ocorreu a aplicação da medida provisória antidumping para todos os alto-falantes englobados nas NCMs, mesmo aqueles que sequer possuíam produção nacional132. Contudo, se naquele momento da investigação tivesse ocorrido uma análise detalhada da possibilidade de substituição entre os diversos alto-falantes existentes, definidos em função de sua aplicação e substitutibilidade, possivelmente teria se evitado a aplicação de uma medida provisória equivocada. Diante da aplicação da medida provisória, a indústria nacional de eletroeletrônicos participou ativamente da investigação para que a determinação final fosse coerente com a realidade. Sem dúvida, a definição equivocada do produto (que culminou com a medida antidumping provisória) gerou sérias implicações sobre a determinação de dumping e de dano, visto que o “produto importado” e o “produto similar” não necessariamente se referiam ao mesmo tipo de alto-falantes. Ou seja, se eventualmente existisse dumping e dano em alto-falantes para um segmento de mercado (por exemplo, alto-falante para TV LCD), o mesmo alegado dano poderia não ser observado em outro segmento (por exemplo, altofalante para subwoofer ou para home-theater), não existindo, conseqüentemente, qualquer relação de causalidade que é necessária para a aplicação de uma medida antidumping. As diferenças dos produtos envolvidos (diversos tipos de alto-falantes) afastavam a similaridade. Desse modo, após a aplicação da medida provisória e com as manifestações e novos dados apresentados pelas as autoridades passaram a considerar algumas características que eram fundamentais para demonstrar a diferenciação dos produtos, tais como a aplicação, o mercado a que se destinavam e a intercambialidade. Veja-se que esse tipo de critério no direito antitruste é essencial para a definição de mercado justamente para que se evitem distorções133. 132 Veja-se que, ocorre o dumping quando uma empresa exporta para o Brasil um produto a preço de exportação inferior àquele que pratica para produto similar nas vendas para o seu mercado interno (valor normal). Para a aplicação de direito antidumping deve haver o dumping, o dano a indústria doméstica (que concorre com os produto importado) e nexo causal entre o dumping e o dano. Por uma questão lógica, se não há produção nacional de determinado produto cujo valor alega-se ser resultado de dumping, não há que se falar em dano e, portanto, não deve ser aplicado direto antidumping. 133 “O mercado relevante possui duas dimensões que sempre devem ser consideradas – a material (ou do produto) e a geográfica. Para a definição da primeira, há que se levar em conta a substitubilidade do produto (ou serviço) do qual se busca encontrar o mercado relevante. Assim, caso o consumidor esteja disposto a trocar um produto por outro, é razoável supor que ambos estarão no mesmo mercado relevante material – é a chamada fungibilidade ou intercambialidade dos produtos, 50 Por fim, a medida provisória aplicada não foi mantida. Conforme explicado, os diferentes tipos e modelos de alto-falantes não competiam entre si. Portanto, tais produtos deveriam ser considerados, desde o início, como pertencentes a diferentes mercados, cujos padrões de competição são distintos, seja em função de suas características, seja em função de sua precificação ou de seu grau de substitutibilidade. Tal entendimento restou confirmado até mesmo pelas empresas que estavam pleiteando a medida antidumping, que também esclareceram que não existia um único alto-falante que fosse capaz de cobrir, de forma eficiente, todas as freqüências audíveis. Ademais, as autoridades acabaram reconhecendo que as aplicações do produto investigado eram diversas134. Dessa maneira, a concorrência do produto importado com o fabricado nacionalmente refletia o padrão de competição dessa indústria, ou seja: um altofalante importado para automóveis concorre única e exclusivamente com o altofalante também destinado a este mercado, não concorrendo, por exemplo, com os alto-falantes de micro-systems. Logo, para efeito de análise, os alto-falantes fabricados no Brasil deveriam ser analisados à luz de suas características físicas, de seu mercado e não de sua classificação tarifária, tendo em vista que os produtos importados concorrem tão-somente com aqueles que se destinam ao mesmo uso no mercado interno. A falta de intercambialidade e substitutibilidade também já havia sido caracterizada em outros produtos classificados na mesma NCM, tal como no caso dos pneumáticos novos de borracha para bicicletas, em que foi excluído um determinado tipo que não era produzido pelos fabricantes nacionais135. No caso dos tipos de alto-falantes, esses produtos não só eram distintos como a indústria doméstica sequer possuía meios de atender a demanda para todas as linhas de áudio e vídeo, conforme foi noticiado pelas empresas consultadas durante o processo de investigação. Em adição, ainda que algumas das instalações sob a ótica do consumidor.” CAVALCANTE, Léia Baeta. Poder de Compra do Varejo Supermercadista: Uma Abordagem Antitruste. SEAE/MF Documento de Trabalho nº 30. Fevereiro, 2004, p. 11. 134 BRASIL. DECOM. Parecer nº.11/2007. 135 Processo MDIC/SECEX 52000.012812/2006-03. Veja-se também: Circular Nº 74, de 31 de Outubro de 2006 (publicada no DOU. de 03/11/2006). Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/ arquivo/legislacao/cirsecex/2006/circ2006-74.pdf> Acesso em 10 jan. 2010. 51 industriais e equipamentos de produção de alto-falantes para automóveis pudessem, em tese, servir para a fabricação de alguns tipos de alto-falantes da linha de áudio e vídeo, identificou-se que eram necessários grandes investimentos de ferramental para a fabricação de peças, o que acarretaria elevados custos. Portanto, sem adentrar na questão da incapacidade de fabricação pela indústria nacional de todos os diversos tipos de alto-falantes, era fato incontroverso que a importação de alto-falantes para equipamentos eletroeletrônicos (de áudio e vídeo) não poderia prejudicar os fabricantes domésticos de alto-falantes para o segmento automotivo, pois esses produtos não poderiam ser considerados como substitutos. Assim, foi realizada a separação entre os produtos e os alto-falantes para linha de áudio e vídeo foram excluídos da medida antidumping aplicada ao final da investigação. 1.4.3 Observações adicionais sobre os estudos de casos Em que pese ser possível identificar algumas semelhanças, a política concorrencial é distinta da política de defesa comercial, especialmente no que diz respeito aos seus objetivos, regras e métodos de análise. Vale destacar que há uma diferença que emerge da própria concepção destas políticas, pois a defesa comercial é pró-indústria enquanto a defesa da concorrência é pró-competição e, em última análise, mais pró-consumidor. O estudo de casos trazidos não estão relacionados ao cartel de exportação que será a conduta abordada com maior atenção neste estudo. De todo modo são exemplos interessantes de que: decisões no âmbito da defesa da concorrência ou no âmbito do direito do comércio internacional (i.e., defesa comercial) afetam ambas as políticas (veja-se o caso da insulina – item 1.4.2.1) e também que elementos utilizados na análise antitruste poderiam ser utilizados nas investigações de defesa comercial (dumping136) como ferramentas para seu refinamento (veja-se a questão da substitutibilidade no caso dos alto-falantes – item 1.4.2.2). 136 Uma infração internacional não punida na ordem interna pode distorcer o mercado. O AAD é prescrito multilateralmente, mas aplicado localmente por meio de investigações que ocorrem nos países que supostamente estão sofrendo com a prática de dumping. Entretanto, pode ser questionada eventual aplicação incorreta de medida ou eventual violação aos termos do AAD, por exemplo, na própria OMC. 52 É importante observar que no caso da insulina a decisão do SBDC (i.e., CADE) foi importante para motivar a adaptação da decisão que havia no âmbito das políticas de defesa comercial. Já no caso dos alto-falantes, por meio de critérios que são usados na análise antitruste as autoridades brasileiras acertadamente reavaliaram a medida antidumping provisória imposta e separaram os alto-falantes utilizados pelas indústrias de áudio e vídeo dos alto-falantes para automóveis (setor automotivo)137. Assim, em que pese não ter havido afirmação das autoridades de que critérios comuns ao direito antitruste foram usados, na prática observa-se que isso ocorreu e a medida antidumping foi mantida apenas para o setor automotivo, preservando a coerência do critério de substitutibilidade e deixando de afetar toda cadeia de produção da indústria nacional de eletroeletrônicos de áudio e vídeo. 137 Conforme Resolução CAMEX n.º 66, de 11 de dezembro de 2007: “Foram, também, excluídos da definição do produto objeto da investigação os alto-falantes para câmeras fotográficas e de vídeo, para notebooks, para uso em equipamentos de segurança (normas EVAC BS 5839-8, IEC 60849 ou NFPA) e aqueles destinados a aparelhos de áudio e vídeo, que não sejam de uso em veículos automóveis, tratores e outros veículos terrestres.” 53 2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E O CONTEXTO DAS ECONOMIAS EM DESENVOLVIMENTO 2.1 O surgimento “tardio” das políticas de concorrência Para melhor compreensão deste estudo é necessário também trazer algumas observações introdutórias sobre o contexto da criação das leis de concorrência e das políticas de defesa da concorrência nos países que não tinham qualquer tradição ou familiaridade com a matéria. Conforme explica WAISBERG: As principais metas das leis de concorrência não são iguais em todos os países que as possuem. Mas, em um sentido mais amplo, é possível dizer que o maior objetivo é evitar distorções de mercado (preços monopolísticos, colusão, cartelização, abuso de posição dominante, etc.) para se atingir um bem-estar social.138 Em um contexto histórico, sem dúvida, mudanças eram necessárias a partir da segunda metade do século 20, uma vez que a maioria dos ex-países comunistas e economias estadistas passaram por um grande período onde encontravam-se praticamente fechadas. Assim, os consumidores dos países da America Latina, da África, da Ásia e dos ex-integrantes do bloco soviético, muitas vezes tinham que aguardar muito para obter os melhores produtos já disponíveis em outros mercados, ou tinham que se contentar com produtos de pior qualidade diante da pouca – ou quase nenhuma – possibilidade de escolha139 considerando a ausência de produtos importados que concorressem com os nacionais. A abertura comercial pode ser simbolizada pela queda do muro de Berlin140, momento em que muitas nações partiram para a entrada no mercado globalizado. 138 WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os países em desenvolvimento. São Paulo: Aduaneiras, 2006, p. 18. 139 RODRIGUEZ, Armando; MENON, Ashok. The Limits of Competition Policy: The Shortcomings of Antitrust in Developing and Reforming Economies. Kluwer Law International. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 19. 140 Veja-se: BANCHER; Flavia. A queda do muro de Berlim e a presentificação da história. Cotia: Atelie Editorial, 2003, passim. 54 De acordo com Rodriguez; Menon: “Desregulamentação - reduzir ou eliminar regulamentações onerosas e ineficientes - figurou como um dos componentes centrais dos programas de liberalização”141. A privatização de boa parte das empresas estatais ocorreu com base nos programas de liberalização econômica e o livre comércio e a abertura ao investimento estrangeiro passaram a ser reconhecidos como instrumentos de crescimento e desenvolvimento142. O objetivo das reformas econômicas era impulsionar as nações com o aumento da competitividade e também com o crescimento e a melhoria da qualidade de vida. Nesse sentido, era esperado o crescimento da concorrência, resultando em empresas mais eficientes, com a remoção ou redução da rígida regulação estatal, combinado com o aumento da entrada do investimento estrangeiro143. Da mesma forma, com o aumento da concorrência, imaginava-se que os consumidores seriam beneficiados com maior poder de escolha e possivelmente com produtos de maior qualidade e preços menores. Entretanto, os resultados obtidos foram abaixo do esperado e as razões têm sido amplamente debatidas144. De acordo com BREMMER, os países em desenvolvimento, onde a intervenção estatal na economia era intensa, sinalizavam uma rejeição estratégica da doutrina de livre mercado145. Assim, quando o sucesso da liberalização começou a diminuir, ao mesmo tempo começou a crescer a apreensão de que as empresas privatizadas poderiam falir nas mãos de grupos privilegiados, ou que esses mesmos grupos estavam trabalhando para efetivamente impedir a antecipação dos ganhos que seriam gerados pela liberalização. De fato, a ausência de concorrência e a privatização do monopólio garantiram, meramente, a continuidade da existência de negócios ineficientes que em nada beneficiaram a população146. É neste cenário que a política antitruste 141 RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 19. Nesse sentido, veja-se, por exemplo: WACZIARG, Roman; WELCH, Karen Horn. Trade Liberalization and Growth: New Evidence. Research Paper n˚. 1826, Stanford GBS: 2003, passim. 143 Empresas eficientes tornar-se-iam necessariamente mais produtivas e capazes de concorrer efetivamente na economia global em expansão. Nesse sentido, veja-se: RODRIGUES; MENON; 2010, p. 20. 144 Veja-se: BREMMER, Ian. State Capitalism Comes of Age. The end of the free market? Foreing Affairs, May/June, 2009, p. 40-55. 145 BREMMER, 2009, passim. 146 RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 20. 142 55 aparentava-se como um instrumento natural para combater os abusos de poder de mercado e as práticas anticompetitivas. Observa-se que o modelo defendido pelos operadores do direito à época, que eram mais versados na teoria do desenvolvimento e economia internacional do que em antitruste, tinha muito do imaginário popular de que uma política antitruste seria mais eficiente147. Ou seja, pressupunha-se uma descrição mais tecnocrata e apolítica do antitruste. A racionalidade por trás das recomendações desenvolvidas nas políticas de concorrência afirmava que uma lei de defesa da concorrência deveria conter regras contra práticas anticompetitivas e, ao mesmo tempo, deveria ser administrada por uma agência profissional independente e autônoma, responsável pelos mecanismos necessários para reduzir os efeitos negativos de cartéis, monopólios e outras condutas protecionistas148. Seguindo essa lógica, a elaboração de legislações e políticas de concorrência tornou-se lugar comum em diversos mercados de economias em transição que buscavam reformar seus mercados. Nesse sentido, veja-se que, praticamente todos os países do Leste Europeu, praticamente toda a América Latina, muitos dos países que se separaram da União Soviética e alguns países africanos adotaram, nas últimas décadas, programas e política de concorrência ou estão em processo de adoção. A tabela abaixo indica que aproximadamente metade das adoções ocorreu nas últimas duas décadas, principalmente na década de 90. TABELA 01 - Adoção de leis de concorrência149 Período 1985-1990 1991-1995 1996-2000 Total 1985-2000 147 Número de Jurisdições que decretaram uma Lei de Concorrência pela primeira vez 8 25 16 49 Veja-se, no mesmo sentido: RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 20. Veja-se: KOVACIC, William E. Institutional Foundations For Economic Legal Reform in Transition Economies: The case of competition policy and antitrust enforcement. Chicago Kent Law Review 77 n˚.1, 2001, p. 265-315. Cf. FRANCISCO, Marcos. Do Developing Countries Need Competition Law and Policy? September, 2006. Disponível em:<http://ssrn.com/abstract=930562> Acesso em: 10 jan. 2010. 149 WTO. World Trade Report 2004, p. 181. 148 56 Vale destacar que os dados acima subestimam, de certo modo, a “popularidade” dos programas de defesa da concorrência150 porque analisam apenas as adoções de 1985 a 2000, sendo que ocorreram algumas recentes que são bastante relevantes, tal como ocorreu na China151. 2.1.1 O processo de adoção nas economias em desenvolvimento Vale destacar que os dados da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) também apontam que as políticas de concorrência adotadas recentemente pelas economias emergentes ou em desenvolvimento152 estão em pleno crescimento. A missão atual dos operadores é justamente promover a chamada “cultura da concorrência”153 não apenas à população em geral, mas principalmente aos quadros que compõem as agências, aos políticos e aos legisladores. É importante observar que a aplicação de uma política antitruste demanda treinamento amplo que atinja todos os temas relevantes para a aplicação da 150 Note-se que, excluindo as Comunidades Européias (CE), 80 jurisdições reportaram ter algum tipo de lei antitruste em 2001. Nesse sentido, veja-se: WTO. World Trade Report 2004, p. 181. Disponível em: <http://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/anrep_e/world_trade_report 04e. pdf > Acesso em: 10 jun. 2010. 151 CHINA. Anti-monopoly Law of the People's Republic of China. Disponível em: <http://www.china.org.cn/government/laws/2009-02/10/content_17254169.htm> Acesso em: 20 jun. 2010. 152 O critério principal do Banco Mundial para a classificação das economias é o Produto Interno Bruto per capita (PIB). Com base no seu PIB per capita, cada economia é classificada como de baixa renda, de média renda (subdividida em média baixa e média alta), ou de alta renda. As economias de baixa renda e as de média renda são classificadas como as economias em desenvolvimento. Segundo o Banco Mundial o uso do termo é conveniente, pois não sugere que todas as economias estejam em um estágio de desenvolvimento semelhante. De acordo com os valores dos PIBs per capita de 2009, calculado pelo método do Banco Mundial, são considerados países de baixa renda aqueles que possuem PIB per capita inferior ou igual a 995 dólares; de renda média baixa de 996 dólares a 3,945 dólares; renda média alta de 3946 dólares a 12.195 dólares, e de alta renda aqueles que possuem PIB per capita igual ou superior a 12.196 dólares. WORLD BANK. Country Classifications Disponível em: <http://data.worldbank.org/about/country-classifications>. Acesso em: 19 jul. 2010. 153 Vejam-se observações sobre a divulgação da cultura da concorrência no Brasil: “Nos últimos 5 anos, a Advocacia da Concorrência ganhou maior destaque e importância na atuação do SBDC. Através de diversos projetos, buscou-se alavancar a difusão da cultura da concorrência em todo o território nacional, a fim de alcançar toda a população e território nacional através da conscientização da importância da proteção do livre mercado. Nesse período, além da crescente atuação acadêmica e governamental, o SBDC realizou projetos que ultrapassaram a atuação tradicional da advocacia e atingiu diretamente a sociedade civil e empresarial. Criou-se, portanto, uma rede de informações de modo a enraizar a idéia da concorrência na cultura popular brasileira”. CADE. PINCADE. Advocacia da concorrência. Disponível em:< www.cade.gov.br>. Acesso em 08 jun. 2010. 57 legislação. Assim, aspectos técnicos como: i) a definição do mercado relevante154, ii) o estabelecimento de índices de concentração, iii) a análise da entrada155, iv) questões procedimentais, como endereçar a produção de provas e outras, necessitam de guidelines que estejam aptos a estabelecer critérios objetivos156. No passado, acreditava-se, por exemplo, que existia um nexo causal claro entre a concentração de determinados mercados e o comportamento anticompetitivo. Mas, atualmente, a análise desta relação não é tão simples, uma vez que o pensamento antitruste evoluiu. De fato, não se poder negar que a concentração em determinados mercados nacionais muitas vezes leva ao comportamento anticompetitivo. Em adição, verificase que em economias pequenas e pouco desenvolvidas157 não é raro encontrar mercados concentrados, uma vez que, muitos países possuem atraso tecnológico, fato que não justifica a existência de muitos concorrentes em determinados mercados158 Entretanto, diante das particularidades das economias em desenvolvimento e menos desenvolvidas, às vezes é necessário contar com certo grau de concentração para se fazer frente à concorrência internacional. Isto fica mais 154 “Mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado. [...] Se a delimitação do mercado relevante implica, necessariamente, a identificação do mercado no qual atua determinado agente econômico (ou agentes econômicos), estamos tratando do mercado em que este concorre. Ou seja, a busca do mercado relevante passa pela identificação das relações (concretas, ainda que potenciais) de concorrência de que participa o agente econômico.” FORGIONI, 1998. p. 200. 155 “[...] as barreias à entrada, em geral, podem ser definidas como o conjunto de circunstâncias que permeiam as atividades do mercado relevante, estabelecendo as condições de entrada, em termos de custos, aprendizagem, tempo de adaptação, condições de desenvolvimento e retorno de investimentos do agente em determinado segmento da economia.” GABAN; DOMINGUES, 2009, p. 144-145. 156 RODRIGUES; MENON, 2010, p. 21-22. 157 De acordo com a Organização das Nações Unidas, país subdesenvolvido ou país menos desenvolvido (LDCs - Least Developed Countries) são países que apresentam os mais baixos indicadores de desenvolvimento socioeconômico e humano entre todos os países do mundo. É tomado por base três principais aspectos: i) baixa renda (média trienal do PIB per capita de menos de US$ 750), ii) baixos índices de recursos humanos (nutrição, saúde, educação e da alfabetização de adultos); iii) vulnerabilidade econômica (instabilidade da produção agrícola, das exportações de bens e serviços, desvantagens econômicas etc.). Veja-se: UNITED NATIONS. The Criteria for the identification of the LDCs. Disponível em: <http://www.un.org/specialrep/ohrlls/ldc/ldc% 20criteria.htm>. Acesso em: 20 jul. 2010. 158 RODRIGUES, MENON, 2010, p. 22. 58 evidente, quando se está diante de mercados relevantes internacionais que tendem a consolidação para aumentar a competitividade (i.e., mercado de autopeças159). O que muitas vezes não é encontrado nas economias em desenvolvimento é um movimento popular anti-monopólio associado com o desejo de controle social da indústria (o que, por exemplo, está enraizado nas questões culturais envolvidas na American Civil War - que levou à elaboração da primeira lei antitruste americana, o Sherman Act de 1890160). Ainda, a tentativa de incorporação de regras e políticas sem atentar para a as realidades de cada Estado tende a fazer com que as regras e leis antitruste deixem de ser efetivas. Contudo, ao longo do tempo, espera-se que as políticas de concorrência deixem de se tornar pouco efetivas nos PEDs, uma vez que grupos de interesse aprendam quais são os benefícios que podem derivar da presença das agências e da sua respectiva atuação. Veja-se, aqui, a importância da chamada divulgação da “cultura da concorrência”. Algumas leis de concorrência foram (e tem sido) planejadas em condições desfavoráveis, sendo importante ressaltar que a lei, por ela própria, não garante a solução dos problemas que emergem de mercados concentrados ou de condutas anticompetitivas. Isto é, cada vez mais se denota a importância da disseminação do know how antitruste e das chamadas “best practices” para que essas economias em desenvolvimento aproveitem da experiência das jurisdições com maior tradição161. Cabe observar, conforme já foi dito anteriormente, que muitas políticas de concorrência nos países em desenvolvimento foram desenvolvidas, de forma inadequada, sem atentar para as realidades locais de cada economia. Isto, de certa maneira, não é suprido por missões de treinamento aos operadores das novas leis de concorrência, que muitas vezes são realizadas com o auxilio das equipes de concorrência de jurisdições mais maduras, ou com maior experiência no tema. Assim, sem atentar para as realidades de cada país e de cada economia é muito difícil programar uma lei ou uma política de concorrência de forma que esta seja benéfica e efetiva. 159 Nesse sentido, veja-se: RAMACHANDRAN, Vijaya; COTTON, Linda. The Global Auto Parts Industry: Consolidation and other Trends. January 2000, p. 1-13. 160 RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 23. 161 Isto é o que ocorre nas reuniões da OCDE, ICN e UNTAD, que resultam em documentos que destacam a troca de experiência e políticas adotadas por cada país e suas respectivas agências. 59 2.1.2 O problema da ausência de tradição e de conhecimento A falta de conhecimento do que está em jogo leva muitos consumidores a ignorar o impacto potencial que o direito da concorrência pode causar. E, certamente, o desenvolvimento de uma cultura, com a disseminação de conhecimento sobre o assunto, trata-se de tarefa custosa. Em países cujos problemas com educação são latentes, seria até mesmo irracional investir recursos no aprendizado do direito da concorrência, uma vez que os custos poderiam exceder os benefícios auferidos em pequenas economias162. Assim, como uma economia em desenvolvimento assimilaria uma lei de defesa da concorrência em pouco tempo? Como bem explica RODRIGUES e MENON, seria importante primeiro examinar o processo pelo qual foi definido que aquela nação precisava ou seria beneficiada com a lei de defesa da concorrência163. Em um estudo recente, a OCDE explica, conforme análise das motivações em cada caso, que a adoção de políticas de concorrência foi muitas vezes o resultado da pressão de agências de outros países do que propriamente uma política interna de reforma164. Sem dúvida essa influência acontece porque a maior parte dos relatórios dos principais fóruns e organizações internacionais (incluindo a própria OCDE) recomenda a adoção de uma lei e de uma política de defesa da concorrência. Os argumentos geralmente são os mesmos, tais como: i) o significativo ganho de eficiência econômica que a lei antitruste traz; ii) a estruturação de medidas que indiquem a presença de setores altamente concentrados; iii) o crescimento potencial da produtividade da indústria doméstica; iv) os possíveis benefícios de preços menores aos consumidores obtidos por meio de combate a cartéis; e, quando a política antitruste e de defesa comercial são estabelecidas conjuntamente, somam-se ainda os benefícios gerados pela eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias como resultado da vigilância e avaliação da agência165. 162 Cf. RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 25. RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 25. 164 OCDE. Competition Policy Enforcement Experiences from Developing Countries and Indications for Investiment. OCDE Global Forum on International Investment VII, March, 2008, p. 4. 165 RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 27. 163 60 Veja-se que na prátcia ocorre uma sobrecarga financeira deixada aos consumidores como resultado de práticas monopolísticas em economias em desenvolvimento. Aliás, a perda dos consumidores também é percebida nos países desenvolvidos, mas estimar de forma segura os ganhos dos consumidores gerados pelo controle antitruste não é das tarefas mais simples. Vale dizer que, mesmo as empresas monopolistas, nem sempre têm conhecimento dos preços que seriam sensíveis aos consumidores, ao menos quando o produto já é colocado no mercado, ou seja, há uma assimetria de informação166 que deve ser considerada. Não é trivial e fácil desenvolver uma política antitruste considerando todas as particularidades e realidades de cada economia, o que dificilmente estaria contido em um único guideline. Ainda, apesar da intenção de desenvolver políticas atendendo até mesmo às pressões internacionais, seria ingênuo assumir que todas as agências de defesa da concorrência agiriam de acordo com “o interesse da sociedade” (o que varia de acordo com cada jurisdição). No entanto, os especialistas geralmente assumem que as leis de concorrência e as agências fariam um trabalho impecável e que, ao mesmo tempo, os alvos das investigações ficariam à mercê das medidas tomadas pelas agências, tidas como “último bastião” contra a “tirania dos monopólios” e “influências políticas”167. Assim, com base muitas vezes em premissas equivocadas é que algumas leis e políticas de concorrência acabam sendo elaboradas, com pouco êxito, nos países menos desenvolvidos e nos PEDs que possuem pouca, ou quase nenhuma, familiaridade com o direito antitruste. Em razão da falta de conhecimento sobre o assunto tem sido cada vez mais valorizado o trabalho realizado em organizações internacionais que procuram auxiliar os países na elaboração e desenvolvimento de políticas de defesa da concorrência. 166 Sobre assimetria de informação, veja-se: GABAN, Eduardo Molan. Regulação econômica e assimetria de informação. Revista do IBRAC, São Paulo, v. 9, n. 5, p. 97-167, 2002. 167 RODRIGUEZ; MENON, 2010, p. 29. Os autores afirmam também que é equivocado acreditar puramente no fato de que a mera existência e atuação da agência antitruste em benefício dos consumidores implicaria sua legitimidade popular e seu sucesso. 61 2.2 As organizações internacionais como fomentadoras das políticas de concorrência No plano internacional, cada vez mais a concorrência vem ganhando espaço, especialmente diante da existência de condutas anticompetitivas internacionais cujos efeitos negativos podem ser sentidos em vários países ao mesmo tempo168. Nesse sentido, destaca-se a atuação das organizações internacionais, ou fóruns internacionais de discussão, para o intercâmbio de idéias e informações. No que diz respeito às condutas anticompetitivas, pode-se dizer que existe um consenso de que cartéis internacionais que fixem preços ou dividam mercados, ou qualquer atividade com o propósito de excluir empresas estrangeiras e negar acesso aos mercados, seriam práticas inaceitáveis no mundo globalizado, mas ainda há muito debate no sentido de criação de regras multilaterais e até mesmo sobre a aplicação das regras existentes. Nesse sentido, existem estudos importantes que denotam o papel das organizações internacionais como a OMC, a OCDE e a UNCTAD. Os esforços dessas organizações e foros multilaterais são elogiosos e muito tem contribuído para a propagação de uma cultura geral de defesa da concorrência, especialmente na última década. Vale observar que muitas recomendações, guidelines e a divulgação das best practices têm oferecido suporte para os países menos desenvolvidos implementarem as suas políticas e leis de defesa da concorrência, em que pese isso não ser o suficiente para o desenvolvimento de políticas antitruste que sejam efetivas. Portanto, esse tópico traçará um breve panorama do papel e das atividades das organizações e foros multilaterais para a promoção do direito da concorrência em geral (considerando todos os temas) o que influencia não apenas seus membros efetivos, mas também os chamados membros “observadores”, que muitas 168 Como é o caso dos cartéis internacionais hard core. Para a OCDE, o cartel hard core é: [...] um acordo anticoncorrencial, uma prática concertada anticoncorrencial ou arranjo anticoncorrencial realizado por competidores para fixar preços, fraudar licitações (collusive tenders), estabelecer restrições de produção ou cotas, ou partir ou dividir mercados, alocando os clientes, provedores, territórios, ou linhas de comércio. OCDE, 1998, p. 02. 62 vezes tem a intenção de combater condutas anticompetitivas e fomentar a livre concorrência em suas jurisdições, mas precisam de suporte. 2.2.1 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) A OCDE é uma organização internacional que possui sede em Paris, cujo objetivo principal é servir de foro para a discussão, o desenvolvimento e o fomento de políticas econômicas e sociais que sejam de interesse de seus membros. Fundada em 1961, a OCDE é constituída atualmente por 31 países considerados democráticos e de elevado desenvolvimento industrial169. Uma característica importante da OCDE é que dela também podem participar como não-membros outros países, organizações não-governamentais e sociedades civis.170 Trata-se de foro bastante profícuo em que há uma coordenação de políticas domésticas e internacionais para auxiliar os membros e os não-membros a lidarem com os problemas que abrangem tanto temas econômicos e sociais de macroeconomia, como também educação, ciência e desenvolvimento. O fato de a OCDE ter aberto as discussões aos não membros da organização foi muito importante como meio de globalizar os debates e tentar conjugar os interesses comuns. Na OCDE, o Comitê de Direito e Política de Concorrência (CDPC), procura auxiliar diversos países na obtenção de informações sobre as políticas de concorrência, sendo responsável pela promoção das discussões e apoiado pela divisão Competiton Law and Policy (CLP). 169 Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Noruega, Países Baixos, Polônia, Portugal, República Eslovaca, República Tcheca, Suécia, Suíça, Turquia e Reino Unido. Veja-se: OCDE. About. OECD. Disponível em: <http://www.oecd.org/pages/0,3417,en_36734052_36761800_1_1_1_1_ 1,00.html> Acesso em 20 jul. 2010. 170 O Brasil ainda avalai o seu ingresso na OCDE. De acordo com COZENDEY: [...] o Brasil reconhece na OCDE um organismo relevante, influente na agenda internacional e de grande capacidade técnica. A maior aproximação do Brasil com a organização, entretanto, não será uma busca de imagem ou identidade diferente, mas sim um capítulo a mais de nossa contribuição para o reforço da gestão coletiva do sistema econômico internacional, que só será eficaz se levar em conta de forma adequada os interesses dos países em desenvolvimento. COZENDEY, Carlos Márcio. O Brasil e a OCDE: não é de hoje, não é para amanhã. Pontes. v. 3, n. 4, ago. de 2007. Disponível em: <http://ictsd.org/i/news/12438/> Acesso em: 15 jul. 2010. 63 Vale destacar que, desde 1967, a OCDE promove um trabalho e prepara documentos de “recomendação” aos seus membros, para a elaboração de normas que facilitem o controle de práticas e negócios potencialmente restritivos à concorrência. Esses documentos sevem como “guias” que procuram dar suporte ao desenvolvimento de política da concorrência e auxiliar a cooperação entre as agências nacionais de defesa da concorrência Cada vez mais a OCDE esta priorizando o auxílio técnico aos países, elaborando respostas aos problemas comuns. O CDPC procura identificar práticas recomendáveis de aplicação voluntária e desenvolver uma possível harmonização das políticas de concorrência. Vale observar, também, que existe um fórum sob coordenação do CDPC - o Fórum Global em Concorrência - que têm a finalidade de aprofundar as relações entre os membros e os não-membros. O Fórum Global em matéria de concorrência é formado por autoridades de concorrência dos países-membros e não-membros, representantes de Organizações Não-Governamentais (ONGs), empresas e consumidores, além do Banco Mundial, a UNCTAD e a OMC171. As recomendações da OCDE são consideradas como soft law172, já que os Membros não são obrigados a adotá-las, não havendo sanções em caso de não adoção. Isto não retira a importância dessas recomendações, uma vez que os materiais produzidos, seus Comitês e grupos de estudo buscam o fortalecimento de políticas e leis antitruste. Há quase 40 anos observam-se trabalhos e estudos relevantes no âmbito da OCDE no que diz respeito ao direito da concorrência. Em 1971 houve uma recomendação em que já se procurava estimular os países-membros a vigiar condutas comerciais que pudessem ter efeitos restritivos à livre concorrência173. 171 OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e economia da concorrência. São Paulo: Renovar, 2004, p. 405. 172 Diferentemente da soft law, a chamada hard law requer que as partes contratantes observem os termos do acordo. Em um acordo imperativo, os participantes são requisitados a observar os seus termos e a modificar suas leis nacionais, adequando-as aos mandamentos do acordo, caso seja necessário, pelos menos em um mínimo de exigências que sejam fundamentais. Cf. MATSUSHITA, Mitsuo. International Cooperation in the Enforcement of Competition. Washington University Global Studies Law Review, Washington, Vol. 1, 2002, p. 468. 173 “CONSIDERING moreover that consumer policy can contribute to more rational consumer behaviour, which is essential for the effective functioning of price and quality competition; I. RECOMMENDS to the Governments of Member countries: 1. That they should promptly take steps, within the framework of their existing legislation: i) To apply their restrictive business practices 64 A Recomendação do CDPC de 1978 reconhecia também que as legislações de direito da concorrência dos países encontravam grandes dificuldades para enfrentar as condutas anticoncorrenciais, especialmente quando era necessária a busca de provas e quando os agentes localizavam-se no exterior. Este documento ressalta que tais práticas afetam negativamente todo o comércio internacional e, por isso, algumas medidas devem ser tomadas, tais como a edição de legislações nacionais, a cooperação internacional e o desenvolvimento de regras em conformidade com o direito internacional174. Um ano após, em 1979, houve outra Recomendação que versou sobre a política de concorrência e os setores isentos ou regulamentados. Esta Recomendação traduziu um convite da OCDE para que os Estados-membros procedessem a uma reavaliação geral das normativas relacionadas à isenção de condutas abusivas anticoncorrenciais175. legislation with great vigilance against the detrimental effects especially: a) Of price-fixing and marketsharing agreements, b) Of monopolistic and oligopolistic practices affecting prices, and c) Of restrictive business practices in the field of patents and patent licensing; ii) To keep under review the price situation in key sectors of their economies which have a monopolistic or oligopolistic structure in order to reduce any excessive prices by administrative or legal means at their disposal; iii) To examine whether the bodies responsible for the enforcement of the restrictive business practices legislation have adequate means at their disposal to carry out the measures outlined in paragraphs i) and ii) above; iv) To strengthen their consumer policies in relation to consumer protection, education and information, where they assist competition to function more effectively;”. (destaques no original) OCDE. Recommendation of the council concerning action against inflation in the field of Competition Policy – 14 dez. 1971 — C(71)205(Final). Disponível em: <http://webnet.oecd.org/ oecdacts/Instruments/ListNoGroupView.aspx?order=title> Acesso em 12 jan. 2010. 174 OCDE. Recommendation of the council concerning action against restrictive business practices affecting international trade including those involving multinational enterprises 20 july 1978 – C(78)133 (Final). Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/horizontal/ oecdacts.nsf/Display/519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5? OpenDocument > Acesso em 13 out. 2009. 175 “3.Where the reviews mentioned in paragraph 1 indicate that regulation remains desirable to achieve public policies or where public enterprises are involved, to consider whether increased competition and increased application of restrictive business practices laws, consistent with the objectives of regulatory policy, would be useful in alleviating the adverse effects which may result from extensive regulation. More specifically, they should: a) Reconcile, as far as possible, existing regulatory schemes with their competition policy and restrictive business practices laws; b) Ensure that express or implied exemptions from restrictive business practices statutes are no broader than necessary to achieve the public interest objectives of the regulatory schemes; c) Exempt from the operation of competition laws only those restrictive activities of enterprises in regulated industries which are required or expressly approved by the competent authorities as desirable or necessary to achieve the purposes of the regulatory scheme; 4.To grant competition authorities appropriate powers to challenge abusive practices, including unfair discriminations and refusals to deal, by monopolies or cartels approved by the competent authorities particularly where such behaviour is beyond the purposes for which the regulatory scheme was enacted; 5.To make efforts to detect non-filed or unapproved agreements which, although lawful if notified to or approved by the competent authorities, have not been so notified and approved; and to treat such agreements under appropriate restrictive business practices standards;” OCDE. Recommendation of the council on competition policy and exempted or regulated sectors. 25 September 1979 – C(79)155(Final). 65 Outra Recomendação relevante foi a de 1986, que deixou claro a existência de efeitos negativos provocados pelas práticas anticompetitivas e apontava que a aplicação efetiva da política de concorrência tinha um papel fundamental na promoção do comércio. Esta Recomendação incentivou também a troca de informações sobre cartéis de exportação, controle de limitação de exportação, cartéis de importação e cooperação com as autoridades de outros países em qualquer investigação de possíveis efeitos anticompetitivos176. Essa Recomendação tem especial importância para este estudo, pois trata da prática de cartéis de exportação e mostra que já na década de 80 existia uma preocupação com esse tipo de isenção, ou da permissibilidade desta conduta. Em adição, veja-se que também havia consciência sobre os efeitos que essa conduta poderia causar ao comércio internacional. Em um dos parágrafos da Recomendação foi expresso que quando uma ação aprovasse ou isentasse um cartel de exportação, as leis de concorrência ou os governos deveriam fazer o possível para avaliar os impactos dessas práticas no mercado nacional ou internacional. Foi colocado ainda que, os países que não procediam dessa forma deveriam considerar a possibilidade de requerer a notificação de cartéis de exportação às autoridades de defesa da concorrência ou estabelecer critérios similares para obter mais informações sobre a natureza e extensão dessas práticas177. Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/horizontal/oecdacts.nsf/Display/519F1CBC34FDA70BC 12570880057B9E5?OpenDocument > Acesso em 13 out. 2009. 176 OCDE. Recommendation of the Council for Co-operation between Member Countries in Areas of Potential Conflict between Competition and Trade Policies – 23 out. 1986 – C(86)65(final). Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/horizontal/oecdacts.nsf/Display/ 519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5?OpenDocument > Acesso em 13 out. 2009. 177 “6.When considering action to approve or otherwise exempt export cartels, export limitation arrangements or import cartels from the application of their competition laws, governments should, as far as possible, within existing national laws, take into account the impact of such practices on competition in domestic and foreign markets. Member countries which have not yet done so should consider the possibility of requiring the notification of export cartels, export limitation arrangements and import cartels to competition authorities or similar procedures to obtain more information about the nature and extent of these practices.” OCDE. Recommendation of the Council for Co-operation between Member Countries in Areas of Potential Conflict between Competition and Trade Policies – 23 out. 1986 – C(86)65(final). Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/ horizontal/oecdacts.nsf/Display/519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5?OpenDocument > Acesso em: 13 out. 2009. 66 Veja-se que, apesar de reconhecer que essas políticas poderiam estimular o fluxo de comércio, a OCDE recomendou que os governos não encorajassem o exercício de poder de mercado por meio dos cartéis de exportação178. A OCDE também recomendou que os países que tinham conhecimento dessas condutas deveriam agir de acordo com a Recomendação (sem prejuízo da total liberdade de ação dos governos) estando dispostos a cooperar com as leis nacionais existentes e com as autoridades de qualquer país, em qualquer investigação em que pudessem ser sentidos efeitos anticompetitivos. Desse modo, a OCDE reconhecia a dificuldade jurisdicional que poderia surgir quando as informações necessárias precisam ser obtidas fora do país ou quando as partes dos acordos que restringiam a concorrência estavam localizadas em outros países179. Outra Recomendação que interessa para esse estudo foi a de 1995, que trata da questão da extraterritorialidade da legislação antitruste, detalhando as maneiras de se buscar informações em países-membros da OCDE. Essa mesma Recomendação sugeriu formas de conciliação em caso de existência de conflitos de interesse180. 178 “7. While recognising that policies designed to allow interfirm co-operation in export trade can stimulate trade flows, governments in general should not encourage the exercise of market power in foreign markets through the use of export cartels. Nor should they encourage other restrictive business practices in export or import markets, e.g., export limitation arrangements and import cartels, which restrain competition in these markets.” OCDE. Recommendation of the Council for Cooperation between Member Countries in Areas of Potential Conflict between Competition and Trade Policies – 23 out. 1986 – C(86)65(final). Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/ horizontal/oecdacts.nsf/Display/519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5?OpenDocument> Acesso em 13 out. 2009. 179 “8. The government of the country where such cartels or export arrangements exist, should, without prejudice to each government's full freedom of action and according to the procedures of the Revised Council Recommendation concerning Co-operation between Member Countries on Restrictive Business Practices Affecting International Trade, be ready to co-operate within existing national laws with the authorities of other countries in any investigation into possible anti-competitive effects of arrangements located in their countries, recognising the jurisdictional difficulties that sometimes arise when information is sought from abroad or where the parties to a restrictive agreement are located abroad.”. OCDE. Recommendation of the Council for Co-operation between Member Countries in Areas of Potential Conflict between Competition and Trade Policies. 23 October 1986 – C(86)65(final). Disponível em: <http://webdomino1.oecd.org/horizontal/oecdacts.nsf/Display/ 519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5? OpenDocument> Acesso em: 13 out. 2009. 180 “8. In the event that no satisfactory conclusion can be reached, the Member countries concerned, if they so agree, should consider having recourse to the good offices of the Competition Law and Policy Committee with a view to conciliation. If the Member countries concerned agree to the use of another means of settlement, they should, if they consider it appropriate, inform the Committee of such features of the settlement as they feel they can disclose.” OCDE. Recommendation of the Council concerning Co-operation between Member Countries on Anticompetitive Practices affecting International Trade – 28 jul. 1995 – C(95)130(final). Disponível em: <http://webdomino1. oecd.org/horizontal/oecdacts.nsf/Display/519F1CBC34FDA70BC12570880057B9E5?OpenDocument >. Acesso em: 11 set. 2009. 67 Este documento teve o propósito de esclarecer os procedimentos recomendados, assim como buscou fortalecer a cooperação e minimizar conflitos na execução das leis antitruste. Caso haja diferenças entre os países-membros durante o processo de investigação, o CDPC pode ser acionado e o seu presidente deve ser informado do conflito, para então buscar uma conciliação. No apêndice desta Recomendação foram indicados princípios para os processos de notificação, troca de informação, cooperação em investigações, consulta e conciliação nas condutas potencialmente restritivas ao comércio internacional181. A Recomendação de 1998 reconheceu os benefícios das informações compartilhadas (mesmo diante da confidencialidade) e tratou em especial dos chamados cartéis hard-core. Conforme mencionado no início deste estudo, estas condutas anticompetitivas são consideradas como flagrantes violações do direito da concorrência, uma vez que são realizadas para alterar a competição de forma artificial: para fixar preços, controlar a oferta, estabelecer restrições de produção ou cotas, compartilhar ou dividir mercados, alocando os clientes, fornecedores, territórios, ou linhas de comércio182 Este documento, em sua primeira parte, aponta para a importância de uma convergência entre as normas dos países-membros na proibição e luta contra os cartéis, enquanto a segunda parte trata da cooperação internacional e do princípio da comitas gentium (cortesia internacional183, que permite a aplicação extraterritorial das leis nacionais). A necessidade de cooperação decorre, por exemplo, de uma prática anticompetitiva que é realizada em um país que reflete seus efeitos em outro. 181 Veja-se que essa Recomendação reforçou a dimensão internacional da tutela da livre concorrência. Cf. DAL RI JÚNIOR, Arno; OLIVEIRA, Olga Maria (Orgs.). Direito Internacional Econômico em Expansão: Desafios e Dilemas. 2ed. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 653. 182 OCDE. Recommendation of the Council concerning Effective Action Against Hard Core Cartels. Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/39/4/2350130.pdf>. Acesso em 22 set. 2009. 183 “[Le droit international] ne doit pás être confondu avec la courtoisie international (comitas gentium), ensemble d´usage suivis a titre de simple convenance ET pour dês raisons de commodité pratique”. ROUSSEAU, Charles. Droit International Public. a.II, v. 1. Paris: Sirey, 1977, p. 28. “Diríamos que a cortesia internacional forma um código de ética internacional. Eventualmente, algumas das regras desse código moral podem vir a se transformar em regras jurídicas do direito internacional, consuetudinárias ou escritas, tal como ocorreu com a isenção tributária dos agentes diplomáticos, inicialmente uma cortesia e hoje prevista na Convenção de Viena de 1961. Mas, não custa repetir, não se pode ter como cortesia a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros.” MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. A imunidade de jurisdição e a aplicação direta do costume internacional pelo judiciário brasileiro. In. BASSO, Maristela; ALMEIDA PRADO, Mauricio; ZAITZ, Daniela (Orgs.). Direito do Comércio Internacional - Pragmática, Diversidade e Inovação. Curitiba: Juruá Editora, 2005, p. 72. 68 Nessas situações, o compartilhamento de informações passa a ser imprescindível para as investigações. Portanto, essa Recomendação de 1998 trouxe a idéia de se criar um centro de registros, dentro do CDPC, com as exclusões e autorizações notificadas à OCDE. Entendeu-se que isto poderia ser útil para consultas sobre como os países-membros atuam no combate aos cartéis, assim como para avaliar experiências. Outra Recomendação que se mostra interessante para o presente estudo é a de 2001, que tratou da separação estrutural nas indústrias reguladas. O documento aponta que os países-membros devem balancear cuidadosamente os benefícios e os custos das medidas estruturais contra os benefícios e os custos das medidas comportamentais184. Com base nas características econômicas do país que está sob análise, os benefícios e custos a serem balanceados incluem: i) efeitos na concorrência, na qualidade e no custo da regulação, ii) os custos de transação das modificações estruturais, e iii) os benefícios públicos e econômicos da integração vertical185. Vale destacar que dentro da OCDE existe o pensamento comum de que a concorrência não pode mais ser pensada apenas em nível local (nacional). A aproximação e o intercâmbio entre as autoridades continuam sendo necessárias, representando uma força complementar aos processos em andamento. Veja-se que, com a troca de informações que ultrapassam os limites nacionais, as autoridades têm maior capacidade de realizar um mapeamento eficiente das condutas anticoncorrenciais, mesmo aquelas que ocorreram no plano internacional. A OCDE vem tentando desempenhar papel importante para encontrar os melhores meios de suporte e para auxiliar na eficácia das leis nacionais de direito da concorrência e seus documentis serão utlizados também em outros capítulos desse estudo. 184 OCDE. Recommendation of the Council concerning Structural Separation in Regulated Industries. 2001. Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/24/49/25315195. pdf>. Acesso em 13 dez. 2009. 185 Os benefícios e os custos analisados devem ser aqueles reconhecidos pelas agências relevantes e autoridades de concorrência, baseados nos princípios definidos pelo país-membro. Este balanço pode ocorrer especialmente no contexto de privatização, liberalização ou reforma regulatória. Nessa Recomendação foram trazidos os conceitos de: firma, firma regulada, atividade competitiva, atividade não-competitiva e complementar. Veja-se: OCDE. Recommendation of the Council concerning Structural Separation in Regulated Industries. 2001. Disponível em: <http://www.oecd.org/ dataoecd/24/49/25315195.pdf>. Acesso em 13 dez. 2009. 69 No mesmo sentido da OCDE, mas ainda mais voltada a atender às necessidades dos PEDs e economias mais frágeis, vale também observar os esforços da UNCTAD que será analisada no próximo tópico. 2.2.2 Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) O termo UNCTAD corresponde à sigla em inglês para Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento. A UNCTAD possui atualmente 193 países-membros186, sendo o órgão do sistema das Nações Unidas que busca discutir e promover o desenvolvimento econômico por meio do incremento ao comércio mundial. Este foro intergovernamental foi estabelecido em 1964 (03 anos após o estabelecimento da OCDE), com o objetivo de dar auxílio técnico aos países em desenvolvimento para que estes se integrem ao sistema de comércio internacional. A UNCTAD procura apoiar os países em desenvolvimento a se beneficiar das oportunidades oriundas do comércio e do investimento internacional, para atingir suas metas de desenvolvimento auxiliando estes a se integrarem na economia mundial. A UNCTAD tem procurado envolver também a sociedade civil em seu processo de deliberação governamental, criando parcerias visando iniciativas conjuntas com as ONGs187, instituições acadêmicas, parlamentares e representantes da iniciativa privada. A Resolução n˚. 33/153 da Assembléia Geral da ONU, de 20 de dezembro de 1978, solicitou com base nos trabalhos do Terceiro Grupo Especial de especialistas em práticas comerciais restritivas, um conjunto de princípios e normas 186 UNCTAD. Membership of UNCTAD and TDB Disponível em: <http://www.unctad.org/ Templates/Page.asp?intItemID=1929&lang=1> Acesso em: 20 jul. 2010. 187 De acordo com o parágrafo 7 da resolução 1296 (XLIV) do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), de 23 de maio de 1968, as ONGs são “organizações internacionais que não foram criadas pela via de acordos intergovernamentais”. De acordo com Vieira: “[...] a contribuição das ONGs Internacionais é multifacetada: mobilizam recursos para refugiados e para projetos de desenvolvimento, colaboram para assistência humanitária em situações de emergência. Também desempenham um papel de influência ao engajarem-se em trabalhos de educação e de assistência social. São perseverantes em exigir dos governos ações mais conscientes no nível nacional e multilateral para fixar altos padrões de direitos humanos e ambientais, estabelecer e manter a paz e para atender aspirações e necessidades básicas dos cidadãos”. VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania - a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001, p. 125. 70 equitativos, estabelecidos multilateralmente, para o controle das práticas comercias restritivas que repercutiram de forma negativa sobre o comércio internacional, particularmente aos países em desenvolvimento188. Em 1979 que as Nações Unidas convocaram uma Conferência com o fim de analisar as práticas comercias restritivas à livre concorrência internacional, e na sequência, os Princípios das Nações Unidas sobre a Concorrência foram aprovados pela Assembléia Geral em 1980189 (Seção F, parágrafos 6º e 7º). Isto instigou a UNCTAD e seus membros a prestar assistência técnica, consultoria e treinamento no que diz respeito ao combate das práticas comerciais restritivas, principalmente para países em desenvolvimento190. Assim, na XXXV Assembléia Geral da ONU foi adotada, por consenso, a Resolução n˚. 35/63191, que visava a criação de um ambiente internacional em que houvesse a possibilidade de se aprovar um corpo de princípios e normas multilaterais em matéria de práticas comerciais restritivas. O conjunto de princípios192 e regras - Set of Multilatetaly Agreed Equitable Principles and Rules for lhe Control of Restrictive Business Practices193 – foi 188 UNCTAD. TD/RBP/CONF/10/Rev.2, p. 7. A Conferência das Nações Unidas sobre as Práticas Comerciais Restritivas, que fora convocada pela Assembléia Geral, em virtude da Resolução n. 33/153, de 20 de dezembro de 1978, teve seu primeiro período de trabalho compreendido entre 19 de novembro e 8 de dezembro de 1979. O segundo período realizou-se de 08 a 22 de abril de 1980 e teve convocação da Assembléia Geral, por meio da decisão n.34/447 de 19 de dezembro de 1979. 190 Resolução da Assembléia Geral 35/63 de 05 de dezembro de 1980. Veja-se: TD/RBP/CONF.10/Rev.2, p. 5. 191 A Conferência das Nações Unidas sobre as Práticas Comerciais Restritivas, convocada pela Assembléia Geral, em virtude da Resolução n. 33/153, de 20 de dezembro de 1978, teve seu primeiro período de trabalho compreendido entre 19 de novembro e 08 de dezembro de 1979. O segundo período realizou-se de 08 a 22 de abril de 1980 e teve convocação da Assembléia Geral por meio da decisão n.34/447 de 19 de dezembro de 1979. 192 “i) Principios generales- 1. En los planos nacional, regional e internacional, deberían adoptarse medidas apropiadas que se refuercen mutuamente para eliminar o contrarrestar de modo eficaz las prácticas comerciales restrictivas, incluídas las de las empresas transnacionales, que repercuten en forma desfavorable sobre el comercio internacional, particularmente el de los países en desarrollo, y sobre el desarrollo económico de estos países. 2. Debería establecerse, y mejorarse donde ya se haya establecido, una colaboración entre los gobiernos en los planos bilateral y multilateral para facilitar el control de las prácticas comerciales restrictivas. 3. Deberían idearse en el plano internacional mecanismos apropiados, o utilizarse mejor los mecanismos internacionales existentes para facilitar el intercambio y la difusión de información entre los gobiernos sobre las prácticas comerciales restrictivas, o ambas cosas. 4. Deberían idearse los medios adecuados para facilitar la celebración de consultas multilaterales sobre cuestiones de política relativas al control de las prácticas comerciales restrictivas. 5. Las disposiciones del Conjunto de principios y normas no deberían interpretarse en el sentido de justificar una conducta de las empresas que sea ilegal según la legislación nacional o regional aplicable.” TD/RBP/CONF.10/Rev.2, p. 15. 193 Com a adoção dos “Princípios” em 1980, a UNCTAD foi responsável por quatro Conferências qüinqüenais de revisão. A revisão que ocorreu entre 25 a 29 de setembro de 2000 reafirmou a validade dos princípios e recomendou que o subtítulo passasse a ser “UN Set of Principles and Rules on Competition”. 189 71 aprovado por consenso pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1980, fazendo menção à autoridade dos Estados de coibir os atos que “tenham, ou possam ter efeitos desfavoráveis sobre o seu comércio ou o seu desenvolvimento econômico”194 Nas economias mais frágeis geralmente os fatores básicos precisam ser complementados por políticas para construir capacidades locais e integração eficaz dos países em desenvolvimento no mundo. Assim, é crucial que haja o fortalecimento, a eficácia, a coerência e a consistência de políticas macroeconômicas. A UNCTAD, por meio dos compromissos firmados, busca identificar as necessidades específicas, contribuir para melhor compreensão e coerência entre as regras econômicas internacionais, políticas nacionais e estratégias de desenvolvimento além de apoiar os países em desenvolvimento para formular estratégias de desenvolvimento adaptadas aos desafios da globalização195. No âmbito da UNCTAD as negociações sobre o controle do poder econômico foram marcadas por debates e diferentes pontos de vista, por exemplo: os norte-americanos pretendiam a adoção de uma harmonização legislativa, enquanto os países em desenvolvimento procuravam incluir na definição de práticas comerciais restritivas uma referência expressa sobre os seus efeitos nocivos para o desenvolvimento econômico. Com a adoção dos princípios e normas, a UNCTAD passou a ter efetivamente um empenho maior na discussão sobre a concorrência e o comércio internacional. De acordo com o texto final, os objetivos são, em resumo: i) manter os benefícios da liberalização econômica, especialmente para o comércio dos países em desenvolvimento; ii) maior eficiência do comércio internacional nos países em desenvolvimento, por meio da proteção da concorrência; iii) controle da 194 “Principios y normas que deben seguir los Estados en los ámbitos nacional, regional y subregional [...] 2. Los Estados deberían fundar su legislación primordialmente em el principio de eliminar o contrarrestar eficazmente los actos o el comportamiento de las empresas que, mediante el abuso o la adquisición y el abuso de una posición dominante en el mercado, limiten el acceso a los mercados o de otro modo restrinjan indebidamente la competencia y tengan o puedan tener efectos desfavorables sobre su comercio o su desarrollo económico, o que, mediante acuerdos o arreglos, formales o no formales, escritos o no escritos, entre las empresas tengan las mismas repercusiones.” (destaques no original) UNCTAD. TD/RBP/CONF/10/Rev.2, p. 20. 195 Veja-se: UNCTAD. São Paulo Consensus – TD/410. Disponível em: <http://www.unctad.org /en/docs/td410_en.pdf> Acesso em: 21 jul. 2010. 72 concentração de capitais e desenvolvimento; iv) promover o bem-estar dos consumidores; v) eliminar as desvantagens para o comércio e obstáculos ao desenvolvimento que as práticas comerciais restritivas possam produzir; vi) criar um conjunto de normas e princípios acordados multilateralmente com o fim de controlar práticas comerciais restritivas para adoção internacional196. Conforme previsto, estas normas deveriam ser universais, no entanto, elas não se aplicam às práticas comerciais restritivas decorrentes de acordos governamentais. Segundo DAL RI JUNIOR, os princípios contidos no corpo da Resolução n˚. 35/63 foram divididos em três categorias: i) os princípios eqüitativos acordados em âmbito multilateral para o controle das práticas comerciais restritivas; ii) os princípios e normas aplicáveis às empresas, inclusive as transnacionais; e iii) os princípios e normas que os Estados devem seguir em âmbito nacional, regional e sub-regional.197 A colaboração internacional dentro da UNCTAD foi enfatizada como reforço para melhor o controle das práticas comerciais restritivas à concorrência. Assim, a UNCTAD funcionaria como órgão de consulta e também teria um papel importante para a capacitação e desenvolvimento da cultura da concorrência. No entanto, em que pese o estabelecimento de normas e princípios ainda há uma grande dificuldade na prática para o fortalecimento das políticas de defesa da concorrência, e uniformização dos princípios em um contexto multilateral. Assim, esta tentativa da ONU, por ora, não conseguiu atender de forma ampla aos anseios dos países e jurisdições envolvidos. Vale mencionar que a concorrência ainda foi tema estudado na Conferência da UNCTAD realizada em Bangkok, do dia 12 ao dia 19 de fevereiro de 2000198. O Relatório final desta conferência proporcionou uma reflexão importante sobre o papel das empresas multinacionais no comércio internacional, assim como sobre o impacto de possíveis fusões e condutas comerciais restritivas à concorrência. 196 Ocorreram outras conferências diplomáticas em 1985, 1990, 1995 e 2000 para rever o CPR. Entretanto, nada chegou a ser alterado. Veja-se no mesmo sentido: DAL RI JUNIOR, 2003, nota 37, p. 642. 197 DAL RI JUNIOR, 2003, p. 644-645. Cf. CARVALHO, 2001, p. 163. 198 UNCTAD TD/390. Disponível em: <http://www.unctad.org/en/docs//ux_td390.en.pdf> Acesso em 20 jun. 2010. 73 Esse relatório tem certa relevância com o tema aqui proposto, pois a sua maior preocupação refere-se ao fato de as condutas restritivas não impedirem ou invalidarem a obtenção de benefícios alcançados com a liberalização das barreiras tarifárias e não tarifárias que regem o comércio mundial. Veja-se que havia especialmente uma preocupação expressa com as condutas que diretamente afetam o comércio e o desenvolvimento dos países em desenvolvimento199. Percebe-se que, para a UNCTAD, a liberalização do comércio e dos investimentos, dentro e fora da OMC, funciona como um incentivo para a globalização. Ainda, observa-se que as medidas que procuram ser defendidas são destinadas a controlar e a combater as práticas restritivas ao comércio, com maior eficiência. Desse modo, a UNCTAD também tem como meta estudar profundamente o impacto que os possíveis acordos internacionais sobre concorrência teriam para o desenvolvimento. Nesse contexto, com base em casos concretos acredita-se que a relação entre concorrência e competitividade deve ser estudada de forma clara e objetiva200. Na Conferência da ONU realizada em setembro de 2000, em Genebra, as delegações reafirmaram o papel fundamental desempenhado pela lei e pela política da concorrência para o desenvolvimento econômico. A UNCTAD buscou promover novamente a cooperação entre os Estados em todos os níveis (i.e. regional, multilateral) para reforçar o controle de fusões e de práticas anticoncorrenciais nocivas, entretanto, não ocorreram resultados relevantes201. De acordo com CARVALHO, os pontos principais que deveriam continuar sob a análise pelo grupo de especialistas de direito e política de concorrência na UNCTAD são: a) criação de capacidades institucionais; b) a promoção da concorrência e educação do público; c) os estudos sobre a concorrência, competitividade e 199 Cf. UNCTAD. TD/390. UNCTAD. TD/390. Disponível em: <http://www.unctad.org/en/docs//ux_td390.en.pdf> Acesso em 20 jun. 2010. 201 Forth United Nations Conference to review all aspects of the set of multilaterally agreed equitable principles and rules for the control of restrictive business practices TD/RBP/CONF.5/15-4. Disponível em <http://www.unctad.org/en/docs/tdrbpconf5d16.en.pdf>. Acesso em 15 fev. 2010. 200 74 desenvolvimento; d) as contribuições para os possíveis acordos internacionais sobre concorrência202. A Quinta Conferência das Nações Unidas para rever todos os aspectos dos Princípios (parágrafo 4º da Resolução), registrou, com satisfação, as contribuições financeiras voluntárias e outras contribuições recebidas para o chamado “capacitybuilding” e cooperação técnica. Todos os Estados-Membros foram incitados a continuarem dando assistência a UNCTAD, voluntariamente: disponibilizando especialistas, oferecendo treinamentos e outros recursos203. A tentativa de criação das “capacidades institucionais” pela UNCTAD referese ao oferecimento de suporte para ampliar a assistência técnica e assessoramento aos países. Conforme se verá nesse estudo, as instituições são estruturas que modelam o funcionamento do processo econômico como um todo e por isso são um fator indispensável para o desenvolvimento204. Para a divulgação de uma “cultura da concorrência” o encontro denominado Expert Meeting on Competition Law and Policy da UNCTAD procura implementar medidas de auxílio, tais como: publicação de documentos com as localidades das agências de concorrência, manual de legislação de concorrência, e comentários sobre a legislação de alguns países. O Expert Meeting on Competition Law and Policy Ad-hoc que foi realizado em outubro de 2006 teve como temas principais: a) a relação entre a lei e a política de concorrência com subsídios205; e b) análise da cooperação e os mecanismos de solução de controvérsias relacionados com a política de concorrência nos acordos regionais de comércio. Esses temas levaram em consideração as matérias particulares relacionadas aos pequenos países em desenvolvimento. 202 CARVALHO, 2001, p. 166. No mesmo sentido: TD/RBP/CONF.5/15-4. Disponível em <http://www.unctad.org/en/docs/tdrbpconf5d16.en.pdf>. Acesso em 15 fev. 2010. 203 UNCTAD. Report Of The Fifth United Nations Conference To Review All Aspects Of The Set Of Multilaterally Agreed Equitable Principles And Rules For The Control Of Restrictive Business Practices Held At Antalya, Turkey, From 14 To 18 November 2005 TD/RBP/CONF 6/15. 10 February 2006, p. 6. 204 Sobre a abordagem institucionalista, vale mencionar o trabalho e os conceitos desenvolvidos por Douglass North, que será estudado no Capitulo 4. 205 “O subsídio caracterizar-se-ia por um benefício em decorrência da existência no país exportador de qualquer sustentação de renda ou preços que contribuam, mesmo que indiretamente, ao aumento das exportações ou a redução da importação de qualquer produto, ou pela existência de contribuição financeira governamental ou de algum órgão público, no próprio país exportador.” BAGNOLI, 2005, p. 128. 75 A UNCTAD, com a colaboração de outras organizações internacionais, como o Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a OMC, organizou também reuniões regionais que versaram sobre o tema de direito e política de concorrência. Veja-se que o ponto de partida dessas reuniões foi o conteúdo exposto nos parágrafos 23 e 24 da Declaração de Doha, relativas à interação entre concorrência e comércio internacional. Trata-se de uma assistência aos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, para avaliem os prováveis efeitos de uma cooperação multilateral em matéria de defesa da concorrência.206 Na Declaração da XII UNCTAD realizada em Acra, em 2008, foi recomendado que esforços deviam ser feitos para prevenir e desmembrar estruturas e práticas anticompetitivas para promover responsabilidade e punição de agentes em nível nacional e internacional. Defende-se que isto possibilitaria aos produtores, empresas e consumidores de países em desenvolvimento a auferir vantagens da liberalização comercial207. Nas conclusões acordadas na nona sessão anual do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Lei e Política de Defesa da Concorrência208, o grupo intergovernamental de especialistas também solicitou à Secretaria da UNCTAD para prosseguir e, se possível, centrar a capacity-building e as atividades de cooperação técnica (incluindo treinamento) a fim de maximizar os impactos em todas as regiões, dentro dos recursos humanos e financeiros disponíveis. Além disso, o grupo intergovernamental de especialistas solicitou que a Secretaria preparasse um relatório sobre e assistência técnica durante a décima sessão. 206 “We recognize the needs of developing and least-developed countries for enhanced support for technical assistance and capacity-building in this area, including policy analysis and development so that they may better evaluate the implications of closer multilateral cooperation for their development polices and objectives, and human and institutional development. To this end, we shall work in cooperation with other relevant intergovernmental organizations, including UNCTAD, and through appropriate regional and bilateral channels, to provide strengthened and adequately resourced assistance to respond to these needs.” WTO. WGTCP - Communication from UNCTAD - Closer Multilateral Cooperation on Competition Policy: the Development Dimension. WT/WGTCP/W/197, 15/08/2002, p. 2. 207 De acordo com os documentos oficias isso deveria ser complementado pela promoção de uma cultura de concorrência e aumento de competição entre as autoridades antitruste. Países em desenvolvimento foram encorajados a considerar, como matéria de importância, o estabelecimento de leis e padrões de concorrência adaptados às suas necessidades de desenvolvimento, complementadas por assistência técnica e financeira para construção de capacidades, levando em consideração objetivos políticos e limitações de capacidade. UNCTAD/IAOS/2008/2, 2008, p. 35. 208 Veja-se o documento: UNCTAD. TD/B/COM.2/CLP/72, 30 de Julho de 2008. Disponível em: <http://www.unctad.org/templates/Meeting.asp?intItemID=4499&lang=1> Acesso em 12 fev. 2010. 76 A UNCTAD considera que deveria continuar a ser um fórum para discussão de tópicos concorrenciais em nível multilateral, com estreitas ligações com outras redes existentes e autoridades concorrenciais para promover o uso de legislação e políticas de concorrência como ferramentas para o alcance de competitividade nacional e internacional. Assim, a UNCTAD espera auxiliar nas seguintes ações: (a) preparo e implementação de leis, políticas concorrenciais nacionais e regionais, medidas apropriadas para as necessidades de desenvolvimento de países em desenvolvimento e do bem-estar de seus consumidores; (b) pesquisa e deliberações relacionadas a práticas anticompetitivas em diferentes setores, seus efeitos no bemestar do consumidor, em mercados globais, em mercados dos países em desenvolvimento em particular e mecanismos para solucionar tais efeitos; (c) exame de todas as questões relacionadas à interface entre concorrência, privatização, inovação e seus impactos no comércio e desenvolvimento, inclusive em nível regional; (d) no auxílio a cooperações regionais e cooperações Sul-Sul em políticas concorrenciais; (e) auxílio aos países em desenvolvimento na formulação e implementação de legislação concorrencial; (f) Peer reviews voluntários de política concorrencial na UNCTAD, que deveriam ser estendidos a grupos maiores de países em desenvolvimento e suas organizações econômicas regionais; e (g) facilitação das trocas de experiências e melhores práticas com a construção de capacidades em diferentes regiões, incluindo programas como o de assistência técnica em políticas de concorrência e proteção do consumidor na América Latina (Compal), que deveriam ser fortalecidos209. De acordo com o documento TD/B/C.I/CLP/5 de abril de 2009, a UNCTAD é ponto de referência para todas as atividades relacionadas com as políticas de defesa da concorrência e do consumidor no sistema das Nações Unidas, com o fim de: [...] assegurar que as práticas comerciais restritivas não impeçam ou impossibilitem a realização de lucros vindos da liberalização de barreiras tarifárias e não-tarifárias que afetam o comércio mundial, particularmente aquelas que afetam o comércio e o desenvolvimento dos países em desenvolvimento210. (tradução livre) 209 UNCTAD. UNCTAD/IAOS/2008/2. Accra Accord and the Accra Declaration, 30 jun. 2008, p. 36 e 47. 210 TD/B/C.I/CLP/5, 2009, p. 3. 77 Os Princípios das Nações Unidas reconhecem também que as normas básicas de defesa da concorrência, usadas nos países desenvolvidos há muito tempo, devem estender-se às operações das empresas, inclusive aos grupos transnacionais nos países em desenvolvimento. Apesar da tendência geral para a adoção, reformulação, e uma melhor implementação das leis e políticas de defesa da concorrência nos países em desenvolvimento e em transição, muitos desses países ainda hoje não possuem uma instituição adequada. Com base nos documentos da UNCTAD, pode-se afirmar que é dever desta instituição manter e ampliar a sua ajuda aos países que tenham interesse de desenvolver um marco regulamentar e institucional interno no âmbito de desenvolvimento e política da concorrência. Contudo, suas iniciativas enfrentam entraves, uma vez que o campo de atuação da instituição está vinculado ao quadro das Nações Unidas, e os temas incluídos no corpo da Resolução da ONU limitam-se ao que é estabelecido a cada cinco anos em um plano de trabalho rígido. Dessa maneira, não é fácil para a UNCTAD acompanhar as modificações da economia mundial em matéria de concorrência. Ao mesmo tempo, a Resolução da ONU (opiniões e/ou manifestações de vontade formais da ONU e de seus órgãos) pode excluir dos debates alguns pontos fundamentais para a sociedade internacional, contrariando os interesses de alguns Estados211. No relatório de 2009 mencionado acima, foi novamente enfatizado o objetivo das atividades de cooperação técnica da UNCTAD: [...] dar suporte aos países em desenvolvimento - incluindo os países menos desenvolvidos (Least Developed Countries - LDCs) e as economias em transição - na elaboração e revisão de leis e políticas de defesa da concorrência e na execução destas leis, auxiliando (a) na criação de uma instituição nacional, (b) na promoção de uma cultura da concorrência entre os trabalhadores do setor público e privado, entre os consumidores e acadêmicos, (c) no apoio à cooperação regional em matéria de política de concorrência, e (d) nos países e grupos regionais para melhor definir as modalidades e formas de cooperação regional nas questões concorrenciais que favorecem o comércio, investimento e desenvolvimento. 212 (tradução livre). 211 212 DAL RI JUNIOR, 2003, p. 648. TD/B/C.I/CLP/5, 2009, p. 3-4. 78 Na prática, a assistência técnica é fornecida conforme os pedidos recebidos, as necessidades dos países e os recursos disponíveis, nas seguintes formas: (a) fornecimento de informações sobre práticas anticoncorrenciais, e seus possíveis efeitos na economia, (b) seminários introdutórios e workshops sobre o papel da defesa da concorrência na promoção do desenvolvimento para funcionários públicos e acadêmicos assim como para comerciantes e consumidores, (c) assistência aos países ou organizações regionais, que estão em processo de elaboração da legislação de defesa da concorrência, (d) serviços de consultoria para a criação ou fortalecimento de autoridades de defesa da concorrência, que normalmente inclui a elaboração de relatórios sobre a estrutura institucional e treinamento dos funcionários responsáveis pelo controle efetivo das práticas anticompetitivas, incluindo o judiciário, (e) seminários e workshops para os países que já adotaram suas próprias leis da concorrência, que já tenham experiência no controle de práticas anticoncorrenciais, e que desejam melhorar a aplicação desta lei ou realizar intercâmbio de informações; (f) assistência aos países ou organizações regionais que desejam rever sua lei de defesa da concorrência e procurar aconselhamento, de forma a alterar as suas leis da maneira mais eficaz possível, (g) realização voluntária de peer reviews sobre leis e políticas de defesa da concorrência de países interessados; (h) assistência aos países em desenvolvimento - incluindo os países menos desenvolvidos e economias em transição - com vista a ajudá-los a avaliar melhor as implicações das cooperações regionais e bilaterais nas questões da concorrência, (i) assistência aos países e às organizações regionais para identificar o papel da política de defesa da concorrência na promoção da competição e desenvolvimento, bem como de uma política de defesa da concorrência orientada para o desenvolvimento e cooperação internacional, e suas implicações a nível nacional, regional e internacional e (j) assistência na formulação de regulamentos setoriais e políticas adequadas de defesa da concorrência. 79 A título de ilustração, as principais atividades realizadas de cooperação técnica e capacity-building da UNCTAD em 2008 estão resumidas na tabela abaixo: TABELA 02 - Cooperação técnica e capacity-building - UNCTAD213 Requestor/ beneficiary Butão Bolívia Botswana Camarões Costa Rica El Salvador Indonésia Iraque Madagascar Mauritius México Moçambique Nicaragua Peru Ruanda Suazilândia Tunísia Uzbequistão Zambia COMESA* ECOWAS* ESA SADC* WAEMU* Activities related to drafting or reviewing of laws and policies Peer reviews and followup Institution al building Advocac y activities Consumer protection Training of local officials X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X * COMESA - Common Market for Eastern and Southern Africa (Mercado Comum da África Oriental e Austral); ECOWAS - Economic Community of West African States (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental); SADC - Southern African Development Community (Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento); WAEMU – West African Economic and Monetary Union. Apesar dos esforços da UNCTAD em auxiliar os países de menor desenvolvimento e de procurar promover a cultura geral de concorrência e certa harmonização entre as normas, ainda há um grande trabalho a ser feito. As ações empreendidas não deixam de ser relevantes, porém ainda insuficiente diante de todos objetivos buscados. 213 Summary of countries’ requests and UNCTAD technical assistance in 2008. TD/B/C.I/CLP/5, 2009, p. 5. 80 2.2.3 International Competition Network (ICN) Em fevereiro de 2000, por meio do Relatório do Comitê de Aconselhamento de Política de Concorrência Internacional dos EUA, foi lançada a idéia de criação de um fórum global especializado em concorrência, a qual foi endossada, em setembro de 2000, pela Direção Geral de concorrência da Comissão Européia, e em fevereiro de 2001, por cerca de quarenta profissionais reconhecidos na área de concorrência214. A “Rede Internacional de Concorrência” (International Competition Network — ICN) foi criada em outubro de 2001, formada, em princípio, por autoridades dos seguintes países: Austrália, Canadá, União Européia (UE215), França, Alemanha, Israel, Itália, Japão, Coréia, México, África do Sul, Reino Unido, EUA e Zâmbia. Os Membros da ICN são agências que atuam na defesa da concorrência e que aderiram ao Memorandum on the Establishment and Operation of the International Competition Network ou são membros da Interim Steering Group. Por meio do Memorandum on the Establishment and Operation of the International Competition Network, a ICN passou a ter uma leve estrutura institucional. Na ICN não é definido a participação por jurisdição, ou seja, se em uma única jurisdição existir mais de uma agência, ou autoridade, responsável pela defesa da concorrência, cada uma delas poderá ser Membro da ICN216. Até julho de 2010, a ICN contava com a participação de mais de 300 autoridades de defesa da concorrência e entidades voltadas para o desenvolvimento e aprimoramento dos sistemas de defesa da concorrência. A ICN procura promover uma rede mais eficiente de combate às práticas anticoncorrenciais, buscando também contribuições dos setores privados e das ONGs (“consultores não-governamentais”) que estão preocupadas com a aplicação 214 OLIVEIRA, RODAS, 2004, p. 414. No presente estudo usa-se os termos União Européia (UE) e Comunidades Européias (CE) como sinônimos. Contudo prefere-se a utilização do termo Comunidades Européias por partilhar-se da opinião de alguns estudiosos de que ainda não há uma União completa, uma vez que existem países, por exemplo, que não aderiram à moeda única. 216 ICN. International Competition Network Operational Framework – last revision: 1 october, 2004, p. 1. 215 81 das leis antitruste. Veja-se que a ICN também procura cooperar com as organizações internacionais, como a OCDE, OMC, e UNCTAD217. No que diz respeito à organização, as agendas de encontros e conferências ficam sob responsabilidade do grupo diretor, cabendo-lhe decidir quando será apropriado convidar certos conselheiros não-governamentais para conferências e encontros. Anualmente o grupo diretor escolhe um membro para presidir a ICN218. Há um grupo cuja atividade está direcionada às práticas restritivas à concorrência que procura identificar o comportamento de cartel, além do abuso de posição dominante, casos de monopólio em setores regulados entre outros temas. Outro grupo foi destinado a identificação de elementos que contribuem na formação de estruturas eficientes em países em desenvolvimento e economias em transição. Este grupo é composto por três subgrupos responsáveis pelo desenvolvimento de recomendações nos seguintes campos: procedimentos e notificação de concentração, estrutura analítica para revisão de concentração e técnicas de investigação219. Até 2010 foram realizadas 09 conferências anuais pela ICN220. Em complemento aos trabalhos ligados às best practices e formação de uma cultura 217 “ICN will seek advice and contributions from the private sector and from non-governmental organisations that are concerned with the application of antitrust laws (“non-governmental advisers”) and will therefore cooperate closely with the following types of entities: (a) International organisations, such as OECD, WTO, and UNCTAD; (b) Industry and consumer associations; (c) Associations and practitioners of antitrust law and/or economics; and (d) Members of the academic community. In particular, ICN may seek input from non-governmental advisers for the purpose of identifying projects. ICN may also request that certain non-governmental advisers participate in working groups for designated projects. Non-government advisers may also be asked to contribute papers or participate in hearings related to ICN projects. Non-governmental advisers are not members and will not participate in the internal decisions necessary for the organization and operation of the ICN”. ICN. Memorandum on The establishment and operation of the international competition network, p. 2. Disponível em: <http://www.international competitionnetwork.org/mou.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2009. 218 O presidente tem a responsabilidade de: (a) presidir os encontros do grupo diretor e co-presidir as conferências da ICN em conjunto com o líder do país da agência que recepcionará os eventos; (b) empreender os deveres necessários de secretariado; (c) manter a lista de contatos e circular versões atualizadas de tempo em tempo; e (d) agir como referência de informações nas operações da ICN. O suporte logístico dos encontros e conferências é providenciado pelo membro da ICN que os acolher em seu país. Após as conferências, todos os membros do conselho diretor reúnem-se e discutem os avanços dos grupos de trabalho e os projetos desenvolvidos. Existem diversos grupos de trabalho atualmente, mas os primeiros grupos foram: i) aplicação antitruste em setores regulados, ii) concentração e implementação de política de concorrência e, iii) capacidade estrutural. 219 OLIVEIRA; RODAS, 2004, p. 416. 220 Em resumo: a 1ª Conferência foi sediada em Nápoles - Itália, em 2002, com o estabelecimento de dois grupos de trabalho sobre defesa da concorrência e sobre concentração em contextos multijurisdicionais. A 2ª Conferência anual, (23-25 de junho de 2003) foi realizada em Mérida- México, onde foram temas dos grupos de trabalho: i) o desenvolvimento de um banco de dados; ii) a 82 concorrencial, também foi criado um grupo de trabalho para cuidar dos cartéis na conferência de Mérida, México, em junho de 2003221. Entretanto, foi em Seul que efetivamente a necessidade de criação de um Grupo de Trabalho, que cuidasse especificamente dos cartéis, foi discutida. A criação de uma estrutura anti-cartel é parte central dos objetivos da maioria dos membros da ICN e, neste contexto, a expansão da cooperação entre os membros é fundamental222. De acordo com os estudos realizados em Seul, como os mercados são cada vez mais globais, as autoridades de defesa da concorrência estão enfrentando atividades de cartéis transfronteiriços (por exemplo, os cartéis hard-core). Neste sentido, a criação de um grupo de trabalho sobre cartéis teve a finalidade de melhorar os meios de combate a esta prática, tanto nacionalmente, quanto internacionalmente, com a conjugação de esforços de todos os membros da ICN e cooperação entre todas as agências que possuem diferentes níveis de experiência223. O Grupo de Trabalho sobre cartéis passou a operar imediatamente após a conferência de Seul. Nas discussões preparatórias houve consenso, entre os membros, de que o grupo de trabalho sobre cartel deveria ter dois subgrupos. A ICN compilação de um modelo de regras sobre defesa da concorrência e de estudos sobre a experiência dos membros; e iii) o desenvolvimento de técnicas/práticas. Nessa conferência, mais uma vez enfatizou-se a assistência que deve ser dada aos países em desenvolvimento e às economias de transição, para a capacitação técnica, identificando os desafios na implementação de políticas concorrências. A 3ª Conferência anual foi realizada em Seul-Coréia (entre 05-07 de abril de 2004) onde avanços foram alcançados no estabelecimento de princípios-guias nas matérias relativas às concentrações de empresas e criação de um Grupo de Trabalho que cuidasse especificamente dos cartéis. Em 2005, a 4ª Conferência foi sediada em Bonn na Alemanha, entre 6 e 8 de junho, onde destaca-se que foram discutidos temas do Grupo de Trabalho específico sobre cartel. A 5ª Conferência foi sediada na Cidade do Cabo - África do Sul, entre 03-05 de maio de 2006, em que foi desenvolvido um projeto piloto para partilhar experiências entre as agências de maior experiência com as de menor experiência e a finalização do Merger Guidelines Workbook. A 6ª Conferência foi realizada em 2007, na cidade de Moscou- Rússia (29 de maio – 01 de junho), onde foram discutidos diversos temas. A 7ª Conferência anual foi realizada entre 14 -16 abril de 2008 em Kyoto-Japão, destacando-se o painel de discussão sobre o abuso do poder de barganha “Abuse of Superior Bargaining Position”. A 8ª Conferência teve sede em Zurique na Suíça, entre 03 a 05 de junho de 2009, além de abordar todos os temas de interesse desenvolveu um trabalho especial sobre a lei de concorrência em pequenas economias. A 9ª conferência anual ocorreu em Istambul-Turquia (entre 27-29 de abril de 2010) com a discussão de vários tópicos de interesse (i.e., cartel, merger, advocacy etc) e colocou-se o objetivo de melhorar o envolvimento das ONGs e outras organizações internacionais. 221 ICN. Capacity Building and Technical Assistance — Building credible competition authorities in developing and transition economies. Workgroup Competition policy implementation. In .Second Annual ICN Conference, Mérida, Mexico (June 23-25, 2003). 222 ICN Cartels Working Group, p. 1. 223 ICN Cartels Working Group, p. 1. 83 acredita que a proximidade entre as agências teria o potencial de passar a mensagem de que as agências de defesa da concorrência estão cooperando e unindo esforços para intensificar a luta contra os cartéis224. Os membros do grupo diretor da ICN acreditam não haver problemas significativos de sobreposição dos trabalhos com os que são realizados com outros fóruns, tais como da OMC e da OCDE, já que a intenção da ICN é contribuir com a construção de caminhos similares. Veja-se que o grupo de trabalho sobre cartéis da ICN procura aprofundar o trabalho já realizado pelos outros fóruns e organizações225. Assim, foi criado também um segundo subgrupo com o objetivo de ajudar as agências de concorrência a melhorar as suas técnicas, com a finalidade de aumentar a efetividade da ação anticartéis, com a identificação e a troca de técnicas investigativas entre as agências, que possuem diferentes níveis de experiência226, especialmente porque os países em desenvolvimento que sofrem prejuízos com os cartéis internacionais. Nesse contexto, na Conferência de 2006, realizada na África do Sul, foi desenvolvido um projeto piloto para partilhar experiências entre as agências de maior experiência com as de menor experiência227. Em 2007, durante a Conferência da Rússia, foi gerado um documento específico sobre o combate aos cartéis: ICN anti-cartel enforcement manual Chapter 4 on cartel case initiation. Dando seqüência aos trabalhos, a conferência realizada em 2008, em Kyoto, no Japão, resultou em dois documentos específicos sobre cartéis: i) Cartel Settlements228; e ii) Setting of 224 A estrutura proposta reflete basicamente dois objetivos fundamentais do Grupo de Trabalho. Em primeiro lugar, o desenvolvimento de um fórum por meio do qual se promoverá uma discussão sobre a necessidade e os benefícios em se lutar contra os cartéis. A finalidade é de se obter um consenso internacional sobre a justificativa de intervenção, incluindo os benefícios resultantes de uma ação anticartel. Em segundo lugar, pretende-se definir as opiniões sobre os instrumentos mais efetivos de sanção para lutar contra os cartéis. Veja-se: ICN Cartels Working Group, p. 1 225 A própria ICN defende que o seu progresso poderia gerar efeitos positivos para os outros fóruns. ICN Cartels Working Group, p. 2. 226 ICN Cartels Working Group, p. 2-3. 227 Os temas centrais que dominaram a discussão: i) política de implementação; ii) assistência técnica; iii) melhores práticas, iv) cooperação (atos de concentração e cartéis. Sobre o Projeto piloto veja-se: <http://www.internationalcompetitionnetwork.org/index.php/en/publication/60>. Acesso em: 5 dez. 2005. 228 No primeiro documento, foram analisados os diferentes tipos de acordos em cada jurisdição, ou sistema jurídico, dos países-membros da ICN e realizou-se troca de experiências relacionadas aos diversos acordos firmados em cada país com avaliação de quão relevantes foram para o reforço do combate aos cartéis. O documento está dividido nos seguintes tópicos: (i) tipos de sistemas para acordos em investigações de cartéis; (ii) a relação dos acordos em investigações de cartéis com os 84 fines for cartels in ICN jurisdictions229. Veja-se que os documentos estavam voltados aos cartéis hard-core e não aos cartéis de exportação. Nos dois últimos encontros anuais da ICN (2009 e 2010) foram notáveis todos os avanços dos grupos de trabalho. Destacam-se os trabalhos voltados à cooperação internacional e troca de experiências, que procuram mitigar as grandes diferenças entre as agências e jurisdições. Contudo não foram desenvolvidos estudos mais profundos sobre cartéis de exportação ou sobre isenções antitruste, que também são matérias importantes dentro de um contexto de desenvolvimento econômico, uma vez que são condutas que podem afetar principalmente os países que não possuem legislação ou política de defesa da concorrência. Portanto, em que pese o grande avanço nos temas e os estudos realizados pelos grupos de trabalho da ICN, entende-se que as atividades realizadas até o momento não estão aptas a corrigir totalmente as diferenças de desenvolvimento que existem entre os países. Apesar dos trabalhos realizados serem importantes para dar suporte e aprimorar as leis e políticas de defesa da concorrência, denotando-se os documentos sobre as “melhores práticas”, vale observar que, no que diz respeito às isenções antitruste e especificamente aos cartéis de exportação, ainda não houve tratamento significativo. acordos de leniência; (iii) os princípios-chave para induzir acordos em investigações de cartéis; (iv) os benefícios de acordos em investigações de cartéis; (v) principais questões que surgem durante as negociações de acordos em investigações de cartéis; (vi) principais aspectos dos acordos; e (vii) outros tipos de sistemas de acordos em investigações de cartéis. Em síntese, as conclusões de referido documento apontam que os acordos em investigações de cartéis podem promover enormes benefícios ao Estado, aos membros dos cartéis que aceitarem acordar com as autoridades, ao Poder Judiciário, às vítimas dos cartéis e à sociedade como um todo. Segundo consta, os membros de cartéis devem ser persuadidos por intermédio, e.g., de soluções processuais transparentes, proporcionais, certas e rápidas, de modo que seja vantajoso cooperar para a realização célere de um acordo com as autoridades. ICN Seventh Annual Conference, Kyoto, Japan (April 14-16, 2008) Cartel Working Group. Disponível em: <http://www.internationalcompetitionnetwork.org/media/library/Cartels/ Cartel_WG_1.pdf >. Acesso em: 20 mar. 2009 229 Nesse documento, foram analisadas as diferentes formas de imposição de sanções em face dos procedimentos adotados nas diversas jurisdições envolvidas na ICN. Temas como a filosofia da sanção, os princípios e metodologias adotados pelos países-membros da ICN também foram analisados. Decidiu-se focar na multa (para empresas e indivíduos), espécie de sanção mais encontrada nos diferentes paísesmembros da ICN, notadamente pelo fato de, em alguns casos, ser a única espécie de sanção contra cartéis, independentemente de ser caracterizada como de natureza civil, administrativa e criminal, e também por caracterizar a sanção revestida de metodologia mais complexa, em comparação, por exemplo, com a sanção criminal de reclusão. ICN Seventh Annual Conference, Kyoto, Japan (April 14-16, 2008) Cartel Working Group. Disponível em: <http://www.internationalcompetitionnetwork.org/media/library/Cartels/Fines%20report%20-%20FINAL.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2009. 85 2.2.4 Organização Mundial do Cómercio (OMC) A OMC é uma organização internacional que tem por funções principais facilitar a aplicação das regras de comércio internacional, acordadas internacionalmente entre seus Membros, e servir de foro para negociações de novas regras ou temas relacionados ao comércio. Trata-se de Organização dotada de um sistema de solução de controvérsias em matéria de comércio internacional (Órgão de Solução de Controvérsias – OSC). Periodicamente é procedida uma revisão das políticas comerciais de cada um dos atuais 153 Membros230. O objetivo principal definido é garantir o cumprimento das normas que regulam o comércio internacional, assegurando que essas normas sejam estáveis, transparentes e eqüitativas na medida do possível. Cabe ressaltar que os países em desenvolvimento são, em geral, muito críticos, sobretudo quanto à equanimidade das normas e sua implementação, embora admitam que a estabilidade e previsibilidade oferecida pela OMC constituem, até certo ponto, garantia contra decisões unilaterais que lhes seriam ainda mais adversas. Na estrutura jurídica criada a partir da OMC, a Conferência Ministerial é o órgão de cúpula que por consenso toma as decisões mais importantes para a Organização231. Pela agenda de Doha, as negociações envolveriam três tipos de temas: regras que poderiam ser revisadas ou alargadas (serviços, agricultura, barreiras tarifárias, comércio e meio ambiente, regras de implementação, propriedade intelectual, defesa comercial e reforma do sistema de solução de controvérsias); a proposta de inclusão de regras sobre matérias ainda não regulamentadas pelo sistema multilateral do comércio, denominadas “questões de Cingapura” (regras sobre investimentos, políticas de concorrência, transparência nas compras governamentais e facilitação ao comércio); e as questões decorrentes dos principais acordos da OMC (regras para pequenas economias, comércio e transferência de 230 WTO. Understanding The WTO: The Organization Members and Observers. Disponível em <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm>. Acesso em: 15 jul. 2010. 231 Acordo Constitutivo da OMC, art. IV. 86 tecnologia, relação entre comércio e dívida externa, e a relação entre propriedade intelectual e saúde pública)232. Dentre esses novos temas propostos, a criação de regras multilaterais sobre concorrência vem avançando lentamente, principalmente pela insistência européia, apesar da resistência de muitos Membros em aceitar a inclusão do tema. É importante recordar que um acordo sobre concorrência em âmbito multilateral, originariamente foi proposto no Capitulo V da Carta de Havana, mas nunca veio a existir. Hoje ainda existe uma discussão sobre a eventual necessidade de criação de um conjunto multilateral de regras de concorrência no âmbito da OMC. Em 1996, durante reunião ministerial da OMC em Cingapura, a concorrência recebeu uma especial atenção com a criação de um grupo de trabalho — Working Group on the Interaction between Trade and Competition Policy (WGTCP)233 — para discutir e estudar as interações entre o comércio e a política de concorrência. Após a formação do WGTCP, a organização passou a receber comunicações dos Membros e organizações internacionais. Cabe salientar que estas últimas atuam na qualidade de observadores, como, por exemplo: a UNCTAD; a OCDE, o Banco Mundial, o FMI e a Cooperação Econômica da Ásia — Pacífico (APEC)234. Após a formação do WGTCP, sua atividade sobre a interação entre a política comercial e a política de concorrência produziu relatórios referentes aos encontros 232 BARRAL, Welber. Perspectivas para as negociações comerciais multilaterais: a Reunião Ministerial de Cancún. Florianópolis: IRI, 2003. Disponível em: <http://www.iribr.com/cancun/ barral.asp>. Acesso em: 20 out. 2005. 233 WT/MIN(96)/DEC, par. 20: “Having regard to the existing WTO provisions on matters related to investment and competition policy and the built-in agenda in these areas, including under the TRIMs Agreement, and on the understanding that the work undertaken shall not prejudge whether negotiations will be initiated in the future, we also agree to: establish a working group to examine the relationship between trade and investment; and establish a working group to study issues raised Members relating to the interaction between trade and competition policy, including anti-competitive practices, in order to identify any areas that may merit further consideration in the WTO framework. These groups shall draw upon each other’s work if necessary and also draw upon and be without prejudice to the work in UNCTAD and other appropriate intergovernmental fora. As regards UNCTAD, we welcome the work under way as provided for in the Mindrand Declaration and the contribution it can make to the understanding of issues. In the conduct of the work of the working groups, we encourage cooperation with above organizations to make the best use of available resources and to ensure that the development dimension is taken fully into account. The General Council will keep the work of each body under review, and will determine after two years how the work of each body should proceed. It is clearly understood that future negotiations, if any, regarding multilateral disciplines in these areas, will take place only after an explicit consensus decision is taken among WTO Members regarding such negotiations.” 234 Cf. ANDRADE, 2003, p. 242-243. 87 realizados em 1997, 1998, 1999, 2000, 2001, 2002 e 2003235. Vale destacar que em novembro de 2001, na Declaração Ministerial da Conferência de Doha, foram fixados objetivos mais concretos a serem trabalhados pelo Grupo de Trabalho até 2003, e os parágrafos 23, 24 e 25 da Declaração dedicaram-se à interação entre comércio e política de concorrência. Em 2001 o documento WT/WGTCP/5 tratou dos seguintes aspectos: a) Relevância dos princípios fundamentais da OMC - tratamento nacional, transparência e nação mais favorecida para política de concorrência e vice-versa: a discussão desses pontos prezou a análise da relevância desses princípios para a aplicação efetiva das políticas concorrenciais e do papel que tais princípios poderiam ter num panorama multilateral. Foram feitas referências específicas aos princípios de não discriminação (do tratamento nacional e da nação mais favorecida), transparência, flexibilidade e progressividade, tratamento especial e diferenciado e devido processo e a importância da proibição efetiva dos cartéis hard-core236. b) Abordagens para a promoção da cooperação e comunicação entre Membros, inclusive no campo da cooperação técnica, incluindo as seguintes questões: (i) contribuição da política de concorrência para o desenvolvimento econômico; (ii) relação entre políticas concorrenciais e industriais; (iii) necessidade de forte cooperação internacional para o tratamento de práticas anticompetitivas interfronteiras; (iv) possíveis elementos que poderiam ser incorporados num panorama multilateral de políticas de concorrência, incluindo os tipos de cooperação visados; (v) preocupações e objeções avançados em relação ao conceito de um panorama multilateral e seus possíveis elementos; (vi) as implicações de diversidade de contribuições institucionais e situações econômicas para a viabilidade e o conteúdo de um panorama multilateral de política de concorrência; (vii) o escopo para melhora da efetividade da cooperação técnica e assistência na área da política concorrencial; (viii) preocupações crescentes com relação a aplicação da solução de controvérsias da OMC na área de política concorrencial; e (ix) a contribuição 235 Estes documentos são, respectivamente: WT/WGCP/1; WT/WGTCP/2; WT/WGTCP/3; WT/WGTCP/4; WT/WGTCP/5; WT/WGTCP/6; WGTCP/7 (esses dois últimos destacam o apoio e auxílio às instituições nos países em desenvolvimento por meio de “capacity building”). 236 WTO. Report (2001) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/5. 08 October 2001, p. 5. 88 potencial dos processos de peer review (revisão) em relação ao conteúdo e implementação de legislação e políticas concorrenciais nessa área237. c) Contribuição da política de concorrência no atendimento dos objetivos da OMC, inclusive na promoção do comércio internacional: a visão expressa foi a de que o comércio e as políticas concorrenciais são mutuamente reforçadores e complementares em vários aspectos. A política de concorrência facilita o comércio ao remover restrições a fluxos comerciais. Por seu turno, a política comercial encoraja a concorrência ao diminuir tarifas e eliminar barreiras não tarifárias. As autoridades concorrenciais poderiam também desempenhar atividade em casos de remédios comerciais, ao assegurar que um balanço apropriado seja feito entre os interesses da indústria doméstica e dos consumidores238. O documento reconhece que a relação entre comércio e políticas concorrenciais nasce em diferentes contextos históricos e nacionais. Ao se avaliar a melhora na complementaridade do comércio e políticas concorrenciais, seqüenciamento. Nesse anticoncorrenciais poderiam sentido, ser deve-se considerar considerou-se resolvidas por como meio a as de questão do condições uma maior complementaridade entre o comércio internacional e as políticas de concorrência (por exemplo, se haveria menos espaço e liberdade para compensação por meio de medidas de defesa comercial). Foi feita também referência aos relatórios da OCDE, que abordaram aspectos da complementaridade239. d) Outras questões levantadas pelo Membros, relacionadas ao estudo das interações entre comércio e política concorrencial. Dentre as demais questões levantadas na discussão encontram-se as seguintes: (i) objetivos da legislação 237 “The discussion on this item spanned a wide range of issues, including the following: (i) the contribution of competition policy to economic development; (ii) the relationship between competition and industrial policies; (iii) the need for strengthened international cooperation to address cross-border anti-competitive practices; (iv) possible elements that could be incorporated in a multilateral framework on competition policy, including the types of cooperation envisaged; (v) concerns and objections advanced in relation to the concept of a multilateral framework and its possible elements; (vi) the implications of diversity in Members' institutional endowments and economic situations for the feasibility and content of a multilateral framework on competition policy; (vi) the perceived scope for enhancing the effectiveness of technical cooperation and assistance in the area of competition policy; (vi) concerns arising in relation to application of the WTO dispute settlement mechanism in the area of competition policy; and (vii) the potential contribution of peer review processes relating to the content and implementation of competition laws and policies in this area”. WTO. Report (2001) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/5. 08 October 2001, p. 16. 238 Veja-se que nesse caso o exemplo dado no Capitulo 2 do caso brasileiro no mercado de insulina é bastante elucidativo. 239 WT/WGTCP/5, 2001, p. 31-32. 89 concorrencial; (ii) importância e papel da política concorrencial em iniciativas de desregulação, privatização e liberalização de mercado; (iii) política concorrencial como complemento de outras políticas e legislações relevantes; (iv) política concorrencial em mercados pequenos; (v) iniciativas regionais de concorrência; (vi) importância de política concorrencial para países em desenvolvimento e países desenvolvidos; (vii) importância da criação de uma cultura de concorrência; (viii) abordagens per se comparadas com abordagens com base na regra da razão; (ix) necessidade de autoridade concorrencial autônoma e independente; (x) poderes delegados às autoridades concorrenciais; (xi) direito de recurso contra decisões de autoridades concorrenciais; (xii) a relação entre autoridades concorrenciais e outros órgãos regulatórios; (xiii) importância da adoção antecipada e implementação de legislações e instituições concorrenciais; (xiv) o papel, tipos e importância de advocacia da concorrência; (xv) importância da assistência técnica; (xvi) desafios enfrentados pelas autoridades concorrenciais; (xvii) exceções, isenções e autorizações sob legislações concorrenciais240; (xviii) existência e papel dos princípios da OMC em legislações nacionais de concorrência; e (xix) importância da cooperação internacional241. No ano seguinte, em 2002, contando com a Presidência do Professor Frédéric Jenny da França, o Grupo de Trabalho prosseguiu com os trabalhos, em cumprimento ao parágrafo 25 da Declaração Ministerial de Doha (WT/MIN(01)/DEC/1), que estabelece que a interação entre o Comércio e a Política de Concorrência deveria centrar-se no seguinte: a) princípios fundamentais, incluídos os da transparência, da não discriminação, da equidade processual, e disposições sobre os cartéis hard-core; b) modalidades de cooperação voluntária; e c) apoio para o fortalecimento progressivo das instituições encarregadas da concorrência nos países em desenvolvimento mediante a criação de capacidades. Tudo isso deveria ser feito levando-se em consideração as necessidades dos países 240 De acordo com o próprio documento de trabalho: “[...] The types of anti-competitive practices that were being discussed such as international cartels, export cartels, import cartels and abuses of a dominant position that had transboundary effects all had an international dimension and had clear adverse effects upon international trade and development. Moreover, in view of the criticism often levelled at the WTO that it created enhanced freedom for producers without necessarily providing due protection for other members of society, it would be difficult to explain that Members had come to the conclusion that anti-competitive business practices that distorted international trade were not a proper concern for the WTO to address.” WT/WGTCP/5, 2001, p. 34. 241 WT/WGTCP/5, 2001, p. 35. 90 em desenvolvimento e menos desenvolvidos, prevendo-se a flexibilidade apropriada para o tratamento242. Veja-se que no documento foi colocada a colaboração das Secretarias da UNCTAD e da OMC na organização e apresentação de vários aspectos do mandato de Doha relativo ao comércio e a política de concorrência e, ainda, a cooperação com a secretaria da OCDE243. Durante 2002 a Secretaria da OMC também participou de uma reunião informal com representantes da ICN, da UNCTAD e da OCDE cujo objetivo foi o intercâmbio de informação sobre as atividades de cada organização244. Esse documento também se mostrou interessante, uma vez que tratou dos debates em torno do tratamento diferenciado que deveria ser dado aos países menos desenvolvidos e das políticas de exceções e/ou isenções que seriam apropriadas245. Sobre a pertinência de exceções ou isenções na aplicação das leis nacionais de concorrência e/ou de um marco multilateral foi expressa a opinião de alguns membros de que devem ser observados os diferentes níveis de desenvolvimento. Desse modo, alguns membros defenderam que um marco possível deveria conferir flexibilidade suficiente. Nesse sentido foi até mesmo proposto por alguns membros que um marco multilateral de concorrência deveria prever a possibilidade de isenções e exceções246. 242 WTO. Report (2002) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/6. 09 december 2002, p. 2. 243 Veja-se nesse sentido: WT/WGTCP/6, 2002, p. 20-28 e p. 40-47. 244 WT/WGTCP/6, 2002, p. 3. 245 WT/WGTCP/6, 2002, p. 15-18. 246 “[...] un marco multilateral sobre competencia tenía que preverse la posibilidad de exenciones o exclusiones apropiadas en dos aspectos. En primer lugar, muchos Miembros - entre ellos países menos adelantados y otros países en desarrollo, pero también algunos países industrializadosdeseaban conceder, en sus legislaciones sobre la materia, mayor flexibilidad a las empresas pequeñas y medianas que a otras empresas. El marco propuesto debía permitir ese tipo de flexibilidad. En segundo lugar, como ya se había indicado, los intereses nacionales podían salvaguardarse simplemente previendo la exclusión de sectores económicos sensibles de todas las disposiciones sustantivas de un marco multilateral, o sólo de algunos principios fundamentales. (M/19, párrafo 47.). La previsión de exenciones y excepciones proporcionaría mayor flexibilidad a los Miembros de la OMC para alcanzar otros objetivos nacionales tales como el desarrollo industrial y económico. (M/19, párrafo 78). No obstante, las excepciones y exenciones debían estar sujetas a procedimientos de transparencia suficientes, a fin de que las empresas que comerciaran con un Miembro o invirtieran en la economía de un Miembro supieran en qué situación se encontraban. (M/19, párrafo 78). También se sugirió que la posibilidad de aplicar exenciones no se redujera gradualmente a lo largo del tiempo, o que estuviera sujeta a un examen periódico. (M/19, párrafo 78).” WT/WGTCP/6, 2002, p. 18-19. 91 Em 2003, o Grupo de Trabalho prosseguiu com as atividades e a Presidência do Professor Frédéric Jenny. Conforme havia sido decidido em reunião informal do Grupo de Trabalho realizada em 17 de janeiro de 2003, o Grupo deveria centrar-se durante o ano nos seguintes temas247: i) elementos contidos no parágrafo 25 da Declaração Ministerial de Doha, incluindo as questões e perguntas levantadas durante 2002 que as delegações desejassem abordar novamente; ii) a natureza e alcance dos mecanismos de observância que poderiam ser aplicados em virtude de um marco multilateral sobre política de concorrência; e iii) os possíveis elementos em matéria de progressividade e flexibilidade que poderiam ser incluídas em um marco multilateral sobre política de concorrência. Ainda, reuniões deveriam tratar das questões de assistência técnica e criação de capacidades, em conformidade com o que estabelece o parágrafo 24248 da Declaração Ministerial de Doha249. Mais uma vez houve a cooperação com a UNCTAD para fazer o melhor uso dos recursos disponíveis considerando a dimensão do desenvolvimento. O FMI e o Banco Mundial assistiram às reuniões do Grupo de Trabalho na qualidade de observadores - em conformidade com os acordos de cooperação firmados entre a OMC e essas organizações. Veja-se que a UNCTAD e a OCDE também participaram das reuniões na qualidade de observadores, por meio de convite do Grupo de Trabalho, contribuindo com os debates250. Com relação a uma possível 247 Esse documento é especialmente relevante para o presente estudo porque também trouxe questões e reflexões dos membros sobre os cartéis de exportação, as quais serão apontadas na Parte II. 248 “24. Reconocemos la necesidad de los países en desarrollo y menos adelantados de que se potencie el apoyo para la asistencia técnica y la creación de capacidad en esta esfera, incluidos el análisis y la formulación de políticas para que puedan evaluar mejor las consecuencias de una cooperación multilateral más estrecha para sus políticas y objetivos de desarrollo, y el desarrollo humano e institucional. A tal fin, trabajaremos en cooperación con otras organizaciones intergubernamentales pertinentes, incluida la UNCTAD, y por conducto de los canales regionales y bilaterales apropiados, para facilitar una asistencia reforzada y dotada de recursos adecuados para responder a esas necesidades.” WT/MIN(01)/DEC/W/1, 2001, parágrafo 24. 249 WTO. Report (2003) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/7. 17 July 2003, p. 2. 250 WT/WGTCP/7, 2003, p. 3. Ainda, de acordo com o documento: “El debate sobre este punto abarcó una amplia gama de cuestiones, entre ellas: i) consideraciones generales relativas a las ventajas y desventajas de elaborar un marco multilateral sobre política de competencia que incorpore los elementos mencionados en el párrafo 25; ii) el posible alcance y aplicación de los principios fundamentales enumerados en el párrafo 25 de la Declaración Ministerial de Doha, a saber, la transparencia, la no discriminación y la equidad procesal; iii) las posibles inquietudes relativas a su incorporación en un marco multilateral sobre política de competencia, inclusive con respecto a sus repercusiones en los procedimientos para la observancia de las leyes nacionales de competencia y en las políticas industriales nacionales y otras políticas de los países en desarrollo; iv) el perjuicio que causan los cárteles internacionales intrínsecamente nocivos y las medidas necesarias para hacerles frente; v) la naturaleza y el alcance de posibles modalidades para la cooperación entre los Miembros 92 flexibilidade das regras, novamente as potenciais exclusões e isenções foram temas de estudos e debates durante os trabalhos251. Em setembro de 2003 os Membros da OMC reuniram-se em Cancun (México) para avaliar o andamento das negociações iniciadas em Doha. Esperavase que os Membros estivessem munidos de elementos para decidir se o tema concorrência faria parte ou não da agenda de negociação da OMC, todavia, nada foi decidido com relação a este tema252. Oficialmente, na 5.ª Conferência Ministerial de Cancun, houve fracasso das negociações em torno das chamadas “questões de Cingapura”. O travamento das negociações partiu da CE que queria discutir e teve a objeção de quase 90 países, em sua maioria africanos. Demonstrou-se que havia uma preocupação com a inclusão desses novos temas, uma vez que os mesmos poderiam sobrecarregar a pauta de negociações e emperrar progressos em outras questões. Em Hong Kong a 6.ª Conferência Ministerial ocorreu entre 13 e 18 de dezembro de 2005, mas também resultou no insucesso e falta de consenso253. A 7.ª Conferência Interministerial da OMC ocorreu entre 30 de novembro a 02 de dezembro de 2009, em Genebra - Suíça, onde as delegações não prosseguiram nas negociações referentes à Rodada Doha e os ministros apenas revisaram as atividades e abordaram questões sobre a recuperação dos países frente à crise econômica254. Apesar de não haver resultados até o momento, vale ressaltar que se o assunto for retomado no futuro (tal como se espera) e um acordo internacional sobre política de concorrência for incorporado à OMC (tal como também se propões) ele será obrigatório, tais como os acordos que hoje existem, em razão da aplicação do princípio do single undertaking255. de la OMC en esta esfera; vi) otros enfoques de la cooperación sobre política de competencia a nivel multilateral; y otros asuntos.” Id. Ibidem, p. 4 251 Veja-se: WT/WGTCP/7, 2003, p. 35-37. 252 Sobre Cancún veja-se: WTO. Draft Cancún Ministerial Text — second revision. Disponível em: <http://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min03_e/draft_decl_rev2_ e.htm>. Acesso em: 15 nov. 2009. 253 WTO. The Sixth WTO Ministerial Conference — Hong Kong. Disponível em <http://www.wto.org/English/thewto_e/minist_e/min05_e/min05_e.htm>. Acesso em: 15 nov. 2009. 254 Nesse sentido, veja-se: ICTSD. A OMC após a 7ª Conferência Ministerial: poucos avanços, muitas questões. Pontes. Vol. 5. N˚. 6. Dezembro de 2009. 255 “The old GATT was not a single undertaking agreement. Contracting parties were free to be signatories of the various codes on an a la carte basis, in accordance to their needs and levels of 93 Com a introdução do princípio do single undertaking, ao final de 1994, na Rodada Uruguai, todos os países ficaram obrigados a aceitar os acordos sobre todos os temas negociados, não sendo possível que determinado Membro assine somente acordos que sejam de seu interesse. Portanto, se, por exemplo, um acordo de concorrência for acordado impondo a proibição dos cartéis, os Membros têm a obrigação de adequar suas leis internas. É importante frisar que a nãoimplementação de uma norma obrigatória violaria o acordo. A parte que incorrer nesta conduta poderá ser julgada pelo sistema de solução de controvérsias da OMC e, ainda, receber sanções. Contudo, dado aos recentes impasses da Rodada de Doha, a inclusão de regras de concorrência na OMC não tem sido objeto de maior atenção, como será visto novamente na Parte II, apesar de ser fato notório que o tema é importante diante das diversas práticas que podem afetar um ambiente competitivo saudável, incluindo a conduta dos cartéis de exportação. Entende-se que a criação de regras multilaterais poderia ser um caminho adequado para um acordo global sobre política de concorrência, pelo menos no que diz respeito às condutas com potencial de distorcer o comércio internacional. Veja-se que as tentativas empenhadas e os estudos e pesquisas realizados pelas organizações e fóruns multilaterais, tais como a OCDE, a OMC, a ICN, e a UNCTAD256 tem muito valor, entretanto, estão mais voltadas para práticas e condutas que possuem maior grau de consenso entre os participantes (i.e., cartéis hard-core). development. In the course of the Uruguay Round, the developed countries made a concerted effort to push for the inclusion of new issues into the GATT - services, intellectual property and investment – and for these to be treated as parts of a ‘global accord’. [...] The single-undertaking transformed the trade regime and trade negotiations in several ways:1) Firstly, a single-undertaking means that the WTO trade package is an all or nothing package. Members either accept the different parts or reject it in its entirety 2) It allows trade-offs across sectors during the trade negotiations. 3) It made it easy to engage in cross retaliation in disputes. In a trade dispute, a wronged country, after a process of mediation, can retaliate against the wrongdoer by limiting imports from that country. If it is impossible to restrict imports of the same product involved in the dispute, or a product under the same agreement, it is then possible to take action against imports of any product, and under any of the agreements. 4) In terms of the process during negotiations, the single undertaking meant that nothing is agreed to unless everything is agreed to.” KWA. Aileen. The a la carte undertaking: a new form of special and differential treatment?. Focus on the Global South, August 2000. 256 Alguns documentos produzidos são considerados soft laws, que não chegam a ter o status de normas jurídicas, mas que representam, de certo modo, uma obrigação moral aos Estados. Essas obrigações, ainda que imperfeitas, possuem alguma normatividade e têm a finalidade de fixar metas para futuras ações políticas e recomendar aos Estados a adequação das normas de seu ordenamento interno. Em uma visão mais crítica, de acordo com Ian Brownlie: “[...] muitos dos exemplos tidos como de soft law não são nem exemplos de lei, nem de não-lei, nem de lex lata, nem de lex ferenda; são, simplesmente, evidência do que o direito é ou pode ser sobre uma determinada 94 Assim, o avanço nas discussões sensíveis como, por exemplo, referente aos cartéis de exportação, ainda carecem de maior atenção diante das distorções que essas condutas podem causar ao comércio, especialmente considerando o processo de desenvolvimento como um todo e também as necessidades dos PEDs e economias mais sensíveis. matéria. [...] Creio que uma forma mais interessante de olhar as chamadas soft laws é olhar para a sua real importância; o fato de que certas disposições informais, coisas que não são lei propriamente dita, obviamente são significativas em termos de comportamento político entre Estados, e são, geralmente, reconhecidas por tomadores de decisão como detentores de um importante efeito catalítico. Por disposições informais, refiro-me a qualquer coisa que possa provocar a adoção dos elementos normativos como regras legais por tomadores de decisão com autoridade.” (tradução livre). Veja-se: BROWNLIE, Ian. To what Extent are the Traditional Categories of Lex Lata and Lex Ferenda still viable? In: CASSESE, Antonio; WEILEIR, Joseph (eds.). Change and Stability in International Law-Making. Berlim: Gruyter, 1988, p. 69-70. 95 3 O DESENVOLVIMENTO: TEORIAS E PRINCÍPIOS 3.1 O desenvolvimento e sua relação com as políticas de concorrência A dimensão do desenvolvimento para a política de concorrência já foi reconhecida pela Declaração Ministerial de Cingapura, de 1996257. Contudo, o texto da declaração de Doha, assim como as questões políticas que foram tratadas após as últimas conferências interministeriais no âmbito da OMC apontam que uma futura discussão de regras adicionais de concorrência será politicamente inviável se não houver especial atenção ao desenvolvimento econômico e à situação especial dos PEDs258. Os PEDs geralmente temem que um estreitamento entre as políticas de concorrência e de comércio internacional diminua ou elimine suas vantagens comparativas em relação, principalmente, aos produtos primários. Esses mesmos países preocupam-se com o fato de não estar claro se haverá tratamento diferenciado e especial às suas situações particulares. Ao mesmo tempo existe um temor de que essa situação possa expor as suas indústrias nacionais à competição internacional ou às aquisições internacionais, frustrando, ainda mais, o desenvolvimento259. Essas preocupações são politicamente sensíveis. Por essa razão, a análise do desenvolvimento voltado à política de concorrência e o seu conseqüente tratamento na OMC devem levar em conta, pelo menos, dois aspectos: (i) compreensão de “se” e “como” a concorrência contribui para o desenvolvimento econômico; e (ii) a possível abordagem do “tratamento especial e diferenciado”260 257 OMC. Declaración Ministerial de Singapur. Adoptada el 13 de diciembre de 1996. Disponível em: <http://www.sice.oas.org/trade/gatt/Singap_s.asp> Acesso em: 22 jul. 2010. 258 No mesmo sentido, veja-se KROL, 2007, p.171. 259 TREBILCOCK, M. J.; HOWSE, Robert. The regulation of international trade. 3 ed. London: Routledge. 2005, p. 609. 260 A Cláusula de Habilitação oficialmente chamada de "Decisão sobre tratamento diferencial e mais favorável, reciprocidade e maior participação de países em desenvolvimento", foi adotada em 1979, e estimula os países desenvolvidos a dar tratamento diferencial e mais favorável aos países em desenvolvimento. A Cláusula de Habilitação é a base legal da OMC para o Sistema de Preferências 96 estabelecido no acordo da OMC, num contexto de regras complementares de concorrência que possam ser exploradas e desenvolvidas no futuro261. A teoria econômica tem destacado que uma política antitruste forte é essencial para o desenvolvimento econômico, em especial o estabelecimento de regras de concorrência contra concentrações horizontais, comportamento colusivo e alianças estratégicas que visam prejudicar o crescimento econômico262. É fato notório que a política de concorrência tem como um de seus objetivos centrais deter específicos abusos como a cartelização, monopolização e concentrações econômicas que tenham como objetivo prejudicar o bem-estar. Esta análise geralmente é realizada caso a caso, mas essas práticas, em regra, são condenadas independentemente de seus efeitos ao desenvolvimento. Ou seja: a análise antitruste não necessariamente avalia os efeitos ao desenvolvimento ao decidir, por exemplo, condenar uma conduta considerada como anticompetitiva. Sem dúvida, existem exemplos das chamadas “economias milagrosas” que se desenvolvem muito bem apesar da ausência de uma legislação de concorrência atualizada263. Entretanto, os dados apresentados pela OCDE e UNCTAD, além de outros estudos264, não apontam que esta seja a regra. Veja-se, como apontam as evidências empíricas, que os cartéis internacionais influenciam de maneira relevante os custos das importações nos Generalizadas (SPG). No âmbito do SPG, os países desenvolvidos oferecem tratamento preferencial não recíproco (como tarifas baixas ou iguais a zero sobre as importações) de produtos originários de países em desenvolvimento. Os países que dão este tratamento original unilateralmente determinam quais países e quais os produtos que estão incluídos nos seus projetos. A Cláusula de Habilitação é também a base jurídica para os acordos regionais entre os países em desenvolvimento e para o Sistema Global de Preferências (SGPC), no qual certos países em desenvolvimento fazem, entre si, trocas de concessões comerciais. Veja-se: HOEKMAN, Bernard; MARTIN, William J.; BRAGA Carlos A. Primo. Preference Erosion: the terms of the debate. World Bank, 2006, p. 3-4 261 No mesmo sentido, veja-se: KROL, Daniela. Toward multilateral competiton law? - after Cancún:reevaluating the case for additional international competition rules under special consideration of the WTO agreement. Frankfurt; New York: Peter Lang, 2007, p.171. 262 PORTER, Michael. A vantagem competitiva das nações. Rio de Janeiro: Campus, 1993b, p.110 e seg. 263 BHATTACHARJEA, Aditya. The case for a multilateral agreement on competition policy: a developing country perspective. Journal of International Economic Law. V.. 9, n˚. 2, 2006, p. 316. 264 Cf. EVENETT, Simon J. Can developing economies benefit from WTO negotiations on binding disciplines for hard-core cartels? Switzerland: Word Trade Institute, 2003a. Cf. GIFFORD, Daniel J.; KUDRLE, Robert T., Trade and Competition Policy in the Developing World: Is There a Role for the WTO? Minnesota Legal Studies Research Paper N˚. 08-27. August, 2008. Veja-se também: MORGAN, Thomas D. Cases and materials on modern antitrust law and its origns. 3 ed St. Paul, MN: Thomson/West, 2005. 97 países em desenvolvimento265. Portanto, apesar da idéia defendida por alguns - que a concorrência não necessariamente leva ao desenvolvimento econômico - não pode ser ignorado que as práticas anticompetitivas internacionais podem representar empecilho ao desenvolvimento, quando os PEDs e economias mais frágeis ficam expostos aos custos significativos impostos, por exemplo, por cartéis, ou outras condutas anticompetitivas, cujos agentes se aproveitam da ausência de uma lei de concorrência ou de sua aplicação266. Este argumento também é sustentado pelo fato de que a maior parte dos países em desenvolvimento tem procurado adotar leis de concorrência independentemente das discussões que são levadas a cabo dentro da OMC ou outras organizações, pois está se tornando senso comum a idéia de que sem leis, ou sem uma política antitruste, os países ficam mais expostos às práticas anticompetitivas. Como bem pondera BHATTACHARJEA, a adoção dessas leis pode alterar o poder de barganha nas futuras negociações dentro da OMC referente a esse tema, e, ao mesmo tempo, esse fato aponta que os PEDs, de modo geral, por si próprios, consideram as leis de concorrência benéficas para suas economias.267 Vale ressaltar que a política de concorrência também pode ser benéfica aos PEDs já que pode sustentar reformas microeconômicas. Observa-se que há evidências empíricas que sugerem que a privatização, sem uma política de concorrência, apenas resultará numa simples substituição do monopólio público por um monopólio privado268. Portanto, como até mesmo já destacou o WGTCP, a implementação de uma política de concorrência pode auxiliar os países a potencializar os ganhos gerados pela liberalização e ainda atuar de uma forma preventiva269. Entretanto, conforme se verá nesse capítulo, é importante avaliar, em primeiro ligar, qual o conceito a ser utilizado para o desenvolvimento no contexto 265 ANDERSON, Robert. D.; HOLMES, Peter. Competition policy and the future of the multilateral trade system. Journal of International Economic Law, v. 5, n˚. 2, 2002, p. 553. 266 Nesse sentido veja-se: JENNY, Frederic. Globalization, competition and trade policy: convergence, divergence and cooperation. In: EC LAW facing the New Millenium Challenges, XIV Congress of the European Lawyer's Union. Bruxelles (Belgique): Bruylant, 2001, p. 31-70. 267 BHATTACHARJEA, 2006, p. 319. 268 No mesmo sentido, veja-se ANDERSON, HOLMES, 2002, p. 554. 269 WT/WGTCP/2, 1998, p. 229, parágrafo 34. 98 atual, assim como as possíveis teorias que serão aplicadas para justificar tratamentos diferenciados aos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos. Ainda, mostra-se importante apresentar no presente capitulo a possibilidade de concessão de preferências aos países menos desenvolvidos no contexto multilateral, no sentido de viabilizar a criação de instituições que regulem a concorrência e o comércio (incluindo os cartéis de exportação), com a finalidade de fomentar o desenvolvimento. 3.2 O conceito de desenvolvimento aplicável Costuma ser considerado como “lugar comum” a defesa de que a regulação é importante dentro de um contexto em que se busca o desenvolvimento. O conceito de desenvolvimento é apresentado pela doutrina sob enfoques de diferentes correntes, mas já vem sendo estudado há muito tempo por grandes teóricos, economistas e filósofos. Em estudo sobre o tema MUNHOZ explica que na história contemporânea existem basicamente duas grandes correntes que fazem uso do conceito de desenvolvimento em sentidos distintos: [...] uma primeira que considera crescimento econômico como sinônimo de desenvolvimento, e outra que entende que este crescimento faz parte do desenvolvimento, constituindo condição indispensável para este, mas não suficiente.270 Há também outras correntes menores, que abordam o desenvolvimento sob a análise de temas específicos, como os conceitos de desenvolvimento sustentável e desenvolvimento humano. Ademais, ao considerar-se o tema sob perspectiva histórica, podem ser verificadas obras de importantes e reconhecidos autores que em suas análises demonstraram precursora preocupação com o assunto. Dentre os autores principais encontram-se: Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, Karl Marx, Joseph Schumpeter, John Maynard Keynes, Raul Prebisch, entre outros. Ainda no que diz respeito à história mais recente, PRADO explica que: 270 MUNHOZ, 2006, p. 24. 99 [...] até a crise da Teoria do Desenvolvimento nos anos 70, as razões do atraso econômico e as estratégias para superá-las foram intensamente discutidas. Por duas décadas o tema perdeu parte de seu glamour, ou seja, deixou de ser considerado high theory, nos principais centros de produção teórica. Até mesmo um autor progressista, como Krugman considerou os programas de pesquisa de desenvolvimento como difusos, não formando um corpo teórico consistente, e, ainda, carecendo do uso do instrumental analítico para comunicar suas idéias aos economistas contemporâneos. Na década de 1990, contudo o tema voltou a adquirir prestígio, sendo agora também disputado pelas novas correntes econômicas críticas do keynesianismo e, ainda, pelos novos institucionalistas e as diversas correntes econômicas heterodoxas.271 (destaques no original) Nesse sentido, atualmente há importantes correntes que analisam o desenvolvimento sob uma ótica mais ampla, não considerando o desenvolvimento apenas e puramente como desenvolvimento econômico. Nesse sentido, destacamse os chamados “institucionalistas” que apresentam teoria bastante clara e adaptável a realidade que se pretende aprofundar no presente estudo. Dessa maneira, passa-se a fazer uma breve análise das correntes teóricas contemporâneas que, em princípio, entende-se que teriam melhor aplicação ao tema aqui proposto. 3.2.1 A Escola da Nova Economia Institucional e Douglass C. North A Escola da Nova Economia Institucional, de maneira ampla e sem considerar apenas o conceito de desenvolvimento econômico, destaca-se ao analisar as instituições sociais e ao identificar determinados pontos que impedem o bom funcionamento dos mercados. Douglass C. North preparou estudo detalhado sobre o papel das instituições na evolução das sociedades o que inclusive lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 1993. NORTH é um dos estudiosos que mais se destaca nessa linha de análise, i.e., vinculando o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento das instituições. Conforme explica o autor: 271 PRADO; Luiz Carlos Delorme. Desenvolvimento econômico, regulação econômica e defesa da concorrência - reflexões sobre as novas formas de intervenção econômica em uma política de desenvolvimento. 32º Encontro Anual da Anpocs, 2008, p. 2. 100 As instituições são as regras do jogo numa sociedade, ou, mais formalmente, são as limitações criadas pelo ser humano que dão forma à interação humana. Por isso, constituem incentivos para o intercâmbio humano, seja ele político, social ou econômico. As instituições reduzem a incerteza pelo fato de que proporcionam uma estrutura à vida diária, definindo e limitando o conjunto de escolhas dos indivíduos.272 NORTH utiliza-se de alguns conceitos fundamentais para aprofundar a sua obra. Elementos como racionalidade, motivação dos indivíduos, ideologias, eficiências e incertezas representam importante papel na análise das instituições como elementos fundamentais ao desenvolvimento. As eficiências também revelam ter papel essencial, uma vez que colaboram para o estabelecimento de instituições adequadas. Veja-se que NORTH não apenas discute a influência das instituições no desenvolvimento da sociedade, mas também busca defender que o crescimento ou a evolução de uma sociedade é condicionado pela formação e evolução de suas instituições. O conceito das instituições na obra de NORTH é elaborado a partir da análise desses elementos, por meio dos quais o autor demonstra as dificuldades enfrentadas pelos agentes econômicos no mercado. As incertezas que permeiam o ambiente econômico são representadas pelos chamados “custos de transação”. As instituições são então desenvolvidas pelas sociedades exatamente com o objetivo de reduzir os custos de transação e coordenar as atividades humanas em âmbito econômico e social. Conforme análise de MUNHOZ: O modelo institucional de North traz para a análise econômica elementos estranhos à teoria tradicional, consubstanciados principalmente nas instituições informais. Estes elementos de certa forma humanizam esta análise, na medida em que admitem de forma expressa que o ser humano, seja através das instituições por ele criadas, seja por seu próprio papel como agente econômico tomador de decisões, influencia de forma direta o processo de desenvolvimento econômico.273 Sem dúvida, NORTH é o autor mais conhecido no novo institucionalismo274 e sua crítica à doutrina neoclássica275 funda-se no sentido de que a teoria neoclássica 272 NORTH, Douglas. Instituciones, cambio institucional y desempeño económico. México: Fondo de cultura económica, 2001, p. 13. 273 MUNHOZ, 2006, p.79 274 Brue explica que existem diversas linhas de pensamento no novo institucionalismo. Cada linha explica a importância das instituições e a sua relação com os resultados econômicos e políticos. Citam-se os seguintes teóricos: Harold Demsetz (que trata do papel dos direitos de propriedade na 101 não reconhece a importância das limitações institucionais no processo de tomada de decisão, assim como não consegue explicar a permanência de várias instituições econômicas276. É interessante analisar que NORTH crê na impossibilidade do indivíduo de conhecer toda informação necessária para a tomada de decisões ótimas e, assim, propõe uma teoria da racionalidade mais ampla, em que seja possível analisar dois aspectos essenciais da conduta humana: i) a motivação dos indivíduos e ii) a decifração do ambiente277. Assim, para NORTH a racionalidade não significa atingir uma situação ótima, mas sim agir na busca de determinados fins, da forma mais razoável possível, considerando-se a consciência de que existe falta de informação278. O autor também defende que o subdesenvolvimento pode ser explicado em grande parte pela ineficiência das instituições dos chamados “países de Terceiro mundo”279. O autor pondera que a hierarquia das regras (i.e., constituições, leis e decretos etc.), assim como os contratos definem limitações que podem mudar de regras gerais a particulares e possuem a finalidade de facilitar o intercâmbio político e econômico280. promoção da eficiência econômica; Richard Posner (que aborda a relação entre lei e economia); Ronald Coase e Oliver E. Williamson (que abordam os custos de transação e o comportamento das empresas; e por fim há trabalhos de James Buchanan e Gordon Tullock (que tratam da teoria da escolha pública). Nesse sentido, veja-se: BRUE, Stanley L. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Thomson, 2000, 375-390. 275 Conforme explica Bresser-Pereira: “o primeiro sinal da crise da teoria econômica neoclássica surgiu quando os bancos centrais abandonaram a política de metas monetárias. Atualmente, está claro que a teoria macroeconômica neoclássica e a teoria neoclássica do crescimento que usam o método hipotético-dedutivo são incapazes de explicar e prever o comportamento das complexas realidades sociais e institucionais. O pensamento econômico acadêmico dominante entrou em crise, e muitos são os sinais”. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Os dois métodos e o núcleo duro da teoria econômica. Revista de Economia Política, v. 29, nº 2 (114), abril-junho/2009, p.164. Ainda, Blaug afirma que “a teoria econômica moderna está doente; ela se tornou cada vez mais um jogo intelectual jogado por si mesmo e não por suas conseqüências; os economistas gradualmente converteram o objeto em uma Matemática Social, onde o rigor analítico, como entendido na matemática, é tudo, e a relevância empírica (como entendida nos departamentos de física) é nada”. Mark Blaug, 2002, p. 36. 276 BRUE, 2000, p. 389. 277 NORTH, 2001, p. 34. 278 NORTH, 2001, p. 34. 279 NORTH, 2001, p. 155. 280 NORTH, 2001, p. 67. 102 É importante notar que o próprio autor não nega que, na prática, a mudança institucional é um processo complicado, já que as alterações ocorridas podem ser conseqüência de mudanças cujas origens são difíceis de determinar281. GALA, ao analisar o modelo institucional de NORTH, consegue resumi-lo da seguinte forma: O ambiente econômico e social dos agentes é permeado por incerteza.• A principal conseqüência dessa incerteza são os custos de transação. Estes podem ser divididos em problemas de measurement e enforcement.• Para reduzirem os custos de transação e coordenar as atividades humanas, as sociedades desenvolvem instituições. Estas são um contínuo de regras com dois extremos: formais e informais.• O conjunto dessas regras pode ser encontrado na matriz institucional das sociedades. A dinâmica dessa matriz será sempre path dependent.• A partir dessa matriz, definemse os estímulos para o surgimento de organizações que podem ser econômicas, sociais e políticas.• Estas interagem entre si, com os recursos econômicos – que junto com a tecnologia empregada definem os transformation costs tradicionais da teoria econômica – e com a própria matriz institucional – que define os transaction costs – e são, portanto, responsáveis pela evolução institucional e pelo desempenho econômico das sociedades ao longo do tempo282. Sem dúvida o modelo de NORTH procura demonstrar que as instituições determinam melhor desempenho das economias: a existência de instituições produtivas e informação sobre as características resultantes do desenvolvimento destas instituições fornecem um grande incentivo para mudar economias, especialmente aquelas que possuem um desenvolvimento fraco283. O autor não chega a fornecer um conceito de desenvolvimento completo, apresentando apenas as características ou elementos que devem ser contidos, ou considerados, em tal conceito. Ademais, conforme aponta SALOMÃO FILHO284, a teoria de NORTH busca uma explicação unitária no espaço (sugestão que Amartya Sen não partilha, conforme será visto adiante). Vale explicar que, apesar de o próprio autor justificar a impossibilidade de generalização - ao ponderar que ambientes institucionais diferentes dão respostas distintas ao mesmo estímulo - ele entende que seu modelo fornece diversas pistas que indicam que as limitações formais e os custos de negociação inerentes ao 281 NORTH, 2001, p. 17. GALA, Paulo. A teoria institucional de Douglass North. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 23, n˚. 2. abril-junho/2003, p. 103. 283 NORTH, 2001, p. 176. 284 SALOMÃO FILHO, 2002, p. 31 282 103 processo político são características relacionadas à matriz institucional das economias285. Aparentemente, a doutrina de NORTH, ao privilegiar o estabelecimento de instituições como forma de modificação e determinação de ambientes econômicos (i.e., distorcidos e/ou marcados por custos de transação), oferece alternativa factível e adequada para melhor regulação e análise, por exemplo, dos cartéis de exportação, objeto do presente estudo. Considerando-se, com base na doutrina de NORTH, que a sociedade pode desenvolver instituições apropriadas, com graus adequados de eficiência, de modo a permitir transações, mostra-se clara a possibilidade de se estabelecer regulação adequada ao ambiente concorrencial, adaptando-se a situação atual a um melhor atendimento do desenvolvimento econômico e social, muito embora não esteja sedimentada a idéia específica do que seria esse desenvolvimento para o autor. Em que pese NORTH não chegar a fornecer realmente um conceito único de desenvolvimento, exemplos de marcos institucionais de países desenvolvidos são apresentados e o autor conclui que instituições fortes, sólidas e confiáveis seriam o caminho para o desenvolvimento. 3.2.2 O Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen Amartya Sen, renomado economista indiano e Prêmio Nobel de Economia de 1998, identifica o conceito de desenvolvimento com a idéia de liberdade. Conforme sua definição: O desenvolvimento é um processo, um processo de expansão das liberdades reais. O conceito de liberdade passa a ser tanto instrumental quanto finalístico. A liberdade é tanto um meio de garantias quanto é um fim em si mesmo, através da fruição dessas outras liberdades.286 O autor defende a idéia de que é relevante a análise de privação de capacidades, que vá além das questões de pobreza (relacionada à renda), pois 285 NORTH, 2001, p. 176. Na prática, seria interessante observar essas teorias aplicadas ao caso específico do projeto de lei n˚. 3937/2004 (apensado o projeto n˚. 5877/2005) em trâmite que alterará a lei antitruste brasileira, ou até mesmo à criação de regras comuns sobre o tratamento que deveria ser dado aos cartéis de exportação, tema central do presente estudo. 286 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 297. 104 assim seria possível entender melhor a pobreza dentro de um contexto de liberdades humanas.287. É interessante essa mudança sugerida, uma vez que dá uma visão diferente do conceito, inclusive quando de sua aplicação nas sociedades consideradas desenvolvidas. Esse critério das capacidades avalia, portanto, de forma mais abrangente a questão das desigualdades. Ressalte-se que tais desigualdades não são puramente econômicas, mas também sociais. Dessa maneira, SEN explica que o Estado e a sociedade têm papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas288. Essa mudança de abordagem, preconizada por SEM, ressalta que a desigualdade econômica não deve levar em conta apenas o espaço da renda, pois existem desigualdades em outros espaços. Assim, consideram-se outras variáveis, tais como o bem-estar, a liberdade, e outros aspectos da qualidade de vida289. SEN indica que a importância dada aos mercados no aspecto econômico acabou se tornando uma “superstição”290. Assim, o autor defende a necessidade de revisão já que as análises que se concentram sobre os resultados no mercado não adentram na importância fundamental da própria liberdade. A liberdade essencial ao desenvolvimento é classificada por SEN em duas categorias: liberdades reais e liberdades instrumentais. As primeiras subdividem-se em liberdade econômica, liberdade política e liberdade social, enquanto as últimas (importantes para a fruição das primeiras), relacionam-se com direito de acesso ao mercado, oportunidades sociais, transparência e garantias mínimas de seguridade social, contra a intolerância, a exclusão e o preconceito. De acordo com SEN, o desenvolvimento humano, ao criar oportunidades sociais, contribui para a expansão das capacidades humanas e também para qualidade de vida dos indivíduos. Isto exerce uma influência sobre as habilidades, influenciando o processo de crescimento econômico291. 287 SEN, 2000, p. 34-35. SEN, 2000, p. 71. 289 SEN, 2000, p. 116 – 131. Assim, de acordo com o Sen, por exemplo, se um indivíduo de renda alta não tem oportunidade de participar politicamente em sua comunidade, apesar de não ser considerado pobre na acepção puramente econômica, seria pobre no sentido de preterir uma liberdade importante, 290 SEN, 2000, p. 135-136. 291 SEN, 2000, p. 171. 288 105 Nesse contexto, ao mesmo tempo o autor identifica validade econômica a valores sociais e jurídicos que são hoje bastante respeitados, tal como a questão dos direitos humanos, da tolerância, assim como do respeito às minorias292. Na abordagem do desenvolvimento como liberdade, também defende-se a idéia de se usar a razão para identificar e promover sociedades melhores, pois essa teoria acredita na possibilidade da escolha social racional numa base informacional mais ampla293. Contudo, para isso ser possível de fato deveria existir uma base de informação que possibilite essa “escolha social racional”. A obra de SEN procura defender também que a eficácia da ética capitalista é limitada quando emergem questões de desigualdade econômica, proteção ambiental e quando se denota a necessidade de diferentes meios de cooperação cuja atuação se dê externamente ao mercado294. Conforme explica MUNHOZ, a teoria de SEN não concorda com a noção de que existe um modelo infalível de desenvolvimento, ou seja, não seria possível adotar instituições, instrumentos e ações de uma sociedade para outra, sem considerar todas as diferenças inerentes entre elas (v.g., modelo propugnado pelo Consenso de Washington)295. As principais críticas feitas a esta teoria referem-se à dúvida quanto a forma de implementação de seus conceitos na vida prática, tendo-se em vista, principalmente, que grande parte das economias e governos enfrentam a necessidade de administração de recursos escassos, o que dificulta a colocação de suas idéias. No contexto do presente estudo, é importante observar que SEN também acredita que as instituições são importantes para solucionar os problemas. Ou seja, o autor reconhece a importância de compatibilizar os mecanismos de mercado aos 292 BARRAL, Welber. O. Direito e desenvolvimento: um modelo de análise. In: Welber Barral. (Org.). Direito e desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005, p. 39-40. 293 SEN, 2000, p. 286. 294 SEN, 2000, p. 299. 295 Sobre essa questão Munhoz explica que “apesar de hoje bastante criticado, até alguns anos atrás esse Consenso era tido como receita certa de sucesso, ou melhor, de desenvolvimento, para qualquer país que se dispusesse, ou fosse praticamente obrigado, a segui-la. Pelo contrário, é necessário, segundo Sen, criar modelos individualizados, respeitando as características e particularidades de cada sociedade.” MUNHOZ, 2006, p. 93. 106 demais valores, avaliando-se as ferramentas institucionais que estão disponíveis e que ultrapassam os limites dos mecanismos puros de mercado296. A necessidade de se fazer opções para a administração de recursos traz dificuldades, as quais não são enfrentadas diretamente pelo autor. Assim, apesar de tratar-se de teoria extremamente cativante, o problema da implementação de seus preceitos envolve muitas variáveis que são difíceis de serem administradas. Portanto, na prática, para tornar possível o processo de desenvolvimento preconizado por SEN, seria necessário primeiramente ter uma clareza dos institutos ou ferramentas que precisam ser utilizados, o que é especialmente relevante aos países menos desenvolvidos que também carecem de outros recursos necessários para a promoção do desenvolvimento. 3.2.3 Ponderações sobre as teorias de North e Sen no contexto da defesa da concorrência Em síntese, acredita-se que para o presente estudo, as teorias de NORTH e de SEN são complementares para ajudar a encontrar respostas que indiquem a melhor forma de mitigação dos problemas relacionados à concorrência em um contexto internacional, onde se incluiria a regulação dos cartéis de exportação. Para o presente estudo as duas teorias, de NORTH e SEN, são relevantes. Vale esclarecer que isto não quer dizer que as outras teorias apresentadas ao longo deste capítulo não sejam aplicadas, mas sim que estas duas têm se sobressaído nos debates econômicos, pois ambas abordam a diversidade de aspectos que fazem parte do processo de desenvolvimento. Assim, a nova economia institucional de NORTH e a noção de desenvolvimento como liberdade de SEN embasam o conceito de desenvolvimento adotado por este trabalho. Ou seja, as instituições desempenham um papel importante, e podem ser um meio eficiente de promover o desenvolvimento. Ao mesmo tempo o desenvolvimento excede a noção de crescimento econômico, e passa a ser visto como um processo de expansão das liberdades formais e substanciais dos indivíduos. 296 SEN, 2000, p. 309. 107 Certamente esse modelo de desenvolvimento não é simples de ser implementado, uma vez que possui diversas variáveis, mas não se pode olvidar também que o processo de desenvolvimento é um processo abrangente. Como as principais organizações internacionais estão voltadas para a promoção do desenvolvimento, a aplicação de um modelo de desenvolvimento mais abrangente parece ser o modelo ideal para a proposta de fortalecimento das políticas e leis de defesa da concorrência. Portanto, considera-se que ambas as teorias são validas, uma vez que não há dúvidas de que processos de desenvolvimento dependem de instituições e valores297. 3.3 Regulação, concorrência e desenvolvimento Existe uma compreensão de que a competição nos mercados gera, em regra, eficiências e aprimoramentos nos processos tecnológicos, implicando, por sua vez, importantes ganhos de produtividade. Estes elementos seriam importantes, colaborando de forma relevante com o desenvolvimento e com o bem-estar do consumidor. Conforme explicado no item 3.2.1 deste capítulo, sob a perspectiva principalmente de NORTH, revela-se essencial a presença de instituições para viabilizar um ambiente concorrencial saudável, com a colaboração de mecanismos de regulação. Nesse sentido, é importante apontar que já existem estudos, bastante elucidativos, inclusive no Brasil, que caminham nesse mesmo sentido no que se refere à defesa da concorrência. Há estudos que apontam a importância da regulação do Estado à defesa da concorrência, ao mesmo tempo em que defendem também a possibilidade de sua utilização para mitigar as falhas de mercado – e somente quando a intervenção 297 Salomão Filho ao analisar essas teorias aponta que a grande pergunta que resta, não respondida por North e Sen é em que sentido devem apontar essas instituições e valores. Veja-se nesse sentido: SALOMÃO FILHO, 2002, p. 31 108 estatal possa gerar um melhor resultado se comparado ao cenário sem qualquer intervenção298. Nesse contexto, conforme assevera PRADO: Em mercados com externalidades, a concorrência isoladamente não é capaz de produzir os resultados esperados, ou seja, há falhas de mercado que só podem ser resolvidas com regulação. Portanto, mesmo considerando-se que o livre mercado leva ao resultado de bem-estar econômico previsto nos modelos neoclássicos, há situações em que, dada a existência de externalidades, a atuação do Estado se justificava299. Os mecanismos de regulação e a atuação estatal devem procurar atuar de forma a garantir a existência e manutenção de uma concorrência saudável, e nesse sentido, devem ser verificados os critérios importantes para o atendimento de seus objetivos. Vale esclarecer que a ação regulatória do Estado pode ter muitos significados, com diferentes perspectivas teóricas. Entretanto, a regulação no presente estudo está sendo abordada em um sentido mais amplo do que aquele da economia neoclássica ou do adotado tradicionalmente no direito econômico (i.e., para regular serviços públicos, criação de agencias reguladoras etc.)300. O Estado brasileiro, por muito tempo, aderiu a uma política de intervenção nas atividades econômicas privadas, assim como muitos outros países em desenvolvimento. Com isso, a economia popular teve uma proteção exacerbada, por intermédio, por exemplo, da utilização das técnicas de controle de preços e substituição de importações. Ou seja, o Estado centralizava a maior parte das 298 BAKER, Bill; TRÈMOLET, Sophie. Public Policy for the private sector – regulating quality. The World Bank Group Private Sector and Infra-structure Network, Note Number 221, October 2000, p. 2. No mesmo sentido, ver Gaban, Eduardo Molan. Regulação Econômica e Assimetria de Informação. Revista do IBRAC, Vol. 5, n. 5. São Paulo: Ed. Singular, 2002, p. 107-108. 299 PRADO; Luiz Carlos Delorme. Desenvolvimento econômico, regulação econômica e defesa da concorrência - reflexões sobre as novas formas de intervenção econômica em uma política de desenvolvimento. 32º Encontro Anual da Anpocs, 2008, p. 12. 300 A concepção adotada para o termo regulação proposta nesse trabalho é a mesma seguida por Piore e Sabel: “The term `regulation` is borrowed from French ´regulation`. But – as will become apparent in the text – the concepts of historical change and economic crisis with which we associate it differ from those concepts in the French theory. More precise English translation of régulation are ´balancing mechanism` and `equilibration`. […] Our usage, furthermore, should not be confused with the everyday use of `regulation` as shorthand for `government intervention in private markets`. Rather, we are using the word in its most extended sense: in some economic systems the government might play a critical role for in regulating markets, yet the system as a whole would be self-regulating”. PIORE, Michael J.; SABEL, Charles F. The second industrial divide: possibilities for prosperity. New York: Basic Books, 1984, p. 4. 109 atividades econômicas e controlava as principais variáveis concorrenciais da economia. Segundo SALOMÃO FILHO, nunca houve, por exemplo, uma tentativa de formulação de uma teoria geral da regulação, apesar das evidências apontarem que a teoria da regulação, quando bem aplicada, pode contribuir positivamente para a atividade do Estado. Neste sentido, o Estado passaria a agir como organizador das relações sociais e econômicas reconhecendo ser insuficiente apenas o passivo exercício de um poder de polícia sobre os mercados301. No meio econômico, o conceito de regulação envolve dois fenômenos simultaneamente: a redução da intervenção direta do Estado na economia; e o crescimento do movimento de concentração econômica302. Também existem escolas clássicas sobre regulação que tradicionalmente procuram estudar o funcionamento do Estado na economia, por meio de uma análise crítica. Neste aspecto, as principais escolas são a Escola do Interesse Público e a Escola Neoclássica da Regulação. A Escola do Interesse Público defende que a justificativa para a regulação não tem relação com a preservação do mercado, mas sim com a busca do bem público. Com relação a definição de interesse público, SALOMÃO FILHO destaca: A definição de interesse público é multifacetada, ora política, ora econômica, não permitindo que a mesma seja colocada em termos precisos. Aliás a experiência prática põe em sérias dúvidas a existência de um conceito – verdadeiro e coerente – de interesse público para fins de intervenção do Estado na economia. Exatamente por essa dificuldade, a Escola do Interesse Público ganha importância através do desenvolvimento jurídico.303 No sistema tradicional do direito administrativo brasileiro existem duas formas de regulação: o controle das atividades dos agentes econômicos privados (exercido, e.g., nas hipóteses de concessão de serviços públicos) e o controle mediante o exercício do poder de polícia (em sua igualmente tradicional concepção). Entretanto essas duas formas de regulação apresentam algumas imperfeições. 301 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 14. Calixto Salomão Filho explica que historicamente sempre existiu uma dificuldade de controlar o comportamento dos monopólios tanto pelas vias regulatórias tradicionais quanto pelas vias de direito antitruste tradicionais. Assim também é importante atenuar a linha divisória entre regulação e antitruste. SALOMÃO FILHO, 2001, p. 15. 303 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 17. 302 110 De um lado a concepção liberal e passiva do poder de polícia não atende de forma suficiente às necessidades de sistemas econômicos com muitas imperfeições, e de outro, as concessões acreditam ser possível transformar os agentes privados em perseguidores dos interesses públicos. Contudo, isto não acontece, pois, conforme se observa no Brasil, por exemplo, o controle dos agentes privados, por meio do regime jurídico de direito público, ainda é deficiente304. A principal crítica feita ao modelo da Escola do Interesse Público é a falta de sistematização que decorre da origem histórica divergente das várias formas de regulação. Deste modo, a regulação ainda não encontrou um ponto de equilíbrio, pecando pelo seu excesso ou falta. Assim, ou ocorre a prestação direta das atividades pelo Estado em áreas que poderiam ser passadas aos particulares, ou há apenas a concessão do serviço público de modo equivocado305. A Escola Econômica da Regulação possui uma teoria diferente da Escola do Interesse Público. Aquela Escola nega qualquer fundamento de interesse público na regulação e afirma o objetivo de substituição (ou correção) do mercado por meio da regulação, sendo então a regulação um mero substituto do mercado306. O regulador deveria ter a capacidade de reproduzir um mercado “em laboratório”, nos gráficos de oferta e demanda, pois para essa teoria a regulação só é necessária dada a inexistência de solução de mercado mais eficiente307. Portanto, a aplicação do direito regulatório estaria direcionada à correção dos efeitos do mercado. Com base nessa Escola, formou-se uma casuística sobre a regulação. Segundo SALOMÃO FILHO: O ponto comum e sistematizador dessa casuística, no entanto, existe e está exatamente na crença na possibilidade de reprodução das condições de mercado através da agência regulatória naqueles setores em que essas condições não podem ser produzidas naturalmente.308 Segundo SALOMÃO FILHO, as duas escolas são limitadas por apenas priorizarem um dos aspectos relativos à regulação. Tratam-se, portanto, de teorias 304 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 20. SALOMÃO FILHO, 2001, p. 21. 306 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 21. 307 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 22. 308 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 23. 305 111 incompletas. Nesse sentido é necessário haver a convivência dos aspectos sociais e econômicos na regulação309. STIGLITZ entende que a regulação econômica se prestaria a tão somente atuar na medida em que não é possível haver um regime de livre concorrência em razão da presença de falhas de mercado310. Assim, não sendo possível aplicar-se o regime de livre concorrência em razão de monopólios naturais, excessiva presença de externalidades negativas, e/ou intensas assimetrias de informação, seria necessária a intervenção estatal, via regulação econômica, para garantir a geração de eficiência econômica e, logo, bem-estar social311. A função reguladora acentuou-se em razão do papel desempenhado pelo Estado face à ordem econômica. Assim, enquanto procura-se uma diminuição da intervenção direta, ao mesmo tempo é necessária que haja uma valorização e um incentivo à atividade econômica desempenhada pelos particulares. O reforço do papel do Estado na distribuição de incentivos aos agentes econômicos privados foi ponderado por DUPAS, para quem o grande desafio do Estado na tarefa da assimilar as mudanças da economia do futuro seria assumir papel indutor-normativo-regulador, em contraste com o anterior papel intervencionista e paternal (remontando ao welfare-state) desempenhado ao longo da história312. Nesse sentido, a utilização da regulação econômica pode ser válida no tocante ao ajuste dos efeitos de práticas anticoncorrenciais no âmbito do comércio internacional, sobretudo quando tais condutas não são alcançadas pelas legislações antitruste nacionais em razão de isenções (conforme será visto na Parte II). 3.3.1 Observações com base na Constituição Federal de 1988 A regulação e a concorrência acabam de certo modo caminhando juntas e, no Brasil, devem atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 309 SALOMÃO FILHO, 2001, p. 27. STIGLITZ, Joseph E. Promoting competition and regulation policy: with examples from network industries. The World Bank, Speech delivered on the Research Center for Regulation and Competition, Chinese Academy of Sciences, Beijing, China, July 25, 1999. No mesmo sentido: GABAN, 2002, p.102. 311 GABAN, 2002, p. 107-108. 312 DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social – pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999, p. 87. Cf. GABAN, 2002, p.102. 310 112 1988 (CF/88). Sobre esse aspecto, cabem ser ressaltadas importantes observações de SALOMÃO FILHO: [...] a convivência necessária entre órgãos reguladores e órgãos de defesa da concorrência nos processos em que ambos interagem impõe a aplicação de princípios de tutela da legalidade do processo administrativo. Em especial, desponta a necessidade de uma garantia do contraditório bastante ampliada, compatível com o caráter institucional do objeto de tutela e com a conseqüente amplitude dos 313 interesses envolvidos. A idéia de regulação surge, assim, para privilegiar também importantes valores e princípios da Ordem Econômica descritos na CF/88, dentre os quais se inclui a livre concorrência314. Este, por sua vez, revela-se fundamental para a promoção do desenvolvimento de mercados e produtos, equilibrando-se com outros princípios importantes, como a liberdade de iniciativa. Observa-se que no Brasil o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência abriga a atuação estatal no sentido de disciplinar comportamentos que resultariam em prejuízos à concorrência e, ao mesmo tempo, a atuação dos agentes econômicos. Nesse âmbito, cabe ser mencionada relevante observação de MUNHOZ: [...] a concorrência desempenha um papel importante na promoção do desenvolvimento, pois valoriza uma série de liberdades – como a de iniciativa e a de escolha – importantes não apenas por si mesmas, mas também pelo papel que podem desempenhar na promoção de outras liberdades integrantes do processo de desenvolvimento. [...] Em outras palavras, na abordagem do desenvolvimento como liberdade, a concorrência tem importância independentemente da geração ou não de efeitos econômicos, justamente por garantir liberdades importantes para o processo de desenvolvimento. 315 (destaques no original). As liberdades importantes para o processo de desenvolvimento mencionadas por MUNHOZ podem ser encontradas no artigo 170 da CF/88, o qual privilegia especificamente princípios norteadores da ordem econômica brasileira. 313 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 186. 314 “O interesse tutelado pelo inc. I do art. 20 da Lei 8.884/94, já está expresso de forma bastante clara: a livre concorrência ou a livre iniciativa. Ou seja, aos agentes é assegurada liberdade de desenvolvimento de uma atividade econômica, e, para garantir a manutenção do sistema e das regras do jogo, colocam-se limites à atuação desses mesmos agentes, disciplinando seu comportamento no mercado. A disciplina da concorrência, então, coloca-se como correlata à livre iniciativa.” FORGIONI, 1998. p. 230. 315 MUNHOZ, 2006, p. 247. 113 Os fundamentos maiores – valorização do trabalho humano e livre iniciativa – embasam uma série de princípios que se relacionam com a livre concorrência e com o desenvolvimento. Veja-se também que, o princípio da livre concorrência “limita a expressão absoluta do princípio da livre iniciativa por parte de um agente econômico ou um grupo de agentes econômicos”316. Logo, a CF/88, ao privilegiar os princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência317, especiais para a presente análise, garante o livre exercício da atividade econômica, essencial para o desenvolvimento de novos mercados e produtos e para o benefício da população de maneira geral, e também possibilita o equilíbrio dessas iniciativas por meio da livre concorrência. Conforme estabelece a CF/88, art. 173, § 4º a livre concorrência constitui manifestação da liberdade de iniciativa, mas o abuso de poder econômico que visar à dominação dos mercados ou à eliminação da concorrência deve ser reprimido. Assim, autoriza-se, por meio da CF/88, a atuação de instituições destinadas a equilibrar eventuais distorções entre esses princípios, de forma a garanti-los. 3.4 A teoria do comércio estratégico, o protecionismo liberal e o princípio da intervenção assimétrica Conforme explicado anteriormente, o estabelecimento e o apoio à abertura comercial em âmbito internacional foi a finalidade principal da criação do GATT e posteriormente da OMC. Entretanto, é fato que o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema de livre comércio internacional não são tarefas simples. Embora o sistema multilateral de comércio tenha notadamente impactado o comércio internacional, ainda permanecem dificuldades relacionadas aos outros temas que estão ligados indiretamente ao comércio e à ordem econômica mundial. Nesse ponto, a OMC ainda terá que avaliar como serão endereçados os problemas 316 GABAN; DOMINGUES, 2009, p. 80. Conforme estabelece a CF, art. 173,§ 4º a livre concorrência: constitui manifestação da liberdade de iniciativa, mas o abuso de poder econômico que visar à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência deve ser reprimido. 317 114 gerados pelas externalidades negativas como, por exemplo, as preocupações com o meio ambiente, cláusula social etc. Da mesma forma, outro aspecto que merece maior atenção da OMC é a manutenção da estabilidade da concorrência internacional em razão dos compromissos assumidos pela redução das barreiras comerciais. Conforme explica BECKER, princípios do GATT e outras disposições da OMC devem lidar com as tarifas e barreiras comerciais não-tarifárias postas em prática pelos Estados para estruturar ou até mesmo impedir o livre fluxo de bens e serviços para além de suas fronteiras318. Com a abertura comercial e seus efeitos (nem sempre positivos) há um movimento natural de protecionismo. Ainda, de acordo com BECKER, o incentivo dos governos utilizarem esses instrumentos protecionistas é explicado pela teoria do comércio estratégico – Strategic Trade Theory (STT) – que adota a premissa de que a intervenção governamental no livre comércio pode proporcionar oportunidades aos setores industriais selecionados para expandir mercados e, conseqüentemente, aumentar a renda nacional319. Na década de 1980 P. Krugman, juntamente com J. Culbertson e R. Kuttner320 divulgaram a teoria do comércio estratégico que, grosso modo, sustentou um tipo de “protecionismo seletivo”321. Essa teoria questiona os pressupostos da teoria liberal que baseia o comércio internacional e também o modelo de concorrência perfeita e a suposta inexistência de externalidades. Vale destacar que, baseada na premissa da concorrência imperfeita, a teoria do comércio estratégico defende que o livre comércio não é sempre a melhor política comercial. Os seus teóricos propuseram que as vantagens comparativas podem ser criadas arbitrariamente, assim como medidas protecionistas poderiam ser justificadas. Ou seja, essa teoria defende o pressuposto de que os governos 318 BECKER, Florian. The case of export cartel exemptions: between competition and protectionism. Journal of Competition Law and Economics, 2007, p. 98. 319 BECKER, 2007, p. 98. 320 Uma grande produção cientifica foi realizada no início da década de 80 sobre a economia dos EUA, perda de empregos, problemas com a competitividade da indústria, salário,, crescendo a desigualdade e a fraqueza das políticas comerciais dos EUA. Veja-se nesse sentido Kuttner 1982, Culbertson 1985, entre outros. LOVETT, William Anthony; ECKES, Alfred E. Jr; BRINKMAN, Richard L. US Trade Policy: History, Theory, and the WTO. Second Edition, M.E. Sharpe: 2004, p. 182. 321 Nesse sentido veja-se: GUIMARÃES, Maria Helena. Economia política do comércio internacional: teorias e ilustrações. Portugal, São João do Estoril: Principia, 2005, p. 60. 115 deveriam intervir mais e desenvolver políticas industriais em determinados setores e até mesmo adotar políticas protecionistas322. Um exemplo nacional que poderia ser dado de aplicação prática dessa teoria (ainda que hipoteticamente) foi a decisão do governo brasileiro de subsidiar a fabricante de aeronaves Embraer e impulsionar seu desenvolvimento. Assim, a teoria do comércio estratégico, em tese, ajuda a explicar, por exemplo, a razão que levou o Brasil a decidir arriscar-se para se transformar em um dos melhores fabricantes de aeronaves no mundo. Veja-se que, nesse caso, houve uma escolha estratégica do governo brasileiro323. Vale destacar que essa idéia de “protecionismo liberal” está ligada também aos conceitos propostos por Robert Glipin (1987), quais sejam: i) protecionismo setorial, e ii) mercantilismo benigno. Conforme explica GUIMARÃES, o protecionismo setorial permite a proteção de setores específicos em situações conjunturais desfavoráveis, i.e., elevadas taxas de desemprego, enquanto o mercantilismo benigno seria decorrente do primeiro conceito (protecionismo setorial), pois fundamenta-se “em considerações de equidade” e tem “um pendor social”324. Ou seja, políticas protecionistas ou de política industrial poderiam ser justificadas em certas circunstâncias, tal como, por exemplo, a decisão dos EUA para a proteção tarifária do setor de aço em março de 2002325. 322 GUIMARÃES, 2005, p. 61. Sobre essa questão veja-se também: CELLI JUNIOR, Umberto. Brasil (Embraer) x Canadá (Bombardier) na OMC. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. Disponível em: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=21&id=223>. Acesso em: 10 jan. 2010. 324 GUIMARÃES, 2005, p. 61. 325 “Os EUA, desde 1920, dominavam o mercado mundial de aço, com produção que chegava a cerca de 40% da produção mundial. Nas últimas décadas, no entanto, a situação mudara drasticamente, não só pelo aumento da produção de aço e ferro mundial como também pelo surgimento de medidas de protecionismo (dumping e subsídios) aplicadas por outros países produtores. Em 2001, por exemplo, as importações de aço excediam as exportações em mais de 23 milhões de toneladas e mais de 34 companhias norte-americanas de aço haviam falido, vítimas das importações consideradas desleais. Diante destas circunstâncias, em 2002 o governo americano anunciou o Programa do Aço 201 (201 Steel Program) que visava proteger e reestruturar a indústria siderúrgica do país ao estabelecer quotas e aumento da alíquota de importação extra-quota de slab (placa semimanufaturada de aço) durante três anos, excluindo produto proveniente do Canadá, México, Israel e Jordânia, países com os quais os EUA mantém tratado de livre comércio. O programa incluía ainda a diminuição de 8 a 30% da alíquota de importação de 13 produtos de aço acabado durante três anos. Como conseqüência houve um aumento no preço do aço e seus derivados no mercado norteamericano e a incapacidade da indústria de aço doméstica atender a demanda dos EUA. Os efeitos no Brasil deste programa não foram tão sentidos como no Japão e na Europa, por exemplo, que 323 116 KRUGMAN explica que a proteção só deveria ser utilizada em caráter de exceção, com limite temporal e âmbito limitado, já que se trata de política ineficiente. Aliás, KRUGMAN faz questão de frisar que, ao contrário de uma economia de mercado ideal, uma verdadeira economia de mercado é imperfeita, mas é um sistema que funciona melhor que os outros já experimentados, ou seja, a ênfase nas imperfeições do mercado não tem a intenção de condenar o sistema326. Os autores dessa corrente são favoráveis a liberalização multilateral e regional do comércio e a cooperação entre os países para a redução das barreiras artificiais do comércio. Entretanto, ao aceitar a proteção em determinadas condições essa teoria é bastante controversa e recebe muitas críticas tanto dos protecionistas de fato (que não concordam com um protecionismo em regime de “exceção”) como dos liberais (que entendem que a proteção de forma “seletiva” desvirtua o princípio do liberalismo comercial)327. De todo modo, como a economia mundial encontra-se altamente globalizada, tal como pode ser observado na recente crise mundial que afetou diversos países ao mesmo tempo, entende-se que as teorias protecionistas deveriam ser menos utilizadas pelos países (especialmente aqueles que buscam os benefícios da abertura comercial ou a inserção internacional). Ainda, dentro do tema proposto, que aborda a conduta dos cartéis de exportação, percebe-se que a ausência de regulação ou a permissibilidade dessa conduta sem maiores estudos pode servir como uma estratégia comercial, justamente pelo fato do sistema de economia de mercado ser imperfeito. dependiam mais deste fornecimento. O Programa foi suspenso pelo presidente George Bush em dezembro de 2003. Veja-se nesse sentido: HADDAD, E. A.; MORAIS, A. G., OLIVEIRA, S. J. M., TEIXEIRA, W. M.. Medidas protecionistas na siderurgia norte-americana: impactos setoriais e regionais. XXXII Encontro Nacional de Economia: ANPEC, 2004. 326 KRUGMAN, Paul. Vendendo prosperidade – sensatez e insensatez econômica na era do conformismo. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 258-259. 327 Em adição, KRUGMAN critica aqueles que ele considera como falsos teóricos do comércio estratégico, tais como Lester Thurow do MIT e Robert Reich da John F. Kennedy School of Government de Harvard. De acordo com Rodrigues “A questão básica refere-se à confusão entre os conceitos de produtividade e competitividade. Para Krugman, os “comerciantes estratégicos” cometem um erro grosseiro ao atribuir à competitividade internacional de um páis – e não como seria correto à produtividade – um papel primordial no aumento do nível de vida da população. (1998, p. 150). 117 Não pode deixar de ser mencionado também no presente estudo o princípio da intervenção assimétrica328. Basicamente, tal princípio visa garantir o correto funcionamento do mercado e a paridade das condições entre os agentes econômicos329. Verifica-se que não há, de maneira geral, paridade entre as condições de acesso e utilização dos benefícios do ambiente econômico entre todos os agentes, o que, inegavelmente, causa desequilíbrios regulatórios e concorrenciais. As condutas anticoncorrenciais surgem muitas vezes exatamente em decorrência dessas falhas dos mercados, as vezes caracterizadas por monopólios e oligopólios. Sobre os oligopólios NUSDEO explica que: É fácil compreender que num oligopólio há uma grande tendência no sentido de se unirem os operadores, os quais passarão então a atuar como na unidade, levando a uma situação de monopólio. Porém, numa fase de crise, os oligopolistas poderão tender para o regime anterior, isto é, exercer uma concorrência imperfeita, procurando, cada um deles, obter uma fatia maior de mercado. O oligopólio é, assim, um regime extremamente volátil, pois com base num conluio entre os oligopolistas, chamado cartel, pode transformar-se num monopólio. Por outro lado, não chegando eles a um acordo ou rompendo-o, quando já existente, passam a atuar de maneira muito próxima à da concorrência imperfeita, desencadeando guerras comerciais para a conquista de mercados.330 Assim, é muito importante a utilização de mecanismos de regulação, ou aplicação de regras de concorrência331, para o atendimento das necessidades do equilíbrio dos mercados, possibilitando-se, conseqüentemente, o alcance do 328 Sobre a intervenção assimétrica veja-se: CARLSON, John A.; LO, Melody. Selective asymmetric intervention and sterilization. Applied Financial Economics, 1466-4305, Volume 14, Issue 11, 2004, p. 823-833. Veja-se também: GRINOLS, Earl L., The Intervention Principle. Review of International Economics, Vol. 14, No. 2, May 2006, p. 226-247. 329 Sobre a importância da paridade de condições entre agentes econômicos nos mercados e a relação com mecanismos legais, muitas vezes referida na doutrina internacional nos termos “level playing field” (“nivelar o campo de jogo”), cabe mencionar interessantes comentários feitos pelo Ministério das Relações Exteriores da Dinamarca sobre a recente e primeira lei anti-monopólio instituída pela China em agosto de 2008. A notícia trata do importante papel das legislações de concorrência em tratar de distorções de mercado resultantes do abuso do poder administrativo na China. A notícia é intitulada “First Competition Law Should Help Create a Level Playing Field”. Disponível em: <http://www.dtcchina.um.dk/en/menu/InfoAboutChina/Marketopportunities/News/ Generalnews/Archives2007/FirstCompetitionLawShouldHelpCreateALevelPlayingField.htm>. Acesso em: 12 nov. 09. 330 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3.ed. São Paulo: RT, 2001, p. 267. 331 Conforme explica Nusdeo: “os problemas concorrências impedem a chamada auto-regulação dos mercados e dão origem a um grande número de leis, particularmente no campo da chamada legislação de tutela da concorrência ou antitruste.” NUSDEO, 2001, p. 280. 118 desenvolvimento em um contexto mais amplo. Dessa forma, é inegável a importante relação entre os mecanismos de regulação e o desenvolvimento dos mercados como um todo, que podem trazer importantes benefícios ao bem estar social332 e aos consumidores. Sem dúvida, considerando o tema proposto, não podem ser ignoradas as diferenças existentes entre os PEDs e os países desenvolvidos na aplicação de suas regras de concorrência, especialmente considerando-se que muitos países ainda carecem de instituições e até mesmo de conhecimentos mínimos sobre a aplicação de regras e políticas concorrências. Ao mesmo tempo, teorias como a do comércio estratégico podem servir para justificar medidas que alteram o equilíbrio concorrencial no mercado e são utilizadas muitas vezes por países que já possuem conhecimento e sofisticação na aplicação de regras que regulam o comércio internacional, tais como as medidas de defesa comercial (i.e., não apenas regras concorrenciais). No contexto de desenvolvimento mais amplo abordado neste estudo, vale mencionar que já existem regras estabelecidas em âmbito multilateral que procuram fornecer base para um tratamento diferenciado às economias mais sensíveis, justamente para permitir o desenvolvimento dentro de um mercado global em que se busca a eliminação de qualquer tipo de barreira comercial. Considerando a proposta de regulação da concorrência de forma mais abrangente dentro da OMC (o que também será defendido adiante no presente estudo – especialmente no Capitulo 06), passa-se a análise da aplicação dos instrumentos existentes no âmbito da OMC que procuram facilitar o desenvolvimento respeitando as desigualdades existentes. 332 Sobre o bem-estar SENGUPTA explica que “The concept of well-being in this context extends well beyond the conventional notions of economic growth to include the expansion of opportunities and capabilities to enjoy those opportunities, captured in the indicators of social and human development, which in turn expand their substantive freedoms.” SENGUPTA, Arjun. On the theory and practice of the right to development. In: SENGUPTA, Arjun; NEGI, Archna, BASU, Moushumi. Reflections on the right to development. Centre for Development and Human rights, New Delhi: Sage Publications Inc., 2005, p. 68. Veja-se que essa compreensão coaduna-se com o conceito de desenvolvimento de Amartya Sen (Vide item 3.2.2). 119 3.5 A aplicação do Tratamento Especial e Diferenciado (TED) na OMC Ainda no contexto de apoiar o desenvolvimento, o conceito de “tratamento especial e diferenciado - TED” tem sido tratado na OMC no sentido de facilitar a integração dos países em desenvolvimento no sistema multilateral de comércio. Considerando a declaração ministerial de Doha, observa-se que a importância desse conceito tem sido reforçada pela garantia de “levar-se em consideração o princípio do tratamento especial e diferenciado”.333 Esse princípio é baseado em dois pilares centrais: (i) não reciprocidade; e (ii) aumento e acesso preferencial ao mercado334. O primeiro pilar tem sido substanciado na Parte IV - Trade and Development. Veja-se que o artigo XXXVI:8 isenta a reciprocidade de concessões tarifárias quando as partes contratantes desenvolvidas não esperam reciprocidade nos compromissos firmados nas negociações comerciais para reduzir ou remover barreiras ao comércio das partes contratantes menos desenvolvidas. Já o segundo pilar, relacionado ao acesso preferencial ao mercado, é assegurado pela cláusula de habilitação335 que cria uma base legal permanente para o tratamento preferencial de tarifas acordado pelo Sistema Geral de Preferências (SGP). A Cláusula de Habilitação também chamada de "Decisão sobre tratamento diferencial e mais favorável, reciprocidade e maior participação de países em desenvolvimento", foi adotada pelo GATT em 1979 com a finalidade de estimular os países desenvolvidos a dar tratamento diferencial e mais favorável aos PEDs. HOEKMAN e BRAGA explicam que os membros do GATT aprovaram dispositivos especiais para o SPG (temporários em 1971 e definitivos em 1979) com as Cláusulas de Habilitação (parte dos acordos da Rodada de Tóquio). Com isso, 333 Declaración Ministerial de Doha, par. 50: “Las negociaciones y los demás aspectos del Programa de Trabajo tendrán plenamente en cuenta el principio del trato especial y diferenciado para los países en desarrollo y los países menos adelantados consagrado en: la Parte IV del GATT de 1994; la Decisión de 28 de noviembre de 1979 sobre trato diferenciado y más favorable, reciprocidad y mayor participación de los países en desarrollo; la Decisión de la Ronda Uruguay relativa a las medidas en favor de los países menos adelantados, y todas las demás disposiciones pertinentes de la OMC”. 334 NOTTAGE, Hunter. Trade and competition in the WTO: pondering the applicability of special and differential treatment. Journal of International Economic Law, Oxford University Press, v. 6, n˚. 1, p. 23-47, 2003, p. 26. 335 Veja-se nesse sentido: GATT. Diferential and more favourable treatment reciprocity and fullers participation of developing countries. Decision of 28 November 1979 (L/4903). 120 criou-se um Comitê de Comércio e Desenvolvimento e a Cláusula de Habilitação passou a dar cobertura legal permanente para o SPG, incluindo regras de “graduação” - indicando que as políticas para TED não deveriam mais existir nos países beneficiários que atingissem certo nível de desenvolvimento econômico. No entanto, os critérios para isso não foram definidos claramente336. Observa-se que, nos acordos da OMC, são numerosas as regras de tratamento preferencial que podem ser encontradas337. No que concerne a possível aplicação do TED nas regras de concorrência, deve-se levar em consideração conforme têm se repetido no presente estudo - que um grande número de membros da OMC possui leis de concorrência novas, pouco desenvolvidas, ou simplesmente não as possuem.338 Os mercados dos países em desenvolvimento ainda são vítimas de grandes mercados concentrados, da intervenção estatal e até mesmo de grandes forças de lobby que desafiam a aplicação da lei de concorrência pelas jovens autoridades.339 Observa-se que, no mesmo sentido, a UNCTAD tem enfatizado que qualquer tipo de acordo relacionado a concorrência e comércio deve assegurar flexibilidade aos regimes de concorrência dos PEDs, considerando seus objetivos específicos de desenvolvimento340. Conforme foi tratado no capítulo 2, existe um working group on trade and competition policy – WGTCP, no âmbito da OMC. Dentro do WGTCP, a CE sugeriu a adoção de um acordo de política de concorrência focado em princípios centrais tais como: (i) transparência; (ii) não discriminação; e (iii) cartéis hard core. A CE defende que tais princípios seriam uma opção para permitir a flexibilidade e o progresso necessário341. 336 “[...] Critérios de elegibilidade e de graduação, bem como a cobertura do produto e dos tipos de preferências são determinados unilateralmente pelos países doadores.” HOEKMAN, Bernard; MARTIN, William J. e BRAGA Carlos A. Primo. Preference Erosion: The Terms of The Debate. World Bank, 2006. Disponível em: <http://siteresources.worldbank.org/INTRANETTRADE/ Resources/Preferences_Intro_Terms_of_the_Debate.pdf> Acesso em: 12 jun. 2010. 337 Veja-se nesse sentido: WTO. Implementation of special and differential treatment provisions in WTO agreements and decisions. WT/COMTD/W/77. Disponível em: <http://ctrc.sice.oas.org/TRC /WTO/WTOSpecialTreatment_e.asp>. Acesso em: 24 Jul. 2010. 338 No mesmo sentido veja-se KROL, 2007, p.173. 339 NOTTAGE, 2003, p.33. 340 Veja-se: UNCTAD/ITCD/TSB/6, September 1999. 341 Nesse sentido encontram-se os seguintes documentos produzidos no âmbito da OMC: WT/WGTCP/W/152 e WT/WGTCP/W140. 121 As propostas que surgiram ainda não são totalmente favoráveis à harmonização, o que deixa espaço para interpretações em âmbito nacional, mas pode abrir espaço à flexibilidade e à adaptação que é necessária para que cada país responda individualmente pelos desafios do desenvolvimento. KROL explica que a flexibilidade e a capacidade de adaptação podem ser conquistadas por meio de exceções e isenções342. Aparentemente, existe certa aceitação dessas isenções por parte dos PEDS, mas a questão que surge é se um sistema baseado em isenções e/ou exceções poderia beneficiar os esforços para o desenvolvimento. Essa questão é importante uma vez que o uso excessivo de isenções343 pode dificultar a efetividade das leis de concorrência e de sua aplicação, principalmente nos PEDs. Vale adicionar que essa limitação da eficiência na aplicação das leis de concorrência também pode ocasionar perdas de bem-estar global344. Claramente, para uma resposta mais segura, precisa-se analisar a atual situação das isenções, para que se possa ponderar se há eventuais benefícios ao desenvolvimento em se possibilitar a aplicação de isenções. Veja-se que KROL acredita que pesquisas nesse sentido são necessárias, uma vez que isenções setoriais podem conflitar com interesses da política de concorrência345. Em todos os debates multilaterais, especialmente no âmbito da OMC, têmse considerado que as regras de concorrência precisam ser avaliadas à luz do debate sobre globalização346. Isto quer dizer que, considera-se que as regras de 342 KROL, 2007, p.174. No mesmo sentido veja-se também: NOTTAGE, 2003, p.37. As isenções serão estudadas principalmente no Capítulo 05. 344 Veja-se nesse sentido: WT/WGTCP/M/15, para.30. 14 August, 2001. 345 KROL, 2007, p.175. No mesmo sentido, veja-se: NOTTAGE, 2003, p.41. 346 “Covering a wide range of distinct political, economic, and cultural trends, the term “globalization” has quickly become one of the most fashionable buzzwords of contemporary political and academic debate. In popular discourse, globalization often functions as little more than a synonym for one or more of the following phenomena: the pursuit of classical liberal (or “free market”) policies in the world economy (“economic liberalization”), the growing dominance of western (or even American) forms of political, economic, and cultural life (“westernization” or “Americanization”), the proliferation of new information technologies (the “Internet Revolution”), as well as the notion that humanity stands at the threshold of realizing one single unified community in which major sources of social conflict have vanished (“global integration”). Fortunately, recent social theory has formulated a more precise concept of globalization than those typically offered by pundits. Although sharp differences continue to separate participants in the ongoing debate, most contemporary social theorists endorse the view that globalization refers to fundamental changes in the spatial and temporal contours of social existence, according to which the significance of space or territory undergoes shifts in the face of a no less dramatic acceleration in the temporal structure of crucial forms of human activity. […] Theorists of 343 122 concorrência no âmbito internacional podem funcionar para atacar as práticas restritivas que emergem do movimento natural de globalização, uma vez que as obrigações assumidas em âmbito multilateral, relacionadas ao acesso ao mercado, podem agravar esses problemas347. Assim, a análise da concorrência sob o enfoque do desenvolvimento também deveria aprofundar estudos sobre as implicações ao bem-estar do consumidor, distribuição dos ganhos de eficiência entre os Estados e sociedades348, respeitando as diferenças entre todos os atores envolvidos no comércio internacional. 3.6 A concorrência como um bem público A teoria econômica define “bens públicos” como não rivais ou não exclusivos, no sentido de que são bens que podem ser usados por uma pessoa sem excluir outra. Ou seja, uma pessoa que possui o bem não exclui qualquer outra do seu consumo349. De acordo com o Banco Mundial, “bens públicos internacionais” são bens que podem reduzir a pobreza350. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) prefere a noção de “bens públicos globais”. Como bem globalization disagree about the precise sources of recent shifts in the spatial and temporal contours of human life. Nonetheless, they generally agree that alterations in humanity's experiences of space and time are working to undermine the importance of local and even national boundaries in many arenas of human endeavor. Since globalization contains far-reaching implications for virtually every facet of human life, it necessarily suggests the need to rethink key questions of normative political theory.” Veja-se: ZALTA, Edward N. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/> Acesso em 20 jun. 2010. 347 A título de complementação, cabe mencionar conferência realizada em Setembro de 2009 entre as autoridades de defesa da concorrência do Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC). Os quatro países comprometeram-se, por meio de um comunicado conjunto a avançar em termos de cooperação técnica entre os países. Conforme nota do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), “a Conferência dos BRICs permitiu uma aproximação dos quatro países num tema cada vez mais relevante para alicerçar as bases do desenvolvimento de uma economia moderna, que é a política de concorrência”. 348 KROL, 2007, p.177. 349 KAUL, Inge; MENDOZA. Ronald U. Advancing the Concept of Public Goods. p. 80. Disponível em: <http://www.undp.org/globalpublicgoods/ globalization/pdfs/KaulMendoza.pdf> Acesso em 20 jul. 2010. 350 DREXL, Josef. International Competition Policy after Cancun Placing a Singapore Issue on the WTO Development Agenda. World Competition, v. 27; n˚. 3, 2004, p. 437. 123 explicam KAUL e MENDOZA, a definição foi redefinida, pois antes considerava “todos os bens cujos benefícios se estendem a todos os países, pessoas e gerações” e passou a ser aqueles que “beneficiam mais de um país, uma pessoa ou uma geração”.351 Essa mudança de definição acabou, de certo modo, estendendo o escopo dos bens públicos globais, uma vez que mais bens podem ser qualificados dentro da definição acima. Cabe apontar que a delimitação do que seriam os bens públicos em comparação aos bens privados, assim como os bens globais do que seriam os bens nacionais, deve ser entendida de modo flexível. DREXL explica que bens privados podem ser transformados em bens públicos e vice versa, dependendo de uma política nacional, ou até mesmo da lei. E o mesmo pode ocorrer com relação aos bens públicos nacionais e globais, já que o processo de globalização por si modifica as estruturas e implica aumento de bens públicos globais352. Tradicionalmente os Estados têm feito a opção por serem os provedores dos bens públicos ou, alternativamente, transformam esses bens em bens privados por meio de privatização353. Trata-se de uma decisão puramente política tomada pelos governos em nível nacional. Entretanto, de acordo com a teoria dos bens públicos globais, entende-se que a teoria econômica dos bens públicos deveria ter uma dimensão internacional. Veja-se que, como uma regra, as legislações nacionais são as que decidem quando um bem é público ou privado, entretanto, em um mundo globalizado, esse tipo de decisão, inevitavelmente, tem efeitos transfronteiriços354. Sem dúvida, a privatização de bens públicos trás preocupações relacionadas ao desenvolvimento, uma vez que as pessoas mais pobres podem não ter meios para adquirir certos bens, ao mesmo tempo em que os PEDs e as economias mais frágeis também podem ter dificuldades em fornecer tais bens. De qualquer forma, a 351 KAUL; MENDOZA, p. 95. DREXL, 2004, p. 437. 353 DREXL, 2004, p. 437. 354 Nesse sentido, veja-se também: KROL, 2007, p. 178. 352 124 falta de fornecimento de bens públicos passou a ser uma das principais críticas à globalização355. No que diz respeito às regras da OMC, os bens públicos estão protegidos nos artigos XXIII e XXV, do GATT 1947. Ainda de acordo com o PNUD, o sistema multilateral de comércio é um bem público global em sua forma, mas não em sua essência356. Esta análise é defendida pelo fato de que a liberalização do comércio beneficia todos os Estados e seus cidadãos e, pelo menos na teoria, ninguém pode ser excluído desses benefícios e vantagens. Entretanto, num ponto de vista essencial, tem sido argumentado que a falta de balanço e equidade no sistema de comércio afetam os PEDs que enfrentam custos sociais para a manutenção do sistema multilateral do comércio357. No que concerne à concorrência propriamente, em razão das políticas de concorrência e de comércio serem estabelecidas de forma complementar, entendese conveniente indicar a concorrência internacional como um bem público global, uma vez que se encaixaria no critério previsto pelo PNUD358. Para compreender melhor essa idéia, é importante entender que este argumento baseia-se no fato de que a proteção internacional da concorrência, em conjunto com as regras de concorrência no âmbito da OMC, poderia promover e facilitar o acesso aos bens pelos consumidores, especialmente pelos cidadãos dos PEDs. Assim, a idéia aqui defendida é de que a concorrência internacional deveria ser analisada como um bem público global, que ao mesmo tempo teria capacidade de promover regras aos bens privados359. Considerando-se a ênfase da OMC nos bens privados e também a relevância dada à proteção contra as práticas que podem prejudicar o comércio, tornou-se particularmente importante o aumento da proteção contra condutas 355 KAUL, Inge; CONCEIÇÃO; Pedro, LE GOULVEN, Katell; MENDOZA, Ronald U. Why Do Global Public Goods Matter Today? p. 4. Disponível em: <http://www.undp.org/globalpublicgoods/ globalization/pdfs/Overviews.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2010. 356 Nesse sentido, veja-se: MENDOZA. Ronald U. The Multilateral Trade Regime: A Global Public Good For All? The Multilateral Trade Regime, 2003, p. 455. 357 KROL, 2007, p. 178. 358 DREXL, 2004, p. 440. 359 Vale dizer que este argumento também é defendido por DREXL, KROL, MENDOZA, KAUL e outros que analisaram como os chamados bens públicos devem ser tratados atualmente. 125 anticompetitivas que afetam os PEDs para viabilizar a distribuição (ou alocação) de benefícios decorrentes da liberalização comercial. Conforme foi analisado no decorrer dos primeiros capítulos deste estudo, a proteção internacional da concorrência é ainda insuficiente, já que existem países que sequer adotaram leis de concorrência e não possuem meios de proteger seus mercados e consumidores contra práticas anticompetitivas externas, que poderiam ocorrer ainda que existam regras para o comércio na OMC (que ainda não contemplam regras antitruste multilaterais). Da mesma forma, existem determinadas práticas apoiadas em exportação que também são completamente excluídas do escopo das legislações nacionais de defesa da concorrência quando essas exportações não afetam o mercado interno. Este é o caso dos cartéis de exportação que serão explorados na segunda parte do presente estudo. Como os PEDs possuem, em regra, menor experiência no tocante à política antitruste que os países desenvolvidos, eventuais distorções são pouco combatidas especialmente pelos países mais pobres. Essa falha precisa de alguma forma ser suprida ou amenizada. Assim, se houver entendimento de que uma política de concorrência internacional possa ser considerada como “bem público” e que a OMC poderia agir como um tipo de “legislador”, entende-se que os membros da OMC poderiam ser beneficiados com uma maior proteção, permitindo a correção de potenciais falhas de mercado e assimetrias de conhecimento (decorrente da falta de regras e/ou experiência). Veja-se que, o que se sugere aqui não é uma harmonização de regras de defesa da concorrência, mas sim permitir-se uma adequação que garanta o acesso mínimo ao mercado, proporcionado pelas regras da OMC, de uma maneira não discriminatória360. Todas essas questões, exploradas acima, levam à idéia favorável de que uma política antitruste internacional pode ser considerada como um bem público global, sendo um importante argumento na defesa da criação de regras de 360 No mesmo sentido, veja-se: DREXL, 2004, p. 444. 126 concorrência em nível multilateral, aproveitando-se a estrutura da OMC já existente e em pleno funcionamento361. 361 Veja-se que essa questão será retomada no Capítulo 6. 127 PARTE II – OS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO E A PROPOSTA DE UMA POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA MULTILATERAL 4 OS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO Conforme explicado na Parte I, em um mercado globalizado, a cooperação entre concorrentes não está limitada apenas a afetar o mercado interno. Ou seja, a cooperação entre concorrentes pode ser dirigida muitas vezes a produzir efeitos nos mercados estrangeiros. Como conseqüência, os esforços para proteger o livre comércio e promover a competição entre produtos nacionais e estrangeiros tendem a ser prejudicados por eventuais restrições à concorrência ou por condutas que alterem artificialmente a concorrência no mercado. No intuito de tornar seus mercados mais competitivos e obter maior inserção no mercado internacional, algumas empresas esperam que seus próprios governos apóiem condutas direcionadas ao mercado externo que, em regra, seriam anticompetitivas no mercado interno. Já que pelos acordos da OMC os Estados estão legalmente obrigados a abster-se de criar obstáculos ao comércio, se não estão disponíveis instrumentos de política comercial para proteger e promover um determinado mercado, existe um pensamento em construção de que tais barreiras poderão ser substituídas por instrumentos de política de concorrência. Um exemplo que pode ser dado, nesse sentido, é a isenção concedida (explícita ou implícita) pelas regras nacionais de direito da concorrência aos cartéis de exportação. Por meio de cartéis de exportação muitos governos não intervêm diretamente com instrumentos tradicionais e apenas os mercados estrangeiros passam a ser alvo de determinadas condutas que no mercado interno seriam consideradas como anticompetitivas. Entretanto, vale ressaltar que os Estados que afetam os mercados externos por meio desse tipo de combinação entre concorrentes - que nada mais é do que um 128 cartel -, estão propensos a prejudicar os consumidores e produtores dos mercados que recebem os produtos exportados. Observa-se também que, diante da constante redução das barreiras comerciais acordadas pelos Membros da OMC, as distorções à concorrência se tornam mais claras em razão dos seus potenciais efeitos. Esta relação entre as estratégias privadas de concorrência e as barreiras tarifárias ou não-tarifárias tem levado para uma perspectiva mais internacional o debate sobre os efeitos dos cartéis de exportação. Isto ocorre especialmente quando se avaliam como as isenções podem ser usadas, em determinados mercados, de forma estratégica pelos Estados, para complementar os resultados da política de comércio internacional. BECKER, por exemplo, afirma que as isenções/exceções concedidas aos cartéis de exportação são na verdade instrumentos de política antitruste usados para atingir finalidades de política comercial362. O mesmo autor explica que muitas vezes a política de concorrência dos Estados, que apóiam negócios voltados à exportação, é mais velha que o próprio movimento global de livre comércio, mas a relevância da questão ressurgiu com o desenvolvimento da política de livre comércio mundial363. Assim, é importante indicar o conceito de cartel de exportação, a diferença desse tipo de cartel com os cartéis denominados hard-core (ou “cartéis clássicos”364) assim como apresentar como essa conduta tem sido ou pode ser usada de forma prejudicial ao comércio internacional. 4.1 O que é um cartel de exportação Os acordos restritivos à concorrência são divididos em acordos verticais e horizontais. FORGIONI explica que os acordos horizontais são aqueles celebrados 362 BECKER, Florian. The case of export cartel exemptions: between competition and protectionism. Journal of Competition Law and Economics, 2007, p. 99. 363 BECKER, 2007, p. 99. 364 “Distingo o Cartel Clássico do que chamo Cartel Difuso. Este último é um ato de coordenação da ação entre as empresas com objetivo similar ao do Cartel Clássico, mas de caráter eventual e não institucionalizado. Esse é o caso quando um grupo de empresas decide reunir-se para coordenar um aumento de preço, muitas vezes em função de um evento externo que as afetou simultaneamente. Isto é, tal ação pode ser considerada eventual e não decorreu de uma organização permanente para coordenar as ações das empresas envolvidas.” BRASIL. CADE. Processo Administrativo n. 08012.002127/02-14, 2005. 129 entre agentes econômicos que atuam em um mesmo mercado relevante (no mesmo nível de uma cadeia industrial), possuindo direta relação de concorrência. Já os acordos verticais disciplinam relações entre agentes econômicos que desenvolvem suas atividades em mercados relevantes diversos (em níveis diversos de uma cadeia industrial de produção de matéria-prima, de fornecimento e distribuição)365. Cabe ressaltar que esses acordos podem ser explícitos ou implícitos e têm como efeito limitar a capacidade dos concorrentes de agir independentemente. É a distinção entre os tipos de acordos nas análises em casos concretos que permite uma maior elucidação dos diversos efeitos que eles podem causar para a concorrência. Para uma correta análise dos efeitos, os mercados atingidos devem ser individualizados com a posição que os agentes econômicos ocupam em cada um desses mercados366. Assim, verifica-se mais facilmente a ocorrência, ou não, de abuso de poder econômico. Os cartéis, verificados na prática, estão predominantemente inseridos no universo dos acordos horizontais (entre agentes econômicos situados em um mesmo mercado relevante) que de modo geral restringem, prejudicam ou distorcem a livre concorrência. Entretanto, aqui vale lembrar que os cartéis de exportação são geralmente uma exceção à regra geral. Em adição, vale lembrar que é possível que arranjos mais complexos entre concorrentes abranjam mais de um nível de uma mesma cadeia industrial, o que de fato transcenderia uma simples relação horizontal e abrangeria também relações verticais. No contexto do presente estudo, é importante apontar se existem diferentes interpretações sobre a definição de cartel de exportação comumente adotada. De acordo com a OCDE, cartel de exportação é um acordo ou arranjo entre empresas que combinam cobrar um preço específico de exportação e/ou dividir mercados de exportação.367 365 FORGIONI, 1998, p. 324. FORGIONI, 1998, p. 324 367 OCDE. Glossary of Industrial Organisation Economics and Competition Law. p. 43. Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/8/61/2376087.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2010. 366 130 A OCDE explica que muitas leis de concorrência dão isenção a esse tipo de conduta, desde que o cartel não produza efeitos prejudiciais à concorrência no mercado doméstico como, por exemplo, aumentar acordos de fixação de preços ou resultar em redução das exportações. Ainda, a OCDE explica que a permissão aos cartéis de exportação reside no fato destes supostamente facilitarem a penetração nos mercados estrangeiros, além de possibilitar a transferência de renda dos consumidores estrangeiros aos produtores nacionais, favorecendo a balança comercial dos exportadores: A justificativa para a permissibilidade do cartel de exportação é que ele pode facilitar uma penetração cooperativa nos mercados externos, transferência de renda dos consumidores estrangeiros aos produtores nacionais e resultar em um saldo comercial favorável368. Nem sempre é uma tarefa trivial separar, dentre as condutas, aquelas que dizem respeito a um cartel de exportação. Na tentativa de explicar mais sobre as características dos cartéis de exportação e até mesmo indicar uma classificação, a OCDE pontuou a necessidade de se fazer uma distinção entre cartéis públicos e privados: Uma distinção deve ser feita entre os cartéis públicos e privados. No caso de cartéis públicos, o governo pode estabelecer e fazer cumprir as normas relativas a preços, produção e outras questões. Cartéis de exportação e associações marítimas são exemplos de cartéis públicos. Em muitos países, cartéis de depressão têm sido autorizados em indústrias consideradas a exigir preço e estabilidade de produção e / ou para permitir a racionalização da estrutura da indústria e do excesso de capacidade. No Japão, por exemplo, esses acordos foram permitidos no caso do aço, fundição de alumínio, construção naval e várias indústrias químicas369. (destaques no original). De acordo com AMATO, os cartéis de exportação domésticos (nacionais) são acordos entre empresas estabelecidas em um país que operam no mesmo mercado de produto, no qual essas empresas combinam não competir entre elas quando exportam seus produtos (que são substituíveis entre si)370. A OCDE também tem conhecimento que muitas leis de defesa da concorrência isentam esses acordos das disposições geralmente aplicáveis aos cartéis, desde que esse tipo de cartel não produza efeitos prejudiciais à concorrência 368 OCDE, Glossary of Industrial Organisation Economics and Competition Law, p. 43-44. OCDE. Glossary of Industrial Organisation Economics and Competition Law. p. 19. 370 AMATO, Filippo. International Antitrust: What future? Journal of World Competition, v. 24. n˚. 04, 2001, p. 455. 369 131 no mercado interno, tais como dar origem a acordos de fixação de preço ou resultar na redução das exportações371. As típicas atividades dos cartéis de exportação instituídos por associações podem englobar as seguintes atividades: i) acordos exclusivos de exportação, ii) recusa da associação em cuidar de exportações de não-membros, iii) fixação dos preços de revenda, iv) fixação de quotas dos distribuidores internacionais, v) acordos de fixação de preço372. Os cartéis de exportação podem ser formados por produtores de um único país ou podem ser cartéis internacionais formados por produtores de diversos países, mas com um mercado alvo que não é mercado doméstico dos membros desse tipo de cartel. De acordo com BECKER, se os cartéis de exportação também possuem efeitos no mercado doméstico eles são chamados de “cartéis mistos”373. No mesmo sentido, KROL explica que os cartéis de exportação podem ser considerados como internacionais quando seus membros estão localizados em diferentes países, e ainda, se apenas mercados internacionais e domésticos são afetados, os cartéis de exportação também podem ser considerados como “puros” (no primeiro caso) ou “mistos”374 (no segundo caso). Considerando a perspectiva de um participante, a estratégia objetivada com os cartéis de exportação pode ser: (i) tentativa de captura de novos mercados externos; (ii) tentativa de resposta aos monopólios estrangeiros; ou (iii) tentativa de resposta às restrições governamentais estrangeiras ao comércio375. Conforme explica WINS, para sustentar um cartel de exportação pressupõese que seus membros tenham market power uma vez que, sem isso, seria difícil um controle eficiente das exportações376. De fato, a presença de poder de mercado é analisada também nos casos dos cartéis internacionais chamados hard-core, tratando-se de variável comum na análise das condutas supostamente anticompetitivas. 371 OCDE. Glossary of Industrial Organisation Economics and Competition Law, p. 43. Nesse sentido, veja-se a decisão: US v. Minesota Mining & Manufacturing Co, 92 F. Supp. 947 (.D. Mass. 1950). 373 BECKER, 2007, p. 101. 374 KROL, 2007, p. 67. 375 KROL, 2007, p. 67. 376 WINS, Henning, Eine Internationale Wettbewerbsordnug als Erganzun zum GATT, BadenBaden, 2000, p. 52. 372 132 Como explicado por documento da OMC, o conceito de cartel internacional hard-core deve também ser diferenciado do conceito de cartéis de exportação e importação: Os cartéis de exportação fixam preços ou quantidades produzidas nos mercados exportadores das firmas participantes, mas não nos seus mercados domésticos. Os cartéis de importação objetivam a regulação dos preços ou outras condições dos bens e serviços que são importados nos mercados domésticos das firmas participantes. Em contraste, os cartéis internacionais geralmente fixam preços, produção, ou outras dimensões competitivas em vários mercados nacionais, que freqüentemente incluem mas não se limitam aos países domésticos das firmas participantes. Outro traço diferenciado é que os cartéis de exportação estão isentos das leis nacionais de concorrência em muitos mercados, em alguns casos sob a condição de registro público, enquanto os cartéis internacionais freqüentemente são ilegais e são tipicamente mantidos sob sigilo a não ser que e até que sejam investigados e tornados públicos. A discussão neste paper está principalmente concentrada nos cartéis internacionais como tais, apesar da referência ser feita também a cartéis de exportação. WT/WGTCP/W/191, p. 2, (tradução livre).377 Na perspectiva da política de concorrência, as práticas restritivas ao comércio com dimensão internacional merecem bastante atenção. Vale observar que, geralmente, as restrições aos mercados de exportação não afetam diretamente a concorrência nos países exportadores, ao mesmo tempo em que há pouca ação contra essas práticas nesses países justamente pela ausência de efeitos sentidos internamente. Como os cartéis de exportação afetam principalmente a concorrência no mercado de destino (mercado de exportação), o país de origem não tem interesse em sancionar esses cartéis, sendo que, como já mencionado, podem até apoiar tais práticas. Na realidade, para que os efeitos e o potencial lesivo possam ser analisados, os cartéis de exportação necessitam ser pesquisados também no que diz respeito ao mercado geográfico afetado e a nacionalidade de seus membros 377 Export cartels fix prices or outputs in the participating firms' export markets but not in their home markets. Import cartels aim to regulate the price or other terms of goods or services that are imported into the participating firms' home markets. In contrast, international cartels generally fix prices, outputs or other dimensions of competition across a number of national markets, often including but not limited to the home countries of the participating firms. Another distinguishing feature is that export cartels are exempted from the national competition laws of many countries, in some cases on a condition of public registration, whereas international cartels often are illegal and typically are carried on in secret unless and until they are investigated and disclosed. The discussion in this paper is chiefly concerned with international cartels as such, although reference is also made to export cartels. WT/WGTCP/W/191, p. 2. 133 (veja-se, por exemplo, que esses dados poderiam diferenciá-los entre “puros” ou “mistos”). Isto porque, a depender da situação e de eventuais acordos comerciais firmados (bilaterais ou multilaterais), o resultado de tal análise levará a medidas de repressão a tais práticas por parte das autoridades de concorrência dos países de origem, ou legitimará a utilização de mecanismos de retaliação comercial por parte dos países de destino. Não se pode ignorar que, considerando seus efeitos econômicos, os cartéis de exportação podem estar ligados aos subsídios à exportação ou outras ajudas nesse sentido378. Em uma primeira análise, os cartéis de exportação podem ser comparados aos subsídios na medida em que, ao deixar de aplicar a legislação antitruste, os Estados acabam também por revestir-lhes de uma vantagem comparativa artificial, que impactará diretamente em seu desempenho no plano internacional. Por meio de uma conduta muitas vezes omissiva, os Estados acabam por atribuir a um dado setor da economia, ou a um dado grupo de agentes econômicos, vantagens sobre outros agentes econômicos concorrentes situados em outras jurisdições. Assim, se de um lado os subsídios representam muitas vezes uma distorção no comércio internacional, os cartéis de exportação podem, igualmente, gerar distorções ao comércio internacional que precisam ser melhor investigadas para que se identifiquem os problemas principais gerados por essas condutas e, também, as possíveis alternativas de mitigá-los em um contexto internacional. Apesar dos cartéis de exportação e os subsídios terem o potencial de distorcer a concorrência em prejuízo dos mercados e competidores externos, apenas os subsídios são regulados internacionalmente pela OMC por meio do Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC). Portanto, até o momento não há nenhuma regulação no GATT/OMC que explicitamente proíba os Membros ou os condene por permitir a conduta concertada dos exportadores que se organizam em cartéis de exportações. O documento WT/WGTCP/W/191 da OMC aponta também que as vítimas dos cartéis de exportação incluem países em desenvolvimento que importam bens 378 No mesmo sentido, veja-se BECKER, 2007, p. 101. 134 ou produtos de consumo. Em adição, é importante notar que há mais efeitos deletérios que podem ser observados, mas ainda não existe muita clareza sobre todos os efeitos ou a extensão desses efeitos ou danos potenciais dessa conduta: O ponto também destacado é que a extensão de tais cartéis e seus efeitos deletérios sobre o comércio e desenvolvimento podem ser maiores que os amplamente conhecidos, já que alguns países insistem em não registrar tais cartéis; eles simplesmente fecham os olhos em relação a eles. Por outro lado, o ponto de vista que tem sido expresso é de que a extensão do dano causado pelos cartéis de exportação é menor do que às vezes se pensa, que nem todos os consórcios relacionados à exportação ou arranjos similares fixam preços ou exercem poder de mercado. Em todo caso, estes parecem causar menos preocupação que outras situações em que tanto os mercados domésticos quanto de exportação estão sujeitos à cartelização. Mesmo na presença de exceções relevantes, cartéis estritamente relativos a mercado de exportação podem estar fora da jurisdição dos “países de origem” na medida em que seus efeitos podem ser mais sentidos no exterior do que nos mercados dos países de origem. (tradução livre).379 Em análise voltada à visão dos países em desenvolvimento, BHATTACHARJEA indicou os seguintes fatores como sendo necessários para avalição ao se determinar se um cartel de exportação é benéfico ou maléfico ao país importador, entre os quais: se (o cartel) é um novo entrante; a natureza das “possíveis” eficiências; a estrutura de mercado, a elasticidade da demanda, o grau de penetração das importações e o nível das tarifas vigentes no país importador380. Vale esclarecer também que o cartel de exportação não se confunde com a prática de dumping381, pois tratam-se de fenômenos distintos, embora possam até 379 The point has also been made that the extent of such cartels and their deleterious effects on trade and development may be greater than is widely known, since some countries do not insist on registration of such cartels; they simply turn a blind eye to them. On the other hand, the view has been expressed that the extent of harm caused by export cartels is less than is sometimes thought, in that not all export-related consortia or similar arrangements fix prices or exercise market power. In any case, these are likely to be of less concern than situations where both export and domestic markets are subject to cartelization. Even in the absence of relevant exemptions, cartels relating purely to export markets might well be outside the jurisdiction of "home countries" to the extent that their effects are felt abroad rather than in the home country market. WT/WGTCP/W/191, p. 5. 380 BHATTACHARJEA, Aditya. Export Cartels - A Developing Country Perspective. Working Paper No. 120. Centre for Development Economics, January, 2004, p. 34. Disponível em: <http://www.cdedse. org/pdf/ work120.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2010. 381 O dumping é definido pelo GATT 1994, em seu artigo 6.1, quando os produtos são exportados abaixo do valor normal, isto significa: (i) valor abaixo de valor do produto similar (like product) destinado ao consumo no país exportador; (ii) valor menor do que o maior preço comparado com produto similar para exportação; ou (iii) valor abaixo do valor de produção no país de origem adicionando os custos de venda e lucros (i.e., custos de frete e tributos). 135 ocorrer simultaneamente. O cartel de exportação “puro”, não necessariamente implica a prática de preços inferiores ao chamado “valor normal”. Há um caso interessante levado à OMC pela CE que envolveu o AntiDumping Act of 1916 dos EUA382 que, teoricamente, poderia impor responsabilidade criminal e severas reparações de danos em determinadas formas de dumping. Apesar de não haver registro de uma aplicação exitosa dessa lei, a CE questionou na OMC a legalidade de se processar produtores europeus com base nessa lei383. É interessante observar que em uma análise recente o atual presidente CADE, indicou que essa legislação (Anti-Dumping Act of 1916) possuía uma interface com o direito antitruste na conceituação do que seria o “dumping predatório”: A prática de dumping predatório, consistente na redução dos preços com o objetivo de eliminar a concorrência no mercado importador e impedir o ingresso de novos concorrente pelo estabelecimento de barreiras à entrada, é condenável sob o aspecto econômico por trazer sérios prejuízos a longo prazo, eliminando a concorrência e favorecendo o estabelecimento de monopólio. Contudo, raramente o dumping predatório se verifica na prática, pois são inúmeros os requisitos para que esta conduta seja sustentável. 10. O dumping logo se dissociou da conotação de predação, e seu significado jurídico se tornou mais abrangente.384 No caso analisado referente ao Antidumping Act a CE defendeu que os procedimentos para impor medidas antidumping, com base no artigo VI do GATT, e do Acordo Antidumping da OMC eram os únicos remédios que poderiam ser aplicados às violações de dumping385. Essa decisão mostra como regras multilaterais específicas poderiam limitar ações isoladas dos membros da OMC no sentido de cada um regular os cartéis de exportação da forma que bem entendessem. Veja-se que o resultado da ação de um cartel de exportação “puro” pode culminar em preços mais baixos no mercado de destino. Nesse caso, se os preços praticados pelo cartel de exportação no mercado de destino forem inferiores aos 382 Tratava-se de uma extensão da legislação Antitruste e em 1921 foi alterada (US Antidumping Act), trazendo como inovação à apuração de direitos antidumping com um caráter mais administrativo e esclarecendo alguns conceitos como “dano à indústria”. 383 WALLER, 1999, p. 170. 384 CADE. Declaração de Voto do Presidente Arthur Badin. Medida Inominada. N.˚ 08700.001571/2009-22. Requerente: Itap Bemis Ltda., 2009, p. 308-309. 385 WTO. Panel Report, United States – Anti-Dumping Act of 1916 – Complaint by the European Communities, WT/DS136/R and Corr.1, adopted 26 September 2000, as upheld by the Appellate Body Report, WT/DS136/AB/R, WT/DS162/AB/R. Disponível em: <http://www.sice.oas.org/dispute/ wto/ds136/ds136ar_e.asp>. Acesso em: 20 ago. 2010. 136 preços praticados pelos membros do cartel (individualmente considerados) no mercado doméstico, poderá sim se estar diante também da hipótese de dumping desde que preenchidos os demais requisitos legais (i.e., dano e nexo causal). 4.2 Os cartéis de exportação como cartéis hard-core e a questão da extraterritorialidade Não se pode negar que existe um debate conceitual no sentido de se considerar os cartéis de exportação também como cartéis hard-core. Como explica a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): Os cartéis hardcore são acordos anticompetitivos estabelecidos por competidores para fixar preços, restringir a produção, submeter licitações fraudulentas, ou ainda dividir ou partilhar mercados. A Recomendação de 1998 condena tais cartéis como as mais notórias violações da lei da concorrência, constatando que por aumentar preços ou restringir a oferta eles tornam os bens e serviços completamente indisponíveis para alguns compradores e desnecessariamente caros para outros.386 Para a finalidade do presente estudo também é importante entender e indicar as principais diferenças entre os cartéis de exportação e os cartéis hard-core e analisar se é possível considerar, de alguma forma, os cartéis de exportação como cartéis hard-core. O exemplo dado pela OCDE, sobre o que pode ocorrer na prática, é o seguinte: um cartel de exportação formado por empresas que tenham isenção antitruste de seus países pode, porém, ser encarado como um acordo de fixação de preços para limitar a concorrência nos mercados de outro país e em uma clara violação das leis antitruste deste outro país387. Diante do crescimento dos cartéis identificados e verificados na década de 1990, aumentaram-se também as preocupações em torno deste tema, uma vez que os juristas e economistas perceberam que as perdas geradas por esses acordos 386 “Hard core” cartels are anticompetitive agreements by competitors to fix prices, restrict output, submit collusive tenders, or divide or share markets. The 1998 Recommendation condemns such cartels as the most egregious violations of competition law, noting that by raising prices and restricting supply they make goods and services completely unavailable to some purchasers and unnecessarily expensive for others”. OCDE, 2000, p. 6. 387 OCDE, Glossary of Industrial Organisation Economics and Competition Law, p. 44. 137 inclusive (e principalmente) os acordos internacionais do tipo hard-core causavam prejuízos de milhões de dólares por ano e precisavam de algum controle mais rígido. Nos EUA essa preocupação já existia há bastante tempo. Veja-se que a regra da razão388 promoveu uma modificação do artigo 1.º do Sherman Act (lei antitruste americana), que passou a declarar que todo e qualquer contrato, combinação sob a forma de truste, ou qualquer outra forma ou conspiração desarrazoada, em restrição ao comércio entre os Estados ou nações estrangeiras, deveria ser declarado ilícito. Os cartéis chamados hard-core geralmente são considerados como ilícitos per se, ou seja, muitos casos não chegam a ser analisados pela regra da razão. Observe-se que, diferentemente da regra da razão, a chamada ilicitude per se não implica uma análise profunda, uma vez que, a partir do momento em que um ato é identificado como um ilícito per se, ele é considerado como restritivo à concorrência e é (ou deveria ser) automaticamente coibido. A opção pela inclusão de uma modalidade de prática na hipótese de ilícito per se está diretamente ligada à baixíssima probabilidade de que a prática resulte em efeitos líquidos positivos à sociedade e de que semelhantes condutas analisadas pelas autoridades, ao longo da história, tenham reconhecidamente gerado efeitos negativos à sociedade. Os objetivos da regra da razão e da regra per se são os mesmos e o propósito da análise é avaliar o efeito da conduta contra a concorrência. Desta maneira, para identificar uma conduta anticoncorrencial pode ser requerida uma análise mais profunda das circunstâncias das práticas tratadas. O que é importante notar é que tem se observado que os cartéis de exportação não são considerados cartéis hard-core e, por essa razão, escapam da análise per se, pelo menos nos países que sediam as empresas participantes desse acordo. Os critérios utilizados para essa análise são importantes no contexto da perspectiva do direito da concorrência. Nesse sentido, vale lembrar que a função da teoria antitruste é: 388 A regra da razão apenas considera ilegais as práticas que restrinjam a concorrência de forma não razoável, ou seja, não são permitidas as práticas que causem restrição ao livre comércio sem justificativa. No caso Standard Oil Co. of New Jersey v. United States, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA usou de forma clara a regra da razão. Veja-se no mesmo sentido: FORGIONI, 1998, p. 184. 138 [...] estabelecer as necessárias presunções de modo a prover aos trabalhos do analista e do julgador orientação metodológica suficiente para permitir uma dosagem eficiente entre tempo e custo total da investigação, de um lado, e consistência técnica da conclusão, de outro. Excluída como está a possibilidade de certeza nesse âmbito, a questão que se coloca diz respeito ao quantum de informações acerca do comportamento investigado que se faz necessário coletar e analisar a fim de assegurar a plausibilidade 389 técnico-jurídica à decisão que deverá ser tomada. Cabe salientar que a regra da razão não se identifica com a abordagem caso a caso das práticas analisadas, como algumas doutrinas costumam dar a entender. Esse chamado case by case approach é uma das opções que o intérprete antitruste tem para a aplicação da norma e significa que cada caso deve ser analisado individualmente, com suas particularidades, tais como: contexto econômico, efeitos anticompetitivos, entre outros. Por essa razão o estudo sobre cartéis foi aprofundado na última década. Assim, é importante pontuar que, na pratica, os cartéis de exportação não são considerados comumente como cartéis hard-core, apesar de diversas características encaixarem-se nesse conceito (i.e., divisão de mercados, fixação de preços etc.). Ainda, conforme se verá neste estudo, grandes economias mundiais com grande tradição e maturidade do direito da concorrência, tais como a União Européia e os EUA, implicitamente ou explicitamente garantem isenção/imunidade antitruste aos cartéis de exportação, encorajando, ou ao menos permitindo, as práticas dessas condutas que, em regra, seriam proibidas se gerassem efeitos em seus mercados nacionais. 4.2.1 A teoria dos efeitos Para que seja possível aprofundar a análise relacionada à extraterritorialidade das leis antitruste, ou seja, a aplicação das leis de concorrência de um país na jurisdição de outro país, é importante também tratar da chamada teoria dos efeitos. Vale destacar que, dentro do princípio da extraterritorialidade, a teoria dos efeitos também é adotada pela lei antitruste brasileira (Lei. n˚ 8884/94). De acordo com Carvalho: 389 SCHUARTZ, 2002, p. 115. 139 Segundo o princípio da extraterritorialidade, o âmbito de aplicação da lei não está restrito às fronteiras nacionais, mas inclui também qualquer atividade econômica ocorrida no exterior cujos efeitos alterem as condições de concorrência no mercado doméstico.390 A interpretação da teoria dos efeitos no Brasil está estabelecida no artigo 2˚ da Lei 8.884/94, mas também foi bem explorada em alguns casos julgados pelo CADE, tal como no voto do Ato de Concentração n˚. 08012.009254/02-36, nos termos abaixo: A Lei Antitruste nacional optou pelo princípio da territorialidade dos efeitos, ou territorialidade objetiva, para definir sua competência em face de operações ou comportamentos que, mesmo ocorridos no Exterior, possam produzir efeitos no mercado nacional. Portanto, diferentemente do que dispõe o art. 20 da Lei n. 8.884/94 (‘... atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos...’) ou os §§ 3.º e 4.º art. 54 do mesmo diploma — que delimitam critérios objetivos para a identificação dos atos realizados e admitem a apresentação prévia dos atos, ou seja, independentemente de qualquer espécie de efeitos — o art. 2.º da Lei Antitruste aplica-se, exclusivamente, às práticas que, mesmo quando cometidas fora do território nacional, nele produzam ou possam produzir efeitos econômicos. De modo singelo: sem efeitos no Brasil, ainda que potenciais, a Lei n. 8.884/94 é inaplicável a práticas ocorridas no Exterior.391 A questão da extraterritorialidade ganha ainda mais relevância na análise dos cartéis de exportação porque, conforme aponta estudo da OCDE, no contexto da política de concorrência, a questão da extraterritorialidade emerge se as práticas comerciais da(s) empresa(s) em um país produzem efeitos anticoncorrenciais em outro país que considera ser a prática em questão uma violação de suas leis. Veja-se que, muitos países explicitamente ou implicitamente toleram os cartéis de exportação ou simplesmente isentam os cartéis de exportação “puros” da aplicação de suas legislações nacionais de concorrência em razão da teoria dos efeitos. Os defensores dessa posição argumentam que essa exceção é justificável porque caberia ao Estado, cujos interesses (dos consumidores) estão em risco, adotar alguma medida contra tais práticas392. 390 CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. Direito Antitruste & Relações Internacionais – Extraterritorialidade e Cooperação. Curitiba: Juruá, 2001, p. 104. 391 Voto-Vista do Conselheiro Roberto Pfeiffer no Ato de Concentração n˚. 08012.009254/2002-36, de 13 de agosto de 2003. Requerentes: The Carlyle Group e Qinetiq Group Plc. DOU de 30 de outubro de 2003, Seção 1, p. 137. 392 Cf. MAGNUS, John. R. Joint export trade provisions in antitrust laws: a supporter’s perspective. Journal of World Trade, v. 39, n˚. 01, 2005, p. 181. 140 Argumenta-se, inclusive, que os cartéis de exportação beneficiariam tanto os exportadores como seus clientes resultando, portanto, em ganhos para ambas as partes. Conforme defende MAGNUS em estudo, os cartéis de exportação teriam um “inegável impacto positivo no comércio internacional”393. Contudo, numa perspectiva de política econômica, esta posição tem sido criticada como uma política “beggar-thy-neighbour”394 (ou seja, uma espécie de “salve-se quem puder”), já que os cartéis de exportação procuram a obtenção de preços maiores ou outras vantagens que são aplicados nos mercados de exportação. Isto, numa perspectiva de política de concorrência, é uma prática reprovável395. Nesse sentido, vale lembrar que a despeito da existência de poucos estudos profundos ou conclusivos, predominantemente pelos os cartéis documentos de das exportação são organizações considerados internacionais e 396 manifestações em fóruns multilaterais como anticompetitivos . Essa afirmação passa a ser fácil de ser observada nos cartéis de exportação considerados como “agressivos”, ou seja, que são utilizados como meio de captura dos mercados estrangeiros para substituir os operadores locais. Conforme explica KROL, quando os cartéis de exportação são bem sucedidos na criação de posição dominante no mercado de exportação, os preços podem ser elevados acima dos níveis competitivos atingindo níveis de monopólio397. Os efeitos da subseqüente exploração da demanda do mercado exportador (mercado de destino) são equivalentes às restrições às importações impostas aos competidores de outros mercados estrangeiros e, conseqüentemente, geram efeitos nocivos à concorrência398. 393 MAGNUS, 2005, p. 182. Essa expressão “beggar-thy-neighbour” tem sido traduzida em português como “política de arruíne seu vizinho” ou “política do salve-se quem puder”, referindo-se ao processo de concorrência cambial predatória entre os países, marcada pelo acentuado protecionismo a exemplo daquela praticada pelos EEUU e outras economias nos primeiros anos da década de 30. Nesse sentido, veja-se: CRIPPS, Francis; IZURIETA, Alex; MCKINLEY, Terry. Correção de desequilíbrios globais com realinhamento da taxa de câmbio? Não obrigado! Disponível em: <http://www.ipcundp.org/pub/port/IPCOnePager38.pdf>. Acesso em: 24 Jul. 2010. 395 Veja-se no mesmo sentido KROL, 2007, p. 93. 396 Nesse sentido veja-se MITCHELL, Andrew. D. Broading the vision of trade liberalization. International Competition Law and the WTO. Journal of World Competition, v. 24, n˚. 3, 2001, p. 348. 397 KROL, 2007, p. 93. 398 WINS, 2000, p. 52. 394 141 De outro lado, os cartéis de exportação também são justificados para neutralizar estruturas monopolísticas de mercados estrangeiros, ou ainda, para contrabalançar barreiras governamentais ao comércio. Nessas situações, argumenta-se que estas práticas podem aumentar a competição internacional nessas localidades399. Entretanto, os efeitos negativos dos cartéis de exportação geralmente superam os eventuais efeitos positivos para o ambiente concorrencial. Esta afirmação se sustenta uma vez que, identificados efeitos negativos, os cartéis de exportação poderiam até mesmo provocar a aplicação de medidas compensatórias400 por parte dos mercados importadores (mercados de destino). Ainda, mesmo que esse tipo de cartel seja menos pernicioso na prática do que um cartel hard-core, ou até mesmo tenha alguns efeitos positivos, essa conduta facilmente pode tornar-se mais agressiva. Por essa razão, a teoria econômica tem apontado que tanto os cartéis de exportação denominados “defensivos” como os denominados “agressivos” tendem a criar poder de mercado internacional e, logo, geram efeitos danosos à eficiência dos mercados internacionais401. Conforme explica BHATTACHARJEA, já que não há uma cobertura integral em âmbito mundial, as possíveis eficiências dos cartéis de exportação somente poderiam ser avaliadas pelos países importadores em contrapartida aos efeitos gerados aos consumidores. Mas, essa análise não é possível para muitas agências de concorrência, até mesmo em razão da falta de expertise e recursos402. AMATO também destaca que os prejuízos causados pelos cartéis de exportação aos consumidores do mercado importador são usualmente superiores aos benefícios auferidos pelas empresas em conluio no país exportador403. Assim, 399 Veja-se nesse sentido KROL, 2007, p. 93. As medidas compensatórias geralmente são aplicadas para eliminar o dano (ou ameaça de dano) causado à indústria doméstica pela importação de produto beneficiado por subsídio concedido no país exportador. 401 Cf. WINS, 2000, p. 53. Entenda-se por “defensivos” os cartéis de exportação justificados com base na neutralização de poder de monopólio nos mercados de destino e/ou neutralização de barreiras artificiais à entrada em tais mercados fixadas pelos governos locais e, por “agressivos” os demais tipos de cartéis de exportação, com justificativas diversas. 402 BHATTACHARJEA, Aditya. Export Cartels - A Developing Country Perspective. Working Paper No. 120. Centre for Development Economics, January, 2004, p. 27. Disponível em: <http://www.cdedse.org/pdf/work120.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2010. No mesmo sentido: KROL, 2007, p. 94. 403 AMATO, 2001, p. 455. 400 142 numa perspectiva de perdas e ganhos, infere-se que referida conduta não poderia ser simplesmente tolerada. Portanto, com base em todas estas opiniões, entende-se que a simples exclusão dos cartéis de exportação do escopo da legislação antitruste ou a falta de qualquer controle do fenômeno gera reflexos negativos à política de concorrência num contexto nacional e também - e principalmente - perdas no comércio internacional. 4.2.2 A abordagem unilateral da extraterritorialidade Conforme já apontado, a aplicação extraterritorial das leis de concorrência, ou da teoria dos efeitos, tem ganhado força como meio de superação dos limites jurisdicionais (ou de competência) dos países. A condução unilateral da lei de concorrência permite a auto-proteção dos países contra barreiras à entrada no exterior. Isto funciona eficientemente para as nações com longa tradição em antitruste e requer uma regulação institucional mínima404. Todavia, a aplicação unilateral enfrenta sérias deficiências relacionadas à eficiência e principalmente à legitimidade da aplicação de uma lei nacional de concorrência no exterior. Com relação à questão da proteção eficiente contra barreiras à entrada, existem duas deficiências principais de acordo com FOX: (i) os países em desenvolvimento são alvos fáceis de condutas anticompetitivas internacionais, uma vez que muitos não possuem lei de concorrência ou não possuem recursos adequados para a aplicação da lei; (ii) a aplicação extraterritorial pode ser ineficiente considerando as dificuldades para a obtenção de evidências no exterior405. Como é amplamente reconhecido, a abertura comercial gera efeitos sobre as economias pequenas ou em desenvolvimento devido à acessibilidade aos seus mercados. GAL explica que as importações também podem afetar significativamente o bem-estar doméstico, na medida em que podem fomentar a disputa de preços das 404 KROL, 2007, p.106. FOX, Eleonor M. International Antitrust and the Doha Dome. Virginia Journal of International Law. 911, v. 43, 2003, p. 916. 405 143 empresas nacionais e podem exigir que estas produzam em escalas eficientes406. A legislação concorrencial que não goza de apoio governamental amplo e consistente pode levar à supremacia das considerações da política industrial de curto prazo em detrimento das preocupações concorrenciais407. Um fator adicional que geralmente tem um papel importante nos baixos níveis de executoriedade dos países em desenvolvimento envolve a fraca cultura concorrencial, o que fragiliza regular os cartéis de exportação apenas por meio da aplicação extraterritorial da lei antitruste. A aplicação extraterritorial das leis nacionais de defesa da concorrência também traz preocupação com relação à legitimidade, especialmente ligada à soberania estrangeira. Veja-se que conflitos diplomáticos podem emergir quando uma agência nacional antitruste atua de modo a afetar a soberania de outra por meio de uma ação excessiva no curso do processo. Sem entrar no mérito o que seria uma ação invasiva contra uma conduta anticompetitiva, é importante apenas entender que um excesso pode ser o resultado da tentativa de aplicação da lei do país cujo mercado foi afetado408. A percepção de uma violação difere, entretanto, caso a caso. E a falta de consenso entre as nações pode ser percebida em relação ao reconhecimento da teoria dos efeitos409. Ainda, vale observar que os países que concordam com essa teoria nem sempre adotam definições idênticas. Veja-se que alguns países, como o Japão, têm sido relutantes na aplicação dessa doutrina. Enquanto que outros países, como o Reino Unido, adotaram leis especiais que facilitam a atuação de autoridades estrangeiras em seu território410. Alguns estudiosos do tema explicam também que a aplicação da teoria dos efeitos pode gerar conflitos de jurisdição, especialmente considerando as diferentes 406 GAL, Michal S., Regional Competition Law Agreements: An Important Step for Antitrust Enforcement. NYU Law and Economics Research Paper n˚. 09-47 November 13, 2009; University of Toronto Faculty of Law Review, v. 60, 2010, p. 6. 407 GAL, 2009, p. 5. 408 Cf. FOX, 2003, p. 920. 409 IMMENGA, Ulrich. Comment: the failure of present institutions and rules to respond to the globalization of competition. 49 (II/III), Aussenwirtschaft, 1994, p. 201. 410 IMMENGA, 1994, p. 202. 144 avaliações que podem decorrer de situações similares, o que também teria o potencial de gerar atritos políticos411. A aplicação extraterritorial das leis nacionais de defesa da concorrência também pode ser considerada ilegítima em razão da potencial discriminação numa perspectiva global. Isto ocorre quando determinado Estado exclui seus próprios nacionais, não permitindo que estes sejam investigados pelo envolvimento numa conduta prejudicial às soberanias estrangeiras e, ao mesmo tempo, ataca essa mesma soberania estrangeira, por intermédio da ação de um cartel de exportação formado em sua jurisdição, para assegurar o seu acesso ao mercado412. Outras questões sobre legitimidade podem emergir quando da aplicação das leis nacionais de concorrência quando há conflitos internacionais relacionados às políticas industriais no mercado alvo (ou país de destino), tal como ocorreu no caso do cartel do urânio nos EUA413. De fato as regras de concorrência tem relação com políticas públicas ou industriais. Um exemplo interessante foi o caso da fusão entre a Boeing e Macdonnell/Douglas. Nesse caso, os EUA aprovaram a operação anunciando que ela não prejudicava a concorrência, enquanto que a CE chegou a uma conclusão oposta, mas encontrou um meio de fazer acordo com as partes impondo condições. Os dois lados acreditam que a decisão foi produto de uma política industrial preocupada em criar, ou proteger, um agente nacional no mercado de aviação comercial, ao invés de promover de forma legítima objetivos de concorrência. Considerando a inexistência de uma autoridade internacional de defesa da concorrência, os eventuais conflitos que emerjam decorrentes dos cartéis de exportação precisam ser solucionados numa perspectiva nacional. Contudo, uma decisão puramente nacional nem sempre analisa ou faz a interface da concorrência com políticas industriais ou de comércio que são desenvolvidas em âmbito nacional. 411 IMMENGA, 1994, p. 202. FOX, 2003, p. 920. 413 Cf. FOX, 2003, p. 918. Após a queda de produção do urânio causada pelo embargo norteamericano, determinados produtores da Inglaterra, Canadá, África do Sul, Austrália e França, passaram a dar suporte às minas e ao mercado de urânio em seus territórios, sendo que os consumidores dos EUA tiveram que enfrentar o aumento de preços. Os membros deste cartel foram processados posteriormente nos EUA. Não obstante, os governos das nações envolvidas resistiram aos processos nos EUA e atritos políticos emergiram durante o caso já que os julgamentos dos EUA contra os membros do cartel foram considerados ilegítimos no exterior. 412 145 Estes atritos ainda são mais relevantes quando há pedidos elevados de compensação em certos países como, por exemplo, geralmente ocorre dentro do sistema dos EUA, que reconhecidamente adota pesadas sanções em termos de compensação pela prática de cartéis414. Por fim, a aplicação extraterritorial também traz certas incertezas quando analisada com base no direito internacional público, tal como na aplicação do “princípio da não intervenção” e, de outro lado, do Act of State doctrine, o que será visto melhor adiante. Deve também ser observado que o empenho internacional, até agora, não teve sucesso em reduzir significativamente as limitações de execução das jurisdições pequenas ou em desenvolvimento. Os PEDs precisariam tratar dessas questões de maneira unilateral, ou seja, cada jurisdição deve impor o cumprimento de suas leis com relação às questões que afetam sua jurisdição. Conforme se viu na Parte I desse estudo, os organismos internacionais como a OCDE, a UNCTAD e a ICN criaram importantes locais para a coordenação e cooperação voluntárias. Trata-se de soft laws (que será visto novamente ao final), isto é, de compromissos que não são formalmente vinculantes. As organizações têm sido importantes na abordagem da coordenação e na tentativa de harmonização procedimental, mas não têm tido o mesmo sucesso em questões em que há desacordo. Considerando os pontos acima, entende-se que somente a aplicação extraterritorial das leis de concorrência nacionais ainda não é suficiente para tratar de práticas anticompetitivas numa dimensão internacional, especialmente considerando a prática de cartéis de exportação. Assim, as leis nacionais, nesses casos, deveriam ter pelo menos um suporte com base em uma cooperação 414 Por exemplo, nos EUA em 1999, após pagar uma total de USD 875 milhões em multas criminais, 07 produtores envolvidos no caso do cartel das vitaminas cartel pagaram por reparação de danos (class action lawsuit) USD 1.2 bilhões. Ainda mais recente, no caso entre a Visa e o MasterCard a reparação (class action lawsuit) foi de USD 3.4 bilhões em danos. A Comissão Européia estima que a indenização paga às vítimas de violações antitruste giram anualmente entre € 5.7 bilhões e € 23.3 bilhões. Nesse sentido veja-se: CE. Cartel Damage Claims (CDC). The European Brand For Private Antitrust Enforcement. Disponível em:<http://www.carteldamageclaims.com/> Acesso em 15 ago. 2010. 146 intergovernamental ou, no cenário ideal, essas condutas poderiam ser analisadas por meio de regras multilaterais415. 4.3 A experiência das Comunidades Européias (CE) A metodologia das isenções foi adotada no sistema antitruste europeu com a finalidade de flexibilizar as suas normas. Veja-se que, apesar do artigo 81416 (antigo artigo 85) do Tratado CE considerar nulas todas as práticas que possam prejudicar o comércio entre os Estados-membros e que tenham por objeto ou por efeito impedir, restringir ou falsear o jogo da concorrência no mercado comum417, esse artigo considera lícitas tais práticas quando resulte em uma melhora da produção ou distribuição de bens, ou progresso técnico ou econômico418. O artigo 81 do Tratado da CE proíbe atos de cooperação anticoncorrencial que possam afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo, ou efeito, a prevenção, restrição ou distorção da concorrência dentro do mercado comum. O artigo 82 do Tratado da CE aborda o abuso da posição 415 Essa opinião também é partilhada por KROL, 2007, p. 108. Artigo 81.1. São incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transação b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse fato, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos. 2. São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo. 3. As disposições no n. 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: — a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, — a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e — a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou econômico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte eqüitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objetivos; b) Nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa. O Tratado de Roma teve sua redação alterada pelo Ato Único Europeu, de 1986, pelo Tratado de Maastricht, ou da União Européia, de 1992, e pelo Tratado de Amsterdã, de 1997. 417 Tratado da CE, artigo 85, §§ 1.º e 2.º. 418 Tratado da CE, artigo 85, § 3.º. 416 147 dominante “dentro do mercado comum” se esse abuso “puder afetar o comércio entre Estados Membros”. Dessa forma, a redação de ambos os dispositivos está expressamente relacionada com os efeitos no Mercado Comum. Não obstante essas referências aos efeitos exclusivamente no mercado comum e somente ao comércio entre os Estados-Membros, a Comissão e o Tribunal de Justiça da União Européia (ECJ) entenderam, em princípio, que esses dispositivos se aplicam aos cartéis de exportação que visam o mercado estrangeiro419. Veja-se que a Comissão também destacou o caráter anticompetitivo de uma proibição contratual de exportar para países fora da CE, ao não permitir empresas de terceiros estados a comprar e re-importar o produto.420 É importante que não haja a intenção de prejudicar a concorrência dentro do mercado comum. Contudo, se um cartel de exportação puro é criado, por exemplo, para comercializar produtos sem afetar o mercado dentro da CE, possivelmente não haverá nenhuma repercussão no Mercado Comum421. Assim, essa conduta não 419 BECKER, 2007, p. 105. Veja-se: CE. Case-C306/96, Javico International and Javico AG v. Yves Saint Laurent Parfums SA, 1998. Colectânea da Jurisprudência 1998 página I-01983. Acórdão do Tribunal de 28 de Abril de 1998. “28 [...] o artigo 85._, n._ 1, do Tratado se opõe à proibição imposta por um fornecedor estabelecido num Estado-Membro da Comunidade a um distribuidor estabelecido noutro EstadoMembro, ao qual confia a distribuição dos seus produtos num território situado fora da Comunidade, de proceder a qualquer venda num território diferente do território contratual, incluindo o território da Comunidade, tanto por comercialização directa como por reexpedição a partir do território contratual, se tal proibição tiver por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no interior da Comunidade e se envolver o risco de afectar os fluxos de trocas entre os Estados-Membros. Pode ser esse o caso quando o mercado comunitário dos produtos em causa se caracteriza por uma estrutura oligopolística ou por uma diferença sensível entre os preços do produto contratual praticados no interior da Comunidade e os praticados no exterior da Comunidade e quando, tendo em conta a posição ocupada pelo fornecedor dos produtos em causa e o volume da produção e das vendas nos EstadosMembros, a proibição implica um risco de influência sensível sobre os fluxos de trocas entre os Estados-Membros susceptível de prejudicar a realização dos objectivos do mercado comum. [...] as cláusulas destinadas a impedir um distribuidor de vender directamente, bem como de reexportar para a Comunidade, produtos contratuais que se comprometeu a vender em países terceiros não escapam à proibição do artigo 85._, n._ 1, do Tratado pelo facto de o fornecedor comunitário em causa distribuir os seus produtos no interior da Comunidade por intermédio de um sistema de distribuição selectiva que é objecto de uma decisão de isenção ao abrigo do artigo 85._, n._ 3, do referido Tratado.” Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61996J0306 :PT:HTML>. Acesso em: 22 jun. 2010. 421 “Essa política, que se aplica apenas às exportações com destino a certos países terceiros, não afecta especificamente as exportações para os Estados-membros e não se destina a assegurar uma vantagem particular à produção nacional ou ao mercado interno do Estado-membro em questão. [...] uma medida como a que está em causa, que se aplica especificamente às exportações de petróleo para um país terceiro, não é, por si só, e natureza a restringir ou a falsear a concorrência no interior do mercado comum. Não pode por isso afectar o comércio intracomunitário e violar os artigos 3˚, alínea f), 5˚ e 85˚ do Tratado.” CE. Eur-Lex. No processo 174/84, Bulk OU (Zug) AG v. Sun International Limited e Sun Oil Trading Company, Acórdão do Tribunal de 18 de Fevereiro de 1986, p. 420 148 seria proibida pela legislação concorrencial da CE em razão da ausência de efeitos dentro do mercado comum. Em regra, não é possível, no sistema europeu, a concessão de isenções para práticas de abuso de posição dominante, já que o Tratado CE prevê a possibilidade de isenções tão-somente aos acordos entre empresas que não sejam restritivos à concorrência422. De acordo com FORGIONI, quando da utilização do método de isenções, duas normas deverão ser seguidas: uma que veda, de forma geral, as práticas restritivas da concorrência, e outra específica, que autoriza a prática restritiva uma vez concedida a isenção423. Na CE a Comissão é o órgão executivo que examina todas as práticas que em princípio são restritivas à concorrência. Como havia um elevado número de casos submetidos à apreciação, vários regulamentos foram formados com o escopo de isentar determinadas categorias de práticas, chamados block exemptions (isenções em blocos). Veja-se que essa sistemática já havia sido adotada pelo Tratado de Paris, no artigo 66, § 3˚424. A Comissão Européia pode revogar as isenções concedidas, uma vez verificada a falsidade nas informações prestadas ou o descumprimento das obrigações e compromissos assumidos. Deste modo, com a revogação, o ato que era isento passa a ser ilícito de acordo com o sistema europeu antitruste425. Vale notar que, embora não haja grandes preocupações na CE externadas sobre os cartéis de exportação, em 1995, a Comissão Européia emitiu um relatório em que recomendou o aumento da cooperação entre as autoridades de concorrência ao redor do mundo, justamente considerando que “há mais e mais 589. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61984J0174:PT: PDF>. Acesso em: 15 jun. 2010. (português de Portugal). 422 FORGIONI, 1998, p. 188. 423 FORGIONI, 1998, p. 189. 424 “The High Authority shall exempt from the requirement of prior authorisation such classes of transactions as it finds should, in view of the size of theassets or undertakings concerned, taken in conjunction with the kind of concentration to be effected, be deemed to meet the requirements of paragraph 2. Regulations made to this effect, with the assent of the Council, shall also lay down the conditions governing such exemption”. 425 Cabe dizer que as isenções são distintas dos atestados negativos concedidos pela Comissão. Estes últimos declaram que a prática submetida a apreciação da autoridade não procura restringir a concorrência no mercado europeu, já as isenções legitimam as práticas restritivas. Cf. FORGIONI, 1998, p. 192. 149 problemas concorrências que transcendem os limites nacionais”, incluindo os cartéis de exportação426. Apesar das normas da CE não encorajarem, expressamente, os cartéis cujos efeitos são sentidos apenas nos mercados de exportação, é fato que não há vedação para essa atividade. Veja-se também que, em razão da ausência de efeitos no mercado da CE, caso essas atividades sejam questionadas, entende-se que o Tratado da CE não teria competência atribuída para lidar com essas questões: O representante da Comunidade Européia e dos seus Estados membros, disse que, enquanto as regras da Comunidade Européia não expressamente isentam, toleram ou encorajam os cartéis, cujos efeitos são sentidos apenas nos mercados de exportação, a Comissão não teria competência para lidar com eles, por falta de efeitos no mercado da CE. No entanto, na realidade, essa situação não tem ocorrido com freqüência. [...] Freqüentemente, durante as investigações, os membros do cartel são forçados a abandonar tais atividades externas, uma vez que eles são vistos pela Comissão como apoiando e complementando as práticas ilegais. O reforço da cooperação internacional pode contribuir para um controle mais eficaz dos membros do cartel em relação aos aspectos externos das suas atividades [...]427. (grifos no original) A Comissão também entende que com a progressiva globalização dos mercados, já não é tão obvia e clara a distinção entre os efeitos nos mercados interno e os efeitos nos mercados de exportação. Desse modo, a CE tem se manifestado no sentido de ser favorável ao estabelecimento de meios mais eficazes para lidar com esses casos e também destaca a importância de se criar um novo regime para promover a cooperação em nível multilateral428. Nesse sentido vale a declaração abaixo do representante da CE exposto em documentos da OMC que defende que, do ponto de vista da sua delegação, a OMC era mais do que apenas um instrumento para a negociação equilibrada das concessões. Este entendimento baseia-se no fato de que a OMC tem um mandato 426 CE. Comissão Européia. Report of the group of experts competition policy in the new trade order: strengthening international cooperation and rules. COM(95) 359 final, Brussels, 12.07.1995, p. 11. 427 WTO. WGTCP - Report on the Meeting of 2-3 October 2000 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/12, 08/11/2000, p. 10-11. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 428 “In all those situations, it was considered that there was scope for cooperation with authorities in other countries where the cartel operated. Establishing more effective means of addressing such cases would be an important benefit of new arrangements to promote enhanced cooperation at the multilateral level.” WTO. WGTCP - Report on the Meeting of 2-3 October 2000 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/12, 08/11/2000, p. 10-11. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 150 para estabelecer regras para reger as relações de comércio internacional e garantir que países em desenvolvimento e outros Membros não sejam injustamente privados dos benefícios da liberalização429. Nesse mesmo documento, o representante da CE indicou que entendia ser difícil identificar qualquer área da política econômica que tivesse mais claramente relacionada com o comércio do que a política de concorrência. Nesse sentido, indicou ainda que os tipos de práticas anticoncorrenciais que haviam sido discutidas no Grupo de Trabalho tinham um claro efeito de distorção sobre o comércio internacional, bem como um impacto negativo sobre o desenvolvimento. Entre essas práticas incluíam-se: os cartéis internacionais, os cartéis de exportação e as práticas de exclusão com dimensão internacional. Assim, o presentante da delegação da CE entedeu ser “estranho” que a OMC, como uma organização internacional, não se preocupe com essas práticas430. 4.3.1 O caso Wood Pulp e a teoria dos efeitos Veja-se que a teoria dos efeitos também está presente na prática da CE. Um caso interessante que reflete a sua aplicação é o caso conhecido como “The Wood Pulp Case” (madeira transformada em polpa utilizada para fabricação de papel). Em 19 de dezembro de 1984, a Comissão Européia estabeleceu em sua decisão431 a aplicação de multa para produtoras não européias de polpa de madeira além da aplicação de multas às associações (também não européias) de produtores de Wood Pulp (entre elas a Kraft Export Association - "KEA") por infringir o dispositivo do artigo 85 Tratado CE. Conforme já foi apontado, são condenáveis pela CE as infrações à ordem econômica, ou seja: acordos entre empresas concorrentes ou entre associações de empresas, e práticas concertadas, que tenham por objetivo (ou efeito) impedir, 429 WTO. WGTCP. Report on the Meeting of 2-3 October 2000 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/12, 08 Nov. 2000, p. 22 Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 430 “[...] accordingly, it was a bit strange to suggest that the WTO as an international organization should not concern itself with these practices.” WTO. WGTCP. Report on the Meeting of 2-3 October 2000 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/12, 08 Nov. 2000, p. 22. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 431 CE. Decision IV/29.725 of 19 December 1984. Official Journal, 1985, L 85, p. 1. Em maio do ano seguinte à decisão, as acusadas entraram com um pedido de anulação desta decisão. 151 restringir ou prejudicar a livre concorrência e o livre comércio entre EstadosMembros, fixando preços ou estabelecendo quaisquer outras condições de venda ou aqueles que dividem mercados ou fontes de fornecimento. Conforme explica WHISH, o caso Wood Pulp colocou em questão o reconhecimento, pela Comissão Européia, da teoria dos efeitos (effects doctrine) na aplicação da legislação antitruste, especialmente para os casos europeus432. Veja-se que, de acordo com a teoria dos efeitos, o país de origem das empresas é irrelevante para a devida aplicação da legislação antitruste. Desta forma, as leis nacionais de defesa da concorrência devem ser aplicáveis tanto às empresas estrangeiras, como também às empresas nacionais, quando seu comportamento prejudicar a livre concorrência do país. Para entender as justificativas da Comissão Européia ao condenar essas empresas e associações, foi importante analisar os aspectos específicos no mercado mundial de polpa de madeira. As principais fontes mundiais de suprimento de madeira estão no Canadá, nos EUA, na Suécia e na Finlândia, portanto, considerou que se tratava de um mercado de dimensões globais. Na prática, os produtores negociavam os preços diretamente com os compradores. A decisão da CE entendeu que quando os produtores acordaram os preços cobrados aos clientes europeus e colocaram em prática o acordo, vendendo a preços combinados, eles tiveram como objetivo restringir a concorrência (artigo 85 do Tratado). De acordo com os termos da decisão, se a Comissão Européia entendesse que as leis de defesa da concorrência devessem ser aplicadas na jurisdição onde os acordos foram formados, obviamente, seria muito fácil para as empresas contornarem as infrações. O fator decisivo considerado pela Comissão foi o lugar onde ocorreram as práticas acordadas e seus efeitos.433 Nesse sentido, essa decisão serviu como modelo para outros casos que envolveram questões sobre a extraterritorialidade da lei da concorrência na CE. Vale destacar que atualmente a Comissão, em quase todos os casos semelhantes, tem 432 WHISH, Richard. Competition Law. 6ª Ed. New York: Oxford University Press, 2009, p. 480. CE. Eur-Lex. Judgment of the Court of 27 September 1988. Concerted practices between undertakings established in non-member countries affecting selling prices to purchasers established in the Community. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/>. Acesso em: 03 ago.2010. 433 152 reconhecido a teoria dos efeitos (effects doctrine), por mais que ainda não exista uma regra específica434. 4.4 A experiência dos EUA Os EUA, como um dos pioneiros no desenvolvimento de regras antitruste, também é considerado como o pioneiro a conceder isenção às condutas anticompetitivas relacionas à exportação, apesar das condutas anticompetitivas relacionas às importações serem processadas geralmente com muito rigor435. Desde 1909, a aplicação extraterritorial da lei antitruste norte-americana tem sido um tema muito controverso. No início os tribunais norte-americanos empregaram uma abordagem territorial conservadora conforme se observa no caso importante American Banana Co v. United Fruit Co, 213 U.S. 347 (1909), duas décadas antes do entendimento desenvolvido no famigerado caso Lotus, sobre jurisdição internacional436. No caso entre a American Banana Co. e a United Fruit Co. a Suprema Corte Americana manteve a interpretação de que a aplicação da lei nacional deveria estar restrita aos limites territoriais do Estado, o que traduz os termos gerais do chamado “princípio da territorialidade”. 434 Veja-se no mesmo sentido: WHISH, 2009, p. 479. BECKER, explica que há algumas exceções relacionadas às exportações de um único país no formato de cartel de exportação (2007, p. 101). Veja-se também: WALLER, Spencer Weber. The ambivalence of United States Antitrust Policy Towards Single-country Export Cartels. Northwestern Journal of International Law & Business 98, 1989/90. 436 PICJ, The case of the S.S. “Lotus” 1927. Series A, N.10 Collection of Judgments. A Corte Permanente de Justiça Internacional, entendeu no caso Lotus que "[...] o que pode ser exigido de um Estado é que não ultrapasse os limites que o direito internacional impõe à sua jurisdição; dentro destes limites, seu título para exercer sua jurisdição repousa em sua soberania". Trata-se de um dos casos mais mencionados da jurisprudência internacional. Em resumo, um navio francês (chamado Lotus) bateu em um navio turco em alto-mar. Esse acidente teve como conseqüência a morte de cinco dos tripulantes turcos além do afundamento do navio. Após prestar socorro, o navio francês seguiu ao porto turco de Constantinopla, local em que o oficial francês, Tenente Demons, foi preso e denunciado pelas mortes dos tripulantes turcos. O tenente foi processado pela Justiça Turca e condenado a cumprir pena na Turquia. Inconformada com a decisão, a França alegou que o acidente se deu em alto-mar (sob jurisdição de nenhum Estado) propondo à Turquia a submissão do caso à Corte Internacional de Justiça (CIJ). A Turquia concordou em levar a questão à CIJ e, por maioria de votos, o caso foi julgado favoravelmente, entendendo-se que não havia no direito internacional proibição da Turquia de aplicar a sua lei penal ao caso em questão. 435 153 Em resumo, com base no Sherman Act, a empresa americana chamada American Banana ingressou com ação contra a empresa americana United Fruit em razão do governo da Costa Rica ter confiscado os equipamentos e terras da American Banana que estavam em seu território. Essa decisão do governo costa-riquenho teria favorecido a United Fruit por meio do monopólio da exportação e do comércio interno de bananas nos EUA. Assim, nesse caso, a Suprema Corte Americana decidiu que os atos políticos ou de império dos Estados - Act of Estate437 - seriam de jurisdição absoluta estando, dessa forma, fora da área de competência de outros Estados. Ou seja, a aplicação do Act of State Doctrine trouxe um limite à jurisdição extraterritorial Conforme explica MAGALHÃES: A importância do caso reside no fato de se tratar de questão envolvendo práticas monopolísticas levadas a efeito por empresa norte-americana, fora do território dos Estados Unidos, tendo a Suprema Corte se pautado estritamente pelo princípio da territorialidade da jurisdição, respeitando a jurisdição e competência alheias438. Nesse caso havia um problema claro relacionado à efetividade e aos resultados, pois foi considerada a falta de prova do concurso da United Fruit para o resultado monopolístico. Considerando-se que o ocorrido deu-se no território da Costa Rica, a Suprema Corte sabia da inviabilidade de se executar na Costa Rica decisão diversa. Sobre esse julgado interessante envolvendo direito antitruste, vale observar as explicações sobre o entendimento dos conceitos de soberania e territorialidade que fundamentaram a decisão. 437 Essa tese de Act of State chegou a ser aprofundada no caso Sabbatino, que reconheceu a incompetência dos tribunais americanos para julgar atos políticos de império e de Estado. Nesse caso, o debate sobre a ampliação da jurisdição americana tratou também de argumentos relacionados à separação de poderes. U.S. SUPREME COURT. Banco Nacional de Cuba v. Sabbatino, 376 U.S. 398 (1964). Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl? navby=search&court=US&case=/us/376/398.html>. Acesso em: 10 jan 2010. A "teoria de ato do Estado" refere-se aos atos praticados por outros países em suas jurisdições. Essa teoria de common law já havia sido explorada anteriormente no caso Underhill v. Hernandez (1897): "as cortes de um país não julgarão os atos executados por outro governo no seu próprio território". Essa teoria ainda é apresentada como fundamento em outros casos mais recentes. Nesse sentido, veja-se o caso W.S. Kirkpatrick & Co., Inc. v. Environmental Tectonics Corp (1990). RAMSEY, Michael D. Acts of State and Foreign Sovereign Obligations. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 39, n. 1, 1998. 438 MAGALHÃES, José Carlos de. A aplicação extraterritorial de leis nacionais. São Paulo: Revista Forense. Vol. 293, 1986, p. 96. 154 Sem dúvida, em regiões sujeitas a nenhum soberano, como o alto mar, ou a nenhuma lei que os países civilizados reconheceriam como [213 E.U. 347, 356] adequada, esses países podem tratar algumas relações entre os seus cidadãos como regidas pela sua própria lei, e manter viva, em certa medida, a antiga noção de soberania pessoal439 [...]. Eles vão mais longe e às vezes declararam que irão punir qualquer um, sujeitos ou não à punição, que talvez façam determinadas coisas e estejam aptos a serem capturados, como no caso de piratas em alto mar. Em casos que imediatamente afetam os interesses nacionais eles podem ir ainda mais longe e podem, se tiverem a oportunidade, executar ameaças semelhantes como atos praticados dentro de outra jurisdição reconhecida. Uma explicação de nossas leis é encontrada no que diz respeito à correspondência penal com governos estrangeiros.440 [...] E a noção de ligação entre leis inglesas e súditos britânicos tem tomado lugar em todos os lugares e encontrado expressão nos tempos modernos, tendo algumas aplicações surpreendentes. R. v. Sawyer, 2 Car. & K. 101; The Zollverein, Swabey, 96, 98. Mas a regra geral e quase universal é que a característica de um ato como lícito ou ilícito deve ser determinada inteiramente pela lei do país onde o ato foi realizado.441 [...] Para uma outra competência, se acontecer de perseguir o autor para tratá-lo de acordo com as suas próprias noções em vez daquelas do local onde ele praticou os atos, não apenas seria injusto, mas seria uma interferência à autoridade de outro soberano, contrariando a cortesia das nações, o que outro Estado pode ressentir-se com justa causa. (tradução livre). Conforme conclui ALFORD, o caso da American Banana teve como entendimento que as leis antitruste norte-americanas não podiam ser aplicadas às condutas que ocorriam fora dos EUA442. Becker explica que a conseqüente falta de proteção aos comportamentos anticoncorrenciais que ocorriam fora dos EUA, mas que afetavam a economia americana, não causava preocupação em 1909 em razão da ausência da interdependência da economia global à época443. Entretanto, em 1911, a posição da Suprema Corte foi modificada com a aplicação da teoria do impacto territorial, que possibilita o julgamento de litígios cujos efeitos sejam observados em território nacional, ainda que sua existência ocorra no 439 Nesse sentido, foram citados os seguintes precedentes: The Hamilton (Old Dominion S. S. Co. v. Gilmore) 207 U.S. 398, 403, 52 S. L. ed. 264, 269, 28 Sup. Ct. Rep. 133; Hart v. Gumpach, L. R. 4 P. C. 439, 463, 464; British South Africa Co. v. Companhia de Mocambique, [213 U.S. 347, 1893] A. C. 602. 440 No original, suprimido: “Rev. Stat. 5335, U. S. Comp. Stat. 1901, p. 3624. See further, Com. v. Macloon, 101 Mass. 1, 100 Am. Dec. 89; Sussex Peerage Case, 11 Clark & F. 85, 146”. 441 Idem. Slater v. Mexican Nat. R. Co. 194 U.S. 120, 126 , 48 S. L. ed. 900, 902, 24 Sup. Ct. Rep. 581. This principle was carried to an extreme in Milliken v. Pratt, 125 Mass. 374, 28 Am. Rep. 241. 442 ALFORD, Roger P. The extraterritorial application of antitrust laws: The United States and the European Community approaches. Virginia Journal of International Law, vol. 33, n˚. 1, 1992, p. 7. 443 BECKER, 2007, p. 101. 155 exterior444. De fato, quanto mais as economias tornavam-se interdependentes, e quanto mais as empresas americanas sofriam competição externa, mais urgente mostrava-se a necessidade de uma abordagem flexibilizada do princípio da territorialidade. Nesse contexto, alguns casos merecem ser mencionados, tal como o US v. American Tobacco Co445, um dos primeiros casos relevantes de matéria antitruste e um dos mais citados até os dias atuais. A American Tobacco Company controlava, em 1880, cerca de 90% da produção de cigarros nos EUA. Organizada como um truste446, a empresa obteve a sua posição no mercado adquirindo empresas como a Union Tobacco e a Continental Tobacco. O crescimento do seu market share deu-se também por meio de um agressivo comportamento, pois foi alegado que geralmente a empresa aplicava preços abaixo dos custos de produção447. Em maio de 1911, a Suprema Corte americana julgou que a American Tobacco Company violava o Sherman Act. Assim, foi determinada a distribuição de seus ativos entre outras empresas no sentido de promover condições de concorrência mais equilibradas no mercado448. Entretanto, há controvérsias em relação à efetividade dessa decisão conforme explicam CRANDALL e WINSTON: No entanto, o efeito da reestruturação da indústria do tabaco em um oligopólio desencadeou uma batalha por participação de mercado através da publicidade, não de preço. Os preços reais dos cigarros eram essencialmente estáveis nos anos anteriores e seguintes da decisão judicial, e subiram vários anos mais tarde, em resposta aos aumentos de impostos sobre o consumo de tabaco. A cisão da 444 A Suprema Corte americana aplicou esse princípio em outros casos além do famigerado US v. American Tobacco Co, 221 U.S106 (1911). 445 US v. American Tobacco Co, 221 U.S106 (1911). 446 “[...] Mais importante do que fixar uma definição é ter em mente que os “trusts” permitem a uma determinada pessoa ter o gozo de um determinado bem sem figurar nominalmente como sua proprietária ou titular. Dessa utilidade básica derivam inúmeras aplicações práticas. Entre as hipóteses de sua aplicação lícita está a proteção de incapazes ou de pessoas inexperientes no trato mercantil, as quais podem se beneficiar de um patrimônio sem deter sua titularidade e incorrer nos riscos de perda ou dissipação dão decorrentes. Outra utilidade dos “trusts” é a organização do controle das sociedades, com a concentração de ações votantes em mãos de um só titular, o qual fica obrigado a exercer os direitos de sócio em benefício de proprietários originais que tenham sido transferido.” SALOMAO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. Sao Paulo: LTr, 1996, p. 19 447 CRANDALL; Robert W., WINSTON, Clifford. Does Antitrust Policy Improve Consumer Welfare? Assessing the Evidence. Journal of Economic Perspectives, v. 17, n˚. 4, Fall 2003, p. 09. 448 “Outros casos ocorridos ao longo do século XX revelaram que o poder de mercado nessa indústria advém de três fontes: o controle sobre os canais de distribuição, a fidelidade do consumidor à marca, e as economias de escala nas atividades de publicidade e promoção de novas marcas. (Letwin, 1965; Jaffe, 2001)”. Apud, ARAUJO, 2009, p. 03. 156 American Tobacco também não afetou o preço pago aos produtores de tabaco. Ausente a concorrência de preços, o oligopólio era altamente rentável, essencialmente ganhando a mesma taxa de lucro durante 1912-1949 como o Trust ganhou durante 1898-1908. A estabilidade da taxa de lucro da indústria e a ausência de uma clara regressão nos preços após 1911 sugerem que a American Tobacco fez pouco caso para estimular a concorrência significativa nesta indústria.449 Como conseqüência de uma economia mais global, os Tribunais americanos passaram a aplicar a lei antitruste à conduta das empresas americanas nos mercados externos quando estas restringiam ou monopolizavam o comércio externo norte-americano, isso tanto quando essas empresas agiam unilateralmente como também quando agiam em conjunto com parceiros de outros países450. Conforme explica BECKER, de acordo com esse tipo de jurisprudência qualquer restrição ao comércio internacional dos EUA era proibida independentemente de onde a conduta tenha ocorrido, seja dentro dos EUA ou fora451. Nessa época, é interessante observar que nos EUA a mera existência de uma lei antitruste era citada como um sério impedimento para o estabelecimento de cooperação para exportação. Conforme explicam LEVENSTEIN e SUSLOW, em 1918 o congresso americano estava preocupado com a fragilidade das companhias americanas para enfrentar a concorrência dos cartéis estrangeiros452. Em adição, alegava-se que os custos fixos elevados das exportações restringiam a habilidade das pequenas e médias empresas de ingressar em mercados estrangeiros453. Para tratar dessa situação, uma exceção às exportações foi prevista no Webb-Pomerene Export Trade Act of 1918 (WPA) para a proibição geral contida no 449 CRANDALL, WINSTON, 2003, p. 09. Veja-se os caso United States v. National Lead Co., 332 U.S. 319 (1947) em que foi constatado que os réus tinham participado de um cartel internacional para restringir o comércio de produtos de titânio, entre os diversos estados dos EUA e com participação de países estrangeiros, através de um pool de patentes e repartição dos mercados em violação ao § 1 º do Sherman Act; e o caso United States v.Timken Roller Bearing Company, 341 U.S. 593 (1951) - conluio entre uma empresa norteamericana com uma empresa britânica e uma empresa francesa, em que cada uma tinha interesse em conter o comércio nacional e estrangeiro da fabricação e venda de rolamentos. O Tribunal Distrital verificou que havia acordos que violavam o Sherman Act entre as corporações que dividiram entre si territórios para o comércio; fixaram preços para os produtos, colaboraram para proteger e eliminar a concorrência externa, restringindo as importações e exportações. No mesmo sentido: United States v. General Eletric Co, 82 F Supp 753 (DNJ 1949); e Continental Ore Co. V. Union Carbide and Carbon Corp, 370 U.S. 690 (1962). 451 BECKER, 2007, p. 102. 452 LEVENSTEIN; SUSLOW. The Changing International status of export cartels. American University International Law Review n˚. 789, 2004, p. 5. 453 BECKER, 2007, p. 102. 450 157 parágrafo primeiro do Sherman Act. A exceção contida no WPA excetuava da proibição geral antitruste a formação e operação de associações engajadas a realizar vendas coletivas para exportação. O Congresso aprovou a Lei, quando apenas alguns poucos países tinham políticas eficazes de defesa da concorrência. Como as empresas americanas, especialmente as menores, operavam em desvantagem competitiva nos mercados estrangeiros, o Congresso buscou por meio de a WPA facilitar o comércio "tentando reduzir os diversos obstáculos à participação de pequenas empresas"454. Conforme um Congressista explicou, no sentido de facilitar vantagem competitiva dos produtores norte-americanos: Eu, pelo menos, sou a favor de dar a um fabricante americano possibilidade de igualdade com o fabricante estrangeiro. Eu não iria privá-lo de qualquer vantagem legitima na corrida mundial para o comércio. Gostaria de mantê-lo no âmbito das disposições da Lei antitruste Sherman sempre que a bandeira Americana balançar ao vento, mas fora isso eu iria deixá-lo solto e diria a ele, nós permitimos a você fazer em países estrangeiros somente o que os países estrangeiros permitem que seus concorrentes façam.455 (tradução livre). Vale destacar que a WPA não protege as empresas americanas da aplicação do Sherman Act quando essas empresas fazem parte de um cartel internacional. A WPA deu imunidade antitruste às empresas que combinavam explorar o comércio de exportação que era considerado essencial em tempos de guerra (lembrando-se que o contexto era da primeira guerra mundial). A WPA foi muito importante porque concedeu isenções aos grandes conglomerados, sendo que muitos anteriormente tinham sido objeto de investigações, mas estavam agora livres para continuar seus negócios. Não foram todas as autoridades estrangeiras que deram crédito à conduta tolerada pelo WPA, mas alguns defensores da WPA alegavam que outros países também tinham leis que permitiam cartéis de exportação. 454 METLIN, Elaine; BATTS, Alicia J.; MARTIN, James R. The Webb-Pomerene Act: a relic that has outlived its usefulness. The Antitrust Review of the Americas, 2006, p. 84. 455 “I am in favor of giving the American manufacturer an equal chance with the foreign manufacturer. I would not deprive him of any legitimate advantage in the world’s race for trade. I would keep him within the provisions of the Sherman antitrust law wherever the American flag flies but outside of that I would turn him loose and tell him, we permit you to do in foreign countries just what those foreign countries permit your competitors to do.” 53 Con Rec 13701 (1916), Apud, METLIN; BATTS; MARTIN, 2006, p. 84. 158 Após o WPA ocorreram também mudanças na jurisprudência americana ainda no sentido de atribuir um novo entendimento sobre a questão do princípio da territorialidade e à jurisdição antitruste. Nesse contexto, cabe observar o caso US v. Sisal Sales Corp., 274 U.S. 268 (1928). A alegação central de violação nesse caso era a de que as empresas americanas que estavam sediadas no México detinham o monopólio do comércio de sisal. Nesse caso, a Suprema Corte entendeu que haveria jurisdição americana para analisar essa suposta conduta aplicando-se o Sherman Act. Em resumo, três corporações bancárias americanas, mais duas empresas americanas que negociavam o sisal e uma empresa mexicana que era responsável por comprar o sisal dos produtores, além de funcionários e agentes, haviam firmado contratos que buscavam garantir o monopólio do comércio de sisal. De acordo com o alegado, a Comisión Exportadora de Yucatan passou a ser compradora com exclusividade do sisal dos mexicanos enquanto que a Sisal Sales Corp. passou a ser a importadora exclusiva nos EUA. Como conseqüência dessa conspiração não havia mais concorrência no comércio de sisal, possibilitando aos envolvidos fixar preços abusivos dos produtos. Os bancos envolvidos foram acusados de emprestar grandes valores, viabilizando que os envolvidos na conduta monopolizassem a importação e venda de sisal nos EUA. Com a falta de pagamento, houve a execução das hipotecas que garantiam os valores. Assim, os bancos receberam em 1919 grandes quantidades de sisal que estavam armazenados e venderam o produto com valores abusivos. Foi constatado, então, que os membros dessa conspiração conseguiram obter grandes lucros e tornaram-se líderes do comércio de sisal ao eliminar a concorrência e monopolizar a compra, a importação e também a venda de sisal. Esse julgado reconheceu que as circunstâncias do caso eram muito diferentes daquelas do caso American Bananas Co456, pois neste último o pleito versava sobre atos praticados fora dos EUA que não eram considerados ilícitos pela lei costa-riquenha. Ademais, o caso Sisal envolvia uma combinação que foi realizada nos EUA. 456 Veja-se no mesmo sentido: CARVALHO, 2001, p. 55. 159 Assim, foi reconhecida a competência dos EUA para apreciar a violação da lei dentro do seu território pelas partes envolvidas que estavam sujeitas à jurisdição americana. Como a conduta provocou efeitos negativos nos EUA, as partes acabaram sendo julgadas por violar à lei norte-americana. 4.4.1 Os casos Alcoa e Timberlane e a teoria dos efeitos Anos após o US v. Sisal Sales Corp houve outro caso que merece ser mencionado em razão do marco teórico referente à aplicação do princípio da extraterritorialidade da legislação antitruste americana e que, de certo modo, também influenciou o entendimento da lei antitruste brasileira: o caso United States v. Aluminum Co. of America de 1947 (ano de criação do GATT) que tratou da teoria dos efeitos457. No que diz respeito à definição teórica da teoria dos efeitos Araújo explica que: A teoria dos efeitos poderia ser definida como uma ficção jurídica, criada pelo Estado, na qual o mesmo passa a submeter fatos ocorridos fora do seu território a sua jurisdição, justificando tal asserção em função dos efeitos danosos causados ao próprio Estado; tais efeitos autorizariam um acrescer na competência internacional.458 No caso United States v. Aluminum Co. of America, o DOJ (Department of Justice) dos EUA ingressou com ação contra a empresa americana Alcoa, a empresa canadense Alcoa Limited (Limited) - que era controladora da empresa norte-americana - e mais seis empresas estrangeiras que detinham a venda de lingotes de alumínio nos EUA. A Limited formou uma sociedade de nacionalidade suíça que era a base operacional do cartel internacional que era acusado de alocar cotas de produção e fixar preços internacionais459. Nessa decisão foi aplicada a legislação antitruste norte-americana aos envolvidos, incluindo os membros do cartel internacional que tinham nacionalidade 457 Sobre esse caso, veja-se também: FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 68. 458 ARAÚJO, 2001, sem página. 459 ADAMS, Walter. The Aluminum Case: Legal Victory-Economic Defeat. American Economic Review, v. XLI, n˚. 5, December 1951, p. 915-922. 160 suíça460. A decisão que foi proferida tratou da questão do conflito de leis e concluiu que, em determinadas situações, o Estado, quando afetado, podia avaliar as condutas e impor obrigações aos agentes de outros países. Logo, nesse caso em questão, foi aplicada claramente a teoria dos efeitos. Como era de se esperar, ocorreram criticas sobre essa decisão. Alan Greenspan, economista e ex-presidente do Federal Reserve, foi um dos críticos da decisão contra a Alcoa e entendia que a caracterização da Alcoa como uma ameaça à concorrência era errada. De acordo com GREENSPAN: A Alcoa está sendo condenada por ser muito bem sucedida, muito eficiente, e também uma boa concorrente. Qualquer dano que as leis antitruste tenham feito a nossa economia, sejam quais forem as distorções à estrutura do capital da nação que elas tenham criado, estas são menos desastrosas do que o fato de que a efetiva finalidade, a intenção oculta, e a prática das leis antitruste nos Estados Unidos levaram à condenação dos membros produtivos e eficientes da nossa sociedade porque eles são produtivos e eficientes.461 (tradução livre) Após o caso Alcoa, os Tribunais americanos passaram a avaliar e a afirmar sua jurisdição nos países estrangeiros, o que acabou gerando conflitos, pois muitos países não aprovavam e preocupavam-se com uma eventual interferência em suas soberanias. Entretanto, é importante notar que, ao mesmo tempo, muitos países passaram a incorporar a teoria dos efeitos. Devido à polêmica causada pela aplicação da teoria dos efeitos, novas decisões trabalharam entendimentos que procuravam dar maior segurança à comunidade internacional e aos terceiros países, tal como ocorreu no caso Timberlane Lumber Co. v. Bank of America (1976). 460 Conforme explica Carvalho, “a empresa norte-americana Alcoa, subsidiária da Limited, não participava diretamente do cartel, nem como parte do acordo, nem como acionista da corporação suíça [...]. O caso Alcoa expandiu o conceito de território antes de abandonar as bases territoriais de asserção jurisdicional, acabando, por conseqüência, com os limites nacionais para casos potencialmente mais abrangentes e invariavelmente afetando interesses estrangeiros”. CARVALHO, 2001, p. 56. 461 “Whatever damage the antitrust laws may have done to our economy, whatever distortions of the structure of the nation's capital they may have created, these are less disastrous than the fact that the effective purpose, the hidden intent, and the actual practice of the antitrust laws in the United States have led to the condemnation of the productive and efficient members of our society because they are productive and efficient”. USA. Alcoa. Disponível em: <http://chaste.eu/alcoa_en.html> Acesso em: 12 fev. 2010. 161 Nesse caso a Timberlane Lumber acusava o Bank of America de conluio com outras empresas para impedir e/ou dificultar a exploração de madeira em florestas em Honduras. Alegava-se que para atingir esse objetivo os funcionários e autoridades de Honduras apoiavam a conduta supostamente ilícita excluindo a Timberlane Lumber do mercado hondurenho e limitando também as exportações de Honduras para os EUA462. A questão sobre a jurisdição americana novamente foi refletida e de acordo com os termos da decisão: Mesmo entre os tribunais americanos e comentaristas, entretanto, não há consenso sobre até que ponto a jurisdição deve se estender. O Tribunal Distrital concluiu aqui que um “efeito direto e substancial" no comércio exterior dos Estados Unidos era um pré-requisito, sem esclarecer se outros fatores foram relevantes ou considerados.463 Preliminarmente questionava-se se os tribunais americanos seriam competentes para avaliar o caso. Os elementos que foram ponderados na decisão incluem: i) o grau de conflito com a lei estrangeira, ii) a nacionalidade das partes e os locais principais das empresas ou sociedades, na medida em que a aplicação da lei por um ou outro Estado podia ser esperada, iii) a importância relativa aos efeitos sobre os EUA em comparação com os outros países (na medida em que há o propósito explícito de prejudicar ou afetar o comércio americano), iv) a capacidade de prever tais efeitos, v) a importância da violação e da conduta praticada dentro dos EUA em comparação com a conduta no exterior464, entre outros. Ficou fundamentado que esses fatores deveriam ser avaliados com a identificação da potencialidade de conflito. Após avaliar o conflito, o tribunal deveria, então, determinar se os interesses dos EUA seriam suficientes para o exercício da jurisdição extraterritorial. 462 USA. Timberlane Lumber Co. V. Bank of America, N.T. & S.A 549 F.2d 597 (9th Cir. 1976). “Even among American courts and commentators, however, there is no consensus on how far the jurisdiction should extend. The district court here concluded that a "direct and substantial effect" on United States foreign commerce was a prerequisite, without stating whether other factors were relevant or considered. The same formula was employed, to some extent, by the district courts in the Swiss Watch case, 1963 Trade Cases P 70,600, in United States v. R. P. Oldham Co., 152 F.Supp. 818, 822 (N.D.Cal.1957), and in General Electric, 82 F.Supp. at 891. FN17 It has been identified and advocated by several commentators. See, e. g., W. Fugate, Foreign Commerce and the Antitrust Laws 30, 174 (2d ed. 1973); J. Van Cise, Understanding the Antitrust Laws 204 (1973 ed.). See also Report of the Attorney General's National Committee to Study the Antitrust Laws 76 (1955) ("substantial anticompetitive effects"); Restatement (Second) of Foreign Relations Law of the United States 18. FN18” Timberlane Lumber Co. V. Bank Of America, N.T. & S.A 549 F.2d 597 (9th Cir. 1976), p. 09. 464 Timberlane Lumber Co. V. Bank of America, N.T. & S.A 549 F.2d 597 (9th Cir. 1976), p. 13. 463 162 A decisão concluía que o problema deveria ser abordado em três partes, respondendo às seguintes questões: i) a restrição alegada afeta, ou tem a intenção de afetar o comércio exterior dos EUA? ii) Essa conduta seria de que tipo e magnitude, a ponto de ser reconhecível como uma violação do Sherman Act? iii) Por uma questão de cortesia internacional e de equidade, deverá ser afirmada a jurisdição extraterritorial dos EUA para tratar da conduta?465 A Timberlane alegou que as supostas condutas anticoncorrenciais foram destinadas a afetar a exportação de madeira serrada de Honduras para os EUA e também o fluxo de comércio exterior dos EUA. Assim, as condutas seriam da competência dos tribunais federais com base no Sherman Act. Além disso, a magnitude das condutas alegadas parecia ser suficiente para justificar essa competência466. Após a análise, as respostas não foram consideradas satisfatórias, ou seja, não foi considerada que se tratava de competência dos EUA. O Tribunal considerou que os EUA apenas teriam jurisdição se o efeito sobre o comércio do país fosse “suficientemente grande” (sufficiently large), e o exercício de jurisdição extraterritorial fosse justificado. Os tribunais deveriam avaliar o potencial conflito resultante da aplicação da extraterritorialidade, ou seja: os efeitos nos EUA deveriam seriam ser relevantes para justificar a jurisdição nacional467. Mesmo diante dessa decisão, não havia confiança internacional na moderação do judiciário norte-americano na aplicação da extraterritorialidade (i.e., Cartel do Urânio468), mas esse caso não deixa de ser importante, uma vez que 465 Timberlane Lumber Co. V. Bank of America, N.T. & S.A 549 F.2d 597 (9th Cir. 1976), p. 13-14. Vale observar que oi Sherman Act não se limitava à restrição ao comércio que tinha ao mesmo tempo um efeito direto e substancial no comércio exterior norte-americano. 466 Timberlane Lumber Co. V. Bank of America, N.T. & S.A 549 F.2d 597 (9th Cir. 1976), p. 14. 467 “The elements to be weighed include the degree of conflict with foreign law or policy, the nationality or allegiance of the parties and the locations or principal places of business or corporations, the extent to which enforcement by either state can be expected to achieve compliance, the relative significance of effects on the United States as compared with those elsewhere, the extent to which there is explicit purpose to harm or affect American commerce, the foreseeability of such effect, and the relative importance to the violations charged of conduct within the United States as compared with conduct abroad. A court evaluating these factors should identify the potential degree of conflict if American authority is asserted. […] Having assessed the conflict, the court should then determine whether in the face of it the contacts and interests of the United States are sufficient to support the exercise of extraterritorial jurisdiction.” 468 Nesse caso de 1976 a Westinghouse Electric Corporation foi processada por 07 empresas por inexecução de obrigação contratual, por recusa de venda de urânio nas condições contratadas. A defesa da Westinghouse alegou que havia sido um cartel internacional que tinha causado um aumento extraordinário de preços o que, conseqüentemente, inviabilizou o fornecimento. Assim, a 163 influenciou a adoção da regra da razão por outros tribunais, como se viu, por exemplo, no caso Mannington Mills Inc. v. Congoleum Corp.,(3d Cir. 1979)469. 4.4.2 O Export Trading Company Act of 1982 (ETC) Sete décadas após o WPA e após inúmeras decisões que trabalharam conceitos importantes à época relacionados à aplicação do Sherman Act às condutas realizadas fora dos EUA, surgiu o Export Trading Company Act of 1982 (ETC) para encorajar as seguintes atividades: i) exportações por meio da facilitação da formação e operação de empresas de comércio de exportação, ii) associações para a exportação comercial, e iii) a expansão dos serviços de comércio exterior em geral. Portanto, o ETC estabeleceu um novo procedimento para os exportadores norte-americanos, dando a oportunidade de obtenção de isenção à aplicação das leis antitruste dos EUA. Entretanto a aplicação dessa isenção (ou imunidade como é chamada nos EUA) estava limitada aos atos de exportação e colaborações que não causassem distorção à concorrência nos EUA470. Em suas justificativas (Declaration of Purpose471) o Congresso concluiu o seguinte: (i) As exportações dos EUA eram responsáveis pela criação e manutenção de um em cada nove empregos industriais e por gerar um em cada sete dólares do total de mercadorias produzidas nos EUA; (ii) O crescimento rápido dos serviços das indústrias relacionadas era vital para o bem-estar da economia dos EUA, na medida em que criavam postos de Westinghouse processou 17 empresas americanas e 12 estrangeiras, que seria membros do suposto cartel, exigindo reparação. Devido aos interesses das nações envolvidas na disputa comercial entre a Westinghouse e os supostos membros do cartel do urânio houve um grave conflito entre os governos das empresas envolvidas. Os EUA alegaram a aplicação extraterritorial das leis e os outros governos envolvidos os direitos soberanos de cada um para fazer valer a lei dentro de suas respectivas jurisdições. A questão jurídica internacional no cerne da disputa não era nova (aplicação extraterritorial das leis antitruste e os princípios jurídicos internacionais de cortesia). 469 USA. Mannington Mills Inc. v. Congoleum Corporation, 595 F.2d 1297 (3d Cir. 1979) 1297-98, in The American Journal of International Law, Vol. 77, N˚. 3 (Jul., 1983), p. 624-626. Íntegra da decisão disponível em: <http://openjurist.org/595/f2d/1287>. Acesso em: 10 jan. 2010. 470 No mesmo sentido: COMISSÃO EUROPÉIA. Boletín Latinoamericano de Competencia, septiembre 1999, p. 13. 471 UNITED STATES OF AMERICA. Export trading company act of 1982. Public La 97-290--Oct. 8, 1982 96 Stat. 1233, Public La 97-290--Oct. 8, 1982 96 Stat. 1233. Disponível em: <http://www.ita.doc.gov/td/oetca/TitleIII.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010. 164 trabalho para sete em cada dez norte-americanos, fornecendo 65 por cento do produto interno bruto do país, e oferecendo maior potencial para o aumento significativo do comércio industrial envolvendo produtos acabados; (iii) Os déficits comerciais contribuíam para o declínio do dólar nos mercados monetários internacionais e teriam um impacto inflacionário sobre a economia dos EUA; (iv) Dezenas de milhares de pequenas e médias empresas dos EUA produziam bens ou serviços exportáveis, mas não se envolviam na exportação; (v) Embora os EUA fossem a nação líder mundial em exportação agrícola, muitos produtos agrícolas não eram comercializados amplamente e eficazmente no exterior como poderiam ser através de empresas de comércio de exportação; (vi) Serviços comerciais de exportação nos EUA estavam fragmentados em uma infinidade de funções distintas, e as companhias que desejavam oferecer serviços de comércio de exportação sentiam falta de incentivos financeiros para atingir um número significativo de potenciais exportadores dos EUA; (vii) Os EUA precisavam de intermediários bem desenvolvidos no comércio de exportação que pudessem atingir economias de escala e adquirir conhecimentos que lhes permitissem exportar bens e serviços de forma lucrativa para os produtores, com baixos custos por unidade. (viii) O desenvolvimento de empresas de comércio de exportação nos EUA tem sido prejudicado pelas atitudes das empresas e pelos regulamentos governamentais; (ix) As atividades do Estado e das autoridades governamentais locais que iniciam, facilitam ou ampliam as exportações de bens e serviços poderiam ser fonte importante para a expansão das exportações totais dos EUA, bem como poderiam ser um meio para o desenvolvimento de programas inovadores de exportação introduzidos para as necessidades econômicas locais, regionais e do Estado; (x) Se as empresas americanas de comércio têm potencial de ser bem sucedidas na promoção das exportações dos EUA e na competição com empresas de 165 comércio estrangeiras, elas deveriam ser capazes de aproveitar os recursos, as competências e o conhecimento do sistema bancário norte-americano, tanto nos EUA como no exterior; (xi) O Departamento de Comércio é responsável pelo desenvolvimento e promoção das exportações dos EUA e, especialmente, por facilitar a exportação de produtos acabados pelos fabricantes dos EUA. Assim, como base no contexto descrito acima, o ETC tinha como objetivo aumentar as exportações de produtos e serviços dos EUA, incentivando regras mais eficientes para os serviços de comércio de exportação para produtores e fornecedores norte-americanos, em particular através da criação de uma “Secretaria”472 dentro do Departamento de Comércio para promover a formação de associações e empresas de comércio de exportação. A idéia era permitir o investimento em empresas de exportação, reduzindo as restrições para os financiamentos fornecidos por instituições financeiras e por meio de alterações na aplicação das leis antitruste para determinados negócios de exportação473. Conforme bem pontua BECKER, o ETC continha diversas regras direcionadas à promoção da exportação nos EUA expandindo a opção de dar isenção aos cartéis de exportação baseado no WPA, mas diferentemente do WTA o ETC dava imunidade antitruste não apenas aos bens, mas também aos serviços e não apenas às associações, mas também a qualquer pessoa ou sociedade474. Vale destacar a mudança jurisdicional da aplicação da lei antitruste e o estabelecimento da isenção antitruste para atividades certificadas. Conforme os termos da ETC (SEC. 301) “Para promover e incentivar a exportação comercial, o secretário pode emitir certificados de análise e aconselhar e auxiliar qualquer pessoa em relação ao pedido de certificados de análise”. 472 SEC. 104. The Secretary of Commerce shall establish within the Department of Commerce an office to promote and encourage to the greatest extent feasible the formation of export trade associations and export trading companies. Such office shall provide information and advice to interested persons and shall provide a referral service to facilitate contact between producers of exportable goods and services and firms offering export trade services. United States. Export trading company act of 1982. 473 USA. Export trading company act of 1982. Public La 97-290--Oct. 8, 1982 96 Stat. 1233, Public La 97-290--Oct. 8, 1982 96 Stat. 1233. 474 BECKER, 2007, p. 103. O ETC também atinge as empresas mesmo quando suas exportações representam apenas um pequeno numero dos seus negócios. 166 Os interessados deveriam seguir os seguintes passos para obter a emissão de certificado: SEC. 302. (a) Para solicitar um certificado de análise, o interessado deve apresentar à Secretaria um pedido por escrito, que (1) especifica a conduta limitada à exportação comercial, e (2) esteja em um formulário e contenha todas as informações, incluindo informações relativas ao mercado global no qual opera o requerente, exigidas pela norma ou regulamentação promulgada sob a seção 310. b) (1) No prazo de dez dias após um pedido apresentado ao abrigo da subsecção (a) ser recebido pela Secretária, a Secretária fará publicar no Registro Federal, um aviso anunciando que um pedido de certificado de revisão foi apresentado, identificando cada pessoa que submeteu o requerimento, e descrevendo a conduta para qual o pedido foi apresentado. (2) No prazo de sete dias após um pedido apresentado ao abrigo da subsecção (a) ser recebido pela Secretária, a Secretária remeterá ao Procurador-Geral (A) uma cópia do pedido (B) todas as informações apresentadas à Secretária ligadas ao pedido e, (C) quaisquer outras informações relevantes (conforme determinado pela Secretária), na posse da Secretária, incluindo informações sobre a participação de mercado da requerente na linha de comércio a qual a conduta especificada no pedido se refere475. Com a concessão do certificado o beneficiário fica isento de responsabilidade antitruste considerando que a conduta descrita está coberta pelo certificado válido. As empresas certificadas gozam de uma proteção adicional contra processos: há uma disposição que permite aos acusados que obtém êxito reaver os custos despendidos para se defender nos litígios. Nos termos da lei (vide Sec. 303) um certificado de análise deveria ser emitido a qualquer candidato que estabelecesse que seu comércio de exportação especificado, ou as atividades de comércio de exportação, e os métodos de operação: i) não resulta em uma redução significativa da concorrência ou restrição ao comércio dentro dos EUA, nem uma restrição substancial do comércio de exportação de qualquer concorrente do requerente, ii) não aumenta, estabiliza ou diminui exageradamente, os preços nos EUA dos bens, mercadorias ou serviços da categoria exportada pela requerente, iii) não constitui métodos de concorrência desleal contra os concorrentes envolvidos na exportação de bens, mercadorias, produtos manufaturados ou serviços da categoria exportada pela requerente, e iv) não inclui qualquer ato que possa razoavelmente ser esperado em resultar na venda 475 USA. Export trading company act of 1982. Public La 97-290--Oct. 8, 1982 96 Stat. 1233. 167 para consumo ou revenda dentro dos EUA dos bens, produtos manufaturados, mercadorias ou serviços exportados pela requerente. Nos termos do ETC, se o certificado for obtido de forma fraudulenta, ele será nulo ab initio com relação a qualquer comércio de exportação ou atividades de comércio. Vale observar que é possível modificar o certificado ou revogá-lo476, mas nos termos da lei, o pedido de alteração deve ser tratado como um pedido de emissão de um certificado e a data efetiva de alteração deve ser a data em que o pedido for apresentado ao Secretário (Sec. 304, 2)477. No entanto, se o Secretário negar, no todo ou em parte, um pedido de certificado de revisão ou de emenda a um certificado, ou revogar ou alterar um certificado, nem a determinação da negativa, nem a sua fundamentação será admissível como prova, em qualquer procedimento administrativo ou judicial, como fundamento de qualquer pretensão ao abrigo da legislação antitruste478. Para promover uma maior segurança quanto à aplicação das leis antitruste ao comércio de exportação, o Secretário, com a concordância do Procurador-Geral, poderia emitir orientações (guidelines) resumindo as razões de fato e de direito que fundamentam as determinações do ETC. Veja-se, também, que o ETC modificou o Federal Trade Commission Act adicionando um novo parágrafo ao seu final479. É importante destacar as mudanças 476 Se a Secretária concede ou nega, no todo ou em parte, um pedido de certificado de revisão ou de emenda a um certificado, ou revoga ou modifica um certificado de conformidade com a secção 304 (b), qualquer pessoa lesada por essa determinação pode, no prazo de 30 dias da determinação, intentar uma ação em qualquer tribunal distrital dos EUA para anular a deliberação sobre o fundamento de que tal determinação é errônea (SEC.305, a). 477 Veja-se também: Sec. 304, (c) For purposes of carrying out this subsection, the Attorney General, and the Assistant Attorney General in charge of the antitrust division of the Department of Justice, may conduct investigations in the same manner as the Attorney General and the Assistant Attorney General conduct investigations under section 3 of the Antitrust Civil Process Act, except that no civil investigative demand may be issued to a person to whom a certificate of review is issued if such a person is the target of such investigation. 478 Sec. 305, c. 479 Sec. 403. Section 5(a) of the Federal Trade Commission Act (15 U.S.C. 45(a)) is amended by adding at the end thereof the following new paragraph:(3) This subsection shall not apply to unfair methods of competition involving commerce with foreign nations (other than import commerce) unless- (A) such methods of competition have a direct, substantial, and reasonably foreseeable effect-- (i) on commerce which is not commerce with foreign nations, or on import commerce with foreign nations; or (ii) on export commerce with foreign nations, of a person engaged in such commerce in the United States; and (B) such effect gives rise to a claim under the provisions of this subsection, other than this paragraph. If this subsection applies to such methods of competition only because of the operation of subparagraph (A) (ii), this subsection shall apply to such conduct only for injury to export business in the United States." 168 que o ETC promoveu no Sherman Act ao estabelecer em seu artigo 402 a inserção após a seção 6 - da seguinte seção: Sec.7. Esta Lei não se aplica a realização de trocas comerciais ou no comércio (outro que importação comercial ou comércio de importação) com as nações estrangeiras, a menos (1) que tal conduta tenha um efeito direto, substancial e razoavelmente previsível A. sobre o negócio ou comércio que não seja o negócio ou comércio com as nações estrangeiras, ou a importação comercial ou o comércio de importação com as nações estrangeiras, ou B. sobre a exportação comercial ou comércio de exportação com países estrangeiros, de uma pessoa envolvida nesse comércio nos Estados Unidos, e (2) que tal efeito dê origem a um pedido ao abrigo do disposto na presente lei, com exceção desta seção. Se esta lei aplicar-se a tais comportamentos apenas em razão das atividades do parágrafo (1) (B), então esta lei aplicar-se-á a tais condutas apenas por dano aos negócios de exportação nos Estados Unidos480. (tradução livre) Veja-se acima, conforme citado, que o US Foreign Trade Antitrust Improvements Act de 1982 (FTAIA), promulgado como parte do ETC estabeleceu que as empresas estrangeiras e os consumidores não podem invocar a lei americana contra os atos das empresas dos EUA que diminuam a concorrência apenas em países estrangeiros. Um dos objetivos do FTAIA foi aliviar as tensões entre os EUA e seus parceiros comerciais resultantes da aplicação extraterritorial da política de concorrência norte-americana e do conflito com as leis de concorrência estrangeiras481. Entretanto, WALLER entende que o FTAIA prevê um potencial porto seguro para praticamente qualquer operação de exportação que não afeta o mercado interno dos EUA ou as oportunidades de negócios de outros exportadores dos EUA482. 480 Sec.7. This Act shall not apply to conduct involving trade or commerce ( other than import trade or import commerce) with foreign nations unless (1) such conduct has a direct, substantial, and reasonably foreseeable effect-- (A) on trade or commerce which is not trade or commerce with foreign nations, or on import trade or import commerce with foreign nations; or (B) on export trade or export commerce with foreign nations, of a person engaged in such trade or commerce in the United States; and (2) such effects gives rise to a claim under the provisions of this Act, other than this section. If this Act applies to such conduct only because of the operation of paragraph (1)(B), then this Act shall apply to such conduct only for injury to export business in the United States. 481 HUFFMAN, Max. A Retrospective on Twenty-Five Years of the Foreign Trade Antitrust Improvements Act. Houston Law Review, v. 44, 2007, p. 305. 482 Veja-se: WALLER, Spencer Weber. The ambivalence of United States Antitrust Policy Towards Single-country Export Cartels. Northwestern Journal of International Law & Business v. 98, 1989, p. 7. 169 De acordo com HUFFMAN, o FTAIA fracassou em seu propósito essencial, pois não trouxe clareza à aplicação da legislação extraterritorial antitruste483. Nesse sentido, o autor atribui ao insucesso à redação deficiente. Apesar das suas deficiências e das críticas, o FTAIA é inegavelmente um importante instrumento. HUFFMAN484 acredita que o FTAIA rege também atividades inovadoras relacionadas aos esforços privados de se obter uma indenização por uma alegada atividade anticoncorrencial no qual os advogados de class action passaram a olhar para outros países para aumentar a sua base de clientes. Ao mesmo tempo, os demandantes estrangeiros passaram a buscar em outros países procedimentos amigáveis ou a entender as normas jurídicas disponíveis ao abrigo do regime antitruste norte-americano. As atividades judiciárias e legislativas na interpretação e na alteração das leis antitruste também elevaram a importância da FTAIA. De todo modo, mitigar a tensão internacional gerada pelo FTAIA passou a ser um tema que ocupou muita atenção. Apesar de algumas opiniões exageradas, assim como algumas manifestações acaloradas supondo o enfraquecimento das leis antitruste, o fato é que houve, na última década, um grande aumento dos litígios, com dezenas de ações movidas aplicando-se a extraterritorialidade antitruste, bem como pleiteando bilhões de dólares por alegados danos sofridos por diversos autores (requerentes) ao redor do mundo485. 4.5 A cortesia positiva e a assimetria normativa Para a harmonização da aplicação das leis de defesa da concorrência aos cartéis de exportação, um caminho seria aplicar o princípio da cortesia positiva (positive comity) que é conhecido por ser o fundamento principal dos acordos bilaterais de cooperação. Este princípio procura trazer a idéia de que a cortesia se fará presente toda vez que dois países que assinarem um acordo de cooperação 483 HUFFMAN, 2007, p. 286. HUFFMAN, 2007, p. 287-288. 485 Veja-se, nesse sentido: WOOD, Diane P. Cooperation and Convergence in International Antitrust: Why the Light Is Still Yellow. In: EPSTEIN Richard A.; GREEVE Michael S. Competition Laws in Conflict: Antitrust Jurisdiction in the Global Economy. AEI Press, 2004, passim. 484 170 decidirem aplicar de forma recíproca as normas que dizem respeito à extraterritorialidade. Quando relacionada aos cartéis denominados hard-core a cortesia positiva significa que um país pode requerer a outro país a aplicação da sua lei nacional de defesa da concorrência para combater as práticas anticompetitivas existentes dentro de sua jurisdição e que o estejam afetando. Veja-se então que se trata de uma forma de controlar as atividades anticompetitivas sem precisar recorrer à aplicação extraterritorial de sua lei de concorrência, o que poderia resultar em conflito de jurisdição. Em regra a cortesia positiva foi pensada para promover a cooperação internacional na aplicação das leis de concorrência e para ser eficaz em proibir ou controlar condutas anticompetitivas realizadas além das fronteiras de um país486. Na prática, quando um cartel exclui a exportação de um produto de um país a outro, mas o país afetado não tem a jurisdição, pode ser invocado o princípio da cortesia positiva. As leis de concorrência podem ter a aplicação extraterritorial487, mas geralmente a aplicação extraterritorial não é tão eficaz quanto se espera. A cortesia positiva foi estabelecida no Friendship, Commerce, and Navigation Treaty, firmado entre EUA e Alemanha, em 1954. Entretanto, já havia recomendações nesse sentido do GATT e da OCDE. Na esfera antitruste, foi no acordo de cooperação firmado entre Comunidade Européia e EUA, em 1991, que este princípio apareceu claramente pela primeira vez.488 486 Nesse sentido, WAISBERG explica que analise dos casos dos EUA: “[...] a relevância dada ao princípio da cortesia internacional (comity) pelo Nono Tribunal de Circunscrição em Timberlane não foi retomada pela Suprema Corte. A extraterritorialidade da lei antitruste foi assegurada com base na doutrina dos efeitos, desconsiderando-se uma análise mais aprofundada daquele princípio e se estabelecendo a necessidade não de uma demonstração de política conflitante com o Estado estrangeiro, mas sim de uma prova de que a parte estrangeira era incapaz de cumprir com os preceitos de ambas as jurisdições. Em voto contrário no caso Hartford, o ministro Scalia sustentou que a Suprema Corte havia interpretado de forma equivocada o tema da extraterritorialidade. Ainda que asseverando que a extraterritorialidade do Shermamn Act é incontestável, Scalia declarou que o princípio da cortesia internacional (comity) tinha de ser levado em consideração. Ele fundou sua divergência em relação à opinião majoritária no princípio do respeito ao Direito Internacional em precedentes da jurisprudência americana e no Restatement Third.” WAISBERG, Ivo. Direito e Política da Concorrência para os países em desenvolvimento. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2006, p. 83-84. 487 Veja-se nesse sentido o caso: USA. United States v. Aluminum Co. of America, 148 F.2d 416 (2d Cir. 1945). 488 Veja-se também o acordo entre Comunidades Européias e o governo dos EUA relativo aos 171 Apesar de em um primeiro momento ser possível ponderar sobre a aplicação do princípio da cortesia positiva também para os cartéis de exportação, trata-se de tarefa que não é simples, tanto que em razão da dificuldade encontrada na aplicação da cortesia aos cartéis hard-core, a União Européia e os EUA negociaram um novo acordo detalhado em 1998 para explicitar o modo de aplicação deste princípio, justamente por terem enfrentado problemas quando ele foi invocado pela primeira vez.489 Diante disso, as autoridades identificaram a existência de limitações na aplicação do princípio da cortesia e percebeu-se a necessidade da voluntariedade de sua implementação, com a confiança entre os Estados, além da necessidade da conduta ser ilegal tanto no Estado requerente quanto no requerido, o que prejudicaria, em regra, a sua aplicação aos cartéis de exportação. Um caso interessante que vale mencionar em razão da aplicação da cortesia positiva foi o United States v. Nippon Paper Industries.490 Nesse caso do cartel japonês pelo qual diversas fábricas fixaram o preço do papel de fax que seria vendido nos EUA e no Canadá as autoridades norte-americanas e canadenses atuaram em conjunto nas investigações e essa cooperação resultou em uma bem sucedida sanção criminal aplicada pelas leis de concorrência dos dois países.491 A aplicação desse princípio tem chances de ser efetiva apenas quando há uma semelhança de disposições jurídicas entre os países. Sendo assim, se a conduta afeta apenas o país requerente, fica muito difícil para o país requerido proibir a conduta, uma vez que esta é permitida e, às vezes, até mesmo incentivada dentro da sua jurisdição. Este problema é mais visível nos cartéis de exportação. Por exemplo: um cartel de exportação pode estar livre da aplicação das leis antitruste nos EUA, em virtude do Webb-Pomerene Act492 e no Japão por meio da lei de procedimentos de importação e exportação493 e, ao mesmo tempo, ser uma conduta que prejudica um terceiro país. Como os cartéis de exportação são permitidos em outras jurisdições princípios de cortesia na aplicação dos respectivos direitos de concorrência. 489 OLIVEIRA; RODAS, 2004, p. 386. 490 USA. 65 USLW 2617, 1997-1 Trade Cases P 71,750. Appellant, v. Nippon Paper Industries Co., LTD., Et Al., Defendants, Appellees. 109 F.3d 1 No. 96-2001. (1st Cir. 1997). Disponível em: <http://ftp.resource.org/courts.gov/c/F3/109/109.F3d.1.96-2001.html>. Acesso em: 12 fev. 2010. 491 MATSUSHITA, 2002, p. 470. 492 USA. Webb Pomerene Act, 15 U.S.C. §§ 61-66 (1994). 493 MATSUSHITA, 2002, p. 471. 172 também (ou seja, não há ilicitude nas legislações) a aplicação da cortesia positiva fica bastante prejudicada em um contexto internacional para controlar ou fiscalizar as condutas anticoncorrenciais. Entretanto, apesar de sua eficácia limitada, a cortesia positiva é um conceito muito útil, podendo ter uma aplicação efetiva quando há harmonização dos conteúdos das leis de concorrência dos países participantes. Com vista a uma possível cortesia positiva as partes podem ser levadas a acelerar a eventual harmonização de suas respectivas legislações, apenas dessa não ser uma tarefa simples. Em regra é mais observada a aplicação da chamada cortesia negativa que faz parte de um grande número de acordos bilaterais. Com base na cortesia negativa, as partes de um acordo bilateral, por exemplo, podem deixar de aplicar suas leis de concorrência para a conduta de uma empresa se esta aplicação colidir com a política governamental da outra parte494. Assim, um Estado, quando aplica a sua lei concorrencial, levará em consideração os interesses de outro Estado apenas quando não existir incompatibilidade com os seus próprios interesses. Existem alguns casos nos EUA nos quais as cortes adotaram o princípio da regra da razão, sugerindo o exame de vários fatores a considerar quando um país decide aplicar sua lei nacional de concorrência, para concluir se essa aplicação potencialmente terá implicações internacionais495. Um grande número de acordos bilaterais tem incorporado disposições para cooperação em investigações e o Brasil mesmo já pode beneficiar-se de parcerias (formais e informais) com as autoridades de outros países. Geralmente os acordos formais indicam que uma parte deve se esforçar em fornecer as evidências para a outra, quando requisitada, sem obrigatoriedade da disposição da informação496. No entanto, não há certeza de quando a revelação de evidências e de informações pode ser considerada obrigatória, especialmente quando envolvam confidencialidade. Em muitas jurisdições, a divulgação de informação confidencial 494 GABAN, DOMINGUES, 2009, p. 168. Por exemplo, se um país invoca a sua lei de concorrência para proibir uma fusão que é fortemente promovida pelo governo de outro país, o princípio da cortesia negativa sugere que o primeiro país se abstenha de aplicar sua lei de concorrência para aquela fusão em respeito à política governamental do segundo país. 496 GABAN, DOMINGUES, 2009, p. 169. 495 173 obtida em uma investigação ao governo estrangeiro contraria o princípio da confidencialidade das leis do Estado497. Assim, os acordos bilaterais que envolvam cortesia geralmente são divididos em primeira e segunda geração. Os que, em princípio, não permitem que as autoridades concorrenciais tenham acesso às informações confidenciais, a não ser que haja a anuência da parte interessada, são os chamados de primeira geração498. Os acordos de segunda geração possibilitam a disponibilização de informações confidenciais, mas não são celebrados com freqüência, justamente porque encontram obstáculos nos princípios de proteção do interesse nacional ou na legislação. Tais acordos pressupõem um maior grau de maturidade e de comprometimento das agências com a causa concorrencial em nível internacional499. Conseqüentemente, sustentar o controle dos cartéis de exportação apenas na aplicação da cortesia não parece ser o melhor caminho. Ainda, carece de segurança que os países se satisfaçam com um acordo internacional, que permita o fornecimento voluntário das evidências e informações, apesar dessa ser uma alternativa mais tranqüila do que com uma obrigação imperativa. Nos EUA o International Antitrust Enforcement Assistance Act (IAEAA)500 trouxe uma proposta para investigar as condutas que ocorrem nos EUA e afetam adversamente a jurisdição de outro país. A idéia é transferir a evidência obtida, incluindo a confidencial, ao país nesta condição, para que este execute e aplique um direito semelhante na investigação. A política subjacente à IAEAA tem o objetivo de potencializar a eficácia das leis nacionais de concorrência contra condutas anticompetitivas que ultrapassem as divisas nacionais, mas os interesses norteamericanos permaneceriam protegidos nestes acordos. Assim, os instrumentos utilizados no momento para tratar dessas condutas ainda não são suficientes. Veja-se que as isenções dos cartéis de exportação poderiam ser um problema muito menor para o comércio internacional se houvesse um regime legal concorrencial internacional de qualquer formato combinado com os 497 MATSUSHITA, 2002, p. 472. OLIVEIRA; RODAS, 2004, p. 385. 499 OLIVEIRA; RODAS, 2004, p. 385. 500 USA. International Antitrust Enforcement Assistance Act (IAEAA) of 1994, 15 U.S.C. §§ 62016212 (1994). 498 174 mecanismos de aplicação internacional (o que atualmente ainda parece uma meta intangível). Poderia até se defender que as isenções dos cartéis poderiam ser resolvidas se todos os países alvos dessas condutas atacassem esse comportamento anticompetitivo de forma agressiva, com base na teoria dos efeitos. Entretanto, diante das diferenças que existem entre os países na aplicação e desenvolvimento de políticas e leis antitruste essa alternativa também não parece ser plausível. Assim, para que condutas anticoncorrenciais sejam coibidas, a legislação concorrencial precisa ser aplicada de maneira sólida, pois apesar das leis anticoncorrenciais estarem se tornando cada vez mais populares, a maioria dos “alvos” dos cartéis de exportação não possui conhecimentos especializados ou recursos para aplicar suas leis (quando existem leis) concorrenciais de forma efetiva501. Veja-se que, alegar simplesmente que não há nenhum impedimento a qualquer jurisdição afetada de aplicar sua legislação concorrencial para processar os efeitos anticompetitivos dos cartéis estrangeiros502 não leva em considerando uma questão relevante que é a falta de recursos e de preparo de muitas jurisdições. Como resultado, os países com menor índice de desenvolvimento precisam “terceirizar” informalmente a aplicação antitruste aos países que em geral têm mais experiência e recursos para investigar as condutas anticompetitivas. Essa “terceirização” poderia ser estendida à possibilidade das autoridades estrangeiras investigarem uma conduta anticompetitiva que está ocorrendo em seus estados, mas que também está afetando o “alvo” estrangeiro503. Os EUA já fizeram uso da aplicação ‘terceirizada” das regras antitruste, contudo, as empresas estrangeiras sofreram uma restrição no tocante ao acesso aos procedimentos: a Suprema Corte em um caso de 2004 (F. Hoffmann-La Roche Ltd. v. Empagran S.A.) sustentou que, quando o comportamento anticompetitivo afetar significativamente os consumidores tanto dentro como fora dos EUA, se o efeito no exterior for independente de qualquer efeito doméstico, os autores que 501 Veja-se no mesmo sentido: BECKER, 2007, p. 111. Declaração dada pelos EUA em reunião realizada no âmbito da OMC. Cf. WTO. WGTCP. Report on the Meeting of 20-21 February 2003 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/21. May, 2003, p. 15. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 503 BECKER, 2007, p. 111. 502 175 alegarem terem sido prejudicados pelo efeito estrangeiro não poderão invocar a jurisdição das leis ou dos tribunais norte-americanos504. Veja-se que, se um país de menor desenvolvimento tentar investigar ou processar um cartel de exportação com base na teoria dos efeitos, como as provas da conduta anticompetitiva ficam no exterior, bem como os instrumentos de avaliação das perdas e danos pela violação fica muito difícil conseguir dar seguimento a investigação. Vale lembrar que esses países sequer possuem poder de barganha para ter acesso a tais provas fora de sua jurisdição. Portanto, mesmo que esses países tenham lei de concorrência e possam aplicar a teoria dos efeitos, na prática, a possibilidade de sucesso é muito pequena505. As isenções impedem também que as autoridades concorrenciais do país que a empresa está sediada ajudem de forma adequada os países que são prejudicados pelo cartel de exportação, podendo ser até mesmo inacessível a obtenção de provas do conluio. Ainda, tendo em vista o tempo e os custos iniciais que são demandados para que países menos desenvolvidos e em desenvolvimento aprimorem ou desenvolvem leis e políticas de concorrência, não parece ser plausível esperar que todos estejam empenhados a desenvolver suas leis de concorrência, permanecendo em uma situação de desvantagem no cenário internacional. 504 USA. F. Hoffmann-La Roche Ltd. v. Empagran S.A., 123 S. Ct. 2359. U.S. App. LEXIS 13431 (D.C. Ct. App. , filed June 21, 2004) 505 No mesmo sentido veja-se: BECKER, 2007, p. 112. 176 5 O CASO DA OPEP E AS DIFERENTES APLICAÇÕES DAS ISENÇÕES 5.1 A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) Para entender a complexidade de um cartel de exportação, assim como os problemas econômicos das empresas que participam de uma colusão, é interessante avaliar e considerar um cartel de exportação bastante famoso e peculiar que culminou com a criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). A OPEP (ou OPEC em inglês) foi formada no início dos anos 1960 por grande parte dos maiores produtores mundiais de petróleo, sendo desde o inicio um cartel bastante expressivo. Vale destacar que, abertamente, os membros da OPEP combinavam preços e atribuíam os níveis de produção dos seus membros em encontros presenciais506. A missão da OPEP é coordenar e unificar as políticas petrolíferas dos Estados Membros e assegurar a estabilização dos preços do petróleo para garantir um fornecimento de petróleo eficiente, econômico e regular para consumidores, uma renda estável para os produtores e um retorno de capital justo para os que investem na indústria do petróleo507. Na prática, os Estados Membros usam a OPEP como uma plataforma para reduzir a produção e fixar o preço. Pouco tempo após a formação da OPEP o preço do petróleo aumentou dramaticamente e o resultado da transferência de recursos dos produtores de petróleo para os compradores fez com que muitas nações produtoras, particularmente os Estados do Golfo Pérsico, ficassem ricas. Ao mesmo tempo, isto causou algumas das piores experiências dos EUA e de outras nações industriais durante o meio e o final dos anos 1970508. 506 GAVIL, Andrew; KOVACIC, William E.; BAKER, Jonathan B. Antitrust Law in perpective: cases, concepts, and problems in competition policy. St. Paul, MN: Thomson West, 2008, p. 237. 507 OPEC. OPEC Statute. Article 2, 2008. Disponível em: <http://www.opec.org/opec_web/static_files _project/media/downloads/publications/OS.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2010. 508 Nesse sentido, veja-se: GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 237. 177 Apesar de ser um cartel bastante particular devido à relevância do produto envolvido e considerando-se, ainda, o envolvimento dos governos de diversas nações, desde o início os membros da OPEP tiveram que enfrentar os problemas naturais de qualquer cartel (seja um cartel explicito ou tácito, nacional ou internacional). Como bem destacam GAVIL, KOVACIC e BAKER: Primeiro, eles tinham que alcançar consenso. Os membros do cartel concordaram que a produção da indústria deveria ser reduzida no sentido de aumentar o preço, mas cada um teria preferido que os outros fizessem a maior parte dos cortes. Como resultado, negociações entre os membros da OPEP com quotas excedentes de produção às vezes são difíceis. Segundo, os membros da OPEP tinham que impedir fraudes. Às vezes, algumas nações membros produziam mais que a suas quotas atribuídas, resultando em menor redução na produção industrial do que a esperada (e menor aumento no preço industrial que o esperado). Similarmente, ao longo do tempo os países podiam ampliar o tempo de perfuração em seus campos de petróleo existentes e aumentar sua capacidade de produção e ritmo de produção. Ações como esta devem ser proveitosas para a nação que aumenta a produção, mas tendem a minar o cartel como um todo. Terceiro, os membros da OPEP tinham que evitar novos concorrentes, tanto das nações produtoras de petróleo que escolheram não unir-se à OPEP (tal como os Estados Unidos) ou dos entrantes que estão descobrindo e desenvolvendo novos campos de petróleo ao redor do mundo.509 (tradução livre). O cartel superou essas dificuldades nos anos 70 e teve muito sucesso em seus objetivos por quase uma década, mas com o tempo, apesar dos encontros, o cartel passou a perder sua força e efetividade. Veja-se que no meio dos anos 80 a OPEP aparentemente não conseguia resolver os seus problemas e os preços do petróleo caíram a níveis comparáveis àqueles que prevaleciam antes mesmo da constituição do cartel (ajustado ao preço das perdas). A essa situação soma-se ainda o fato de que o preço do petróleo prevaleceu em níveis muito baixos durante toda a década de 1990510. Em que pese esses altos e baixos durante a existência desse cartel internacional, desde a sua criação, é importante destacar que em 2001 os preços do petróleo voltaram a subir. Assim, no presente estudo, analisar e aventar a possibilidade de processar a OPEP e seus membros oferece um meio de análise muito produtivo para refletir sobre as inumeráveis defesas especiais e isenções que 509 510 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 237. Nesse sentido, veja-se: GAVIL; KOVACIC, BAKER, 2008, p. 237. 178 potencialmente aplicam-se no comércio exterior quando nações soberanas participam de atividades que, em regra, seriam anticompetitivas. Ao mesmo tempo em que existem decisões antigas rejeitando petições contra a OPEP, um exame detalhado de estudos mais recentes sugerem que a conduta da OPEP pode ser algum dia julgada no mérito511 em que pese à existência de pontos que seguem ainda sem resposta segura, conforme se verá ao final desse tópico. 5.1.1 O Foreign sovereign immunity Act (FSIA) No que se refere ao caso da OPEP e sua análise nos EUA é importante mencionar o Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA), 28 U.S.C. § 1602 et. Seq., que possibilita barrar todas as petições contra Estados estrangeiros e suas ações a não ser que alguma exceção seja aplicável512. Para o propósito antitruste a exceção mais importante refere-se às atividades comerciais. De acordo com os termos do FSIA, os Estados estrangeiros não estão isentos/imunes de serem processados quando: [...] a ação é baseada em uma atividade comercial exercida nos Estados Unidos pelo Estado estrangeiro; ou em conseqüência de um ato realizado nos Estados Unidos em conexão com uma atividade comercial do Estado estrangeiro em qualquer lugar; ou mediante um ato fora do território dos Estados Unidos em conexão com uma atividade comercial do Estado estrangeiro em qualquer lugar e este ato causa um efeito direto nos Estados Unidos. 28 U.S.C. § 1605 (a) (2). 511 Cf. WALLER, Spencer Weber. Suing OPEC. University of Pittsburgh Law Review. v. 64, n˚.105, 2002; e também ATWOOD, James R.; BREWSTER, Kingman, WALLER, Spencer Weber. Antritrust and Amercan Business Abroad. 3 ed. 1997 & supp. No mesmo sentido: GAVIL; KOVACIC, BAKER, 2008, p. 1047. 512 Certamente há questões políticas que são relevantes. Conforme explicado no documento “The Foreign Sovereign Immunities Act 2008 Year in Review, preparado pelos advogados do Crowell & Moring, Aryeh Portnoy, Katherine Nesbitt, Laurel Pyke Malson, Birgit Kurtz, Joshua Dermott, Beth Goldman and Marguerite Walter: “Two notable FSIA cases in 2008 considered the application of the political question doctrine to bar claims against foreign sovereigns in U.S. courts. In each case, the court looked to statements by the Executive Branch to determine whether allowing the case to continue would seriously impede United States foreign policy interests.” Esses casos são: i) Freund v. Republic of France 592 F. Supp. 2d 540 (S.D.N.Y. 2008); e ii) Simon v. Republic of Iraq 529 F.3d 1187 (D.C. Cir. 2008), cert. granted, 129 S. Ct. 894 (2009). 179 Veja-se também que há outro trecho relevante que diz que o caráter comercial de uma atividade deve ser determinado em alusão à “natureza da conduta, do ato, ou da operação particular” e não em razão à sua finalidade.513 O histórico relacionado a esses dispositivos sugere que a conduta do Estado realizada normalmente por indivíduos deveria ser considerada como comercial, mesmo quando o objeto da atividade é preencher os propósitos governamentais. Conforme explicam GAVIL; KOVACIK e BAKER: Por exemplo, a contratação para comprar mantimentos para as forças armadas ou para reparar um edifício da embaixada será tratada como comercial, uma vez que partes particulares normalmente negociem e assinem contratos. Por outro lado, se a atividade normalmente é feita somente pelos governos - como a imposição de uma tarifa ou emissão de certificados de exportação - a imunidade é acessível, mesmo que haja negócio importante ou motivações comerciais por trás da ação do governo.514 (tradução livre). Veja-se que essa análise não é fácil e muito menos simples. Em 2008, por exemplo, muitos tribunais nos EUA lidaram com a questão de onde traçar o limite entre os atos considerados "comerciais" e os "governamentais". Os casos indicados na tabela abaixoilustram algumas das nuances identificadas pelos tribunais na elaboração deste limite: TABELA 03 - FSIA case law: Interpretação de ato comercial515 CASO UNC Lear Services, Inc. v. Kingdom of Saudi Arabia No. SA 04CA-1008, 513 Ato comercial X Contratos militares com uma empresa privada Ato NÃO comercial RESUMO O Governo da Arábia Saudita contratou uma empresa americana para servir e manter a sua frota de aeronaves F-5. O Tribunal do Distrito Oeste do Texas descobriu que, sendo a manutenção de uma força aérea geralmente um ato soberano, a exceção à atividade comercial foi aplicada nesse caso porque a Arábia Saudita “aventurou-se no mercado” para 28 U.S.C. § 1603 (d). The Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA) of 1976 is a United States law, codified at Title 28, §§ 1330, 1332, 1391(f), 1441(d), and 1602-1611 of the United States Code. 514 “For example, contracting to buy provisions for the armed services or to repair an embassy building are to be treated as commercial, since private parties normally negotiate and sign contracts. On the other hand, if the activity is normally done only by governments – such as imposing a tariff or issuing export licenses – immunity is available even if there are important business or commercial motivations behind the government action”. GAVIL; KOVACIC; BAKER, Jonathan, 2008, p. 1048. 515 Tabela elaborada com base nos casos explorados no documento preparado pelo CROWELL & MORING LLP. The Foreign Sovereign Immunities Act 2008 Year in Review. 2009. 180 2008 WL 2946059 (W.D. Tex. July 25, 2008). contratar serviços de manutenção da mesma maneira como um agente privado faria. Heroth Nesse caso, o governo da Arábia Saudita não contratou diretamente uma empresa privada e utilizou o programa “U.S. Government’s Foreign Military Sales (FMS)”: mecanismo pelo qual o governo americano comercializa serviços e artigos de defesa além de outros serviços exclusivamente para governos estrangeiros. Como parte do contrato, uma empresa americana privada foi contratada para fornecer segurança para a base militar do governo da Arábia Saudita. Quando os empregados da empresa americana contratada tentaram processar o governo da Arábia Saudita, o tribunal os impediu de usar a exceção à atividade comercial. Entendeu-se que, uma vez que a participação no FMS foi limitada aos governos, e, não era o tipo de atividade em que um agente privado poderia participar, pois o contrato não era de natureza comercial. Além disso, o tribunal acrescentou que o fornecimento de segurança em uma instalação militar é uma "atividade essencialmente soberana”. X v. Contratos militares sujeito a um programa do governo Kingdom of Saudi Arabia 65 F. Supp. 2d 59 (D.D.C. 2008). Hilaturas Miel, S.L. v. Republic of Iraq O Iraque contratou a compra de mercadoria do autor como parte do programa Oil-forFood. Quando o Iraque foi incapaz de executar, o autor o processou. O Iraque argumentou que, uma vez que o programa Oil-for-Food era de natureza humanitária, seria exceção à atividade comercial. O tribunal rejeitou esse argumento, considerando que, independentemente do que fora proposto no contrato, o Iraque entrou em uma transação comercial, tal como qualquer outro agente privado – o que, portanto, constitui um ato comercial. X Contratos de Caridade 573 F. Supp. 2d 781 (S.D.N.Y. 2008). In re Terrorist Attacks on September 11, 2001 538 F.3d 71 X Doações de Caridade O Second Circuit decidiu que doar dinheiro a instituições de caridade (ou beneficentes) que canalizaram esforços para apoiar o Al Qaeda não era uma atividade comercial. Os Autores argumentaram que o ato de doar dinheiro a instituição de caridade era 181 (2d Cir. 2008). comercial por natureza porque isto era algo que agentes privados poderiam realizar – diferentemente de uma atividade estritamente reservada a autoridades públicas (soberanas). O Tribunal rejeitou essa análise, voltando-se, em vez disso, à questão dos atos dos Réus terem sido do “tipo de ações pelas quais um agente privado realiza comércio e tráfico, ou apenas comércio”. O Tribunal concluiu que, em sendo o ato de doar dinheiro à instituição de caridade algo que um agente privado poderia fazer, isto não seria “parte do comércio levado a efeito por um comerciante no mercado”, e não constitui, portanto, um ato comercial em sua natureza. Lasheen O Tribunal Distrital do Eastern District of California decidiu, no caso Lasheen v. Loomis Co., que o fornecimento, por parte dos Réus, de “serviços administrativos” para o plano de saúde e benefícios do Governo do Egito foi comercial em sua natureza, pois “empresas privadas freqüentemente realizam acordos similares; a realização de tal conduta não requer o exercício de poder de soberania”. v. Loomis Co. No. Civ. S-01227, 2008 WL 295079 (E.D. Cal. Feb. 1, 2008). Anglo-Iberia Underwriting Mgmt. Co. v. Loderhose No. 97-0084, 2008 WL 190364 (S.D.N.Y. Jan. 22, 2008). X Contrato de prestação de serviços para Programa de Assistência à Saúde de Governo estrangeiro X Funcionários Públicos que prestam serviços a Programa de Assistência à Saúde de Governo estrangeiro. O Autor processou a agência administradora do programa de seguridade social e assistência à saúde da Indonésia alegando que aquela fora negligente ao supervisionar um empregado que executou um golpe premeditado, causando danos. O Tribunal decidiu que não poderia exercer jurisdição sobre a Ré porque, dentre outros pontos, o trabalho dos empregados (do governo da Indonésia) não foi comercial em sua natureza. O Tribunal enfatizou que as responsabilidades do empregado não envolvem atividades comerciais como as contratuais com médicos estrangeiros ou as coberturas internacionais; mas, o trabalho da administradora fora de processar (i.e., dar andamento a) pedidos de coberturas assistenciais de saúde e coletar prêmios para o programa de seguridade social da Indonésia. 182 Assim, refletidos esses pontos, veja-se que, com base no FSIA, caracterizar a conduta da OPEP como um ilícito antitruste não é tarefa simples. Vale observar que no final dos anos 70 um Tribunal Distrital dos EUA (District Court) fez uma análise própria ao analisar a OPEP como ilícito antitruste e estudou os esforços de fixação de preços dessa organização, concluindo que foram realizados os seguintes atos: i) tributação das companhias privadas; ii) controle de produção administrada por leis de preservação; iii) cotações diretas do preço do petróleo estatal. Com base na decisão, destaca-se que as duas primeiras funções foram consideradas claramente governamentais em sua natureza, já a terceira, apesar de comercial a primeira vista, foi considerada apenas como um meio diferente pelo qual os governos da OPEP estavam desenvolvendo seus atos de soberania516. Basicamente o tribunal norte-americano viu a preservação e maximização de um recurso natural como um interesse estatal vital para os Estados Membros da OPEP, que, por essa razão, foram considerados imunes do escrutínio antitruste dos tribunais dos outros estados517. O Tribunal também notou uma aceitação considerável das Nações Unidas do direito soberano dos Estados em exercer o controle da extração e exploração dos recursos naturais. Assim, considerou-se que o controle dos recursos naturais de uma nação emerge da natureza da soberania: [...] Pela necessidade e por seu reconhecimento tradicional, cada nação é o seu próprio chefe no que diz respeito aos seus atributos físicos. O controle dos recursos naturais dos réus é uma função especial da soberania porque petróleo, como sua principal, senão única, fonte geradora de receitas, é crucial para o bem estar das pessoas de suas nações.518 Entretanto, conforme asseveram GAVIL; KOVACIV e BAKER, apesar da análise do Tribunal Distrital sobre a soberania ser compreensível, ela era indiscutivelmente equivocada, mesmo em 1979, com base na exceção da atividade 516 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1048. USA. International Association of Machinists & Aerospace Workers v. Organization of Petroleum Exporting Countries, 477 F Supp 553 (CD Cal 1979). 518 USA. International Associartion of Machinists v. Organization of Petroleum Exporting Countries, 477 F.Supp. 553, 568 (C.D. Cal. 1979), 649 F.2d 1354 (9th Cir. 1981), cert. Denied, 454 U.S. 1163 (1982). 517 183 comercial da FSIA519. BECKER explica que, levando-se em consideração a natureza da conduta da OPEP, esta deve ser classificada como comercial, porque a fixação de preços e outras tentativas de distribuir os mercados são instrumentos típicos da cooperação das empresas privadas520. Essa primeira decisão sobre a OPEP emergiu no ápice do envolvimento do Estado nos mercados de recursos naturais. Observa-se que naquele período, a maior parte das nações privatizou aspectos essenciais das suas indústrias extrativas, deixando mais claro que as atividades das nações da OPEP são tipos de atividades habitualmente exercidas por empresas privadas e, portanto, não estariam imunes ao abrigo do FSIA521. Na apelação, o Ninth Circuit admitiu esta falha na opinião do Tribunal Distrital, mas, no entanto, encontrou outro meio para evitar julgar o mérito do caso. Assim, quando questionada a análise do Tribunal Distrital sobre a soberania, o Tribunal de Apelação afirmou a rejeição da primeira decisão da OPEP com base no Act of state522, que será visto no próximo tópico. 5.1.2 A doutrina do Act of State Para o presente estudo, trazer explicações complementares sobre a aplicação do Act of State Doctrine523 é relevante, pois GAVIL, KOVACIC e BAKER entendem que o caso Kirkpatrick & Co enfraqueceu ainda mais a parte-chave da decisão original do Ninth Circuit sobre a OPEP524. Esse caso será analisado a seguir. A doutrina do Act of State diz que uma nação é soberana dentro de suas próprias fronteiras e suas ações no mercado interno não podem ser questionadas 519 No mesmo sentido veja-se: GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1049. BECKER, 2007, p. 110. 521 GAVIL; KOVACIC, BAKER, 2008, p. 1049. 522 Em uma questão relacionada, no caso Prewitt Enters. v. OPEC , 353 F.3d 916 (11th Cir. 2003), a Eleventh Circuit manteve que a OPEP, como uma organização, não poderia validamente fazer parte do processo por causa de um acordo entre a OPEP e o Governo da Áustria concedendo imunidade. A Eleventh Circuit ponderou que, nesse contexto, a OPEP não poderia ser qualificada para imunidade nos termos da FSIA como resultado de suas atividades comerciais. 523 Preferiu-se manter redação original. MADRUGA FILHO traduz o termo como “Ato de Estado”. Veja-se: MADRUGA FILHO, 2005, p. 72. 524 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1050. 520 184 por um tribunal de outro país. Trata-se de um principio reconhecido nos EUA pela commom law e presente em sua jurisprudência desde 1987525. Com base no Act of State o magistrado não pode pronunciar-se sobre a validade e eficácia da legislação do país estrangeiro. Contudo, isto não afasta a jurisdição, ou seja, pode haver o julgamento do mérito da ação, mas apenas considerando os outros fundamentos que estejam fora do escopo do “Ato de Estado”526. Veja-se que a doutrina do Act of State não se confunde com a doutrina da imunidade soberana (sovereign immunity), pois, conforme explica MADRUGA FILHO, somente esta última “impede a submissão do Estado estrangeiro à jurisdição local”527. Conforme explicado anteriormente, o Act of State foi aprofundado nos EUA no caso Banco Nacional de Cuba v. Sabbatino, que reconheceu a incompetência dos tribunais americanos para julgar atos políticos de império e de Estado528. Posteriormente, a Suprema Corte enfrentou de maneira importante a questão da aplicação da doutrina do Act of State no caso W.S. Kirkpatrick & Co. v. Environmental Tectonics Corp., International, 493 U.S. 400 (1990) em uma decisão unânime de autoria do Magistrado Scalia529. Observa-se que a Environmental Tectonics era uma mal sucedida licitante em um contrato adjudicado530 por militares da Republica da Nigéria. De outro lado, a 525 Veja-se: USA. Underhill v. Hernandez, 168 U.S. 250 1897. MADRUGA FILHO, 2005, p. 73. 527 MADRUGA FILHO, 2005, p. 74. 528 USA. SUPREME COURT. Banco Nacional de Cuba v. Sabbatino, 376 U.S. 398 (1964). 529 Antonin Scalia é o mais antigo magistrado na Suprema Corte dos EUA. 530 “Adjudicação é o ato pelo qual se atribui ao vencedor o objeto da licitação, para a subseqüente efetivação do contrato administrativo. É o ato constitutivo do direito do licitante a contratar com a Administração, quando esta se dispuser a firmar o ajuste. A adjudicação, como ato constitutivo de direitos e obrigações, produz seus efeitos jurídicos desde o momento em que o julgamento for homologado e a adjudicação determinada pela autoridade competente. São efeitos jurídicos da adjudicação: a) a aquisição do direito de contratar com a Administração nos termos em que o adjudicatário venceu a licitação; b) a vinculação do adjudicatário a todos os encargos estabelecidos no edital; c) sujeição do adjudicatário às penalidades previstas no edital e à perda de eventuais garantias oferecidas, se não assinar o contrato no prazo e condições estabelecidos; d) o impedimento de a Administração Pública contratar o objeto licitado com qualquer outro que não seja o adjudicatário; e) a liberação dos licitantes vencidos dos encargos da licitação.” In: MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo: de acordo com as leis nº 8666, de 21.06.1993, nº 8883, de 08.06.1994 e nº 9648, de 27.05.1998. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 159. E ainda: “Adjudicação é o ato pelo qual a Administração, pela mesma autoridade competente para homologar, atribui ao vencedor o objeto da licitação. É o ato final do procedimento. Trata-se de ato declaratório que não se confunde com a celebração do contrato, pois, por meio dele, a Administração proclama 526 185 Kirkpatrick & Co era uma bem sucedida licitante que fez arranjos com um cidadão nigeriano, nos quais esse cidadão deveria se esforçar para garantir o contrato para a Kirkpatrick & Co531. Nesse contexto, o cidadão nigeriano e a Kirkpatrick & Co acordaram que, no evento da Kirkpatrick & Co ganhar o contrato ela pagaria uma “comissão” a duas entidades panamenhas controladas pelo cidadão nigeriano. Essa “comissão” resultava no equivalente a 20% do preço contratado, que, de outro lado, seria dada como suborno aos oficiais do governo da Nigéria. Vale destacar que a lei nigeriana proíbe tanto o pagamento como o recebimento de subornos em conexão com a adjudicação de contratos públicos.532 A Suprema Corte considerou que a doutrina do Act of State não era aplicável porque nada no caso requeria que a Corte declarasse inválido o ato oficial da soberania estrangeira. Veja-se que, questões do Act of State só surgem quando o resultado do processo gira em torno do efeito de uma ação oficial de uma soberania estrangeira. Vale notar que a Tribunal observou que nos casos que a Suprema Corte manteve a doutrina do Act of State aplicável, os pedidos ou a defesa interposta teriam exigido aos Tribunais dos EUA que declarassem inválidos os atos oficiais de um Estado soberano estrangeiro que foram realizados em seu próprio território.533 Assim, como a legalidade do contrato nigeriano não foi questionada no Tribunal durante a análise do caso Kirkpatrick & Co, logo não havia espaço para aplicar a doutrina do Act of State. Entretanto, foi enfatizado que a doutrina não estabelece uma exceção ao poder do Tribunal de decidir casos e controvérsias apresentadas de forma apropriada, meramente porque a revisão judicial de um caso pelos Tribunais nos EUA pode constranger um governo estrangeiro. Portanto, exige-se apenas que no que o objeto da licitação é entregue ao vencedor. Depois de praticado esse ato é que a Administração vai convocá-lo para assinar o contrato. Trata-se de ato vinculado, já que as únicas duas hipóteses em que a Administração pode deixar de efetuar a adjudicação são as de anulação ou revogação do procedimento, conforme previsto no art. 49 da Lei 8.666/93. A anulação ocorrerá em caso de ilegalidade, e a revogação, em caso de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado.” In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 333. 531 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1049. 532 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1049. 533 GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1049. 186 processo de decisão desses casos, os atos soberanos estrangeiros sejam considerados válidos em sua própria jurisdição. 5.1.3 Outros possíveis argumentos O que se observa também com o caso da OPEP, especialmente em razão da análise realizada nos EUA, é que os réus não seriam capazes de tirar proveito de outras teses especiais de defesa em um contencioso internacional envolvendo uma base em direito antitruste. Assim, veja-se a possibilidade de defesa com base no foreign sovereign compulsion que pode oferecer um "porto seguro" para um Réu que tenha sido obrigado a se engajar em atividades que violem a lei antitruste norte-americana. A foreign sovereign compulsion doctrine foi enunciada no caso Interamerican Refining Corp. v. Texaco Maracaibo, Inc.534, decisão em que se estabeleceu que as pessoas de direito privado não podem ser responsabilizadas por seus próprios atos quando a sua prática for imposta por um Estado: Quando uma nação obriga uma prática comercial, as empresas não têm outra escolha senão obedecer. Atos de negócio tornaram-se efetivamente atos de soberania. O Sherman Act não confere competência aos tribunais dos Estados Unidos sobre os atos estrangeiros de soberania. Quando a coação não deixa defesa, as empresas americanas no exterior diante de uma ordem do governo teriam que escolher um país ou outro para fazer negócios.535. Na prática foram poucas as aplicações da foreign sovereign compulsion doctrine ou do Act of State doctrine no sentido de levar os tribunais dos EUA a declinar de sua jurisdição. Analisa-se então se seria possível sustentar a prática na OPEP, por exemplo, com base nesse argumento, em que pese somente se ter encontrado uma decisão que foi bem sucedida, mas que, no entanto, ao final foi rejeitada536. 534 USA. Interamerican Refining Corp. v. Texaco Maracaibo, Inc:, United States District Court for the District of Delaware, 7 January 1970 (307 F . Supp. 1291). 535 Interamerican Refining Corp. v. Texaco Maracaibo, Inc, 1970, p. 1.298. 536 Nesse mesmo sentido, veja-se: WALLER, Weber. Redefining the foreign compulsion defense: The Japanese Automobile Restraints and Beyond. 14. Law & Policy in International Business. 747, 1982. Ainda, de acordo com GAVIL, KOVACIC e BAKER: “Qualquer conforto que essa defesa possa fornecer às empresas privadas que atuam sob as instruções de um estado, em razão disso, ela não tem aplicação no âmbito da OPEP, onde estão em causa os comportamentos dos governos estrangeiros”. (tradução livre) GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1050. 187 Os acusados, envolvidos na OPEP, também poderiam levantar questões baseadas na “cortesia” para fundamentar suas defesas. Entretanto, cumpre analisar se a cortesia forneceria outra base (separada), para afastar esse tipo de petição nos EUA. Esse assunto necessariamente passa pela análise do caso Hartford Fire Ins. Co. v. Califórnia, 509 U.S. 764 (1993). Nesse caso, o Tribunal, em uma decisão apertada (05 votos a 04), pareceu limitar a aplicação da cortesia para aquelas situações semelhantes à coação estrangeira, isto é, quando a lei estrangeira requer a violação do Sherman Act. No caso de um “conflito verdadeiro”, o Tribunal parecia disposto a permitir balancear os interesses dos EUA com os interesses estrangeiros para determinar qual jurisdição deveria analisar ou declinar. Assim, o Tribunal aparentemente transformou o foreign compulsion em critério de equilíbrio ao invés de um argumento completo que poderia eliminar outra defesa potencial para os países da OPEP em futuros pleitos537. 5.1.4 Observações complementares sobre a OPEP O caso da OPEP é realmente importante como exemplo para analisar as diversas defesas diferenciadas que foram preparadas - ou que aparentemente poderiam ser utilizadas - nos EUA, que possui um sistema antitruste considerado maduro. Este caso reflete um pouco como as isenções em casos de antitruste são complexas, ainda mais envolvendo o comércio exterior. Assim, as teorias e argumentos que foram trazidos servem para contemplar quando um caso poderia ser bem sucedido contra a OPEP ou até mesmo quando um caso bem sucedido poderia ser do interesse dos EUA ou de qualquer outro país. BECKER entende que mesmo na CE, o caso dos EUA contra a OPEP teria tido resultado similar, mas por razões diferentes: porque os artigos 81 e 82 do Tratado da CE aplicam-se somente aos empreendimentos. Entretanto, a noção de “empreendimento” não é explicada pelo Tratado da CE. Veja-se que, de acordo com o Tribunal de Justiça da CE, no contexto da 537 Veja-se no mesmo sentido: GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1050. 188 legislação de defesa da concorrência “o conceito de empreendimento abrange qualquer entidade engajada em uma atividade econômica, independentemente de sua condição legal e da forma como é financiada”.538 Não obstante, o Artigo 10(1) e (2) do Tratado da CE dispõe que os EstadosMembros deverão tomar todas as medidas apropriadas para assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do Tratado ou resultantes das medidas tomadas pelas instituições da CE devendo, também, “abster-se de qualquer medida que possa colocar em risco a consecução dos objetivos deste Tratado”. De fato, os Estados-Membros não poderiam legislar de modo a colocar em perigo a legislação concorrencial ou a própria concorrência. De acordo com o Tribunal de Justiça da União Européia: [...] 54. É o que se passa designadamente quando um EstadoMembro impõe ou facilita a celebração de acordos contrários ao artigo 85. quando reforça os efeitos ou retira à sua própria legislação o seu carácter estatal, delegando em operadores privados a responsabilidade da tomada de decisões de intervenção em matéria económica (acórdãos Van Eycke, n._ 16; Reiff, n._ 14, e Delta Schiffahrts- und Speditionsgesellschaft).539 Embora seja possível a aplicação extraterritorial da legislação de concorrência européia, a obrigação contida no Artigo 10 não se aplica aos países estrangeiros que não são Estados-Membros, não sendo, portanto, aplicável ao caso da OPEP. BECKER ainda explica que como essa obrigação é material, os estados estrangeiros não podem estar nem direta, nem indiretamente, vinculados às obrigações contidas nos Artigos 81, 82 do Tratado da CE540. Entretanto, até se uma violação antitruste fosse encontrada de forma cabal em meio a todas as exceções e teorias que poderiam ser usadas, aparentemente ainda não haveria algum remédio efetivo relacionado aos efeitos da conduta da OPEP à luz dos objetivos de reparação, compensação e punição, mesmo nessas jurisdições mais maduras (EUA e CE). Em adição, ainda é difícil afirmar a real 538 “21 It must be observed, in the context of competition law, first that the concept of an undertaking encompasses every entity engaged in an economic activity, regardless of the legal status of the entity and the way in which it is financed and, secondly, that employment procurement is an economic activity.” CE. Eur-Lex. Case C-41/90. Klaus Hofner and Fritz Elser v. Macroton GmbH. Judgment of the Court of 23 april 1991. 539 CE. Eur-Lex. Case C-35/96. Commission of the European Communities v. Italian Republic, ECR I3851. Judgment of the Court (Fifth Chamber) of 18 June 1998 540 BECKER, 2007, p. 111. 189 possibilidade de imposição de uma decisão aos membros da OPEP e seus oficiais/funcionários, considerando todos os pontos sensíveis ligados a esse caso. Outro ponto controverso diz respeito a quem seria a melhor parte contrária (Governos, consumidores, vários Estados?) em um caso contra a OPEP. Por fim, considerando as ramificações institucionais para a aplicação do direito antitruste nos EUA, se uma violação fosse identificada, mas nenhum remédio efetivamente fosse encontrado ou fosse possível, esse prospecto aparentemente não ajuda a explicar o desenvolvimento das doutrinas e teorias indicadas541, isto é, do Act of State e do Foreign Sovereign Compulsion 5.2 A situação das isenções aos cartéis de exportação Sobre as isenções dadas aos cartéis de exportação cabe mencionar estudo realizado por LEVENSTEIN e SUSLOW que pesquisaram os dados referentes a este assunto em 56 países. Os países selecionados englobam todos os países membros da OCDE, os países da CE e alguns países em desenvolvimento (conforme classificação do Banco Mundial). Por meio dessa pesquisa, realizada em 2004, foi identificado que dos países pesquisados, apenas 17 ofereciam aos exportadores envolvidos em cartéis de exportação isenção nas leis nacionais de concorrência, enquanto 33 países não tinham isenção antitruste para exportações em suas leis de concorrência, mas isentavam essas atividades de forma implícita542. As isenções aos cartéis de exportação foram classificadas em: i) isenções explícitas, isenções implícitas e isenções não oficiais (ou não previstas em lei). As isenções explícitas são criadas quando uma lei explicitamente exclui os cartéis de exportação das normas substantivas considerando a finalidade da lei antitruste.543 Existem dois tipos de isenções explícitas: a primeira requer notificação 541 Algumas das perguntas colocadas acima também são sugeridas, mas não respondidas, por GAVIL; KOVACIC; BAKER, 2008, p. 1050. 542 LEVENSTEIN, Margaret C.; SUSLOW, Valerie Y. The Changing International status of export cartels exemptions. Ross School of Business Working Paper Series. Working Paper Series n˚. 879. University of Michigan, November 2004, p. 1. 543 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 13. 190 ou autorização, enquanto a segunda dispensa essa formalidade. A notificação geralmente requer uma permissão do governo para que as empresas participem da prática, pois, sem essa permissão, haveria uma violação da lei nacional antitruste.544 Conforme se verá, a maioria dos países desenvolvidos está cada vez menos tendente a conceder essas isenções de forma explícita. Contudo, isto não deve ser interpretado como uma aceitação de que as isenções aplicadas aos cartéis exportadores constituem práticas desleais, mas sim que a concessão implícita é mais vantajosa estrategicamente545. A isenção explicita tem com vantagem principal a transparência, pois não apenas o público em geral, mas também os concorrentes e os “alvos” das condutas podem ter acesso a essa informação e preparar medidas compensatórias. Da mesma forma, a autoridade nacional pode supervisionar melhor as atividades dos membros do cartel para ter certeza de que referido o cartel de exportação não produz seus efeitos no mercado doméstico546. Devido à falta de confidencialidade, as isenções oficiais, principalmente as denominadas “explícitas” supostamente não teriam uma das características do que seria tradicionalmente considerado como um cartel hard-core547. Entretanto, conforme será visto a seguir, a questão é muito mais complexa. 5.2.1 O tratamento das isenções em diferentes jurisdições No Canadá, a lei de concorrência traz um bom exemplo de isenção explícita sem a necessidade de notificação. De acordo com a lei canadense, conluios relacionados apenas à exportação de produtos provenientes do Canadá estão fora do escopo da Lei antitruste.548 De qualquer forma, no Canadá, os exportadores podem perder o benefício da isenção se o acordo resultar, ou tiver o potencial de resultar, em uma redução ou 544 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 13. Cf. BECKER, 2007, p. 112-113. 546 A necessidade de consentimento ou permissão pelo menos altera o ônus da prova para a administração ou qualquer autor privado, porque a agência aceita ativamente o comportamento como legal. Cf. BECKER, 2007, p. 113. 547 Essa opinião foi dada pelo governo dos EUA em reunião na OMC. Cf. WGTCP. Report on the Meeting of 20-21 February 2003 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/21. May, 2003, p. 15. 548 CANADA. Competition Act, § 45 (5), 1986. Disponível em: <http://laws.justice.gc.ca/en/C-34/>. Acesso em: 12 jun. 2010. 545 191 limitação “do valor real das exportações de um produto”.549 Como não há necessidade de notificação, não foi possível, pela pesquisa realizada por LEVENSTEIN e SUSLOW, avaliar quantos exportadores obtiveram a vantagem desta isenção antitruste550. Ocorre algo similar na Islândia, uma vez que também não é necessária a notificação de cartéis de exportação. Trata-se de uma isenção explícita conforme expresso na lei: “Esta lei não deve se aplicar aos acordos, termos ou ações os quais somente tenham intenção de gerar efeito fora da Islândia”.551 Outro exemplo interessante é o da Austrália que, assim como os EUA, permite que haja uma isenção explícita para cartéis de exportação, mas requer que as empresas completem um requerimento para notificação para receber esta imunidade. De acordo com os termos da lei, os exportadores australianos que desejem a isenção da lei antitruste devem notificar ao governo seguindo os detalhes do requerimento dispostos no Export and Trade Practices Act 1974552. Veja-se que na Austrália, a lei de concorrência permite que haja uma isenção automática das exportações, numa análise caso a caso, de acordo com o preenchimento do requerimento. Assim, a isenção é possível e os critérios para a permissão devem ser preenchidos dentro do que está disposto na própria Lei553. 549 Id. Ibid. O valor real (real value) é diferenciado do volume de exportações. LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 14. 551 ISLANDIA. Competition Law. The Law Gazette A., nº 8/1993, As Amended by Law n° 24/1994, 83/1997, 82/1998, and 107/2-0 – (Ice.), Ch. I, Article 3. Disponível em: <http://www.samkeppni.is>. Acesso em: 10 Jul. 2010. 552 “To obtain an exemption, section 51(2) (g) of the Act requires that: - the provisions of the contract, arrangement or understanding relate exclusively to the export of goods from, or the supply of services outside Australia. A provision in the same agreement between the exporter and overseas buyer, that covers other aspects of export or supply (for example, a clause in the contract providing that the exporter will transport the goods from the point of manufacture to the point of departure in Australia) could be regarded by a court as being part of the export contract, - full and accurate details of the provisions be provided to the ACCC, - these details be submitted to the ACCC within 14 days of the contract, arrangement or understanding being made Exporters must give details of export agreements to the ACCC by providing:- a full copy of the export agreement - a copy of the actual relevant provision(s) of the export agreement or - details of the relevant provision(s) which may involve conduct prohibited by the Act.” AUSTRALIA. Australian Competition and Consumer Commission. Export agreements and the Trade Practices Act - Guide to the export agreement exemption in the Trade Practices Act, April 2009, p. 3-4. Disponível em:<http://www.accc.gov.au/content /item.phtml?itemId=545912&nodeId=9f39ba5b94adaca558c927983fff3bed&fn=Export%20agreements %20and%20the%20Trade%20Practices%20Act.pdf> acesso em 12 jun. 2010. 553 A Lei dispões sobre “qualquer disposição de um contrato, acordo, ou entendimento relacionado exclusivamente à exportação de bens da Austrália, ou ao fornecimento de serviços fora da Austrália [...]”. Cf. AUSTRALIA. Exports and the Trade Practices Act Guidelines to the Commission's approach to mergers, acquisitions and other collaborative arrangements that aim to enhance exports and the international competitiveness of Australian industry, September 1997. 550 192 A Comissão Australiana de Concorrência e Consumo (Australian Competition and Consumer Commission – ACCC) exclui das isenções explicitamente qualquer acordo relacionado ao fornecimento ou precificação no mercado doméstico. De acordo com as autoridades da Austrália, ao longo dos anos foram notificados mais de 400 acordos de exportação à ACCC554. Em Israel, também é necessário apresentar um requerimento, mas há critérios diferenciados para obter-se uma isenção. De acordo com a política israelense, estar engajado numa exportação é um fator a ser considerado para o pedido de isenção, mas o governo israelense já apresentou documento à OCDE explicando que mesmo os setores particulares não estão excluídos da aplicação das leis de concorrência já que as autoridades constantemente se esforçam para restringir e cancelar as isenções555. Quando há revisão do pedido de isenção, o Tribunal Antitruste de Israel leva também em consideração questões de interesse público556. De acordo com o estudo de LEVENSTEIN e SUSLOW, a África do Sul e a Tailândia, apesar de terem isenções explícitas, não chegam a utilizar efetivamente Disponível em: <http://www.apeccp.org.tw/doc/Australia/Decision/audec1c.html>. Acesso em: 10 Jul. 2010. 554 Id. Ibid. 555 “In Israel, the existence of specific laws applicable to a particular sector does not exclude that sector from the application of the competition Laws (see the discussion above regarding the "implied immunity doctrine"). In addition, the IAA regularly advises government agencies and the Knesset on competition and regulation issues and constantly strives to restrict and cancel exemptions from competition laws. Thus, the recommended balance between the activity of the competition authority and the activity of the regulatory authorities exists, in practice, in Israel.” OCDE. State of Israel. Position of Israel Regarding OECD Instruments. Initial Memorandum, July 2008, p.24. Disponível em:<http://www.oecd.org/dataoecd/7/48/41159203.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2010. 556 “10. Considerations of the Public Interest. When considering the public interest for the purposes of this Chapter, the Tribunal shall take into consideration, inter alia, the contribution of the restrictive arrangement to the issues listed below, and whether the arrangement's expected utility to the public is substantially greater than the damage to the public or to any part thereof, or to anyone who is not party to the arrangement; the issues are: (1) Efficiency in the production and marketing of assets or services, assurance of their quality, or reduction in their price to the consumer; (2) Assurance of a sufficient supply of assets or services to the public; (3) Prevention of unfair competition by a person not party to the arrangement, which may result in a reduction in competition for the supply of the assets or services in which the parties to the arrangement are engaged; (4) Enabling the parties to the arrangement to obtain the supply of assets or services on reasonable terms from a person who controls a considerable share of the supply of such assets or services, or to supply assets or services on reasonable terms to a person Who controls the purchase of a considerable share of the supply of such assets or services; (5) Prevention of severe damage to an industry which is important to the national economy; (6) Safeguarding the continued existence of factories as a source of employment in áreas in which substantial unemployment may be created as the result of their closure or a reduction in their production; (7) Improving the balance of payments of the State by reducing imports or reducing the price of imports or by increasing exports and their feasibility”. ISRAEL. Restrictive Trade Practices Act, 1998 nº 5748, § 10. Disponível em:< http://www.antitrust.gov.il/Files/HPLinks/RTP%20Law.pdf> Acesso 22 jun. 2010. 193 essas isenções.557 As autoras identificaram que em julho de 2004, não havia isenção em vigor. Contudo, no que diz respeito à Tailândia a situação mostra-se diferente entre 2005 - 2010, conforme é possível ser observado na tabela abaixo: TABELA 04 - Pedidos de Aprovação de Ações Concertadas558 (Application for concerted action approval) ANO 2005 2006 2007 2008 2009 2010* TOTAL – PEDIDOS 6 10 4 5 6 1 TOTAL – APROVADO 5 9 4 5 6 1 * Notificação realizada em janeiro de 2010, não constam novas notificações até julho de 2010. Tratando um pouco mais dos países europeus, veja-se que a lei de concorrência na Irlanda traz um exemplo típico de isenção implícita para os cartéis de exportação. De acordo com o Irish Competition Act of 2002, determinados acordos que restringem ou distorcem a concorrência dentro da Irlanda são proibidos. Entretanto, aqueles acordos entre empresas, ou decisões de associações de empresas e práticas combinadas que tenham como objeto, ou efeito, impedir, restringir ou distorcer da concorrência no comércio de bens e serviços “dentro do país, ou em qualquer parte do país”, são proibidas e nulas.559 Veja-se que esta isenção da Irlanda é considerada implícita justamente porque a lei não faz referência aos acordos que tenham potencial de restringir ou distorcer a concorrência em outros países. Vale lembrar que existem países que não possuem isenções previstas em lei (não oficiais). Esses casos são observados nas leis de concorrência que consideram a fixação de preço como ilegal, mas não há definição exata do escopo geográfico do mercado ou não há isenção explícita permitindo a fixação de preços nas atividades 557 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 15. Tabela elaborada com base nas informações da autoridade de Taiwan. TAIWAN. Fair Trade Law. Statistics: Applications for Concerted Actions Approval. Disponível em: <http://www.ftc.gov.tw/upload/ b0b45bfb-f19c-4446-92d0-ffe4b5037f6d.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2010. 559 IRLANDA. Competition Act, 2002, nº 14 of 2002, Part 2, § 4 (1). Disponível em: <http://www.irish statutebook.ie/2002/en/act/pub/0014/index.html>. Acesso em: 13 ago. 2010. 558 194 de exportação. Nessa categoria podem ser incluídas as leis de Luxemburgo, da Rússia e da Tailândia.560 Por fim, vale mencionar que existem países que sequer possuem legislação antitruste. Conforme levantamento realizado em 2004, dos 56 países pesquisados, 33 possuíam isenções implícitas, 17 possuíam isenções explícitas561, 03 não possuíam qualquer menção na legislação sobre isenções e 03 não possuíam sequer legislação antitruste. Nesse sentido, vale observar a tabela abaixo: TABELA 05 - Isenções a partir da Lei Nacional da Concorrência – Países Selecionados (Países em Desenvolvimento marcados com*) PAÍS (Ano de constituição da lei em vigor) Argentina* (1980) Austrália (1974) Áustria (1988) Bélgica (1991) Brasil* (1994) Canadá (1986) Chile* (1973) China* República Theca* (2001) Chipre Dinamarca (2002) Egito* Estônia* Finlândia (1992) França (1986, alterada em 1996) Alemanha (1999) Grécia (2000) 560 CLASSIFICAÇÃO DA ISENÇÃO NECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO Implícita Explícita Implícita Implícita Implícita Explícita Implícita Implícita Explícita Implícita Implícita Não há leis com matérias concorrenciais relevantes Implícita Explícita (vis-à-vis, não observados os Estados membros da União Européia Explícita Não Sim Não Não Não Não Não Não Não Não Não - Implícita Implícita Não Não Não Não Não LEVENSTEIN; SUSLOW. 2004, p. 17. Na década de 1990 cerca de um terço dos países que possuíam isenções explícitas tinham exigência de notificação. WALLER observou, em 1988, que países como o Japão, a Alemanha e o Reino Unido possuíam mecanismos de registro dos acordos, sem contar os EUA. Cf. WALLER, 1989, p. 109-110. 561 195 Hong Kong562 Hungria* (1996) Islândia Índia* (2002) Indonésia* Irlanda (2002) Israel (1988) Itália (1990) Japão (1947, alterada em 1997) Quênia* (1988) Coréia do Sul (1980) Letônia* Lituânia* Luxemburgo Malta México* (1993) Holanda (1998) Nova Zelândia (1986) Noruega (1993) Paquistão* (1970) Polônia*(1990) Portugal (1993) Rússia* Cingapura563 562 Não há leis com matérias concorrenciais relevantes Implícita Explícita Explícita Explícita Implícita Explícita Implícita Implícita Não Não Não Não Não Sim Não Não Implícita Implícita Implícita Explícita Não há lei de isenção Implícita Explícita Implícita Explícita Explícita Implícita Implícita Implícita Não há lei de isenção Não há leis com matérias Não Não Não Não Não Não Não Sim Não Não Não Não - O Secretário de Comércio e Desenvolvimento Econômico de Hong Kong, Gregory So, havia destacado, em março de 2009, o plano do governo de introduzir a lei de concorrência na Hong Kong Polytechnic University durante a Quarta Conferencia Sobre Lei e Política de Concorrência na Ásia (Fourth Asian Competition Law and Policy Conference) que foi realizada em 09 de Dezembro de 2010. Entretanto, a lei ainda não está em vigor até o momento. Disponível em: <http://www.asialaw.com/Article/2121786/Search/Results/Financial-crisis-should-not-delay-HK-compet ition-law.html?Keywords=Hong+Kong%3b+Competition+Law%3b+Delay&OrderType=1>. Acesso em: 10 ago. 2010. Veja-se que, em 28 de Junho de 2010, o Secretário de Comércio e Desenvolvimento Econômico confirmou que o Governo está em processo de consulta com mais de 500 órgãos estatutários para tratar de cada situação de acordo com a Lei da Concorrência. HONG KONG. Hong Kong Competition Law. Informed Commentary on Competition Law and Policy in Hong Kong, Thursday, 15 July 2010. Disponível em: <http://hkcompetitionlaw.com/2010/07/15/ competition-bill-10which-statutory-bodies/>. Acesso em: 10 ago. 2010. 563 Quando foi elaborada essa tabela pelas autoras LEVENSTEIN e SUSLOW não havia lei de concorrência em Cingapura. Entretanto desde outubro de 2004 há Lei antitruste em Cingapura: “27.1.1 The Competition Act 2004 (‘the Act’) was passed by Parliament on 19 October 2004. It is largely modeled on the UK Competition Act 1998. The objective of the Act is to promote the efficient functioning of Singapore’s markets and hence enhance the competitiveness of the economy.” Sobre as isenções aos cartéis de exportação, verifica-se que se trata de uma isenção “implícita”. A Lei estabelece o seguinte: “Exclusions under the Third Schedule: 27.2.13 The following matters are specified in the Third Schedule as being excluded from the Section 34 and 47 Prohibitions: (a) activities relating to services of general economic interest or having the character of a revenueproducing monopoly; (b) activities needed to comply with legal requirements or to avoid conflict with international obligations; (c) activities which arise from exceptional and compelling reasons of public policy such as national security, defence and other strategic interests; (d) activities which already have sector-specific competition frameworks; and (e) specified activities, some of which are carried out by persons licensed and regulated under various Acts. The specified activities are (i) the supply of ordinary letter and postcard services; (ii) the supply of piped potable water; (iii) the supply of wastewater management services; (iv) the supply of scheduled bus services; (v) the supply of rail services; (vi) cargo terminal operations; (vii) the clearing and exchanging of articles undertaken by the 196 República da Slovaca* (2001) África do Sul* (1998) Espanha (1989) Siri Lanka* (1987, 2003) Suécia (1994) Suíça (1995) Taiwan (1992) Tanzânia* (1994) Tailândia* Turquia* (1994) Reino Unido (1998) Estados Unidos (1890) Uruguai* (2000) Venezuela* (1992) Zâmbia* (1994) concorrenciais relevantes Explícita Não Explícita Implícita Implícita Implícita Implícita Explícita Implícita Não há lei de isenção Implícita Implícita Explícita Implícita Implícita Implícita Sim Não Não Não Não Sim Não Não Não Sim Não Não A tabela acima ilustra que não existe um padrão na adoção de isenções aos cartéis de exportação, ou seja: ora são implícitas, ora são explícitas, ora não há nada previsto. Ao mesmo tempo, a maior parte dos países não tem um levantamento de informações consistente sobre essas atividades, o que dificulta uma análise mais profunda das condutas. BECKER entende que, ao abandonar as isenções explícitas sem ajustar o alcance substantivo da legislação concorrencial doméstica, não se está fazendo nenhuma declaração pró-competitiva sólida em favor dos mercados-alvo 564 potenciais . De fato, ao abandonar procedimentos de notificação ou registro das isenções dos cartéis exportadores há menor grau de transparência, o que prejudica as autoridades concorrenciais dos países “alvo” que poderiam se beneficiar dessa informação para monitorar as atividades desses cartéis. Dessa forma, é por essa razão que BECKER defende que seria desejável que, no caso de um país oferecer tais isenções (caso não haja uma norma internacional que o impeça de assim agir), que estas sejam então explícitas, em prol da transparência565. É importante dizer que nos últimos dez anos alguns países modificaram suas leis de concorrência e acabaram eliminando as isenções explícitas aos cartéis de Automated Clearing House established under the Banking (Clearing House) Regulations; and (viii) any activity of the Singapore Clearing Houses Association in relation to its activities regarding the Automated Clearing House.” (destaques no original). CINGAPURA. Competition Law. Disponível em: <http://www.singaporelaw.sg/content/CompetitionLaw.html>. Acesso em: 15 jun. 2010. 564 BECKER, 2007, p. 113. 565 BECKER, 2007, p. 113 197 exportação, tais como: Alemanha, Hungria, Japão, Coréia, Holanda, Suécia, Suíça e Reino Unido566. Por traz dessas alterações, obviamente existe uma questão de convergência em relação aos países membros da CE. Na CE, de acordo com o novo regime estabelecido pelo Regulamento do Conselho 1/2003567, as isenções explícitas não se enquadram no sistema de aplicabilidade direta do Artigo 81(3) do Tratado da CE. Ainda, vale dizer que, em 1º de maio de 2004, a CE passou a ter novos Estados-membros que também estão procurando adequar suas legislações às leis da CE568. Observa-se, inclusive, que até mesmo a Turquia, que sequer possuía lei de concorrência até 1994, adotou uma lei nos termos da CE (ou seja, adotando isenção implícita aos cartéis de exportação) justamente porque objetiva ingressar como Estado-membro no futuro.569 Na Alemanha, antes de 1999, havia permissão aos cartéis de exportação puros depois de satisfeito o requerimento de notificação. Também era permitido que existissem cartéis de exportação mistos em circunstâncias limitadas570. Assim, entre 566 Nesse sentido veja-se: LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 18. “In particular, there is a need to rethink the arrangements for applying the exception from the prohibition on agreements, which restrict competition, laid down in Article 81(3) of the Treaty. Under Article 83(2)(b) of the Treaty, account must be taken in this regard of the need to ensure effective supervision, on the one hand, and to simplify administration to the greatest possible extent, on the other. The centralised scheme set up by Regulation No 17 no longer secures a balance between those two objectives. It hampers application of the Community competition rules by the courts and competition authorities of the Member States, and the system of notification it involves prevents the Commission from concentrating its resources on curbing the most serious infringements. It also imposes considerable costs on undertakings. (4) The present systemshould therefore be replaced by a directly applicable exception systemin which the competition authorities and courts of the Member States have the power to apply not only Article 81(1) and Article 82 of the Treaty, which have direct applicability by virtue of the case-law of the Court of Justice of the European Communities, but also Article 81(3) of the Treaty.” CE. COUNCIL REGULATION (EC) No 1/2003 of 16 December 2002 on the implementation of the rules on competition laid down in Articles 81 and 82 of the Treaty. Official Journal of the European Communities. L 1/1, 4.1.2003. 568 Desde 2005 os debates para a entrada da Turquia na CE seguem lentamente em razão da disputa com Chipre (Estado-membro da CE). Alemanha, Grécia, França e a Austria já se manifestaram no sentido de que há diferenças culturais e outras questões que justificariam a oposição. Existem argumentos em relação aos direitos humanos, ao fato de tratar-se do maior país muçulmano e outras questões históricas. Por outro lado, os apoiadores da entrada da Turquia apontam a importância desse país em razão do seu papel no Oriente Médio, especialmente no que diz respeito ao controle do potencial energético. Veja-se também: BARCHARD, David. Turkey and the European Union. Working Draft of a future pamphlet from the CER (Center for European Reform). Disponível em: <http://www.cer.org.uk/pdf/p093_turkey.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2010. 569 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 18. 570 ALEMANHA. The Bundeskartellamt. Act Against Restraints of Competition, § 1º, 6th Amendment, 1999. Disponível em: <http://www.bundeskartellamt.de/wEnglisch/index.php>. Acesso em: 10 dez. 2009. 567 198 1958 e 1999, 130 exportadores receberam isenção com base no procedimento estabelecido na Alemanha. Houve em 1999, uma alteração da GWB para afastar as isenções explícitas dos cartéis de exportação “considerando os esforços mundiais para combater restrições transfronteiriças à concorrência.”571 Veja-se que a Alemanha não excluiu todas as isenções, uma vez que acordos para uniformizar a aplicação de padrões, cartéis especializados, cartéis estruturais de crise ou cartéis de exceção continuaram tendo isenções.572 No Reino Unido, até 1998 os cartéis de exportação eram permitidos após notificação à autoridade responsável (Director General of Fair Trading), contudo essa isenção foi eliminada e mantida em 2004, quando houve emendas para criminalizar os cartéis hard core que afetavam o mercado do Reino Unido.573 Uma das razões para as alterações que ocorreram refere-se à existência de um grande número de isenções para cartéis que eram permitidos pelo Restrictive Trade Practices Act of 1973574. Havia também uma preocupação no Reino Unido com relação à antiga lei antitruste, pois esta orientava o registro dos cartéis, mas não trabalhava para a prevenção dos mesmos575. Na Holanda e na Suécia, assim como na Suíça, as adequações ocorreram no sentido de haver convergência dentro da Europa576. É interessante observar que o Japão também adotou alterações seguindo orientações similares ao que ocorria na Europa, apesar de aparentemente isto não ter qualquer relação direta com as alterações propostas na Europa. 571 RUDO, Joachim. The 1999 Amendments to the German Act Against Restraints of Competition. Disponível em: <http://www.rudo.de/new/main_ga_commentsonthe.htm>. Acesso em: 14 Ago. 2010. 572 LEVENSTEIN; SUSLOW. 2004, p. 19. 573 LEVENSTEIN; SUSLOW. 2004, p. 19. 574 PRATT, John H. Changes in UK Competition Law: A wasted opportunity, v.15, n.° 2. European Competition Law Review 1994, p. 89-90. 575 PARKER, David. The competition act of 1998: change and continuity in UK competition policy. Journal of Business Law, July, 2000, p. 285-286. Veja-se que as leis anteriores no Reino Unido não traziam métodos relevantes (significativos) de execução de penalidades e a última lei não exigia o registro de um cartel de exportação se apenas uma empresa (membro do cartel) concordasse em restringir a sua conduta. LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, nota 74, p. 19. 576 OCDE. Export Cartels: Report of the Commttee of Experts on Restrictive Business Practices, 1974, p. 36-42. 199 Assim como a Alemanha, o Japão teve bastante experiência ao longo da história no sentido de encorajar a cooperação entre as empresas exportadoras577. Até 1997, a lei de concorrência do Japão permitia que os cartéis de exportação puros entrassem em acordo sobre preço, quantidade, qualidade, ou design, desde que notificados ao Ministro da Indústria e de Comércio Internacional (Minister of International Trade and Industry – MITI). Essa notificação deveria ocorrer entre os dez dias da conclusão de referido acordo578. Entre 1992 e 1995, 17 dos 28 cartéis de exportação no Japão foram abolidos enquanto muitos também tiveram redução do seu escopo.579 Apenas três anos depois, o número de isenções de cartéis de exportação caiu apenas para 2, ou seja, 9 dos 11 cartéis de exportação foram abolidos desde 1995580. Tanto o Japão (Ominibus Act to Repeal and Reform Cartels and Other Systems Exempted from the Application of the Antimonopoly Act under Various Laws – “Ominibus Act”) quanto a Coréia (Omnibus Cartel Repeal Act – the Act on Regulating Undue Concerted Activities from the Application of the Monopoly Regulation and Fair Trade Act) criaram leis abrangentes para evitar inúmeras isenções explícitas aos cartéis de exportação581. Na coréia, em 1999, houve a exclusão da permissão da maioria dos cartéis de exportação582. Os exemplos citados acima demonstram que, nos últimos anos, tem havido um esforço para eliminar as isenções explícitas assim como para reduzir o número 577 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 19. JAPÃO. Export and Import Trading Act, Law nº 299, 1952. 579 WTO. Trade Policy Review of Japan PRESS/TPRB/5, 29/03/1995. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 Ago. 2010. 580 WTO. Trade Policy Review - Japan - Report by the Secretariat, WT/TPR/S/32, 05/01/1998, p. 17. Disponível em: <http://docsonline.wto.org/> Acesso em: 14 Ago.2010. 581 Aliás, vale ressaltar que em documento da OMC o Japão manifestou sua simpatia com a idéia de regras multilaterais que tratem dos cartéis de exportação, por entender que tratam-se de clara distorção ao comércio internacional: “[...] a multilateral framework could be particularly useful in assisting Members to address a number of specific issues that currently were the subject of discussion or otherwise merited attention. Two such issues were: (i) the problem of overlapping jurisdiction and the lack of harmonized procedures for the review of mergers with international implications, which imposed significant administrative costs and sometimes led to the abandonment of potentially beneficial mergers; and (ii) export cartels. Since the latter constituted a clear distortion of international trade, they would seem to fall clearly within the mandate of the WTO [...].” WTO. WGTCP. Report on the Meeting of 2-3 October 2000 - Note by the Secretariat, WT/WGTCP/M/12, 08 Nov. 2000, p. 3 Disponível em: <http://docsonline.wto.org/>. Acesso em: 14 ago. 2010. 582 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 21. 578 200 de isenções dadas aos cartéis de exportação, de modo a tornar a lei política de concorrência mais consistente583. De acordo com WALLER: A idéia de notificação e registro de cartéis de exportação numa base internacional é igualmente tentadora, mas imperfeita. Transparência é um objetivo valoroso, mas fora de uso, primeiro e principalmente, como um instrumento de detecção e erradicação de restrições anticompetitivas e não deve ser usado como uma justificativa para suas perpetuações.584 WALLER ainda é mais rigoroso ao reforçar que o melhor seria que os cartéis de exportação sejam considerados como cartel internacional tradicional, uma vez que uma distorção imprópria da concorrência no comércio internacional deveria ter uma condenação e proibição universal585. Veja-se que WALLER fez essas ponderações acerca de 20 anos. Atualmente, alguns países estão, de fato, tomando medidas mais agressivas tanto em relação aos cartéis nacionais, como aos cartéis internacionais, mas principalmente aos denominados hard-core. Para LEVENSTEIN e SUSLOW, circunstâncias e políticas que promovam cartéis fora dos respectivos países que condenam cartéis nacionalmente seriam inconsistentes e contrárias ao espírito de cooperação internacional586. As autoras consideram que a elaboração de leis nacionais de concorrência que apenas banem as atividades que prejudicam a concorrência em âmbito nacional, mas deixam um vácuo em relação aos cartéis de exportação, não resolvem o problema. Com a eliminação de notificações e requerimentos que solicitem a isenção, há, ao mesmo tempo, a redução de informações sobre as atividades dessas cooperações entre empresas que podem afetar diversos mercados587. 583 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 21. WALLER, Spencer Weber. The ambivalence of United States Antitrust Policy Towards Singlecountry Export Cartels. Northwestern Journal of International Law & Business, v. 98, 1989, p. 111-112. 585 WALLER, 1989, p.113. 586 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 21. Veja-se nesse mesmo sentido, KROL, 2007, p. 185. 587 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 24-25. 584 201 TABELA 06 - Número de isenções para cartéis de exportação em vigor entre 1980 – 2003588 ANO AUSTRALIA589 ALEMANHA 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 4 7 6 8 13 4 0 6 3 2 1 1 1 12 5 7 2 2 2 0 6 4 4 4 266 190 JAPÃO EUA (WPA) 36 28 11 234 36 36 EUA (ETC) 2 0 11 40 59 69 83 96 109 120 123 132 135 144 150 153 151 149 148 152 154 155 22 15 11 12 13 12 5.3 A situação dos cartéis de exportação no contexto internacional Conforme se viu nos capítulos acima, a situação jurídica dos cartéis de exportação está ficando cada vez mais ambígua, ao mesmo tempo em que existem poucas informações sobre essas condutas, tais como: quem participa, quais são as atividades, onde eles agem e quais são seus objetivos. 588 Tabela preparada com base nos dados pesquisados por LEVENSTEIN, SUSLOW, 2004, p. 28. Os números referentes à Austrália não são comparáveis aos outros países, pois isenções são concedidas em casos individuais. Dessa forma, esses números representam casos isentos de cada ano (um fluxo), mas não o número de cartéis de exportação em vigor (número consolidado). 589 202 Algumas questões precisariam ter o mínimo de clareza para que a conduta fosse avaliada. Há uma questão que precisa ser respondida, no sentido de qual seria a melhor política de concorrência e quais seriam os melhores mecanismos de que viabilizariam efetiva regulação dessas condutas. Alguns autores indicam que a adoção de políticas extraterritoriais pelos governos nacionais seria um caminho, outros apostam na cooperação internacional. A adoção de políticas extraterritoriais costuma ser utilizada como uma resolução mais óbvia porque qualquer país que proíba cartéis em seu mercado doméstico poderia combater cartéis de exportação que tenham efeito em seu território. Entretanto, existem problemas na aplicação de soluções extraterritoriais, conforme se viu no capítulo 4.2. LEVENSTEIN e SUSLOW acreditam que o aumento da cooperação internacional seria uma solução preferível e mais efetiva. As autoras defendem, inclusive, que esta cooperação poderia se dar por meio da ICN com o compartilhamento de informações entre as autoridades de concorrência.590 No entanto, as autoras também indicam que o meio mais forte de cooperação internacional seria com uma autoridade antitruste internacional com jurisdição sobre atividades colusivas direcionadas aos mercados exteriores591. De forma complementar, HOEKMAN e MAVROIDIS entendem que em um mercado mais integrado e global não haveria necessidade de distinção entre as atividades nacionais e o mesmo tipo de atividade direcionada ao mercado de exportação592. De fato, se há consenso de que a prática de fixação de preços prejudica os consumidores, a conclusão seria de que as isenções à exportação ao beneficiar a nação exportadora, ao mesmo tempo, prejudicam os consumidores estrangeiros. Ou seja, essa política praticamente motiva um enriquecimento de determinadas nações à custa de seus parceiros comerciais. BECKER entende que seria no mínimo questionável, senão imoral, que um país permita ou apóie um determinado comportamento, que é proibido no mercado 590 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 22. LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 22. 592 HOEKMAN; MAVROIDIS, 2003, p. 19. 591 203 doméstico, em detrimento dos estados estrangeiros593. Contudo, parece haver consenso de que os cartéis internacionais impõem severos custos aos países importadores, na medida em que transferem os ganhos dos consumidores para o exportador594. Há também um argumento que é politicamente e economicamente questionável de que os cartéis exportadores estimulam a circulação das importações, mas os defensores das isenções concordam que esses cartéis não são mais do que uma simples tentativa de aumentar o bem-estar social doméstico a expensas do bem-estar dos consumidores no mercado-alvo. Como conseqüência, os governos, assim como os doutrinadores tem tentado desenvolver argumentos sofisticados para tratar da permissibilidade relacionada aos cartéis de exportação, mas basicamente esses argumentos estão concentrados em torno da promoção da eficiência e do bem-estar595. Com relação a esses aspectos, os EUA em particular alegam que os cartéis de exportação teriam efeitos pró-competitivos ao facilitar a entrada de novos concorrentes estrangeiros no mercado “alvo”. Contudo, é preciso questionar se uma abordagem excessivamente generosa de apoio aos cartéis de exportação não tem como resultado o desenvolvimento do aumento das posições dominantes ou outras de estruturas anticompetitivas dentro do mercado “alvo”, afetando principalmente os consumidores do mercado de exportação. Veja-se, que como todos os cartéis, os cartéis de exportação têm outros efeitos tipicamente negativos, tais como o atraso do progresso técnico e o aumento dos custos para os consumidores596. A possibilidade de isenções referentes aos cartéis de exportação em um país pode incentivar outros países a também permitirem a formação de cartéis de 593 O autor ainda explica que a alegação mais óbvia contra os cartéis de exportação é que seus membros buscam ganhos monopolísticos que precisam ser satisfeitos pelos consumidores estrangeiros que pagam preços acima do nível competitivo. Cf. BECKER, 2007, p. 115. 594 TREBILCOCK, M. J.; HOWSE, Robert. The regulation of international trade. 3 ed. London: Routledge. 2005, p. 602. 595 BATTACHARJEA, 2004, p. 347, e também: LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, passim. De acordo com uma publicação do governo norte-americano, as empresas cooperadoras podem se beneficiar de pesquisas de mercados conjuntas, exposições comerciais, propaganda, financiamento e juros, além de atividades de treinamento. Nesse aspecto, as isenções dos cartéis de exportação têm o potencial de ajudar empresas que tipicamente carecem dos recursos para se engajar em uma atividade de exportação efetiva quando agem sozinhas. Cf. BECKER, 2007, p. 115. 596 Cf. IMMENGA, 1994, p. 126. 204 exportação. Isso significa uma desvantagem para os países que não possuem a correspondente vantagem597. Assim, BECKER defende que as isenções dos cartéis de exportação levam a uma espiral descendente de medidas anticompetitivas e incentivam a aplicação de medidas compensatórias dos governos e participantes do mercado. O autor entende ainda que: [...] as isenções explícitas referentes apenas à extraterritorialidade dos efeitos causados pela conduta não podem satisfazer a necessidade de analisar os possíveis efeitos da eficiência. Assim, a sugestão de remover as isenções dos cartéis de exportação remedia unicamente a existência das isenções explícitas dos cartéis de exportação.598 Em um contexto internacional, deixar a regulação dos cartéis de exportação apenas para as leis nacionais não seria adequado e muito menos evitaria eventuais distorções ao comércio em todos os casos. Assim, a idéia a ser defendida neste estudo é a de que um acordo multilateral que trate das isenções seria o modo ideal para melhorar o bem-estar dos consumidores por meio de uma política global. Conforme já visto, a cooperação internacional na esfera da política de concorrência requer o respeito às soberanias nacionais e aos diferentes níveis de desenvolvimento e de efetividade das leis nacionais de defesa da concorrência. 5.4 Breves considerações sobre o tema no direito brasileiro No Brasil, conforme visto, os cartéis de exportação seriam aparentemente permitidos implicitamente pela Lei 8884/94. Conforme se explicou na primeira parte deste estudo, não houve ainda um caso julgado pelo CADE que tenha tratado dessa conduta, mas há um caso analisado sob o aspecto estrutural que se mostra interessante, apesar de ter sido decidido há mais de 10 anos. Segundo levantamento jurisprudencial realizado para o presente estudo, o caso analisado pelo CADE que mais se aproxima de um cartel de exportação, com base na terminologia e nas classificações ora adotadas, foi a constituição de duas 597 598 IMMENGA, 1994, p. 96. BECKER, 2007, p. 118. 205 sociedades: a Brasil Álcool S.A., formada pelas 84 empresas responsáveis por toda produção de álcool do Brasil, em 1999; e a Bolsa do Álcool, por meio da qual se garantiria a unificação da comercialização do produto no Brasil599. O objeto social da Brasil Álcool S.A. seria “a comercialização, no mercado nacional e internacional, de álcool carburante anidro e hidratado e de açúcar, pelo período de três anos, prorrogáveis por tempo indeterminado”.600 Os fundamentos econômicos gerais utilizados pelas partes para sustentarem a aprovação do negócio como um todo podem ser sintetizados, principalmente, na existência de um contexto de crise no setor sucro-alcooleiro no Brasil que demandava uma auto-regulação em tal profundidade que tornava essencial a unificação da oferta de açúcar e álcool (principalmente de álcool) em uma única empresa, sendo que a Bolsa do Álcool seria responsável pela formação dos preços tanto para mercado doméstico, como para o mercado internacional (ou seja, para exportação). 599 Voto do Conselheiro-Relator, João Bosco Leopoldino da Fonseca, no Ato de Concentração n. 08012.002315/99-50, cujas Requerentes foram: Copersucar Armazéns Gerais S/A, Usina da Barra S/A Açúcar e Álcool, CIA Energética Santa Elisa, Açucareira Corona S/A, Destilaria Andrade S/A, Açúcar e Álcool Oswaldo Ribeiro de Mendonça Ltda., CIA Açucareira Vale do Rosário, Irmãos Francechi Agrícola Ind. e Com. Ltda, Usina Nova América S/A, Fundação de Assistência Social Sinhá Junqueira, Vale do Verdão S/A Açúcar e Álcool, Usina Costa Pinto S/A Açúcar e Álcool, Santa Cândida Açúcar e Álcool Ltda, Usina da Barra S/A, Usina Nerdini Ltda., Usina Bazan, Usina Mandu S/A, Destilaria Viralcool Ltda, Usina de Açúcar e Álcool MB Ltda., Cooperativa Agricola dos Produtores de Cana de Campos Novo dos Parecis Ltda., Destilaria Pitangueiras Ltda., Usina Açucareira Guaíra Ltda., usina Maracaí S/A Açúcar e Álcool, Usina Central Paraná S/A Agricultura Industrial, Usina Alto Alegre S/A Açúcar e álcool, Usina Santa Helena S/A Açúcar e Álcool, Usina Moema Açúcar e álcool Ltda., CIA Agricola sonora Estância, Usina Açucareira da Serra S/A, Univalem S/A Açúcar e álcool, Usina Brasilândia Açúcar e álcool Ltda., Usina alta Mogiana S/A açúcar e Álcool, Unialco S/A Açúcar e álcool, C<mércio e Indústria de Cana de Açúcar e Álcool Ltda., Álcool Azul S/A, Destilaria Flórida Paulista Ltda., Jalles Machado S/A Açúcar e Álcool, Açúcar Guarani S/A, Destilaria General S/A, Benalcool Açúcar e álcool S.A, Ferrari Agro-Indústria Ltda., Cooperativa Agrícola regional de Produção de Cana Ltda, Branco Peres Álcool S/A, Central de Álcool de Lucélia S/A, Destilaria de Álcool Nova Avanhandava Ltda., Destilaria Paraguaçu Ltda, Açucareira Bortolo Carolo S/A, Agro Industrial Passa Tempo S/A, Destilaria Pioneiros S/A, Vale do Rio Turvo, Alcoeste Destilaria Fernandópolis S/A, Cooperativa Agricola de Prod. de Cana do Vale do lvaí Ltda, Usina Delta S/A Açúcar e Álcool, Central Paulista açúcar e Álcool Ltda., Usina Santo Ângelo Ltda., Goiatuba álcool Ltda., Usina Santa Helena de Açúcar e Álcool S/A, Destilaria santa Fany Ltda., destilaria Melhoramentos S/A, Destilaria de álcool Califórnia Ltda., Irmãos Tonielo Ltda., Jardest S/A Açúcar e Álcool, Destilaria Alvorada do Bebedouro Ltda, Destilaria Londra Ltda., Usina de açúcar e Álcool Goioerê Ltda., Usina Alta Floresta S/A Açúcar e Álcool, Agricola, Industrial e Comercial Paraíso Ltda, Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de Nova Londrina Cooperativa Agroindustrial de Rubiataba Ltda., F.B. Açúcar e Álcool Ltda., Destilaria Pau D'alho S/A, Vale do lvaí S/A Açúcar e Álcool, Destilaria Guaricanga S/A, Companhia Albertina Mercantil e Industrial, Centroálcool S/A, Usina Pantanal de Açúcar e álcool Ltda., Usina Jaciara S/A, Bertollo & CIA. Ltda, Cooperativa Agrícola dos Produtores de Cana de Rio Branco Ltda, Usina Monte Alegre Ltda, Açúcar Álcool, Destilaria WD Ltda., Sociedade Açucareira Monteiro de Barros Ltda, Santa Fé Agro-Indústria Ltda, Central energética Vale do Sapucaí Ltda. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/temp/D_ D000000171891451.pdf> Acesso em 20 Ago.2010, p. 63. 600 BRASIL. CADE. Ato de Concentração n. 08012.002315/99-50, cujas Requerentes foram: Copersucar Armazéns Gerais S/A et. all. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/temp/D_ D000000082831510.pdf>. Acesso em: 20 Ago. 2010. 206 A racionalidade econômica específica utilizada pelas partes para sustentar juridicamente a unificação da oferta de açúcar e álcool para o mercado doméstico seria fazer frente à oferta informal existente no país, a qual, por não respeitar a legislação aplicável (sobretudo tributária), acabava por sucatear o setor sujeitando-o a iminente colapso, o qual equivaleria à extinção do mercado brasileiro601. Por essa razão, argumentava-se que, por exemplo, a unificação da oferta para elevação dos preços em patamares que remunerariam os investimentos, realizados pela iniciativa privada na cadeia industrial, geraria benefícios aos consumidores brasileiros, o que equivaleria a eficiências econômicas, e poderia ser enquadrado na hipótese de preponderante interesse nacional. No plano internacional, a operação teria fundamento na “canalização de esforços dos produtores para escoar o excedente do mercado brasileiro de álcool combustível (anidro e hidratado), mediante a conquista de novos mercados.”602 Segundo as classificações dos tipos de cartéis de exportação adotadas neste estudo, esse caso poderia até ser enquadrado no tipo de cartel de exportação misto (com efeitos no mercado interno e externo), todavia, o CADE entendeu que se tratava de uma hipótese de “cartel de crise” e, nesse sentido, decidiu por unanimidade, rejeitar o negócio no âmbito do controle de estruturas (artigo 54 da Lei n. 8.884/94). A título de elucidação, três dos sete Conselheiros que participaram do julgamento do caso, dentre os quais o Conseheiro-Relator, foram vencidos no tocante a recomendar à SDE/MJ a abertura de Processo Administrativo pela prática de cartel contra as partes da operação submetida ao SBDC para análise, no âmbito do controle de estruturas. Em adição, vale observar que a mesma argumentação utilizada pelo CADE para classificar a operação como um “cartel de crise” e sustentar seu veto como Ato de Concentração (calcada na jurisprudência internacional603), fora utilizada pelo 601 BRASIL. CADE. Relatório do Conselheiro-Relator, João Bosco Leopoldino da Fonseca. Ato de Concentração n. 08012.002315/99-50, p. 4. 602 BRASIL. CADE. Relatório do Conselheiro-Relator, João Bosco Leopoldino da Fonseca. Ato de Concentração n. 08012.002315/99-50, p. 4. 603 Os casos utilizados como base se referiram à hipótese de cartéis de crise no âmbito: da Espanha (decisões do Tribunal de Defesa da Concorrência da Espanha – Resoluções 312/92, 322/93, 324/92 e 376/96); dos EUA (decisões da Suprema Corte – Appalachian Co. v. US 1933, Soccony-Vacuum v. US 1940); e da União Européia (Decisões 72/22/CEE 1971, 92/204/CEE 1962). In. BRASIL. CADE. 207 Relator do caso para sugerir a abertura de investigações pela prática de cartel e posterior punição dos envolvidos. Relatório do Conselheiro-Relator, João Bosco Leopoldino da Fonseca. Ato de Concentração n. 08012.002315/99-50, p.83-92. 208 6 A MULTILATERALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA E O TRATAMENTO DOS CARTÉIS DE EXPORTAÇÃO As normas jurídicas são criadas para atender certas finalidades. Considerando os limites territoriais e os próprios princípios de direito internacional, a legislação concorrencial nacional tem a finalidade de regular apenas os mercados domésticos, já que a proteção de outros mercados, fora de suas fronteiras, não seria adequada. Mesmo uma nação que tenha um direito da concorrência maduro não teria a capacidade de proteger a concorrência no mercado estrangeiro em razão da complexidade de determinadas condutas. O tema é delicado, pois decisões estatais muitas vezes relacionam-se com as políticas de concorrência e políticas industriais. Assim, se houvesse um direcionamento das leis nacionais antitruste para a proteção da concorrência em mercados estrangeiros, teria que ser levada em consideração as situações concretas de cada país e de cada economia. Não obstante, mesmo diante da ausência de leis concorrenciais ou de qualquer controle da concorrência em determinados países, não seria responsabilidade e nem competência de outro país impedir a atuação de estruturas de mercado anticompetitivas (por exemplo, cartéis) nesses estados estrangeiros. Essa atuação pode ser considerada equivocada e um erro não justifica o outro. Sem dúvida, ao se propor a exclusão global dos cartéis de exportação o maior desafio é identificar como isto poderia ser feito. Apesar de algumas propostas versarem sobre cooperação internacional, ou harmonização das leis nacionais, não se pode ignorar os efeitos não pretendidos na aplicação de cada uma dessas políticas. Para muitas pequenas empresas, especialmente aquelas que são provenientes de países que historicamente estiveram pouco envolvidos com os mercados globais, os desafios aparentemente são ainda maiores604. Existem pesquisadores que acreditam que especialmente para os pequenos países, nos quais basicamente as associações ocorrem por meio de fusões, a 604 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 23. 209 eliminação de uma possibilidade jurídica de cooperação poderá gerar a consolidação e redução da competição no mercado doméstico, apesar de não existir dados conclusivos sobre isso605. Essa idéia é explicada pelo efeito que já pôde ser observado como um resultado do aumento da persecução aos cartéis internacionais hard-core606. Nesse sentido, um exemplo seria o do mercado de tubos de aço sem costura (seamless steel tubes), em que, desde que houve a dissolução do cartel houve uma reorganização desse mercado: cada membro do cartel ou deixou a indústria, ou participou de uma fusão ou de uma aliança estratégia com outro antigo membro do cartel607. Conforme se viu ao longo deste estudo, há autores também que defendem que a cooperação internacional propõe uma alternativa que, se for implementada adequadamente, poderia limitar os efeitos negativos da colusão nos mercados internacionais sem incentivar a fusão das pequenas empresas, especialmente nos mercados menores, ou nos países em desenvolvimento608. Acredita-se que as regras deveriam ser estabelecidas para dar às empresas orientações de como suas atividades poderiam ser desenvolvidas sem ferir a concorrência internacional. Isto é relevante, mas entendemos que não seria suficiente. De fato, por meio das isenções dos cartéis de exportação, em âmbito nacional, gera-se a possibilidade de se obter ganhos sem violar a responsabilidade 605 Nesse sentido, veja-se: “True, export associations are not geared to particular national markets; it is more likely that collusion takes place on a case-by-case basis taking advantage of the implicit exclusion for exports in EU competition law. Of course, more research is needed to support this admittedly speculative hypothesis.” BHATTACHARJEA, Aditya. Export Cartels - A Developing Country Perspective. Working Paper No. 120. Centre for Development Economics, January, 2004, p. 26. 606 Veja-se nesse sentido: LEVENSTEIN, Margaret C.; SUSLOW Valerie Y. Private international cartels and their effect on developing countries. World Development Report, 2001. Disponível em: <http://www-unix.oit.umass.edu/~maggiel/WDR2001.pdf>. Acesso em: 22 set. 2009. 607 “The European Commission today adopted a decision under Article 81 EC which imposed fines totalling EUR 99 million on eight producers of seamless steel tubes [British Steel Limited (United Kingdom), Dalmine S.p.A. (Italy), Mannesmannröhren-Werke A.G. (Germany), Vallourec S.A (France), Kawasaki Steel Corporation, NKK Corporation, Nippon Steel Corporation and Sumitomo Metal Industries Limited (Japan)]. The producers colluded until 1995 over the observance of their respective domestic markets for certain seamless tubes used in oil and gas prospecting and transportation.” Cf. EU. Commission fines cartel of seamless steel tube producers for market sharing. Brussels, 8 December 1999. Atualmente essa indústria é mais consolidada e é difícil verificar como a concorrência poderia ser maior com base na estrutura existente. 608 BHATTACHARJEA defende uma posição parecida e sugere a utilização das regras antidumping da OMC como mecanismo enforcement. Veja-se: BHATTACHARJEA, Aditya. Export Cartels - A Developing Country Perspective. Working Paper No. 120. Centre for Development Economics, January, 2004, p. 31-34. 210 legal estabelecida em seu país, mas isso não pode ser feito de qualquer forma ou de modo a prejudicar a economia e os consumidores de outro país LEVENSTEIN e SUSLOW defendem que uma política mais forte poderia deslocar o ônus da prova às associações de exportação e mostrar para os membros dessas associações que, apesar deles precisarem cooperar e participar efetivamente dos mercados internacionais, as suas atividades não podem prejudicar a concorrência609. Uma cooperação internacional, que regule a atividade dos cartéis de exportação em âmbito internacional, teria a finalidade de racionalizar as políticas de concorrência e promover a competição de forma mais efetiva. Considerando especialmente a estrutura de mercado e as barreiras à entrada nos mercados internacionais, a cooperação internacional poderia auxiliar as autoridades de defesa da concorrência a desenvolver suas capacidades de detectar e prevenir as associações e acordos que prejudicam a concorrência, reduzindo riscos, dando assistência e auxiliando as empresas que cooperam, mas não prejudicam a competição no mercado610. Conforme se verá a seguir, esta proposta é coerente com as regras já assumidas internacionalmente por boa parte dos países e seria uma boa alternativa para ajudar a evitar que as isenções aos cartéis de exportação sejam tratadas de formas tão diferentes, como ocorre atualmente. Ainda, a troca de informações seria fundamental para o PEDs e outros países que tem pouca ou nenhuma intimidade com esse tema. Em adição, acredita-se que uma nova proposta de multilateralização, ou seja, que a adoção de um conjuntos de regras de concorrência no âmbito da OMC (por exemplo) também poderia viabilizar flexibilidade às diferentes necessidades que existem, de acordo com o nível de desenvolvimento dos países, sem violar os princípios do comércio internacional e da concorrência. 609 610 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 22. Nesse sentido veja-se: LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 25. 211 6.1 O possível tratamento dos cartéis de exportação na OMC O sistema de comércio internacional evoluiu de forma notável desde 1947 (quando da criação do GATT que posteriormente culminou com a criação da OMC). Ao longo dos anos, após ocorrer a redução das barreiras tarifárias, as atenções voltaram-se para as barreiras não tarifárias, assim como outros tópicos foram incluídos nas agendas das rodadas comerciais da OMC. Contudo, apesar da idéia de uma ordem de concorrência internacional em complementação ao comércio internacional ter sido originalmente abordada na Carta de Havana (conforme visto no capitulo 2.2.4), os acordos firmados permaneceram silentes com relação a essa matéria. Muitos governos e estudiosos do comércio internacional, ainda hoje, lamentam a falta de uma política de concorrência internacional abrangente611. Há documentos de trabalhos com manifestações de alguns Membros da OMC que são favoráveis à inclusão do tema, assim como existe o reconhecimento de alguns de que cartéis de exportação causam distorções não apenas à concorrência, mas também ao comércio internacional. Nesse sentido, veja-se abaixo: Com relação aos tipos de práticas anticoncorrenciais que poderiam ser tratadas pelo acordo multilateral proposto, o entendimento expresso foi de que as seguintes categorias de práticas deveriam ser tidas como relevantes: (i) práticas anticoncorrenciais com impactos similares nos mercados de múltiplos países ou em mercados mundiais, como os cartéis internacionais; (ii) práticas anticoncorrenciais que afetam a entrada no mercado, como cartéis de importação, certos abusos de posição dominante e acordos verticais; e (iii) práticas anticoncorrenciais, cujos efeitos são percebidos primeiramente em mercados distintos daquele onde a conduta foi elaborada, como cartéis de exportação. No intuito de regular e reprimir de forma eficiente tais práticas anticoncorrenciais, há necessidade tanto de uma política de concorrência nacional eficiente, quanto da cooperação internacional fortalecida nos planos bilateral, regional e multilateral. [...] a opinião foi de que a evidência apresentada no Working Group mostrou claramente que tais práticas 611 Vejam-se: principalmente as opiniões expressas nos documentos da OMC WT/WGTCP/2, WT/WGTCP/3, WT/WGTCP/4, WT/WGTCP/5 e também: WEINRAUCH, Roland. Competition Law in the WTO: the rationale for a framework agreement. Wien: NWV Neuer Wissenschaftlicher Verlag; Berlin: BWV Berliner Wissenschafts-Verlag; Antwepen: Intersentia, 2004; WOOD, Diane P. Cooperation and Convergence in International Antitrust: Why the Light Is Still Yellow. In: EPSTEIN Richard A.; GREEVE Michael S. Competition Laws in Conflict: Antitrust Jurisdiction in the Global Economy. AEI Press, 2004; KROLL, Daniela. Toward multilateral competiton law? - after Cancún:reevaluating the case for additional international competition rules under special consideration of the WTO agreement. Frankfurt am Main; New York: Peter Lang, 2007. 212 realmente tiveram um considerável impacto adverso (i.e., prejudicial) no comércio internacional e no desenvolvimento. Outra opinião foi que as formas de comportamento anticoncorrencial a ser reguladas e reprimidas por um acordo multilateral são matéria de negociação.612 (tradução livre). Em que pese os trabalhos realizados pelo WGTCP desde Cingapura (1996), os temas e propostas que se referem à concorrência foram retirados da agenda de Doha diante do colapso durante a negociação, com o fim de se evitar ainda mais tumulto nas negociações: Relação entre comércio e investimento, interação entre comércio e política de concorrência e transparência da contratação pública: o Conselho acorda que esses temas mencionados nos parágrafos 20-22, 23-25 e 26, respectivamente, da Declaração Ministerial de Doha, não formarão parte do Programa de Trabalho estabelecido em dita Declaração e, por conseguinte durante a Rodada de Doha não serão levados em consideração na OMC trabalhos encaminhados para a celebração de negociações sobre nenhum desses temas.613 (destaques no original). É interessante notar que, até mesmo pela comunicação que existe entre os temas, na prática, existem casos na OMC que acabam tratando de questões relacionas à concorrência, tal como ocorreu no famoso caso entre as empresas Fuji e Kodak que abordou um suposto fechamento do mercado de material fotográfico japonês614 e que revelou algumas limitações. Neste caso, a questão central era se o sistema de distribuição, que basicamente excluía os materiais fotográficos estrangeiros do mercado japonês, tinha sido estabelecido por orientação governamental. Como os EUA não conseguiram provar de forma satisfatória o envolvimento do Estado japonês, a 612 WTO. WT/WGTCP/5, 2001, p. 21-22. No original: “Relación entre comercio e inversiones, interacción entre comercio y política de competencia y transparencia de la contratación pública: el Consejo acuerda que estos temas, mencionados en los párrafos 20-22, 23-25 y 26, respectivamente, de la Declaración Ministerial de Doha, no formarán parte del Programa de Trabajo establecido en dicha Declaración y por consiguiente durante la Ronda de Doha no se llevarán a cabo en la OMC trabajos encaminados a la celebración de negociaciones sobre ninguno de estos temas.” WTO. Programa de Trabajo de Doha. Decisión adoptada por el Consejo General el 1º de agosto de 2004, WT/L/579, 2004, p. 4. 614 Veja-se: WTO. Panel Report Japan – Measures Affecting Consumer Photographic Film and Paper. WT/DS44/R, 1998. Esse caso foi interessante também do ponto de vista do GATS, pois tratou dos efeitos das medidas do governo japonês nas atividades dos distribuidores nacionais e internacionais, assim como os produtores do produto em questão (filme e papel de fotografia). 613 213 alegação foi rejeitada615. Entretanto, esse caso é interessante porque sugere que as leis concorrenciais podem ser afetadas pela aplicação do tratamento nacional616. Na prática, pode-se dizer que, no âmbito da OMC, ainda que não existam regras acordadas sobre o direito da concorrência, o que existem são algumas disposições nos acordos que tratam de aspectos do direito da concorrência617 que poderiam ser aplicáveis em alguns casos concretos. Um exemplo seria o do GATS que no artigo VIII(1) impõe o dever aos Membros da OMC de assegurar que qualquer fornecedor monopolista de um serviço no seu território não aja de forma incompatível com as obrigações previstas no artigo II e compromissos específicos, no fornecimento do serviço de monopólio no mercado relevante618. Ainda, o artigo IX (1) declara que: 1. [Os] Membros reconhecem que certas práticas comerciais dos prestadores de serviços, com exceção das abrangidas pelo artigo VIII, podem restringir a concorrência e, assim, restringir o comércio de serviços. 619 (tradução livre). Com relação às interferências externas na concorrência, deve-se salientar que o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) procurou dar continuidade à tendência de dificultar os subsídios às exportações. Vale observar 615 “[...] the United States fails to show that any of the individual "measures" -- distribution "measures", "measures" restricting large stores, or promotion "measures" -- nullifies or impairs benefits accruing to the United States in respect of competitive market-access expectations for imported film or paper. In light of these earlier findings and the fact that the United States has not presented additional argument or adduced additional evidence in support of its claim that all these "measures" have worked in concert to upset US market-access expectations, we find that the United States has not demonstrated that the three categories of "measures" in combination nullify or impair benefits accruing to the United States within the meaning of Article XXIII:1(b). 10.367 In the final analysis, it is not incumbent upon this Panel to engage in its own extensive, unaided investigation into the potential applicability in this case of the US theory of combined effects. Rather, it is for the United States, as the complaining party, to make a detailed showing of the relevance of this theory to the matter at hand. We consider that the United States has failed to make such a showing here”. WTO. Panel Report Japan – Measures Affecting Consumer Photographic Film and Paper. WT/DS44/R, 1998, p. 142. 616 HOLMES, Peter; MATHIS, James; TCA Anant; EVENETT, Simon J. EU-INDIA Study Report On Competition Policy. Final Draft June 12 2003. Disponível em: <http://www.alexandria.unisg.ch/ EXPORT/DL/22330.pdf> Acesso em 23 jun. 2010 617 Cf. TREBILCOCK, M. J.; HOWSE, Robert. The regulation of international trade. 3 ed. London: Routledge. 2005, p. 593. No mesmo sentido: BECKER, 2007, p. 121. 618 “1. Each Member shall ensure that any monopoly supplier of a service in its territory does not, in the supply of the monopoly service in the relevant market, act in a manner inconsistent with that Member's obligations under Article II and specific commitments.” WTO. GATS. General Agreement on Trade in Services, VIII(1). 619 “1. Members recognize that certain business practices of service suppliers, other than those falling under Article VIII, may restrain competition and thereby restrict trade in services.” WTO. GATS. General Agreement on Trade in Services, IX (1). 214 que tais condutas podem se assemelhar à tolerância ao comportamento anticompetitivo relacionado às exportações620. Entretanto, configurar cartéis de exportações como subsídios no contexto do ASMC também não seria tarefa simples, pois os requisitos legais do acordo devem ser cumpridos e, entende-se que, os cartéis de exportação não cumprem todos os requisitos. Nesse sentido, referente ao cumprimento dos requisitos do ASMC, é interessante mencionar trechos dos termos da decisão no caso Countervailing Duty Investigation On Dynamic Ramdom Access Memory Semiconductors (Drams) From Korea. [...] Por conseguinte, não há nem resultados suficientes do Painel nem fatos incontestáveis contidos nos documentos para que possamos conduzir nossa própria análise das alegações da Coréia considerando o benefício e a espeficicidade621. Lembramos que não é suficiente para determinar que exista uma "contribuição financeira por um governo ou qualquer entidade pública" para constatar que existe um "subsídio" com base no artigo 1.1 do Acordo ASMC. Esta disposição também requer que “um benefício também seja conferido". O artigo 1.2 requer, além disso, que o subsídio seja “específico". [...] não há base suficiente para que possamos analisar a consistência das determinações do benefício e especificidade do USDOC com o ASMC.622 (tradução livre). No Relatório do Órgão de Apelação, do caso mencionado acima, foram analisadas as interpretações jurídicas desenvolvidas no Relatório do Painel que tratou da demanda apresentada pela Coréia contra os EUA sobre a imposição de direitos compensatórios em modelos de DRAMS (dinâmica de semicondutores de memória de acesso aleatório - Dynamic Random Access Memory Semiconductors) produzidos na Coréia. Essas medidas compensatórias foram aplicadas após uma investigação do Departamento de Comércio dos Estados Unidos (United States Department of Commerce - USDOC) e da Comissão de Comércio Internacional dos Estados Unidos (United States International Trade Commission - USITC). 620 107. Article 1.1 (a) (1) makes clear that a "financial contribution" by a government or public body is an essential component of a "subsidy" under the SCM Agreement. No product may be found to be subsidized under Article 1.1 (a) (1), nor may it be countervailed, in the absence of a financial contribution. Furthermore, situations involving exclusively private conduct—that is, conduct that is not in some way attributable to a government or public body—cannot constitute a "financial contribution" for purposes of determining the existence of a subsidy under the SCM Agreement. 621 Nesse sentido, foi mencionado o caso: Appellate Body Report, US – Softwood Lumber IV, para. 113. 622 WTO. United States – Countervailing Duty Investigation On Dynamic Ramdom Access Memory Semiconductors (Drams) From Korea. Report of the Appellate Body, WT/DS296/AB/R, 27 June 2005, parágrafo 208. 215 Veja-se que no trecho destacado desta decisão resta claro o entendimento do Órgão de Apelação de que, nos termos do ASMC, para que um subsídio seja constatado: i) não é suficiente apenas a contribuição financeira de um governo ou qualquer entidade pública (artigo 1.1 do ASCM); ii) é necessário que um benefício seja conferido, e iii) o subsídio deve ser “específico" (artigo 1.2 ASCM). Para efeitos de defesa comercial, apenas interessam os subsídios específicos. Nos termos do MDIC: Um subsídio é considerado específico quando a autoridade outorgante, ou a legislação vigente, explicitamente limitar o acesso ao subsídio a uma ou a um grupo de empresas ou indústrias, a ramos de produção, ou a regiões geográficas. Também será considerado como específico, o subsídio que se enquadre na definição de subsídio proibido. A determinação de especificidade deverá estar claramente fundamentada em provas positivas.623 Os critérios utilizados na análise de defesa comercial são muito importantes para se ponderar se seria possível considerar a prática de um cartel de exportação (i.e., a aplicação de isenções, ou a sua permissibilidade) como um tipo de subsídio. Entende-se que não seria possível ter essa interpretação com base no ASMC, em que pese os efeitos práticos de um subsídio serem semelhantes aos efeitos dos cartéis de exportação considerados “puros”. Conseqüentemente, diante da ausência de regras multilaterais que tratem dos cartéis de exportação, as legislações nacionais permanecem como o ponto de 623 BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR - MDIC. Subsídios. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=267>. Acesso em :10 jul. 2010. “O MDIC também esclarece o seguinte: Não ocorrerá especificidade quando a autoridade outorgante ou a legislação vigente estabelecer condições ou critérios objetivos que disponham sobre o direito de acesso ao subsídio e sobre o respectivo montante a ser concedido, desde que este direito seja automático e que as condições e critérios sejam estritamente respeitados e se possa proceder a sua verificação. Condições ou critérios objetivos: Significam condições ou critérios imparciais, estipulados em lei, regulamento ou outro ato normativo, que não favoreçam determinadas empresas em detrimento de outras e que sejam de natureza econômica e de aplicação horizontal, como número de empregados ou dimensão da empresa. Não será considerado "subsídio específico" a instituição de tributos ou a alteração de alíquotas genericamente aplicáveis.Nos casos em que não haja, aparentemente, especificidade, como considerado acima, mas haja razões que levem a crer que o subsídio em questão seja de fato específico, poderão ser considerados outros fatores como, uso de um programa de subsídio por um número limitado de determinadas empresas, uso predominante de um programa de subsídios por determinadas empresas, concessão de parcela desproporcionalmente grande de subsídio apenas a determinadas empresas, e o modo pelo qual a autoridade outorgante exerceu seu poder discricionário na decisão de conceder um subsídio. Nestes casos serão levadas em conta as informações sobre a freqüência com que são recusados ou aceitos pedidos de subsídios e sobre os motivos que levaram a tais decisões, bem como a diversidade das atividades econômicas dentro da jurisdição da autoridade outorgante e o período de tempo durante o qual o programa de subsídios esteve em vigor.” (grifos no original). 216 referência dominante das políticas de concorrência e, caso não haja mudança, continuarão a alimentar: i) o uso excessivamente amplo da teoria dos efeitos para regular a conduta anticompetitiva de agentes estrangeiros que afetem o mercado doméstico, e ii) a complacência em relação aos efeitos negativos sobre os mercados estrangeiros com relação a prática dos cartéis de exportação. Foram vistas, na prática, várias tentativas de aumentar a cooperação em matéria de concorrência, especialmente com relação aos cartéis hard-core. Ainda, conforme já foi visto, a OMC já considerou a inclusão de algumas proibições da legislação concorrencial entre seus dispositivos. Apesar desta opção não estar na mesa de discussão atualmente, entende-se que poderá ser levada novamente, tendo em vista os problemas existentes da legislação concorrencial internacional624. As preocupações com relação à defesa da concorrência no contexto internacional ainda são mais significativas para jurisdições pequenas ou em desenvolvimento, já que o poder econômico, dentro dessas jurisdições, tende a ser mais concentrado nas mãos de poucos625. Além disso, as elites e os governos tendem a ter um comportamento voltado para a obtenção de privilégios e objetivos privados o que dificulta o desenvolvimento. Veja-se que nos documentos da OMC encontram-se declarações que expressam que, colocar em prática uma política com princípios norteadores da concorrência pode contribuir ao bem-estar do consumidor e aos objetivos ligados ao desenvolvimento. Quanto à suposta preocupação de não se conseguir atender às necessidades especificas de cada Membro, vale observar interessante observação: [...] aderir a estes princípios não interferiria nas capacidades dos Membros de responder às suas necessidades específicas e circunstâncias econômicas. Isto foi apoiado por referência à experiência nacional de um Estado cuja legislação incorporou os princípios da não discriminação, da transparência, do devido processo e flexibilidade, e ainda foi adaptada para atender às suas necessidades e circunstâncias específicas.626 Considerando as limitações dos PEDs e outras economias mais frágeis, e também considerando que atualmente não existem regras multilaterais que tratem 624 No mesmo sentido, veja-se: GAL, 2009, p. 21-22. GAL, 2009, p. 9. 626 WTO. Report (2001) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/5. 08 October 2001, p. 5-6. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso em: 28 ago. 2009. 625 217 dos cartéis de exportação, a proposta assumida nesse estudo é de dar um tratamento que seja completo, no sentido de regular a atividade dos cartéis de exportação atendendo especialmente às necessidades dos países de economia mais sensível e que possuem leis ou políticas de concorrência deficientes (ou simplesmente não as possuem). Considerando a estreita relação entre comércio e concorrência (conforme visto especialmente no Capítulo 1), é interessante examinar também, neste capítulo, as disposições do GATT/OMC, que teriam alguma relação para o direito concorrencial no âmbito internacional, assim como a possibilidade de aplicação dessas disposições aos cartéis de exportação, não obstante não existir hoje regras específicas de concorrência no âmbito da OMC para então poder se concluir pelo estabelecimento de regras específicas que tratem desse assunto. 6.2 O Princípio do Tratamento Nacional (PTN) Conforme já explicado no Capítulo 1, O sistema GATT/OMC repousa sobre dois princípios fundamentais de não discriminação: a cláusula NMF e o PTN. Este último, em particular, poderia ser significativo para as isenções dos cartéis de exportação. Vejam-se os termos do Artigo III (4) do GATT 1994, que determina que aos produtos do território de qualquer Membro, importados para o território de qualquer outro Membro, será dado um tratamento não menos favorável do que o acordado a produtos similares de origem nacional em relação a todas as leis, regulamentos e requisitos que afetem sua venda interna, a sua oferta (para venda), compra, transporte, distribuição ou uso.627 TREBILCOCK e HOWSE dão a entender que o PTN seria uma metanorma628 que teria o efeito de coordenar os efeitos divergentes das legislações 627 WTO. GATT 1994, artigo III (4). Disponível em: <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/ legal_e.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010. Dentro da estrutura da OMC, há dispositivos similares relacionados à propriedade intelectual (Artigo 3 TRIPS) e aos comércio de serviços (Artigo XVII GATS). 628 “Segundo a doutrina mais clássica representada por Hart, um sistema jurídico completo repousa sobre dois tipos de regra. No direito existe, em primeiro lugar, as regras primárias. Essas regras ditam as condutas entre os indivíduos, são regras de obrigação entre os sujeitos de direito. Existe em 218 nacionais de concorrência629, pois diante do livre comércio haveria até mesmo um incentivo para se reformular as leis de concorrência em âmbito nacional para atingir fins protecionistas, o que, inevitavelmente, poderia produzir resultados benéficos internamente, mas prejuízos às economias de outros países. Os mesmos autores explicam que o PTN foi criado para exigir a estruturação das legislações de forma a não estabelecer uma discriminação (geral ou de fato) entre os produtos nacionais e os similares estrangeiros630. Assim, ao serem aplicadas as isenções aos cartéis de exportação em um país que condena a prática de cartel internamente, estaria sendo feita também uma diferenciação de tratamento de acordo com a origem dos produtos. Portanto, se analisarmos a aplicação do PTN às importações que não gozam de uma isenção, essas seriam, pelo menos em tese, tratadas de forma menos favorável do que as exportações que gozam de isenção. Contudo, vale observar que a aplicação do artigo III (4) do GATT 1994 é duvidosa para fins de aplicação aos efeitos dos cartéis de exportação, uma vez que se questiona, em primeiro lugar, se os cartéis de exportação poderiam estar inseridos no escopo desse dispositivo631. Como todos os dispositivos antidiscriminação, esta análise depende dos pontos de referência que serão comparados. Especificamente com relação à importação de bens com base no GATT 1994, a condição fundamental para a aplicação do PTN é que os bens tenham cruzado a fronteira e entrado no mercado a ser protegido por tal princípio. Logo, o PTN somente teria efeito nos casos em que os bens domésticos e estrangeiros competem no mercado doméstico632. segundo lugar, as regras secundárias. Essas normas possuem uma função tripla: elas permitem a criação, a modificação e adjudicação das regras primárias, que compreende a organização da sanção em caso de desrespeito.” FONTMICHEL, A. Court de. L’arbritre, le juge e les pratiques illicites Du commerce internacional. Paris: Editions Pantéon-Assas, 2004, p. 102. Veja-se ainda: “[...] As normas jurídicas podem ser completas enquanto tais antes de ser publicadas e mesmo que não as publiquem. Em ausência de regras específicas em contrário, as normas jurídicas são validamente criadas que as pessoas afetadas pelas mesmas tenham que averiguar por sua conta que normas foram ditadas e quem são os afetados por elas.” HART, Herbert L. A. El concepto de derecho. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968, p. 28. 629 TREBILCOCK; HOWSE, 2005, p. 597. 630 TREBILCOCK; HOWSE, 2005, p. 598. 631 BECKER, 2007, p. 123. 632 “Domestic competition laws are jurisdictional as to effects upon the domestic territory, i.e., the principle of territory jurisdiction. As such, they act to address both foreign and domestic practices, but only as these practices affect competition upon the domestic market. Since national competition laws are not drawn to treat the external (other country markets) effects of domestic practices, territories 219 Na prática, vale lembrar que o PTN insere-se no contexto do comércio internacional (especificamente ligado à defesa comercial), ou seja, esse princípio é aplicável com base em uma preocupação da legislação comercial com o acesso dos produtores ao mercado. Sendo assim, o PTN não foi preparado para tratar da competitividade no mercado à luz da lei antitruste e em benefício dos consumidores. Nesse sentido, é importante pontuar que na tradição do Direito Internacional Público clássico, os consumidores não são o cerne das preocupações da política de comércio internacional633. 6.3 O Acordo sobre Salvaguardas O Acordo sobre salvaguardas foi firmado no âmbito da OMC considerando o objetivo geral dos Membros de melhorar e fortalecer o sistema de comércio internacional, reconhecendo a necessidade de se esclarecer e de se reforçar as disciplinas do GATT 1994 (especificamente do Artigo XIX634 - Medidas de emergência com relação à importação de produtos particulares) que restabelecem o controle multilateral sobre as salvaguardas. Os termos do acordo reconhecem a importância do ajustamento estrutural e “a necessidade de estimular ao invés de limitar a concorrência nos mercados internacionais”. O artigo XIX do GATT permite a aplicação de medidas de salvaguarda quando determinadas importações ferem ou ameaçam a competitividade de produtores domésticos de bens e/ou serviços. Em resumo, a aplicação dessas medidas visa ajudar os Estados na proteção de seus mercados diante do aumento das importações imprevistas, que podem stating explicit “exclusions” from treating the external effects of domestic practices (export cartels) are really no different from territories that do not state such an explicit exclusion.” HOLMES, Peter; MATHIS, James; TCA Anant; EVENETT, Simon J. EU-INDIA Study Report On Competition Policy. Final Draft June 12 2003. Disponível em: <http://www.alexandria.unisg.ch/EXPORT/DL/22330.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2010, p. 16. 633 Nesse sentido, veja-se: TREBILCOCK; HOWSE, 2005, p. 599-601. Cf. MACERA, Andrea Pereira. A interação entre antitruste e antidumping: problema ou solução? SEAE/MF Documento de Trabalho n. 36, dez. 2006. Disponível em: <www.seae.fazenda.br>. Acesso em: 15 maio 2008. 634 Veja-se, como exemplo da aplicação do artigo XIX, o caso: Argentina — Footwear (EC) and Korea — Dairy, onde o Painel de Apelação estebeleceu que “any safeguard measure imposed after the entry into force of the WTO Agreement must comply with the provisions of both the Agreement on Safeguards and Article XIX of the GATT 1994”. WTO. Appellate Body Report on Argentina — Footwear (EC), WT/DS121/AB/R, 12 Jan. 2000, parágrafo 84. 220 causar sérios danos à indústria doméstica. Assim, as medidas de salvaguarda, quando aplicadas corretamente, possibilitam a obtenção de um alívio temporário sem ferir os compromissos assumidos na OMC. Entretanto, nem sempre é possível a adoção e aplicação dessas medidas. O Artigo 11 do Acordo sobre Salvaguardas trata da proibição e eliminação de certas medidas, nos seguintes termos: 1. (a) Nenhum Membro adotará nem procurará adorar medidas de emergência, tais como definidas no Artigo XIX do GATT 1994, com relação a produtos particulares, a menos que tais medidas estejam em conformidade com as disposições do referido Artigo e sejam aplicadas em consonância com as disposições do presente Acordo. (b) Ademais, nenhum Membro procurará adotar, nem adotará, nem manterá restrições voluntárias às exportações, acordos de organização de mercado ou quaisquer outras medidas similares no que diz respeito tanto às exportações quanto às importações3. Estas compreendem medidas adotadas por um Membro individualmente ou mediante acordos, arranjos e entendimentos firmados por dois ou mais Membros. Todas as medidas dessa natureza, vigentes na data de entrada em vigor do Acordo Constitutivo da Organização Mundial de Comercio, devem ser adaptadas aos termos deste Acordo ou gradualmente eliminadas de acordo com o parágrafo segundo. (c) O presente Acordo não se aplica a medida que um Membro procure adotar, adote ou mantenha de conformidade com outras disposições do GATT 1994, além das do Artigo XIX e dos Acordos Comerciais Multilaterais incluídos no Anexo l A, à parte o presente Acordo, ou de conformidade com protocolos e acordos ou convênios concluídos no âmbito do GATT 1994. [...] 3. Os Membros não estimularão nem apoiarão a adoção ou a manutenção, por empresas públicas ou privadas, de medidas nãogovernamentais equivalentes às medidas a que se refere o parágrafo primeiro. Portanto, quando buscam aplicar salvaguardas, os Membros da OMC são obrigados a seguir condições e procedimentos do Acordo. Sendo assim, a aplicação de medidas de salvaguarda deve respeitar os limites legais. O artigo 11 (1) (3) é bastante abrangente quando determina que os “Membros não estimularão nem apoiarão a adoção ou a manutenção, por empresas públicas ou privadas, de medidas não-governamentais”, tais como as medidas relacionadas à exportação. No sentido de explicar melhor os termos, de acordo com a nota de 3 Uma quota de importação aplicada como medida de salvaguarda em conformidade com as disposições relevantes do GATT 1994 e do presente Acordo poderá, por acordo mútuo, ser administrada pelo Membro exportador. 221 rodapé n˚. 4 do Acordo: São exemplos de medidas similares a moderação das exportações, os sistemas de vigilância dos preços de exportação ou dos preços de importação, a vigilância das exportações ou das importações, os cartéis de importação compulsórios e os regimes discricionários de licenças de exportação ou de importação, sempre que ofereçam proteção. Veja-se então que essa proibição aparentemente poderia servir, em tese, para disciplinar os limites do apoio governamental às condutas anticoncorrenciais, incluindo, no caso, os cartéis635. A idéia é a de que a proibição que consta - referente às Restrições Voluntárias às Exportações (RVEs) - poderia disciplinar alguns comportamentos do cartel. O histórico deste dispositivo relaciona-se às crescentes dificuldades na implementação de restrições às importações. Assim, muitos países (importadores), confrontados com os riscos potenciais (ou reais) das importações para suas balanças comerciais, negociaram RVEs com os países exportadores que visavam seus mercados. Essas práticas afetam principalmente os países menos desenvolvidos (LDCs - Least Developed Countries), vulneráveis à pressão das economias maiores e que, portanto, firmam RVEs para evitar reflexos mais prejudiciais em seus mercados636. Vale observar que o Acordo de Salvaguardas proíbe que os Membros firmem acordos de RVE com os importadores, mas, para as restrições acordadas no âmbito privado, prevê somente que os Membros não encorajarão ou apoiarão tais acordos. As RVEs informais também são desencorajadas nos termos do Artigo 11.3 do Acordo de Salvaguardas. BECKER entende que a redação desse dispositivo do Acordo de Salvaguardas poderia indicar um meio de abordagem do problema (i.e., dos cartéis) sem entrar na questão da distinção entre “público” ou “privado”, que seria um 635 Veja-se nesse sentido: HUDEC, Robert E. Private anticompetitive behavior in world markets: a WTO perspective. The antitrust bulletin, v.48, n.4, New York: Winter 2003, p. 1057-1058. 636 Esses acordos podem incluir compromissos de preços ou quantidades por parte dos importadores e são consideradas violações ao Artigo XI (1) GATT. Cf. HUDEC, 2003, p. 1057-1058. O artigo XI (1) estabelece que: “Nenhuma parte contratante instituirá ou manterá, para a importação de produto originário do território de outra parte contratante, ou para a exportação ou venda para exportação de um produto destinado ao território de outra parte contratante, proibições ou restrições a não ser direitos alfandegários, impostos ou outras taxas, quer a sua aplicação seja feita por meio de contingentes, de licenças de importação ou exportação, quer por outro qualquer processo.” 222 entrave da sujeição das condutas anticompetitivas às normas do GATT637. Contudo, o mesmo autor observa que sendo este um dispositivo isolado para uma situação definida, não seria adequado ampliá-lo no intuito de “inventar” um dispositivo de direito concorrencial, visto que isso não apenas ignoraria a estrutura jurídica do dispositivo, mas também contornaria a relutância de se negociar e concluir um acordo de direito da concorrência638. Como nas RVEs os exportadores coordenam entre si os limites das vendas de exportação para um país específico, de fato pode-se argumentar que a proibição das RVEs poderiam ser aplicadas aos cartéis de exportação. Contudo, isso sugeriria um precedente para uma proibição mais ampla à conduta coordenada em todos os países onde as empresas podem criar uma coordenação com a facilitação governamental, com aquelas nos países exportadores, para limitar o fornecimento e manter os preços em níveis mais elevados do que o nível competitivo639. BECKER argumenta que o uso das RVEs levaria o tema da concorrência a entrar na OMC pela “porta dos fundos”, mas SOKOL entende que na verdade, a política concorrencial já chegou à OMC pela porta dos fundos640. Veja-se que, utilizar essas regras para tratar dos cartéis de exportação, apesar de ser uma solução “possível”, não seria a melhor solução, por essa razão sugere-se nesse estudo que uma eventual regulação dos cartéis de exportação deveria ser feita com regras específicas no âmbito da OMC. 6.4 As Reclamações de Não Violação (RNV) Como não há um dispositivo específico nas regras do GATT/OMC, BECKER também aventa a possibilidade de se contestar os efeitos de uma isenção aos cartéis de exportação mediante uma Reclamação de Não Violação (RNV)641. Esse recurso está previsto no Artigo XXIII(1) (b) do GATT642. 637 BECKER, 2007, p. 124. BECKER, 2007, p. 124. 639 SOKOL, 2008, p. 11. 640 SOKOL, 2008, p. 11. 641 HUDEC, 2003, p. 1059. 642 Art. XXIII (1): “If any contracting party should consider that a ny b enefit accruing to it directly or 638 223 O artigo que estabelece os contornos fundamentais da RNV caracteriza-se por não ter sido redigido em termos precisos, fato que acabou delegando aos painéis uma margem de interpretação considerável para a definição do seu conteúdo. Ao mesmo tempo, a RNV não é tão utilizada na prática. Embora o art. XXIII do GATT coloque em um mesmo nível as reclamações de violação e de não violação, no caso Japan – Film a decisão pontuou o seguinte dado que reflete a utilização prática da RNV: Embora o remédio de não violação seja uma importante ferramenta aceita para a solução de controvérsias no GATT/OMC e esteja “nos livros” por quase 50 anos, nós notamos que só houve oito casos em que os painéis ou grupos de trabalho consideraram o mérito de reclamações baseadas no Artigo XXIII:1(b). Isso sugere que as partes-contratantes do GATT e os Membros da OMC têm abordado esse remédio com cautela e, de fato, o tratado como um instrumento de exceção para solução de controvérsias.643 (tradução livre). Veja-se que caso Kodak-Fuji o Painel acabou endossando que há, de fato, utilização limitada de RNVs. SOKOL explica que, como nesses casos é necessária uma investigação dos fatos de forma específica e detalhada, a RNV acaba sendo utilizada com pouca freqüência para a resolução de conflitos644. De forma simples, a responsabilidade por não violação estabelece que, se um Membro, por meio de uma medida não proibida, frustrar vantagens de outro, deverá então oferecer-lhe uma compensação. Caso isso não ocorra, caberá ao Membro lesado recorrer à suspensão de concessões (i.e., regras secundárias de responsabilidade por atos ilícitos). A possibilidade de contestar medidas nacionais na OMC que, em regra, seriam absolutamente legais, mas que causam distorções, está inserida na idéia da reciprocidade. Sendo assim, caso os benefícios que uma parte espera de uma indirectly under th is Ag reement is being nullified or impaired or that the attainment of any objective of the Agreement is being impeded as the result of (a) the failure of another contra cting party to carry out its o bligations under this Agreement, or (b) the application by another contracting party of any measure, whether or not it conflicts with the provisions of this Agreement, or (c) the existence of any other situation, the contracting party may, with a view to the satisfa ctory adjustment of the matter, make written representations or proposals to the other contracting party or parties which it considers to be concerned. Any contracting party thus approached shall give sympathetic consideration to the representations or proposals made to it” 643 WTO. Panel Report Japan – Measures Affecting Consumer Photographic Film and Paper. WT/DS44/R, 31/03/1998, p. 435-436. 644 Cf. SOKOL, 2008, p. 10 224 negociação comercial (por exemplo, sobre barreiras tarifárias e não tarifárias) sejam prejudicados por medidas nacionais, essa negociação passa a ter um desequilíbrio. Apesar dessas medidas, em si, não violarem qualquer compromisso do GATT/OMC, a RNV possibilita recuperar a reciprocidade caso estas tenham o objetivo de prejudicar qualquer concessão feita antecipadamente645. Passando-se a aplicar essa regra aos cartéis de exportação, pelo menos em tese, o primeiro problema que se enfrenta quando se considera uma RNV como recurso contra uma isenção é se a isenção poderia ser considerada uma “medida” governamental. Em primeiro lugar, se nesse caso não existir nenhuma legislação antitruste, nenhuma medida governamental poderia ser identificada, impossibilitando a RNV. BECKER pondera que a não persecução aos cartéis de exportação aparenta ser mais um caso de “inação” do que propriamente uma medida, mas na hipótese de uma isenção implícita, se os cartéis internacionais são processados, enquanto os cartéis domésticos similares (i.e., mesmas características) não o são, essa persecução constituiria em uma ação positiva que poderia ser usada para fundamentar uma RNV646. Veja-se que HUDEC explica que para se ter êxito uma RNV precisa basearse em um evento imprevisível à época da negociação, porque, de outra forma, seria responsabilidade do reclamante incorporar as nulidades e prejuízos esperados em seus próprios compromissos647. Nesse caso, é novamente relevante a diferença entre os fundamentos da legislação concorrencial, de um lado, e a legislação de comércio internacional, do outro. SOKOL pondera ainda que uma RNV precisa estabelecer a existência de uma expectativa razoável de que o comportamento não ocorreria. Outra questão é a de que devido à inação dos países, concessões podem ser frustradas e essa inação acabaria por criar uma barreira comercial648. Se um país que concede uma isenção a um cartel de exportação promete abrir seus mercados para os produtos do país “alvo”, isto não ensejaria 645 Cf. BECKER, 2007, p. 125. BECKER, 2007, p. 125. 647 HUDEC, 2003, p. 1059. 648 SOKOL, D. Daniel. What Do We Really Know About Export Cartels and What is the Appropriate Solution? Journal of Competition Law and Economics, v. 4, n.º 4, December 2008, p. 10. 646 225 automaticamente uma medida com base na RNV. Ou seja, conforme explica BECKER, com enfoque nos cartéis de exportação, na prática, o acesso ao mercado do país “alvo” pelo país exportador não é impedido de forma alguma649. De acordo com precedentes da OMC, não é necessário que o reclamante indique que a medida envolvida é inconsistente ou que viola uma regra do GATT 1994 com base no Artigo XXIII (1) (b)650. Ao tratar dos fundamentos de uma RNV, o Órgão de Apelação no caso European Communities – Measures affecting Asbestos and Abestos-containing Products também advertiu que esse tipo de reclamação "deve ser abordada com cautela e deve continuar a ser uma solução excepcional”651. A finalidade da RVN, firmada no Artigo XXIII (1) (b) é incomum conforme descrito também pelo relatório do painel referente ao caso European Economic Community - Payments and Subsidies Paid to Processors and Producers of Oilseeds and Related Animal-Feed Proteins ("EEC – Oilseeds"), nos seguintes termos: A idéia subjacente é a de que a melhoria das oportunidades competitivas que podem ser legitimamente esperadas de uma concessão tarifária pode ser frustrada, não só por meio de medidas proibidas pelo Acordo Geral, mas também por meio de medidas compatíveis com esse Acordo. A fim de encorajar as partes contratantes a fazer concessões tarifárias, deve ser dado o direito de ressarcimento quando uma concessão recíproca é prejudicada pela outra Parte Contratante, como resultado da aplicação de qualquer medida, independente desta medida conflitar ou não com o Acordo Geral. 652 (tradução livre). Diante dos casos indicados acima, vale observar que, apesar da possibilidade, pelo menos em tese, de se fazer uso das RVNs para tratar de questões relacionadas ao direito antitruste, na prática, isto não seria simples. 649 BECKER, 2007, p. 126. “Thus, it is not necessary, under Article XXIII:1(b), to establish that the measure involved is inconsistent with, or violates, a provision of the GATT 1994. Cases under Article XXIII:1(b) are, for this reason, sometimes described as "non-violation" cases; we note, though, that the word "nonviolation" does not appear in this provision.” WTO. Appellate Body Report. European Communities – Measures affecting Asbestos and Abestos-containing Products. WT/DS135/AB/R, 12 mar. 2001, p. 67. 651 Nesse sentido, a decisão cita outra decisão, referente ao painel no caso Kodak-Fuji, já mencionado nesse item. WTO. Appellate Body Report. European Communities – Measures affecting Asbestos and Abestos-containing Products. WT/DS135/AB/R, 12 mar. 2001, p. 67-68. 652 WTO. European Economic Community - Payments and Subsidies Paid to Processors And Producers Of Oilseeds And Related Animal-Feed Proteins. L/6627 - 37S/86. Report of the Panel adopted on 25 January 1990, p. 34. Disponível em: <http://www.worldtradelaw.net/reports/gattpanels/ oilseedsI.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2010. 650 226 Um exemplo importante trazido, que ajuda a sustentar esse argumento, foi a decisão do painel no caso Kodak-Fuji, que não compreendeu plenamente, por exemplo, que as restrições públicas e privadas eram complementares. Assim, tendo em vista que a OMC pode não conseguir compreender alguns fundamentos de fato (ou factuais) dos casos baseados em RVNs, essas reclamações podem ser malsucedidas quando aplicadas, ou quando envolverem, questões de política concorrencial653. 6.5 A possibilidade de convergência ou de harmonização das leis de concorrência A limitação das leis de direito da concorrência, como resultado de seu alcance nacional, é evidente no caso dos cartéis de exportação, onde se for ausente o efeito no país exportador, a autoridade da concorrência (do país exportador) pode sequer ter jurisdição para controlar esses cartéis. Conforme visto nos capítulos anteriores, os países desenvolvidos têm geralmente ignorado ou, muitas vezes, até incentivado as atividades dos cartéis de exportação, cujos efeitos afetam principalmente outros países. De outro lado, os países em desenvolvimento têm dificuldades em lidar com estes cartéis (seja por falta de estrutura, ou de conhecimento) e tem faltado cooperação dos países desenvolvidos na investigação e revelação de tais práticas654. Nesse sentido, avalia-se a possibilidade de convergência das leis de concorrência e se isso poderia de fato tratar da questão dos cartéis de exportação. O termo “convergência” pode ter diversos sentidos, desde alinhamentos de procedimentos até mesmo “coordenação” de requerimentos mínimos para a total harmonização das leis655. 653 No mesmo sentido veja-se: SOKOL, 2008, p. 11. RAGHAVAN, Chakravarthi. The “New Issues” and Developing Countries: Environment, Competition and Labour Standards. Kuala Lumpur, Third World Network, 1996, p.19. 655 Nesse sentido, veja-se KROL, 2007, p. 117. 654 227 Veja-se que existem estudos que indicam que, para um único agente, uma convergência substantiva em termos procedimentais e uma harmonização substantiva aparentemente seriam preferíveis no sentido de minimizar custos, além de facilitar o entendimento em múltiplas jurisdições656. Entretanto, trata-se de opinão da qual não se partilha no presente estudo, uma vez que a harmonização pressupõe que os países tenham, pelo menos, uma lei ou uma política antitruste, o que não ocorre na prática especialmente quando se analisa as economias mais frágeis. No ponto de vista que leva em consideração uma possível harmonização, sugere-se que haveria uma simplificação maior se o país em questão tiver apenas uma autoridade antitruste (o que não ocorre, por exemplo, no Brasil). De fato, a maior parte dos Estados, prefere manter ao máximo a soberania em relação às matérias de direito de concorrência, uma vez que a política de concorrência é sensível, com objetivos de política pública específicos657. Vale observar também que os objetivos das políticas de cada país varia consideravelmente e alguns países são muito relutantes em ceder qualquer tipo de soberania nesta área. Assim, KROL explica que não é simples apontar uma autoridade internacional que possa impor procedimentos convergentes ou vinculantes e regras materiais de direito da concorrência658. Portanto, em nível internacional, especialmente considerando o grau de convergência atual a viabilidade de se obter regras harmonizadas ainda é questionável659, para não se afirmar categoricamente que seria algo impossível. A tabela abaixo reflete a situação que havia no início desta década com relação ao grau de consenso identificado entre as legislações e políticas de concorrência: 656 “The OECD approach has so far emphasized soft convergence on competition laws and their enforcement, and steered clear of any implication that uniformity among nations and a world competition policy agency is the goal (Doern 1996, 316).” AYDIN, Umut. Promoting Competition: European Union and the Global Competition Order. 2009. Disponível em <http://www.unc.edu/euce/eusa2009/papers/aydin_10H.pdf>. Acesso em: 24 Jul. 2010. 657 Nesse mesmo sentido, veja-se KROL, 2007, p. 117-118. 658 KROL, 2007, p. 118. 659 HOEKMAN, Bernard; MAVROIDIS, P. C. Economic Development, Competition Policy and the World Trade Organization. Journal of world Trade, v. 3, n˚.1, 2003, p. 6. 228 TABELA 07 - Grau de consenso relativo aos padrões normativos em nível nacional e multilateral660 PRÁTICAS RESTRITIVAS Cartéis hard core (i.e., de fixação de preços, fraude à licitações, divisão de mercado etc.) Grau de consenso para eliminar / regular por meio de leis antitruste nacionais Grau de consenso relativo aos padrões normativos aplicáveis Grau de consenso para eliminar / regular por meio de acordos multilaterais Alto Alto Alto Alto para países importadores, baixo para países exportadores Alto para países importadores, baixo para países exportadores Baixo para moderado Alto Baixo Baixo Abuso de posição dominante Alto Baixo Baixo Atos de concentração (fusões, incorporações etc.) Alto Baixo Baixo Cartéis de exportação Restrições verticais Vale mais uma vez ressaltar, que há consideráveis interesses divergentes relacionados à política de concorrência entre países industrializados e países em desenvolvimento, sendo que estes últimos possuem ainda muita dificuldade para investigar condutas internacionais. No contexto amplo de desenvolvimento proposto na presente tese, entendese que não se pode fechar os olhos para a criação de oportunidades aos PEDs e outras economias frágeis. Como esses países carecem de instituições sólidas ou de instrumentos de investigação para punir práticas internacionais de direito da concorrência, entende-se adequado avaliar alternativas em âmbito multilateral para suprir essa falha. HOEKMAN entende que, numa perspectiva pura de política da concorrência, uma convergência internacional material das leis é uma ilusão política que poderia ser perigosa do ponto de vista da política nacional de concorrência, a não ser que isto faça parte de um processo geral de “profunda integração”, em termos de adoção de um regime regulatório comum661. 660 KENNEDY, Kevin C. Competition Law and the World Trade Organization: limits of multilateralism. London: Sweet & Maxwell, 2001. 661 HOEKMAN, Bernard. Free Trade and Deep Integration. Antidumping and Antitrust in Regional Trade Agreements. World Bank Policy Research Working Paper 1950, July: 1998. Disponível em: 229 Apesar de propostas de regras vinculantes de concorrência, no contexto da política de comércio internacional, as regras existentes ainda são fragmentárias e despidas de arranjo sistêmico. As evidências empíricas apontam que os exemplos existentes de convergências de leis de concorrência estão integradas naquilo que geralmente é definido como “zonas de integração regional”662. De fato, a convergência de políticas de concorrência é um aspecto relevante de uma integração profunda. E a inclusão de uma política de concorrência num acordo regional de comércio pode ser motivada por uma série de razões. Veja-se, por exemplo, o potencial bem-estar, ou distribuição de ganhos que podem ser obtidos por meio da coordenação dos regimes de concorrência, uma vez que uma estrutura institucional de um acordo regional permita colher estes benefícios663. Nesse sentido, é cabível citar alguns exemplos. A CE é um exemplo sui generis de acordo regional com elevado nível de integração, onde à política de concorrência foi atribuído tratamento prioritário para criação de certos objetivos de política pública, como por exemplo, a criação de “oportunidades competitivas equivalentes”664. Vale observar que a CE possui uma política de concorrência supranacional que regula práticas de comércio em seus Estados-membros, mas não impôs formalmente a obrigação de harmonização das leis nacionais de concorrência (apesar de isso ocorrer na prática)665. Outros exemplos interessantes podem ser mencionados, tal como a prática dos membros do European Free Trade Association (EFTA), que aceitaram regras comuns de concorrência, mas não aceitaram expressamente a jurisdição supranacional da Comissão Européia, estabelecendo um organismo de 666 fiscalização . <http://wwwwds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/IW3P/IB/1998/07/01/000009265_ 3980928162543/Rendered/PDF/multi0page.pdf>. Acesso em: 24 Jul. 2010. 662 Vale, nesse sentido, a leitura de: HILPOLD, P. Regional Integration According to Article XXIV GATT – Between Law and Politics. Max Planck: UNYB, 2003, p. 224. 663 KROL, 2007, p. 119. 664 HOEKMAN, 1998, p. 15. 665 HOEKMAN, 1998, p. 15. 666 “The European Free Trade Association (EFTA) is an intergovernmental organisation set up for the promotion of free trade and economic integration to the benefit of its four Member States: Iceland, Liechtenstein, Norway and Switzerland.” THE EUROPEAN FREE TRADE ASSOCIATION (EFTA). About EFTA. Disponível em <http://www.efta.int/about-efta/the-european-free-tradeassociation.aspx>. Acesso em: 24 Jul. 2010. 230 Outro exemplo interessante de integração de regra de concorrência encontra-se no acordo regional ANZCERTA (Australia-New Zeland Closer Economic Relations Trade Agreement). Neste acordo, no artigo 12, § 1º, alínea “a”, ficou estabelecido que os membros deveriam examinar o escopo de suas ações para harmonizar as regras relativas às práticas restritivas ao comércio. E, de fato, a Nova Zelândia e a Austrália harmonizaram suas leis de concorrência.667 FINKELSTEIN explica que nesse acordo foram incorporados princípios de direito concorrencial e de contencioso econômico internacional668. Apesar dos exemplos acima, existem diversos processos de integração regional que encontram pouca convergência em suas políticas de concorrência (vide o exemplo do MERCOSUL669). Isto demonstra que mesmo em nível regional, a convergência muitas vezes é impedida pelas diferenças das leis nacionais e dos objetivos políticos. GAL explica que a legislação concorrencial está passando por uma “nova onda de regionalismo”: as partes dos contratos regionais se deparam com diferentes graus de coerência e diversidade, desde acordo que ainda se concentram principalmente na executoriedade unilateral até modelos mais centralizados670. Contudo, nem sempre uma convergência de políticas de concorrência implicaria uma troca potencial de ganhos de bem-estar671. A experiência regional indica que a convergência de políticas de concorrência nem sempre é fácil. Os diversos exemplos de regras de concorrência nos acordos regionais não podem ser simplesmente transportados ao nível multilateral por sua própria natureza, conforme se verá no item 6.5.1, ainda mais porque, ainda hoje, não tem sido fácil analisar a compatibilidade dos acordos regionais com as regras multilaterais. Os interesses governamentais direcionados às políticas de concorrência são diversos e complexos, e é por isso que um consenso mútuo seria necessário para que uma convergência não se torne uma ilusão672. A pergunta que certamente fica é se existiria um incentivo para estender-se as regras estabelecidas regionalmente 667 HOEKMAN, 1998, p. 23. FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72. . 669 Vide item 5.5.1. 670 GAL, 2009, p. 24. 671 Em sentido contrário veja-se: KROL, 2007, p. 121. 672 KROL, 2007, p. 121-122. 668 231 para se estabelecer regras multilaterais de concorrência. Conforme será visto nos itens subseqüentes, os objetivos perseguidos pelas políticas internacionais e as propostas referentes ao acordo da OMC, em particular, podem responder a esta questão. 6.5.1 Os Acordos Regionais de Comércio (ACR) no contexto da OMC Mesmo diante de certas experiências positivas com regras de concorrência em Acordos Regionais de Comércio (ACR673) o presente estudo não sugere a introdução da obrigação ou de adoção em um Acordo geral de regras de defesa da concorrência com base nas regras contidas em um ACR (tal como ocorre, por exemplo, na CE), nem se sugere que os cartéis de exportação sejam tratados apenas pelos ACRs. Diante do grande crescimento dos ACRs, existem diversas discussões sobre a compatibilidade desses acordos com o sistema multilateral do comércio, o que também indica que, tratar de uma expansão dos acordos regionais para regular os cartéis de exportação, pode não ser uma boa alternativa. O GATT 1947 tratou do regionalismo em seu art. XXIV e como uma exceção ao art. I (Cláusula NMF) ficou estabelecido que fosse feita a análise de compatibilidade de cada novo acordo regional dentro dos ditames do sistema multilateral. Inicialmente, esse exame deveria ser realizado por Grupos de Trabalho ad hoc. Após a criação da OMC, para melhorar essa questão foi criado, em 1996, o Comitê de Acordos Regionais de Comércio (CARC), que estabeleceu como critério de análise a avaliação sistêmica do regionalismo para o multilateralismo674. Contudo, mesmo com a criação do CARC, segue com dificuldade a conclusão sobre a compatibilidade de um ACR com a OMC. 673 Apesar da terminologia utilizadanos documentos em espanhol da OMC ser “Acordos Comerciais Regionais”, optou-se neste trabalho por adotar a terminologia “Acordos Regionais de Comércio”, utilizada pelo governo brasileiro. Disponível em: <http://www.mre.gov.br>. Acesso: 31 jul. 2009. 674 Antes da criação do CARC, todos os processos de exame dos ARCs estavam comprometidos. Esta crise foi gerada porque os cerca de 20 grupos de trabalho criados para examiná-los não tinham um critério único e nem respostas para as questões mais sensíveis, conhecidas como questões sistêmicas, que não estão definidas na legislação do GATT, e que nem mesmo os grupos de trabalho conseguiam definir. Cf. THORSTENSEN, Vera. OMC - Organização Mundial do Comércio - As regras e a Rodada do Milênio. São Paulo: Aduaneiras, 2001, p. 238. 232 No que diz respeito à América Latina em geral, desde 1980, e em especial durante a década de 1990, ocorreram mudanças fundamentais evidenciadas pelo alto grau de integração regional em busca de crescimento econômico. Ao mesmo tempo, cresceu a participação destes países no sistema multilateral de comércio. Dentro da OMC, estes países também têm defendido a negociação de uma nova geração de acordos, que tratem de novas matérias, como políticas concorrenciais, investimento, entre outros675. O art. XXIV do GATT traz o conceito de zona de livre comércio, afirmando que “[...] se entenderá por zona de livre comércio um grupo de dois ou mais territórios aduaneiros entre os quais se eliminam os direitos de aduana e as demais regulamentações comerciais restritivas”.676 No art. XXIV também foram autorizadas as uniões aduaneiras677. A união aduaneira obriga as partes a adotarem uma política de comércio exterior coordenada, inclusive com a harmonização das regras e instrumentos de comércio678. Trata-se de um grau abaixo da integração que existe no mercado comum679. Assim, art. XXIV do Acordo Geral é uma exceção à Cláusula da NMF, pois afasta o princípio da não-discriminação680 possibilitando a criação de acordos regionais: zonas de livre comércio, uniões aduaneiras, ou similares. O GATT 1947 entende que as zonas de livre comércio e as uniões aduaneiras estabelecidas por meio de acordos regionais representam um complemento ao livre comércio mundial. Diante dessa permissão, o sistema multilateral enfrenta crescentes ARCs que 675 SALAZAR-XIRINACHS, José M.; ROBERT, Maryse. Toward free trade in the Americas. Washington: Brookings Institution, 2002, p. 305. 676 Em estudo sobre este dispositivo, assim entendeu Maristela Basso: “Desta maneira, se estabelece, por meio de tratados internacionais, a livre circulação das mercadorias sem barreiras ou restrições quantitativas ou aduaneiras [...] porém, para que os produtos possam circular independentemente de pagamento de tarifas de importação, deverá ficar comprovado - através de certificados de origem - que a maior parte da mão-de-obra e das matérias primas provém efetivamente de um dos países de livre comércio.” BASSO, Maristela. Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 29. 677 “[...] se entenderá por território aduaneiro todo território que aplique uma tarifa distinta ou outras regulamentações comercias distintas a uma parte substancial de seu comércio com os demais territórios” GATT, artigo XXIV. 678 THORSTENSEN, 2001, p. 237. 679 SALAZAR – XIRINACHS; ROBERT, 2002, p. 45. 680 O princípio da não-discriminação é, sem dúvida, peça essencial dentro da sistemática da OMC, e estabelece que um Estado deve dar o mesmo tratamento a todos os demais Estados. Desta forma, quando um Estado decide outorgar uma concessão a outro Estado, deverá estendê-la aos demais Estados participantes do sistema multilateral do comércio. 233 concedem vantagens apenas aos seus Membros, em detrimento ao disposto pela Cláusula da NMF681. Contudo, a OMC não tem conseguido examinar ou concluir os trabalhos sobre a compatibilidade dos ACRs com as regras do GATT. Isto inclusive foi colocado em destaque no relatório do painel do caso Turquia - Restrições à importação de produtos têxteis e de confecções682. A questão é complexa porque existem muitos acordos em vigor ou sendo negociados. De acordo com os dados públicos, até 31 de julho de 2010, foram notificados na OMC 474 ARCs683. Desse total 351 acordos foram notificados com base no art. XXIV do GATT, 31 com base na Cláusula de Habilitação684 e 92 com base no art. V do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS)685. Atualmente há 285 acordos em vigor (do total notificado), conforme indica a tabela a seguir: TABELA 08 - Acordos Regionais de Comércio em vigor – 2010686 Accessions Novos ARCs 681 Total GATT Art. XXIV (FTA) 2 156 158 GATT Art. XXIV (CU) 6 9 15 Enabling Clause 1 29 30 GATS Art. V 3 79 82 Total 12 273 285 DOMINGUES, Juliana O. Regionalismo e Multilateralismo: as propostas de reforma e a posição brasileira. Revista de Direito Privado Vol. 27, São Paulo: RT, 2006, p.180. 682 WTO. Turquía - Restricciones a la importación de productos textiles y de vestido - AB - Informe del Órgano de Apelación. Nº99-4546. WT/DS34/AB/R. 22.10.1999. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso: 13 jul. 2010, parágrafo 9.107. 683 WTO. Regional trade agreements Disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/ region_e/region_e.htm>. Acesso em: 20 ago. 2010. 684 O MERCOSUL foi notificado à OMC com base nesta Cláusula. 685 Na área de serviços, o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços, negociado na Rodada Uruguai, também prevê regras para a integração econômica (art. V), por meio de exceção à cláusula da NMF, de não discriminação entre nações. 686 WTO. Summary tables. Disponível em: <http://rtais.wto.org/UI/publicsummarytable.aspx>. Acesso em: 20 ago. 2010. 234 Uma das discussões importantes desenvolvidas pelo CARC diz respeito às implicações das questões sistêmicas dos ARCs que foram surgindo como resultado dos exames sobre acordos preferenciais, incluindo pontos que não estão definidos ou esclarecidos no art. XXIV do GATT e que possuem difícil conceituação687. Entre as principais questões sistêmicas, destacam-se: o entendimento do art. XXIV, a avaliação da incidência geral de direitos aduaneiros e as outras regras existentes após a formação de uma união aduaneira, a aplicação de medidas de salvaguarda ou medidas antidumping entre os membros de um ARC, o significado do termo “parte substancial de todo o comércio”, do art. XXIV, a sobreposição de sistemas de solução de controvérsias, as dificuldades de avaliação de ARCs na áreas de serviços (art. V do GATS), dentre outras que podem ser observadas nos documentos da OMC688. Existem outras questões pouco claras, pois, por exemplo, não está formulado precisamente nas normas da OMC o momento que os membros devem notificar um ARC. Cabe salientar que diversos ARCs em vigor não foram notificados à OMC, em especial os acordos preferenciais entre países em desenvolvimento. Isto é considerado como um obstáculo para a avaliação integral e precisa do fenômeno dos acordos regionais em relação ao sistema multilateral de comércio689. Sobre o exame dos ARCs com fulcro no art. XXIV do GATT, além da notificação690, o CARC sustenta ser muito importante o acesso a uma informação estatística completa. Existem grandes dificuldades quando as estatísticas disponíveis somente trazem um período anterior à entrada em vigor do ACR especialmente quando há períodos significativos de transição. 687 DOMINGUES, Juliana O. Regionalismo e Multilateralismo: as propostas de reforma e a posição brasileira. Revista de Direito Privado Vol. 27, São Paulo: RT, 2006, p.182. 688 Neste sentido veja-se: WTO. WT/REG/W/37. Resumen de las cuestiones “sistémicas” relacionadas com los acuerdos comerciales regionales (ACR). 00-0789. 02.03.2000. Disponível em: <http://www.wto.org> Acesso em: 21 jul. 2010. E também: WTO. TN/RL/W/8/Rev.1. Compendio de cuestiones relacionadas com los Acuerdos Comerciales Regionales. 02-4246. 01.08.2002. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso: 13 jul. 2010. 689 DOMINGUES, 2006, p.183. 690 O Brasil indicou a utilidade de um esclarecimento quanto à finalidade da notificação. Reiteradamente o Brasil vem se opondo ao requisito de que acordos negociados ao amparo da Cláusula de Habilitação sejam sujeitos a essa determinação. A opinião brasileira é de que não parece ser coerente a ênfase dada pelas diversas delegações à dinamização do comércio Sul-Sul, ao mesmo tempo em que se buscam estabelecer procedimentos mais onerosos para o estabelecimento de acordos entre os países em desenvolvimento, ao amparo da Cláusula de Habilitação. Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores (MRE). Carta de Genebra - Informativo sobre a OMC e a Rodada de Doha. Brasília, Ano 02, n. 1, janeiro de 2003. Disponível em: <http://www.mre.gov.br>. Acesso em: 31 jul. 2005. 235 Algumas vezes as estatísticas são difíceis de obter e muitas delas chegam a ser enganosas, principalmente levando em conta a dinâmica da integração econômica. Contudo, é indispensável contar com estatísticas econômicas detalhadas para facilitar o prosseguimento e evolução da estrutura do comércio e o ajuste econômico das partes nos ARCs. Atualmente a situação jurídica dos ARCs na OMC segue sendo pouco clara e de qualquer forma continuam salvaguardados os direitos conferidos aos membros sobre o procedimento de solução de controvérsias, mencionados expressamente no parágrafo 12 do Entendimento de Solução de Controvérsias, que determina: Poderá recorrer-se às disposições dos artigos XXII e XXIII do GATT de 1994, desenvolvidas e aplicadas em virtude do Entendimento sobre Solução de Controvérsias, com respeito a qualquer questão derivada da aplicação das disposições do art. XXIV referentes a uniões aduaneiras, zonas de livre comércio ou acordos provisórios tendentes ao estabelecimento de uma união aduaneira ou de uma zona de livre comércio. A concessão de exceções para os acordos sobre comércio preferencial, entre países em desenvolvimento e países desenvolvidos, tem enfrentado grandes dificuldades. Sobre essa questão alega-se que nas negociações se levará em consideração os aspectos relativos ao desenvolvimento, levando em conta a importante função que desempenham estes acordos e em conformidade com a Declaração Ministerial de Doha. Desse modo, qualquer nova norma sobre esses acordos deveria proteger os interesses dos países em desenvolvimento e dos países menos desenvolvidos691. Nos últimos 08 anos ocorreram outros debates entre os Membros sobre o dever de notificar os ACRs. Nesse contexto o Brasil também ressaltou que uma clara distinção entre os acordos notificados com amparo no art. XXIV do GATT e no art. V do GATS e aqueles notificados com fulcro na Cláusula de Habilitação, poderia contribuir muito para os avanços nos trabalhos sobre os procedimentos de notificação692. 691 TN/RL/W/8/V/Rev.1, p. 13. WTO. WT/REG/M/33. Nota sobre la reunión celebrada el 12 y 13 de noviembre de 2002. Nº026639. 02/12/2002. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso em: 13 jul. 2004. Veja-se também as seguintes Cartas de Genebra: Ano 04, n. 2, abril de 2005; Ano 04, n. 3, junho de 2005; Ano 04, n. 4, julho de 2005; Ano 04, n. 5, julho de 2005. Disponíveis em: <http://www.mre.gov.br>. Acesso em: 29 ago. 2005. 692 236 De uma forma geral, os documentos da OMC demonstram preocupação em relação ao acúmulo de acordos regionais em exame e às implicações da falta de consenso no entendimento das questões sistêmicas. Apesar das inúmeras questões sistêmicas levantadas em diversos documentos, as negociações neste setor acabaram se limitando ao esforço de transparência dos ARCs, alcançando poucos resultados significativos693. Os argumentos que apontam para o aproveitamento dos ACRs para a convergência das regras de concorrência está muito mais relacionados à crença de que os acordos regionais poderiam facilitar a harmonização de regras. Apesar de ser aparentemente positivo viver em um ambiente internacional onde haja harmonização das regras, vale observar que não se entende necessária a harmonização vinculante de leis nacionais de defesa da concorrência. Entende-se que isto não seria politicamente viável ou exigível principalmente aos países que sequer possuem afinidade ou tradição com o tema. Cumpre esclarecer a compreensão de que qualquer obrigação de se investir na criação de um regime jurídico antitruste nacional, em um período específico, poderia ser inoportuna para alguns países, resultando na rejeição da proposta. Assim, os ACRs não teriam como suprir a necessidade de regulação dos cartéis de exportação, até mesmo porque muitos também não chegam a tratar de regras comuns de concorrência (tal como ocorre na CE que tem um nível de integração muito mais avançado). Independente da obrigação de harmonização inexistir segue como tendência predominante, desde Cingapura a adoção, cada vez maior, de leis nacionais de defesa da concorrência. Certamente a adoção de leis nacionais poderia colaborar para se atingir o objetivo de regras comuns de concorrência para alguns temas específicos, mas entende-se que isto deve ocorrer de forma adequada, ou seja, sem exercer pressão para uma harmonização “geral”, cuja implementação poderia ser muito custosa aos PEDs e aos países que possuem economias mais frágeis. 693 Conforme já se ponderou anteriormente em estudo sobre os ACRs, entende-se que, se elementos como a transparência e o processo de notificação dão margem a tantas discussões, provavelmente as deliberações sobre a precisão das disciplinas de exame de compatibilidade, a exemplo da definição do conceito de “substancialmente todo o comércio”, devem gerar entraves muito maiores entre as delegações. Veja-se: DOMINGUES, 2006, p. 197-198. 237 6.5.2 Considerações sobre o MERCOSUL A harmonização das medidas de defesa comercial (ou de comércio exterior) e das políticas de concorrência está fixada na agenda do MERCOSUL desde o seu início, conforme se observa da leitura do art. 1.º do Tratado de Assunção, que determina que o Mercado Comum implica: A coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-Partes – de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços, alfandegária, de transportes e comunicações e outras que se acordem –, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os EstadosPartes; e O compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração. Durante a 11.ª Reunião do Conselho do MERCOSUL, realizado em Fortaleza, em 1996, foi assinado o Protocolo de Defesa da Concorrência do MERCOSUL, que passou a ser conhecido como “Protocolo de Fortaleza”694. Contudo, muito pouco evoluiu até hoje no que diz respeito à aplicação de regras de concorrência no âmbito do MERCOSUL. É interessante observar que o Protocolo de Fortaleza também incorporou a teoria dos efeitos, conforme se observa abaixo: Art. 2º. As regras deste Protocolo aplicam-se aos atos praticados por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado e a outras entidades que tenham por objeto produzir ou que produzam efeitos sobre a concorrência no âmbito do MERCOSUL e que afetam o comércio entre os Estados Partes. Vale destacar que, passados 14 anos da assinatura do Protocolo de Fortaleza, tais assimetrias ainda persistem entre os Estados-partes e não se observa uma intensificação sistemática da cooperação, apesar de estar claramente previsto no artigo 30 o compromisso de adoção de mecanismos de cooperação para: a) sistematizar e intensificar a cooperação entre os órgãos e as autoridades nacionais responsáveis, com vistas ao aperfeiçoamento dos sistemas nacionais e dos instrumentos comuns de defesa da concorrência, mediante um programa de intercâmbio de informações e experiências, de treinamento de técnicos e de compilação de jurisprudência relativa à defesa da concorrência, bem como da 694 DOMINGUES, Juliana Oliveira. Os atos de concentração e fusão de empresas no contexto dos 10 anos do Mercosul. In: PIMENTEL, Luiz Otávio (Org.). Direito da integração e relações internacionais – ALCA, Mercosul, UE. Florianópolis: Boiteux, 2001, p. 369. 238 investigação conjunta das práticas lesivas à concorrência no Mercosul; b) identificar e mobilizar, inclusive por meio de acordos de cooperação técnica em matéria de defesa da concorrência celebrados com outros Estados ou agrupamentos regionais, os recursos necessários à implementação do programa de cooperação a que se refere a alínea anterior. Conforme destacado há cerca de 10 anos por OLIVEIRA, existem fortes assimetrias no MERCOSUL com relação ao nível de desenvolvimento institucional da defesa da concorrência dos seus Estados-Partes que acabam dificultando as propostas que foram inicialmente elaboradas695. Diante dessas limitações, OLIVEIRA havia proposto uma agenda de revisão em que um dos pontos de destaque residia na necessidade de diminuir a freqüência de ações antidumping dentro do MERCOSUL, uma vez que o autor entendia que não seria coerente que parceiros comerciais entrassem em disputas dessa natureza. Ao mesmo tempo, o mesmo autor já indicava em seu estudo uma interface positiva entre a defesa da concorrência e a defesa comercial, pois defendia que os critérios de defesa da concorrência poderiam auxiliar a abordagem do tema, já que incorporam uma preocupação maior com os efeitos para o consumidor, diferentemente da defesa comercial têm ênfase na proteção da indústria doméstica696. Veja-se que, nos últimos anos, ocorreram diversas reuniões entre os representantes dos Estados-Partes do MERCOSUL para discutir o uso – ou a restrição ao uso – de medidas compensatórias, principalmente relacionadas à aplicação das medidas antidumping. Cumpre destacar que a finalidade principal dessas discussões era tentar viabilizar a substituição de algumas medidas. Apesar de existir uma sensível disparidade no grau de maturidade dos Estados-Partes com relação aos instrumentos de defesa da concorrência e de defesa comercial, ainda assim se passou a discutir uma segunda etapa a ser desenvolvida após a eliminação das medidas compensatórias, para a criação de um único órgão supranacional da concorrência697. Tal órgão supranacional teria a 695 OLIVEIRA, Gesner. Concorrência no Brasil e no mundo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 47. OLIVEIRA, 2001, p. 49. 697 Este é um conceito que “se envolve com um matiz de interessante e peculiar especificidade, ao dotar um ordenamento jurídico comunitário de incomum mecanismo, ou melhor, de um artifício, o artifício da supranacionalidade, sobre o qual se articulam as relações entre as instituições e o direito”. 696 239 competência de cuidar de todos os aspectos relacionados à concorrência e à competitividade no bloco, incluindo as questões de defesa comercial. Diante desse cenário a SEAE/MF elaborou um estudo, em 2002, que objetivou analisar se essa discussão fazia sentido e se seria possível colocá-la em prática698. A SEAE/MF procurou elucidar se não teriam que ser criadas outras medidas para compensar alguns pontos em que a defesa da concorrência não abarca a defesa comercial. Assim, foi redigido um texto refletindo algumas possíveis respostas para estas perguntas, sem a pretensão de ser algo conclusivo. Nos dizeres de SCHMIDT, SOUSA e LIMA: De forma geral, pode haver divergências e antagonismos de objetivos entre as políticas de defesa comercial e as de defesa da concorrência. Este fato faz com que a implementação de políticas para promover o comércio e a concorrência, simultaneamente, seja complexa ou até mesmo inviável. Alguns países têm buscado solucionar este problema através de aplicações de conceitos de defesa da concorrência na análise de questões relacionadas ao comércio, mas não é uma regra e tampouco há consenso.699 A SEAE/MF preparou referido estudo motivada, principalmente, pelos debates que já existiam no MERCOSUL relacionados à supressão de medidas compensatórias por medidas de defesa da concorrência e à idéia de criação de um órgão supranacional. Aproveitou-se esse estudo para realizar uma análise focada na pertinência da adoção de conceitos antitruste no âmbito da análise de defesa comercial no Brasil. A primeira conclusão do estudo indicou que, dentre os instrumentos de defesa comercial, o antidumping é o que apresenta divergência conceitual mais expressiva entre as políticas trade and competition. De acordo com SCHMIDT, SOUSA e LIMA: OLIVEIRA, Odete Maria de. União Européia: processos de integração e mutação. Curitiba: Juruá, 1999, p. 70. 698 Veja-se: SCHMIDT, Cristiane Alkmin Junqueira; SOUSA, Isabel Ramos de; LIMA, Marcos André M. de. Comércio e Competição. SEAE/MF Documento de Trabalho n. 14, abr.2002. 699 SCHMIDT; SOUSA; LIMA, 2002, p. 3. O próprio documento preocupa-se em esclarecer que não se buscava, com o estudo, uma resposta para as questões analisadas, mas sim promover a abertura de um espaço para discutir o tema: “[...] o objetivo da SEAE neste momento, mais do que alcançar resultados imediatos sobre os casos de dumping, o que poderia provocar uma disputa interministerial desnecessária, é criar uma discussão intelectual pertinente sobre o assunto, para que se possa ter uma conclusão sobre um tema, de tanta relevância, de forma tranqüila e robusta no longo prazo, em que o interesse nacional prevaleça, sob rationales sólidas”. SCHMIDT; SOUSA; LIMA, 2002, p. 13. 240 Da forma como é definido, o dumping acaba englobando casos que não seriam analisados pelo órgão de defesa da concorrência. Já com relação aos outros dois instrumentos, subsídios e salvaguardas, as divergências inexistem ou são contornáveis. Assim, se fosse o caso, como se discute no MERCOSUL, por exemplo, de se eliminar as medidas compensatórias, principalmente o antidumping, sobrepondoas por medidas de defesa da concorrência, haveria de se ter a consciência que não seriam analisados os casos de discriminação de preço, exceto os de preço predatório. Conseqüentemente, se não houver consenso de que só é relevante analisar os casos de preços predatórios, talvez, toda essa discussão seja desnecessária.700 Os autores do documento de trabalho da SEAE/MF indicaram também não concordar com as medidas compensatórias adotadas no Brasil pelo DECOM, apesar de aceitá-las, pois entendem que não há ainda um consenso no Brasil sobre a introdução de princípios antitruste em assuntos de defesa comercial, e muito menos um debate profundo sobre o tema. De todo modo, os autores entendem que uma medida antidumping poderia, em tese, incentivar empresas a formar um conluio, o que tanto pela Lei n. 8.884/94 quanto pela lei antitruste de outros países é considerado como prática ilegal.701 Embora nos últimos anos esse debate não tenha evoluído no âmbito do MERCOSUL, em 2007, diante da ameaça da Argentina pedir abertura de Painel na OMC contra o Brasil (caso da resina PET702), o Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim declarou a intenção de retomar as negociações dos mecanismos para harmonizar a defesa de concorrência e a defesa comercial no bloco, apesar de reconhecer que não seria algo fácil e exigiria concessões de todas as partes.703 Em que pese a suposta boa vontade em se colocar o tema na pauta de discussões, é inegável que muito pouco se avançou, e ainda hoje existem diferenças para que o tema possa evoluir dentro do bloco no sentido proposto pelo Protocolo de Fortaleza, o que é um grande desafio para o Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas do MERCOSUL (CDCS) e para a Comissão de Comércio do 700 SCHMIDT, Cristiane Alkmin Junqueira; SOUSA, Isabel Ramos de; LIMA, Marcos André M. de. Comércio e competição. SEAE/MF Documento de Trabalho n. 14. abr. 2002, p. 14. 701 SCHMIDT; SOUSA; LIMA, 2002, p. 14. 702 ICTSD. Brasil, Argentina e as resinas PET: novo painel na OMC? Pontes. v. 2. n˚. 2. 9 de abril de 2007. Disponível em: <http://ictsd.org/i/news/pontesquinzenal/5342/> Acesso em: 22 jul. 2010. 703 Amorim prega defesa da concorrência unificada no Mercosul. Valor Econômico, de 12 de junho de 2007. Nessa mesma reportagem, o Secretário de Comércio da Argentina Alfredo Chiaradia, também reconheceu a importância dessa negociação, e o Diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) do MDIC à época, Dr. Fernando Furlan, hoje Conselheiro do CADE, foi incisivo: “O Brasil está tecnicamente pronto, depende dos outros sócios”. 241 MERCOSUL (CCM)704. Indubitavelmente, após uma harmonização mínima entre os EstadosPartes705, as chances de êxito poderão aumentar para a adoção de um regulamento comum a partir do qual os órgãos nacionais trabalhariam e aplicariam medidas somente em relação a terceiros países. Aliás, nesse ponto o Protocolo de Fortaleza deveria conter uma delimitação mais clara das esferas de competência nacional e regional, de forma a evitar potenciais conflitos de competência706. Somente após a superação dos pontos críticos de divergência, aí sim poderia então ser pensada a etapa de criação de um órgão supranacional para administrar e aplicar um regulamento comum, o que por enquanto não parece ser plausível. Diante da pouca evolução do tema no MERCOSUL não há sequer debates sobre regras comuns ou uma política de controle direcionada aos cartéis de exportação, o que denota que, pelo menos nesse acordo regional, não há previsão de regulação desse tipo de prática em curto prazo. 704 No mesmo sentido, veja-se: “No momento da assinatura do protocolo, o Brasil era o único país do Mercosul que possuía os instrumentos mínimos indispensáveis à implementação dos compromissos ali firmados. [...] Entretanto, os procedimentos descritos no protocolo pressupõem a existência de agências antitruste em todos os Estados Membros, ainda que, de fato, aqueles procedimentos sejam conflitantes com a natureza das funções cumpridas por tais agências. Esta dicotomia entre o escopo normativo do protocolo e o estado das instituições nacionais implicou uma série de inconsistências que estão retardando a execução das metas definidas em Fortaleza. [...] Além disso, o protocolo impede que as autoridades antitruste cumpram uma função estratégica no processo de integração, que é a de cooperar com as contrapartes dos países vizinhos na promoção da eficiência produtiva e do interesse do consumidor em âmbito regional. De fato, são usuais conflitos transfronteiriços em que, de um lado, as autoridades antitruste da região encontram-se unidas no combate a uma determinada prática; e, de outro, órgãos de governo, empresas ou associações privadas dos respectivos países estão aliados na defesa dos privilégios advindos daquela prática. O protocolo não contempla este tipo de conflito”. In: ARAÚJO JUNIOR, José Tavares de. Política de concorrência no Mercosul: uma agenda mínima. Department of Trade, Tourism and Competitiveness (DTTC). 2001. Disponível em: <http://www.dttc.oas.org/trade/STAFF_ARTICLE/tav01_conc_agenda.asp>. Acesso em: 10 jun. 2008. 705 Conforme bem elucida Mattos, em processos de integração é fundamental que haja entendimento comum acerca do trade-off entre políticas de concorrência e políticas industriais, evitando que ações ou omissões constituam exercício velado de protecionismo. Veja-se: MATTOS, César. Harmonização das políticas de defesa da concorrência e comercial: questões teóricas e implicações para o Mercosul, Alca e OMC. Estudos Econômicos (IPE/USP), São Paulo, v. 29, n. 2, p. 267-291, 1999. 706 DOMINGUES, Juliana Oliveira. O papel da livre concorrência no Mercosul. In: VIEIRA, Osmar (Org.). Desafios e paradigmas do direito, comércio e relações internacionais. 1 ed. Londrina: Unifil, 2001, v. 1, p. 548. No mesmo sentido, veja-se: OLIVEIRA, 2001, p. 47. 242 6.5.3 A cooperação em Acordos Bilaterais Há mais de 10 anos ao elaborar estudo referente às leis de concorrência em âmbito regional, OLIVEIRA elaborou uma tabela com uma lista de acordos bilaterais e regionais que existiam à época, conforme se reproduz abaixo: TABELA 09 - Lista de Acordos Bilaterais e Regionais relativos à Política de Concorrência – 1998707 Nome do Acordo Protocolo do Mercosul sobre defesa da concorrência Acordo entre os governos dos EUA e do Canadá sobre aplicação de regras de restrições de práticas empresariais Revisão das recomendações do Conselho de Países Membros da OCDE sobre práticas empresariais restritivas que afetam o comércio internacional Acordo de Associação entre a União Européia e outros países do Sul do Mediterrâneo Acordo de Cooperação e Coordenação assinado pelo Comitê Australiano de Práticas Comerciais e pelo Comitê Neo Zelandês de Práticas Comerciais Acordo Europeu de Política Econômica Tratado de Distribuição de Energia Acordo de Livre Comércio Norte Americano Acordo assinado pelos EUA e pelo Comitê das Comunidades Européias sobre aplicação das leis de concorrência Acordo do Conselho de Cartagena, decisão 285: Regras sobre como prevenir ou corrigir distorções na concorrência restringindo a concorrência no comércio de livre mercado Memorando de Entendimentos sobre Harmonização das Leis de Comércio assinado pela Austrália e pela Nova Zelândia Acordos assinados entre a União Européia e países da Europa Central e do Leste Europeu Ações para construir impedimentos estruturais assinado entre os governos dos EUA e Japão. Acordo assinado pelos governos da 707 Ano (a) Tipo Cooperação Regras comuns (b) Autoridade comum 1996 Regional Sim Sim Não 1995 Bilateral Sim Não Não 1995 Regional Sim Não Não 1995, 1996 (c) Bilateral Não Sim Não 1994 Bilateral Sim Não Não 1994 Regional Sim Sim Não 1994 Regional Sim Não Não 1992 Regional Sim Não Não 1991 Bilateral Sim Não Não 1991 Regional Sim Sim Sim 1990 Bilateral Sim Não Não 1991, 1996 (d) Bilateral Sim Sim Não 1990 Bilateral Sim Não Não 1984 Bilateral Sim Não Não OLIVEIRA, Gesner. Aspects of Competition Policy in Mercosur. Disponível em: <http://virtualbib.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1898/TD92.pdf?sequence=1>. Acesso em: 25 Ago. 2010. 243 República da Alemanha e da França para Cooperação relativa a práticas restritivas de mercado Acordo assinado pelos governos dos EUA e da Austrália sobre questões 1982 Bilateral Sim relativas a Antitruste Guia para Empresas Multinacionais 1976 Regional Sim da OCDE Acordo entre a República Federal da Alemanha e o governo dos EUA para 1976 Bilateral Sim Cooperação Mútua relativa à práticas restritivas empresariais Tratado de criação da Comunidade 1957 Regional Sim Européia (a) o ano que o acordo foi assinado. (b) O número de regras comuns difere consideravelmente de acordo para acordo. (c) Israel, Marrocos, Autoridade Palestina (1996) e Tunísia. (d) Seis acordos como o de Acordo de Junho 1996 foram assinados. Não Não Não Não Não Não Sim Sim Existem debates que apontam que regras bilaterais também seria um caminho positivo para a convergência de regras concorrências. Contudo, apesar de existirem bons instrumentos que podem ser utilizados na tentativa de dar efetividade às leis de defesa da concorrência internacionalmente em alguns acordos regionais e aqueles resultantes de acordos bilaterais, partilha-se da mesma opinião de FINKELSTEIN de que a cooperação bilateral também é falha708. WAISBERG explica que os países em desenvolvimento devem procurar soluções internacionais que evitem a aplicação extraterritorial do direito antitruste, sem qualquer controle da comunidade internacional, para que isso não seja usado contra eles próprios709. O autor ainda explica que: Os acordos de cooperação bilateral são importantes, mas não resolvem o conflito se esse persistir. Assim, o eventual acordo internacional de concorrência, para os países em desenvolvimento, deve conter alguma previsão de mecanismo de solução de controvérsias para minorar a possibilidade de uma aplicação extraterritorial, que, muitas vezes, tem cunho político ou protecionista710. De maneira bastante elucidativa, que espelha o mesmo entendimento deste estudo FINKELSTEIN explica de forma objetiva as razões da cooperação bilateral ser falha: 708 FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 57. 709 WAISBERG, Ivo. Direito e política da concorrência para os países em desenvolvimento. São Paulo: Aduaneiras, 2006, p. 139. 710 WAISBERG, Ivo. Direito e política da concorrência para os países em desenvolvimento. São Paulo: Aduaneiras, 2006, p. 139. 244 Primeiramente, tendo em vista que o simples fato de haver cooperação, por mais extensa que essa possa ser, não implica necessariamente que as decisões dos órgãos de defesa da concorrência em diferentes jurisdições sejam coerentes entre si. Ademais, como já visto acima, mesmo que haja cooperação, as leis de defesa da concorrência em diferentes jurisdições diferem em inúmeros aspectos. Com isso, práticas consideradas lícitas sob uma determinada jurisdição, podem ser consideradas ilícitas sob outras. Logo, não obstante uma intensa troca de informações entre duas autoridades de defesa da concorrência na análise de um determinado caso, nada impede que ela seja considerada legal por uma das autoridades e ilegal por outra. E, por fim, sendo bilaterais, esses acordos de cooperação somente são vinculativos com relação às suas partes signatárias, o que limita consideravelmente o seu campo de aplicabilidade e potencialidade de gerar benefícios.711 De fato, esse é o dilema enfrentado com relação aos cartéis de exportação, pois ao mesmo tempo em que pode ser considerado um ilícito no país que sofre com a conduta ele é autorizado muitas vezes pelo país cujos agentes praticam a conduta. Assim, a cooperação também não seria adequada para tratar desse problema, e, tal como pondera FINKELSTEIN, esses acordos ficam limitados às suas partes signatárias, não sendo possível utilizá-los de uma forma geral que abarque amplamente a questão em âmbito internacional. 6.6 A promoção do desenvolvimento por meio de hard law e soft law Na última década, tem se observado uma corrida para adoção de leis de concorrência em várias regiões, independente do grau de desenvolvimento e das circunstâncias políticas. De acordo com GESNER OLIVEIRA em 1998 (à época em que era presidente do CADE), são necessários estágios de desenvolvimento para a implementação de políticas antitruste, o que requer tempo, mudança cultural, investimento e instituições adequadas712. Segundo OLIVEIRA, para o desenvolvimento institucional de novas leis e/ou políticas de concorrência, é necessária assistência técnica das agências ou 711 FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 57. 712 OLIVEIRA, Gesner. Competition Policy in Brazil and Mercosur: aspects of the recent experience. Paper distributed at the brazilian antitrust roundtable/ symposium Miami – USA. In. Boletim latinoamericano de concorrência n° 3-B, março, 1998, p. 3. 245 governos que possuem um sistema sólido que possam cooperar no nível internacional. Isto também seria importante dentro das organizações internacionais (incluindo a OMC) para se estabelecer os princípios centrais de direito da concorrência, em nível multilateral713. WALLER defende que há tanto soft law como hard law internacionais que poderiam embasar a caracterização de um chamado “state of international competition rules” que emergiriam dos trabalhos das organizações internacionais, tais como: OCDE, APEC, NAFTA, MERCOSUL entre outros 714 . A questão já colocada pelo autor há mais de 10 anos ponderou quais regras específicas poderiam ser aceitas como obrigatórias ou se essas regras poderiam ser consideradas como leis vinculantes decorrentes de costumes internacionais. Nesse sentido, seu estudo sugere que, se uma nação escolheu ter leis de concorrência, ela deveria aplicá-las de uma maneira não discriminatória715. Da mesma forma que BECKER e SOKOL, WALLER analisa a utilização de princípios que são familiares ao sistema da OMC: o tratamento nacional e cláusula NMF. Teoricamente, esses princípios poderiam cobrir muitos problemas clássicos de concorrência, em que pese em determinadas situações alguns casos não se encaixarem bem às regras existentes716. Veja-se que, apesar de ser possível o uso das regras atualmente em vigor no âmbito da OMC, conforme se viu neste estudo, entende-se que para resolver toda a variedade de problemas relacionados ao direito antitruste, regras específicas deveriam ser criadas num sistema multilateral. Isto aplica-se inclusive ao caso dos cartéis de exportação. WALLER defende que, com base nos princípios da OMC, haveria uma violação ao princípio de não discriminação ao se dar isenção antitruste aos cartéis de exportação, se no país dos membros do cartel existe uma política anti-cartel. Também seria uma violação isentar os exportadores da aplicação das leis antitruste 713 OLIVEIRA, Gesner. Competition Policy in Brazil and Mercosur: aspects of the recent experience. Paper distributed at the brazilian antitrust roundtable/ symposium Miami – USA. In. Boletim latinoamericano de concorrência n° 3-B, março, 1998, p. 4-5. 714 WALLER, Spencer Weber. An International common law of Antitrust. New England Law Review, Vol. 34, 1999, p. 168. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=984490>. Acesso em: 12 jan. 2010. 715 WALLER, 1999, p. 168. 716 WALLER, 1999, p. 169. 246 e, ao mesmo tempo, impor responsabilidade às empresas estrangeiras que prejudicam a competição por meio das exportações717. Quando o aplicador das regras antitruste recusa-se a cooperar com outro país e, ao mesmo tempo, utiliza-se dos instrumentos de cooperação para investigar questões de comércio exterior, poderia violar ao PTN e à cláusula NMF718. FINKELSTEIN também explica que existem limitações na mera cooperação internacional que poderiam ser resolvidas por meio da ação da OMC, ou seja, a organização pode tratar de eventuais divergências entre decisões de diferentes Estados719. Veja-se ainda que WALLER entende que existem regras disponíveis e um sistema de solução de controvérsias bem desenvolvido capaz de responder às questões de antitruste na OMC720. Discorda-se dessa opinião apenas no sentido de que as regras disponíveis seriam suficientes, mas certamente o sistema de solução de controvérsias seria um grande atrativo para responder às questões de antitruste. Conforme pondera FINKELSTEIN, a possibilidade de se discutir essas questões da OMC é importante em razão de dois fatores principalmente: (i) o fato de a OMC ter um corpo próprio de profissionais treinados para julgar as lides do comércio internacional, de forma jurídica, sem ingerências políticas, com excelentes resultados e com uma retórica de submissão voluntária dos Estados aos seus julgamentos, somados a (ii) uma inequívoca vocação democrática, em que os interesses dos países em desenvolvimento são analisados e em muitos casos são determinantes na política a ser adotada pelo órgão721. A principal relutância dos Membros da OMC para utilizar esse tipo de análise no sistema de solução de controvérsias não seria, então, a ausência total de regras de concorrência, mas sim a falta de consenso entre os Membros sobre a aplicação dessas regras para esses fins722. 717 WALLER, 1999, p. 169. WALLER, 1999, p. 169. 719 FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 82. 720 WALLER, 1999, p. 171. 721 FINKELSTEIN, Cláudio. A. Dimensão e o Controle Internacional do Comércio Local. TORRES, Heleno Taveira. Comércio Internacional e Tributação São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 82. 722 WALLER, 1999, p. 169. 718 247 O que é importante observar é que as regras atuais que poderiam ser aplicáveis às questões de concorrência, podem não responder a todos os problemas relacionados ao direito antitruste. O “melhor cenário” seria a criação de regras específicas. Como WALLER defendia, há 10 anos, a possibilidade de criação de um código internacional de direito da concorrência “seria provavelmente o melhor que poderia ser esperado no futuro próximo e um resultado muito bom no mundo real.”723 Vale dizer que a OMC e outras organizações, acordos e tratados, possuem, de fato, regras internacionais que poderiam servir, ao menos parcialmente, para avaliar determinados casos e prevenir alguns abusos à concorrência. Entretanto, entende-se que a OMC seria o foro mais adequado para tratar dessas questões, principalmente relacionadas aos cartéis de exportação, uma vez que, além de já possuir algumas regras e princípios que poderiam ser aplicados aos problemas de direito da concorrência, também já possui maturidade e um sistema de solução de controvérsias efetivo. Ainda, em um contexto de desenvolvimento (tal como o adotado no presente estudo), a OMC poderia oferecer uma estrutura adequada para os PEDs, considerando o tratamento diferenciado que deve ser garantido aos países nessa situação, o que favorece o desenvolvimento. Uma possível solução seria resolver as divergências ou a falta de um regulamento que trate de isenções antitruste por meio de uma hard law. Em poucas palavras, pode-se dizer que quando existem efeitos vinculantes entre os resultados de um documento ou decisão entre Estados estar-se-ia diante de uma hard law. De acordo com ABBOTT e SNIDAL: Ao utilizar a hard-law para ordenar as suas relações, os atores internacionais reduzem os custos das operações, reforçam a credibilidade dos seus compromissos, expandem as suas estratégias políticas disponíveis, e resolvem problemas de contratação incompleta. Fazendo isso, no entanto, custos significativos são ocasionados: a lei restringe duramente o comportamento dos atores e até mesmo a sua soberania724. (tradução livre) 723 WALLER, 1999, p. 171. ABBOTT, Kenneth W.; SNIDAL, Duncan. Hard and Soft Law in International Governance. In: International Organization, v. 54, n˚. 3. Cambridge, Ma: IO Foundation and the MIT, Summer, 2000, p. 2. 724 248 Ainda com relação ao direito antitruste, entende-se então que uma hard law aplicável por meio das instituições existentes poderia significar a regulação internacional dos cartéis de exportação. A sugestão desse estudo é que isso ocorra por meio de regras específicas que poderiam ser estabelecidas na OMC. Vale apontar que SOKOL entende que o caso dos cartéis de exportação seria diferente das disputas comerciais tradicionais levadas à OMC725. SOKOL explica que, como existem poucos dados disponíveis a respeito dos cartéis de exportação, uma solução precisa pesar se a análise deve ser feita caso a caso ou de forma mais categórica, uma vez que, com base nesse tipo de conduta, acredita que, por si sós, os cartéis de exportação não desaparecerão726. WALLER possui uma posição mais firme no que diz respeito aos cartéis de exportação. Esse autor, ao fazer a análise to ETC nos EUA, destaca em suas conclusões que uma grande vantagem seria abolir ou controlar totalmente todos os cartéis de exportação, tanto dos EUA como os estrangeiros, por meio de acordos ou regulações internacionais727. Realmente, diante dos dados trazidos sobre as aplicações das isenções em diversas jurisdições, aparentemente uma proibição completa dos cartéis de exportação parece difícil de ser obtida, além de ser uma proposta pouco razoável. Conforme explica SOKOL, os cartéis de exportação são casos muito específicos e alguns cartéis de exportação podem ter justificativas complementares para sua conduta, ou seja, uma proibição geral das isenções concedidas pode não ser ideal em termos de bem-estar global728. Ainda, veja-se que considerar os cartéis de exportação como uma proibição per se, pode ser um meio excessivo para tratar da questão. Como não há entendimento de que os cartéis de exportação são sempre negativos, uma proibição geral pode vedar comportamentos que poderiam, pelo menos em tese, ser prócompetitivos729. Vale dizer que não é isso que a presente tese propõe. 725 SOKOL, 2008, p. 9 SOKOL, 2008, p. 9. 727 Veja-se: WALLER, Spencer. The failure of the export trading company program. North Carolina Journal of International Law and Commercial Regulation, v. 17, 1992, p. 276. 728 SOKOL, 2008, p. 9. 729 Veja-se: USA. Federal Trade Comission (FTC). Antitrust gudelines for collaborations among competitors, april 2000. Disponível em: <http://www.ftc.gov/os/2000/04/ftcdojguidelines.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2009. 726 249 A proposta deste estudo é de que deve haver o tratamento internacional dos cartéis de exportação - ou seja, não se defende necessariamente que esses cartéis sejam completamente abolidos - e que isso poderia ocorrer por meio de uma hardlaw, com a criação de regras multilaterais adicionais na OMC. Ao estudar eventual aplicação dos dispositivos existentes na OMC, BECKER apresenta a possibilidade da abordagem aos cartéis de exportação se dar com a adaptações (i.e., pelo tratamento nacional - Artigo III do GATT, princípio da nãodiscriminação)730. SOKOL, entende que poderia haver um enquadramento no contexto do tratamento nacional do Artigo III:4 do GATT731, sugerindo também que o ASMC poderia ser uma possibilidade para limitar o alcance dos cartéis de exportação, apesar de nenhum país ter tentado esse tipo de resolução na OMC732. BHATTACHARJEA indica apoiar a criação de normas na OMC que tratem das sobretaxas por meio da criação de uma “medida reparatória”, uma espécie de “antidumping reverso”, ou seja: se o preço de exportação exceder o valor normal, o país importador poderia retaliar a empresa exportadora733. Essa abordagem é bastante inovadora, contudo, tal como SOKOL734 partilha-se neste estudo do entendimento de que isto poderia deslocar mais responsabilidade aos países importadores, ao invés dos países exportadores que são a verdadeira raiz do problema dos cartéis de exportação. Ainda, entende-se que essa proposta não resolveria o problema do ponto de vista dos PEDs. 730 BECKER, 2007, p. 118-123. O autor explica que o Órgão de Apelação decidiu que os termos comerciais podem estar cobertos pelo termo “afetado” com base no Artigo III:4 do GATT 1994 que tem um “amplo escopo de aplicação”. SOKOL, 2008, p. 10. Veja-se nesse sentido: Nesse sentido, veja-se: WTO. Appellate Body Report, United States-Tax Treatment for `Foreign Sales Corporations`, WT/DS108/AB/RW, 14 jan. 2002, p. 209-210. (recourse to Article 21.5 of the DSU by European Communities). 732 SOKOL, 2008, p. 11. 733 O autor explica o seguinte: “For example, instead of requiring proof of a price-fixing conspiracy, the enforcement agency could be required to demonstrate that the price exceeds some “normal value”. As with AD, this could be assessed on the basis of best information available regarding the firms’ costs, or the prices they charge in their own or other markets. Other leaves that could be taken from the AD book include norms for defining a “like product” (to avoid penalising firms which sell different varieties in different countries); retroactive assessment; and provisional measures such as requiring bonds or advance deposits from respondent firms while the case is pending. With the qualifications expressed at the end of the preceding section, the penalty could include both a fine and an “anti-reversedumping” duty. Like an AD duty, this would be discriminatory and firm-specific, and possibly in excess of the country’s bound tariff rate. This would be justifiable on welfare grounds, unlike most AD duties, which are blatantly abused.” BHATTACHARJEA, Aditya. Export Cartels - A Developing Country Perspective. Working Paper No. 120. Centre for Development Economics, January, 2004, p, 35. 734 Cf. SOKOL, 2008, p. 11. 731 250 Apesar de se concordar que o PTN e outras regras poderiam ser aplicáveis, defende-se aqui que a alternativa mais adequada seria a criação de um novo conjunto de medidas/regras dentro da OMC, específica para a concorrência, particularmente em razão da realidade da maioria dos PEDs. Ou seja, há países que sofrem efeitos dos cartéis de exportação que não tem lei de concorrência, ou, ainda, na maioria dos países, as agências de concorrência não têm os conhecimentos necessários para realizar uma análise completa dos efeitos dessas condutas e nem possuem o alcance extraterritorial necessário para obtenção de provas ou execução de penas735. Certamente a solução “preferida” indicada na maior parte dos documentos e estudos consultados são as soft laws que, diferentemente da hard law não obrigam as partes. No que diz respeito ao antitruste, as organizações têm sido efetivas na produçãos desses documentos. Se o problema relacionado aos cartéis de exportação é obter informações suficientes para tomar as decisões apropriadas, as instituições antitruste de soft law poderiam oferecer parâmetros para a criação de regras. As organizações têm se esforçado significativamente para aperfeiçoar as chamadas “melhores práticas”736. Nos últimos 05 anos a ICN, por exemplo, destacou-se nos trabalhos sobre melhores práticas. Entretanto, ainda no que diz respeita às soft laws, não existem muitos trabalhos sobre cartéis de exportação, muito menos documentos sobre “melhores práticas”. Ainda, considerando os reflexos dos cartéis de exportação no comércio internacional, entende-se que apenas soft laws não tratariam da questão de forma adequada. Os estudos produzidos por LEVENSTEIN, SUSLOW e por BECKER sugerem que poderia haver maior cooperação internacional para monitorar e processar os cartéis de exportação737, mas ainda há pouco incentivo para as agências interagirem nas questões envolvidas. Essa suposta “falta de interesse” no tema na verdade está relacionada com o fato dos cartéis de exportação não 735 BHATTACARJEA, 2004, p. 32. Nesse sentido, veja-se: GABAN; DOMINGUES, 2009, p. 260. No mesmo sentido: SOKOL, 2008, p. 12. 737 LEVENSTEIN; SUSLOW, 2004, p. 815-816. No mesmo sentido veja-se: BECKER, 2007, p. 126. 736 251 afetarem os interesses de ambos os países envolvidos (i.e., o exportador e o importador) da mesma forma que ocorre em relação aos cartéis hard core. O país responsável pela exportação comprometer-se com um eventual monitoramento da conduta poderia resultar no dispêndio de recursos, sendo que o retorno de tal monitoramento não lhe acrescentaria nada. Na verdade, como bem explica SOKOL, isto poderia até mesmo reduzir as exportações do país e gerar uma reação política por parte dos entusiastas das isenções aos cartéis de exportação em vigor738. Vale dizer então que usar apenas a soft law para identificar e regular cartéis de exportação exigiria mudanças significativas nas diversas jurisdições que concedem aos cartéis de exportação isenções implícitas ou explícitas, isso sem considerar a vontade política necessária. O fato de os cartéis de exportação estarem fora das agendas pode ter relação com a dinâmica de poder das jurisdições que mais têm a perder com as limitações aos cartéis de exportação e que concedem isenções implícitas ou explícitas. De todo modo, entende-se no presente estudo que o assunto precisa ser tratado e que os debates para o estabelecimento de regras multilaterais poderiam ser retormados especialmente considerando a realidade dos PEDs. Concorda-se com as ponderações que se encontram em documento de trabalho do WGTCP de que os compromissos assumidos precisam contar com a cooperação739. Veja-se que isso poderia ajudar a atender às realidades dos PEDs e à promoção do desenvolvimento. 738 SOKOL, 2008, p. 12. “Com relação ao potencial valor-agregado de um acordo multilateral sobre política de concorrência, particularmente para países em desenvolvimento, preocupações foram externadas com relação à natureza limitada da cooperação que estava aparentemente prevista. Em particular, foi externada preocupação de como, na prática, tal mecanismo limitado de cooperação poderia ajudar a lidar com cartéis internacionais e com cartéis de exportação, no futuro próximo. [...]. Foi observado, a esse respeito, que as regras comerciais tinham mudado fundamentalmente para acomodar novas questões geradas pela globalização, como a inclusão da propriedade intelectual no acordo GATT/OMC. Talvez o mesmo tipo de reflexão inovadora fosse necessário no campo da política da concorrência, uma vez que está relacionada ao comércio internacional. Em resposta, foi sugerido que o acordo proposto tivesse três dimensões: uma dimensão relacionada à cooperação técnica; outra relativa a mecanismos procedimentais que permitissem a autoridades de defesa da concorrência em diferentes níveis de desenvolvimento compartilhar experiências próprias; e, por fim, outra relativa a um protocolo para facilitar uma cooperação em casos específicos.” (tradução livre). WTO. Report (2001) of the Working Group on the Interaction Between Trade and Competition Policy to the General Council. WT/WGTCP/5. 08 Oct. 2001, p. 24. 739 252 Certamente as soft laws – especialmente produzidas pelos trabalhos das organizações e fóruns internacionais - pode oferecer um ponto de apoio na criação de normas que tratem dos cartéis de exportação, mas entende-se que não seriam suficientes para tratar da questão740. 740 Por exemplo, que essas organizações que produzem soft law podem abordar as questões dos cartéis de exportação através da análise e implementação de normas de cartel gerais fazendo a distinção entre os cartéis que são hard core e os cartéis em que a restrição é meramente acessória. Cf. SOKOL, 2007, p. 13. 253 7 CONCLUSÃO Conforme explicado nos capítulos iniciais do presente estudo, os debates sobre a relação entre a concorrência e o comércio internacional já não são novos. Cada vez mais se observa que, apesar de serem temas com algumas características distintas, e objetivos diferenciados, a concorrência e o comércio internacional possuem grande relação e muitas vezes se comunicam (principalmente nas questões de defesa comercial). Ainda, conforme se procurou elucidar com alguns exemplos, ambas as lógicas de análise, embora distintas, possuem relevantes zonas de interconexão e, portanto, têm o potencial de contribuir uma com a outra. Também se mostrou importante, para melhor compreensão da tese proposta, analisar o contexto de criação das leis de concorrência e das políticas de defesa da concorrência nos países que não possuíam tradição ou familiaridade com a matéria. Nesse sentido, foi importante analisar os trabalhos que têm sido realizados pelas Organizações Internacionais e fóruns internacionais/multilaterais (i.e., OCDE, UNCTAD, ICN, OMC) que fazem levantamentos, pesquisas e procuram auxiliar muitos países na adoção das políticas de concorrência. As divergências entre os graus de efetividade das leis antitruste são ocasionadas principalmente pelas diferenças econômicas, culturais e de desenvolvimento entre os países. Observou-se nos estudos e pesquisas consultados que as economias em desenvolvimento e menos desenvolvidas geralmente são as que mais sofrem com condutas anticompetitivas. Os PEDs possuem particularidades que precisam ser levadas em consideração para a incorporação de regras e políticas de concorrência que possam combater eventuais efeitos negativos das condutas de terceiros países e promover o desenvolvimento. Assim, procurou-se indicar nesse estudo que a criação de regras multilaterais poderia ser um caminho para tratar de forma global da conduta dos cartéis de 254 exportação. Entende-se que a criação de uma política de concorrência no âmbito da OMC poderia suprir as necessidades dos PEDs e de todos os países com economias mais sensíveis para promover o desenvolvimento. A dimensão do desenvolvimento para a política de concorrência já foi reconhecida pela Declaração Ministerial de Cingapura de 1996, mas ao retomar o tema de inclusão de regras adicionais de concorrência no âmbito da OMC (que foi retirado de pauta) em futura discussão, é preciso dar especial atenção aos objetivos de desenvolvimento em uma perspectiva mais ampla, atentando à situação especial dos PEDS. Com a finalidade de fomentar o desenvolvimento, indicou-se, então, a possibilidade de concessão de preferências aos PEDs no contexto multilateral, viabilizando a criação de instituições que regulem a concorrência e o comércio, mas que ao mesmo tempo respeitem a realidade desses países, incluindo a criação de regras para o tratamento das condutas dos cartéis de exportação. A nova economia institucional de Douglass North e o desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen foram as duas teorias que embasaram, principalmente, o conceito de desenvolvimento, ora adotado, e a estratégia normativa para a regulação dos cartéis de exportação, uma vez que se entende que: i) as instituições desempenham papel relevante para o desenvolvimento; e ii) as liberdades formais e substanciais dos indivíduos são fundamentais para o desenvolvimento de suas potencialidades. Essas teorias aplicadas à proposta deste estudo indicam que o desenvolvimento deve ser entendido de forma mais ampla, excedendo a noção básica de crescimento econômico. Veja-se que o crescimento econômico não é ignorado, mas passa a ser visto como um dos componentes do processo de desenvolvimento. Assim, entende-se que o desenvolvimento é um processo abrangente. Essas teorias complementam-se para sustentar as propostas deste estudo, uma vez que a criação de regras de concorrência em âmbito multilateral, ou seja, a ampliação da agenda da OMC para a inclusão de um acordo de concorrência que 255 trate, inclusive, dos cartéis de exportação, pode ser um meio eficiente de promover o desenvolvimento. Ainda, no que diz respeito à concorrência propriamente, em razão da política de concorrência e de comércio internacional serem diferentes, mas complementares, indicou-se como conveniente considerar a concorrência internacional como um bem público global dentro do critério previsto pelo PNUD. As condutas dos cartéis de exportação merecem maior atenção em razão de seus efeitos potenciais e também em razão da ausência de qualquer tratamento em âmbito internacional. Trata-se de conduta que geralmente possui isenção (explícita ou implícita) pelas regras nacionais de direito da concorrência. Verificou-se que, diante das atividades dos cartéis de exportação, muitos governos não intervêm nas atividades dos participantes dessa conduta, pois apenas os mercados estrangeiros passam a ser alvo de determinadas atividades que, no mercado interno, na maioria das vezes, seriam consideradas como anticompetitivas (i.e., cartéis hard-core). A despeito da existência de opiniões contrárias, os cartéis de exportação são considerados predominantemente como anticompetitivos pelos documentos das organizações internacionais. Entende-se que a simples exclusão dos cartéis de exportação do escopo da legislação antitruste ou a falta de qualquer controle do fenômeno gera reflexos negativos à política de concorrência num contexto nacional e perdas ao comércio internacional. Para compreender a complexidade da conduta de um cartel de exportação, entendeu-se relevante dedicar parte deste estudo à análise da prática realizada pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Trata-se de fonte importante, cujo estudo indica como na prática pode ser difícil a análise de um cartel de exportação se não existem regras específicas em âmbito multilateral. No caso da OPEP, avaliou-se uma investigação tratada por um órgão nacional (no caso, os EUA) onde foi possível perceber que, em casos semelhantes (e na situação atual, em que cada país seria responsável pela investigação sem respaldo de um órgão internacional) os tribunais nacionais teriam que lidar com 256 questões que demandam expertise dos profissionais, pois envolvem problemas de antitruste, de comércio e também outros temas mais delicados, tais como a avaliação dos atos de soberania (Act of State). Esse caso também permitiu um exercício analítico no sentido de avaliar o potencial de outros argumentos que poderiam ser utilizados (i.e., aplicação do Foreing Sovereign Compulsion ou Comity). Ainda na análise dos cartéis de exportação, outros casos e exemplos foram trazidos, principalmente dos EUA e da CE, em razão de serem jurisdições mais maduras na análise antitruste. Procurando enriquecer ainda mais este estudo, também foi trazida pesquisa realizada com 56 jurisdições diferentes, englobando todos os países membros da OCDE, os países da CE e alguns PEDs (conforme classificação do Banco Mundial) para analisar como tem sido o tratamento aos cartéis de exportação em cada uma dessas jurisdições. As isenções dos cartéis de exportação foram classificadas em: i) isenções explícitas, isenções implícitas e isenções não oficiais. Verificou-se que atualmente a maioria dos países desenvolvidos tem concedido cada vez menos as isenções de forma explícita. Isto traz mais atenção à temática, uma vez que, apesar do cenário ideal ser o de inexistir qualquer isenção, a isenção explícita teria pelo menos como vantagem a transparência. Veja-se que, diante do conhecimento da conduta, eventuais medidas compensatórias poderiam ser sugeridas ou preparadas, da mesma forma que o conhecimento permite que haja uma melhor supervisão das atividades dos membros do cartel, à luz de seus efeitos. Sem clareza da conduta, dificulta-se, ainda mais, seu tratamento nos países que podem sofrer com essa prática. Conforme se viu, a situação jurídica dos cartéis de exportação está ficando cada vez mais ambígua e existem poucas informações sobre essas condutas, uma vez que, muitas vezes, não se exige sequer notificação às autoridades dos locais onde esses conluios são organizados. Portanto, diante de seus efeitos potenciais negativos, avaliou-se qual seria a melhor política de concorrência e quais seriam os melhores mecanismos que viabilizariam efetiva regulação dessas condutas em âmbito internacional. 257 Assim, com base em todo arcabouço teórico e pesquisas estudadas, a idéia (inovação) defendida neste estudo é a de que um acordo multilateral de direito da concorrência, que trate das isenções dos cartéis de exportação, seria o modo ideal e mais factível para mitigar eventuais efeitos negativos dessas condutas, assim como melhorar o bem-estar dos consumidores, fomentando o desenvolvimento. A titulo de elucidação, hoje, os cartéis de exportação não possuem disciplina jurídica inclusive no Brasil, como também em muitos países, situação que não torna o tema menos importante, mas, ao contrário, torna premente sugestões de trato normativo nacional e internacional da questão, como ora se inova com a presente tese, com vistas ao bem-estar social. Ressalte-se que as leis de direito da concorrência têm limitações, já que possuem alcance nacional, ou seja: se for ausente o efeito no país exportador, a autoridade da concorrência pode não ter jurisdição para controlar os cartéis de exportação, considerando os limites territoriais e os próprios princípios de direito internacional. Outra inovação contida neste estudo é a escolha da OMC como foro adequado para regular os cartéis de exportação, em razão, dentre outros motivos, do fato de ser atualmente a estrutura com maior capacidade de promover a aplicação de regras multilaterais considerando todos os pontos estudados (tais como, eficiência, grau de respeitabilidade, sistema de solução de controvérsias etc.). Portanto, à luz dos resultados da análise, defende-se o relançamento de negociações sobre um acordo de concorrência dentro da OMC. Em adição, levando-se em consideração as diferenças existentes entre os graus de desenvolvimento dos países, entende-se que a negociação de um acordo não deveria estar vinculada à harmonização das leis nacionais de defesa da concorrência e, muito menos, à obrigação geral de se adotar uma lei nacional de defesa da concorrência. Sendo assim, a criação de regras multilaterais de concorrência, que abarquem os pontos sensíveis de antitruste e/ou condutas que possam prejudicar ou afetar o comércio internacional, não necessariamente precisa de uma harmonização prévia ou da criação de regras nacionais (principalmente no caso dos países que 258 sequer possuem legislação antitruste). Com relação ao escopo de tal acordo estrutural, é sabido que as propostas de convergência e de criação de regras de concorrência saíram da agenda da OMC. Contudo, ao se sugerir o relançamento, entende-se não ser vantajoso limitar a agenda futuramente apenas aos temas propostos anteriormente. Assim, além das propostas anteriores que estavam em pauta e que foram trazidas ao longo desse estudo, propõem-se os seguintes itens para um futuro acordo: i) regras com as isenções aplicáveis aos cartéis de exportação, com a obrigação de notificação desses acordos; ii) obrigação de cooperarão entre os países para monitorar a conduta dos cartéis de exportação (ou seja, não apenas dos cartéis hard-core); iii) especificação dos princípios de não-discriminação aplicáveis; iv) compromisso com a transparência, v) possibilidade de se questionar eventuais violações ao acordo por meio do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). Esses itens, arrolados acima, seriam para uma agenda mínima, no entanto, entende-se que, no cenário ideal de desenvolvimento considerado - dentro da proposta trazida neste estudo - mais dois itens também deveriam estar em pauta: i) proibição de cartéis de exportações, que não possuam qualquer efeito líquido positivo; e ii) institucionalização de assistência técnica e capacitação. Nesse sentido, o presente estudo considera um relançamento das negociações como um benefício potencial ao desenvolvimento que beneficiaria a OMC de modo geral e, em particular, aos PEDs. Desse modo, sugere-se que o tema da concorrência retorne à agenda das negociações, assim como seja ampliado para abarcar os cartéis de exportação (sejam eles mistos ou puros) e não apenas os cartéis hard-core. Essa proposta está de acordo com a aplicação das teorias de desenvolvimento aqui sugeridas. Vale dizer que isto estaria de acordo também com os aspectos econômicos e institucionais relativos à hipótese de regras internacionais complementares de defesa da concorrência. Ressalte-se que a política de concorrência, quando adequada, pode embasar reformas microeconômicas e influenciar positivamente os PEDs. 259 Os resultados das tentativas no passado para a adoção de regras internacionais complementares de defesa da concorrência no âmbito da OMC não chegaram a qualquer consenso. Veja-se que, nos documentos de trabalhos trazidos a este estudo, o que se observou foram discussões pouco produtivas que não se aprofundaram no tratamento de uma política de concorrência. Contudo, defende-se neste estudo que há espaço institucional para introdução de regras internacionais de defesa da concorrência no âmbito da OMC, e que isto seria vantajoso tanto para aos países desenvolvidos como aos PEDs. O desafio real, todavia, é criar um cenário político para tanto. Geralmente, a abordagem dos autores que defendem a inclusão de regras de concorrência na agenda da OMC (tais como KROL, BECKER, SUSLOW, LEVENSTEIN, entre outros) sugere o estabelecimento de uma agenda mínima, em razão dos resultados das últimas negociações, o que poderia aumentar a viabilidade política, já que acomoda a política da concorrência como uma área política sensível que requer discricionariedade em nível nacional. Esse poderia ser um caminho possível, mas não seria o ideal, já que os países menos desenvolvidos poderiam ficar em desvantagem. O argumento de que um acordo multilateral poderia ser oneroso aos PEDs também não parece ser adequado, uma vez que seus interesses podem ser acomodados sem a imposição de custos substanciais de implementação aos seus governos, por meio do Tratamento Especial e Diferenciado (TED). Atendendo-se inclusive ao princípio da não-discriminação, deveriam ser eliminados os efeitos prejudiciais decorrentes da política protecionista do beggar-thyneighbour, subjacente ao regime existente de cartéis de exportação. Desse modo, o acordo deveria conter obrigação de conceder medidas de proteção, uma vez que semelhante conduta seria proibida se produzisse efeitos no mercado doméstico. Ao mesmo tempo, tal formulação não deve permitir uma interferência inapropriada na soberania estrangeira e deve, portanto, ser cuidadosamente elaborada. Certamente, tal como ocorre nos demais acordos no âmbito da OMC, deve haver o compromisso de que os Membros envidem os melhores esforços para assistência mútua e cooperação na aplicação da política de concorrência, 260 especialmente aqueles que já possuam um regime jurídico de defesa da concorrência em vigor. Instrumentos de soft law também poderiam ser criados para possibilitar maior segurança e entendimento aos países que necessitem de orientações básicas sobre a política de concorrência, bem como sobre aplicação das ferramentas da lei antitruste. Ou seja, um alinhamento de normas processuais, em bases de soft law, poderia servir como apoio e cooperação aos países menos desenvolvidos. Veja-se que isso poderia ocorrer dentro de Grupos de Trabalho criados no sentido de viabilizar consenso e a elaboração de guidelines para a institucionalização de assistência técnica e capacitação. Sem dúvida, as regras de concorrência também deveriam estar ligadas ao OSC, que traria mais segurança jurídica e previsibilidade ao sistema normativo. Assim, nos casos necessários, os Membros da OMC poderiam requerer consultas e até mesmo pedir a abertura de painéis pelas supostas infrações. Portanto, com as propostas descritas acima, esse estudo traz uma contribuição inovadora com base nas teorias de desenvolvimento, para resgatar essa idéia de inclusão de regras de concorrência no âmbito da OMC, sugerindo, para tanto, o seu aprofundamento com regras complementares que tratem do tema dos cartéis de exportação. Espera-se com o embasamento teórico aqui trazido contribuir, ao menos, para perpetuar essa discussão tão importante para a concorrência, para o comércio internacional e para o desenvolvimento como um todo. 261 8 REFERÊNCIAS ABBOTT, Kenneth W.; SNIDAL, Duncan. Hard and Soft Law in International Governance. In: International Organization, v. 54, n˚. 3. Cambridge, Ma: IO Foundation and the MIT, Summer, 2000. ABIRU, M. Variable Proportions and Successive Oligopolies. The Journal of Industrial Economics, v. 36, n˚. 3, p. 315-325, March 1988. ADAMS, Walter. The Aluminum Case: Legal Victory-Economic Defeat. American Economic Review, v. XLI, n˚. 5, p. 915-922. 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