Controle de Constitucionalidade de normas pré-constitucionais
O Supremo Tribunal Federal possui o poder de decidir sobre a
constitucionalidade das normas jurídicas que foram aprovadas antes da entrada em vigor
da Constituição de 1988. Note-se que no Brasil adota-se modelo misto de controle de
constitucionalidade e, portanto, o tema deve ser analisado nos âmbitos do controle
difuso e concentrado.
O controle de constitucionalidade de norma pré-constitucional frente à
constituição atual é feito por meio do controle concentrado de constitucionalidade. A
Constituição de 1988 (art. 102, §1º) previu o instrumento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que, em acordo ao disposto na Lei
Federal de n. 9.882/99 que a regulamenta, permite que o controle recaia sobre atos
normativos editados anteriormente à atual Carta Magna.
É o que dispõe o art. 1º, parágrafo único, I da Lei de n. 9.882/99, segundo o
qual a ADPF é cabível mesmo quando o ato ou lei federal, estadual ou municipal, que
seja objeto de controvérsia constitucional, viole a constituição atual (1988):
Art. 1º A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será
proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito
fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia
constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal,
incluídos os anteriores à Constituição;
Ou seja, todo lei ou ato do poder público que viole a constituição poderá ser
evitado ou reparado por meio de ADPF, mesmo que esta norma pré-constitucional seja
anterior à constituição de 1988. Quanto a esta possibilidade decidiu a Corte na ADPF de
n. 33, de relatoria do min. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006:
EMENTA: 1. Argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada
com o objetivo de impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do Instituto
de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), sob o fundamento
de ofensa ao princípio federativo, no que diz respeito à autonomia dos Estados
e Municípios (art. 60, §4o , CF/88) e à vedação constitucional de vinculação
do salário mínimo para qualquer fim (art. 7º, IV, CF/88). 2. Existência de ADI
contra a Lei nº 9.882/99 não constitui óbice à continuidade do julgamento de
argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada perante o
Supremo Tribunal Federal. 3. Admissão de amicus curiae mesmo após terem
sido prestadas as informações 4. Norma impugnada que trata da remuneração
do pessoal de autarquia estadual, vinculando o quadro de salários ao salário
mínimo. 5. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental (sob o prisma do art. 3º, V, da Lei nº 9.882/99) em virtude da
existência de inúmeras decisões do Tribunal de Justiça do Pará em sentido
manifestamente oposto à jurisprudência pacificada desta Corte quanto à
vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo. 6. Cabimento de
argüição de descumprimento de preceito fundamental para solver
controvérsia sobre legitimidade de lei ou ato normativo federal, estadual
ou municipal, inclusive anterior à Constituição (norma préconstitucional). 7. Requisito de admissibilidade implícito relativo à relevância
do interesse público presente no caso. 8. Governador de Estado detém aptidão
processual plena para propor ação direta (ADIMC 127/AL, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ 04.12.92), bem como argüição de descumprimento de preceito
fundamental, constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus
postulandi. 9. ADPF configura modalidade de integração entre os modelos de
perfil difuso e concentrado no Supremo Tribunal Federal. 10. Revogação da
lei ou ato normativo não impede o exame da matéria em sede de ADPF,
porque o que se postula nessa ação é a declaração de ilegitimidade ou de nãorecepção da norma pela ordem constitucional superveniente. 11. Eventual
cogitação sobre a inconstitucionalidade da norma impugnada em face da
Constituição anterior, sob cujo império ela foi editada, não constitui óbice
ao conhecimento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental, uma vez que nessa ação o que se persegue é a verificação da
compatibilidade, ou não, da norma pré-constitucional com a ordem
constitucional superveniente. 12. Caracterizada controvérsia relevante sobre
a legitimidade do Decreto Estadual nº 4.307/86, que aprovou o Regulamento
de Pessoal do IDESP (Resolução do Conselho Administrativo nº 8/86), ambos
anteriores à Constituição, em face de preceitos fundamentais da Constituição
(art. 60, §4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal) revela-se
cabível a ADPF. 13. Princípio da subsidiariedade (art. 4º,§1º, da Lei no
9.882/99): inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão, compreendido no
contexto da ordem constitucional global, como aquele apto a solver a
controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. 14. A
existência de processos ordinários e recursos extraordinários não deve excluir,
a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental,
em virtude da feição marcadamente objetiva dessa ação. 15. Argüição de
descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar a
ilegitimidade (não-recepção) do Regulamento de Pessoal do extinto IDESP em
face do princípio federativo e da proibição de vinculação de salários a
múltiplos do salário mínimo (art. 60, § 4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da
Constituição Federal).
Neste julgado, se discutiu a questão de um possível controle tendo como
parâmetro a Constituição anterior. Nos precedentes desta Corte, como resta claro no
destaque da ementa acima transcrita, as discussões não se voltam à aferição de
constitucionalidade da norma pré-constitucional em face da constituição vigente à sua
época. Neste sentido, explanou o min. Gilmar Mendes, quando em debate com o min.
Sepúlveda Pertence:
[...]
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE): Sim,
apenas acho que o problema do controle de constitucionalidade da lei préconstitucional aqui não se põe, porque, a rigor, são decretos já
inconstitucionais à luz da Carta decaída de 1969.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Sim, mas não
teríamos como fazê-lo, em face do mesmo instrumento, quer dizer, teríamos as
mesmas faltas e as mesmas carências. Se amanhã ainda se vai suscitar a
eventual não-aplicação, só vai se fazer no sistema difuso.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) Então, Vossa Excelência declara a ilegitimidade a partir da Constituição de
1988.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR) - Tão-somente
isto. Se essa questão vai ser suscitada, eventualmente [...] (ADPF de n. 33,
min. rel. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006).
Assim, a conformidade à constituição vigente à época da norma préconstitucional pode até ser eventualmente suscitada; em sede de controle concentrado,
porém, o parâmetro de controle a ser adotado é a atual Constituição.
Ademais, a ADPF tem cabimento subsidiário, conforme o art. 4º, §1º da lei
9.882/99, pois não é cabível quando houver outro meio eficaz de se sanar a
inconstitucionalidade. É neste sentido que se destaca a jurisprudência desta Corte acerca
da inadmissibilidade de apreciação de norma pré-constitucional por meio de Ação
Direta de Inconstitucionalidade, tendo em vista que esta ação destina-se,
fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas pós-constitucionais.
Todavia, cumpre ressaltar que tal posicionamento está em processo evolutivo no
Tribunal.
No julgamento da ADI de n. 2 de relatoria do min. Paulo Brassard, DJ de
21.11.1997, assentou a Corte entendimento de impossibilidade de exame de
constitucionalidade de lei anterior à constituição pela via da Ação Direta de
Inconstitucionalidade, mesmo que a norma pré-constitucional seja superveniente à
constituição. Entendeu-se que o eventual conflito deveria ser envolvido no plano do
direito intertemporal, tratando-se, portanto, de caso de mera revogação, e não
envolvendo propriamente um juízo de constitucionalidade.
Entretanto, esse entendimento vem sofrendo sinais de alteração na
jurisprudência da Corte. Veja-se que no julgado da ADI-MC de n. 3.833, de relatoria do
min. Carlos Britto, DJ de 14.11.2008, reafirmou-se o entendimento de que não é
admissível controle de constitucionalidade por via abstrata de norma editada quando em
vigor a redação primitiva da constituição de 1988 (ou seja, o texto originário, sem as
emendas constitucionais). Ocorre que, neste julgado, vários ministros indicaram uma
mudança de posicionamento, ao suscitarem a possibilidade de questionar-se a eficácia
de norma pré-constitucional frente à constituição atual (no caso in concreto, o texto
constitucional de 1988, com as alterações advindas da EC de n. 41/2003).
Ocorre que na controvérsia constitucional da ADI de n. 3833 decidiu-se pelo
não conhecimento da ADI consoante o entendimento de que não pode ser objeto desta
ação uma norma pré-constitucional, mas inovam ao dizer que se pode averbar a
caducidade da norma pré-constitucional em debate. Ou seja, a nova orientação aponta
para a possibilidade de retirada da força normativa, em sede de ADI, da norma préconstitucional em questão, já que o teor da mesma não coadunava com a nova redação
que a constituição adquiriu frente à emenda constitucional de n. 41/03.
Ou seja, o posicionamento da Corte sobre a possibilidade de se abordar o
controle de constitucionalidade de lei pré-constitucional frente ao texto constitucional
vigente está em processo de alteração. Isso ocorre na medida em que surgem, neste
precedente, indícios de modificação do posicionamento do Tribunal, no sentido de
possibilitar esse controle de normas pré-constitucionais frente ao texto constitucional
atual, por meio de ação direta de inconstitucionalidade.
Desse modo, até o presente momento de evolução jurisprudencial, a ação de
ADPF é o único modo de se obter um controle de constitucionalidade de normas préconstitucionais frente à atual constituição (1988), sendo que tal posicionamento está em
processo evolutivo diante dos debates ocorridos no julgamento da ADI-MC de n. 3.833.
A questão agora a ser abordada é quanto à possibilidade do STF analisar a
constitucionalidade de norma pré-constitucional frente à constituição vigente a sua
época. Tal análise é factível por meio do controle difuso de constitucionalidade por
meio de recurso extraordinário.
Como assentado no RE de n. 148.754, Rel. Francisco Rezek, DJ de 4.3.1994, é
possível o pleito de normas jurídicas que foram promulgadas antes da entrada em vigor
da Constituição de 1988 frente à constituição vigente a sua época. Vale destacar que
nesta via de controle difuso não é factível o controle de constitucionalidade de norma
pré-constitucional frente à constituição atual, pois por essa via só se realiza o controle
em face da Constituição sob cujo império foi editado a lei ou ato normativo.
Em suma, o controle de normas pré-constitucionais frente à constituição atual pode ser
analisado pelo STF por meio de controle de constitucionalidade abstrato, sendo que o
posicionamento da Corte de que tal pleito só pode ser reclamado por meio de ADPF
está em processo de alteração diante dos novos posicionamentos existentes da ADI-MC
de n. 3833. Por outro lado, a Corte possui competência para julgar a constitucionalidade
de norma pré-constitucional frente à constituição vigente a sua época por meio de
recurso extraordinário (controle concreto de constitucionalidade).
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