JAIR MARQUES DE ARAUJO
O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE
INTERNACIONAL DAS INSTITUIÇÕES SALESIANAS
DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E A AFIRMAÇÃO DA
IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Campo Grande-MS
Junho – 2009
JAIR MARQUES DE ARAUJO
O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE
INTERNACIONAL DAS INSTITUIÇÕES SALESIANAS
DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E A AFIRMAÇÃO DA
IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação – Mestrado em Educação da
Universidade Católica Dom Bosco como parte
dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Educação.
Área de Concentração: Educação
Orientadora: Profa. Dra. Mariluce Bittar
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Campo Grande-MS
Junho – 2009
Araujo, Jair Marques de
A663p O processo de implantação da rede internacional das instituições
salesianas de educação superior e a afirmação da identidade confessional
salesiana / Jair Marques de Araujo; orientação, Mariluce Bittar. 2009.
146 f.
Dissertação (mestrado em educação) – Universidade Católica Dom
Bosco, Campo Grande, 2009.
1.Política educacional 2. Ensino superior e Estado 3. Universidades e
faculdades católicas I. Bittar, Mariluce II. Título
CDD – 379.4
Dedico esse trabalho à Professora Dra. Mariluce Bittar, por seu comprometimento
com os ideiais da educação superior católica salesiana. Sua paciência e sabedoria
perimitiram a construção dessa dissertação.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me Ama e cujo Amor celebro em minha vida.
À Missão Salesiana, que partilha comigo seu carisma e seus ideiais.
A Laura Lavagnolli, pela assessoria.
A Rosana Gomes da Silva Paes da Costa e Ereni dos Santos Benvenuti, pela
revisão e formatação deste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação vincula-se à Linha de Pesquisa Políticas Educacionais, Gestão da Escola e
Formação Docente, mais diretamente ao Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de
Educação Superior – GEPPES/UCDB. Tem como objeto de pesquisa a análise de
constituição da Rede Internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS)
como movimento criado com o objetivo de fortalecer sua identidade e reforçar o
compromisso social com a juventude das classes populares, para fazer frente ao
movimento de empresariamento da educação pelo capital financeiro. Os objetivos
específicos consistem em: a) Verificar como ocorreu o processo de implantação da Rede
IUS; b) Identificar qual é a concepção de identidade confessional salesiana expressa pela
Rede IUS. Como procedimento técnico-metodológico utilizou-se a análise de documentos
produzidos pelas IUS, no sentido de explicitar as razões para a constituição da Rede, seus
sentidos e contradições, bem como sua influência para a afirmação da identidade das
instituições universitárias confessionais. Infere-se que a mundialização do capital, as
exigências decorrentes do modelo neoliberal e as políticas públicas educacionais
implantadas sob orientação dos organismos multilaterais, com repercussões nos países em
processo de desenvolvimento, provocaram, entre outras, o movimento de privatização da
educação superior, o surgimento de um modelo de universidade empresarial e a formação
de conglomerados econômico-empresariais cuja principal finalidade é a obtenção de lucros
financeiros com a exploração dos serviços educacionais. O fortalecimento da visão
empresarial da educação superior pela expansão dos grupos privados desestruturou
tradicionais universidades comunitárias confessionais que se dedicam à educação superior
sob uma ótica humanista, o que as levou a criar estratégias, como a construção da Rede
IUS, no sentido de preservar sua identidade no conjunto das IES brasileiras, além de
colaborar para sua própria sobrevivência institucional. Atualmente acham-se pressionadas
pela instauração exarcebada da concorrência por alunos, revelando-se despreparadas para
enfrentar o movimento da globalização sobre a educação superior. É nesse contexto que
surge a Rede Internacional das IUS com o objetivo de garantir e preservar a sua identidade
institucional.
Palavras-chave: Políticas Educacionais; Instituições Salesianas de Educação Superior;
Identidade Institucional.
ABSTRACT
The dissertation in hand is linked to the Research Theme of Educational Policies, School
Management and Teacher Training, but more directly to the Study Group on Research into
Policies for Higher Education – GEPPES/UCDB. The target of the research is the analysis
of the constitution of the International Network of Salesian Institutions for Higher
Education (IUS) as a movement created with the aim of strengthening their identity and
reinforcing their social commitment to the youth of the needier classes in order to lead the
movement of managing education through financial capital. The specific aims consist of:
a) verifying how the process of the implantation of the IUS Network took place; b)
identifying what the conception of confessional Salesian identity expressed by the IUS
Network is. As a technical-methodological procedure the analysis of documents produced
by the IUS were used, in the sense of making explicit the reasons for the constitution of the
Network, their reasoning and contradictions, as well as their influence on the affirmation
of the identity of the confessional university institutions. It is inferred that the globalization
of capital, the demands as a result of the neoliberal model and the educational public
policies implanted under the orientation of multilateral organisms, with repercussions in
countries in the process of development, provoked, among others, the movement of
making higher education private, the coming into being of a university management model
and the formation of economic-managerial conglomerates whose main aim is the obtaining
of financial profits with the exploitation of educational services. The strengthening of the
managerial vision of higher learning through the expansion of private groups broke down
traditional confessional community universities which dedicate themselves to higher
education from the humanist point of view, that led them to create strategies, such as the
construction of the IUS Network, in the sense of preserving their identity within the body
of Brazilian IUS, as well as collaborating towards their own institutional survival. At the
moment they find themselves under pressure from the exacerbating installation of
competition for students, revealing themselves to be unprepared to face the effect of the
globalization movement on higher education. It is in this context that emerges the IUS
International Network with the aim of guaranteeing and preserving their institutional
identity.
Key words: Educational Policies; Salesian Institutions of Higher Learning; Institutional
Identity.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABRUC
- Associação Brasileira de Universidades Comunitárias
ACG
- Atos do Conselho Geral
AGCS
- Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços
ALCA
- Área de Livre Comércio das Américas
ALFA
- América Latina Formação Acadêmica
ASU
- Associação Salesiana das Universidades
AUIP
- Associação Universitária Iberoamericana de Pós-Graduação
BID
- Banco Interamericano de Desenvolvimento
CRES
- Conferência Regional de Educação Superior
GEPPES
- Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de Educação Superior
IBGE
- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IAU
- Associação Internacional de Universidades
IES
- Instituição de Ensino Superior
IESALC
- Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e
Caribe
INQAAHE
- Rede Internacional para a Garantia da Qualidade da Educação Superior
INEP
- Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
IUS
- Instituições Salesianas de Educação Superior
MEC
- Ministério da Educação
MERCOSUL - Mercado Comum do Sul
OMC
- Organização Mundial do Comércio
PNAD
- Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNE
- Plano Nacional de Educação
QAAS
- Agências de Acreditação e de Garantia da Qualidade
REUNI
- Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais
UCDB
- Universidade Católica Dom Bosco
UEALC
- União Européia, América Latina e Caribe de Ensino Superior
UNESCO
- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
WQR
- Consórcio Registro Internacional de Qualidade
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01 -
Instituzioni
Universitarie
Salesiane:
data
di
fondazione .......................................................................................... 31
Gráfico 02 -
Numero delle IUS per Classificazione (Categorie) .............................. 37
Gráfico 03 -
Condizione
Socio-economica
Degli
Studenti
-
Informazione fonita dalle IUS............................................................. 47
Gráfico 04 -
Fonti di Finanziamento (In $1.000.000) .............................................. 50
Gráfico 05 -
Esfuerzo social (hogares e gobierno) em la educación
superior .............................................................................................. 54
Gráfico 06 -
Índice de crescimento das matrículas na educação
superior na América Latina (1994-2003)............................................. 60
Gráfico 07 -
Custo anual por aluno ......................................................................... 87
Gráfico 08 -
Percentual de alunos na educação superior segundo as
faixas de Renda Familiar .................................................................... 89
Gráfico 09 -
Projeção da taxa de escolarização no ensino médio ............................. 90
Gráfico 10 -
Número de vagas e ingressantes nas IES privadas............................... 91
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12
CAPÍTULO I : O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE IUS........................ 20
1.2 As Assembléias e o Programa Comum I................................................................ 23
1.3 As origens e as transformações históricas das Instituições Salesianas de
Educação Superior - IUS ....................................................................................... 28
1.4 A expansão da IUS e as políticas para a educação superior.................................... 41
CAPÍTULO II: A CONCEPÇÃO DE IDENTIDADE CONFESSIONAL
SALESIANA DEFINIDA PELA REDE IUS................................... 61
2.1 A confessionalidade: o caráter católico e salesiano na educação superior no
Documento de Brasília 1995 ................................................................................. 61
2.2 A Carta Circular “Por Vós Estudo”: identidade, qualidade e profissionalização................................................................................................................... 80
2.3 O Documento Identidade: Projeto Institucional, Identidade e Gestão ..................... 93
CAPÍTULO III: O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO E A
AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE................................................. 104
3.1 A categoria internacionalização........................................................................... 104
3.2 A concepção de internacionalização para a Rede IUS no Documento de
Brasília................................................................................................................ 110
3.3 A internacionalização e a identidade no Documento “Políticas para as
IUS”.................................................................................................................... 114
3.4 Gestão, identidade e internacionalização no Plano Comum II .............................. 135
CONCLUSÕES ......................................................................................................... 139
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 143
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como objetivo analisar de que forma o processo de
constituição e internacionalização da Rede das Instituições Salesianas de Educação
Superior (IUS) contribui para a afirmação da identidade confessional salesiana. Os
objetivos específicos são: a) verificar como ocorreu o processo de implantação da Rede
IUS e b) identificar qual é a concepção de identidade confessional católica salesiana
expressa pela Rede IUS.
Pretende-se responder ao seguinte problema: o processo de internacionalização
das Instituições Salesianas de Educação Superior contribui para a afirmação da identidade
confessional salesiana?
Pode a Rede Internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior, em
seus princípios políticos, estratégicos e operativos, oferecer uma alternativa para fortalecer
e salvaguardar os valores e a identidade de suas afiliadas como instituições comunitárias,
filantrópicas, católicas e salesianas a fim de assegurar a sua identidade institucional?
Esse processo de busca de solidez institucional, com reafirmação dos valores
católicos e salesianos, é um processo novo – de construção da identidade – ou é um
processo de retomada e de revisão do próprio ideário universitário salesiano? Afinal, quais
as razões da instauração desse processo?
Estas perguntas nos fazem retomar, em forma de pesquisa, com base nessa
problemática específica da educação superior confessional salesiana, os estudos sobre as
políticas educacionais para a educação superior e suas relações com as IUS, bem como a
produção acadêmica sobre as universidades comunitárias, confessionais e filantrópicas,
procurando analisar o processo de implantação da Rede Internacional das Instituições
Salesianas de educação superior e sua contribuição – ou não – para a afirmação da
identidade católica e salesiana.
13
Essa temática de pesquisa tem relevância também para a compreensão da própria
Universidade na qual se desenvolve esta Dissertação de Mestrado e o Programa de
Mestrado ao qual se vincula, apresentando elementos que podem ajudar a identificar os
aspectos que coexistem, interagem ou se confrontam na dialética do ambiente universitário
salesiano. É relevante para o autor na medida em que representa um momento reflexivo
sobre a instituição à qual pertence e também sobre os dez anos de sua atuação profissional
na educação superior salesiana, possibilitando a verificação empírica de como ocorre a
implementação das políticas educacionais do atual momento histórico no interior das
instituições e de como elas se corporificam na configuração das instituições salesianas de
educação superior.
Ressalta-se que o objeto aqui explicitado vincula-se diretamente à Linha de
Pesquisa Políticas Educacionais, Gestão da Escola e Formação Docente, especificamente
aos estudos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de
Educação Superior (GEPPES), do Programa de Mestrado em Educação da UCDB.
O processo histórico da internacionalização da educação superior inicia-se com a
própria índole da universidade como centro de produção do conhecimento que recebe de
diversas partes do mundo tanto alunos como mestres para desenvolver programas e
projetos de estudos, debates e pesquisas. É o que se observa na antiguidade clássica em
cidades como Atenas, Rodes e Alexandria que se constituíam como centros culturais de
referência e contavam com movimento de professores e alunos que intercambiavam
experiências e conhecimentos (MANACORDA, 1989, p. 9-70). Entre os séculos XII e XIII
o movimento de professores e alunos intensifica-se com a criação das primeiras
universidades européias que procuram responder às demandas de formação da nascente
classe burguesa. Destaca-se, nesse sentido, o movimento dos mestres vacantes e as ordens
religiosas dominicana, jesuíta e franciscana em torno das quais se organizam as primeiras
universidades européias (MANACORDA, 1989, p 140-181). Durante os séculos XVII e
XVIII as universidades sistematizam as trocas de professores e alunos. Esse processo
culmina com a celebração de acordos e programas governamentais de intercâmbio cultural,
especialmente no período pós-guerra na Europa visando a reconstrução dos países e o
restabelecimento dos laços culturais e econômicos.
Nos países periféricos do capitalismo a internacionalização ocorre inicialmente
com os estudantes desses países que buscam as universidades européias e norte-americanas
14
para sua formação e também por meio da qualificação de professores que encontram nas
universidades européias e americanas a possibilidade de realizarem cursos de pósgraduação e também participarem de programas de intercâmbio em projetos de pesquisa e
cursos.
Outro aspecto importante nesse processo de integração entre países centrais e
periféricos ocorre na década de 1970 quando muitos países latino-americanos recebem
assessoria de universidades européias e americanas que visam o desenvolvimento das
universidades e a criação de novos programas e campos de conhecimento.
Não obstante, a intensificação do processo de internacionalização na educação
superior, na última década do século vinte, estrutura-se no interior dos blocos econômicos
e dos organismos multilaterais que acompanham e dirigem a transnacionalização,
procurando estabelecer um modelo cosmopolita de educação superior:
A década de 90 é marcada pela transnacionalização político-econômica
mundial, com a formação de megablocos. Subjacente a tal panorama,
consubstanciado prioritariamente em acordos econômicos de integração,
paira uma proposta de internacionalização dos sistemas de ensino
superior dos países que compõem estes megablocos. Tal proposta, com
diferenciados graus de relações, objetiva a construção de um modelo
cosmopolita de ensino superior (Kerr, 1990) voltado a um mundo onde
estudantes e professores estudem o que almejam, sem referência a uma
nacionalidade específica, e tenham a possibilidade de produzirem e de
trocarem conhecimentos. (MOROSINI, 1998, p. 23).
Dessa maneira, o cenário central deixa de ser as universidades e transpõe-se para
o âmbito político, comercial e financeiro. Nesse sentido destaca-se a Declaração da
UNESCO de 1998 que estabelece a cooperação internacional no âmbito da educação
superior como uma meta a ser perseguida pelas nações em vista do aprimoramento
intelectual e cultural das mesmas e da redução das diferenças tecnológicas, de qualificação
e formação com o objetivo de diminuir as barreiras que impedem a integração dos países
ao processo de globalização. É também importante nesse contexto ressaltar o debate em
torno da nova visão sobre a educação superior: constitui-se como um direito dos cidadãos
ou como um serviço a ser explorado comercialmente no mercado internacional?
O posicionamento dos blocos econômicos dos países centrais tende a ser, em
relação aos países periféricos, utilizando-se da solidez de suas instituições universitárias, o
de oferecer a educação superior no mercado internacional como um serviço e, assim,
15
alcançar dividendos que tornem o financiamento desse nível de educação menos custoso
em seus próprios países e, simultaneamente, como fonte de lucro. Essa visão corrobora-se
no documento “Acordo Geral do Comércio de Serviços” (1995) da Organização Mundial
para o Comércio.
Do ponto de vista da relevância social, esta pesquisa traz à tona a problemática da
atual crise do capital, após a grande fase de expansão que se iniciou no pós-guerra com
suas repercussões para a Educação Superior Confessional Salesiana e, no seu interior,
pretende analisar os caminhos que as IUS estão desenvolvendo a fim de se verificar as
contradições presentes nesse processo de se construir e se consolidar, frente aos desafios
do mercado e do capital, das reformas educacionais patrocinadas pelos agentes financeiros
mundiais e do conseqüente surgimento de “um novo modelo de universidade mundial –
neoprofissional, heterônoma, operacional e empresarial/competitiva” (SGUISSARDI,
2005, p. 5), a sua proposta de educação superior.
A fundamentação metodológica da pesquisa foi baseada na abordagem qualitativa,
priorizando a análise documental. Isso porque a constituição da Rede IUS é um processo
institucionalizado que corrobora na elaboração de documentos que têm força de mando, de
cunho deliberativo e que, portanto, repercutem no campo da gestão, administração,
impostação e definição institucionais de cada uma das IUS. Esse movimento
institucionalizado prevê a implantação de planos de trabalho, com ações muito bem
definidas nos documentos chamados de Programas Comuns. A análise desses Programas
Comuns e suas conseqüências para a prática institucional das IUS revelam-se como
imprescindíveis para o entendimento do processo de construção da Rede IUS e suas
políticas.
A análise documental realizada referiu-se, portanto, a fontes documentais
primárias, de caráter oficial, produzidas ao longo dos anos de criação, implantação e
implementação da Rede IUS, isto é, desde 1995, quando se encontra o primeiro registro
documental oficial dos inícios da Rede, até 2007, ano estabelecido como limite para o
período de análise. Classificam-se essas fontes em primárias e oficiais porque constituem
um conjunto de documentos emanados dos órgãos institucionais oficiais da Rede e da
Congregação Salesiana e porque fornecem informações diretas das vicissitudes históricas,
políticas, administrativas e ideológico-filosóficas primordiais para sua compreensão
16
A análise documental compõe-se não somente das fontes, mas também dos
critérios de seleção e análise das mesmas para poder se compreender o objeto de pesquisa,
sendo que a sua escolha e o seu tratamento prévio são o primeiro passo da pesquisa
documental (RODRÍGUEZ, 2004, p. 6). Por isso, dentre as fontes documentais
disponíveis, tendo-se em vista o problema de pesquisa levantado, a concepção e
abordagem que se pretende da Rede IUS, realizou-se a seleção daquelas que constituíram o
corpus documental da pesquisa (RODRÍGUEZ, 2004, p. 10).
Foram eleitos como documentos para a análise o “Encontro de Brasília”, realizado
em 1995; o Diagnóstico (2001), que apresenta um balanço situacional na visão do
coordenador do processo de construção da Rede IUS, Pe. Carlos Garulo; O “IUS Report”
(2001), documento que perfaz um Censo das IUS no mundo, com dados relevantes para o
entendimento de suas iniciativas, origens, número de alunos, situação financeira, cursos,
atividades de extensão e de pesquisa entre outros; o documento “Identidade das IUS”
(2003) que apresenta as concepções de educação superior, confessionalidade e gestão das
IUS; “Políticas para as IUS” (2003) que traz uma série de estratégias que visam alavancar
as instituições para atingir o ideal traçado na “Identidade das IUS” (2003); e o Programa
Comum II (2003) que se caracteriza por ser um plano de gestão estratégica organizado em
torno de alguns eixos fundamentais para a administração das atividades da Rede IUS.
Também foram analisadas algumas cartas e pronunciamentos do Reitor-Mor da
Congregação Salesiana: “Carta Circular de Oito de Dezembro de 1997” (ACG 362, 1998,
p. 90); “Carta Circular Por Vós Estudo” (ACG 361, 1997, p. 2). O Reitor-Mor é a
autoridade máxima das IUS responsável pelo governo mundial de todas as atividades,
obras e instituições de educação mantidas pela Congregação Salesiana.
Sublinha-se que o conjunto formado pelos documentos Diagnóstico, IUS Report,
Identidade e Políticas para as IUS forma o Marco Referencial das IUS e seu processo de
construção foi resultado de um primeiro programa de ação conjunta de todas as IUS – por
isso mesmo denominado Programa Comum I.
Selecionados e classificados os documentos, procurou-se realizar uma leitura
prévia dos mesmos e, em seguida, uma leitura reflexiva que permitissem uma compreensão
mais adequada da Rede IUS e o estabelecimento de categorias de análise
(RODRÍGUEZ,2004, p. 7-8). Esse processo corroborou na construção de um quadro de
categorização por meio do qual se classificou o conteúdo de cada uma das fontes
17
documentais. Desta forma procedeu-se à análise utilizando-se categorias que pudessem
ajudar na compreensão e explicitação do objetivo da pesquisa bem como na construção da
resposta ao problema levantado. Priorizaram-se as categorias identidade, gestão e
internacionalização, como capazes de fazer vir à tona as contradições, os sentidos e
idiossincrasias inerentes ao processo de construção da Rede IUS.
Dada a centralidade da categoria identidade para o problema levantado nessa
dissertação, requer-se esclarecer que “significa examinar as características próprias, os
traços comuns delineadores” (BITTAR, 1999, p. 88) que a Rede IUS assume como
concepção para sua atuação na educação superior, ressaltando-se que entre essas se destaca
a confessionalidade católica e salesiana em suas vertentes religiosa, ética e pedagógica.
Concebe-se também que a construção da Identidade e sua afirmação são processos
históricos marcados pela tensão instaurada devido às diferenças e contradições inerentes à
dinâmica de seus diversos elementos ao longo do desenvolvimento concreto da Rede IUS
em cada uma de suas afiliadas (BITTAR, 1999, p. 89-90).
A identidade é construída e delineada nos princípios institucionais e confessionais
totalizantes. Porém a identidade é um processo em construção (BITTAR, 1999, p. 226)
quando se refere à maneira como será interpretada, construída e afirmada pela Rede IUS
no âmbito da educação superior católica e no âmbito da historicidade das instituições e das
políticas para a educação superior. Por isso considera-se que a Identidade não está definida
aprioristicamente. Não é metafísica, mas histórica e, logo, passível de ser analisada. Não é
atributo psicológico, mas institucional, pois se refere a um modelo estruturante que
transparece em concepções e valores de uma cultura organizacional a partir dos quais as
instituições estabelecem uma dialética com o contexto em que estão inseridas, retratando
uma experiência histórica específica.
Por isso na análise levou-se em conta o contexto das políticas internacionais para
a educação superior erigidas em tempos de mundialização do capital e da globalização
como fenômeno cultural, social e também político-econômico. Em outras palavras,
considera-se na análise o processo histórico e suas vicissitudes como fundamentais para o
entendimento das ações, opções, projetos e concepções adotados na constituição da Rede
IUS. Nesse sentido emergem temas como a democratização do acesso; a privatização da
educação superior; a formação de conglomerados financeiros que exploram serviços
educacionais; o estabelecimento da profissionalização das instituições e empresariamento
18
da educação superior; a cultura de avaliação e a formação de padrões de qualidade e de
internacionalização entre outros.
Com base no material analisado, estruturou-se a dissertação em três capítulos: o
Primeiro Capítulo “O Processo de Implantação da Rede IUS” analisa como se deu esse
processo e quais seus principais momentos e decisões. Destarte são colocados três tópicos
principais que demonstram o desenrolar do processo: a) as Assembléias e o Programa
Comum I, centrando a análise nos documentos “Diagnóstico” e “IUS Report”; b) as
origens históricas das IUS, traçando um rápido panorama de seu desenvolvimento,
procurando relacionar esse movimento com as políticas de expansão do setor privado na
educação superior como uma tendência mundial; e, c) a expansão das IUS e a políticas
para a educação superior que visa a verificar como ocorre a aproximação entre essas
instituições e as políticas adotadas, explicitando as contradições que ocorrem no processo,
especialmente colocando a problemática e também as estratégias adotadas para firmar a
identidade confessional.
O segundo capítulo “A Concepção de Identidade Confessional Salesiana Definida
pela Rede IUS” analisa a concepção da identidade católica salesiana construída pelas IUS no
interior de três documentos: a) o “Documento de Brasília” de 1995; b) “Carta Circular do
Reitor Mor” Pe. Juan Edmundo Vechi intitulada “Por Vós Estudo”, de 1997; c) Documento
“Identidade das IUS”, de 2001. Analisa-se cada um desses documentos, explicitando como
eles abordam a concepção da identidade confessional e suas relações com a educação
superior. Ao mesmo tempo em que se procurou traçar o perfil confessional da Rede IUS
também se buscou demonstrar a concepção de educação superior que a Rede assume.
O terceiro capítulo “O Processo de Internacionalização e a Afirmação da
Identidade” estabelece um vínculo de análise entre o que a Rede IUS faz em termos de
estratégias e políticas adotadas para a internacionalização e como as agências
internacionais e os blocos econômicos tratam desse tema, procurando-se apontar aspectos
coincidentes entre as escolhas da Rede IUS e as políticas mais amplas de
internacionalização da educação superior e as repercussões desse processo para a
afirmação da identidade confessional.
Por fim procurou-se ressaltar algumas “Conclusões” que foram se delineando ao
longo dos três capítulos, tendo como referência o processo de globalização, as políticas
para a educação superior e a temática da Identidade, da Gestão e da Internacionalização,
19
sublinhando um ponto de análise central: a dialética entre a construção da identidade e as
estratégias para sua afirmação e o contexto sócio-econômico e cultural que tem como
ponto de inflexão as políticas para a educação superior oriundas do processo de
mundialização do capital.
A Banca de Exame de Qualificação indicou diversos aspectos que precisavam ser
melhor elaborados, contribuindo para que o trabalho aprofundasse a análise das categorias
e do referencial teórico. Acatou-se no corpo do trabalho a sugestão da Banca, que apontou
a necessidade de trazer dados que melhor caracterizassem as instituições salesianas, sua
quantidade, sua distribuição nos países e seu perfil institucional. A temática da
internacionalização foi ampliada por meio da utilização de bibliografia que analisa a sua
formatação no contexto norte americano, europeu e latino-americano. Isso enriqueceu a
análise que até então estava muito focada no contexto brasileiro. A categoria identidade
salesiana carecia de diferenciações para se delinear a sua posição no contexto católico. Por
isso foram acrescidos documentos da Igreja Católica que possibilitam a apreciação das
orientações e do pensamento católicos sobre a educação superior e de como a educação
superior salesiana se relaciona com essas exigências emanadas do Magistério da Igreja
Católica. Procurou-se conferir um tom mais pessoal às conclusões, explicitando nelas o
pensamento do autor após as análises e dados apresentados no corpo da dissertação. Desse
modo, pretende-se que, após o desenvolvimento desta pesquisa, o estudo possa contribuir
para adensar as reflexões dos pesquisadores da área, em especial do GEPPES/UCDB.
CAPÍTULO I
O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE IUS
Denomina-se Rede IUS ou Rede Internacional das IUS a formação de um
conglomerado internacional composto pelas Instituições Salesianas de Educação Superior
(IUS) que são ligadas à Igreja Católica, mais especificamente à Congregação Salesiana,
associação religiosa católica fundada pelo sacerdote italiano João Bosco na primeira
metade do século dezenove e que tem como missão principal atuar na educação formal e
informal da juventude. Este capítulo tem como objetivo analisar os principais momentos e
o processo de decisão que corroborou na criação da Rede IUS. Nesse sentido destacam-se
a atuação do Reitor Mor da Congregação Salesiana Padre Juan Edmundo Vecchi; a
realização das primeiras assembléias (1995, 1998, 2001), a definição do Programa Comum
I (1998) e a instauração de um amplo processo de conhecimento da realidade situacional de
cada uma das Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) que culmina com a
construção do documento “IUS Report” (2001) e do “Diagnóstico” (2001), fundamentais
para a compreensão das origens, desenvolvimento e expansão das IUS. O capítulo objetiva
ainda estabelecer um paralelo entre o processo de criação e expansão dessas instituições e a
decisão de implantar uma Rede IUS com as recentes tendências para as políticas de
educação superior.
1.1 As orientações do Reitor Mor e sua contribuição para a implantação da Rede IUS
Em Carta de oito de dezembro de 1997 (Atos do Conselho Geral – ACG, 362,
1998, p. 90) dirigida aos Inspetores e respectivos Conselhos Inspetoriais e aos Salesianos
que trabalham nas Instituições Salesianas de Educação Superior, o Reitor Mor Padre Juan
21
Edmundo Vecchi, em consonância com o Conselho Geral, instituiu junto à Direção Geral
“um serviço em vista das Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS”. Em outras
palavras, esse ato significava que o Dirigente Máximo da Sociedade Salesiana chamou
para a si a responsabilidade imediata de coordenar mundialmente as linhas gerais de
trabalho e orientações das Instituições de Educação Superior da Congregação, nomeando,
para esse fim, o Padre Carlos Garulo, da Espanha, como Delegado do Reitor Mor para as
Instituições Salesianas de Educação Superior.
O Reitor Mor explicita, nessa Carta, os objetivos desse serviço: realizar um estudo
da situação das Instituições Salesianas de Educação Superior, com levantamento de dados,
análises e conclusões, já que a Congregação não possuía dados consolidados sobre sua
atuação no campo da educação superior; definir, por parte do Reitor Mor e do Conselho
Geral, a política geral da Congregação nesse campo e emitir orientações autorizadas para
todas as Instituições Salesianas de Educação Superior que, até então, funcionavam
isoladamente, isto é, sem um projeto comum de atuação e sem orientações orgânicas sobre
a Identidade Confessional da Congregação; dar início a um projeto de colaboração
internacional entre as Instituições Salesianas de Educação Superior; Orientar e acompanhar
as Inspetorias responsáveis pelas IUS (Ibid,1998, p.90).
Esse ato formal do Reitor Mor Padre Juan Edmundo Vecchi representou a
convergência de um processo de reflexão estratégica sobre a presença da Congregação na
Educação Superior. Um dos momentos importantes desse processo foi a Primeira
Assembléia das Instituições Salesianas de Educação Superior realizada em Brasília de 12 a
14 de agosto de 1995. Dessa Assembléia emanou documento final apresentando as
motivações para a presença da Congregação na educação superior, as oportunidades de
evangelização e formação da juventude que esse nível de ensino proporciona; os riscos que
devem ser evitados e as necessidades a ser atendidas como, por exemplo, o planejamento
adequado das instituições. Nesse documento menciona-se, pela primeira vez, a criação de
uma associação internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior. Também
transparece nele a preocupação com a identidade salesiana.
Outra nota presente ao longo dessa reflexão que antecede a criação do serviço
para as IUS é a qualificação dos salesianos para atuarem no campo educacional. O mesmo
Padre Juan Edmundo Vecchi expressa em termos orgânicos a necessidade, as áreas
prioritárias e os desafios que a cultura moderna e o mundo intelectual e científico exigem
22
em termos de preparação para o adequado exercício do trabalho educativo que a
Congregação é chamada a realizar:
Especifiquei no discurso conclusivo do CG24 a dimensão concreta do
investimento preferencial para a formação. “Investir quer dizer
estabelecer e manter prioridades, garantir condições, operar segundo um
programa que coloque em primeiro lugar as pessoas, as comunidades, a
missão. Investir em tempo, em pessoal, em iniciativas, em recursos
econômicos para a formação é tarefa e interesse de todos”. (ACG 361,
1997, p.9).
Na mesma Circular, o Reitor Mor dedica uma atenção especial às IUS. Realça,
por um lado, a necessidade de se preparar os salesianos para atuarem nesse campo
educativo, já que até então a formação dos salesianos, de modo geral, estava voltada para a
atuação pastoral ou para a atuação em escolas de educação básica, pois os planos da
Congregação não consideravam a educação superior como um campo inerente à sua
missão educacional.
Por outro lado, o Reitor Mor estabelece como prioridade “[...] traçar com maior
clareza a identidade e a orientação desses centros” (ACG 362, 1998, p. 90). Em duas
passagens o Reitor Mor aponta a necessidade da Direção Geral da Congregação
acompanhar e coordenar essa nova frente de missão:
Essa é uma frente de missão relativamente nova e, portanto, a ser
acompanhada, coordenada e clarificada. Será preciso elaborar um
encaminhamento autorizado (o Projeto para as universidades salesianas,
como plataforma declarativa da inspiração fundamental), promover o
diálogo e o intercâmbio entre essas instituições e acompanhar o caminho
das Inspetorias nessa nova experiência. A obtenção dos objetivos
salesianos deverá ser garantida também nos estatutos. (ACG 362, 1998,
p. 90).
Na segunda passagem, o Reitor Mor aponta os motivos da preocupação da
Direção Geral para com as IUS, frisando as repercussões institucionais:
Queremos acompanhar a partir do Conselho Geral, com particular
atenção, o desenvolvimento da presença salesiana nesta fronteira, que
apresenta desafios não indiferentes do ponto de vista institucional, dos
destinatários, dos colaboradores, da economia e, sobretudo, do projeto,
mas que pode ser extraordinariamente fecunda para a evangelização da
cultura e para uma presença particular no mundo da educação. (ACG 362,
1997, p. 92).
23
Nos anos que se seguiram – 1998 a 2003 - foram realizadas três conferências
internacionais das IUS, denominadas “Assembléias das IUS”, que objetivavam constituir
marcos de referência explicitados em documentos de identidade, de políticas e de ações
estratégicas e operacionais que visavam à sua efetiva consolidação num projeto
globalizado da Congregação, garantindo unidade de identidade e de políticas, colaboração
internacional em rede para a consecução de padrões de qualidade e de significatividade das
IUS e uma política de gestão embasada nos valores educacionais da Congregação. Por
meio dessas iniciativas pretendeu-se efetivar as orientações do Reitor Mor expressas na
Carta de Instituição do Serviço para as IUS (1998).
A percepção da necessidade de se definir esses marcos de referência surgiu como
resultado da prospecção realizada por meio do documento “IUS Report” (2001) e,
anteriormente, pelo próprio Reitor Mor acompanhado do Conselho Geral da Congregação.
Tanto o Reitor Mor e o Conselho Geral como os dirigentes de cada IUS percebem que o
contexto exige sistematização, profissionalização e atuação conjunta para a continuidade
das atividades da Congregação na educação superior.
1.2 As Assembléias e o Programa Comum I
A Primeira Assembléia das IUS foi realizada, como citado anteriormente, em
Brasília, de 12 a 14 de agosto de 1995. Ela antecede o desencadeamento institucional –
formalizado – da criação da rede IUS. Foi baseado nessa primeira Assembléia, e sob sua
influência, que o Reitor Mor decidiu criar o serviço do Delegado do Reitor Mor para as IUS.
A segunda Assembléia foi realizada em Roma, de 10 a 13 de julho de 1998.
Dedicou-se a constituir os primeiros objetivos do trabalho em comum e a definir a
metodologia desse trabalho. Ali se estruturou o método de construção do “IUS Report”
(2001) e do “Diagnóstico Situacional” (2001) das IUS no mundo e a construção dos
documentos “Identidade” (2003) e “Políticas” (2003).
A terceira Assembléia foi realizada em Roma, de 13 a 17 de julho de 2001. Nela
foram apresentados o “IUS Report” (2001) – ou “Dossiê IUS” (2001) – e o “Diagnóstico”
(2001) situacionais das IUS. Foram votados e aprovados os documentos “Identidade”
(2003) e “Política” (2003), posteriormente encaminhados para aprovação do Reitor Mor e
do Conselho Geral.
24
O “IUS Report” (2001) ilustra, em suas 320 páginas, um quadro panorâmico de
informações sobre as IUS no mundo. É estruturado em dez capítulos precedidos por uma
apresentação do Padre Carlos Garulo, Delegado do Reitor Mor para as IUS. O primeiro
capítulo faz um breve histórico das IUS, apresenta seu desenvolvimento, as razões de seu
surgimento, seu status legal e institucional, a missão tal qual declarada em seus
documentos e classificação das mesmas. O segundo capítulo apresenta as atividades
acadêmicas: as áreas e tipificações do ensino, a pesquisa – tipos e campos; a produção
científica e a extensão. O terceiro capítulo caracteriza os alunos quanto ao número,
distribuição nos cursos e condição econômico-social. O quarto capítulo trata dos recursos
humanos: professores, corpo administrativo e salesianos. O quinto capítulo relata a infraestrutura física disponível e os serviços de apoio. O sexto capítulo elenca as relações
externas das IUS: entre as IUS, com outras universidades ou centros de Educação Superior
e com instituições não universitárias. O sétimo capítulo traça o perfil econômico-financeiro
das IUS. O oitavo capítulo descreve as práticas de administração e gestão das IUS. O nono
capítulo analisa como é vivenciada a avaliação interna e externa das IUS. O décimo
capítulo explicita as relações entre as IUS e suas respectivas mantenedoras – as Inspetorias
Salesianas.
Entende-se que é importante para a compreensão da envergadura do conjunto das
IUS e de suas atividades, a sua caracterização institucional, os países em que estão
implantadas, trazendo dados que perfazem o status quo dessas instituições. É a primeira
vez que a Congregação procede a um levantamento de dados dessa natureza.
O Delegado do Reitor-Mor para as IUS, Padre Carlos Garulo, no documento
“Diagnóstico” (2001) apresentou sua análise de cada um dos pontos levantados nos dez
capítulos do “IUS Report” (2001) e, também, aponta as tarefas que deverão ser enfrentadas
por todos naquele início dos trabalhos de construção da Rede Internacional das IUS.
Praticamente encontra-se nesse documento, de forma embrionária, todo o processo que
seria instaurado com o objetivo de imprimir solidez para a Rede IUS. Destaca-se, a título
de ilustração, sua posição em defesa da necessidade de sistematizar a especificidade
salesiana na universidade quanto aos objetivos, fins e estilo; a insistência sobre a
edificação de um projeto institucional que contemple essa especificidade e a busca de uma
bem fundamentada qualidade institucional no que é próprio de uma Instituição de
Educação Superior.
25
A quarta Assembléia foi realizada em Roma, de 9 a 13 de julho de 2003. Nela foi
estabelecido o Programa Comum II, de cunho operativo, uma vez que as assembléias
precedentes haviam definido a situação, a identidade e as políticas, tratava-se, agora, de
estabelecer objetivos e linhas de ação com vistas a operacionalizar o marco referencial
construído. Esse Programa constitui-se em torno de três eixos estratégicos: primeiro, criar
uma plataforma humana fundada sobre a identidade, para operar nas instituições; segundo,
garantir os fundamentos das instituições: a carta de navegação, os recursos humanos e os
recursos humano-financeiros; terceiro, tecer relações setoriais entre as IUS e construir a
IUS-net.
O “IUS Report” (2001) consta de dez capítulos que são precedidos por uma
apresentação do Delegado do Reitor Mor para as IUS, conforme relato anterior. É um
conjunto vasto de dados e informações que perfazem a realidade interna e externa das IUS
no mundo. A orientação para sua elaboração partiu do Programa Comum I elaborado
durante o II Encontro das IUS em 1998 que destacou como um de seus objetivos o
levantamento da situação das IUS por meio de uma sólida e adequada metodologia que
proporcionasse uma documentação fiel à realidade complexa em que se encontram as
diversas IUS, que fosse profissional e profunda, desenvolvida de tal maneira que pudesse
colaborar para o estabelecimento de uma cultura de avaliação entre as IUS.
Abrange as instituições que são da Congregação Salesiana, as que têm
participação societária da Congregação e as que são apenas administradas pela
congregação. Persegue esse objetivo tendo duas referências importantes diante da
complexidade da tarefa, a fim de não se desorientar: é um dossiê para uso da Congregação
que deseja manter-se coerente às finalidades próprias da Educação Superior – que assumiu
como um dos campos de sua atuação – e à sua Missão Apostólica Evangelizadora (IUS
Report, 2001, p. 7).
Em sua apresentação, o Delegado do Reitor Mor para as IUS frisa, entre as
dificuldades encontradas para a elaboração do Dossiê, a ausência do hábito de sistematizar
informações e dados entre as IUS, o fato de ser a primeira vez em que essa tarefa é
empreendida, a inexperiência dele e da equipe de colaboradores (Ibidem, 2001, p. 7).
Ainda na apresentação o Delegado apresenta o caminho utilizado para a
elaboração desse Dossiê, os instrumentos utilizados para a coleta de documentos, dados e
informações disponíveis e a classificação da documentação coletada. Essa explanação
26
metodológica é imprescindível para a posterior análise desse documento, facilitando sua
compreensão e o conseqüente entendimento da realidade das IUS (Ibidem, 2001, p. 7-9).
Quanto ao caminho de elaboração, o ponto de partida foram os objetivos do Reitor
Mor na Circular de criação do serviço para as IUS e os emanados do Programa Comum I.
Os instrumentos para coleta de dados foram submetidos à apreciação prévia das IUS,
visando alcançar o máximo envolvimento de cada uma das instituições e o aprimoramento
dos instrumentos. Seguiu-se a aplicação dos instrumentos e verificação dos dados
coletados para garantir a fidedignidade. Os dados foram sistematizados em tabelas
temáticas e procederam-se à sua leitura, análise e interpretação. Redigiu-se o Dossiê e,
baseado nele, elaborou-se um Diagnóstico das IUS, ressaltando-se seus pontos fortes e
fracos e traçando-se, em linhas gerais, possíveis trajetos de curto, médio e longo prazos
(IUS Report, 2001, p. 8).
Quanto aos instrumentos de coleta de dados, são sete, e Padre Carlos Garulo os
agrupa em três categorias, tendo como critério a natureza de cada um deles: a primeira
categoria de instrumentos é composta pelo formulário de coleta de dados sobre as IUS e foi
respondido por 98% das instituições. A segunda categoria de instrumentos compõe-se de
cinco formulários e versam sobre a avaliação interna e externa das IUS. Os primeiros três
voltaram-se para os membros da comunidade acadêmica: professores, corpo administrativo
e estudantes; o quarto formulário foi aplicado aos inspetores salesianos; o quinto
formulário foi aplicado aos reitores, sendo idêntico ao formulário aplicado aos inspetores,
possibilitando uma comparação entre os pontos de vista interno e externo às instituições
sobre as mesmas questões (Ibidem, 2001, p. 8).
É importante sublinhar que o Programa Comum I foi delineado e aprovado na II
Assembléia das IUS em 1998 e programado para os anos 1998 a 2002. Consistiu
principalmente na elaboração do Marco de Referência das IUS composto dos documentos
“Identidade” (2003), “Políticas” (2003), “IUS Report” (2001) e “Diágnóstico” (2001),
sendo, portanto, que avaliação de seus dirigentes e participantes é de suma importância
para estabelecer o alcance e também as percepções dos membros das IUS sobre o processo
em andamento.
A terceira categoria de instrumentos consiste nas visitas empreendidas pelo
Delegado do Reitor Mor às instituições salesianas no mundo. Essas visitas ocorreram no
período de 1999 a 2001. Foram visitados 86% das IUS em dezoito países de três
27
continentes – América, Europa e Ásia. Os objetivos das visitas foram, segundo o Padre
Carlos Garulo, conhecer as pessoas e as instituições, seus projetos e problemas; estimular a
sinergia – cooperação; tornar conhecido o processo instaurado a partir da criação do
serviço para as IUS por parte do Reitor Mor.
Além do corpo principal, o Dossiê é complementado pelo Diagnóstico, tabelas de
dados e alguns anexos. O Delegado do Reitor Mor enfatiza em sua apresentação do “IUS
Report” (2001) que o mesmo “apenas descreve a situação das IUS a partir da coleta de
dados, sem nenhum julgamento, e constitui a base do Diagnóstico, com a garantia de
procurar a maior objetividade possível, sendo consciente de que nunca será totalmente
objetivo e completo” (IUS Report, 2001, p. 90). Procurar-se-á justamente, na análise desse
documento, entender os sentidos e o porquê de sua constituição, seus limites e intenções,
bem como a sua utilização e objetivos a que serviu nesse processo de internacionalização
das IUS.
O Diagnóstico é um documento de análise do conteúdo do Dossiê. É de autoria do
Delegado do Reitor Mor, Padre Garulo, e apresenta seu ponto de vista sobre as forças e
fraquezas das IUS que foram detectados com base nos dados do Dossiê. É um texto breve,
de vinte páginas. Percorrendo cada um dos capítulos do Dossiê, o texto apresenta
comentários, análises, aponta possíveis caminhos de ação e indica tarefas que devem ser
assumidas.
Nele transparece uma avaliação positiva das IUS, mas chama atenção para a
necessidade de um novo modo de proceder, mais sistematizado, orgânico e planejado a fim
de se constituir a especificidade do carisma salesiano no modo de conduzir a Educação
Superior. Registra também que não basta a riqueza de informações trazidas pelo Dossiê:
“[...] há que se chegar a um diagnóstico valorativo da situação” (Diagnóstico, 2001, p. 3).
Na elaboração de sua “tentativa de construir um diagnóstico”, o Delegado do Reitor Mor
segue dois critérios: “pensar em termos de Congregação”, o que significa pensar em termos
do conjunto das IUS e ter “[...] diante dos olhos um quadro de referência universitário e
salesiano suficientemente completo, isto é, não perder de vista o esquema temático que
apresenta o ‘IUS Report’” (Diagnóstico, 2001, p. 3).
Além de trabalhar sobre os pontos fortes e fracos das IUS, o Diagnóstico procura
também indicar os pontos nevrálgicos e estratégicos para que a presença salesiana na
Educação Superior seja significativa (Diagnóstico, 2001, p. 4).
28
A análise desse documento tem importância para a pesquisa na medida em que
explicita a visão do líder executivo na implementação da Rede IUS. A análise de seu ponto
de vista com certeza trará colaboração importante para saber o que foi priorizado e o que
foi deixado em segundo plano nesse processo. Antes de se voltar para a análise dos
significados dos documentos produzidos pela Rede IUS, é importante caracterizar a origem
e a evolução históricas dessas Instituições.
1.3 As origens e as transformações históricas das Instituições Salesianas de Educação
Superior - IUS
A Sociedade de São Francisco de Sales – ou Congregação Salesiana, sediada em
Roma, mantém em diversas partes do mundo 43 Instituições de Educação Superior. Essas
instituições nasceram da atividade educacional da Congregação, fundada em 1864 pelo
sacerdote católico italiano João Bosco. A Congregação Salesiana tem como missão a
educação da juventude, principalmente das classes populares. Para realizar esse objetivo, a
Congregação dedicou-se primordialmente à organização do trabalho educativo no interior
das escolas profissionais, internatos, colégios de educação básica e média e os
denominados oratórios que oferecem serviços de educação religiosa ao lado de atividades
lúdicas para ocupar o tempo livre da juventude em um ambiente humano e cristão de
qualidade.
Ao longo de suas primeiras décadas de fundação, a Congregação foi expandindo
sua presença pelo continente europeu e, em seguida, para as Américas, Austrália, Ásia e
África, de tal maneira que a Congregação no início do século vinte já desenvolvia suas
atividades nos cinco continentes, assumindo uma dimensão mundial.
Até o ano de 1934 suas atividades restringiam-se às escolas básicas e secundárias,
à educação profissional, às atividades educativas religiosas, catequéticas e lúdicas,
abrangendo crianças e jovens compreendidos na faixa etária de até dezoito anos. Nesse
período, as atividades no campo da educação superior diziam respeito apenas à formação
dos próprios quadros da Congregação, isto é, cursos seminarísticos de Filosofia e Teologia
destinados à formação dos candidatos ao sacerdócio, bem como a formação pedagógica
e/ou técnica dos seus membros leigos, ou seja, não ordenados.
29
O ano de 1934 representou um marco de mudança nesse contexto. Os salesianos
chegaram à Índia em 1922, liderados pelo Padre Louis Mathias. Apenas doze anos mais
tarde – 1934 – fundaram a primeira instituição salesiana de educação superior em Shillong,
denominada “St Anthony’s College”. Essa iniciativa representou um fato novo,
posicionando os salesianos da Índia na vanguarda dos trabalhos educacionais da
Congregação. Dessa forma anteciparam-se aos salesianos dos países ocidentais já mais
estabelecidos e estruturados (Diágnóstico, 2001, p. 12).
Inicialmente, as atividades do St Anthony’s College estavam voltadas para a
formação dos seminaristas da Congregação, porém com uma novidade: os cursos foram
reconhecidos pelas instâncias educacionais da Índia com títulos de cursos de educação
superior uma vez que o St Anthony’s College foi credenciado nos órgãos oficiais para este
fim. Pouco a pouco esse College foi expandindo suas atividades para diversas áreas
acadêmicas, aumentando seu número de alunos abrindo suas portas para os jovens da
região (IUS Report, 2001, p. 15).
Com a mesma finalidade inicial de formar os jovens salesianos, em 1938 os
salesianos fundaram um novo College, em Sonada, na fronteira com o Nepal. Em 1940 os
salesianos de Turim, por iniciativa do Reitor Mor, estabelecem o Pontifício Ateneu
Salesiano que em 1973 é transformado na Pontifícia Universidade Salesiana.
Observa-se que o objetivo inicial das instituições salesianas de educação superior
é de formar os quadros da Congregação. Em seguida ocorre a expansão das atividades e da
abrangência de cursos e alunos. Partindo dessas três primeiras instituições, a presença
salesiana na educação superior vai se transformando, passando por diversas etapas de
crescimento.
Tal crescimento é mais acelerado nas últimas três décadas do século vinte. De
1935 a 1940 surgem os primeiros três centros elencados acima. Na década de 1950, surgem
três novas instituições: Tirupattur, Índia; Lorena, Brasil; Bahia Blanca, Argentina.
Portanto, de 1935 a 1950 o número passa a ser de seis instituições. Na década de 1960 são
acrescentadas mais seis instituições, passando a ser doze. Entre 1971 e 1980 mais seis são
criadas, elevando o número total a dezoito. Na década de 1980 a 1990 são fundadas oito
novas instituições, chegando a vinte e seis o número total. De 1991 a 2000 dezessete
instituições são criadas, contabilizando quarenta e três instituições (IUS Report, 2001, p.
23).
30
No gráfico a seguir, pode-se observar o surgimento dessas instituições ao longo
das décadas e seus percentuais de crescimento em cada uma delas. Percebe-se que o maior
crescimento percentual ocorre da década de 1980 para a década de 1990, sessenta e cinco
por cento. Logo após o gráfico encontra-se uma tabela descritiva com os nomes e
localização de cada instituição, distribuídas nos continentes.
31
Gráfico 01
Fonte: IUS Report, 2001, p. 300.
32
Quadro 01
Fonte: IUS Report, p. 105.
33
O crescimento acelerado dessas instituições é uma das razões alegadas nos
documentos “IUS Report” (2001) e “Diagnóstico” (2001) para que a Congregação
desencadeie um processo de análise e conhecimento desse fenômeno no conjunto de suas
obras e atividades. O crescimento é “excessivamente rápido” em duas frentes: número de
instituições e número de alunos. Trata-se de um desenvolvimento precário, “[...]com
freqüência sem fundamentos suficientes de projeto, de recursos humanos e econômicos”
(Diagnóstico, 2001, p. 5). Ao acusar essa precariedade institucional, o Diagnóstico chama
a atenção para a necessidade de um futuro desenvolvimento organizacional por meio da
gestão adequada. Em relação aos alunos, o grande número deles nas instituições quebra
uma das características do método educacional da Congregação: a atenção e o
conhecimento personalizados do aluno.
A precariedade refere-se também à inexperiência da Congregação no campo
universitário diante das exigências específicas da educação superior e a consideração dos
recursos humanos e econômicos disponíveis para fazer frente às exigências desse campo.
Os dois documentos enfatizam que, entre as características desse crescimento, ressalta-se
que ele não foi planejado nem pelo núcleo central da Congregação, nem pelas províncias
nacionais ou regionais da Congregação:
Este fenômeno ocorreu de uma maneira tão espontânea e isolada que até
o momento da elaboração deste informe não se teve conhecimento
generalizado do mesmo na Congregação, nem tão pouco de suas reais
dimensões. Nossa conclusão comprovada é que não houve de fato
nenhum planejamento e previsão por parte do governo central da
Congregação, nem tão pouco regional-interinspetorial, e, às vezes, nem
sequer local-inspetorial. (Diágnóstico, 2001, p. 5).
Não
houve,
portanto,
nenhuma
coordenação
nem
organicidade
no
desenvolvimento dessas instituições. Mais ainda, afirmam os mesmos documentos, até
então havia um desconhecimento e falta de dados sistematizados sobre essas instituições e
sobre esse fenômeno novo na Congregação:
Diante desse fenômeno tão particular devemos nos perguntar: qual a
razão para o deslocamento das atividades educacionais salesianas dos
níveis primários e secundários para o nível superior? É resposta a algum
projeto coordenado ou a um plano geral anteriormente estabelecido?... A
partir dos dados utilizados no Relatório temos que concluir que nem no
governo central nem nos governos nacionais e regionais houve qualquer
planejamento para a coordenação desse desenvolvimento. Ainda mais,
34
durante muito tempo houve um desconhecimento desse fenômeno e de
suas dimensões (IUS Report, 2001, p. 17).
A precariedade do desenvolvimento refere-se, portanto, à falta de planejamento e
gestão adequados às atividades da educação superior. Não obstante, é preciso notar que até
então, o modo de proceder da Congregação para essa área como para as demais atividades
nunca foi centralizado no sentido de uma política única nem em termos de planejamento.
Houve sim, nos avanços territoriais da Congregação pelo mundo sempre uma organização
de seus projetos missionários e de evangelização. Porém não há uma tradição de
planejamento minucioso com escalonamento dos tipos de instituições a serem criadas nos
locais onde esteja presente. Essas são frutos das interações entre a própria experiência da
Congregação e as sociedades onde estão situadas. Portanto a observação do “Diagnóstico”
(2001) como do “IUS Report” (2001) que acusam falta de planejamento e
desconhecimento central sistemático sobre a realidade das IUS refere-se não só às IUS,
mas também a outras áreas da Congregação e revelam um modo de proceder
descentralizado onde as comunidades regionais e locais possuem certa autonomia em seu
modo de se organizar, mesmo localmente.
Em outras palavras, planejamento e articulação mundial, em termos de
administração sistemática para todas as operações e estratégias da Congregação, na
educação superior ou em suas atividades mais antigas, nunca de fato existiram. Trata-se de
uma novidade trazida por essa iniciativa de constituir a Rede das Instituições Universitárias
Salesianas – Rede IUS, sendo essa a primeira experiência da Congregação em termos de
estabelecer e constituir, em suas atividades, um padrão administrativo orgânico de cunho
internacional. O modo de proceder até então foi sempre de unidade em termos de
princípios maiores como o Sistema Preventivo que caracteriza o método pedagógico da
Congregação e a Espiritualidade que dá a maneira de vivenciar o cabedal religioso da
Congregação em sua atuação educacional e de evangelização.
O avanço quantitativo dessas instituições, ainda que não planejado, demonstra
mudança e exige um reposicionamento nos trabalhos educacionais da Congregação. Até então
a educação superior era um campo desconhecido para os Salesianos tradicionalmente voltados
para a educação básica e profissional da juventude. Após quase um século de trabalhos
educacionais nesse último campo, a Congregação muda e amplia seu perfil de atuação.
35
Cabe ressaltar que essas instituições são muito variadas em termos de organização
administrativa universitária. Existem universidades, faculdades afiliadas a universidades,
faculdades isoladas e instituições que oferecem estudos de caráter superior, mas não conduzem
a títulos universitários reconhecidos. Sob a sigla IUS – Instituições Universitárias Salesianas,
reúnem-se, portanto, instituições de diferentes status acadêmicos e, de certa forma, o termo
IUS é inapropriado nesse sentido. Porém, o que se desejou com a adoção dessa nomenclatura é
o de reunir todas as instituições mantidas pela Congregação a fim de se conferir a elas uma
identidade internacional e empreender o que se traçou no Programa Comum I: constituir a
Rede Internacional das IUS e direcionar um processo amplo de reflexão e planejamento. Sobre
essa complexidade e também essa dicotomia interna assim se manifesta:
O termo IUS é usado para designar um conjunto de instituições
diferenciadas pelo nível de estudo que oferecem e pelos títulos
acadêmicos que conferem: algumas, estudos superiores ou universitários
com os títulos correspondentes; outras, estudos terciários não
universitários. O uso de certa maneira forçado e até incorreto desse termo
pode criar confusão; porém é justificado por uma razão pragmática: como
um ponto de partida pra iluminar uma realidade complexa, desconhecida
em seu desenvolvimento internacional. Por isso decidiu-se ser melhor não
excluir nenhuma instituição acadêmica que trabalhe com níveis
superiores de educação cujo desenvolvimento e realização normalmente
se dá em uma universidade (IUS report, 2001, p. 19).
Esses termos requerem algumas explicações: as universidades, compreendidas em
termos clássicos, compõem 11 instituições; as faculdades afiliadas a universidades estão
ligadas e subordinadas a uma universidade, via convênio, e são 23. Essa figura jurídica não
existe no Brasil, mas no total das IUS elas possuem grande peso, pois perfazem cinqüenta
e três por cento do seu total. As faculdades isoladas formam uma personalidade jurídica
exclusiva do Brasil e são quatro. As instituições de estudos terciários ou superiores que não
conduzem a títulos reconhecidos são as mais difíceis de compreensão. O “IUS Report”
(2001) assim se manifesta sobre esse grupo:
As instituições de nível terciário não-universitário formam o menor
grupo: cinco no total. Quatro delas são centros de estudos com carreiras
particularmente centradas na formação de professores, porém não
exclusivamente. A quinta é um instituto técnico de nível superior. (IUS
Report, 2001, p. 21)
36
Dessas cinco instituições de nível superior não universitárias, quatro estão
localizadas na Argentina e uma no Peru. Nota-se que não há menção à figura dos Centros
Universitários, exclusividade do Brasil. Mesmo assim a Congregação mantém no Brasil
dois desses: um com sede em Americana, estado de São Paulo, e outro com sede em Lins,
também em São Paulo. Registra-se que o Centro Universitário de Americana está contado
entre as onze universidades, certamente porque possui autonomia e também desenvolve
pesquisa, tendo Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu.
Nos gráficos que seguem, podemos observar como as IUS dividem-se em cada
uma das categorias. Predomina instituições de educação superior que não são
universidades. Pode-se também verificar que sua maioria está localizada nos continentes
em desenvolvimento especialmente América do sul e central, que possuem o maior
número, e Ásia.
37
Gráfico 02
Fonte: IUS Report, 2001, p. 301.
38
Essa distribuição revela que as IUS são marcadamente instituições que estão fora
do conceito tradicional de universidade. Apesar da existência de onze universidades, a
predominância é de faculdades isoladas, uma vez que se entende o termo “faculdades
afiliadas” designador de instituições semelhantes às faculdades isoladas conhecidas no
Brasil. Isso acaba por condicionar o desenvolvimento de tais instituições do ponto de vista
acadêmico clássico, especialmente em termos de pesquisa e extensão. Não obstante, há que
se reconhecer que é considerável o número de universidades propriamente ditas, comprometidas, portanto, com a construção do conhecimento em termos clássicos de ensino,
pesquisa e extensão. Porém, nem todas essas universidades realizam pesquisa. Duas delas,
perguntadas se realizam ou não pesquisa, responderam que não (IUS Report, 2001, p. 32).
Como essas universidades é que liderarão o processo de constituição da Rede das
Instituições Universitárias Salesianas, a sua atuação direcionará a constituição da Rede
especialmente em relação à definição do marco de referência, onde são explicitados os
fundamentos e concepções definidores das IUS. Prevalecem nesses os termos tradicionais
do tripé universitário. Se por um lado é positiva a postura da Rede IUS em definir sua
concepção de educação superior baseada no ideal da universidade que constrói o
conhecimento indissociável do ensino, pesquisa e extensão, por outro lado essa postura
demandará grandes esforços para superar a lacuna entre o ideal proposto e a realidade
institucional dado pela composição da Rede IUS.
Apesar das dificuldades, existem elementos propícios uma vez que, mesmo não
sendo todas as IUS, trinta e uma delas declararam realizar pesquisa; apenas nove não a
realizam (entre elas as duas universidades!); 64% realizam pesquisa em áreas definidas
pela instituição o que demonstra a existência de pesquisa institucionalizada, o que é
positivo; além dessas, dez realizam pesquisa também em áreas de livre escolha de seus
pesquisadores e seis realizam pesquisa somente em áreas de livre iniciativa dos
pesquisadores (IUS Report, 2001, p. 32-33; 191).
As pesquisas realizadas nessas IUS dividem-se em três categorias: pesquisa
aplicada, pesquisa pura e pesquisa de divulgação, voltada para a demonstração de resultados de atividades de extensão ou ligadas a trabalhos sociais. 93,55% realizam pesquisa
aplicada; 32,26% fazem pesquisa de divulgação; 25,8% realizam pesquisa pura. Essa
classificação da pesquisa não é suficientemente clara, porém é como se encontra no “IUS
Report” (2001). Não é informado quais pesquisas são ligadas a programas de pós-
39
graduação, se estão ligadas a projetos mais amplos e como estão organizadas em termos de
grupos. O campo de pesquisa mais frequente é a Educação, pois 42% das instituições
realizam pesquisa na área. Os aspectos abordados vão desde as teorias e sistemas
educacionais aos aspectos sociais da educação como também pedagogia e didática. Outro
campo de destaque é o da sociologia abordando aspectos gerais ou comunidades
específicas: comunidades rurais, indígenas, juventude e comunidades marginalizadas (IUS
Report, 2001, p. 33).
Outro campo de atividade acadêmica a se verificar é o da extensão. Vinte e nove
das 43 IUS realizam atividades de extensão. Destas, 23 realizam atividades definidas
previamente pela instituição sendo, portanto, atividades institucionalizadas e projetadas.
Quatro realizam atividades de livre iniciativa dos promotores e cinco combinam atividades
previamente definidas e de livre iniciativa. As atividades são relacionadas aos cursos e
ligadas aos seus currículos ou são mais voltadas para as necessidades das comunidades
locais ou regionais. São desenvolvidas para atender instituições civis, eclesiásticas ou
públicas ou para atender as comunidades. As iniciativas mais expressivas são as de cunho
social que visam estabelecer intervenções para atender demandas de comunidades carentes
via formação e treinamento (IUS Report, 2001, p. 34-35).
É necessário analisar também as informações a respeito da produção científica,
uma vez que ela está intimamente ligada tanto à pesquisa, primordialmente, como também
à extensão, como divulgação. No “IUS Report” (2001) encontra-se dados sobre esse item.
Em primeiro lugar assim manifesta-se sobre a definição da produção científica: “por
produção científica entendemos periódicos científicos, livros, artigos e conferências
publicadas ou proferidas por professores e, ainda, eventos culturais e científicos
promovidos pelas instituições acadêmicas” (IUS Report, 2001, p. 35). Sete das IUS
possuem periódicos científicos, perfazendo um total de 43 periódicos. 53% deles iniciaram
sua circulação entre os anos de 1995 e 2000. Destaca-se que se trata do período de
instalação da atual política de avaliação que exige produtividade dos pesquisadores e
instituições, sendo, portanto, reflexo dessa política. A área de maior ocorrência é
provavelmente a Educação, com 11 periódicos na área. Outros assuntos abordados são
Direito, Filosofia, Lingüística e Literatura, Sociologia, Educação Física e Espiritualidade
Salesiana. Quanto aos livros, artigos e eventos, o IUS Report traz informações sobre 28 das
43 IUS. Entre os anos 1997 e 1999 a produção de livros cresceu 50%, passando de 111
40
para 169 títulos. No mesmo período, apesar dos dados não serem confiáveis, a produção de
artigos em periódicos especializados cresceu 13% e a realização de eventos culturais e
científicos cresceu 42% (IUS Report, 2001, p. 35).
Com base nesses dados, pode-se afirmar que a Rede IUS, mesmo não se
compondo de universidades em sua maioria, realiza atividades de pesquisa e de extensão
expressando sua tentativa de construção mais global do conhecimento ainda que de forma
incipiente e também possui relativa produção científica. Pode-se então afirmar que mesmo
sendo, por uma parte, resultado da política de privatização da educação superior, as IUS
distanciam-se da visão mercantilista da educação procurando perseguir o desafio de
construir o conhecimento de forma global, não visam lucro, mas sustentabilidade de suas
instituições e procurando manter seus princípios confessionais católicos.
Há que se considerar também que além de ser resultado de um esforço
institucional em busca de qualidade, reconhecimento e prestígio acadêmico de produzir
conhecimento, as atividades de pesquisa bem como a produção científica refletem, em seu
crescimento acentuado, as Políticas de Avaliação que exigem cada mais vez produtividade
de pesquisadores, cursos e programas sendo um dos critérios mais relevantes para
ranqueamento, credenciamento e reconhecimento de instituições bem como de sua
qualidade no contexto internacional. O “IUS Report” (2001) traz dados quantitativos sobre
a pesquisa como sobre a produção científica. Aspectos qualitativos como endogenia,
indexação de periódicos, classificação de eventos e avaliação dos mesmos pelas agências
nacionais ou internacionais, não são abordados.
Ainda em relação ao gráfico 02, observa-se que as universidades da Rede IUS
estão em sua maioria absoluta localizadas na América, nove; uma na Europa e uma na
Ásia. Não são universidades de países centrais e, portanto, não são protagonistas na
elaboração das políticas mundiais para a educação superior e também não estão entre as
universidades mundialmente mais reconhecidas por sua produção acadêmico-científica.
Por isso pode-se afirmar que tanto pela localização, já que em sua maioria as IUS estão nos
países periféricos, seja pelo perfil institucional, uma vez que a maior parte é composta por
instituições isoladas, a Rede IUS é definida por um perfil secundário no contexto
internacional e se insere nesse contexto com todas as conseqüências inerentes à sua
caracterização e às políticas construídas para a educação superior.
41
Isso não descrendencia as IUS. Muitas delas têm papel preponderante nas regiões
em que estão inseridas. Ao atribuir a essas instituições um papel secundário no contexto
global pretende-se chamar a atenção para as conseqüências de sua localização em países
periféricos e para pouca tradição das mesmas, visto que em sua maioria foram criadas ao
longo das duas últimas décadas. Trata-se, por isso, da constituição de uma rede de
instituições de educação superior presentes em sua maioria nos países periféricos, não
sendo centros de produção do conhecimento altamente especializado; são instituições
voltadas em grande parte para o ensino e a profissionalização e apenas uma pequena
parcela produz pesquisa e extensão.
1.4 A expansão da IUS e as políticas para a educação superior
O período em que se expandem as IUS coincide com o aprimoramento e a
execução das políticas privatistas para educação superior, especialmente para a sua
expansão nos países capitalistas periféricos. Essa expansão diversificou sistemas tanto do
ponto de visa da tipificação das instituições como também no que se refere ao aumento da
presença privada na educação superior. É o que acontece, por exemplo, no Brasil, como
conseqüência da política mundial para a educação superior construída em organismos
como UNESCO, BID, Banco Mundial e nos blocos econômicos como União Européia,
Alca, Mercosul, sendo que nas definições dessas políticas assumem a preponderância o
ponto de vista dos países capitalistas centrais defensores dos interesses do capital
internacional.
Nesse período, mais especificamente o compreendido entre os anos de 1996 e
2001, no Brasil ocorre a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pelo
Congresso Nacional – Lei 9394/1996. Os anos que se sucederam foram marcados pela
gestão do então Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, no governo do Presidente
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), atuando decididamente para a diversificação da
educação superior brasileira, com acentuada tendência de abertura para a iniciativa privada
de cunho empresarial, passando, esta, a deter o maior número de alunos e de IES.
Ao analisar os dados do Instituto Nacional Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), sobre número de matrículas e sua distribuição de acordo com a
natureza jurídica das instituições e confrontá-los com os dados fornecidos pela Associação
42
Brasileira das Universidades Comunitárias (ABRUC), Bittar (2006, p. 283), considerando
como “estritamente comunitárias” as filiadas à ABRUC, conclui que as instituições
comunitárias, confessionais e filantrópicas detêm apenas 14% do total de matrículas do
setor privado que, por sua vez, em seu conjunto, possui 70% do número de matriculados na
educação superior do Brasil, ficando o setor público com os 30% restantes.
Ristoff (2006, p. 39) também caracteriza o sistema de educação superior brasileiro
como “altamente privatizado”, indicando, a partir dos dados do Censo da Educação
Superior de 2004, que 90% das instituições que compõem o sistema são privadas. Os
números de 2005 confirmam a tendência: segundo dados do Censo da Educação Superior
de 2005, o Brasil conta com 2165 instituições de educação superior, sendo 231 públicas e
1934 privadas. Estas se subdividem em 1520 privadas empresarias e 414 privadas
comunitárias, confessionais e filantrópicas, das quais apenas 52 são filiadas à ABRUC
(INEP, 2005; ABRUC, 2005).
De ambas as análises conclui-se que a expansão do sistema de educação superior
ocorreu pela via privada empresarial e que as IES privadas comunitárias, confessionais e
filantrópicas propriamente ditas representam uma pequena parcela, a menor, do dito
sistema. Isto significa que a forte expansão do setor na década de 1990 é resultado de uma
política mercantilista para a educação superior, vista como um bem de consumo.
Outra marca na análise de Ristoff (2006, p. 40) é que o setor privado acabou por
seguir a via mais fácil à sua expectativa de lucro: as muitas instituições de educação
superior criadas na década de noventa são instituições isoladas, descomprometidas com a
pesquisa e, portanto, com uma visão incompleta de construção do conhecimento. Apenas
8,4% do sistema são constituídos por universidades. Configura-se, destarte, um “[...]
sistema de Ensino Superior centralizado, privatizado, diversificado, elitista e excludente,
aparentemente grande, mas extremamente pequeno para as dimensões do Brasil”
(RISTOFF 2006, p. 40). Essa análise coincide com o perfil da Rede IUS uma vez que seja
no Brasil seja no seu conjunto, a Rede IUS é constituída em sua maioria por instituições
isoladas e não por universidades, como analisou-se anteriormente, mesmo que a Rede IUS
assumirá o ideal da universidade em termos clássicos em seu marco de referência. É o que
se pode constatar no diagnóstico:
Mesmo as IUS que desenvolvem mais e melhor a pesquisa e a produção
científicas reconhecem que há muito a se fazer para adquirir níveis
aceitáveis de qualidade e para se destacar com identidade própria em
43
algum campo. A maior parte das IUS não se colocou seriamente a
questão da pesquisa e da produção científicas, dedicando todas suas
energias à docência e à transmissão de conhecimentos. Por isso
registramos o grande déficit das IUS no que, na melhor tradição da
universidade, representa sua primeira e mais genuína tarefa: a
investigação científica. (Diagnóstico, 2001, p. 10).
Não obstante essa inconsistência e imaturidade das IUS no campo da pesquisa,
analisou-se também que muitas delas realizam atividades nesse campo e que assumem a
concepção do tripé ensino, pesquisa e extensão para a realização da sua missão
educacional. Entrementes, configura-se um cenário extremamente mercantilista para a
educação superior, caracterizado pela alta concorrência entre as IES particulares, stricto
sensu, a desvalorização das universidades públicas e a instauração de uma crise entre as
IES confessionais, menos agressivas em suas iniciativas mercadológicas e comprometidas
com valores educacionais – dentre os quais destacamos a valorização do bem comum, a
construção da cidadania, o aperfeiçoamento da pessoa humana num projeto ético e integral
de formação e a construção do conhecimento - que não se limitam simplesmente à busca
de vantagens econômicas com a exploração do mercado educacional. O contexto delineiase, desta forma, muito adverso para a continuidade da proposta educacional de que as IES
confessionais são portadoras. Ao mesmo tempo em que as IUS beneficiam-se desse
movimento sentem também seu refluxo uma vez que se percebem inadequadas em suas
estratégias empresariais já que sua presença na educação superior possui outros fins que
não a formação de capital e lucro.
O movimento privatista-empresarial na educação superior liga-se ao contexto de
“mundialização do Capital”. Chesnais (1996, p. 12-15) indica essa fase como uma nova
configuração do capitalismo, com padrões próprios de acumulação e amplo poder para
definir todas as esferas da vida social, não só a econômica. Os fundos de capital, os títulos,
a liquidez imediata, a fluidez das aplicações globais e o triunfo do capital financeiro sobre
o produtivo são as notas principais dessa nova configuração dos padrões de acúmulo de
capital, juntamente com a formação de blocos econômicos, de grandes conglomerados
financeiros e empresariais. Observa-se, portanto, que a proposta de construção da Rede
IUS ocorre no momento dessa nova configuração do capital, isto é, no contexto da
“mundialização do capital”, de cunho financeiro, quando se assiste aos primeiros aportes
de capital de grupos interessados em constituir conglomerados econômico-educacionais.
44
A nota marcante desta tendência hoje hegemônica é a redução do Estado,
especialmente no que tange no sentido de garantir direitos sociais dos cidadãos, e o
abandono da concepção de Estado do Bem Estar Social, a fim de se ampliar o campo de
exploração econômica, criando-se novos mercados. O Estado passa a ser um órgão
regulador das atividades do mercado, incorporando todas as funções de agente promotor do
desenvolvimento e do bem-estar dos cidadãos, ou melhor, consumidores-clientes, regidos
pela lei da oferta e da procura. Neste âmbito, antigos direitos, segundo Chauí (apud
SGUISSARDI, 2004, p.1), passam a ser tratados como serviços a serem ofertados pelo
mercado e consumidos pelos cidadãos-clientes. Entre eles a educação.
Na avaliação de Sguissardi (2004, p. 2), uma série de aparatos jurídicos e
contratuais é posta em funcionamento para garantir um novo relacionamento entre a
sociedade, o Estado e a universidade, a fim de garantir a preponderância dos meios de
produção e dos interesses mercadológicos na definição dos rumos e modelos de concepção
da universidade. Novamente acontece uma reforma universitária empreendida não do
interior da universidade, não a partir dos sujeitos que a compõem, mas imposta pelo
capital. Destarte, aquilo que era direito, que era público, passa a ser serviço, passa a ser
privado. Por isso Sguissardi (2004) caracteriza esta concepção de universidade como
“neoprofissional, heterônoma e competitiva”: a universidade absorve as características do
mercado e passa a servir a seus interesses e necessidades.
Oliveira (2002, p. 27) analisa, por exemplo, como os interesses do mercado
influenciam a escolha e a predominância de áreas e temas de pesquisa dentro da
universidade, ocorrendo o detrimento de temas talvez irrelevantes para o capital, mas
primordiais para a promoção e alargamento das bases sociais e culturais. Assim, os
interesses do capital moldam o tipo de ciência que é construído em uma universidade que
é, neste cenário, predominantemente um agente instituído pelo mercado e que, a partir da
concepção da teoria do capital humano, visa não a constituição de cidadãos e de uma
sociedade humanizada, mas simplesmente a produção de mão-de-obra qualificada, capaz
de alimentar as estruturas produtivas do mercado. Esse processo, segundo Oliveira (2002,
p. 32ss), determina as relações entre os cientistas, a produção do conhecimento, sua
avaliação e a sua circulação e usufruto. Tudo na universidade passa a ser concebido em
termos de mercadoria e não como bens culturais de acesso universal.
45
Salmeron (2002, p. 5) frisa muito bem que esta pressão pela mercantilização da
educação superior é global e está sendo gestada e consolidada no âmbito dos organismos
internacionais chamados de multilaterais, mas que na verdade assumem e defendem os
interesses dos países centrais. Dentre estes, assume um papel fundamental o Banco
Mundial. Uma das estratégias desse banco e de seus aliados é, segundo Ianni (1997, p. 3035), a satanização do sistema educacional público, que visa retirar-lhe a credibilidade e
instaurar uma nova ordem que induz à privatização, profissionalização e à concepção da
universidade em termos de administração, racionalidade financeira e administrativa e a
serviço do tecnicismo, sem um horizonte humanístico maior. Nos acordos e rodadas de
negociação da Organização Mundial do Comércio (OMC), a educação está sendo
concebida como um serviço por pressões de grupos financeiros que desejam ampliar suas
atividades educacionais para os países emergentes, pois sendo a educação uma mercadoria
ou serviço, deixa de ser um direito dos cidadãos e uma responsabilidade do Estado para ser
uma atividade a se explorar economicamente.
Nesse sentido pode-se afirmar que a existência das IUS é conseqüência das
políticas públicas gestadas internacionalmente e assumidas pelos Estados nacionais,
especialmente os periféricos, que nas últimas décadas, devido ao processo de globalização,
precisaram atender a demanda por educação superior por conta da necessidade de
qualificação de mão de obra exigida por um novo paradigma de produção: o conhecimento
como fator econômico decisivo.
A expansão das IUS e o seu perfil composto preponderantemente como
instituições isoladas voltadas mais para o ensino do que para a produção do conhecimento
é conseqüência dessa política global de expansão da educação superior pela via privada
com vistas a não onerar o Estado, criando-se, inclusive, instrumentos e formas para a
exploração econômica dessa demanda. Porém, mesmo inseridas nesse processo, as IUS
pretendem ser portadoras de uma proposta e de uma concepção singulares de educação
superior capazes de diferenciá-las do movimento privatista e capitalista em curso. É essa
pretensão que estará na base da decisão de constituir a Rede IUS como fator de
manutenção e fortalecimento da identidade católica e salesiana num processo dialético com
o contexto mais amplo das políticas educacionais globais bem como diante da nova
realidade da mundialização econômico-social.
46
Na dialética desse processo, enfrentarão um desafio relevante para suas
pretensões: localizadas em países do “terceiro mundo”, as IUS colocam-se o objetivo de
atender a demanda por educação superior, focando-se na juventude das classes menos
favorecidas. Porém esse objetivo traz muitos desafios e contradições uma vez que a busca
de qualidade nos serviços educacionais gera custos muito altos e a falta de recursos dessas
classes, impedem que de fato aconteça a meta proposta, a não ser de maneira marginal, isto
é, a juventude das classes populares acabam sendo presença menor entre os alunos. Os
dados socioeconômicos dos alunos demonstram isso, conforme gráfico 03. O próprio
Diagnóstico reconhece esta situação de contradição:
Cremos que alguns projetos institucionais das IUS são impossíveis ou ao
menos difíceis de realizar por conta de suas utopias, isto é, projetos a
favor das classes sociais desfavorecidas em países pobres e que se
propõem ofertar serviços acadêmicos de qualidade que têm sempre altos
custos. Isso leva ao fracasso a iniciativa ou à frustração da Congregação
como instituição promotora se tais projetos são redirecionados, para sua
sobrevivência, para as classes mais abastadas. (Diagnóstico, 2001, p.7).
47
Gráfico 03
Fonte: IUS Report, 2001, p. 310.
48
Pelos dados dos alunos no gráfico 03, o que acaba acontecendo é justamente o
redirecionamento dos projetos para classes mais favorecidas economicamente. Por isso, se
ao longo da sua história a Congregação logrou atender as classes populares,
predominantemente de operários, em suas escolas profissionais e escolas de níveis
primário e secundário, bem como através de suas atividades religiosas nas paróquias em
que está presente, o mesmo não está acontecendo em suas instituições de educação
superior, ao menos na mesma intensidade.
Pode-se observar no gráfico que no conjunto das IUS o público de estudantes
provém, em sua maioria, das “classes média e média baixa”1 que somam 86% do alunado.
Se no conjunto ambas as classes possuem igual percentual de participação (43%), nas
regiões continentais há pequenos deslocamentos que retratam o posicionamento das IUS:
na América, o público predominante está com a classe média (52%) e média alta (5%) que,
somadas, ocupam 57% do alunado, caracterizando um público elitizado. A classe média
baixa detém 32% dos alunos e a classe baixa 11% . A presença maior das classes baixas
ocorre na Ásia onde 62% dos alunos são da classe média baixa e 15% da classe baixa,
perfazendo um total de 77% do alunado, frente a uma participação de apenas 23% de
alunos da classe média. Já na Europa a predominância está com a classe média que ocupa
50% do alunado das IUS. Porém, essa presença da classe média é menor que a observada
na América onde essa classe ocupa 52% do alunado. O perfil europeu só é mais elitizado
devido à presença da classe alta que participa com 10% do alunado. Não obstante, as IUS
da Europa conseguem atender 40% de alunos da classe média baixa enquanto as da
América atendem 32%. Considerando-se os contextos diferenciados, pode-se notar certa
distorção no perfil dos públicos atendidos nos dois continentes. Não obstante, conclui-se
que as IUS mantêm a tendência das escolas católicas e particulares de tradicionalmente
atender as camadas média e alta da sociedade.
Com base nesses dados, pode-se compreender que no processo de constituição da
rede IUS, uma das necessidades sentidas por essas instituições é a de redefinir sua
identidade e seus objetivos para buscar uma adequação entre o que estão realizando e os
ideais proclamados e também definir claramente qual o seu papel no conjunto das obras da
Congregação, a fim de que as dicotomias sejam dirimidas.
1
Convém registrar que o “IUS Report” não traz uma explicação que esclareça os critérios de definição para
as classes sociais.
49
Entretanto, é preciso notar também que as IUS procuram, de diversas formas,
atender e favorecer alunos de menor poder aquisitivo. No período de 1997 a 1999, foram
destinados pelas 43 instituições cerca de nove milhões de dólares americanos em
incentivos aos alunos de baixa renda. Desse montante, 90,67% provêm de receitas próprias
e o restante de fontes externas. As formas de distribuição variam entre bolsas, estágios
remunerados e descontos em mensalidades. As IUS das Américas são as que mais
oferecem bolsas e incentivos aos seus alunos, muitas delas motivadas por isenções fiscais
ligadas à filantropia, como é o caso do Brasil (IUS Report, 2001, p. 70-72).
Essas iniciativas demonstram que as IUS têm que lidar constantemente com os
ganhos necessários para a sua sustentabilidade e também com a atenção aos seus alunos
preferenciais, das classes populares. Demonstra também a pouca margem de manobra que
possuem para atender a demanda das juventudes dessas classes. Explicita, ainda, a forma
como atende a classe de poder aquisitivo mais baixo: especialmente por meio das bolsas de
estudos.
No gráfico 04 fica evidente o ponto fraco das IUS quanto ao problema do
financiamento: as fontes principais de financiamentos advêm das taxas acadêmicas vindas
dos alunos, isto é, mensalidades. E os montantes são expressivos, devendo os alunos
possuir poder econômico suficiente para arcar com os custos. Na verdade as IUS são
dependentes exclusivamente das mensalidades pagas pelos alunos. Os demais itens da
receita são irrelevantes. Observando o gráfico e considerando-se os dados do IUS Report,
para 14 das IUS as mensalidades correspondem a mais de 90% de suas receitas. Para sete
outras o percentual é um pouco menor, mas não deixa denotar dependência: varia entre
88,52% e 67,25% (IUS Report, 2001, p. 67).
50
Gráfico 04
Fonte: IUS Report, 2001, p. 319.
51
Dez das IUS sobrevivem de fontes externas advindas de recursos públicos,
doações de agências de auxílio financeiro e fundos da própria Congregação, no caso de se
tratar de IUS voltadas para a formação dos novos quadros de religiosos da Congregação
Salesiana. Das trinta e duas IUS que responderam ao IUS Report sobre a situação
financeira, 15 declararam possuir alguma receita advinda de serviços prestados a terceiros
sendo que a receita obtida varia entre 2% a 17,78% da receita total. E mais: das 14 IUS que
se autofinanciam em mais de 90% com as mensalidades dos alunos, apenas seis declararam
obter alguma receita com serviços prestados a terceiros. Um dado preocupante é a
estagnação da participação desse último item na composição da receita, indicando que no
período avaliado, não se tem buscado alternativas para a dependência exclusiva das
mensalidades e também alijamento de professores e alunos do sistema de produção (IUS
Report, 2001, p. 67).
Essa dependência das mensalidades assume um ponto crítico na medida em que
põe as IUS na impossibilidade real de atender classes menos favorecidas como proclamam
em seus ideais e, por outro lado, a configuração de um cenário mercantilista para a
educação superior que tende atualmente para o empresariamento, inclusive com a
formação de sociedades anônimas exploradoras desses serviços globalmente, trazem sérios
riscos para a sobrevivência dessas instituições que, apesar do crescimento indicado,
começa a sentir, especialmente no Brasil, o esgotamento do ciclo expansionista e já
acumula altos índices de ociosidade de vagas e decréscimo nas receitas.
Os dados de receita que se referem ao período de 1997 a 1999, auge do
movimento de expansão, são positivos e indicam variação de superávit entre 11,50% e
30% (IUS Report, 2001, p. 66). São margens positivas, mas pequenas e acrescente-se que
no período analisado pelo IUS Report (2001) houve instituições com índices ainda
menores, variando entre 1,31% e 5,86% o que revela prejuízos. Há casos isolados, duas
instituições, em que o superávit atinge 50% (IUS Report, 2001, p. 65-66). É importante
notar que nesse período três quartos da receita total de todas as IUS provieram das IUS das
Américas cuja maioria absoluta está na América Latina, região onde as políticas de
privatização têm sido mais agressivas e, ao mesmo tempo, região que possui maiores
índices de exclusão da educação superior e também de precariedade econômico-social
(IUS Report, 2001, p. 65).
52
Comparando as receitas com as despesas inerentes às atividades acadêmicas,
mesmo num cenário ainda positivo, 11 IUS apresentam uma folha de pagamento que
ultrapassa 70% da receita, o que é preocupante. O restante trabalha com uma folha de
pagamento que consome em torno de 65% e 50% da receita. Outros itens importantes de
despesa como pesquisa e extensão são menores, refletindo já certo comprometimento da
receita com outros itens tais como manutenção, investimentos em equipamentos e
construções. As despesas com pesquisa consomem, na média, não mais que 7% da receita.
Há um caso isolado de gastos em torno de 20% da receita (Universidade Católica de
Brasília). Investimentos em extensão são ainda menores: atingem uma média de 4% da
receita. Há um caso isolado de gastos acima de 14% da receita – também Universidade
Católica de Brasília (IUS Report, 2001, p. 69-70). Esses números indicam que, se em um
cenário favorável, as receitas são comprometidas principalmente com folha de pagamento,
restando pouco para atividades de pesquisa e extensão, a tendência é de se desenhar um
quadro crítico nos momentos desfavoráveis. Uma vez que a Rede IUS pretende assumir
perfil de educação superior entendida em termos clássicos da universidade que produz
pesquisa e extensão, esse equilíbrio financeiro tende, de fato, a ser quebrado. Pode-se
afirmar, portanto, que a Rede IUS não possui lastro financeiro suficiente para empreender
a implantação de um modelo de educação superior que projete suas instituições no campo
da pesquisa, a menos que se encontrem outras fontes de financiamento para esse projeto.
No caso do Brasil, que experimentou forte expansão na educação superior privada
durante a década de 1990, os momentos desfavoráveis já se fazem sentir. Se a década de
1990 foi de expansão, agora se tem um refluxo desse movimento que perdeu fôlego devido
à incapacidade de pagamento de mensalidades por parte das classes menos favorecidas.
Essa situação se expressa nos números do sistema de Educação Superior brasileiro:
conforme dados do INEP, o setor privado é responsável por noventa por cento de todas as
IES do país. Na análise de Ristoff (2006, p. 39), o sistema “é altamente privado, situandose, na verdade, entre os mais privados do mundo”, como demonstra a tabela que compara a
participação do setor privado em alguns países, indicando o Brasil com maior participação:
53
Tabela 02
Fonte: Braga, 2005, p. 62.
Ristoff (2006, p. 45) indica, ainda, que esta estruturação do sistema dá sinais de
esgotamento e inviabilidade. As vagas oferecidas pelo setor privado estão com alto índice
de ociosidade, em torno de quarenta por cento, e as novas levas de alunos do ensino médio
vêm de famílias com baixa renda. Portanto, a democratização de acesso e a expansão do
sistema deixados a cargo do mercado revelaram-se falaciosos e ineficazes, já que, segundo
dados do próprio INEP, apenas 10,4% dos jovens entre dezoito e vinte e quatro anos estão
freqüentando a educação superior, o que denota o caráter elitista do sistema e sua
incapacidade de absorver as camadas mais carentes da população. Às distorções de
concepção e modelos institucionais adotados, somam-se as de caráter excludente, privando
o país de “um forte sistema de educação superior” (BRASIL, PNE, p. 92). Como afirmava
Martins (1987, p. 45), “a expansão pela privatização nada tem a ver com uma real
democratização”.
A complexidade e diversidade do sistema fortemente privatizado, que
experimenta o seu esgotamento, instauraram uma exarcebada competição entre as
instituições, especialmente entre as de fins lucrativos, empresas educacionais propriamente
ditas. Segundo Bittar (2002, p. 51-64), assiste-se a uma “verdadeira guerra” entre as
instituições na busca por alunos: “a educação superior transformou-se num grande
supermercado, em cujas prateleiras produtos e serviços disputam a atenção e o desejo dos
consumidores”. Os materiais de campanha publicitária e os dados apresentados pela autora
indicam a apresentação da educação superior com características de produto a ser
adquirido pelos alunos, considerados clientes, vistos como fonte de lucro pelos
proprietários do ensino; indicam, ainda, o forte crescimento do setor empresarial que
molda os cursos de forma a atender suas expectativas financeiras.
54
Nesse ambiente, as instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais
procuram apresentar-se como um modelo alternativo de ensino: “o segmento das
instituições comunitárias busca também estratégias que visam demonstrar para a sociedade
que suas instituições são uma alternativa de ensino, pois oferecem ao aluno uma formação
humanista, fundada em princípios éticos da cidadania e da consolidação da democracia”
(BITTAR, 2002, p. 53). Apesar dessa postura, as IUS brasileiras não deixam de sentir as
conseqüências desse cenário.
Não obstante o Brasil apresentar os maiores índices de privatização e uma das
menores taxas de escolarização líquida na educação superior entre os países da América
Latina, a problemática da qualidade, do financiamento e da inclusão não é exclusividade de
seu sistema de educação superior: abrange também os demais países da região, ainda que
de formas diferenciadas. O gráfico seguinte mostra a evolução das matrículas no conjunto
da América Latina e Caribe e deixa patente que a expansão mais acentuada ocorreu via
setor privado.
Gráfico 05
55
Em recente entrevista, Alberto Dibbern, membro do Conselho de Administração
da UNESCO – IESALC e Secretário de Políticas Universitárias da Argentina afirmou:
Não há dúvida de que o principal desafio da educação superior em nossa
região é a inclusão. Nesses anos muitos países iniciaram políticas que
possibilitam melhores índices, entretanto, salvo raras exceções, os
resultados não são ainda os que desejamos. A universalização na
Venezuela, a regionalização no Brasil, o programa de bolsas na
Argentina, as políticas de articulação na Colômbia são alguns exemplos
dessas políticas. Porém persiste o desafio de uma real melhoria dos
índices não só em termos de inclusão, mas também de qualidade e de
percentual de concluintes em relação aos ingressantes... Como medida
para os próximos dez anos, creio ser fundamental garantir a qualidade do
sistema, com relevância e compromisso social, sistemas de bolsa e maior
abrangência territorial. (Boletim IESALC n. 183, 2009).
Essa afirmação de Dibbern está fundamentada na primeira diretriz do Plano de
Ação da Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES
2008) que estabelece: “Promover a expansão da cobertura na Educação Superior, tanto em
estudos de graduação como de pós-graduação, com qualidade, relevância e inclusão social”
(Plano de Ação CRES 2008, p. 2). Para a implementação dessa meta, o Plano de Ação
CRES 2008 recomenda aos governos:
Incrementar a cobertura com padrões de qualidade adequados, até
alcançar a meta de 40% até o ano 2015, levando em consideração que a
cobertura bruta média para a região é atualmente de 32% e a média dos
países desenvolvidos é de 55%. Para atingir o objetivo, é necessário que
cada país defina metas nacionais de aumento da cobertura para o período,
em nível de graduação e pós-graduação, assim como estratégias para
promover a desconcentração geográfica da oferta, promovendo um
esforço convergente entre os governos da região. (CRES, 2008, p. 2).
Dessa maneira pode-se afirmar que a inclusão é uma prioridade para a região a
ponto de tornar-se uma das cinco diretrizes do Plano de Ação da Conferência Regional.
Quanto à problemática do financiamento, que engloba os debates sobre o sistema público e
o privado, o Plano de Ação CRES 2008 reconhece a necessidade de investimentos do setor
público com vistas a recuperar o sistema público de educação superior dos países da
região, de maneira que tenham a capacidade de oferecer maior número de vagas:
Aumentar os orçamentos estatais para a Educação Superior, promovendo
uma política de recuperação do setor público, especialmente em países
onde existe um desequilíbrio relativo à oferta no setor privado,
56
implementando instrumentos adequados para a prestação de contas.
(CRES, 2008, p. 3).
Por isso infere-se que a questão do sucateamento das IES públicas e a privatização
da educação superior estão na pauta dos países da região que têm se defrontado com a
realidade de que as IES privadas não têm condições de promover a inclusão, pois ao se
buscar a democratização do acesso, deseja-se atingir as classes menos favorecidas,
justamente as que não possuem condições de autofinanciamento. Para que isso ocorra é
necessário, na visão da Conferência Regional, ampliar o aparato das políticas públicas de
inclusão:
Ampliar as políticas de inclusão para o ingresso na graduação e pósgraduação e prover novos mecanismos de apoio público aos estudantes
(bolsas de estudo, créditos educativos, residências estudantis, serviços de
saúde e alimentação, assim como o acompanhamento acadêmico e a
orientação vocacional e profissional), destinados a gerar equidade,
diminuir a deserção, melhorar o desempenho dos estudantes, suprir
deficiências de formação e promover a inclusão digital (CRES, 2008, p.
3).
Partindo-se da primeira diretriz e das recomendações do Plano de Ação CRES
2008, pode-se concluir que a educação superior exige tanto para a sua qualidade como
também para a sua relevância e compromisso sociais, uma sólida capacidade de
financiamento e o apoio de políticas de investimento que suplantam o alcance do
autofinanciamento estudantil por meio de mensalidades.
Tendo como referência esse contexto, ao observar-se a expansão das IUS, uma
pergunta do IUS Report é importante: “Diante de um fenômeno tão particular nós nos
perguntamos: qual a razão para esse deslocamento das atividades educacionais da
Congregação do nível básico e médio para o nível superior?” (IUS Report, 2001, p. 16-17).
Na verdade as motivações aduzidas para a criação dessas instituições nos mais
variados contextos sociais e geográficos em que se encontram são também multifacetadas.
O Dossiê situacional das IUS faz uma classificação dessas razões principais, agrupando-as
por temas que se repetem nessas motivações (IUS Report, 2001, p. 18-19). Dessa forma,
apresenta um “mapa de motivações para a criação das IUS”. Elencamos as principais: a)
“responder às necessidades educacionais ou do mercado de trabalho das regiões em que
estão estabelecidas: 16 instituições de 38 (42,11%); b) providenciar a formação acadêmica
57
dos salesianos: 15 de 38 instituições (39,47%); c) continuar o trabalho educacional
realizado nas escolas secundárias: 12 de 38 IUS (31,57%); d) formar professores, tanto
salesianos como colaboradores externos à Congregação: sete de 38 IUS (18,42%); e)
oferecer educação superior à juventude das classes populares: sete de 38 IUS (18,42%); f)
adaptar-se à evolução do mercado educacional, mais favorável no nível universitário do
que aos secundário e primário: três de 38 IUS (7,89%) (IUS Report, 2001, p. 18-19).
Na avaliação do Diagnóstico, existem razões principais, declaradas abertamente e
outras secundárias, não declaradas abertamente, veladas, mas que trazem uma importância
para o entendimento da criação dessas instituições dentro da Congregação. No grupo das
razões principais as motivações estão em consonância com as finalidades e ideais
declarados da Congregação. São razões sociais, educativas e pastorais (de evangelização).
Porém, entre as razões secundárias, prevalecem as econômicas. No Diagnóstico
estas razões secundárias são quatro: as IUS são o resultado natural do desenvolvimento dos
colégios; as transformações no mercado educacional que trouxeram a diminuição de alunos
da faixa etária inicial e a conseqüente necessidade de buscar um novo público em outra
faixa, no caso os universitários; aproveitamento de estruturas ociosas dos colégios; busca
de solvência e segurança econômicas (Diagnóstico, 2001, p. 5-6).
Observa-se essa discrepância entre os objetivos proclamados, em coerência com
os valores defendidos pela Congregação, e a pressão do fator econômico e administrativo a
forçar a busca de sobrevivência institucional. Portanto, já na criação individual, mesmo
antes de se pensar em uma rede, as IUS têm que resolver a sua necessidade de recursos
financeiros e se vêem diante do desafio de conciliar essa necessidade com os ideais
educacionais da Congregação.
Nesse sentido cabe uma análise dessas motivações para a criação dessas
instituições como também verificar qual a missão que cada uma delas se propõe no
contexto da educação superior. No próprio IUS Report encontra-se um quadro
sistematizado da missão de cada uma das IUS conforme está proclamado em seus
estatutos.
O diagnóstico traça algumas considerações avaliativas em relação à missão
proclamada nos estatutos. Em primeiro lugar constata que as IUS possuem uma concepção
ampla de educação, concebida em termos de formação humana e cristã. Essa concepção
possui alguns referenciais importantes: a pessoa como um todo; a atenção às comunidades
58
regionais onde estão localizadas as diversas IUS e a Igreja Católica. Há também a
repetição de alguns princípios, entre eles o Sistema Preventivo de Dom Bosco, ou sistema
salesiano de educação, a formação humana e cristã, a síntese entre fé e cultura, o estudo
dos da realidade e dos fenômenos humanos para transformá-los à luz do evangelho
(Diagnóstico, 2001, p. 6).
O Diagnóstico traz ainda uma afirmação importante sobre esse panorama: “[...]
observamos que esta formulação da missão salesiana é praticamente idêntica à das escolas
e não traz novidades e diferenças que se esperaria de um campo tão distinto. Por outro
lado, essa formulação não atinge a prática cotidiana da universidade” (Diagnóstico, 2001,
p. 6-7). Em outras palavras, o diagnóstico está apontando tanto uma inadequação dessas
formulações para a realidade das universidades como também uma contradição entre o que
se estabelece nessas formulações e a práxis universitária salesiana no interior de cada uma
das IUS. Essa inadequação acabará por desencadear a busca de uma melhor formulação
para a missão da IUS, o que se tentará alcançar com a construção do documento
Identidade, que será abordado mais adiante.
Pode-se concluir dessa parte que o desconhecimento pelo governo central da
Congregação, constituído pelo Reitor Mor e pelo Conselho Geral que o assessora, de toda a
realidade e complexidade das IUS como também problemas de inadequação com a missão
da Congregação; de formulação desapropriada da própria imagem como instituição de
educação superior; o crescimento acelerado e a novidade dessas instituições no conjunto
das obras da Congregação, desencadearam, no governo central um processo de reflexão e
uma vontade de atuar de maneira diferente em relação a essas instituições.
Transpareceu, pelas análises, que a Congregação pretende construir um projeto de
atuação conjunta e o primeiro passo dado para esse fim foi o de conhecer a realidade das
IUS o que foi alcançado pela construção do IUS Report. Pelas análises desse documento
referencial, percebeu-se que se trata de instituições variadas em seu formato jurídico,
presentes em três continentes. A expansão das IUS demonstra que elas estão ligadas ao
processo de ampliação da iniciativa privada na educação superior, sendo que seus índices
de maior crescimento ocorrem justamente nos anos de 1990 a 2000, período em que se
implantam as reformas educacionais mundialmente, orientadas por políticas de
privatização e redução da presença do estado na educação superior e a conseqüente
formação do mercado educacional mundializado.
59
Encontrou-se, ainda, indícios de que esse movimento de privatização influenciou
a tomada de decisão da Congregação em constituir com as IUS uma rede internacional com
vistas a fortalecer sua atuação, manter a identidade de sua concepção de educação superior
e proteger-se da visão mercadológica da educação.
Simultaneamente explicitou-se que a expansão das IUS beneficiou-se das políticas
educacionais uma vez que sem abertura por elas proporcionadas não encontrariam espaço
para sua existência. Essas políticas também influenciaram o perfil institucional das IUS
uma vez que a expansão favoreceu a diversificação das instituições de educação superior.
Pelos dados notou-se que entre as IUS encontramos universidades, faculdades isoladas,
centros universitários e faculdades ligadas a universidades. Frisou-se que essa última
categoria não é contemplada no Brasil enquanto que as faculdades isoladas são
exclusividade brasileira. Notou-se ainda que das 43 instituições, apenas 11 são
universidades, sendo que os dados do IUS Report consideram um centro universitário
como universidade. Esse perfil do conjunto da rede acompanha a diversificação das
instituições como uma característica da educação superior em tempos de mundialização do
capital:
Uma outra tendência observável em distintas regiões do globo é a
diversificação institucional. A diversidade institucional tem um valor
muito elevado, que os Estados tratam de manter e respeitar. A lei da
sobrevivência a que as instituições estão submetidas gera um regime
exarcebado de competitividade entre elas e os diversos sistemas de
educação superior. Tanto pela ampliação das demandas por mais vagas
quanto por estratégia de sobrevivência, emergem mais e novos tipos de
organização. A expansão diversificada se dá por criação de novas
instituições de modelo diferenciado e por transformação das antigas.
Essas novas instituições devem agora adaptar-se a diversificadas
demandas externas, muitas delas também de tipo novo. (SOBRINHO,
2003, p. 169-170)
Essa diversificação provocou o crescimento de instituições não universitárias que
passaram a deter um número expressivo de matrículas. É o que se observa, por exemplo, na
América Latina e Caribe, como demonstra o gráfico 06, reforçando a afirmação de que o
perfil diversificado que a Rede IUS segue está determinado por esse contexto maior.
60
Gráfico 06
Índice de crescimento das matrículas em universidades e instituições de educação superior
não universitária na América Latina (1994-2003).
Fonte: UNESCO/IESALC, 2007, p. 189.
Apesar de seu perfil diversificado, percebeu-se que as IUS perseguem um ideal de
educação superior em termos clássicos, isto é, fundado no tripé ensino, pesquisa e
extensão. Essa concepção as afasta de uma visão fragmentada do conhecimento, porém
gera-lhes desafios de cunho econômico-financeiro: manter as atividades inerentes à
universidade apenas com mensalidades de alunos e, ao mesmo tempo, buscar a
popularização da educação superior em países periféricos onde a maioria da população
jovem ainda não tem acesso a esse nível de educação justamente por falta de condições
econômicas e sociais adequadas, sendo os sistemas ainda elitizados apesar da forte
demanda por educação superior.
Conclui-se, enfim, que as IUS estão plenamente inseridas no processo global de
mundialização econômica e das políticas para a educação superior e estabelecem com esse
cenário cultural e econômico mais amplo uma relação dialética ora aproximando-se e
compactuando com suas tendências, ora sofrendo suas conseqüências e ora procurando
distanciar-se para auto-afirmar seus ideais e concepções.
CAPÍTULO II
A CONCEPÇÃO DE IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA
DEFINIDA PELA REDE IUS
Neste capítulo analisa-se a concepção da identidade católica salesiana construída
pelas IUS no interior de três documentos: o Documento de Brasília (1995), a Carta Circular
do Reitor Mor Pe. Juan Edmundo Vechi intitulada “Por Vós Estudo” (1997) e o Documento
Identidade das IUS (2003). Pretende-se demonstrar a evolução dessa concepção percorrendo
cada um desses documentos e explicitando como cada um deles aborda os rumos da
identidade confessional e suas relações com a Educação Superior.
2.1 A confessionalidade: o caráter católico e salesiano na educação superior no
Documento de Brasília 1995
O I Encontro dos Responsáveis das Universidades e dos Institutos Universitários
Administrados pela Congregação Salesiana ocorreu em Brasília em 1995, de 12 a 14 de
agosto. Dele emanou um documento que consta de uma apresentação e introdução geral
escritas pelo Padre Luc Van Looy, à época Conselheiro Geral para a Pastoral Juvenil. Possui
dois capítulos: o primeiro capítulo traz o texto de uma conferência dirigida por Julio Terán
Dutari, padre jesuíta, cujo tema é “o específico cristão e católico das universidades católicas”.
Sua conferência tem como base o documento “Ex Corde Ecclesiae” (1990), encíclica papal
sobre as universidades católicas. Logo após, o capítulo traz reflexões dos participantes que,
reunidos em dois grupos de trabalho apresentam contribuições relativas ao tema proposto na
conferência. O primeiro grupo apresenta contribuições enucleadas pela pergunta “que tipo de
62
universidade?” e o segundo grupo trabalha sobre a pergunta “A inspiração cristã: como tornála operativa?”.
Discute-se muito nesse capítulo a questão da identidade católica e salesiana como
também o modelo de universidade a ser seguido. Porém, as reflexões não são de caráter
conclusivo. Seguem um estilo mais centrado na explicitação das intuições de cada participante
a respeito do tema da identidade católica e do perfil de educação superior desejado, como um
grande debate. Outras questões importantes são debatidas nesse capítulo: o acesso à
universidade, o condicionamento econômico para o acesso, os custos financeiros para se
manter a excelência acadêmica, a busca de fontes alternativas de financiamentos e a
profissionalização da gestão universitária. Esses temas são levantados, debatidos, mas não se
aponta sistematicamente compromissos a serem seguidos nem se constitui um manifesto
sobre a identidade católica salesiana. São levantados elementos importantes para a sua
constituição, todavia não são estabelecidos de forma orgânica.
Após as contribuições dos grupos seguem-se três páginas de comentários do
conferencista, Pe. Julio Terán Dutari, que ampliam o alcance das reflexões dos grupos. Esses
comentários são enucleados em dois tópicos e estruturam as contribuições dos grupos. O
primeiro – “A universidade Católica como Universidade” – discute a tipificação da
universidade salesiana que se pretende construir. Deste tópico destaca-se que o conferencista
chama a atenção para dois aspectos: a identidade e a sensibilidade aos setores de “escassos
recursos”. Sobre aquele primeiro aspecto assim comenta:
Que tipo de universidade buscamos? Antes de mais nada sublinho a
oportunidade da pergunta proposta e aceita pelo grupo com muito sentido de
responsabilidade: a situação geral de instituições que estão começando uma
existência universitária ou preparando-se para ela, facilita e exige que a
Congregação Salesiana se pergunte sobre a identidade que deve configurar
nessas instituições. (IUS, 1995, p. 19).
Esse comentário sintetiza a preocupação do grupo de salesianos reunidos em Brasília
com o a definição do perfil institucional da educação superior promovida pela Congregação.
Essa preocupação tornar-se-á central ao longo de todo o documento. Por outro lado o
comentário revela outro aspecto das instituições salesianas de educação superior: trata-se de
instituições que estão iniciando sua trajetória ou mesmo ainda nem iniciaram suas atividades,
estando presentes nesse encontro salesianos que estavam, à época, planejando a abertura de
IES. É um momento favorável para se estabelecer ações e concepções que estejam em
63
consonância com os valores da confessionalidade católica salesiana e, ao mesmo tempo, que
permitam transparecer efetivamente os ideais da Congregação com essa atividade
educacional. Nesse aspecto o Encontro de Brasília realizou-se num momento estratégico para
as IUS: como analisou-se no capítulo anterior é o período de maior expansão das mesmas e,
portanto, revela-se adequada a iniciativa da Congregação em debater sobre o significado das
IUS em sua missão educacional e religiosa. Esse aspecto da novidade explica a presença nesse
encontro do Padre Jesuíta e conferencista principal Julio Terán Dutari: pretende ser um
contato da Congregação Salesiana com a tradição jesuítica na educação superior uma vez que
essa Ordem Religiosa possui ampla e antiga tradição na educação superior estando, inclusive,
nas origens das primeiras universidades européias.
Não obstante a importância dessa tentativa de aurir da experiência jesuítica e da
relevância desse encontro para as IUS, o documento dele emanado tem um caráter incipiente
ainda, apesar de que suas intuições serão aprofundadas e amadurecidas ao longo do processo
de implantação da Rede IUS. A conferência do Padre Dutari catalisa e direciona os debates:
em torno dela gravita as reflexões dos participantes.
O segundo aspecto para o qual o Padre Dutari chama a atenção no seu primeiro
tópico de comentários sobre o perfil institucional da educação superior salesiana é a questão
do acesso da juventude da classe pobre. Assim escreve:
Entre as características assinaladas como importantes para o tipo de
universidade que se deseja privilegiar está a sensibilidade aos setores sociais
de escassos recursos: ser universidades ‘populares’, não elitistas no sentido
econômico e social. Sou da opinião que isto é muito justo e muito delicado,
porém contém uma problemática bastante complexa, segundo a experiência
de outras universidades que assumiram a mesma opção. Há o fato de que o
acesso à universidade, ainda que esteja condicionado exclusivamente, do
ponto de vista formal, ao sucesso no exame vestibular, está condicionado
economicamente, pois os estudantes que logram sucesso nesses exames são
os que cursaram as escolas secundárias de maior prestígio acadêmico e que
costumam ser pagas (e com freqüência são religiosos). Fora isso, para que
um estudante universitário possa permanecer na universidade supõe-se um
custo econômico alto, se a instituição quer manter um nível de excelência
acadêmica de acordo com as exigências de uma verdadeira universidade.
(IUS, 1995, p. 19-20).
Nesse longo comentário o Padre Dutari faz eco à preocupação dos salesianos
presentes nesse encontro e exprime também a contradição em que se encontram: por um lado
têm consciência de que é inerente à identidade católica salesiana e, portanto, à educação
64
salesiana, a abertura à juventude operária e dos setores mais empobrecidos. Querem, segundo
as palavras do Padre Dutari, projetar uma educação superior que alcance essa juventude.
Todavia defrontam-se com a problemática da desigualdade das condições de acesso que, do
ponto de vista acadêmico, privilegia os de melhor condição, que tiveram melhor preparação
no ensino secundário; do ponto de vista sócio-econômico privilegia esses que tiveram
condições de bancar a escola secundária particular, de melhor qualidade, e que possuem poder
econômico capaz de sustentar os altos custos de permanência no curso superior. Ainda que a
grande oferta de vagas na educação superior permita, do ponto de vista formal, amplo acesso
inclusive aos que não logram grande desempenho no exame vestibular, a segunda barreira, a
econômica, permanece especialmente no caso das instituições salesianas de educação
superior, que exigem, para sua sustentabilidade financeira, o pagamento de mensalidades. A
busca de um alto padrão acadêmico pela Rede IUS no futuro, como se verá logo mais,
perseguindo a excelência acadêmica constituindo sólidas instituições capazes de integrar
ensino, pesquisa e extensão, só agravará esse quadro uma vez que aumenta os custos das
mensalidades para os alunos. Trata-se, destarte, de uma contradição que se tende a
aprofundar, ainda mais num contexto em que a saturação de ofertas no setor privado da
educação superior desencadeia concorrência acirrada por alunos de maior poder aquisitivo,
capazes de manter os custos exigidos por uma educação superior de alto padrão. Quais as
sugestões ou saídas apontadas no documento para a superação dessa contradição?
Continuando a citar as palavras do Padre Dutari, tem-se o que segue:
É possível e necessário fazer todos os esforços para buscar fontes
alternativas de financiamento para não fazer recair os altos custos sobre os
estudantes e tão pouco sobre professores mal remunerados. Além disso, seja
qual for o custo das despesas estabelecidas para os alunos, será necessário
criar possibilidades especiais para estudantes carentes que tenham
indispensável aptidão acadêmica: introduzir pensão diferenciada; oferecer
bolsas totais e parciais; administrar o crédito educativo. (IUS, 1995, p. 20).
Fontes alternativas de financiamento e condições especiais para estudantes carentes
são, portanto as duas alternativas propostas pelo documento de Brasília para que as IUS
possam efetivamente favorecer o acesso democrático às suas instituições e cumprir o seu
papel social proposto na sua identidade e na sua tradição educativa. Já que se trata de um
aspecto relevante da identidade salesiana que tem uma repercussão especial no atual contexto
cultural em que se discute o acesso à educação superior com vistas à sua democratização nos
65
países em desenvolvimento e sendo que, contrariamente a essa tendência, assiste-se ao
estabelecimento de grupos econômicos que exploram a educação como um serviço, um bem
comercializável passível de ser objeto da atividade econômica com a conseqüente aferição de
lucros, a capacidade da Rede IUS em responder a essa contradição tem uma notável
repercussão para o desfecho deste tensionamento: ou colaborará para a afirmação da educação
como um direito humano fundamental ou simplesmente confirmará que se trata de um bem
comercial oferecido a quem pode participar do sistema de produção e tem a precípua
finalidade de capacitar o consumidor para colocar-se no mercado, sendo capaz de se inserir na
estrutura de produção como mão de obra especializada, que detém o direito de remuneração.
Recente documento da UNESCO baliza bem essa problemática e a disputa a ela subjacente:
Uma das questões que está provocando um debate ativo e às vezes
polarizado é a liberalização e a promoção de intercâmbio comercial de
serviços de educação por meio de acordos comerciais. A idéia de mobilidade
acadêmica e translado de estudantes e especialistas entre países não é nova.
A transferência de estudantes, programas educativos e provedores de
educação através das fronteiras com fins comerciais e lucrativos está
expandindo-se e esta questão adquiriu um novo impulso e importância com o
estabelecimento do Acordo Geral Sobre o Comércio de Seviços AGCS).
Este novo acordo comercial internacional é administrado pela Organização
Mundial do Comércio (OMC) e é o primeiro acordo multilateral que abarca
o comércio de serviços. Convênios anteriores, como o Acordo Geral sobre
Aranceles Aduaneiros e Comércio (GATT) tratavam do comércio de
produtos. No marco regulatório do AGCS, a educação é um dos doze
serviços principais e a educação superior é uma dos cinco setores da
educação. O acordo prescreve normas e condições específicas para
liberalizar e regularizar o comércio e são essas regulamentações que se
constituem o centro do debate acerca do AGCS. A inclusão do comércio de
serviços de educação superior no marco do AGCS é uma realidade e não se
modificará. Cada país pode determinar em que medida permitirá que os
provedores estrangeiros de serviços de educação tenham acesso ao mercado
interno. As inquietudes crescentes da comunidade docente de todo o mundo
têm sua origem no fato de que a OMC, por ser uma organização cujo
objetivo é promover o comércio com finalidade de se obter eficiência
econômica, não possui competência na esfera educacional e, por isso, pode
influir negativamente no desenvolvimento sustentável da educação.
(UNESCO/IESALC, 2004).
Por isso cabe a pergunta: a Rede IUS atinge a meta de buscar outras fontes de
financiamento que não sejam as mensalidades dos alunos? Essas fontes alternativas de
recursos, se existentes, possibilitam a diminuição efetiva dos custos para o aluno pobre e
colabora para a popularização ou democratização da educação superior nas instituições que
compõem a Rede IUS e, ao mesmo tempo, tornam-se relevantes para a sustentabilidade de
66
uma educação superior de alto padrão acadêmico? Antes mesmo dessas perguntas, cabe
investigar se o documento de Brasília aponta mecanismos para se implantar essa cultura de
busca de novas fontes de financiamento. No comentário do Padre Dutari pode-se verificar que
essa questão deve ser resolvida por meio de uma gestão profissionalizada, tecnificada: “para
solucionar este e outros problemas fundamentais para o tipo de universidade que se pretende
manter, é importante preparar o pessoal diretivo e administrativo, também o da própria
Congregação, para uma gestão universitária cada vez mais tecnificada” (IUS, 1995, p. 20).
Desta forma pode-se concluir que o documento de Brasília, ainda que de forma
incipiente, estabelece um nexo entre identidade católica salesiana, democratização de acesso e
gestão profissional numa interdependência entre esses elementos sendo que o caráter decisivo
recai sobre a gestão universitária profissionalizada uma vez que, na visão do documento, irá
garantir a efetiva aquisição de fontes alternativas de recursos a fim de se favorecer a
democratização com a diminuição dos custos para os alunos e a possibilidade de sustentação
financeira adequada das IUS e, assim, garantir a efetividade de um aspecto fundamental da
identidade salesiana: a popularização, no sentido social e econômico, isto é, a democratização
da educação superior.
O tema das fontes alternativas de recursos refere-se à prestação de serviços
remunerados, seja em termos de extensão seja de pesquisas, desenvolvidas para instituições,
pessoas ou empresas. Já a profissionalização da gestão requer a introdução de mecanismos
administrativos que proporcionem maior eficácia na aplicação dos recursos obtidos das
mensalidades dos alunos. A ineficiência na gestão provoca aumento de custos desnecessários,
como afirma Riveros:
Observa-se uma tendência em aplicar políticas públicas com o objetivo de se
melhorar a eficiência interna das instituições de educação superior… Alguns
sinais de ineficiencia interna são as altas taxas de desistência em algunas
carreiras e universidades, demoras adicionais ao tempo projetado de
titulação, baixas taxas de graduação, duplicação de conteúdos entre
programas de graduação e pós-graduação. É necesario determinar os custos
de formaçào de estudantes, por uma parte, como um produto distinto da
pesquisa e da extensão…Em todo caso, o aumento de custos derivado da
ineficiencia das IES presiona por um maior gasto público por aluno ou de
aumento das mensalidades no caso das IES privadas. O desafio consiste em
como aumentar a efetividade das políticas para melhorar a efetividade da
gestão interna das instituições por meio de instrumentos que não afetem a
autonomia das instituições (RIVEROS, 2008, p. 15).
67
Porém, essa lógica patrocinada pelo Banco Mundial, é alheia à cultura organizacional
das universidades e traz para o interior das mesmas, procedimentos empresariais
desconhecidos o que muitas vezes gera conflitos e fragmentação e subserviência das
universidades aos interesses de mercado:
A redução de investimentos públicos na educação superior é uma das
diretrizes do Banco Mundial explicitadas no documento A educação
superior: lições da experiência, de novembro de 1993. Nesse conhecido
documento, o Banco Mundial faz um duro diagnóstico da educação superior
dos países do terceiro mundo, condenando o excesso de gastos ao qual
estaria correspondendo uma baixa produtividade e decretando as medidas
que deveriam ser tomadas: estimular a diversificação, das instituições, e a
competitividade entre elas; estimular a expansão das instituições privadas;
incentivar as instituições públicas a buscarem financiamentos alternativos,
inclusive cobrança de taxas estudantis; vincular o financiamento público ao
aumento da produtividade. O investimento atrelado aos critérios de
produtividade e retorno econômico é uma das expressões práticas do Estado
gestor e avaliador, que assume uma função centrada rigidamente na gerência
e no controle. (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 104).
O segundo bloco de comentários do Padre Dutari aglutina-se ao redor do título “A
universidade católica como católica: como realizar os três requisitos cristãos específicos?”.
Esses requisitos são: a inspiração cristã que deve permear todas as instituições católicas de
educação; a reflexão da fé em consonância com os ensinamentos e o pensamento católico
especialmente por meio da ética e da teologia cristãs; e o serviço institucional ao povo de
Deus na perspectiva religiosa católica por meio dos diversos serviços de extensão (IUS, 1995,
p.14)
Este bloco versa sobre as reflexões em torno da especificidade do caráter
confessional católico no interior das universidades católicas. Tem como referência a própria
Encíclica Papal Ex Corde Ecclesiae, o documento conciliar Lúmen Gentium e o Código de
Direito Canônico 2. Nesses documentos estão contidos os referenciais exigidos de toda
instituição católica de educação superior, especialmente as universidades. Deste bloco é
2
A Constituição Apostólica EX Corde Ecclesiae de Sua Santidade o Papa João Paulo II, de 1990, assim define
as Universidades Católicas: “Nascidas do coração da Igreja”, as universidades católicas se inserem no curso da
tradição que remonta às origens da universidade como instituição e, por sua vocação, consagram-se à pesquisa,
ao ensino e à formação dos estudantes, livremente reunidos com seus mestres animados pelo amor ao
conhecimento. Compartilham com as demais universidades a missão buscar a verdade, de descobri-la e de
comunicá-la em todos os campos do conhecimento... Têm a tarefa privilegiada de unificar existencialmente, no
trabalho intelectual, duas realidades distintas que tendem a se opor como se fossem antitéticas: a busca da
verdade e a certeza de se conhecer a fonte da verdade. A Constituição Dogmática “Lúmen Gentium”, emanada
do Concílio Vaticano II, celebrado entre os anos de 1960-1965, define a Igreja diante do mundo, seus princípios,
sua missão, atividades e instituições. O Código de Direito Canônico regula e legisla a Igreja Católica no todo.
68
interessante notar de que forma essa preocupação com a confessionalidade se manifesta e
reflete nos participantes. Do resumo do Padre Dutari pode-se concluir que a sensibilidade dos
dirigentes das IUS aponta para alguns aspectos: em primeiro lugar a existência de um grupo
comprometido com a identidade católica das instituições:
Creio que este é o ponto decisivo: que haja essa equipe de pessoas
convencidas que animem a partir dos princípios católico-cristãos todo o
funcionamento, o planejamento, a avaliação e o desenvolvimento da
universidade. Ali devem estar os mantenedores e os colaboradores em ativa
participação. Se ao princípio da vida institucional pode ser mais fácil reunir e
aglutinar esse núcleo de pessoas, deve-se assegurar que se conserve, se
renove e se amplie posteriormente, para que a universidade cresça
verdadeiramente como católica. (IUS, 1995, p. 20).
O que se pode observar nesse comentário é que o documento de Brasília, nesse ponto
do caráter confessional, mais do que lembrar princípios ou doutrinas católicas, deposita sua
preocupação e como chave de sucesso para a garantia da identidade católica numa equipe de
pessoas bem constituída e que tenham competência para dirigir as instituições e sejam pessoas
de intensa vivência e conhecimentos cristãos. A esse grupo cabe assegurar a inspiração cristã
das instituições católicas salesianas, como núcleo dinamizador.
Essa mesma equipe deve garantir que as instituições católicas atinjam seu segundo
aspecto: “a reflexão contínua sobre as questões acadêmicas e os problemas do mundo a partir
da fé cristã” (IUS, 1995, p. 21). Sobre este aspecto assim manifesta-se o documento: “aqui
tudo depende de que existam docentes altamente preparados em sua competência científica e
em sua profissão de fé cristã, que exerçam uma efetiva influência sobre a atividade acadêmica
do conjunto universitário” (IUS, 1995, p. 21).
A comunidade acadêmica tem ainda um terceiro aspecto a cuidar para que a
identidade da universidade seja mantida como católica: que as atividades de extensão e de
pesquisa, vistos como serviços à Igreja e à Sociedade, “tenham na realidade o efeito de
conduzir a Cristo e a seu Evangelho e não sejam concebidas e recebidas como uma simples
oferta assistencial a mais entre as muitas que existem por parte de toda classe de organismos”
(IUS, 1995, p. 21).
O fato para o qual se deseja chamar atenção na análise desse segundo bloco que
estende o olhar sobre a centralidade dessa equipe qualificada e de perfil quase que exclusivo
já que seus membros devem possuir não somente qualificação profissional e acadêmica, mas
também experiência e formação religiosa católica consistentes é o seguinte: de um lado o
69
documento de Brasília e, mais adiante, os demais documentos da Rede IUS acertam ao
ancorar a efetividade de sua identidade, seja do ponto de vista acadêmico, seja do ponto de
vista religioso católico salesiano, na presença de pessoas e equipes qualificadas. Não obstante
esse mesmo acerto converte-se num obstáculo para a consecução da democratização do
acesso às suas instituições devido aos altos custos de remuneração dessas pessoas. Esse fato
corrobora o que se afirmou anteriormente: a busca de um alto padrão acadêmico na
constituição das IUS exige a contrapartida de investimentos de altas cifras de capital humano
e financeiro. Se por um lado a Rede IUS vai se amalgamando em torno de uma séria proposta
acadêmica e cristã por outro lado vai se afastando da possibilidade de efetivar sua opção
preferencial de atendimento às classes populares. Mesmo a profissionalização da gestão exige
a formação de equipes e meios especializados, contribuindo para o fortalecimento dessa
lógica:
qualificação
e
especialização
exigem
capital
e
investimentos
altos
e,
conseqüentemente, altos custos de operação o que reverbera em mensalidades ascendentes
para os alunos. A tabela seguinte retrata a relação entre as receitas e os gastos com a
remuneração de docentes e pessoal administrativo nas IUS:
70
Tabela 03
Fonte: IUS Report, 2001, p. 236.
71
A centralidade da comunidade acadêmica dirigente, seja em seu corpo docente seja
no corpo administrativo, para a manutenção e assertividade da identidade institucional tem
outro aspecto crítico: a quase exclusividade das pessoas que compõem estas equipes exige
também estabilidade e permanência por longos anos das mesmas nos serviços da
Congregação, pois a formação e aquisição da cultura organizacional da tradição educacional
salesiana se dão na prática e no contato com os ambientes da própria instituição. Isso significa
que a rotatividade de pessoas não é bem-vinda e, sendo assim, crises na sustentabilidade
econômica que venham a exigir demissões de pessoas não apenas rompem os vínculos de
confiança e de crença nos valores proclamados e defendidos pelas IUS, por meio dos docentes
e dirigentes administrativos, mas também promovem um largo vazio, pois a constituição de
equipes com esse perfil leva muito tempo.
O segundo capítulo do documento tem como eixo o tema sobre como se manifesta a
identidade salesiana nas universidades e institutos universitários. O tema é trabalhado
apresentando-se a experiência de duas universidades salesianas: a Universidade Católica Blas
Cañas, de Santiago do Chile, e a Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, Brasil. Note-se que a identidade salesiana nesse encontro não tem um
referencial específico sistematizado em documentos orgânicos e sua reflexão inicial ocorre
com base no documento papal “Ex-Cordiae Ecclesiae” (1990), pela conferência do Padre
Dutari e, nesse capítulo, pela práxis das universidades presentes. Por isso adquire realce
fundamental a contribuição que estas trazem já que constituem um dos elementos a partir dos
quais se constrói a reflexão sobre a identidade salesiana na educação superior. A exposição
dessas universidades praticamente traz para a educação superior a tradição educacional e os
valores da educação salesiana para o contexto acadêmico e vai delineando como esses
elementos tomam forma e se adequam no ambiente universitário pela práxis dos sujeitos que
nele interagem.
O terceiro capítulo é o documento final do encontro e tem como título “Os salesianos
e a universidade”. Subdivide-se em três partes, cujos respectivos títulos são: “uma nova
presença salesiana”, que traz afirmações sobre a irreversibilidade da atuação da Congregação
no campo da Educação Superior, as razões que levaram a Congregação a atuar nesse campo
educacional, as oportunidades que o trabalho universitário representa, os riscos, necessidades
e desafios emanados desse trabalho; “a resposta educativa salesiana”, que prioriza o tema da
identidade salesiana, destacando a importância de preservar a tradição pedagógica da
72
Congregação de maneira dinâmica, criativa e numa linguagem adequada ao meio
universitário; a necessidade de pessoas comprometidas e que tenham conhecimento e
experiências profundas tanto do que é a universidade como do que significa o carisma
educativo salesiano; pede que o ideário salesiano seja explicitado num quadro de referência;
ressalta o sentido social da universidade, resgatando a centralidade que a juventude das
classes populares tem para o carisma salesiano e a promoção do protagonismo humano,
profissional, social e eclesial. O terceiro título “Linhas para a institucionalização, organização
e colaboração” aponta para a busca de um ideário comum e da colaboração mútua.
Por fim o documento traz uma conclusão também escrita pelo conselheiro para a
pastoral juvenil3, padre Luc Van Looy.
É nesse documento que encontramos pela primeira vez a questão da identidade
salesiana no interior das instituições de educação superior mantidas ou administrados pela
Congregação Salesiana. Esse documento estabelece a questão perguntando-se sobre a especificidade da educação superior no desenrolar da missão educativa da Congregação e em que
termos é possível manter a missão da Congregação no ambiente universitário. A Congregação
possui identidade e missão e pretende configurá-las para a educação superior. Essa
convergência exige reflexões e debates que conduzam à construção de um padrão de
referência para a sua atuação. Assim se expressa o documento: “[...] Colocamo-nos o
problema da tarefa específica da universidade no conjunto da missão salesiana: como e sob
quais condições pode-se realizar nossa missão nos ambientes universitários [...]” (IUS, 1995,
p. 4). Em seguida o documento afirma a importância da atuação na educação superior como
uma forma privilegiada de promover a integração da juventude na sociedade: “[...] assumir a
educação superior nas inspetorias, dentro do projeto inspetorial, é um aspecto importante para
preparar os jovens para uma inserção mais consciente e ativa na sociedade” (IUS, 1995, p. 4).
O documento reconhece, portanto, que a educação superior proporciona e completa a
educação da juventude e que por isso deve ser assumida e prevista nos planos das atividades
educacionais das inspetorias da Congregação com vistas à promoção da juventude. Nesse
sentido, o documento expressa que a Congregação “tomou consciência da importância desta
ampliação do campo educativo, da urgência de fazer funcionar plenamente o sistema
3
A Pastoral Juvenil forma um dicastério, isto é, uma Secretaria ligada ao Reitor Mor da Congregação Salesiana.
Nela estão concentradas a coordenação e organização de todas as atividades da Congregação no mundo que se
relacionam com a educação e evangelização da juventude. É uma Secretaria de grande relevância na
Congregação, sendo que muitos dos Reitores Mores eleitos ocuparam esse cargo.
73
educativo de Dom Bosco e o projeto educativo salesiano nesses ambientes qualificados” (IUS,
1995, p. 4).
Dessas passagens do documento, pode-se inferir que os salesianos que trabalham na
educação superior reconhecem esse campo educativo como oportuno e importante no
conjunto dos trabalhos educacionais da Congregação em prol da juventude e desejam definir
em que termos esse trabalho da Congregação deve ser sistematizado para ser expressão do
sistema educativo de Dom Bosco. Os salesianos perguntam-se também sobre como esse
trabalho pode harmonizar-se com o conjunto da missão da Congregação. Há, portanto, uma
aceitação para a atuação na educação superior por parte da Congregação. Não obstante
emerge entre os salesianos a necessidade de precisar em que termos esses trabalhos serão
desenvolvidos e como se dará sua integração com o conjunto da missão da Congregação.
Essas preocupações tomam corpo em algumas perguntas levantadas pelo documento:
“[...] O que significa estar presentes como cristãos no mundo da ciência? Como se pode
evangelizar a sociedade a partir da ciência? Existe um modo especificamente cristão de fazer
um trabalho científico? [...]” (IUS, 1995, p. 6). O documento procura construir sua resposta
tendo um olhar para os “destinatários e sua cultura” e para “a ciência como resposta para
desenvolvimento da sociedade” (IUS, 1995, p. 6). O documento une esses dois pólos, a
ciência e a pessoa, respeitando a tradição educacional da Congregação:
[...] é importante ter sempre presente o fato de que no modo salesiano de
observar a realidade, as pessoas do professor e do aluno ocupam o centro das
atenções. Os processos de mudanças e as respostas que a ciência quer dar ao
ritmo da história se encontram nas mãos das pessoas. Mais especificamente,
na linguagem salesiana, o que nos move é o bem da juventude, construtora
do futuro da sociedade. Por isso queremos considerar nossas instituições de
educação superior como o modo de estar presente no contexto juvenil, como
instrumento de acompanhamento que permite à juventude crescer e entrar
livre e consciente na sociedade, para transformá-la de acordo com os
critérios do Evangelho. (IUS, 1995, p. 6).
O documento explicita desta forma, um elemento importante da identidade das
instituições salesianas de educação superior: a centralidade das pessoas, tanto do professor
como do aluno. E estabelece a existência dessas instituições em função dessas pessoas, da sua
promoção, e as vê como sujeitos históricos, capazes de transformação e de guiar os processos
humanos sociais. Dessa passagem transparece outra faceta na busca de definição da
identidade confessional salesiana: a transformação da sociedade a partir dos critérios do
74
Evangelho. O documento vai se defrontar com essa afirmação em diversas passagens
procurando estabelecer os principais desafios institucionais em relação ao compromisso
confessional católico e salesiano.
Em sua segunda parte, intitulada “O Aspecto Cristão e Católico das Universidades
Católicas”, no título segundo cujo título é “A Universidade Católica como instituição cristã”,
retoma essa dialética entre sociedade e evangelho, isto é, confessionalidade católica e
sociedade, baseado nos documentos da Igreja Católica Ex Corde Eclesiae e Gaudium et Spes,
como também no Código de Direito Canônico, e afirma a concepção cristã em termos de
“Inspiração Cristã comunitária” dentro das Universidades Católicas, cuja missão é “dar
visibilidade à Igreja para ajudá-la a cumprir seu múnus docente” (IUS, 19995, p. 14).
Essa missão é assegurada pela mediação de um “núcleo cristão convencido em que
estejam representados os diversos setores da Igreja: hierarquia da Igreja, direção, docentes,
fiéis leigos e a juventude como agente e não como mera receptora” (IUS, 1995, p. 14). Outra
mediação importante para a consecução da missão é a “Pastoral universitária, denominada
como “pastoral do entendimento”, para formar no cristão a maneira de ver o mundo e o ser
humano, de perceber valores e antivalores, de julgar, de propor ideais e de criar projetos
histórico-sociais.” (IUS, 1995, p. 14). Dessa forma, fica estabelecido que a Missão das
Universidades Católicas é a de ser um canal qualificado para se estabelecer interlocução com
a sociedade acadêmica e assegurar a transmissão do pensamento católico e dos valores do
Evangelho.
Dois aspectos são fundamentais: equipe de pessoas comprometidas com esse
pensamento e com o Evangelho e a ação da Pastoral compreendida como sistematização,
reflexão e comunicação do pensamento e dos valores cristãos, tendo como referência o saber
humano e a fidelidade aos ensinamentos cristãos. Nesse processo de sistematização do
pensamento cristão, três canais são privilegiados para se estabelecer interlocução com o
pensamento científico: a Ética, a Teologia e a Doutrina Social da Igreja. É o que se pode ver
explicitado no item segundo, da segunda parte:
Aporte à reflexão da fé sobre o saber humano em fidelidade à mensagem
cristã apresentada pela Igreja: lugar especial da Ética (geral, profissional e
própria de cada disciplina); necessidade da Teologia (como uma Faculdade
ou Cátedra e em relação com as demais disciplinas e cursos); atualidade da
Doutrina Social da Igreja. (IUS, 1995, p. 14).
75
Ao identificarem-se com o patrimônio cultural do pensamento cristão, as
Universidades Católicas constroem um perfil humanístico em seus princípios de atuação e de
concepção. Ética, Teologia e Doutrina Social buscam colocar as Universidades Católicas em
sintonia com as problemáticas humanas contemporâneas.
Em outra vertente, o documento caracteriza as Universidades Católicas como
servidoras do povo de Deus, isto é, dos membros da Igreja, e da sociedade em geral. Nesse
ponto o documento tem a intenção de demonstrar mais especificamente que essas
universidades têm como missão assegurar determinados serviços em benefício das
comunidades católicas, como público privilegiado delas, e também para a sociedade em geral.
Assim afirma o terceiro item da segunda parte:
Serviço institucional ao povo de Deus e à família humana em seu caminho
transcendente: Escolher temas e formas de investigação aplicada (que
tenham maior facilidade de financiamento); inserção na pastoral de conjunto;
as mais diversas formas de extensão universitária; facilitar o acesso à
educação superior aos setores populares. (IUS, 1995, p. 15).
Um primeiro foco a ser analisado é a relação entre “serviço institucional” e “caminho
transcendente”. Por serviço institucional compreendem-se todo o conjunto de atividades
desenvolvido nas universidades católicas como universidades: ensino, pesquisa e extensão.
Por “caminho transcendente” o documento compreende o sentido religioso que se quer dar
àquele conjunto de atividades. Em sua quarta parte afirma:
[...] Devemos cuidar que as muitas atividades desenvolvidas por nossas
instituições, seja extensão universitária ou projetos de pesquisa, tenham de
fato o objetivo de levar a Cristo e seu Evangelho e não sejam concebidas ou
recebidas como uma simples oferta assistencial... Isso significa que os
membros da comunidade universitária que participam nestes programas
devem estar conscientes desse sentido cristão dos mesmos e devem
apresentá-los de forma adequada aos seus públicos-alvo. (IUS, 1995, p. 21).
Há, portanto, uma constante defesa da catolicidade procurando fazer com que essa
seja sempre o sentido não só subliminar, mas explícito de toda a missão e identidade das
universidades católicas e, portanto, o seu diferencial. O segundo foco de análise nessa
afirmação se refere aos serviços oferecidos. Dentre eles destaca-se “escolher os temas e
formas de investigação aplicada (que tenham maior facilidade de financiamento)” e “facilitar
o acesso à educação superior aos setores populares”.
76
Se por um lado há a afirmação da identidade fundada nos princípios religiosos
católicos, por outro lado essa mesma identidade exprime-se por meio de serviços que
procuram traduzir na práxis institucional a identidade proclamada a fim de se estabelecer
coerência. Porém, nessa operacionalização de princípios, encontram-se diversas contradições
e dificuldades no processo de implantação. Esses argumentos conduzem a atenção para a
historicidade do processo de constituição e construção da identidade confessional mais ampla
e também especificamente salesiana.
O âmbito da historicidade é marcado pela contradição dos processos em que se
desenrolam e influenciam o ser e o agir dessas instituições como também pela
intencionalidade de um projeto. A construção da identidade não se produz apenas sob a
influência do contexto em que se inserem essas instituições como também não se decide
apenas na metafísica dos ideais proclamados: produz-se como a síntese desses dois aspectos.
Isto significa que o contexto intensamente mercantilizado da educação superior,
especialmente no Brasil tem suas repercussões para a concepção histórica de identidade das
universidades católicas salesianas. Ainda que sua influência não se manifeste nos documentos
referenciais, esse contexto tem repercussões para sua gestão, para a organização do trabalho e
para o financiamento de suas atividades. Deve-se considerar que a identidade se manifesta e
se expressa como um tensionamento histórico entre os pólos dos ideais e do contexto.
O significado da identidade e suas repercussões decidem-se não aprioristicamente,
mas no momento histórico definido e determinado por questões sociais, econômicas, culturais
que oferecem parâmetros de ação e definem estratégias institucionais. O próprio
amadurecimento das instituições, sua consolidação como universidade ou instituição de
educação superior, proporcionará melhores condições ou não no direcionamento de seu ser e
agir institucionais, isto é, de sua identidade, frente ao contexto em que flui a história. Ganha
importância, nessa ótica, a hipótese central do doutoramento de Bittar:
[...] embora as universidades comunitárias (entre as quais as confessionais)
proclamem possuir uma identidade própria que as diferencia dos demais
segmentos de ensino superior, esta identidade é um processo em construção,
mais avançado em algumas, incipiente em outras. (BITTAR, 1999).
A construção da identidade é, portanto, resultado de um processo. A ação dos
sujeitos envolvidos na história oferece os elementos de interação que fundamentarão os
caminhos institucionais da universidade católica salesiana. Os ideais, o contexto histórico e
77
ação dos sujeitos envolvidos são considerados como forças interacionais determinantes nesse
processo de construção da identidade.
O documento não apresenta uma concepção de confessionalidade. Nele não se
encontra sistematizada a identidade das IUS. São encontrados elementos que a compõem,
porém não há organicidade definida, um conceito estabelecido de identidade. O documento
coloca a necessidade de que as instituições de educação superior sejam portadoras de valores
do evangelho em um contexto cultural volátil e no interior dos sistemas nacionais de educação
que também passam por reformas e transformações:
[...] Em muitos países do mundo, os governos estão estudando as reformas
do sistema educativo nacional e remodelando os programas educativos. Isto
requer uma atenção precisa e sistemática da parte de nossas universidades
para estar presentes com os valores do Evangelho nos novos sistemas. Em
muitos países os salesianos estão comprometidos ativamente neste processo.
No “Encontro sobre A Escola e as Culturas Emergentes na América Latina”,
realizado em Cumbayá no ano passado, os salesianos e as Filhas de Maria
Auxiliadora insistiram com força sobre a necessidade de reler o Sistema
Preventivo de Dom Bosco para o atual contexto (IUS, 1995, p. 6-7).
Num processo contínuo de transformação social e cultural, o documento reconhece a
necessidade de uma contínua atualização dos valores educacionais da tradição educativa
salesiana e de sua expressão de tal forma que a força original permaneça. Essa atualização
deve ser sistemática e precisa, isto é, construída numa linguagem acadêmica, própria para a
realidade da educação superior:
A universidade é chamada a avaliar os processos educativos e as respostas
aos tempos novos. A integração de todos os novos estímulos em um só
caminho formativo, como Dom Bosco integrava os elementos que
agradavam aos jovens e lhes dava um valor educativo, será algo tipicamente
salesiano (IUS, 1995, p. 7).
Nessa linha o documento recoloca diversas perguntas: “Qual poderá ser o modo
tipicamente universitário de integrar as inquietudes dos jovens de hoje no processo educativo,
como fez Dom Bosco em seu tempo através da música, dos jogos, das bandas e do teatro?” (
IUS, 1995, p. 7). Essa pergunta refere-se à necessidade de, no processo educacional salesiano,
focar não apenas conteúdos formais e científicos, mas também humanísticos, que remetem ao
conjunto e à integralidade da pessoa, aspectos esses relacionados à centralidade da pessoa.
Refletindo sobre os princípios da educação salesiana, questiona: “Como podemos levar a cabo
78
estas orientações e princípios em nossas instituições universitárias de modo que cheguem a
ser expressão salesiana com estilo e ritmo próprios?” (IUS, 1995, p. 7).
O documento estende sua análise para a sociedade e pergunta-se como pode as IUS
localizar nela a sua atuação e sua contribuição:
Como as instituições salesianas de educação superior poderão dirigir-se não
só aos estudantes, mas também influenciar a criação de uma sociedade atenta
aos valores humanos e cristãos? Como uma instituição salesiana de educação
superior poderá entrar na defesa dos direitos humanos, em particular o
direito à vida e à educação? Como pode uma universidade criar laços com
toda a sociedade e estender-se ao campo social? (IUS, 1995, p. 7).
Dessas elaborações do documento pode-se afirmar que as instituições salesianas
buscam sistematizar-se e estruturar-se em termos de concepção confessional diante de si
mesmas, da tradição da Congregação e das sociedades em que estão inseridas. Nesse processo
de autodefinição, estão conscientes de serem portadoras de um sentido confessional próprio,
isto é, baseado no Evangelho e na tradição salesiana, e procuram trazer para o interior de suas
atividades e relacionamentos institucionais, em si e com a sociedade, a marca dessa
confessionalidade numa linguagem que seja adequada para a realidade da universidade; que
seja capaz de estabelecer significatividade e compreensão diante de seus interlocutores.
Algumas dimensões ganham importância nesse processo.
Os salesianos indicam nesse documento quais as áreas em que desejam que a sua
tradição educacional seja mais relevante e atinja maior influência. Ganha especial destaque
nesse sentido a concepção integral da pessoa e dos processos educacionais: busca-se
sistematizar uma concepção confessional salesiana que esteja integrada aos processos
culturais e de construção dos saberes. Com isso o projeto educacional que o documento
procura estabelecer quer evitar dicotomias internas na concepção educativa e também evitar
que a confessionalidade seja algo estranho, sobreposto ou paralelo, ao serviço educacional
empreendido. Nesses termos, expressa:
A presença na sociedade, na política e na Igreja é, para Dom Bosco, de
grande importância. Não queria somente atender aos jovens do oratório. A
universidade dirige o pensamento contemporâneo, desde uma posição
crítica e propondo valores constantes aos cidadãos e aos cristãos. Um
aspecto particular nesse sentido verifica-se na integração da cultura (a
ciência) com a sociedade (o povo) e a fé (o Evangelho). A universidade
salesiana deverá contemplar seriamente esta tarefa, tratando ao mesmo
tempo o estudo, o tempo livre e a celebração; adultos e jovens; leigos e
79
religiosos; instituição e família; conectando constantemente pedagogia,
didática, espiritualidade num mesmo movimento de educaçãoevangelização e evangelização-educação. O específico salesiano é enfocar
tudo desde uma ótica educativa (IUS, 1995, p. 8).
Retomando, nessa ótica, a questão do papel das IUS no conjunto das obras da
Congregação, o documento afirma:
A releitura do sistema preventivo nos dará a capacidade de dirigir nossas
obras (oratórios, escolas, paróquias, centros juvenis) de modo completo. A
qualidade de todas nossas obras depende de nossas universidades. O
pensamento salesiano é dirigido por quem pensa e aplica o estudo à realidade educativa ordinária. Nossas comunidades têm uma urgente necessidade
de ser iluminadas para interpretar e reler sua ação educativo-pastoral com
uma mentalidade integral e com ampla visão (IUS, 1995, p.9).
O documento atribui às IUS o papel de serem as responsáveis pela atualização da
tradição educacional da Congregação corroborada no Sistema Preventivo. Trata-se de tarefa
estratégica, da qual depende a continuidade das atividades educacionais da Congregação. A
essa tarefa está ligada a qualidade dessas obras. As IUS têm a responsabilidade de ser centro
de reflexão e reconstrução do pensamento educativo da Congregação que deve dirigir e gerir
com qualidade todas as atividades da Congregação nesse campo. Isso supõe que as IUS
tenham sólidos conhecimentos e vivência do Sistema Preventivo. Porém, o próprio
documento reconhece que as IUS estão buscando sistematizar sua maneira específica de
expressar e entender essa tradição. Aponta o documento no item doze da parte que traz a
síntese das apresentações de cada IUS: “[...] Questões em aberto: identidade salesiana; sentido
da missão salesiana universitária a serviço da Igreja; integração com o mundo salesiano”
(IUS, 1995, p. 11).
Diante disso, como poderão as IUS assumir a responsabilidade de ser um centro do
pensamento educacional salesiano se ainda não se estabeleceram em relação a essa
identidade?
O documento de Brasília reflete sobre a confessionalidade e a tradição educacional
salesiana e seus valores. Porém, não sistematiza a identidade confessional salesiana. Pode-se
caracterizar esse documento como expressão da tomada de consciência da Congregação para
o fenômeno da educação superior no conjunto de suas obras educacionais, mas não logra
definir claramente o perfil que se deseja construir nem de que forma a confessionalidade e a
tradição salesiana serão explicitados e darão consistência para a atuação da Congregação no
80
meio acadêmico. Tem o mérito de expor as grandes questões com o que o grupo dirigente das
IUS se defronta: como articular com coerência e de maneira sincrônica a educação superior e
os valores educacionais católicos e salesianos? Como, por um lado, garantir excelência
acadêmica para as IUS e, por outro lado, atualizar em seu interior toda a especificidade da
educação católica e salesiana? Os princípios são de certa forma, explicitados, mas não tomam
corpo orgânico e nem se desdobram em orientações práticas capazes de traduzirem os
princípios proclamados em eixos de ação e organização das IUS. Não traz desdobramentos
para gestão de maneira objetiva nem desencadeia um processo de mudança de rumos. Não
cria estruturas de acompanhamento nem metas ou objetivos comuns. Transparece que a
intenção global do documento é de expressar a atenção reflexiva da Congregação em relação
à educação superior. Verificar os desafios, colocar princípios que poderão ser amadurecidos e
pensados com vistas a um desenvolvimento ulterior.
Mesmo retomando a temática da gestão, apesar de não haver nenhuma tomada de
decisão que comprometa a prática nem desencadeie um novo processo, traz alguns pontos de
vista. Em primeiro lugar expõe um indicativo em termos de profissionalização da gestão,
apontando a necessidade de que se busque a qualidade da formação e o aperfeiçoamento
contínuo como uma exigência inerente ao meio universitário:
Antes de tudo será necessário criar uma mentalidade de busca constante. A
Congregação necessita viver um constante estado de formação. Devemos
dar-nos conta de que sem estudo não se influencia os processos da
sociedade. Para atender juventude com uma proposta de qualidade, é
necessário estar presentes onde se elaboram as estratégias da educação. Isto
requer pessoas preparadas e com experiência. (IUS, 1995, p. 9).
Essa afirmação é definidora, pois aponta um sentido que irá inspirar a atuação futura
da Congregação no campo da educação superior: a busca da profissionalização da
administração das IUS.
2.2 A Carta Circular “Por Vós Estudo”: identidade, qualidade e profissionalização
Uma clara repercussão dessa intuição do documento é a Carta do Reitor Mor Pe.
Juan Edmundo Vecchi, intitulada “Por vós estudo: a preparação adequada dos irmãos e a
qualidade do nosso trabalho educativo”, de 15 de setembro de 1997, escrita pelo Reitor Mor
Padre Juan Edmundo Vecchi. Essa carta é uma avaliação do Reitor Mor sobre o mundo da
81
cultura e as exigências que daí decorre para a formação dos salesianos que são chamados a
atuar no campo educativo nas diversas iniciativas e obras da Congregação ao redor do mundo.
Enquanto analisa a situação cultural da sociedade hodierna e orienta a Congregação para a
qualificação continuada com vistas ao trabalho significativo e de qualidade na Educação da
juventude, o Reitor Mor sublinha a importância das IUS e aponta para a necessidade de uma
nova programação e já traz a indicação de que o Conselho Geral irá acompanhar mais de
perto as IUS com vistas a uma melhor estruturação das mesmas. A Carta possui oito títulos e
uma conclusão. O oitavo item trata exclusivamente das universidades e demais instituições
salesianas de Educação Superior. Nela afirma: “[...] A qualidade emerge como exigência em
todos os setores da vida, da cultura e da ação. É retratada em termos de “excelência” a
perseguir, de “competência” a cultivar, de “qualidade total” a realizar”. Nesse sentido afirma
Beynon:
As novas teorias do ‘pós-fordismo’ e da ‘flexibilidade’ enfatizaram a
importância do trabalho e a necessidade gerencial que implica um
envolvimento de pessoal nas tomadas de decisão, já que as empresas
enfrentam um mundo cada vez mais complexo e imprevisível [...] As
companhias ‘enxutas’ e suas gerências põem mais e mais ênfase sobre a
necessidade de envolver seu quadro de funcionários, de desenvolver o
‘trabalho de equipe’ e de incrementar a educação e as oportunidades de
treinamentos disponíveis para os empregados, considerados como um dos
recursos mais valiosos de qualquer corporação. Nas livrarias, as prateleiras
das seções de administração de empresas estão abarrotadas de livros sobre
qualidade total, assunto comum nas cadeiras oferecidas pelas faculdades
hoje em dia. Este é o ‘zunzunzum’da década. (BEYNON, 1998, p. 16-17).
Se por um lado essa Carta do Reitor Mor está em sintonia com o documento de 1995
ao apontar a necessidade de qualificação de pessoal como expressão de profissionalização da
gestão e da atuação da Congregação na educação superior, por outro lado a mesma Carta
parece concordar com a análise precedente de que o documento de Brasília não estabelece
claramente a identidade das IUS. Assim explicita o Reitor Mor na Carta:
É indispensável, em primeiro lugar, traçar com maior clareza a identidade e
a orientação desses centros. Embora reconhecendo que têm uma organização
geral inspirada na mentalidade cristã e transmitem uma visão humanista e
religiosa, há sempre o risco de achatar-se na mentalidade dominante, mais do
que constituir-se como instâncias de diálogo e propostas alternativas. (ACG
361, 1997, p. 17)
82
Considerando que o documento de Brasília é de 1995 e a Carta do Reitor Mor é de
1997, pode-se estabelecer que o dirigente máximo da Congregação e o Conselho Superior
avaliam que é preciso continuar o caminho iniciado em Brasília, aprofundá-lo e defini-lo
melhor. Na visão do Reitor Mor, a sociedade e a cultura trazem desafios que requerem mais
das IUS em termos de embasamento e de organização para tornarem-se interlocutoras
qualificadas no ambiente cultural de então. Por meio dessa Carta o Reitor Mor expressa a
percepção sobre a globalização, que está presente numa nova época histórica:
A missão salesiana, como notávamos acima, entrou, em todos os lugares, em
fronteiras novas, geográficas ou culturais, e esse movimento não cessará
num futuro imediato. Antes, a mundialidade, as urgências pastorais, a
possibilidade de presenças influentes em raio amplo modificarão ainda o
nosso modo de agir. Uma visão sábia das coisas leva a prover às
necessidades locais, mas também a considerar a contribuição a ser dada a
algumas iniciativas que superam os horizontes inspetoriais e exprimem a
missão salesiana em nível regional, nacional e internacional. (ACG 361,
1997, p. 8).
Entendida como nova fase do processo civilizatório, a globalização não permite às
instituições subtrair-se à sua influência. Por isso percebe-se que o pensamento do Reitor Mor
nessa carta absorve alguns dos conceitos globalizados, especialmente a teoria do capital
humano, ao colocar como meta para o pessoal salesiano a qualificação com vistas a maior
produtividade e melhor consecução dos objetivos da Congregação.
Percebemos que não basta ser mais numerosos ou dispor de meios mais
poderosos para incidir mais; é preciso, sobretudo, ser mais discípulos de
Cristo, entrar mais profundamente no Evangelho, qualificar a vida das
comunidades, centrar melhor, do ponto de vista pastoral, os projetos e
intervenções. Com uma palavra que pode parecer ‘secular’, trata-se do
problema da qualidade; em linguagem evangélica, é a genuinidade e a força
transformadora do fermento. A qualidade emerge como exigência em todos
os setores da vida, da cultura e da ação. Fala-se dela em termos de
‘excelência’ a perseguir, de ‘competência’ a cultivar, de ‘qualidade total’ a
realizar [...] De outra parte, competências adequadas e reconhecidas são
hoje exigidas também pela diversificação e complexidade das intervenções
educativas, que comportam conhecimentos mais completos e práticas mais
consolidadas. Uma fraca qualidade profissional empobrece a proposta
educativa, diminui a incidência do nosso trabalho e, agravando-se, poderia
tirar-nos fora do campo da educação. Advertimos esse risco sobretudo em
alguns âmbitos onde as novidades aparecem mais evidentes, como a
comunicação social, o mundo universitário, as áreas da ‘insatisfação
juvenil’. (ACG 361, 1997 p. 11-12).
83
À primeira vista, a busca de competência e formação de pessoas parece não trazer
maiores problemas; porém, definir a qualidade pela via da “qualidade total” e da
“competência” aproxima o discurso da Congregação ao movimento do capital que busca na
qualificação das pessoas não a humanização, mas a expropriação de lucros:
Note-se que a sutil mudança de terminologia, de capital humano para capital
intelectual representa o avanço da classe hegemônica em seus propósitos de
objetivação, expropriação e controle do conhecimento. De acordo com
Nonaka e Takeuchi, novas formas de gerenciamento, que eles associam ao
modelo oriental, adotam a exploração do conhecimento tácito e não do
explícito, como no modelo ‘ocidental’. É na apropriação do saber tácito que
reside o ‘segredo’ da formação e preservação do capital intelectual. A Teoria
do Capital Humano e a Teoria do Capital Intelectual são, como faces da
mesma moeda, ao mesmo tempo iguais e diferentes: são iguais em sua lógica
instrumental, nas relações de produção fundadas no antagonismo que lhes
são subjacentes e são diferentes porque a expropriação é mais violenta, pela
alienação daquilo que, até então, era considerado inalienável: o saber. A
mudança de humano para intelectual denuncia esse processo de alienação:
não é mais o homem, o capital, mas sua parte ‘útil’, que pode ser
expropriada. O uso da terminologia ‘intelectual’ denota maior objetivação do
que o uso da terminologia ‘humano’, que remete à integralidade do ser. Em
Schultz a inalienabilidade era característica do capital humano: ‘Dado que a
educação se torna parte da pessoa que a recebe, referir-me ei a ela como
capital humano. Dado que se torna parte integral da pessoa, não pode ser
comprada ou vendida ou tratada de acordo com as nossas instituições, como
propriedade. Não obstante, é uma forma de capital se presta serviços de um
determinado valor’. (SANTOS, 2004, p. 17).
O Reitor Mor pretende que essa qualificação prepare criticamente os salesianos para
que não ocorra o “risco de achatar-se na mentalidade dominante” e sejam capazes de
“constituir-se como instância de diálogo e propostas alternativas”.
Se a Congregação absorve nessa Circular do Reitor Mor a mentalidade cultural
dominante, pretende que esse referencial contribua para a clarificação de seus princípios e
obras, ajudando a reestruturá-los ao momento histórico-cultural sem perder o que há de
genuíno. Quanto a essa reorganização e clarificação, assim afirma o Reitor Mor:
Numerosos documentos apelam para o esforço de uma clara organização. A
Igreja está levando adiante, em contexto de nova evangelização, a pastoral
da cultura que tende a produzir mudanças na concepção econômico-social,
na atitude diante da vida, na elaboração da ética, na criação de relações
novas, na proposta de um sentido que ilumine natureza, história e tensões em
ato (ACG 361, 1997, p. 6)
84
O Reitor Mor está em sintonia com as intuições de Brasília, porém aponta um novo
contexto e necessidades que ainda não foram abordadas pela Congregação. Essas
necessidades estão sendo explicitadas em termos de definição e sistematização da identidade,
qualificação, qualidade, organização e, portanto, gestão e sistematização. É o que se verifica
na seguinte passagem da Carta: “Nossas Universidades devem definir a sua orientação
conforme o caráter “católico” e a sua “filosofia educativa” em sintonia com os critérios
salesianos, constituindo-se em centros de formação de pessoas e elaboração de cultura de
inspiração cristã”.
É retomada a questão da identidade, percebida no I Encontro em Brasília, mas
também aponta novamente que é imprescindível defini-la, sistematizá-la, de tal maneira que
possa ser o caráter informativo das IUS, isto é, tenha a capacidade de ser um paradigma capaz
de distingui-la e alicerçá-la. Essa afirmação também une a identidade com a questão da
formação: num contexto que valoriza o conhecimento, a chamada “sociedade do
conhecimento”, exige da Congregação a qualificação de seu pessoal e de suas instituições;
mas permite também que suas instituições de educação superior formem pessoas qualificadas
segundo seu paradigma, isto é, segundo a identidade salesiana. Porém o sucesso dessa meta
ambiciosa da Congregação está ligada à qualidade da identidade estruturada e vivida no
interior das IUS. Essa percepção da Carta desemboca numa decisão, um tanto velada ainda, de
empreender um novo processo dentro da Congregação em relação à educação superior:
Essa é uma frente de missão relativamente nova e, portanto, a ser
acompanhada, coordenada e clarificada. Será preciso elaborar um
encaminhamento autorizado (o Projeto para as Universidades salesianas,
como plataforma declarativa da inspiração fundamental), promover o
diálogo e o intercâmbio entre essas instituições e acompanhar o caminho das
Inspetorias nessa nova experiência. (ACG 361, 1997, p. 16)
O Reitor Mor expressa a entrada em uma nova fase, já não mais apenas reflexiva.
Indica uma fase de acompanhamento, coordenação e clarificação bem como de intercâmbio e
diálogo entre as IUS. Essa fase pretende ser também caracterizada em termos de projeto. Na
passagem citada, “o Projeto para as Universidades Salesianas”. Uma série de elementos e
categorias novos estão sendo apresentados e gestados nessa Carta e, como será analisado
adiante, serão determinantes para a estruturação da Rede IUS. Pelo caráter global da Carta e,
mais especificamente, pela citação em análise, a Rede IUS se utilizará das ferramentas de
planejamento e gestão oriundas da Administração para embasar a sua identidade e caracterizar
85
a sua gestão. Na Carta do Reitor Mor esse pensamento administrativo se exprime em termos
de qualidade, qualificação do pessoal salesiano ligada à qualificação institucional, definição
sistemática e qualificada da identidade em termos culturais, católico e salesiano, vista desde já
como “plataforma declarativa de inspiração fundamental”.
Desse ponto de vista pode-se afirmar que o documento de Brasília, em relação à
definição da Identidade é ainda incipiente. Mesmo em termos de construção da Rede IUS não
é definidor. Não obstante é rico em termos de levantamento de questões que serão debatidas e
estudadas pela Congregação na outra fase já indicada pelo Reitor Mor na sua Carta. Com base
nessas reflexões, retomadas de forma sistemática em outros referenciais, especialmente os
referenciais da teoria do capital humano, da administração e gestão no contexto da
globalização ou mundialização, serão sistematizados os projetos e princípios da Congregação
para a sua atuação na educação superior.
É interessante notar que entre o documento de Brasília, de 1995, e a Carta do Reitor
Mor, de 1997, passam-se dois anos e meio. Por esse tempo o documento de Brasília parece
esquecido e a questão da educação superior deixada à parte, sem a produção de nenhum novo
documento público da Congregação em relação a esse tema. Quando surge a Carta em 1997, o
tema é trazido à tona dentro de uma nova perspectiva de análise por parte do Reitor Mor e do
Conselho Superior da Congregação: deseja-se profissionalizar as IUS, planejá-las e
sistematizá-las, aglutinando-as numa nova perspectiva.
Retomando na análise a questão da historicidade do processo de construção da
identidade, essa mudança de impostação da reflexão e gestão das IUS leva à pergunta: por que
a mudança de rumos? O que acontece para que de um encontro incipiente em Brasília passese a uma postura de vontade sistemática de acompanhamento?
Verificou-se no capítulo anterior que as IUS experimentam um crescimento
acentuado ao longo da década de 1990 passando a ter um peso expressivo no conjunto das
obras da Congregação. Por outro lado o movimento de expansão acontece de maneira mais
expressiva em países em desenvolvimento onde a educação superior não é universalizada.
Esse movimento acontece também no contexto sócio-econômico de mundialização do capital
e conseqüente reforma do Estado. Nesse contexto, antigos direitos são rediscutidos
especialmente o do acesso à educação. A educação começa a ser objeto de negociação nos
organismos internacionais por pressão de grupos que entrevêem a possibilidade de lucros com
a exploração de serviços educacionais ao perceberem a forte demanda por educação superior
86
nos países emergentes. Esse é o fator determinante para que a estruturação da rede IUS
aconteça a fim de que seja um meio de fortalecimento de suas afiliadas em termos de gestão e
identidade, pois se começa a sofrer uma forte pressão com a transformação da educação em
bem de serviço e sua entrega nas mãos da iniciativa privada. Essa tendência acompanha o
movimento do capital que encontrou no setor de serviços uma nova fronteira de exploração e
uma das últimas possibilidades de investimentos lucrativos:
Visto sob o ângulo das necessidades do capital concentrado, o duplo
movimento de desregulamentação e de privatização dos serviços públicos
constitui uma exigência que as novas tecnologias vieram atender sob
medida. Atualmente, é no movimento de transferência, para a esfera
mercantil, de atividades que até então eram estritamente regulamentadas ou
administradas pelo Estado, que o movimento de mundialização do capital
encontra suas maiores oportunidades de investir. (CHESNAIS, 1996, p.
186).
A construção da Rede pretende-se assegurar que as IUS não sejam apenas uma oferta
privada de educação superior e que a gestão adequada ofereça condições de sobrevivência
econômica. Por isso pretende-se demonstrar, nesta análise que se está construindo, que a Rede
IUS une gestão e identidade como dois feixes de sustentação institucional que se
complementam e entrelaçam a fim de se dar consistência para suas afiliadas seja do ponto de
vista administrativo seja do ponto de vista da identidade que pretendem constituir.
Nesse sentido o documento traz outras problemáticas enfrentadas em relação à
identidade salesiana. Entre essas, o documento coloca os destinatários das IUS, isto é, os
alunos a que pretendem atingir. Pela tradição da Congregação, seus serviços educacionais
estavam voltados para a juventude das classes populares. Porém, ao longo da sua história, a
Congregação multifacetou o público por ela atendido, recebendo em suas instituições classes
mais abastadas. Nesse sentido, assim se expressa o documento: “[...] Destinatários:
ordinariamente a juventude da classe média-baixa; intencionalidade popular e opção pelos
pobres, especialmente nos serviços de extensão, de caráter social.” (IUS, 1995, p. 10).
Como declaração de princípios, há coerência com a tradição da Congregação. Porém
vive-se aí um conflito que abarca duas vertentes: primeiro, o documento reconhece, de maneira
sutil, que os alunos das IUS são oriundos de “classe média”, aqui adjetivada de “baixa”, o que
implica que as “classes pobres” não estão freqüentando suas salas de aula. Segundo, o documento
compromete as IUS com uma “intencionalidade popular”, o que é coerente, e significa erigir o
87
foco nas classes populares como um critério de ação e um princípio norteador para as decisões e o
posicionamento das IUS nas sociedades em que estão.
Não obstante, essa intencionalidade aparece ligada às classes pobres somente como
serviços de extensão, isto é, como atendimento social que as IUS prestam à sociedade
envolvente. Somente aí o foco prioritário é realizado, sendo a juventude dessa classe deixada
em segundo plano no atendimento principal, isto é, como alunos dos cursos que estas
oferecem. Essa contradição é sentida pelo próprio documento que reconhece as exigências
inerentes à educação superior de qualidade como geradoras de custos altos demais para serem
bancados pela juventude das classes populares. O gráfico seguinte apresenta o custo anual por
aluno em dólares americanos nas IES da América Latina e Caribe, onde se encontra uma
grande população de jovens de baixo poder aquisitivo. Considerando-se que a renda das
classes mais baixas na região não ultrapassa a média de mil dólares anuais, pode-se inferir que
muitos jovens estão sem condições de arcar com os custos da educação superior.
Gráfico 07
Custo Anual por Aluno
Fonte: IESALC/UNESCO, 2007, p. 17.
88
O documento de Brasília exprime essa contradição como um dilema de difícil
solução, por meio de uma pergunta: “[...] Como balancear excelência, qualidade e
popularidade?” (IUS, 1995, p. 12).
Essa mesma contradição é apresentada no discurso do Reitor-Mor da Congregação
por ocasião de sua visita à Universidade Católica Dom Bosco em Campo Grande-MS: “[...]
Então, a Universidade tem que ser uma comunidade com uma clara proposta educativa e
cultural, de alto nível. Popularizar a Universidade significa pô-la ao alcance dos pobres, não
significa abaixar o nível” (CHÁVEZ, 2004, p. 8). O Encontro de Brasília assim se expressa
sobre essa temática: que as IUS “[...] sejam sensíveis aos setores de recursos escassos” (IUS,
1995, p. 18).
Porém, o que acaba ocorrendo nas IES privadas e, logo, também nas IUS é que as
melhores instituições, devido às suas taxas elevadas, recebem os alunos melhor posicionados
economicamente enquanto os de menor poder aquisitivo freqüentam instituições de qualidade
duvidosa. Neste sentido afirma a UNESCO em relação às IES privadas da América Latina e
Caribe:
Em geral, as IES privadas dependem fundamentalmente dos pagamentos
efetuados pelas famílias ou pelos estudantes. Os dados mostram que cerca de
90% da receita das IES privadas da região depende desses pagamentos. A
exceção é a Colômbia e a Bolívia onde a receita advinda de outras fontes
chega a 30%. Por ser as famílias que financiam a educação privada, tende-se
a reproduzir as iniqüidades da sociedade: as famílias com maiores recursos
enviam seus filhos a boas IES privadas que têm maiores custos anuais
enquanto as famílias de menor poder aquisitivo, quando podem financiar a
educação superior, o fazem em instituições de menor custo e qualidade.
(IESALC/UNESCO, 2007, p. 77-78).
Apesar da abertura aos setores mais pobres da população, o documento das IUS não
apresenta caminhos a serem seguidos para atingir o objetivo de atender a demanda desses
setores por educação superior, sem perder a qualidade dos serviços ofertados. Por outro lado
há uma clara defrontação com a escassez de recursos que limita a concretização com
segurança daquele objetivo. Aí encontra-se o impedimento para a implementação desse ponto
da identidade católica salesiana na educação superior.
Essa contradição aprofunda-se especialmente no caso do Brasil em que apenas 13%
(INEP, 2004) da população em idade de cursar a universidade estão freqüentando a educação
superior. Os dados do IBGE/PNAD indicam, conforme tabela a seguir, que o perfil
89
socioeconômico desses, em sua maioria, é de jovens das classes que possuem renda familiar
de cinco ou mais salários. A juventude em idade de cursar a educação superior e que está fora
da mesma pertence às classes mais baixas, com renda inferior a três salários.
Gráfico 08
Fonte: Braga, 2004, p. 15.
A contradição torna-se contundente ao se ver os dados sobre o ensino médio no país:
enquanto há uma crescente tendência de universalização desse nível de ensino, a educação
superior, apesar das taxas de crescimento da última década, dá sinais de esgotamento dos
canais de democratização. Observa-se no próximo gráfico como as taxas de escolarização
líquida e bruta do ensino médio se comportam nessa década, variando de 40% a 60% e 93% a
108% respectivamente. Comparando-se com a taxa de escolarização da educação superior, em
torno de 13% (MEC/INEP 2005), percebe-se que há um estrangulamento na passagem de um
para o outro nível de educação.
90
Gráfico 09
Fonte: Braga, 2005, p. 13.
As universidades privadas empresariais e as privadas confessionais exibem
crescentes índices de ociosidade de suas vagas, o que denota saturação do setor pelo fato de
não haver mais famílias em condições de financiarem-se no pagamento de mensalidades. O
gráfico seguinte demonstra como o número de vagas nas IES privadas brasileiras são
superiores ao número de ingressantes.
91
Gráfico 10
Fonte: Braga, 2005, p. 21.
O setor privado dá sinais de esgotamento do ciclo de expansão e setor público não
tem recebido investimentos necessários para a sua expansão consistente, apenas paliativos
como o recente Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI), do governo federal. Em sua apresentação, o governo federal reconhece a
estagnação do setor privado e a necessidade de investimentos públicos na educação superior
para o atendimento da demanda:
Embora a maior oferta de vagas na graduação ocorra hoje no setor privado
de ensino superior, a expansão desse setor apresenta sinais de esgotamento,
principalmente pela saturação de mercado em várias profissões e pela
inadimplência de segmentos sociais incapazes de arcar com o alto custo da
educação superior. Desta forma, a ampliação das vagas na educação superior
pública torna-se imperativa para o atendimento da grande demanda de
acesso à educação superior. (BRASIL, REUNI, 2007, p. 7).
O Programa pretende apoiar o país para alcançar a meta traça no Plano Nacional de
Educação de que 30% dos jovens entre 18 e 24 anos estejam na educação superior até o final
92
da década, tendo como objetivo estabelecer condições que permitam as universidades federais
subsidiarem o ingresso de um numero maior de alunos:
Criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação
superior, no nível de graduação, para o aumento da qualidade dos cursos e
pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos
existentes nas universidades federais, respeitadas as características
particulares de cada instituição e estimulada a diversidade do sistema de
ensino superior. (BRASIL, REUNI, 2007, p. 10).
Pretende aumentar a taxa de conclusão dos cursos de graduação e a relação entre o
número de professores por alunos:
A meta global do programa é alcançar, gradualmente, ao final de cinco anos,
a contar do início de cada plano: taxa de conclusão média de noventa por
cento nos cursos de graduação presenciais; relação de dezoito alunos de
graduação por professor em cursos presenciais. (BRASIL, REUNI, 2007, p.
12).
É paliativo no sentido de que não prevê aumento de vagas, mas estabelece estratégias
apenas para a diminuição dos índices de evasão por meio do melhor aproveitamento de
recursos materiais e humanos já disponíveis. Entretanto não deixa de cumprir o papel de
estimular a adoção de políticas públicas que favoreçam a democratização além de que
aumenta os investimentos do Estado na educação superior.
Apesar de ser um programa paliativo, o REUNI tem uma forte repercussão para as
IUS no Brasil porque tende a agravar o quadro do esgotamento e conseqüente ociosidade das
vagas. Nesse contexto, se colocam o objetivo de atender a juventude das classes populares. A
democratização do acesso compõe sua concepção de educação superior:
As IUS realizam uma opção preferencial pelos jovens das classes populares,
superando qualquer postura elitista, não apenas em relação aos destinatários,
mas também na orientação da pesquisa e no desenvolvimento dos diversos
serviços universitários. Isso implica algumas escolhas: a) favorecer o acesso
à universidade aos jovens que provenham dos ambientes populares e do
mundo do trabalho; [...]. (Identidade, 2003, p. 10).
Porém, como realizar esse objetivo num contexto adverso economicamente? As IUS
possuem políticas nesse sentido como as bolsas de estudo, estágios remunerados e parceria
com os governos. Porém não logram atingir plenamente esse objetivo pela escassez das fontes
de recursos já que sua maior fonte de receita são as mensalidades.
93
2.3 O Documento Identidade: Projeto Institucional, Identidade e Gestão
Procura-se analisar nesse item como o documento Identidade da Rede IUS constrói
relações entre identidade, gestão e projeto institucional, procurando demonstrar que a rede
assimila, dessa forma, as tendências globalizadas para a educação superior.
A Sociedade de São Francisco de Sales, entrando numa nova fase de concepção das
IUS, procurou definir mais amplamente a sua atividade educacional na educação superior.
Três documentos são referenciais neste processo instaurado em 1997: o Dossiê e o
Diagnóstico da situação das IUS; o documento Identidade das IUS; e o documento Políticas
para as IUS 2003-2008. O Conjunto desses três documentos constitui o Marco Referencial
para a presença salesiana na educação superior.
O trabalho de construção desses documentos foi denominado Programa Comum I das
IUS 1998-2001. Esse Programa foi delineado durante o II Encontro das IUS realizado em
Roma em 1998, de 10 a 13 de julho e reuniu todos os reitores, os inspetores salesianos, o
Reitor Mor dos salesianos e membros do Conselho Geral com o objetivo de “acordar um
plano de ação trienal, cujo desenvolvimento ajudasse a definir o futuro das IUS” (Identidade,
2003, p. 21) com base em uma referência comum.
Decidiu-se nesse II Encontro das IUS elaborar e definir um documento denominado
“A Identidade das IUS”. Para tanto foi nomeada uma comissão entre os membros
participantes que elaborou um instrumento de trabalho posteriormente submetido à apreciação
de todas as IUS durante a Conferência 2000 realizada por regiões: em junho de 2000 em
Quito, Equador, para as IUS latinas; em fevereiro de 2001 em Benediktbeurn, Alemanha, para
a Europa anglo-saxônica e, no mesmo mês, em Bancoc, para a Ásia. De 13 a 17 de julho de
2001 realizou-se o III Encontro das IUS, em Roma. A Assembléia aprovou o redação do
documento que em julho de 2002 foi submetido à apreciação e aprovação do Reitor-Mor e do
Conselho Geral, sendo aprovado em 7 de janeiro de 2003.
O Documento Identidade (2003) ficou estruturado em uma introdução e dois
capítulos: o primeiro “Identidade das IUS” e o segundo “Escolhas operativas fundamentais
das IUS”. A Introdução é dividida em duas partes e treze números. A primeira parte,
composta pelos sete primeiros números, apresenta as relações históricas e conceituais entre a
Congregação e a educação superior; a segunda parte, do número oito ao treze, apresenta as
finalidades do documento entre as quais destacam-se: “definir as características da presença
94
salesiana na educação superior” e a de que o documento seja “fonte principal de inspiração e
de orientação do Projeto institucional com que cada uma das IUS justifica, planeja e realiza a
sua ‘missão’ cultural e científica, educativa e pastoral, como serviço salesiano a uma
sociedade concreta” (Identidade, 2003, p. 9).
No Capítulo I, Identidade das IUS, são traçados referenciais importantes como a
concepção educacional a ser seguida, de caráter explicitamente humanista, cristão e salesiano;
apresenta também elementos que compõem a identidade específica das IUS: primeiro, a opção
pela juventude das classes populares que deve influenciar as iniciativas de pesquisa, ensino e
extensão, as intervenções sociais e a formação de colaboradores e docentes. Segundo, o
compromisso de todos os membros da comunidade acadêmica com o projeto institucional de
formação e construção da verdade, baseado na interdisciplinaridade, no trabalho cooperativo e
na co-responsabilidade. Terceiro, a orientação cristã e salesiana do projeto institucional por
meio de “[...] uma concepção humana fundada no Evangelho, de uma consciência ética
fundada nos valores da justiça e da solidariedade, do diálogo entre as culturas e as religiões,
da atenção especial ao âmbito da educação, à formação dos educadores, ao campo da técnica e
do trabalho, e ao mundo da comunicação” (Identidade, 2003, p. 14). Quarto, a
intencionalidade educativo-pastoral do projeto institucional “[...] segundo as características da
pedagogia e da espiritualidade salesiana” (Identidade, 2003, p. 15).
Outra referência importante nesse capítulo é a definição do caráter acadêmico que se
deseja construir em cada IUS. Transparece no item primeiro “natureza das IUS” uma clara
opção por instituições que sejam concebidas em termos clássicos de promoção da pesquisa,
do ensino e da extensão, valorizando, assim, o caráter científico e acadêmico das IUS. Afirma
o documento que as IUS têm por finalidade promover “[...] o desenvolvimento da pessoa
humana e do patrimônio cultural da humanidade, mediante a pesquisa, a docência, a formação
superior e contínua e os diversos serviços oferecidos às comunidades locais, nacionais e
internacionais” (Identidade 2003, p. 11).
No capítulo II, Escolhas Operativas Fundamentais das IUS, o documento procura
apontar caminhos que valorizem a formação dos colaboradores, sujeitos da comunidade
acadêmica, capazes de empreender um projeto amplo de formação e construção do
conhecimento que visam a “construção de uma nova sociedade, cujo centro é o ser humano
entendido em suas dimensões histórica, cultural, pessoal e coletiva, imanente e transcendente”
(Identidade, 2003, p. 18).
95
Outra indicação importante desse capítulo é a de que as IUS passem a trabalhar com
um “projeto institucional – de caráter cultural e científico, pedagógico-educativo e pastoral
(Identidade, 2003, p. 18)” que seja capaz de exprimir a especificidade de cada IUS frente às
demais ofertas de educação superior nos locais onde estão inseridas.
Ressalta-se também, nesse capítulo, que as IUS desejam alcançar incidência e
significatividade na sociedade em coerência com sua natureza e identidade. Essa incidência
deve ser buscada por meio da pesquisa e do ensino em áreas do conhecimento que estejam em
sintonia com a missão salesiana; através de projetos que estimulem o envolvimento de outras
instâncias da sociedade voltadas para a educação popular; através da “sinergia” entre as IUS e
outras entidades (Identidade, 2003, p. 19).
O documento insiste que a finalidade de criação do serviço às IUS e a
institucionalização de sua rede é:
[...] buscar as condições gerais comuns que assegurem, seja em cada uma
das instituições como no seu conjunto, uma presença salesiana significativa
em nível científico, educativo e pastoral, entre os centros que produzem e
promovem cultura na sociedade. (Identidade, 2003, p. 8).
Com base nessa afirmação, entende-se que o objetivo final da Rede é de assegurar as
“condições gerais comuns” para que a IUS possam ter espaço de destaque “entre os centros
que produzem e promovem cultura na sociedade”, isto é, entre as demais instituições de
educação superior. Portanto infere-se que o estabelecimento da rede IUS visa assegurar
qualidade dos fundamentos institucionais a fim de que esteja garantida a “presença salesiana
significativa” de cada uma de suas afiliadas e também do seu conjunto. Esta presença é
entendida em termos “científico, educativo e pastoral”.
Em outras palavras, a compreensão do por que dessa Rede deve ser buscada na
tentativa da congregação salesiana de assegurar qualidade às suas IES para oferecer às
mesmas continuidade e diferenciação no contexto dos demais “centros de produção e
promoção de cultura na sociedade”. O texto parece indicar que existe uma preocupação com a
qualidade institucional, com a fidelidade aos princípios educacionais da congregação e, ao
mesmo tempo, uma preocupação com a concorrência que as IUS enfrentam. Essa citação
apresenta também os elementos que devem compor a qualidade ou significatividade das IUS:
a qualidade deve ser alcançada nos campos “científico, educacional e pastoral”. Por outro lado
96
o grande espectro sobre o qual repousa o tema da “presença significativa” é o da identidade,
entendida como “condições gerais comuns”.
A questão da identidade constituiu-se como a primeira preocupação no movimento
de constituição da Rede. Tanto é que ela compôs um dos eixos temáticos do Programa
Comum I definido pelos dirigentes máximos das IUS e integra o marco de referência da rede
IUS. O próprio fato de a Rede compilar o documento Identidade expressa a centralidade do
tema para a Rede. Além de conceber a identidade como “condições gerais comuns”, o
documento toma a identidade sob a impostação de “orientações gerais que permitam a cada
comunidade acadêmica universitária elaborar o próprio projeto cultural-científicotecnológico-educativo-pastoral salesiano” (Identidade, 2003, p. 9).
Por isso pode-se inferir que o documento precisa construir um referencial comum a
ser partilhado por todas as IUS, considerando a sua heterogeneidade institucional, cultural e
jurídica. Trata-se de buscar um ordenamento de princípios que assegure uniformidade de
fundamentos capazes de justificar a razão de ser dessas instituições e de enquadrá-las e
conferir-lhes um lugar próprio no conjunto de obras mantidas pela congregação salesiana.
Em outra vertente, a identidade possui um aspecto prático: orientar o planejamento
institucional das IUS. O planejamento não seguirá apenas as nuances dos contextos em que
estiverem as IUS, mas deverá seguir um referencial pré-definido, construído em comum.
Quer-se, desta forma, atingir também uma certa uniformidade na linguagem dos planos e no
processo de planejamento. É importante notar o entrelaçamento entre identidade e
planejamento: a rede objetiva que o planejamento seja canal privilegiado para a explicitação e
construção da identidade e que, por outro lado, o planejamento tenha na identidade sua fonte
inspiradora:
[...] a aspiração mais imediata deste documento é tornar-se fonte principal de
inspiração e de orientação do Projeto institucional com que cada uma das
IUS justifica, planeja e realiza a sua missão cultural e científica, educativa e
pastoral, como serviço salesiano a uma sociedade concreta da qual se sente
parte e em favor da qual se empenha com todas as suas forças (Identidade,
2003, p. 9).
O documento frisa que pertencer à Rede IUS significa partilhar uma concepção
prática, definida em planos de ação, sobre educação superior, ciência e pastoral. Ainda nesse
sentido, o número 8, letra “b” estabelece como finalidade do documento Identidade: “ajudar
as IUS na implantação de um Projeto institucional”. Já a letra C afirma que outra finalidade
97
desse documento está relacionada a “imprimir uma orientação autorizada e estável sobre a
qual promover, ao longo dos anos [...] políticas e planos estratégicos para toda a Congregação
no campo universitário”.
Levando-se em consideração que a identidade é um processo em construção é
interessante essa perspectiva do documento que elege o processo de planejamento e de
definição de políticas como meios, ferramentas decisivas para sua concretização. É no interior
desse processo que se galgará atingir a identidade proclamada ou não. No horizonte da
importância do planejamento para a construção da identidade, cabe visitarmos o capítulo “I.
Identidade das IUS”. Esse capítulo possui dois subtemas distribuídos entre os números 14 a
24 do documento. O subtema 2 intitula-se “Elementos de identidade das IUS” e compreende
os números de 18 a 24, compondo-se em quatro itens. O título do segundo item é
“Comunidade acadêmica comprometida com o projeto institucional” e abrange os números 20
e 21. O terceiro item intitula-se “Projeto institucional salesianamente orientado”. O segundo
capítulo do documento, “Escolhas operativas fundamentais das IUS” [25-33] possui quatro
subtemas, sendo que o primeiro é “trabalhar com um projeto institucional” [26-28].
Pretende-se, desta maneira, demonstrar como o tema do planejamento – definido
como “projeto institucional” - percorre todo o documento Identidade das IUS e liga-se
estreitamente ao tema da identidade: Ao procurar definir sua identidade, as IUS elegem o
“projeto institucional” como um dos elementos fundantes de sua identidade e não apenas
como um meio de expressar sua identidade de forma prática. Nesse sentido o subtema
“Elementos de identidade das IUS” é cabal ao apresentar como um dos elementos dessa
identidade a “Comunidade acadêmica comprometida com o projeto institucional” [20-21]:
Uma instituição salesiana de educação superior se configura como a
comunidade de todos aqueles que, segundo a própria responsabilidade
acadêmica e profissional, em sintonia com os valores cristãos e salesianos do
projeto institucional, se empenham na busca da verdade e na missão
formadora de modo co-responsável e aberto às diversas realidades culturais e
sociais (Identidade, 2003, p. 13).
Um segundo subtema revelador, nesse sentido, é o que compõe o terceiro elemento
da identidade: “Projeto institucional salesianamente orientado”: “também as IUS, como as
demais universidades, realizam a pesquisa, organizam o ensino e difundem a cultura, visando
o saber, o saber fazer, o saber ser e o saber comunicar e partilhar. Isso o exprime num próprio
projeto institucional universitário” (Identidade, 2003, p. 14, n. 22).
98
Já o segundo capítulo “Escolhas operativas fundamentais das IUS” afirma no
subtema “1. Trabalhar com um projeto institucional”:
Cada IUS representa a vontade manifesta da Congregação salesiana de estar
presente no campo da educação superior com uma missão específica. Esta se
expressa num específico projeto institucional – de caráter cultural e
científico, pedagógico-educativo e pastoral, organizativo e normativo, o
qual, respondendo às exigências da realidade local e da universidade, plasma
e aplica de modo global em termos operativos a identidade acima descrita.
Não se pode conceber um trabalho rigoroso na universidade por parte das
IUS sem a referência e a condução de um projeto institucional. (Identidade,
2003, p. 17, n. 26).
O documento caracteriza, ainda, a evolução e a natureza desse projeto: “O projeto se
desenvolve progressivamente mediante planos estratégicos e planos operativos limitados nos
objetivos e no tempo” (Identidade, 2003, p. 17, n. 28).
Transparece assim que o Projeto Institucional é garantia de que a Identidade atinge o
cotidiano institucional, garante também rigor universitário, sendo sua chave de sucesso
acadêmico e dá o tom específico de cada IUS no contexto das diversas ofertas de educação
superior. Neste último sentido, acrescenta: “Do conjunto do projeto institucional deveriam
aparecer evidentes as características específicas de cada uma das IUS perante as outras ofertas
no ensino superior do mesmo território”.
A diferenciação das IUS vem da sua identidade estruturada em um projeto
institucional de educação superior. Como se vê a centralidade do Projeto institucional em
relação à identidade, qualidade institucional e acadêmica, diferenciação e enfrentamento da
concorrência é primordial e ganha amplo destaque no documento.
Conclui-se do até agora analisado que a identidade, entendida em termos de
“condições gerais comuns” e de “orientações gerais”, possui um elemento de planejamento
definido como “projeto institucional”. Significa afirmar que a identidade das IUS constrói-se
com um elemento de gestão e está voltada para ela. A identidade pretende erigir-se como um
princípio gestor das IUS; que tenha, portanto, reflexos decisivos na condução acadêmicoadministrativa dessas IES. Isto significa também que a identidade é concebida na perspectiva
de projeto, isto é, está orientada para a práxis do cotidiano e para a orientação do futuro: é
elemento fundante das ações do presente e das possibilidades de continuidade institucional.
99
Estabelecido, pela análise, o entrelaçamento entre identidade e planejamento no
interior do documento Identidade das IUS, cabe agora analisar como se desdobra, na
constituição da Rede, essa associação entre identidade e planejamento.
No segundo capítulo, o subtema “2. Escolha e formação permanente dos docentes e
dos gestores das IUS”, após realçar a exigência de formação permanente de professores e
gestores, afirma: “Esse processo de formação permanente deve promover nos docentes e
gestores um perfil adaptado às exigências do projeto institucional”. Esse perfil é descrito em
cinco letras. Dentre elas destacam-se: “a) capacidade de auto-formação e auto avaliação; b)
capacidade de compartilhar um projeto institucional”; “e) capacidade de gestão universitária
eficaz e competente”.
O tema do projeto institucional repercute não só na identidade, mas também no
projeto de formação e no perfil profissional dos principais membros da comunidade
acadêmica: professores e gestores. A formação desses deve prepará-los para vivenciar uma
cultura de planejamento, em que a referência constante a um projeto institucional deve marcar
toda e qualquer iniciativa. Nota-se também que por meio do projeto institucional adentram os
temas da avaliação e da gestão.
No mesmo capítulo segundo, o subtema “Gestão da qualidade”, após definir o que se
entende por “gestão de qualidade”, elenca os onze requisitos necessários para assegurar a
qualidade. Desses, quatro têm relação direta com o planejamento/plano institucional:
consideração pelo Projeto institucional da universidade como verdadeira magna charta;
articulação do Projeto com planos estratégicos e planos operativos particulares;
sistematicidade e disciplina no desenvolvimento do Projeto e dos planos; avaliação rigorosa e
constante das realizações.
Das análises dos três documentos aqui apresentados, pode-se concluir que o processo
de implantação da Rede Internacional das IUS busca estabelecer cooperação e também
padrões de gestão dessas instituições a fim de que possam operar de maneira orgânica e
sistemática em sua gestão e realização de projetos e atividades acadêmicas. Esse processo está
sendo construído por meio de documentos que traduzem a assimilação de uma linguagem
profissional, voltada para resultados, eficiência e eficácia, denotando aceitação de padrões de
qualidade assumidos por organismos internacionais. Por outro lado os documentos explicitam
uma visão própria e específica de educação superior e de políticas que diferem das
concepções neoliberais de educação entendida apenas como serviço a ser explorado em
100
função do lucro e da formação de capital financeiro erigido dessa exploração. Difere também
no sentido de que a Rede IUS possui uma concepção ampla de educação superior, entendida
de forma clássica – ensino, pesquisa e extensão, e acresce a essa a sua visão humanista e cristã
que tem suas raízes na experiência educativa da Congregação Salesiana e na finalidade da sua
presença na educação superior. Essa concepção traduz-se num projeto integral de educação e
formação do ser humano: “As IUS, por isso, se caracterizam pela sua opção em favor da
juventude das classes populares, pelas comunidades acadêmicas com clara identidade
salesiana, pelo projeto cultural, cristã e salesianamente orientado, e pela intencionalidade
educativo-pastoral” (Identidade, 2003, p. 12, n. 18).
Conclui-se desse processo, que ao empreender a constituição da Rede, as IUS
procuram, pelo analisado, defender sua identidade num momento delicado de elaboração de
políticas capitalistas neoliberais sobre a educação superior que tem comprometido e ameaçado
a sua proposta educacional seja pela via da concorrência, seja pela via da concepção
distorcida de educação trazida pela fundamentação da globalização do capital.
Essas políticas trouxeram uma acentuada diversificação das instituições que
promovem educação superior não com o intuito de possibilitar a sua democratização, mas de
servir à obtenção de dividendos. Ao longo dos anos/1990 e inícios dos anos 2000, a educação
superior brasileira demonstrou pujante crescimento impulsionada pelo avanço do setor
privado que detém o maior número de instituições:
Das 162 universidades, 43 (26,5%) são federais, 31 (19,1%) são estaduais, 4
(2,5%) são municipais e 84 (51,9%) são privadas. Da totalidade dos centros
universitários, apenas um é federal e dois são municipais; os outros 74 são
privados. Das 105 faculdades integradas, três são municipais e 102 são
privadas. Das 1.240 faculdades, escolas e institutos, sete (0,6%) são federais,
25 (2,0%) são estaduais, 48 (3,9%) são municipais e 1.160 (93,5%) são
privadas. Dos 53 centros de educação tecnológica, 22 são federais, nove são
estaduais e 22 são privados. (Inep, 2003). (OLIVEIRA, 2006, p. 16).
Esse processo mudou a face da educação superior no Brasil, diversificando-a do
ponto de vista institucional, indicando predomínio de instituições que se dedicam
prioritariamente ao ensino de graduação:
O Brasil já possuía uma grande diversificação em seu sistema de ensino
superior mesmo antes da Constituição de 1988. Essa diversificação se
aprofundou a partir da aprovação da Lei nº 9.394, de 20/12/96 (LDB). Dados
do MEC/Inep/Seec, do Censo das Instituições de Ensino Superior de 2002,
mostram que o sistema possui 1.637 instituições; dessas, 162 (9,9%) são
101
universidades, 77 (4,7%) são centros universitários, 105 (6,4%) são
faculdades integradas, 1.240 (75,7%) são faculdades, escolas e institutos e
53 (3,2%) são centros de educação tecnológica (Inep, 2003). Predomina,
portanto, nesse cenário, um conjunto de instituições que prioritariamente
desenvolvem atividades relacionadas ao ensino de graduação. (OLIVEIRA,
2006, p. 16).
Quanto ao numero de alunos matriculados, o período 1989-2002 proporciona um
crescimento extraordinário de 129,1%. Desse total o setor privado participa com 76,2% das
matriculas novas. O setor privado no período 1995-2002 expande-se fortemente, acumulando
índice de 129,3%, enquanto que as instituições públicas federais crescem 44,7% e as estaduais
73,7% (OLIVEIRA, 2006, p. 17).
Todo esse crescimento é motivado pelas taxas crescentes de alunos concluintes do
ensino médio que demandam acesso na educação superior. Também o Plano Nacional de
Educação (PNE) influencia como política catalisadora desse processo de expansão no sentido
de atingir a meta de matricular 30% dos jovens entre 18 e 24 anos na educação superior. Sua
influência cresce ao se considerar o veto do então Presidente da República Fernando Henrique
Cardoso à meta de assegurar o aumento do número de vagas no setor público de tal forma que
nunca fosse inferior a 40% do total oferecido pelo sistema. Destarte, o caminho escolhido
para se atingir a taxa de escolaridade de 30%, foi o da iniciativa privada (OLIVEIRA, 2006,
p. 18).
Porém os dados do INEP apontam para uma taxa de escolaridade líquida na educação
superior de aproximadamente 12,1% atualmente. O aumento de vagas no setor privado foi
ineficaz para se alcançar a meta estabelecida no PNE uma vez que ainda estando com o índice
de escolaridade em torno 12,1%, o setor privado apresentou em 2002 37,4% de ociosidade no
preenchimento de suas vagas enquanto esse índice atinge 7% no setor público (OLIVEIRA
2006, p. 19).
Portanto a meta não foi atingida via privatização não porque o setor privado criou
vagas insuficientes, mas porque dá sinais de esgotamento em sua capacidade de expansão
devido à falta de condições de pagamento de mensalidades por parte das camadas mais pobres
da população que estão chegando às portas da universidade. Amaral (2006), ao analisar essa
problemática, coloca os seguintes questionamentos:
Esse duplo movimento, um pequeno porcentual de vagas não-preenchidas
nas públicas e um elevado porcentual de vagas não preenchidas nas privadas
estaria indicando que a sociedade não está conseguindo pagar as mensa-
102
lidades nas instituições privadas? Estaria sendo atingido o limite para as
famílias brasileiras pagarem mensalidades, em função da enorme
desigualdade social brasileira? Ou seja, existiria uma exaustão no ensino
superior privado? Há que se lembrar ainda do porcentual elevado de
inadimplência presente nas instituições privadas, o que preocupa os dirigentes desse setor e lhes impõe sérias dificuldades para planejar as atividades acadêmicas a serem desenvolvidas. A inadimplência seria, também,
mais um indicador de exaustão das famílias brasileiras em financiar os
estudos universitários de seus filhos (AMARAL, 2006, p. 19).
Um fator limitante, mais do que qualquer outra forma de oposição, tem, portanto,
frustrado as perspectivas do processo de expansão da educação superior via iniciativa privada
empresarial, especialmente no Brasil: a desigualdade social conseqüência da concentração de
renda.
Citando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Amaral
aponta que 62,9% dos brasileiros residem em domicílios cuja renda não ultrapassa cinco
salários mínimos; 9,3% em domicílios cuja renda está de 10 até 20 salários mínimos; 4,9%
residem em domicílios com renda superior a vinte salários mínimos (Ibidem, 2006, p. 20).
O autor considera que somente aquelas famílias com renda superior a 10 salários
mínimos podem custear o pagamento de mensalidades cujo valor médio ele estabelece em
quatrocentos reais. Portanto seriam 14,2% das famílias nessa condição. Este seria o percentual
de jovens entre 18 e 24 anos em condição de realizarem sua educação superior em instituições
privadas o que representa 3.257.511 jovens. O Censo da Educação Superior de 2002 indica
que as instituições privadas estão com 2.428.258 alunos matriculados o que para o autor
indica sinais claros de esgotamento da capacidade máxima de expansão do setor (Ibidem,
2006, p. 20).
Estudos conduzidos pelo próprio setor privado da educação superior indicam que
houve desaceleração: a taxa média de crescimento anual entre os anos 1997 e 2002 foi de
17%. Já em 2003 houve queda para 8% em 2003. A projeção do setor para os anos de 2005 a
2010 é de crescimento em torno de 5% ao ano (BRAGA, 2005, p.7; 14). A perspectiva de
crescimento é baixa e deve-se ressaltar que o setor privado está considerando o ingresso de
alunos em cursos cujas mensalidades são menores que a média estimulada por Amaral (2006)
por se tratar de cursos de curta duração.
Ainda nesses estudos o setor privado traz alguns dados que estão em convergência
com o estudo de Amaral: a maior parte da demanda reprimida por educação superior
encontra-se nas famílias com renda inferior a três salários mínimos já que essas somam mais
103
de 90% da população. Essas famílias possuem apenas 12% dos jovens que estão nas IES. Já
as famílias com renda superior aos 10 salários mínimos detêm mais de 50% das matriculas
(Idem, 2005, p. 15). Diante desses dados concluem:
Considerando os elementos comentados nos parágrafos anteriores, fica claro
que só haverá possibilidade de crescimento semelhante ao dos últimos anos
(mais de 10% ao ano), caso sejam encontradas políticas de financiamento
estudantil públicas ou privadas, que garantam um aporte maciço de alunos
oriundos de famílias com renda inferior a três salários mínimos. (BRAGA,
2005, p. 15).
Assim desenha-se um quadro de alta concorrência e de perspectivas problemáticas
para as IUS: entende-se dos dados que não falta seu público prioritário, isto é, os jovens das
classes mais baixas. O que falta são alternativas de sustentabilidade e financiamento que
colaborem para que as IUS tenham capacidade de realizar sua identidade no aspecto do
atendimento aos seus alunos preferenciais bem como para se manter num mercado
competitivo.
CAPÍTULO III
O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO E A AFIRMAÇÃO DA
IDENTIDADE
Este capítulo apresenta a análise de como a Rede IUS concebe a
internacionalização da educação superior e quais as principais estratégias e políticas
adotadas para sua efetivação. Procura também comparar essas opções adotadas com a
agenda dos organismos multilaterais e dos blocos geo-econômicos, procurando indicar
aspectos coincidentes entre elas e suas repercussões para a identidade das IUS.
3.1 A categoria internacionalização
É necessário apresentar uma nova categoria de análise para a problematização
deste objeto de pesquisa: a internacionalização da educação superior. Ela constitui-se um
eixo ao redor do qual circulam uma série de processos que tem sua origem no movimento
de globalização do capital e na tendência da Organização Mundial do Comércio (OMC)
em considerar a educação um serviço a ser explorado pelo capital transnacional,
desencadeando um processo global de privatização da educação superior. Concomitante ao
processo de expansão da privatização ocorre a formação do capitalismo acadêmico com a
criação de sociedades educacionais de capital aberto ou sociedades limitadas para as quais
já não contam os limites políticos do Estado-nação uma vez que atuam em âmbito
internacional. Em conseqüência forma-se um mercado mundial de educação a ser
explorado pelo capital financeiro ou por grandes grupos empresariais internacionais o que
acentua a perspectiva mercadológica da educação superior (MOROSINI, 2006, p. 108).
105
Nesse processo intervêm diversos autores que vão amalgamando e configurando
as políticas a serem seguidas. A Organização Mundial do Comércio, por meio do termo
“Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços”, relacionado ao comércio internacional de
serviços aprovado em 1995 é um sujeito decisivo para a definição da educação como
serviço a ser comercializado sendo que a educação integra os termos do acordo em
praticamente todos os seus níveis. Essa concepção é resultado direto da política de
privatização da educação superior, com a conseqüente presença de entes privados no
controle das instituições. Outro resultado dessa política é que países centrais, detentores de
níveis tecnológicos e de conhecimento mais avançados e consolidados em suas instituições
enxergam a possibilidade de exploração estruturada mundialmente e se organizam para a
efetiva exploração desses serviços. Morosini (2006, p. 115) aponta que países como
“Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Japão já apresentaram à OMC propostas de
negociações para a liberalização do comércio dos serviços educacionais”.
Observa-se que os países centrais, percebendo sua vantagem competitiva nesse
campo, desejam efetivar suas possibilidades de ganhos diretos com a exploração desses
serviços ao mesmo tempo em que reduzem drasticamente seus investimentos estatais na
educação superior. Alguns tratados são relevantes nesse encaminhamento por já dividirem
e constituírem papéis a serem seguidos no processo. Há muito os países centrais vem
pressionando pela afirmação do conhecimento e da tecnologia com finalidades
exploratórias visando lucros.
A política internacional sobre propriedade intelectual e patentes é uma expressão
acabada dessa tendência: fortes investimentos em inovação e tecnologia são incentivados
por sólida política de defesa da propriedade intelectual, ainda que muitas vezes patentes e
tecnologia sejam construídas sobre o patrimônio da biodiversidade e de conhecimentos
primitivos de países e povos desprovidos de capital, o que tem aferido lucros que
favorecem os países centrais detentores de tecnologias avançadas. Da mesma forma desejase estabelecer a mesma política para a exploração dos serviços educacionais. No cenário
internacional, portanto, a educação e o conhecimento estão cada vez mais distantes da
perspectiva de direito humano fundamental e afirma-se, por meio de tratados concretos,
seu tratamento mercadológico.
Esses tratados moldam o cenário internacional da educação superior, seja do
ponto de vista técnico, acadêmico e pedagógico, seja do ponto de vista político e
106
econômico. A organização internacional dá-se em blocos geopolíticos-econômicos com
destaque para a atuação dos países centrais que conduzem o processo conforme seus
interesses e necessidades e também determinam as políticas dos organismos e agências
multilaterais para o setor. Destaca-se a formação do espaço europeu de educação superior
por meio de alguns dispositivos que normatizam e fomentam as relações dos países
membros da União Européia no campo da educação superior, dentre os quais se ressaltam
a declaração de Sobornne e de Bolonha 4 (MOROSINI, 2006, p. 116-119).
Do ponto de vista técnico-acadêmico indicam a padronização e “harmonização
dos sistemas e estruturas educacionais”. Nesse processo, alguns mecanismos são adotados
para sua viabilidade: sistema de créditos padronizados que permite a mobilidade de
estudantes, estabelecimento de dois níveis que prevêem a graduação e a pós-graduação,
credenciamento de diplomas para a circulação dos profissionais, a avaliação da qualidade e
criação de uma dimensão européia para a educação superior como expressão do caráter
internacional.
Já as políticas adotadas para o direcionamento do processo apontam para a adoção
de estratégias globais; a diversificação das fontes de financiamento, que passam a ter
fundos de origem pública e privada; profissionalização de recursos humanos capazes de
compreender e atuar a internacionalização; atenção para o desenvolvimento dos currículos,
redes de pesquisa bem como a capacitação para a pesquisa. Destaca-se, ainda, “o
reconhecimento do valor efetivo dos procedimentos para a avaliação da qualidade na
atividade internacional” (MOROSINI, 2006, p. 117).
A formação desse espaço internacional de educação superior é marcada pela
complexidade tanto política como técnica e permite o surgimento de uma nova
configuração para a educação superior em todo o continente europeu com repercussões
para o mundo globalizado. Conceitos presentes nessa experiência européia também
conduzirão a formação da Rede IUS: políticas globais, profissionalização, formação de
recursos humanos, avaliação, atenção para a qualidade de currículos e da pesquisa. Sem
dúvida esse fato é marcante para a decisão da Congregação salesiana empreender a
4
As declarações de educação superior da UE reúnem diretivas para estabelecer a prática de colaboração e
reconhecimento mútuo entre as diversas comunidades universitárias européias e que formalizam a construção
do Espaço Europeu de Ensino Superior – EAHE. Várias declarações contribuíram para este objetivo,
assentando as bases para a articulação dos sistemas de Educação Superior... Ainda em 1998A Declaração da
Sobornne instituiu as bases para a criação de um Espaço Europeu de Educação Superior. Um ano depois, a
declaração de Bolonha estabeleceu os princípios e os compromissos para orientar as universidades européias.
107
constituição de sua Rede IUS. Cresce a importância desse bloco para a internacionalização
da educação superior à medida que se alarga o bloco europeu pela adesão de novos países.
Morosini (2006, p. 120-121) analisa esse movimento acompanhando seu
desenrolar ao longo das declarações de Lisboa, Praga, Berlim e Bergen5 que indicam, além
da consolidação e avanços da harmonização e estruturação da educação superior no interior
do bloco, o amadurecimento da percepção da sua importância para o desenvolvimento da
nova sociedade européia e a inserção de novos países nesse espaço comum de educação.
Outros temas presentes na agenda européia para a criação do espaço europeu de
educação superior são relevantes para a Rede IUS: empregabilidade e papel estratégico do
conhecimento para o desenvolvimento humano e social bem como para a formação de uma
mentalidade cultural capaz de compartilhar valores, tradições e culturas num espaço
comum (MOROSINI, 2006, p. 118).
Outro aspecto que aumenta a incidência do padrão europeu na constituição da
Rede IUS, além dos já mencionados, é que a coordenação mundial está sediada na Europa
e muitos de seus assessores e dirigentes e especialmente os técnicos são europeus e foram
técnicos da União Européia ou da própria UNESCO. Apesar de a maioria das IUS estarem
na América Latina e Ásia, considerando-se que esses continentes são áreas que sofrem
notável influência tanto dos organismos internacionais como dos próprios países centrais,
ficam postos os fatos que sustentam a percepção de que a Rede IUS será constituída não só
no cenário da globalização da educação superior, mas irá absorver muito das experiências e
das políticas internacionais para a educação superior.
Acrescente-se nessa análise que a repercussão internacional da experiência do
bloco europeu na constituição do espaço comum de educação superior constitui uma das
intencionalidades da União Européia que pretende “fazer do sistema europeu uma
referência mundial” (MOROSINI, 2006, p. 124). Nesse sentido a União Européia, por
5
A Declaração de Lisboa foi firmada pelos chefes de Estado e de governo europeus em 2000 e prevê a
valorização da educação superior como um novo objetivo para o desenvolvimento da União Européia; a
Declaração de Praga foi firmada por 32 ministros europeus da educação superior e reafirma o compromisso
de estabelecer uma Área Européia para a educação superior até 2010. Estabeleceu-se um sistema de graus
elegíveis e comparáveis, baseado em dois ciclos principais, adotou-se um sistema de créditos comum,
promoveu a mobilidade, a cooperação para a garantia da qualidade e a inserção da dimensão européia na
educação superior por meio de currículos, cursos e graus oferecidos em parceria com países diferentes,
conduzindo a um reconhecimento conjunto; Declaração de Berlim de 2003 que instituiu a avaliação dos
resultados alcançados, definiu prioridades e fixou novos objetivos com a finalidade de acelerar a
concretização da Área Européia da Educação Superior; a Conferência de Bergem realizou-se em 2005
reunindo os signatários do Processo de Bolonha e novos integrantes da UE e teve como objetivo avaliar a
implantação do Espaço Europeu de Educação Superior.
108
meio do “Processo de Bolonha” exprime a sua concepção da educação superior em termos
estratégicos para a continuidade da sociedade do conhecimento e para o modo de produção
nele baseado e que, para se manter na hegemonia do capital, é necessário produzir novos,
avançados e estratégicos conhecimentos:
A Comissão das Comunidades Européias estabelece, num documento
emitido em 5 de fevereiro de 2003 em Bruxelas, que o crescimento da
sociedade do conhecimento depende da produção de maiores
conhecimentos, da sua transmissão através da educação e formação,
estando indissociavelmente ligada à sua divulgação pelas tecnologias de
informação e comunicação e da sua utilização em novos serviços ou
processos industriais. (MOROSINI, 2006, p. 122).
Percebe-se como ocorre o liame entre sociedade e universidade: o conhecimento é
tratado em termos técnicos e de saberes capazes de inovar e relançar a sociedade em
elaborações mais complexas capazes de sustentar sua existência e, principalmente, modo
de produção e as demais esferas sociais no sentido de fomentar em comportamentos,
atitudes e saberes, uma sociedade alicerçada na tecnologia. Os processos envolvidos
indicam a formação de um matiz tecnológico, prático, para o conhecimento, passível de
gerar serviços, produtos e processos de produção e de ser consumido em larga escala, isto
é, divulgado.
Nesse ambiente compreende-se por que a aquisição de saberes é crucial para o
exercício da cidadania e para a inserção social. Por isso a necessidade de se preparar os
cidadãos para apreenderem e autoconstruírem o conhecimento. Para cumprir
adequadamente esse papel, as instituições que exercem a educação superior precisam
trabalhar com novos paradigmas, muitas vezes externos a elas, e, para isso, adotam um
sistema complexo de gestão e concepção de si e da sociedade bem como dos indivíduos
para chegar aos resultados desejados.
Retomando o tema das repercussões, a experiência da União Européia reflete-se
em acordos e programas de cooperação com outros blocos. Pode-se citar alguns mais
relevantes: o programa América Latina Formação Acadêmica (ALFA) de cooperação entre
instituições da América Latina e da União Européia com o objetivo de criação de políticas
comuns para reconhecimento e validação de títulos bem como a equalização de programas
e cursos; O Espaço Comum de Educação Superior União Européia, América Latina e
Caribe (UEALC) que busca harmonização de currículos e programas para a livre
109
circulação de diplomas e profissionais entre a América Latina, Caribe e Europa, bem como
o desenvolvimento de padrões de qualidade e avaliação para embasar critérios de
credenciamento dos cursos e diplomas (MOROSINI, 2006, p. 134-136).
A globalização vai se corroborando na formação de diversos blocos geopolíticos e
econômicos. Assiste-se, por exemplo, à formação da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA); do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). No interior desses blocos
verificam-se as contendas e divergências especialmente relacionadas a tópicos econômicos
e sobre avanços nos acordos comerciais e alfandegários. Destaca-se o tensionamento entre
ALCA e MERCOSUL: os países membros do MERCOSUL almejam sua consolidação e
aprofundamento enquanto são cautelosos quanto à implantação da ALCA, mais defendida
pelos interesses dos Estados Unidos. Em sua evolução o MERCOSUL tem englobado
outros países da região e por meio da Declaração de Cuzco desencadeou a criação da
Comunidade Sul-Americana de Nações na qual se fundirá com as nações membro do Pacto
Andino (MOROSINI, 2006, p. 151).
A formação desses blocos indica como países centrais e periféricos se preparam e
atuam para definir, conduzir e defender interesses e perspectiva e determinam o novo
cenário global em termos de cultura, economia, política e educação. Esse é o cenário em
que se desenvolve a nova educação superior e que é importante para a compreensão da
formação da Rede IUS indicando que a tendência do contexto é a convergência na
condução desse nível de educação: convergência de políticas, de cursos, títulos, programas,
administração e procedimentos. Não obstante há também tensões e conflitos especialmente
nos âmbitos da autonomia das universidades, financiamento e protecionismo.
Nota-se que a internacionalização é um tema em torno do qual se aglutinam
tensões e disputas de visões em que se antagonizam uma concepção mais comercial,
defendida no interior de organismos comprometidos com o interesse do capital
internacional e dos países centrais e outra tendência que procura impostar um sentido de
democratização e inclusão social concebendo a educação como um direito de todo cidadão
e como vetor de integração num mundo globalizado, levando-se em consideração o valor
econômico e social do conhecimento.
110
3.2 A concepção de internacionalização para a Rede IUS no Documento de Brasília
Ao analisar os documentos sobre os quais está registrado o processo de construção
da Rede IUS, pode-se afirmar que ela se constitui num mesmo período em que os Estados
estão catalisados no processo de globalização e descortinam a educação superior e sua
reforma a partir desse ângulo. Nesse processo os Estados, especialmente os centrais,
iniciam um processo de reforma da educação superior a partir das exigências da própria
globalização e tendem a constituir um cenário marcado pelo viés do mercado, isto é,
empreendem a internacionalização da educação superior de tal modo que possa atender à
vontade do capital que deseja criar um mercado acadêmico e também liberar os Estados do
financiamento desse nível de ensino justamente para possibilitar sua exploração
mercadológica mundialmente. Percorrendo o estabelecimento da Rede IUS, o Encontro de
Brasília revela-se como seu embrião. Naquele encontro as dezoito instituições participantes
já manifestam o interesse em constituir uma rede:
O intercâmbio entre os participantes responsáveis diretos de vários
institutos, nos ofereceu uma bela oportunidade de mútua informação, de
confrontação e de avaliação [...] Os participantes querem dar consistência
ao fenômeno dos centros universitários salesianos fundando a Associação
Salesiana das Universidades (ASU) para assegurar a continuidade dos
encontros e seu desenvolvimento. (IUS, 1995, p.3-4).
A possibilidade da construção da Rede IUS é vista como oportunidade de
aprofundamento do processo de conhecimento mútuo e de troca de experiências em termos
de informação, comparação e avaliação das vivências institucionais. Os participantes
chegam a estabelecer um nome provisório para a Rede – ASU, e querem, nela reunidos,
realizar encontros posteriores para dar continuidade ao processo e ampliá-lo. Concebem
esse desenvolvimento nos seguintes termos:
Nesse primeiro encontro, queremos lançar a pedra fundamental para o
futuro. Quem de nós não pensa já desde o início na instituição de uma
rede entre os institutos salesianos ou na mútua conexão computadorizada
de nossas bibliotecas? A comunicação rápida e constante de nossos
tempos nos convida a estar continuamente em contato entre nós; a
internet favorece o intercâmbio constante de informação e de iniciativas
para animar-nos na missão. Nossos institutos saem, assim, de seu lugar
geográfico e histórico para inserir-se em uma rede internacional de obras
salesianas comprometidas com a cultura e a ciência, para a educação e
evangelização da juventude. (IUS, 1995, p. 5).
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Praticamente indica a sensibilidade diante do contexto da globalização que pede
intercâmbio e comunicação rápidos, formação de redes capazes de suportar esse processo e
de dar às instituições um alcance que supere os limites geográficos, ampliando sua eficácia
e maximizando os recursos individuais disponíveis potencializando os resultados, meios e
fins do conjunto das obras da Congregação. Indicam também a finalidade dessa possível
Rede: promoção da cultura e da ciência; educação e evangelização da juventude.
Os participantes do encontro de Brasília demonstram ainda sintonia com o
momento histórico cultural em outro aspecto além da formação de uma Rede: o
estabelecimento de políticas comuns como expressão da vontade de internacionalizar suas
atividades na educação superior. Assim afirmam:
Na base de nosso encontro está a preocupação de desenvolver uma
política compartilhada na Congregação a respeito da educação superior.
Estamos presentes como responsáveis de 18 institutos; o Conselho Geral
está representado por dois conselheiros; queremos dar um primeiro passo
na busca de uma política comum para o futuro. (IUS, 1995, p. 9).
Os participantes, nesse sentido, chegam a tomar uma decisão: “Que os Dicastérios
da Pastoral Juvenil e da Formação elaborem algumas linhas de orientação sobre as
universidades para toda a Congregação e estabeleçam uma espécie de ideário geral” (IUS,
1995, p. 47).
Ao lado da formação da Rede de intercâmbio e comunicação e compartilhamento
de experiências e projetos, a busca de políticas comuns de atuação e concepção irá moldar
a Rede IUS e serão eixos fundamentais para sua existência. Paralelamente ao processo de
reforma universitária global nos países, as IUS procuram estabelecer, nesse contexto, a sua
concepção e sua política de educação superior, revelando uma sintonia com essa tendência
mundial. Como que influenciada pela relevância que o tema adquire no contexto
internacional, pela sua estratégica posição em termos sociais e econômicos, a Congregação
procura definir sua atuação na educação superior e essa posição tem caráter vital uma vez
que se trata de sua missão precípua.
Por isso pode-se interpretar a postura de seus membros nesse encontro como uma
tentativa de posicionar-se estrategicamente frente ao movimento internacional diante do
tema da educação superior e das tensões e conflitos de interesses inerentes. Os
112
participantes lançam alguns princípios que revelam, no seu entendimento, que caminhos,
valores e horizontes devem ser privilegiados na instituição da Rede:
Esta associação pode ter o objetivo de dar uma resposta salesiana aos
problemas emergentes do mundo universitário e da cultura, respeitando a
peculiaridade de cada país: favorecendo a cultura da vida e da
solidariedade; fortalecendo a presença salesiana em cada país;
favorecendo a inserção salesiana na cultura; favorecendo o intercâmbio
entre nossas instituições e outras; estabelecendo linhas de ação comuns;
ajudando-nos na compreensão da realidade juvenil. (IUS, 1995, p. 48).
Essas linhas gerais de orientação indicam a busca de fortalecimento das ações das
instituições salesianas de educação superior do ponto de vista cultural, tornando-as
relevantes nos contextos em que atuam. Ao mesmo tempo apontam para políticas
gerenciais à medida que pedem intercâmbio, ações comuns e maior compreensão do
fenômeno juvenil. Pretende-se, desta forma, que a Rede favoreça a significatividade
cultural e acadêmica das IUS, garantindo-lhes inserção no contexto internacional da
educação superior. Os participantes avançam na definição do perfil dessa Rede indicando
espaços de colaboração e ações pontuais que favoreçam a colaboração mútua:
[...] Colaboração: realizar entre nós convênios de intercâmbio cultural;
Concretizar edições e publicações comuns; iniciar intercâmbio de alunos
e professores; organizar seminários internacionais anuais rotativos sobre
temas fundamentais comuns; estabelecer convênios com universidades
não salesianas; intercambiar publicações já existentes em nossas
instituições; ter e pôr à disposição bibliotecas especializadas; preparar-se
para a utilização da internet. (IUS, 1995, p. 48).
Percebe-se que a colaboração efetiva prevista ocorre em torno iniciativas mais
voltadas para a função pesquisa, especialmente em termos de sua divulgação em publicações e realização de seminários, como também o compartilhamento de infra-estruturas universitárias como a biblioteca e redes tecnológicas. O intercâmbio de alunos e professores
aponta para a inserção da graduação no processo de construção de espaços comuns.
Porém, como analisa Morosini (2008, p. 293), o campo da pesquisa é mais profícuo
ao intercâmbio, pois se encontra mais livre diante da complexidade legislativa nacional e
internacional sendo a graduação muito mais difícil de intercambiar devido às restrições
impostas pelos entes estatais. De qualquer forma observa-se a coincidência da agenda IUS para
a internacionalização com a dos organismos internacionais que apontam no mesmo sentido de
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intercâmbio, projetos de pesquisa em parceria, realização de fóruns e debates e intercâmbio de
professores e alunos, bem como a formação de redes tecnológicas capazes de impulsionar a
aglutinação das instituições envolvidas no processo. Por fim, no documento de Brasília, os
participantes tomam a decisão formal de fundação da Rede IUS nestes termos:
Decidimos formar a ‘Associação Salesiana de Universidades – ASU’ e
assumimos a tarefa de concretizá-la. Estamos conscientes que o nome de
universidade deve entender-se analogamente, incorporando, além das
universidades, institutos universitários e institutos superiores de
educação. Evidentemente se deve informar ao Conselho Geral da
Congregação e pedir-lhe a aprovação da fundação. Os 18 institutos
presentes são considerados como sócios fundadores. O título escolhido
com 20 votos sobre dos é traduzível como tal em várias línguas como
Associação Salesiana de Universidades. Constituiremos uma pequena
comissão para elaborar os estatutos e levar adiante concretamente a
associação. (IUS, 1995, p. 52).
Cabe frisar que apesar do Encontro de Brasília corroborar formalmente a criação
da Rede então denominada Associação Salesiana de Universidades (ASU), tal ato não se
consubstancia na prática, pois não são elaborados os estatutos, não há registro de
aprovação do Conselho Geral da Congregação para tal ato e as iniciativas que iriam dar
corpo à formação da Rede ASU não acontecem também: não ocorre o intercâmbio de
professores e alunos, de publicações e projetos de pesquisa nem se realizam os seminários
internacionais previstos. A vontade dos participantes nesse encontro perde-se no tempo,
ficando esquecida, apesar da lucidez de suas análises, projeções e decisões.
Nem mesmo acontece a formação de um ideário comum de políticas e concepções
de educação superior a ser partilhado por todos os membros do grupo. A Congregação não
dá continuidade imediata a esse processo. Somente dois anos mais tarde é que a
Congregação reabre esse assunto em sua agenda de governo e retoma o processo de
constituição da Rede e busca a sua consubstanciação. Não obstante a descontinuidade
desse processo, o que os participantes do Encontro de Brasília constroem em termos de
internacionalização é retomado integralmente e aprofundado nas Assembléias das IUS que
se iniciam a partir do novo processo instaurado em 1997.
Pode-se perguntar o porquê desse fato. Procuraram-se registros documentais que
pudessem elucidar uma resposta, porém eles não existem ou não foram disponibilizados.
Talvez uma das razões seja que não foi constituída, nesse período, uma estrutura específica
para dinamizar e liderar a execução das decisões.
114
3.3 A internacionalização e a identidade no Documento “Políticas para as IUS”
O ponto de partida para a construção do documento “Políticas para a Presença
Salesiana na Educação Superior” foram as orientações emanadas do Programa Comum I
que já previa a elaboração dessas políticas como imprescindíveis para a realização de uma
nova fase para as IUS e também como suporte para atuação em rede. Tendo como
referência essas orientações, procedeu-se à consulta de 33 especialistas internos e
consultores externos ligados à Congregação, às IUS e outras instituições da qual resultou o
instrumento de trabalho “Política universitaria. Contributi per la riflessine (abril-junho
2001)” apresentado à análise e contribuição dos participantes do III Encontro das IUS,
dado em Roma em 2001. Os dirigentes presentes nesse Encontro apresentaram
contribuições, críticas e alterações ao instrumento de trabalho. Posteriormente construiu-se
um “índice detalhado para um hipotético documento de políticas” (Políticas, 2003, p. 23) o
qual foi debatido, analisado e recebeu contribuições escritas na Conferência IUS 2001 da
Ásia, realizada em Hyderabad, e da América, Campo Grande. A Europa participou por
meio de consultas individuais. Surgiu a primeira redação do texto em julho de 2002.
Houve, a seguir, última consulta às IUS, aos inspetores e conselhos inspetoriais e em
novembro de 2002 foi elaborada a segunda redação do texto que em dezembro foi
apresentado ao Reitor Mor e ao Conselho Geral, vindo a ser aprovado em 7 de janeiro de
2003 juntamente com o documento Identidade.
Transparece em seu processo de construção o caráter coletivo do documento,
entendido como resultado de colaboração entre as IUS e as instâncias administrativas da
Congregação e indica a concretização do terceiro objetivo explicitado na Carta do Reitormor Pe. Juan Edmundo Vecchi de 1997 que desencadeou o processo de construção da
Rede IUS: dar orientações operativas gerais para o futuro próximo das IUS (Políticas,
2003, p. 10). As Políticas, juntamente com o Diagnóstico e o documento Identidade
constituem o Marco Referencial da Rede IUS. Explicitam, ainda, o consenso das IUS sobre
a concepção e os projetos para a atividade da Congregação na educação superior.
No plano das políticas a serem seguidas, destaca-se a clara orientação para que as
IUS “construam seus programas e eixos estratégicos e operacionais de forma conjunta”
(Políticas, 2003, p. 3), traduzidos em programas comuns de atividades e planejamentos.
Assim estão sendo constituídos programas comuns voltados para a formação de recursos
115
humanos, a constituição operacional da rede internacional IUS e o planejamento
institucional. Analisar-se-á esses aspectos no Plano Comum II que prevê ações voltadas
para cada um desses itens.
Percebe-se que a internacionalização da Rede IUS inicia-se pela constituição de
um projeto de gestão comum, de caráter transnacional, pois pretende com um projeto de
Identidade, de Políticas e, mais tarde, de Planos Comuns, estabelecer um todo homogêneo
no sentido de concepção de educação superior, de afirmação de identidade confessional e
de práticas de gestão. A internacionalização transparece, portanto, num projeto
transnacional de educação superior que tem como metas assegurar a identidade e a
sustentabilidade do projeto acadêmico e dos recursos financeiros:
Com estas políticas pretende-se continuar o caminho empreendido no
período 1998-2002 e dar sólidos fundamentos à presença salesiana atual
na educação superior, de modo que os centros já existentes cresçam em
qualidade e se desenvolvam ou outros novos sejam criados no futuro, de
acordo com uma identidade própria de instituições universitárias, de
inspiração cristã e caráter católico, e de índole salesiana (POLÍTICAS,
2003, p. 5).
Com essa afirmação compreende-se que as políticas construídas pretendem
afirmar a Identidade das IUS fundamentando sua qualidade institucional acadêmica e a sua
identidade confessional católica e salesiana. Essa perspectiva está em consonância com a
hipótese de que a Rede pretende consolidar a presença da Congregação na educação
superior. Percebe-se também nessa afirmação o embricamento entre gestão, identidade e a
própria construção da Rede IUS. Essas políticas pretendem também pavimentar o caminho
de construção da Rede, atendendo à vontade anterior dos participantes do Encontro de
Brasília, cumprindo, assim, o papel de guia do conjunto das IUS. Nesse sentido afirma o
documento Políticas:
As políticas aqui delineadas entendem guiar o conjunto das instituições
de educação superior promovidas pela Congregação Salesiana, sem,
contudo, eximir cada uma das IUS da responsabilidade de definir as suas
precisas políticas acadêmicas, que serão depois agregadas aos
documentos institucionais pertinentes. (POLÍTICAS, 2003, p. 10).
Nota-se que a pretensão das “Políticas” é de ser um guia de cunho geral,
oferecendo um horizonte maior de referência e de identidade, mas não tolhe as
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características regionais dos contextos onde estão inseridas as IUS e, portanto, suas
vicissitudes particulares. Porém essas particularidades não compõem, obviamente, a
preocupação central do documento Políticas e da Rede. Ao contrário, seu objetivo focal é o
estabelecimento de uma identidade comum forte partilhada por todas as IUS na pretensão
de se superar a realidade dispare inicial levantada nos documentos Diagnóstico e Relatório
2001. As políticas erigidas pretendem levar as IUS dessa situação inicial aferida em 2001
para uma situação mais qualificada. Especialmente pretende ser uma ponte entre essa
realidade e o ideal projetado no documento Identidade. É o que se encontra explicitado na
seguinte afirmação:
A escolha destas políticas foi feita tendo-se por base dois pontos de
referência fundamentais: por um lado, a situação atual das IUS, refletida
no Relatório IUS 2001 e, sobretudo, no Diagnóstico; por outro lado, o
ideal traçado no documento Identidade das IUS. A implementação destas
políticas deveria levar a um rigoroso processo de crescente qualificação
das IUS, passando da situação atual existente a outra mais ideal.
(POLÍTICAS, 2003, p. 11).
Por isso, pode-se concluir que as Políticas acrescentam à identidade das IUS um
elemento novo até então: pretendem ser uma afirmação de que a identidade dessas
instituições é caracterizada também pela inerência de seu trabalho em Rede que engloba o
compartilhamento comum da concepção de educação superior. Pretendem, portanto atuar
num mesmo âmbito de compreensão do que seja a educação superior e também partilhar
um horizonte comum de metas, projetos e ações.
Afirmam-se como um conjunto que age em bloco para a consecução de seu
objetivo maior: afirmar a índole católica e salesiana e garantir relevância na educação
superior na esfera internacional. Assim o processo de internacionalização visa consolidar a
identidade das IUS e sua qualificação. Nesse processo há um nexo entre identidade,
internacionalização e qualidade institucional. Observando-se mais de perto a questão da
qualidade é ligada ao processo de gestão. Esse elemento percorre todo o movimento de
constituição da Rede IUS perfazendo seus diversos aspectos e está voltado também para a
afirmação da identidade uma vez que a internacionalização corrobora em Programas,
Planejamentos e Políticas comuns que estão voltados para a melhoria institucional do
ponto de vista da gestão a fim de ser afirmar a identidade:
117
Essa percepção da Rede IUS sobre o papel estratégico de um projeto internacional
de gestão está em consonância com Franco (2006) que reconhece a importância da
profissionalização da gestão, a existência de um “core” gerencial forte e competente como
uma condição crucial para a sustentabilidade institucional dentro de uma perspectiva
internacional no atual processo de mundialização.
Cada IUS seja dotada dos instrumentos e dos procedimentos que
garantam a orientação, a direção, a gestão e o funcionamento de acordo
com a identidade e com as políticas estabelecidas para que tais
orientações permeiem a vida ordinária da instituição. Os instrumentos e
os procedimentos são os seguintes: a) Para a orientação geral da
instituição, atente-se para o Projeto institucional, que tem a função de
verdadeira magna charta ou constituição que orienta de maneira integral e
prática a vida da instituição. Por isso, ele explicita a sua missão e visão –
ou seja, a sua identidade universitária, católica e salesiana, e a sua
intencionalidade edcuativo-pastoral – a fim de dar-lhe cumprimento, em
um cenário concreto, local e universal ao mesmo tempo, no quadro destas
políticas ou daquelas que a Congregação Salesiana possa estabelecer no
futuro; concretiza as áreas científicas nas quais a instituição concentra seu
trabalho e os critérios pelos quais se orientará diante de hipotéticas
futuras ampliações ou reduções de campo; os cursos que oferece e os
respectivos currículos de estudo; os programas das disciplinas de acordo
com a ciência correspondente e congruentes com a identidade própria da
instituição; a filosofia da educação e do ensino que a instituição propõe
para a pesquisa, a docência e os serviços de extensão; o estilo de vida
universitária e as características pelas quais a instituição quer diferenciarse de outras instituições similares; o corpus normativo (estatutos,
regulamentos...) e a organização. (POLÍTICAS, 2003, p. 18-19).
Pelo descrito acima esse Plano pouco difere do que se entende por Plano de
Desenvolvimento Institucional (PDI) no Brasil. Considerando-se que se trata de um
instrumento do Ministério da Educação que executa sua política em consonância com a
concepção do Estado como ente avaliador e regulador, pode-se inferir que esse
posicionamento da Rede IUS pouco acrescenta de novidade em termos de garantia de
identidade e de competência gerencial efetiva. Exprime também a cooptação da Rede IUS
diante do ideário das agências internacionais que estão moldando a formação da nova
cultura organizacional e gerencial da educação superior que enfatiza os resultados para
atender os interesses do processo de globalização. Pode-se afirmar que, sob esse aspecto, a
Rede IUS traz uma forte influência desses organismos internacionais em termos de gestão
da educação superior. Isso ocorre não somente no caso do Brasil e das IUS, mas constitui
uma tendência mundial para a educação superior, como afirma DIAS Sobrinho:
118
O controle e a regulação, chamados genericamente de avaliação, porém,
quase sempre indevidamente, são processos centrais das reformas do
Estado e da Educação Superior [...] Um rápido balanço das estratégias
adotadas neste campo pela Inglaterra pode ajudar, como um caso
exemplar, a ampliar a compreensão das reformas da educação superior
que estão se globalizando. As políticas de reformas praticadas na
Inglaterra são emblemáticas para a compreensão dos novos sentidos e
papéis que a educação superior vem assumindo por toda a parte. Esse é
um dos países em que mais fortemente se deram as reformas e
transformações na educação superior nos dois últimos decênios e aquelas
de mais largo e profundo impacto. Essas transformações foram
importantes não somente no nível interno, mas também se tornaram
exemplares para as reformas que se encetaram em diversos países de
distintos continentes e guardam estreitas semelhanças com as teses e
práticas de organismos multilaterais, como Banco Mundial e a OCDE
(DIAS SOBRINHO, 2003, p. 175-176).
O desdobramento do Projeto Institucional em planos estratégicos e operacionais
corrobora essa repercussão da cultura organizacional preconizada pelas agências sobre a
Rede IUS:
Para o desenvolvimento do Projeto institucional, sirvam-se as IUS: do
plano estratégico e tático, o qual favorece a progressiva realização global,
de maneira ordenada e sistemática, do Projeto institucional durante um
período de tempo determinado (vários anos); estabelece as metas e
objetivos a serem progressivamente alcançados, as opções estratégicas e
as linhas de ação; prevê os recursos humanos e financeiros necessários,
os tempos para cada linha de ação e a forma de acompanhamento e de
avaliação; e do plano plano operacional, o qual auxilia na progressiva
realização do plano estratégico e tático por períodos anuais; estabelece os
objetivos gerais e específicos a serem alcançados, cada uma das
operações (a seqüência de atividades que as compõem, o momento e a
duração) necessárias para alcançar os objetivos, o modo de realizar as
ações, os recursos humanos necessários e os responsáveis, os orçamentos
e a disponibilidade financeira ou a fonte segura de tais fundos.
(POLÍTICAS, 2003, p. 19).
Não obstante, o Projeto Institucional sistematiza a gestão das IUS proporcionando
uma realidade diferente da anterior à implantação da Rede, estabelecendo uma
racionalidade administrativa até então desconhecida. Vale ressaltar que o Projeto
Institucional denominado pela Rede IUS como Carta de Navegação, para poder ser
concluído pelas IUS levou um prazo superior ao estabelecido pelo Programa Comum II,
traduzindo assim a dificuldade das instituições em construir esse instrumento de gestão
apesar das orientações emanadas da coordenação central da Rede, o que também
119
demonstra certa resistência ao processo de mudança e consolidação de uma nova cultura
organizacional.
Outro aspecto em que a Rede alcança a implantação de um novo padrão de
procedimentos e de qualidade institucional é o do credenciamento. Antes da implantação
da Rede IUS esse aspecto jurídico já importante e que adquire maior relevância no
contexto da busca de reconhecimento internacional das IUS era descuidado por muitas
instituições. Para o caso das IUS no Brasil esse fato nos causa estranheza uma vez que a
regulação, acompanhamento e avaliação das IES brasileiras é um fato consolidado.
Entretanto, em seu conjunto, não é o que se observa entre as IUS. Entende-se por que a
Rede adota entre as suas políticas a busca do credenciamento de suas instituições diante
das agências nacionais nos diversos países em que se localizam. Aproveitando-se dessa
situação diferenciada em relação ao credenciamento, a Rede acaba por definir metas
estabelecendo que as IUS busquem credenciamento nos órgãos reguladores nacionais e, no
caso das que já o possuem, procurem credenciar-se nas agências internacionais ou comitês
e grupos de pesquisa capazes de conferir projeção internacional. Dessa maneira
compreende-se a afirmação da Rede em suas Políticas:
[...] credenciamento, que é um reconhecimento público da instituição segundo os padrões de qualidade elaborados por um organismo externo de
reconhecido prestígio nacional e/ou internacional. Por meio dele se busca
a excelência acadêmica, assegurando níveis de qualidade; além de conferir credibilidade e prestígio, o credenciamento serve para dar tranqüilidade à instituição quanto às próprias opções e para orientar na tomada de
decisões a respeito de novas metas. (POLÍTICAS, 2003, p. 20).
A Rede assimila, dessa forma, a tendência avaliativa e de ranqueamento e controle
sobre a educação superior, característica do processo global para a educação. A assunção
do conceito de credenciamento ligado à busca da qualidade e à avaliação insere, portanto, a
Rede IUS no movimento mais amplo das políticas que regem a educação superior. Essas
políticas voltadas para a qualidade são consubstanciadas em agências internacionais de
avaliação e credenciamento. Muitas dessas agências agem em rede para garantir padrões e
procedimentos para a avaliação da qualidade, credenciamento e reconhecimento de cursos
e diplomas bem como para possibilitar a mobilidade de alunos e aproveitamento
internacional de créditos. É o caso da Rede Internacional de Agências para a Garantia de
qualidade na Educação Superior (INQAAHE); a Associação Universitária Internacional
120
iberoamericana de Pós-graduação (AUIP). Essas duas agências, mais a UNESCO, formam
o consórcio Registro Internacional de Qualidade (WQR). Acrescente-se as Agências de
Acreditação e de Garantia da Qualidade (QAAS), reconhecidas internacionalmente com
aval do consórcio WQR (MOROSINI, 206, p. 113-114). Há outras agências internacionais,
ligadas geralmente aos blocos geopolíticos e formadas pela rede das agências avaliadoras
dos países membros. A citação destas contribui para ilustrar o contexto mais amplo em que
se insere a política da Rede IUS nesse ponto do credenciamento e da qualidade. Nota-se,
nesse processo, convergência entre qualidade, avaliação e credenciamento em termos de
objetivos e procedimentos (MOROSINI 2006, p. 127).
Além do credenciamento, a preocupação com a qualidade se traduzirá em outra
política: a cessão do processo de expansão. Como analisado, no capítulo primeiro desta
dissertação, as IUS beneficiaram-se e acompanharam o processo de expansão privada da
educação superior como conseqüência da demanda mundial por educação. Porém, ao
perceberem sua rápida expansão a reação é de se retirar desse processo expansionista e
passar a dar solidez para as suas instituições formando a rede internacional das IUS. Esse
passa a ser o posicionamento das IUS, pondo freio ao movimento expansionista no interior
da Congregação. Observa-se no documento Políticas esse posicionamento dos dirigentes
das IUS:
No sexênio 2002-2008, inspetorias e IUS concentrem-se preferencialmente em consolidar e fortalecer a qualidade das instituições já
existentes antes de fazê-las crescer aceleradamente ou de empenhar-se na
criação e gestão de outras novas (POLÍTICAS, 2003, p. 24).
Pretende-se, portanto, iniciar outro processo que se distancie do movimento de
formação de um capitalismo acadêmico caracterizado pela exploração econômica em
escala multinacional dos serviços educacionais, com conseqüente acúmulo de capital e
adoção de estratégias empresariais e financeiras tais como a criação de sociedades
anônimas e negociação de ativos em mercados de capitais, instituindo-se grandes grupos
empresariais e financeiros que atuam na educação superior comercializando serviços.
Ao mesmo tempo pretende instaurar um processo que assegure, no interior dessa
tendência mundial, sustentabilidade da proposta da Congregação para a educação superior
por meio do fortalecimento institucional e da qualidade acadêmica. Assim o processo de
construção da Rede aponta desde já para uma proposta alternativa ao simples movimento
121
de expansão e privatização da educação superior, ao mesmo tempo em que assume
conceitos como qualidade, gestão e internacionalização. Resta saber que acepções esses
termos assumirão ao longo do processo de constituição da Rede IUS.
Morosini contextualiza a internacionalização identificando a formulação de
políticas públicas voltadas para a transnacionalização da educação superior ligadas ao
Estado concebido como “avaliativo/regulador/supervisor”. Relaciona este movimento com
a expansão da educação superior em todos os países e à tentativa de padronização
internacional da educação superior (MOROSINI, 2006 p. 113).
A função avaliativa do Estado e seu papel regulador assumem preponderância no
processo de internacionalização uma vez que garante a padronização e ranqueamento por
meio de sistemas que aferem a qualidade. No âmbito internacional essa passa a ser a
tendência determinante na educação superior. As IUS acabam assumindo essa tendência
procurando criar para si, a partir do modelo das grandes agências reguladoras
internacionais que influenciam e determinam as políticas de avaliação dos órgãos
nacionais, padrões de qualidade e sistemas de avaliação e gestão inspirados nesse modelo
do Estado regulador/avaliador. Nesse contexto as IUS concebem a cultura da avaliação
como estratégica para o desenvolvimento institucional:
Para o aperfeiçoamento constante da instituição, utilizem-se as IUS dos
seguintes procedimentos: a avaliação institucional, a qual consiste na
análise objetiva, metódica e contínua do desenvolvimento dos projetos e
dos planos, – dando especial ênfase aos processos, contribuições e
resultados etc. –, mediante o uso de dados e opiniões relacionados a
critérios previamente definidos; envolve toda a comunidade acadêmica;
ajuda a acompanhar e a controlar a gestão da instituição e a tomar em
tempo medidas de correção após a identificação dos pontos fortes e
fracos, os riscos e as tendências que não conduzem à obtenção das
finalidades e dos objetivos propostos. A auto-avaliação ou avaliação
interna da instituição deve ser praxe ordinária das IUS. Ela se completa
com a auditoria ou avaliação externa que também deve ser feita
periodicamente nas IUS por organismos competentes com a participação
da comunidade acadêmica. Além de uma segurança maior no andamento
das instituições, essa dúplice praxe criará nas IUS uma benéfica “cultura
da avaliação” fundada na co-responsabilidade e no profissionalismo de
todos. (POLÍTICAS, 2003, p. 19-20).
Observa-se, nessa afirmação da Rede IUS, uma gama de conceitos e práticas que
se encontram delineados na nova política global para a educação superior baseada na
racionalidade do capital que procura inserir na academia a cultura administrativa própria
122
das empresas. Alguns conceitos ilustram essa nova cultura: projetos, planos, processos,
objetivos, resultados, controle, auditoria e profissionalismo. Nesse sentido, observa Dias
Sobrinho:
Dizendo ainda de outra maneira, o que está em jogo é a imposição de
uma racionalidade instrumental à universidade, materializada na gestão
empresarial e na ideologia da eficiência, competitividade e produtividade.
A ideologia alimenta a crença de que uma instituição bem gerenciada de
acordo com as exigências de mercado seria consequentemente uma
instituição ajustada e de boa qualidade. A gestão empresarial combina-se
com a concepção de universidade instrumental, ou seja, uma instituição
entendida como função da economia [...] A idéia de eficiência e
produtividade aqui se torna sinônimo da noção de qualidade. Segundo a
concepção eficientista e produtivista, a qualidade da educação superior
tem sua expressão mais exata e clara na quantificação e posterior
classificação dos produtos finais (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 107).
Tudo isso ligado à avaliação contínua e à cultura de avaliação. Um dos reflexos
dessa cultura é a formulação de ranking internacional de universidades que procura
classificar as melhores universidades do mundo. Morosini (2006) cita dois rankings: da
revista “The Times” e da universidade chinesa “Shangai Jiao Tong University”.
A Rede IUS não define em suas Políticas as acepções de avaliação que seguirá e
também não define padrões que seguirá tanto na avaliação institucional interna como
externa. Também não define quais órgãos serão encarregados da avaliação externa: se a
Rede IUS terá uma equipe de avaliadores ou se simplesmente irá servir-se das avaliações já
delimitadas pelos órgãos oficiais dos Estados em que estão inseridas. Entrementes, há uma
coincidência de termos e conceitos que aproxima a visão da Rede IUS daquilo que vem
sendo gestado nas agências multilaterais, nos acordos internacionais e nas políticas de
avaliação assumidas nos Estados. É notória a coincidência com o sistema de avaliação do
Brasil, por exemplo, que por sua vez, segue o que está estabelecido nos órgãos
internacionais.
A assimilação dessa concepção pela Rede IUS revela a influência das políticas
globais. Ao mesmo tempo revela que a constituição da Rede IUS faz-se à sombra do
pensamento hegemônico internacional para a educação superior que procura uma
padronização das instituições e de procedimentos, especialmente em termos de gestão na
qual tem papel preponderante a avaliação e o controle. É o que indica o fortalecimento das
políticas de inspeção e regulação que regulam os processos de autorização,
123
acompanhamento e reconhecimento de cursos e instituições bem como a emissão de
diplomas e títulos. Tudo isso para assegurar a formação profissional voltada para o
mercado de trabalho, a eficiência das instituições e a garantia de um padrão globalizado, já
que a economização da sociedade e da educação é transnacional:
Como o mercado é globalizado, também na educação superior essas
avaliações devem propiciar elementos objetivos de comparação nos
níveis nacionais e transnacionais. Embora haja diferenças entre as
perspectivas e os estágios de avaliação praticadas nos diversos países,
parece correto indicar que, uma vez permitida e incentivada a abertura do
sistema, em contrapartida se torna necessário pôr em prática um
dispositivo de controle e fiscalização – pois é sobretudo a isso que se
aplicam, na maioria dos casos, os sistemas de avaliação implementados
pelos governos. Trata-se principalmente de controlar, pela avaliação,
como está sendo exercida a responsabilidade de preparar profissionais
para o mercado de trabalho, qual a dimensão quantitativa dessa formação
em razão das necessidades do mercado... Além disso, trata-se cada vez
mais de estabelecer os parâmetros e os indicadores comparativos da
qualidade das instituições em uma dimensão transnacional, pois o
mercado educacional tende crescentemente à globalização (DIAS
SOBRINHO, 2003, p. 186-187).
A Rede IUS não se distancia dessa tendência e erige a Avaliação como um dos
pilares pelo qual pretende dar solidez para suas instituições. Essa faceta indica que no seu
processo de formação, a Rede IUS constrói-se num processo dialético com o contexto da
globalização. Pode-se afirmar, portanto, que sua existência explica-se pela influência do
processo de globalização, como resultado e reação dinâmica a esse.
Morosini chama atenção para a complexidade de acepções presentes no conceito
de internacionalização. Nele a autora pontua a dimensão internacional mais aplicada ao
século XX e que se caracteriza por trocas institucionais particulares em âmbito
internacional que podem ser classificadas como cooperação mútua; a educação
internacional instituída nos Estados Unidos durante a guerra fria por razões políticas e de
segurança; e a internacionalização da educação superior ligada à globalização e seus
impactos sobre a educação superior (MOROSINI, 2006, p. 115). A Rede IUS acompanha
esse movimento e utiliza-se do processo global de internacionalização com a pretensão de
emergir como sujeito ativo no processo:
A participação em redes de universidades significa, antes de tudo, a
sinergia entre as IUS e sua consolidação como presença salesiana na
educação superior, quer se trate de presença em nível mundial quer seja
124
limitada a áreas continentais ou regionais, lingüísticas ou de
especialização científica. A participação, entretanto, deve estender-se a
outras redes de universidades, privilegiando as universidades e/ou
faculdades católicas e pontifícias (POLÍTICAS, 2003, p. 23).
A Rede IUS é constituída como um sistema aberto que interage entre si, mediante
as trocas institucionais e com os demais organismos e entes sociais. Ressalta-se nesse
processo que sua finalidade é de afirmar a concepção de educação superior proclamada
pela Rede:
A articulação das IUS há de se basear, antes de tudo e fundamentalmente,
em uma rede de relacionamentos, intercâmbios e colaborações que
incluam tanto a reflexão e o aprofundamento de assuntos de interesse
geral – v.g. a orientação e o modo prático de entender e conduzir a
presença salesiana na educação superior –, quanto às relações de
colaboração bilateral ou multilateral entre elas (POLÍTICAS, 2003, p. 24)
Essa articulação ampla que se serve de intercâmbios, colaborações e
compartilhamento de concepções e estratégicas vai tecendo a Rede IUS frente aos riscos
que emergem do processo de globalização: a perda da identidade e da autonomia
universitárias; o uso das energias da academia a serviço do mercado; a submissão da
cooperação intelectual ao lucro empresarial; a formação do “capitalismo acadêmico, que
identifica uma tendência global de privatização da educação superior [...] e a dominação de
corporações e nações ricas” (MOR0SINI, 2006, p. 116-117). A Rede pretende, portanto,
estabelecer um padrão diverso de educação superior e fortalecer a competitividade das IUS
no contexto de mundialização do capital.
Pode-se afirmar que a formação da Rede IUS ocorre em conseqüência e como
resposta ao processo de globalização que traz, por sua vez, a internacionalização da
educação superior. É uma mudança na forma da Congregação Salesiana organizar e
conceber a sua atuação na educação superior. Essa mudança se dá no âmbito de um
processo dialético e visa dar continuidade institucional às IUS por meio da formação da
Rede. Trata-se de um processo dinâmico que ora assimila padrões, conceitos e
comportamentos advindos da globalização ora procurando afirmar concepções próprias e,
assim, consolidar a identidade católica salesiana e garantir a sobrevivência da proposta,
estabelecendo-se como interlocutor ativo no processo de globalização (MOROSINI, 2006,
125
p. 105). A percepção das IUS nesse processo é de que a formação da Rede internacional
soma as forças individuais e pode constituir um caminho eficaz de auto-afirmação.
A tentativa da Rede é de oferecer alternativa de concepção da educação superior
que seja diversa da concepção de bem econômico e de mercado a ser explorado, favoreça a
qualificação da juventude para sua inserção no mercado de trabalho e proporcione
mudanças na sociedade. Para isso a Rede precisará apresentar uma concepção de educação
superior que não seja apenas atendimento das necessidades do capital, mesmo que, em
dado momento, tenha que preparar os jovens para aturarem no mercado de trabalho, assim
as IUS concebem-se como:
[...] uma contribuição salesiana à formação qualificada dos jovens para o
acesso ao mercado do trabalho e para um seu responsável empenho
social, de modo que tal empenho ultrapasse as exigências e as
necessidades do mercado, produzindo mudanças e novos
desenvolvimentos na mesma sociedade. (POLÍTICAS, 2003, p. 4).
Verifica-se que a Rede IUS estabelece uma dialética com a globalização e, de
certa forma, é contraditório uma vez que assume muitas de suas tendências e políticas, no
caso, o aspecto imprescindível da educação superior como preparação para o mercado de
trabalho; e rejeita ou tenta superar outros aspectos: no caso procura conceber a educação
superior como agente de mudança dos processos sociais e crítica do próprio mercado, não
pactuando com subserviência da educação às exigências e interesses do mercado,
concebendo-a como um bem social. Porém, os aspectos da globalização e suas políticas
para a educação são mais assimilados e estruturados no interior das IUS, como os
referenciais de avaliação utilizados pela Rede; o atendimento de alunos via mensalidades,
que demonstra pactuação prática com a concepção da educação como um serviço a ser
prestado na esfera privada; a expansão das instituições salesianas como resultado do
incremento da privatização da educação superior como via indicada aos países periféricos
para atenderem à demanda por educação superior sem onerar os cofres do Estado. As
tentativas de afastamento desse cenário são muito tênues, ficando mais nos ideais
proclamados do que em ações práticas, como, por exemplo, a proposta de se atender as
classes populares que demandam formação superior; a democratização da educação
superior; a concepção de conhecimento mais amplo baseado em ensino, pesquisa e
extensão. As IUS continuam preocupadas em garantir os tradicionais valores católicos na
126
educação e formação das novas gerações, sendo um espaço privilegiado de formação de
opinião, disseminando na sociedade os ideais católicos.
O foco da internacionalização, como processo histórico-social, é composto pela
preocupação com o ensino que desemboca na construção de currículos internacionais de
aprendizagem com destaque para a necessidade da experiência internacional do aluno; o
domínio da língua inglesa e o intercâmbio internacional de professores e alunos. Outro
vértice importante neste foco é o método de aprendizagem não mais centrado no professor,
mas no aluno pesquisador, na interação desse com o mundo e o destaque para o “ensino e
aprendizagem em rede” (MOROSINI, 2006, p. 119).
A tecnologia da informação, especialmente o uso da internet, tem papel central
para a internacionalização e a formação “[...] das comunidades de estudantes de ensino
superior, ou seja, a formação de redes” (MOROSINI, 2006, p. 120). As IUS percebem a
importância desse uso de tecnologia, elegendo-a como ferramenta necessária para alcançar
a formação da rede e permitir a fluência de seus trabalhos e projetos. Afirmam também a
importância cultural das redes tecnológicas ao mesmo tempo em que vêem a necessidade
de uma postura crítica positiva no seu uso e no seu significado:
O trabalho com redes tecnológicas de informação e comunicação exige
das IUS: a dotação estendida a cada uma das instituições de tais redes, a
sua utilização como fato normal para o estudo, a docência, os serviços e a
comunicação interna e externa, a pesquisa e o estímulo para o ensino
virtual à distância, ao menos como alternativa complementar do ensino
presencial. E tudo isso para penetrar criticamente no componente cultural
desse fenômeno contemporâneo, fenômeno que se torna imprescindível
compreender e dele se apossar especialmente por parte de instituições
com finalidade e perspectivas educativas (POLÍTICAS, 2003, p. 23-24).
Porém, é preciso ressaltar que a internacionalização não se restringe a essas
dimensões de ensino e de tecnologia, mas atinge as universidades como um todo e aponta,
como se viu anteriormente, para uma vasta complexidade de conceitos, formas e acepções
que envolvem políticas de organismos multilaterais e políticas nacionais ligadas ao
processo de mundialização do capital e a criação de um “capital acadêmico” (MOROSINI,
2006, p. 121). Dentre essas políticas destaca-se a busca de qualidade internacional, seja de
cursos e programas, seja de instituições, sendo que o modelo que mais se coaduna com
essa perspectiva da qualidade é o da universidade empreendedora e sustentável
(MOROSINI, 2006, p. 105). A formação da Rede IUS procura atender esse princípio e
127
aproximar as IUS desse novo paradigma internacional para a educação superior,
especialmente inserindo suas instituições no padrão das tecnologias de informação e
comunicação. Por isso Rede deseja que “[...] as IUS trabalhem sinergicamente em rede,
seja participando de redes de universidades seja utilizando-se de redes tecnológicas de
informação e comunicação” (POLÍTICAS, 2003, p. 22).
Retomando as questões dos riscos advindos do processo de globalização para a
educação superior, o principal deles advém da “determinação da educação superior como
um bem comercial regulamentado pela OMC, sobrepondo-se à concepção de educação
como bem público componente fundante do Estado-nacão” (MOROSINI, 2006, p. 122).
Essa disputa em torno da internacionalização da educação superior deve ser
considerada também sob o panorama maior do novo paradigma sócio-cultural: as
sociedades tecnologicamente avançadas nas quais o conhecimento é o determinante para as
forças produtivas e define, portanto, o sistema econômico vigente, caracterizado pela
mobilidade, adaptabilidade e criatividade dos processos; formação de redes produtivas
internacionais suportadas por recursos tecnológicos avançados que permitem interação e
distribuição de informações e produtos.
Nesse contexto, onde o conhecimento possui valor agregado no conjunto do
sistema de produção, a educação superior, ainda que construída em instituições de diversos
perfis, detém uma centralidade visível e, por isso, a disputa em torno de sua hegemonia e
da definição de seus padrões sendo que as sociedades mais avançadas tecnologicamente
têm notável preponderância na determinação de concepções. Essa tendência é, portanto,
reflexo sócio-cultural do movimento de mundialização do capital que traz, junto consigo,
os paradigmas dos países capitalistas hegemônicos.
Nessa vertente cultural pode-se caracterizar o sistema social ligado à globalização
como heterogêneo do ponto de vista cultural e, simultaneamente, como transnacional e
universal. No plano político, o Estado apresenta-se como um espaço supranacional, sendo
as esferas políticas transnacionais, isto é, as forças internacionais disputam e moldam os
antigos Estados Nacionais, definindo a agenda política, especialmente nos países
periféricos:
A ciência e a tecnologia passaram a dar condições aos Estados
desenvolvidos de globalizarem a economia, interferindo diretamente no
mecanismo econômico dos Estados Periféricos, que foram alterando de
128
forma substancial seu cotidiano “nacional”, para se adaptarem às
demandas dos mandatários do globo (SANFELICE, 2008, p. 71).
Esse novo Estado não possui controle da atividade econômica e persegue os
mesmos padrões da administração privada, seguindo modelos de eficiência e qualidade, o
que termina sendo imposto às universidades:
Em avaliação, há que se pensar em duas lógicas contraditórias, ainda que
muitas vezes combinem alguns de seus aspectos: a lógica dos interesses
do mercado e a lógica dos interesses da sociedade. De um lado, a
ideologia da universidade para o mercado, uma organização em função da
economia. De acordo com este paradigma, a avaliação se materializa
como instrumento de controle sobre os indivíduos, as instituições e o
sistema e opera, como se fossem valores primordiais, a eficiência, o
lucro, a produtividade, a competitividade, a operacionalidade, a
racionalidade instrumental (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 109).
Em consequência da valorização econômica e social do conhecimento, já que se
trata de uma sociedade definida por conceitos de tecnologia, competência e eficiência, as
melhores oportunidades de emprego e salários estarão com os sujeitos que detiverem maior
complexidade de formação, ou seja, títulos acadêmicos de maior nível. Essa tendência
acaba influenciando um novo relacionamento entre o poder estatal e a educação superior:
por um lado o Estado retira-se do financiamento da educação superior e, por outro,
influenciado pelo parâmetro da qualidade e eficiência, impõe uma intensa cultura de
avaliação, com a qual pretende garantir que as instituições ofereçam resultados capazes de
impactar positivamente numa sociedade ávida por mão de obra qualificada.
Nessa perspectiva a educação superior assume papel vital para a democratização
da sociedade uma vez que é o nível de conhecimento que determina o papel do cidadão no
conjunto social. Por isso a elitização do acesso à educação superior determina uma
sociedade excludente enquanto que amplo acesso define alta perspectiva de
democratização. Porém, não se pode deixar de mencionar as tensões que se acumulam ao
redor dessa necessidade de democratização do acesso: a educação superior, no contexto da
globalização e mundialização do capital, acompanha essa tendência por meio da
internacionalização de seus padrões, mas sofre pressão de grupos que desejam explorar os
seus serviços de forma lucrativa, instaurando uma tensão que aponta em sentido contrário à
democratização e afirmação da educação como um direito humano fundamental. Essa
tensão se agrava com a desobrigação do Estado em financiar esse nível de educação,
129
deteriorando as condições de viabilidade da democratização, especialmente nos países
periféricos em que a maioria da população não consegue autofinanciar-se para a obtenção
desse grau de ensino.
Por isso identificam-se duas tendências opostas quando a internacionalização da
educação superior é discutida no âmbito dos organismos multilaterais ou nos blocos
internacionais regionais: uma em que prevalece os interesses econômicos dos países
centrais na forma de privatização dos serviços educacionais ou precarização desses
serviços por parte dos países periféricos de modo que os centrais sejam os provedores
internacionais desses serviços, angariando lucros por eles. Já outra tendência aponta para a
necessidade da consolidação da educação superior em todas as sociedades já que é uma
força que contribui para a inserção social e econômica.
A Congregação Salesiana apresenta percepção da controvérsia internacional
sobre educação superior e das tensões que em torno dela se aglutinam e pretendem que
suas instituições estejam articuladas para não serem destruídas pelo processo de
globalização e para não assumirem aleatoriamente os seus padrões, mas sejam capazes de
se erigir como um player internacional nesse processo. Por isso o posicionamento na
formação da Rede internacional: “O processo iniciado pelas IUS no período 1998-2002
deve cristalizar-se em fórmulas precisas de coordenação institucional e de articulação das
relações e colaboração entre si” (POLÍTICAS, 2003, p. 24).
A articulação institucional entre as IUS pressupõe múltiplas perspectivas diante
dos contextos nacionais e internacionais ao mesmo tempo em que aponta para uma
convergência de tendências e similitudes no quadro das orientações para a educação
superior, compondo uma complexidade inerente seja ao momento cultural seja à própria
educação superior. Como parte dessa complexidade, há que se considerar as
particularidades e as tendências regionais e seus atores que, na contramão da convergência
das tendências, constituem um outro pólo de forças, indicando divergências, interesses e
necessidades que precisam ser atendidas ( DIAS SOBRINHO, 2003, p 162).
Nesse sentido, os países vêm desenvolvendo, acompanhando os termos de
produtividade, competitividade e eficiência na gestão o conceito chamado de pertinência
para as instituições de educação superior que significa a correspondência entre a filosofia
institucional, as demandas da sociedade e o contexto de aceleradas mudanças em que está
inserida a educação superior (IESALC, 2007, p. 12). Pode-se verificar que as políticas
130
assumem essa complexidade exigida da educação superior para poder responder de
maneira significativa aos desafios propostos pela sociedade:
Para a sua orientação, desenvolvimento, avaliação permanente e
consolidação, as IUS deverão ter os seguintes pontos de referência: a) de
uma ótica acadêmica: [...] uma grande atenção diante da evolução da
mesma instituição universitária, marcada por novos fatores
condicionantes, quais sejam: o número maciço de estudantes, os
relacionamentos democráticos, a interdisciplinaridade, as novas
tecnologias, o rigor na organização e na utilização dos recursos, a
globalização nas perspectivas, nos interesses e nos relacionamentos, nos
efeitos nocivos e excludentes para os mais desfavorecidos, sem esquecer
o lugar onde os centros estão implantados e o serviço local que deveria
ser irrenunciável para toda IUS. De uma ótica social: necessidades locais
da sociedade em que cada IUS está inserida, especialmente as que mais
dizem respeito à missão salesiana em favor das classes populares
(POLÍTICAS, 2003, p. 13).
Por isso pode-se afirmar que no processo de internacionalização, assim como na
afirmação da identidade, as IUS almejam apresentar uma alternativa para a formação de
um mercado educacional e para a formação pura e simples de um capitalismo acadêmico
decorrente da exploração da educação superior como um bem de serviço. Sua concepção
indica oposição a esse movimento e a formação da Rede se dá como resistência e
enfrentamento ao mesmo tempo em que buscam assegurar a continuidade da proposta
salesiana de educação superior. Entretanto, novamente a Rede se depara com a dificuldade
das fontes de recursos para que suas afirmações encontrem plena realização. A própria
Rede, nesse aspecto, afirma que cada uma das instituições deve autofinanciar-se, o que
significa apoiar-se ainda nas mensalidades dos alunos. Esse aspecto problemático é assim
expresso pela Rede:
O princípio do autofinanciamento de cada centro terá por base
principalmente as entradas provenientes dos alunos, sem esquecer a
opção preferencial, de serviços a terceiros e de contribuições advindas
por diversos títulos do Estado e de entidades estatais e/ou particulares
(POLÍTICAS, 2003, p. 22).
Rede apresenta tentativas de estabelecer políticas de busca de novas fontes
recursos para financiar as funções universitárias, especialmente pesquisa e extensão. Não
obstante essa intenção, a Rede não consegue se desvencilhar das mensalidades como fonte
principal de recursos e essa questão não foi ainda enfrentada suficientemente, explicitando
131
uma contradição que percorre todo o processo da Rede. Pode-se afirmar que a Rede
estabelece políticas de gestão e define a identidade de forma sistemática, porém não logra
resolver, ao menos por enquanto, as fontes de recursos que lhe permitam atuar
decisivamente para a democratização da educação superior, apesar de sua decisiva
contribuição em prol de uma educação para todos.
Vale trazer à tona que essa problemática tem reflexo não apenas sobre a
democratização mas também sobre a continuidade das IUS: elas precisam continuar a
captar alunos que tenham efetiva condições de pagamento das mensalidades afim de se
viabilizar em seu projeto de educação superior. Trata-se, portanto, de uma posição muito
frágil levando-se em consideração os contextos em que se encontram e, principalmente, a
decisão de não formar um conglomerado capitalista e nem agir como tal, o que impede
ganhos de escala, atuação em mercados de capitais e ganho de competitividade na
concorrência global. Por outro lado as IUS ainda não conseguiram afirmar-se como uma
instituição internacional de cunho filantrópico capaz de captar recursos e doações e
também não são reconhecidas como uma competência internacional seja em áreas de
pesquisa seja de serviços a tal ponto que ganhem recursos com a execução desses serviços.
Essa é uma vontade ainda não plenamente realizada. Em todo caso, a Rede expressa assim
sua intenção de mudança nesse aspecto:
Com fins específicos de formação do pessoal, pesquisa, serviços de
extensão universitária, operações estratégicas conjuntas, bolsas de estudo
etc., é necessário proceder ativamente à busca de auxílios econômicos, a
partir dos quais, se for necessário, se poderia criar um fundo econômico
para as IUS. Para tudo isso será conveniente utilizar os procedimentos
mais adequados, respeitando sempre as responsabilidades já estabelecidas
na Congregação Salesiana – tanto em nível inspetorial quanto central –
para a busca, gestão e decisão sobre os fundos. Tratando-se de fundraising ou de outras vias, é aconselhável servir-se de estruturas da
Congregação já em funcionamento, garantindo nelas o serviço
especializado de informação e orientação no campo da educação superior
(POLÍTICAS, 2003, p. 23).
Diante
da
necessidade
de
sustentação
de
condições
favoráveis
ao
autofinanciamento, a decisão anterior da Rede IUS em não dar continuidade ao ciclo de
expansão apresenta-se, de certa forma, negativo. É claro que da perspectiva econômica é
arriscado expandir instituições sem identidade sólida, sem uma cultura de planejamento,
mecanismos de controle e avaliação e sistemas eficientes e rápidos de gestão. Porém, em
132
termos de competitividade, a escala é muito importante, tanto quanto uma cultura
empreendedora sustentada por uma administração completa. Na tentativa de se consolidar
em termos de identidade, políticas e gestão, a Rede IUS não tem considerado a
participação no mercado como essencial. Ao contrário, a Rede pretende deliberadamente
que novas instituições sejam criadas dentro de um complexo projeto de gestão e de um
conjunto de procedimentos agora centralizados e rígidos. Sublinhe-se que a tendência atual
no mercado educacional já não a criação de novas instituições, mas a expansão via fusão
e/ou aquisição de concorrentes. Porém a Rede posiciona-se no sentido de não priorizar a
expansão seja na forma de novas instituições seja na forma de aquisições. Aliás, sobre essa
possibilidade não há manifestação oficial da Rede. Eis a forma como se manifesta:
Diante da conveniência de reestruturar – para o desenvolvimento ou para
redução – as IUS existentes ou para abrir outras novas, considere-se a
possibilidade de superar a área estritamente inspetorial e chegar, junto
com outras inspetorias, a colaborações de âmbito nacional ou regional.
Seja como for, para criar um novo centro de educação superior ou para
transformar substancialmente um já existente, as inspetorias deverão aterse às seguintes exigências: a) para iniciar o processo: Como ponto de
partida, comunicar ao Reitor-Mor e ao seu conselho a intenção de iniciar
os procedimentos para a criação ou transformação de um centro,
servindo-se para isso de um documento de declaração de intenções, no
qual o inspetor fará constar: uma clara necessidade social de educação
superior para os destinatários preferenciais da missão salesiana ou uma
necessidade especial de caráter estratégico para a inspetoria e/ou para as
inspetorias da Região; a integração do novo centro no projeto orgânico da
inspetoria; os recursos humanos disponíveis, incluída a presença
qualificada de uma comunidade salesiana ou de salesianos qualificados e
em número suficiente, relacionados com uma comunidade ou com a
mesma inspetoria; os recursos financeiros com que se conta; o grau de
viabilidade para conseguir a autorização do organismo oficial para a
abertura do centro. Perante esta declaração de intenções, o Reitor-Mor e o
seu Conselho dará ou negará ao inspetor a correspondente autorização
escrita para continuar o processo. Para o pedido de aprovação do projeto:
No caso de se ter recebido a autorização pedida, o inspetor deverá
apresentar ao Reitor-Mor e ao seu Conselho: o projeto institucional bem
definido e concreto, segundo as características indicadas no n. 30; o plano
estratégico (cf. n. 31) para, no mínimo, cinco anos, que conte com os
recursos humanos e econômico-financeiros suficientes; e que entre os
recursos humanos se conte com a presença de salesianos qualificados; um
plano operacional detalhado que corresponda ao primeiro ano de
atividade do centro. Considerada essa documentação, o Reitor-Mor e o
seu Conselho dará, solicitará modificações ou negará ao inspetor a
correspondente autorização escrita, para seguir adiante com o projeto
(POLÍTICAS, 2003, p. 26).
133
Essa nova política da Rede IUS difere da situação observada na década de 1990
quando eram criadas instituições sem nenhum planejamento prévio e, muitas vezes, sem o
conhecimento dos órgãos centrais da Congregação. Essa nova postura por um lado reflete o
amadurecimento da política da Congregação para a educação superior. Os procedimentos
indicados e exigidos estão novamente em consonância com o que é praticado no contexto
das agências reguladoras sejam nacionais ou internacionais. Segue-se os mesmos padrões e
verifica-se, mais uma vez, o reflexo das políticas mais amplas sobre a Rede IUS. Note-se
também que a prioridade, em caso de abertura de novas instituições é de que sejam
circunscritas não mais no raio de atuação de uma única inspetoria, mas tenham caráter
nacional ou regional para consolidar a vontade de sinergia ou colaboração efetiva.
Inclusive a busca de iniciativas conjuntas tem como um dos seus objetivos o melhor
aproveitamento dos recursos e a redução dos custos de financiamento.
Não obstante, o tema da democratização da educação superior no interior da Rede
IUS segue o debate internacional em torno da educação superior. As conferências da
UNESCO em 1998 e em 2003 pretendem construir um caminho que “[...] facilite a
integração e à inclusão dos estudantes e professores nesse círculo vital” (MOROSINI,
2008, p. 291). A internacionalização, como cooperação, é vista como vetor para a “[...]
melhoria da qualidade da educação superior, administração e financiamento da educação”
(Ibidem, 2008). Desta forma a internacionalização é posta pela UNESCO sob uma
perspectiva positiva e esse órgão fomenta esse movimento utilizando-se da Associação
Internacional de Universidades (IAU) e também dos próprios documentos e iniciativas de
cooperação internacional emanadas das conferências. Morosini, ao analisar a Segunda
Reunião dos Parceiros da Educação Superior de 2003, assim avalia:
Neste encontro de 2003 a Unesco dá continuidade à referida Conferência
e destaca também a internacionalização da educação superior. Aponta
como desenvolvimentos mais importantes pós-paris: a maior
complexidade das estratégias e do crescimento das várias iniciativas
voltadas para alcançar ou fortalecer a internacionalização, devido
principalmente à globalização acelerada; a combinação das
racionalidades acadêmica e econômica que impulsionam o processo; e a
importância geral da internacionalização e do contexto global na
discussão sobre políticas posteriores, nos níveis institucional, sistêmico e
internacional na educação superior (MOROSINI, 2008, p. 291).
134
A autora constata, portanto, o avanço do tema da internacionalização nos debates
e iniciativas da Unesco como reflexo de seu desenvolvimento na sociedade global. Frisa,
destarte, um crescimento de estratégias que favoreça o desenvolvimento institucional da
academia no sentido de sua transnacionalização e, ao mesmo tempo, a importância que
esse tema adquire para a definição de políticas de educação superior. A análise da autora
vincula a internacionalização ao movimento da globalização sendo, nessa perspectiva, uma
de suas conseqüências.
Continuando sua análise, Morosini sublinha como a Unesco, utilizando-se da IAU
desdobra suas orientações em ações que perfazem a consolidação da internacionalização:
[...] as IES tomem iniciativas de internacionalização, entre as quais a
formulação de políticas institucionais e, especificamente, de currículos
para a formação de cidadãos internacionais e de garantia de qualidade no
processo de internacionalização; ocorra a expansão dos fluxos de
internacionalização para as regiões subdesenvolvidas baseada em códigos
de ética internacionais e no desenvolvimento de parcerias entre iguais;
haja a remoção de obstáculos à mobilidade e o aproveitamento de
professores aposentados no processo; e finaliza com a necessidade de
fóruns para a discussão. (MOROSINI, 2008, p. 291).
Os meios apontados para a consolidação do processo de internacionalização,
indicados pela UNESCO são: construção de políticas voltadas para esse fim; currículos que
habilitem a formação de cidadãos internacionais; fluxo em direção aos países em
desenvolvimento por meio de parcerias e mobilidade de professores. Assim o processo de
internacionalização adquire um matiz prática que inclusive possibilita a aferição de seu
grau de desenvolvimento com o objetivo de favorecer a integração dos povos por meio da
educação.
Destarte a UNESCO constrói um liame entre educação e inclusão social; e a
orientação de seus documentos é lúcida em revelar o papel estratégico que o conhecimento
exerce na sociedade hodierna. Por isso insiste na promoção desse nível de estudos entre
todos os povos e procura despertar sensibilidade das forças políticas e econômicas
internacionais para a importância desse tema na agenda global a fim de se promover a
diversidade, a inclusão e a formação para o trabalho numa sociedade estruturada sobre o
conhecimento e o reconhecimento do direito de imigração num mundo marcado pela
mobilidade em todas as esferas sociais, mas que tende à intolerância e à discriminação
étnica (MOROSINI, 2008, p. 292).
135
O documento prossegue indicando os caminhos que serão percorridos para que se
efetive na prática o trabalho em conjunto. Destaca-se o estabelecimento dos programas
comuns de atuação, o estabelecimento de prazos e metas e uma coordenação internacional
dos trabalhos. Transparece nessa sistemática uma assertividade maior em relação a Brasília
que não chegou a definir tão claramente o planejamento dos trabalhos:
Estas políticas serão atuadas por um período limitado de tempo, por meio
de programas comuns para todas as IUS. Continuando a prática já
experimentada, serão tais programas propostos às IUS pelo Dicastério
para a Pastoral juvenil, debatidos e acordados entre todas elas,
preocupando-se depois o Dicastério de animar e conduzir à sua realização
(POLÍTICAS, 2003, p. 15-16).
O estabelecimento de Programas Comuns para toda a Rede IUS e sua articulação
e coordenação mundial por meio do Dicastério para a Pastoral Juvenil constitui uma
novidade em relação à Brasília e torna-se expressão da vontade de efetivar o projeto de
uma atuação conjunta e coordenada. O documento exprime certa insistência nesse ponto,
pois traz essa mesma afirmação na afirmação seguinte onde são delineados a
responsabilidade e o papel do Dicastério da Pastoral Juvenil nessa coordenação,
incumbindo-o da condução e desenvolvimento das Políticas e Programas comuns e as
colaborações entre as IUS, favorecendo entre elas debates e acordos. Esse papel adquire de
certa forma um sentido positivo, pois coaduna forças e projetos, permite sua concretização
e converte-se na expressão formal de seu caráter internacional:
A coordenação institucional das IUS estará sob a responsabilidade do
Dicastério para a Pastoral Juvenil. O seu serviço às IUS se concentrará,
sobretudo, na condução do desenvolvimento das políticas gerais e dos
programas comuns, assim como daquelas iniciativas de colaboração entre
várias instituições que possam servir de modelo ou exemplo para as
demais (POLÍTICAS, 2003, p. 24).
3.4 Gestão, identidade e internacionalização no Plano Comum II
O Plano Comum II organiza-se em torno de três eixos estratégicos. O primeiro:
criar uma plataforma humana fundada sobre a identidade, para operar nas instituições.
Possui dois objetivos: o planejamento e organização das instituições e garantir que o
136
funcionamento ordinário das instituições seja permeado pela identidade proclamada: as
relações interpessoais, o modo cooperativo de funcionamento dos organismos
institucionais no interior de cada IUS e o desenvolvimento dos colaboradores como
“profissionais-educadores”.
O tema da profissionalização em função da identidade é central nesse primeiro
eixo. Esse aspecto permite que a Rede absorva a tendência global em que as organizações
concentram suas expectativas de resultados na qualificação das pessoas e na sua formação.
Avalia-se que a Rede encontra a estratégia certa para a garantia de sua identidade: que os
membros das comunidades acadêmicas das IUS sejam formados segundo a perspectiva, os
valores e a tradição educativa da Rede. Por isso a identidade deixa de ser concebida como
mero assessório, mas, uma vez delineada de forma sistemática, pretende atuar em toda a
Rede IUS, abarcando todos os seus processos institucionais por meio das pessoas. Essa
perspectiva da profissionalização dos colaboradores alarga-se no eixo seguinte com o tema
dos Recursos Humanos. Pode-se perguntar quais foram as iniciativas de formação para a
assimilação da Identidade traçada. Resumiu-se em um curso denominado “Aprendizagem
Cooperativa” construído em torno da tradição pedagógico-educativa da Congregação.
Outras iniciativas ficaram sob a responsabilidade das instituições individualmente.
O segundo eixo: garantir os fundamentos das instituições tem três colunas: a Carta
de Navegação que é “um conjunto de instrumentos e procedimentos para garantir a
orientação e a gestão das instituições dentro do quadro de referência” - é composta pelo
Projeto Institucional, Plano Estratégico e Plano Operativo; os Recursos Humanos “para
tornar realidade quanto está programado no Projeto Institucional”; os Recursos
Financeiros, “para garantir o funcionamento ordinário e através do tempo das instituições”
(PLANO COMUM II, p. 3).
Esse eixo está voltado para o desenvolvimento da gestão da Rede IUS e
contempla a agenda das políticas globais para a educação superior em termos de
administração e racionalidade. Porém, é de se notar que esse conjunto de procedimentos
administrativos não logrou a constituição ainda de uma nova cultura e pode-se afirmar que
há um conflito latente nas instituições entre a situação anterior à implantação da Rede,
mais informal e solto, e a construção do atual, mais sistematizado e racionalizado. Também
não se chegou ainda à formação de um padrão de gestão que possa ser classificado como
empreendedor, sustentável e inovador, porém o processo instaurado visa atingir essa meta
137
por uma gestão propositiva, isto é, capaz de envolver entes internos e externos à
comunidade
especialmente
acadêmica
os
acompanhando
novos
papéis
as
mudanças
desempenhados
por
no
cenário
estudantes,
internacional
professores,
administradores, órgãos e governos reguladores e supervisores, tendências de mercado,
indústrias e empresas em geral, bem como repercussões regionais (FRANCO, 2006, p.
214). Já o padrão empreendedor e inovador que se deseja atingir visa a elevar a capacidade
de sustentação da mudança contínua no interior das IUS fortalecendo elementos que a
favoreçam: “diversificação da base financeira; fortificação do centro diretivo; expansão do
desenvolvimento periférico; estímulo à comunidade acadêmica e cultura empreendedora
integrada” (FRANCO, 2006, p. 216).
O desafio é fazer tudo o que está construído nos Planos, denominados Carta de
Navegação, seja transformado em racionalidade prática capaz de orientar e focar os
processos de mudança rumo ao sistematizado nos documentos de referência. Em cada uma
das conferências regionais, procurou-se, ao longo da década 2003-2007, atender uma das
linhas do segundo eixo do Programa. Primeiro foram elaboradas as Cartas de Navegação
cujas orientações de construção, denominadas guias, foram apresentadas aos participantes
da conferência e San Tiago do Chile, em 2004. Em seguida os participantes da Rede IUS
voltaram-se para as políticas de formação e utilização dos Recursos Humanos disponíveis.
A grande questão permanece intocada: os recursos financeiros. A Rede não inovou nem
estabeleceu consensos e orientações novas nesse aspecto.
O terceiro eixo: tecer relações setoriais entre as IUS e construir a IUS-net. Tem
como principal objetivo construir grupos de intercâmbio por área de interesse ou
conhecimento. Estão instituídos os grupos da área de Educação, de Engenharia e o grupo
encarregado de promover cursos de formação de recursos humanos – ofereceu o curso
Aprendizagem Cooperativa. A Rede IUS estabeleceu um portal virtual amplo e tem se
utilizado dele para o desenvolvimento dessas iniciativas e o incremento da sinergia ou
colaborações. Vale frisar que as instituições envolvidas na área de Educação reuniram-se
em Turim, Itália, em 2007 e traçaram parcerias de pesquisa, atuação conjunta para pesquisa
e oferecimento de cursos que consolidem a Rede como promotora de referência na área das
Ciências da Educação.
Em julho de 2007, do dia 10 ao dia 14, ocorreu em Roma a V Assembléia das
IUS. Nessa ocasião o Padre Carlos Garulo, Coordenador Geral das IUS, apresentou um
138
balanço dos dez anos da Rede IUS por meio de um relatório intitulado “1997-2007 Visão
Interna do Processo das IUS - VIPIUS”. Logo no primeiro parágrafo da introdução há uma
afirmação que coincide com o que se afirmou nessa dissertação e que ressalta-se como
conclusão:
As Instituições Salesianas que se ocupam da Educação Superior – poucas
ou muitas, grandes ou pequenas, melhores ou piores, de recente ou de
mais antiga criação, em uma área geográfica ou outra – não escapam às
dinâmicas de transformação acelerada, nem tão pouco aos
condicionamentos que afetam ao funcionamento de todos os sistemas de
educação nas diferentes regiões do mundo (VIPIUS, 2007, p. 7).
À guisa de conclusão das análises pode-se afirmar que a criação da Rede IUS
segue as tendências internacionais para a educação superior que apontam para expansão
quantitativa de instituições e alunos, acompanhada de uma crise de financiamento que
impede seja a universalização do acesso seja a qualificação das instituições, especialmente
as particulares como são as IUS. A própria existência da Rede IUS aponta uma outra
tendência que vem a ser a privatização do setor educacional e também a sua
internacionalização para atender aos interesses do capital que encontrou no setor de
prestação de serviços em geral e na educação em particular uma nova fronteira de
exploração que, devido ao alto retorno financeiro, prolonga o ciclo de acumulação.
CONCLUSÕES
Procurou-se com esta Dissertação analisar se a constituição da Rede das
Instituições Salesianas de Educação Superior contribui para a afirmação da identidade
confessional salesiana. Essa questão remeteu-nos a um primeiro objetivo: verificar como
ocorreu o processo de implantação da Rede IUS. Para conhecer esse processo e suas
razões, ampliou-se o raio de análise, o que possibilitou relacionar a Rede IUS com as
políticas educacionais e com a globalização e a mundialização do capital.
Essa análise permite concluir que as IUS e a Rede que procuram construir são
resultado, síntese, das políticas educacionais e do contexto sócio-econômico e cultural e da
visão de educação superior e de confessionalidade que seus membros procuram exprimir.
As IUS estão plenamente inseridas no processo global de mundialização
econômica e das políticas para a educação superior e estabelecem com esse cenário
cultural e econômico mais amplo uma relação dialética ora aproximando-se e
compactuando com suas tendências, ora sofrendo suas conseqüências e ora procurando
distanciar-se para auto-afirmar seus ideais e concepções. Encontra-se no documento
VIPIUS uma afirmação que traduz esse processo dialético: “Para uma instituição como a
Congregação Salesiana, recém aterrissada e sem tradição na educação superior, era
necessário reconhecer o novo cenário e definir sua identidade e missão a serem aplicadas a
ele. Esta foi a primeira preocupação [...]” (VIPIUS, 2007, p. 15). Transparece assim o
reconhecimento de dois olhares: um para a cenário histórico e outro para a tradição e a
identidade da Congregação Salesiana.
Ainda em outra passagem, chama-se atenção para esse processo dialético:
“Ademais, foi necessário conjugar a natureza e as exigências próprias tanto do novo
cenário como da identidade e da missão próprias da Congregação, resolvendo qualquer
possível contradição” (VIPIUS, 2007, p. 15). Além da consciência da dialética entre os
dois termos, isto é, a Identidade e o cenário histórico, mais especificamente a mudanças
140
aceleradas da globalização, também há na afirmação a aceitação de que se trata de um
processo que gera contradições e conflitos a serem pensados e resolvidos.
Dessa maneira o processo de construção da Rede IUS desencadeou-se, por uma
parte, devido ao desconhecimento pelo governo central da Congregação de toda a realidade
e complexidade das IUS como também aos problemas de inadequação com a missão da
Congregação; à formulação desapropriada da própria identidade como instituição de
educação superior; ao crescimento acelerado e a novidade dessas instituições no conjunto
das obras da Congregação. Por outra parte, a existência das IUS no conjunto das obras
educacionais da Congregação Salesiana é resultado das políticas para a educação superior
que acompanham o processo de globalização, a saber, a expansão do acesso, a
diversificação das instituições, a privatização como escolha que reflete tanto a
mercantilização da educação como também a visão neoliberal do Estado.
Transpareceu, pelas análises, que a Congregação pretende construir um projeto de
atuação conjunta, formando a Rede IUS. Percebeu-se que se trata de instituições variadas
em seu formato jurídico, presentes em três continentes. O seu desenvolvimento histórico
demonstra que elas estão ligadas ao processo de ampliação da iniciativa privada na
educação superior, sendo que seus índices de maior crescimento ocorrem justamente nos
anos de 1990, período em que se implantam as reformas educacionais mundialmente
orientadas por políticas de privatização e redução da presença do Estado na educação
superior e a conseqüente formação do mercado educacional mundializado.
Encontraram-se, ainda, indícios de que esse movimento de privatização
influenciou a tomada de decisão da Congregação em constituir com as IUS uma rede
internacional com vistas a fortalecer sua atuação, manter a identidade de sua concepção de
educação superior e proteger-se da visão mercadológica da educação.
Simultaneamente explicitou-se que a expansão das IUS beneficiou-se das políticas
educacionais uma vez que sem abertura por elas proporcionada não encontrariam espaço
para sua existência. Essas políticas também influenciaram o perfil institucional das IUS
uma vez que a expansão favoreceu a diversificação das instituições de educação superior.
Apesar desse perfil percebeu-se que as IUS perseguem um ideal de educação
superior em termos clássicos, isto é, fundado no tripé ensino, pesquisa e extensão. Essa
concepção as afasta de uma visão fragmentada do conhecimento, porém gera-lhes desafios
de cunho econômico-financeiro: manter as atividades inerentes à universidade apenas com
141
mensalidades de alunos e, ao mesmo tempo, buscar a popularização da educação superior
em países periféricos nos quais a maioria da população jovem ainda não tem acesso a esse
nível de educação justamente por falta de condições econômicas e sociais adequadas,
sendo os sistemas ainda elitizados, apesar da forte demanda por educação superior.
Conclui-se que o processo de implantação da Rede Internacional das IUS busca
estabelecer cooperação e também novos padrões de gestão dessas instituições a fim de que
possam operar de maneira orgânica e sistemática em sua gestão e realização de projetos e
atividades acadêmicas. Esse processo está sendo construído por meio de documentos que
traduzem a assimilação de uma linguagem profissional, voltada para resultados, eficiência
e eficácia, denotando aceitação de padrões de qualidade assumidos por organismos
internacionais.
Após a análise da implantação da Rede, na construção de respostas ao problema
de pesquisa desta Dissertação, foi estabelecido um segundo objetivo: identificar qual é a
concepção de identidade confessional católica salesiana. Foi possível constatar alguns
elementos importantes que compõem ou se relacionam diretamente com a explicitação da
identidade das IUS. Verificou-se também como a identidade se articula com os referenciais
das políticas internacionais para a educação superior.
Os documentos explicitam uma visão própria e específica de educação superior e
de políticas que diferem das concepções neoliberais de educação entendida apenas como
serviço a ser explorado em função do lucro e da formação de capital financeiro erigido
dessa exploração. Difere também no sentido de que a Rede IUS possui uma concepção
ampla de educação superior, entendida de forma clássica – ensino, pesquisa e extensão, e
acresce a essa a sua visão humanista e cristã que tem suas raízes na experiência educativa
da Congregação Salesiana e na finalidade da sua presença na educação superior. Essa
concepção traduz-se num projeto integral de educação e formação do ser humano.
Conclui-se desse processo, que ao empreender a constituição da Rede, as IUS
procuram, pelo analisado, defender sua identidade no momento de implementação de
políticas capitalistas neoliberais sobre a educação superior que tem comprometido e
ameaçado a sua proposta educacional pela concorrência e por meio da concepção de
educação trazidas pela globalização do capital e do neoliberalismo.
Essas políticas trouxeram uma acentuada diversificação das instituições que
promovem educação superior não com o intuito de oferecer a sua democratização, mas de
142
servir à obtenção de dividendos. Isso ocorre de forma mais acentuada nos países
periféricos uma vez que a educação superior nos países centrais encontra-se num estágio
muito mais avançado e é deles que provêm as atuais políticas de educação em tempos de
globalização.
O planejamento, a avaliação, a verificação de qualidade, a profissionalização de
recursos humanos, o credenciamento, a formação de redes tecnológicas e de comunicação
aparecem coincidentes na agenda global para a educação superior, como se apresenta nos
blocos geopolíticos e estão presentes nas políticas da Rede IUS. Nota-se uma tendência
acentuada para aspectos burocráticos, sendo que as iniciativas de sistematização da gestão
e da identidade deixam na sombra aspectos cruciais, especialmente a sustentabilidade. Não
atinge dinamismo e agilidade como também não privilegia aspectos como inovação,
sustentabilidade e capacidade empreendedora, fundamentais para o contexto de competição
e concorrência.
Após dez anos de trabalhos de formação da Rede IUS, os projetos de gestão, de
avaliação e também de criação de novas instituições começam a acontecer. Nesse sentido
abre-se novas perspectivas de estudos especialmente no que tange verificar como esses
projetos que estão sendo implementados coadunam-se com o horizonte geral traçado nos
documentos analisados nesta dissertação. Também a temática do financiamento e da
sustentabilidade mereceria pesquisas específicas no sentido não só de se verificar a
viabilidade econômica dos empreendimentos mas também explicitar como ocorre
atualmente e até que ponto está em consonância com os princípios estabelecidos no marco
de referência da Rede IUS.
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