XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
PRÁTICAS DE RECONTO A PARTIR DE LIVROS LITERATURA
INFANTIL
Ilsa do Carmo Vieira Goulart
FE/UNICAMP
ALLE - Alfabetização, Leitura e Escrita
Resumo
Partindo do pressuposto de que as atividades de leitura e escrita, articuladas no ambiente
escolar, podem desenvolver-se sedimentadas nas concepções de inserção da criança
numa cultura letrada, considerando que a aprendizagem não está dissociada de vivências
e experiências anteriores a sua introdução ao ensino sistematizado, mas antes mediadas
pela ação docente e por práticas cotidianas de escrita e de letramento, é que busco
descrever e analisar uma proposta pedagógica alfabetizadora desenvolvida, nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, por meio da observação da atividade de reconto das
narrativas e da releitura das imagens contidas nos livros de literatura infantil, com o
objetivo de compreender como e porque as práticas alfabetizadoras, que buscam outras
perspectivas de um trabalho de letramento, de contextualização e de interlocução a
partir de obras literárias, são utilizadas em sala de aula. As observações apontam que a
leitura não se restringe apenas ao seu aspecto decodificador, à projeção sonora entre
fonema-grafema, mas antes, ampliar-se na capacidade interativa e dialógica que pode
manifestar-se em diferentes atividades leitoras. Através do estudo proposto, foi possível
perceber que, muitas vezes, a escola acaba por valorizar ou priorizar apenas uma
perspectiva da prática leitora: a leitura dirigida com pretensão pedagógica. Com isso a
atividade leitora passa a ser colocada num pódio de obrigatoriedade, decorrente de
quando se estabelece apenas um propósito a partir dela. Para fomentar a análise, o texto
assume as proposições de Smolka (2008) sobre alfabetização discursiva, as concepções
de linguagem de Vygotsky (2001, 2008, 2009) e a concepção social dos enunciados de
Bakhtin (2003, 2006).
Palavras-chave: Alfabetização; literatura infantil; interdiscursividade.
Do que elas dizem
O que elas dizem não tem sentido?
Que importa escuta-as um momento.
Como quem ouve, entre encantado e distraído,
A voz das águas... o rumor do vento...
Mario Quintana (1989)
Este texto se desenvolve a partir do pressuposto de que as narrativas dispostas
nas obras de literatura infantil proporcionam uma aproximação, um envolvimento e uma
interação da criança com a leitura e a escrita, por meio de práticas ledoras de histórias
de livros infantis. Parte-se da premissa de que as crianças ao ouvirem uma narrativa,
apesar do que dizem, por vezes, não produzirem o sentido esperado, pensado, articulado
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e planejado pelo autor ou pela equipe editorial, escuta-as um momento, como descreve
Quintana, tomada de fruição e de encantamento.
Ao considerar a possibilidade de interação da criança com a leitura a partir de
textos literários, este trabalho assume por objetivo refletir sobre algumas possibilidades
de inserção do gênero textual literário, no cotidiano escolar, assumindo as atividades de
reconto das narrativas e releitura das ilustrações presentes nos livros infantis, como
objeto de observação e de análise das práticas de ensino e aprendizagem da leitura.
A determinação de uma prática de leitura e de produção textual como objeto de
investigação, consolidou-se não somente se apresentar uma forma de trabalho com a
literatura ou como um suporte didático em suas práticas pedagógicas alfabetizadoras,
mas, sobretudo, por ser essa prática um meio favorecedor e impulsionador de
interlocução e interação social.
As observações a respeito das atividades desenvolvidas com e sobre a leitura em
sala de aula, demonstram que mesmo se a criança, no início de sua escolarização, não
esteja alfabetizada; apresente pouco contato com o universo de uma cultura escrita;
demonstre uma vivência distante ou insuficiente de práticas de leitura e escrita, ou
ainda, quando a aproximação de textos/palavras/letras não represente nenhum
significado de uso real e concreto, essas circunstâncias não oprimem nem interferem em
sua capacidade leitora, nem mesmo a impede de se cativar pelas histórias lidas e de
assumir a condição de um leitor ouvinte, de um leitor de imagens, por exemplo. Não ter
o domínio do código linguístico não minimiza a capacidade de compreensão textual da
criança, de envolvimento no contexto da narrativa, muito menos de sentir-se estimulada
a aprender a ler e a escrever.
E isso se deve ao fato da leitura não se restringir apenas ao seu aspecto
decodificador, à projeção sonora entre fonema-grafema, mas antes, ampliar-se na
capacidade interativa e dialógica que pode manifestar-se em diferentes atividades e
práticas leitoras.
Neste sentido, o trabalho considera que há uma relação dialógica e interativa,
que se estabelece antes, durante e após o desenvolver de atividades leitura e de
produção textual, como por exemplo: apreciação da narrativa, leitura das
imagens/ilustrações presentes nos livros, reconto da história, destaque de palavras
geradoras, a composição do texto, a expressividade do conteúdo textual por meio da
oralidade, desenhos e escrita, entre outras possibilidades.
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Na intenção de descrever práticas alfabetizadoras desenvolvidas a partir do
reconto das narrativas de livros de literatura infantil e da releitura de imagens, este
trabalho pretende realçar a alfabetização como um processo de interdiscursividade e
como uma possibilidade de inserção da criança na cultura escrita, ao atribuir um
significado e uma finalidade para diferentes formas de uso da linguagem.
O trabalho considera que ao ouvir uma história, a criança torna-se um leitor
ouvinte-ativo, pois pode observar, analisar, argumentar e posicionar-se frente ao
contexto da narrativa e às ilustrações, relacionando-as a diferentes situações e/ou
experiências vividas, vistas e ouvidas, às cenas de filmes, desenhos, documentários,
telenovelas, entre outras possibilidades. Pode-se dizer que a compreensão do ato de ler,
recebe uma definição de perceptividade mais ampla devido às diferentes manifestações
da linguagem – verbal, corporal, escrita, cinematográficas, musical.
Ao tomarmos como discussão a alfabetização sob a ótica da interdiscursividade,
podemos destacar vários posicionamentos de diferentes autores que abordam e
defendem um trabalho pautado sobre esta concepção teórica. Para fomentar a análise, o
texto assume as proposições de Smolka (2008) sobre alfabetização discursiva, as
concepções de pensamento e linguagem Vygotsky (2001, 2008, 2009) e a concepção
social dos enunciados de Bakhtin (2003, 2006). Para tanto, a pesquisa construir-se-á
através de um diálogo a partir das proposições de diferentes autores que tratam sobre o
ensino da literatura nas escolas.
A leitura literária: uma arte de contar ou de interagir com e sobre as histórias?
As histórias, antes, oralizadas são, atualmente, propagadas de diferentes formas,
sejam elas impressas, encenadas, televisionadas ou cinematográficas, sejam proferidas,
editadas ou reproduzidas pelos entusiastas contadores de histórias ou, simplesmente,
lidas, pode-se obter um grande número de audiência de acordo com a produção que
envolve a atividade artística de sua contação.
As histórias ganham sua dimensão atrativa, primeiro por um encantamento
oferecido por seu enredo, depois pelas ações leitoras que acompanham o narrador – ler
ou contar, os gestos, o tom de voz, a vestimenta, o ambiente –, pode-se perceber o
quanto o momento de contação de histórias pode ser desencadeador de uma experiência
sensível de leitura.
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As experiências de leitura nos foram transmitidas de forma benevolente ou
ameaçadora à medida que crescíamos. E não há experiência mais marcante que aquela
vivida pelo próprio corpo.
A narrativa se encontra infiltrada em meio a uma prática, que decorre de um
contar e um ouvir histórias de príncipes e princesas, de assombrações, de seres meio
bicho, meio homem, de tragédias, de dificuldades, de viagens, de lutas e conquistas, ao
redor de um fogão à lenha, uma fogueira ou alpendre da casa. Resumia-se numa reunião
de pessoas que desenrolavam fios de uma narrativa, no qual entrelaçavam histórias e
com isso asseguravam a atenção do público ouvinte.
Ao contar uma história pode-se oportunizar um momento sensível de leitura. Se
considerarmos experiência mais do que a vivência de um fato narrado, se a
considerarmos como um deixar-se tomar, possuir por completo pela leitura, partiremos
então da premissa de que o ato de contar uma história, de ler para e com o outro pode
materializar uma experiência significativa de leitura, sentida e experimentada pelo
sujeito, torna-se, ainda, um ato histórico e social, por realizar-se em num determinado
tempo e lugar.
Nesta perspectiva, a leitura não está associada a um ato de recepção textual em
passividade, mas a um ato dinâmico de produção, como nos mostra Certeau (2007,
p.269), “o leitor é produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo”. O
leitor é visto como um ser ativo, como produtor de sentidos, porque age sobre e com o
texto. Certeau compara a leitura com ato de caçar, pois “tem o escrito à vista”, percorre
sobre as páginas, “terras alheias”, em busca de algo que não é seu para apropriar-se
dele, e, ainda, com o ato de jogar, por deixar-se prender, envolver, perder ou ganhar,
“ora perde aí as seguranças fictícias da realidade: suas fugas o exilam das certezas que
colocam o eu no tabuleiro social.”
Ao trazermos para o texto a perspectiva da leitura como uma prática de produção
de sentidos, como uma atividade atuante do leitor com e sobre o texto, é possível
afirmar que quando a escola assume a prática de narrar/ler histórias, instaura-se uma
forma de interação da criança com a própria linguagem.
De acordo com Amarilha (2006, p.28), ao narrar e ouvir uma história, tem-se
“uma voz narrante e um ouvido pensante”. A autora aponta que a leitura literária
apresenta-se sob três condições de experiência: a “simbólica”, na qual o leitor aprende a
lidar com as representações pela palavra e pela ficção; a “social”, a palavra como
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veículo de interação, pela oralidade; a “educativa”, a interação com o texto oral e
escrito, promove a aprendizagem.
As expressões “ouvido pensante”, remetem ao leitor ouvinte, mostram que,
diante de uma leitura, se posiciona de maneira atuante e dinâmica.
Outro aspecto da leitura literária é destacado por Paulino (1999, p.57), ao
salientar que, mais do que o envolvimento com o contexto das histórias, é o próprio
questionamento reflexivo que o professor direciona a partir do contexto da narrativa:
A arte, e mais especialmente a arte literária, nessas historinhas que chegam às crianças,
pode, ao transformar-se em experiência artística, ser mais importante do que parece.
Não é fácil responder para que serve às crianças ficarem lendo esses livros, em que
parece que nada se ensina ou nada se aprende. Mas perguntas é que interessam.
Para a autora saber questionar, criar boas perguntas para o texto, constitui uma
estratégia que redireciona o trabalho do professor diante de novos textos, pois “na
leitura escolar, as perguntas – o célebre estudo dirigido e as não menos célebres fichas
de leitura – eram consideradas tão sem importância que já vinham prontas para os
alunos. Ora, aprender a lidar com novos textos escritos, sejam eles informativos ou
poéticos, é exatamente aprender a fazer perguntas pertinentes – ou impertinentes – a
eles.” Paulino (1999, p.57)
Se aprender a lidar com diferentes textos é aprender a fazer perguntas, pode-se
indagar: como utilizar-se do contexto narrativo oferecido pela literatura infantil como
forma de instigação e de envolvimento pelo uso e pela articulação da linguagem oral,
para aproximar a criança das práticas de leitura dentro de uma cultura da escrita? Ao
pensar na alfabetização não como um ato decodificador, mas como processo de
interação pela linguagem, qual a relação do discurso interior e da escrita espontânea da
criança? Em medida a concepção da alfabetização como processo discursivo pode ser
compreendida, desenvolvida e aplicada como prática escolar, a partir da literatura
infantil?
A aprendizagem da leitura e escrita como um processo interdiscursivo
Os estudos de Smolka (2008) permitem analisar o processo de aquisição da
escrita em crianças a partir de três pontos de vista: um que acredita que a língua é um
sistema que funciona com padrões fixos e imutáveis, uma concepção que está associada
à ideia de que a aprendizagem da escrita se baseia na repetição e na memorização, a
criança ocupa um lugar passivo no ato de aprender, cabendo ao professor “guiá-la”,
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instruí-la
neste processo. Outro que considera a escrita como um objeto de
conhecimento; assume a língua como um processo de evolução psicogenética, através
de conflitos cognitivos e atribui ao erro um papel importante, decisivo e construtivo
nesse processo. Considera as tentativas e hipóteses da criança para uma forma de
compreender o sistema de representação da linguagem, sobre o qual possui um papel
ativo de atuação. Smolka aponta, então, um terceiro ponto de vista, que abrange o
segundo, caracterizado pela interação e pela interdiscursividade, que inclui os aspectos
sociais da língua, considera os usos, as condições e o funcionamento da escrita dentro
de uma sociedade (para que, para quem, onde, como, por quê).
Para desenvolver sua pesquisa, Smolka (2008) apoia-se nas concepções do
processo de interiorização da linguagem de Vygotsky (2008), alegando que o discurso
interior traz marcas de um discurso social e de Bakhtin (2003, 2006) para falar da
natureza social da enunciação, como atos de fala.
Para Vygotsky (2008) a linguagem surge inicialmente como um meio de
comunicação, depois ao ocorrer a conversão para um linguagem interiorizada, ela
assume também a função de organizar o pensamento da criança, depois torna-se uma
função mental interna. A maior mudança na capacidade de utilização da linguagem,
como um instrumento para a solução de um problema, ocorre quando a fala
egocêntrica, uma linguagem socializada, dirigida e emitida a outra pessoa, é
internalizada. Ao invés de recorrer a um adulto, por exemplo, a criança, fala para si
mesma. A linguagem passa a adquirir uma função intrapessoal, além do seu uso
interpessoal.
Vygotsky (2008) conclui que o desenvolvimento do pensamento é determinado
pela linguagem, ou seja, é determinado pelos instrumentos linguísticos do pensamento e
pela experiência sócio-histórica da criança. O desenvolvimento da fala interior depende
de fatores externos e o crescimento intelectual depende do domínio dos meios sociais do
pensamento, que é a linguagem.
A linguagem reorganiza substancialmente os processos de percepção do mundo
exterior e cria novas leis de percepção; muda essencialmente os processos de atenção e
de memória do homem; permite um desligamento da experiência imediata, liberta-se do
aqui e agora, da ação presente, é capaz de planejar o futuro e reconstruir, pelo processo
de rememoração o passado.
Conceber a aquisição da leitura e da escrita como um processo interdiscursivo é
considerar que estas como formas de expressão e de uso pertencente à própria
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linguagem. Ferreira (2001) destaca que os estudos e as produções referentes ao ensino
da Língua Portuguesa, se mobilizam por fatores externos – de caráter social – ou
internos – de caráter do campo científicos das ciências ou da linguagem. Neste sentido,
a autora, descreve que “o campo das ciências da linguagem (em substituição ao
estruturalismo e a teoria da comunicação) aponta para a concepção da linguagem como
forma de interação mediadora e constitutiva das relações sociais, para a percepção das
diferenças dialetais, para a necessidade de se ensinar a partir da diversidade textual, para
adoção das práticas de leitura e produção e de análise linguística em suas condições de
uso e de reflexão como conteúdo da disciplina.”
Se a escrita é uma forma de expressão da linguagem, a produção literária, o
trabalho salienta que a escolha pelas narrativas da literatura infantil, como possibilidade
de efetuação de uma prática alfabetizadora, se dá por apresentar três fatores, primeiro
por ser um discurso escrito, traz em seu contexto narrativo o registro e vestígios de um
discurso social; segundo porque “ao mesmo tempo, instaura e amplia o espaço
interdiscursivo, na medida em que inclui outros interlocutores – de outros tempos, de
outros lugares – criando novas condições e novas possibilidades de troca de saberes,
convocando os ouvintes/leitores a participarem como protagonistas no diálogo que se
estabelece.” (SMOLKA, 2008, p.80)
Do terceiro fator pode-se destacar a concepção de leitura em que está inserida.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1998, 6970), a leitura pode ser compreendida como um ato ativo e dinâmico em busca da
apreensão dos sentidos da linguagem:
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e
interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto,
sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair
informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade
que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais
não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o
que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão,
avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas.
Ferreira (2001, p.4), ao analisar os PCN de Língua Portuguesa, ressalta que o
caminho teórico assumido pelo programa nacional, considera que “a linguagem existe
na escola porque existe fora dela. Não é propriamente um conteúdo escolar. É uma
forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de
interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma
sociedade, nos distintos momentos em sua história.”
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A autora destaca que os PCN partem do pressuposto de a língua se efetua no uso
de práticas sociais, no espaço em que os indivíduos se apropriam, em diferentes
momentos, contextos e lugares, se apropriam dos seus conhecimentos por meio da ação
com e sobre os objetos em circunstâncias de sua utilização, de modos de uso. E, desta
maneira, que os sujeitos utilizam “a língua tanto oral quanto escrita dentro de uma
concreta e determinada situação comunicativa, com condições e finalidades específicas,
produz discurso que significa dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma,
num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução.”
(FERREIRA, 2001, p.4)
Pensar na palavra – oral ou escrita – como uma forma de expressão da
linguagem é refletir sobre dois aspectos determinantes no seu processo de interlocução:
um refere-se aos sentidos que carrega ou produz, outro diz respeito à interação social. A
palavra traz em si a função de signo linguístico e como signo não possui um sentido
único e acabado, mas se define pela pluralidade de significações e para que seja
compreendida deve-se considerar o contexto de sua produção/emissão e analisar as
condições do discurso em relação a quem/ quando/ onde/ para que/ para quem/ como/ se
produz a mensagem. Outro aspecto é sua natureza social, como um modo puro de se
estabelecer relações, visto que o dizer envolve um locutor e um interlocutor, dirige-se
a/para/ com/ sobre alguém, um elemento que lhe garante certa importância, porque
toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de
alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o
produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em
relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última
análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim
e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN,
2006, p.115)
Neste sentido, o material privilegiado na vida cotidiana, que Bakhtin (2006)
apresenta é a palavra, ou seja, é a própria linguagem. Em nosso cotidiano nos vemos
cercados pela palavra (falada/escrita), por ela somos constituídos e tomados a cada
instante e por meio dela é que estabelecemos uma interação social.
Ao considerar que ouvir histórias constitui-se uma prática social da leitura no
cotidiano infantil, até que ponto é possível desenvolver uma prática alfabetizadora
utilizando-se das narrativas de livros de literatura infantil, sem minimizá-la a uma mera
didatização de uma expressão artística? Como o professor pode organizar e sistematizar
um trabalho pedagógico de leitura e escrita a partir desses textos sem desfacelar a arte
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literária? Ou mesmo até que ponto as narrativas de histórias e as ilustrações presentes
nos livros podem provocar ou aproximar o leitor do ato de ler?
Marcuschi (2003, 16-17) também explora a questão da utilização da língua
dentro de uma situação concreta de expressão da linguagem, de maneira mais
aprofundada, ao declarar que ao lidarmos com as práticas de letramento e oralidade,
estamos lidando com os usos que as fundamentam.
Para o autor o letramento, como prática social ligada ao uso da escrita, tornou-se
um bem social a ser adquirido, foi elevado ao status superior que representa “educação,
desenvolvimento e poder”. Entretanto, para Marcuschi (2003), fala e a escrita se
constituem por um mesmo peso de valor, pois o homem não se define como um “ser
que escreve”, mas como “um ser que fala”, por que “oralidade e escrita são prática s e
usos da língua com características próprias, mas não o suficientemente opostas para
caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a
construção de textos coesos e coerentes e informais, variações estilísticas, sociais
dialetais e assim por diante.”
A literatura infantil: do contar ao recontar
A atividade de reconto aparece como um instrumento de interação ao texto
literário. Uma prática que pode desenvolver-se a partir da leitura das ilustrações
contidas no livro ou mesmo a partir da leitura de um texto, pode ser organizada de
forma coletiva e depois individualmente. Torna-se um momento propício de estímulo,
de incentivo a uma ação leitura realizada em conjunto, auxiliando à criança pensar,
refletir e construir o texto, aproximando as atividades de leitura e escrita, num processo
dinâmico e interativo.
Partindo da premissa de que o reconto pode se proceder a partir da leitura de
imagens, tomemos como exemplo uma atividade de leitura desenvolvida sobre o livro
de literatura infantil A boca do sapo, de Mary França e Eliardo França.
A coleção Gato e Rato, de Mary França e Eliardo França, por exemplo, trazem
imagens sugestivas para a efetuação de uma ação leitora pelas crianças, mesmo que não
estejam alfabetizadas, a partir das ilustrações que compõem a narrativa, cria-se uma
história para elas, muitas vezes diferente daquela descrita pelo autor. O reconto a partir
de imagens, nesse momento, torna-se uma prática dialógica e inventiva, construída pelas
crianças a partir das experiências e vivências pessoais de acordo com seu contexto
social.
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Outra possibilidade é o reconto a partir de um texto lido pelo professor, diante
do qual se pode escolher recontar um capítulo ou a história toda de maneira sintetizada.
Para desenvolver desse trabalho o professor poderá escolher uma narrativa envolvente,
esta prática organiza-se em três momentos distintos, o primeiro momento ocorre no
período que precede à leitura do texto até sua efetivação, refere-se às questões que
podem ser exploradas na oralidade sobre o assunto que texto abordará, é uma forma de
envolvimento à temática e ao mesmo tempo de se levantar conhecimentos prévios a
respeito do assunto a ser discutido, assim, depois de inserir ou aproximar a criança do
contexto da narrativa, desperta na criança um interesse pela leitura da história. Parte-se
do pressuposto de que o contexto em que está inserido o texto/a história pode ser
provocador de discussões e reflexões a respeito de um dado assunto.
O segundo o momento se dá na atividade de reconto, em que de acordo com o
envolvimento pela história pode-se sugerir o reconto do texto completo ou de parte dele,
a partir de uma proposta de se construir um texto com as crianças: “Agora podemos
contar a nossa versão da história”.
O terceiro momento se constitui de inúmeras possibilidades de atividades a partir
do texto produzido pela turma, como leitura coletiva e individual do texto, ilustração,
bem como exercícios a partir de uma palavra geradora ou de atividades gramaticais.
A finalização do trabalho acontece com o ato de compartilhar leituras, uma
atividade que pode ser desenvolvida por meio da apresentação de leitura coletiva, de
dramatização, da organização de jogral e da apresentação musical para outras turmas.
O texto produzido pelos alunos acaba por ocupar uma posição de centralidade no
trabalho de leitura e escrita, antes como estímulo à produção coletiva do reconto, depois
como fonte geradora para a formulação de diferentes atividades. Dentro do contexto
temático em que o texto se enquadra, pode-se utilizar de outros textos que tratam do
mesmo assunto, como poemas, contos, fábulas, letra de músicas, os quais enriquecem o
trabalho pedagógico de leitura possibilitam a aproximação e a inserção de diferentes
gêneros textuais.
Algumas considerações
Impulsionado pela necessidade de entender o que favorece, ou, muitas vezes,
desfavorece, a adesão da criança a uma atitude de autonomia na prática leitora, que este
texto procurou descrever um estudo das atividades de leitura desenvolvidas nas escolas,
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tomando como incitação investigativa as obras de literatura infantil, refletindo sobre o
que tais textos podem contribuir ou não para a formação do leitor.
Através do estudo proposto, foi possível perceber que, muitas vezes, a escola
acaba por valorizar ou priorizar apenas uma perspectiva da prática leitora, que é a
leitura dirigida com pretensão pedagógica. Com isso a atividade leitora passa a ser
colocada num pódio de obrigatoriedade, decorrente de quando se estabelece apenas um
propósito a partir dela.
As observações levantadas apontam que a prática leitora a partir de textos
literários permite à criança tanto uma aproximação com a história e seu conteúdo,
quanto proporciona uma interação verbal e social. Há um movimento dinâmico e ativo
que acompanha o ato de ler o texto, num processo de construção de sentidos e de
interdiscursividade, promovendo uma experiência significativa de leitura.
No contexto escolar, parece que as práticas de oralidade, letramento e atividades
de escrita não são colocadas, ou não são utilizadas num mesmo plano de importância
para na alfabetização com textos, são ações que se mostram permeadas por
representações de práticas de leitura, pautadas na relevância ou na eficácia da
aprendizagem direta da leitura/escrita.
De
acordo
com
Marcuschi
(2003),
pensar
nas
relações
entre
a
oralidade/letramento, fala/escrita não é pensar em relações dicotômicas, determinandolhes níveis de importância e eficácia, mas deve-se considerar a língua como um
fenômeno interativo e dinâmico. Quando lidamos com práticas de letramento e
oralidade é primordial se considerar usos que a fundamentam a própria linguagem.
Neste sentido, a prática do reconto de textos lidos ou de imagens contidas nas
ilustrações dos livros de literatura infantil se mostra uma possibilidade de trabalho
pedagógica que valoriza e estimula a linguagem como forma de expressão e interação
verbal da criança com o texto e com a variedade linguística das crianças. Uma atividade
que aproxima e articula questões relacionadas à oralidade e a escrita, como forma de
produção, de reflexão com e sobre a própria língua escrita.
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