JAIR MARQUES DE ARAUJO O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE INTERNACIONAL DAS INSTITUIÇÕES SALESIANAS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO Campo Grande-MS Junho – 2009 JAIR MARQUES DE ARAUJO O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE INTERNACIONAL DAS INSTITUIÇÕES SALESIANAS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação – Mestrado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Educação. Área de Concentração: Educação Orientadora: Profa. Dra. Mariluce Bittar UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO Campo Grande-MS Junho – 2009 Araujo, Jair Marques de A663p O processo de implantação da rede internacional das instituições salesianas de educação superior e a afirmação da identidade confessional salesiana / Jair Marques de Araujo; orientação, Mariluce Bittar. 2009. 146 f. Dissertação (mestrado em educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2009. 1.Política educacional 2. Ensino superior e Estado 3. Universidades e faculdades católicas I. Bittar, Mariluce II. Título CDD – 379.4 Dedico esse trabalho à Professora Dra. Mariluce Bittar, por seu comprometimento com os ideiais da educação superior católica salesiana. Sua paciência e sabedoria perimitiram a construção dessa dissertação. AGRADECIMENTOS A Deus, que me Ama e cujo Amor celebro em minha vida. À Missão Salesiana, que partilha comigo seu carisma e seus ideiais. A Laura Lavagnolli, pela assessoria. A Rosana Gomes da Silva Paes da Costa e Ereni dos Santos Benvenuti, pela revisão e formatação deste trabalho. RESUMO Esta dissertação vincula-se à Linha de Pesquisa Políticas Educacionais, Gestão da Escola e Formação Docente, mais diretamente ao Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de Educação Superior – GEPPES/UCDB. Tem como objeto de pesquisa a análise de constituição da Rede Internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) como movimento criado com o objetivo de fortalecer sua identidade e reforçar o compromisso social com a juventude das classes populares, para fazer frente ao movimento de empresariamento da educação pelo capital financeiro. Os objetivos específicos consistem em: a) Verificar como ocorreu o processo de implantação da Rede IUS; b) Identificar qual é a concepção de identidade confessional salesiana expressa pela Rede IUS. Como procedimento técnico-metodológico utilizou-se a análise de documentos produzidos pelas IUS, no sentido de explicitar as razões para a constituição da Rede, seus sentidos e contradições, bem como sua influência para a afirmação da identidade das instituições universitárias confessionais. Infere-se que a mundialização do capital, as exigências decorrentes do modelo neoliberal e as políticas públicas educacionais implantadas sob orientação dos organismos multilaterais, com repercussões nos países em processo de desenvolvimento, provocaram, entre outras, o movimento de privatização da educação superior, o surgimento de um modelo de universidade empresarial e a formação de conglomerados econômico-empresariais cuja principal finalidade é a obtenção de lucros financeiros com a exploração dos serviços educacionais. O fortalecimento da visão empresarial da educação superior pela expansão dos grupos privados desestruturou tradicionais universidades comunitárias confessionais que se dedicam à educação superior sob uma ótica humanista, o que as levou a criar estratégias, como a construção da Rede IUS, no sentido de preservar sua identidade no conjunto das IES brasileiras, além de colaborar para sua própria sobrevivência institucional. Atualmente acham-se pressionadas pela instauração exarcebada da concorrência por alunos, revelando-se despreparadas para enfrentar o movimento da globalização sobre a educação superior. É nesse contexto que surge a Rede Internacional das IUS com o objetivo de garantir e preservar a sua identidade institucional. Palavras-chave: Políticas Educacionais; Instituições Salesianas de Educação Superior; Identidade Institucional. ABSTRACT The dissertation in hand is linked to the Research Theme of Educational Policies, School Management and Teacher Training, but more directly to the Study Group on Research into Policies for Higher Education – GEPPES/UCDB. The target of the research is the analysis of the constitution of the International Network of Salesian Institutions for Higher Education (IUS) as a movement created with the aim of strengthening their identity and reinforcing their social commitment to the youth of the needier classes in order to lead the movement of managing education through financial capital. The specific aims consist of: a) verifying how the process of the implantation of the IUS Network took place; b) identifying what the conception of confessional Salesian identity expressed by the IUS Network is. As a technical-methodological procedure the analysis of documents produced by the IUS were used, in the sense of making explicit the reasons for the constitution of the Network, their reasoning and contradictions, as well as their influence on the affirmation of the identity of the confessional university institutions. It is inferred that the globalization of capital, the demands as a result of the neoliberal model and the educational public policies implanted under the orientation of multilateral organisms, with repercussions in countries in the process of development, provoked, among others, the movement of making higher education private, the coming into being of a university management model and the formation of economic-managerial conglomerates whose main aim is the obtaining of financial profits with the exploitation of educational services. The strengthening of the managerial vision of higher learning through the expansion of private groups broke down traditional confessional community universities which dedicate themselves to higher education from the humanist point of view, that led them to create strategies, such as the construction of the IUS Network, in the sense of preserving their identity within the body of Brazilian IUS, as well as collaborating towards their own institutional survival. At the moment they find themselves under pressure from the exacerbating installation of competition for students, revealing themselves to be unprepared to face the effect of the globalization movement on higher education. It is in this context that emerges the IUS International Network with the aim of guaranteeing and preserving their institutional identity. Key words: Educational Policies; Salesian Institutions of Higher Learning; Institutional Identity. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABRUC - Associação Brasileira de Universidades Comunitárias ACG - Atos do Conselho Geral AGCS - Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços ALCA - Área de Livre Comércio das Américas ALFA - América Latina Formação Acadêmica ASU - Associação Salesiana das Universidades AUIP - Associação Universitária Iberoamericana de Pós-Graduação BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento CRES - Conferência Regional de Educação Superior GEPPES - Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de Educação Superior IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IAU - Associação Internacional de Universidades IES - Instituição de Ensino Superior IESALC - Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e Caribe INQAAHE - Rede Internacional para a Garantia da Qualidade da Educação Superior INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais IUS - Instituições Salesianas de Educação Superior MEC - Ministério da Educação MERCOSUL - Mercado Comum do Sul OMC - Organização Mundial do Comércio PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNE - Plano Nacional de Educação QAAS - Agências de Acreditação e de Garantia da Qualidade REUNI - Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais UCDB - Universidade Católica Dom Bosco UEALC - União Européia, América Latina e Caribe de Ensino Superior UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura WQR - Consórcio Registro Internacional de Qualidade LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 01 - Instituzioni Universitarie Salesiane: data di fondazione .......................................................................................... 31 Gráfico 02 - Numero delle IUS per Classificazione (Categorie) .............................. 37 Gráfico 03 - Condizione Socio-economica Degli Studenti - Informazione fonita dalle IUS............................................................. 47 Gráfico 04 - Fonti di Finanziamento (In $1.000.000) .............................................. 50 Gráfico 05 - Esfuerzo social (hogares e gobierno) em la educación superior .............................................................................................. 54 Gráfico 06 - Índice de crescimento das matrículas na educação superior na América Latina (1994-2003)............................................. 60 Gráfico 07 - Custo anual por aluno ......................................................................... 87 Gráfico 08 - Percentual de alunos na educação superior segundo as faixas de Renda Familiar .................................................................... 89 Gráfico 09 - Projeção da taxa de escolarização no ensino médio ............................. 90 Gráfico 10 - Número de vagas e ingressantes nas IES privadas............................... 91 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12 CAPÍTULO I : O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE IUS........................ 20 1.2 As Assembléias e o Programa Comum I................................................................ 23 1.3 As origens e as transformações históricas das Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS ....................................................................................... 28 1.4 A expansão da IUS e as políticas para a educação superior.................................... 41 CAPÍTULO II: A CONCEPÇÃO DE IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA DEFINIDA PELA REDE IUS................................... 61 2.1 A confessionalidade: o caráter católico e salesiano na educação superior no Documento de Brasília 1995 ................................................................................. 61 2.2 A Carta Circular “Por Vós Estudo”: identidade, qualidade e profissionalização................................................................................................................... 80 2.3 O Documento Identidade: Projeto Institucional, Identidade e Gestão ..................... 93 CAPÍTULO III: O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE................................................. 104 3.1 A categoria internacionalização........................................................................... 104 3.2 A concepção de internacionalização para a Rede IUS no Documento de Brasília................................................................................................................ 110 3.3 A internacionalização e a identidade no Documento “Políticas para as IUS”.................................................................................................................... 114 3.4 Gestão, identidade e internacionalização no Plano Comum II .............................. 135 CONCLUSÕES ......................................................................................................... 139 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 143 INTRODUÇÃO Esta dissertação tem como objetivo analisar de que forma o processo de constituição e internacionalização da Rede das Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) contribui para a afirmação da identidade confessional salesiana. Os objetivos específicos são: a) verificar como ocorreu o processo de implantação da Rede IUS e b) identificar qual é a concepção de identidade confessional católica salesiana expressa pela Rede IUS. Pretende-se responder ao seguinte problema: o processo de internacionalização das Instituições Salesianas de Educação Superior contribui para a afirmação da identidade confessional salesiana? Pode a Rede Internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior, em seus princípios políticos, estratégicos e operativos, oferecer uma alternativa para fortalecer e salvaguardar os valores e a identidade de suas afiliadas como instituições comunitárias, filantrópicas, católicas e salesianas a fim de assegurar a sua identidade institucional? Esse processo de busca de solidez institucional, com reafirmação dos valores católicos e salesianos, é um processo novo – de construção da identidade – ou é um processo de retomada e de revisão do próprio ideário universitário salesiano? Afinal, quais as razões da instauração desse processo? Estas perguntas nos fazem retomar, em forma de pesquisa, com base nessa problemática específica da educação superior confessional salesiana, os estudos sobre as políticas educacionais para a educação superior e suas relações com as IUS, bem como a produção acadêmica sobre as universidades comunitárias, confessionais e filantrópicas, procurando analisar o processo de implantação da Rede Internacional das Instituições Salesianas de educação superior e sua contribuição – ou não – para a afirmação da identidade católica e salesiana. 13 Essa temática de pesquisa tem relevância também para a compreensão da própria Universidade na qual se desenvolve esta Dissertação de Mestrado e o Programa de Mestrado ao qual se vincula, apresentando elementos que podem ajudar a identificar os aspectos que coexistem, interagem ou se confrontam na dialética do ambiente universitário salesiano. É relevante para o autor na medida em que representa um momento reflexivo sobre a instituição à qual pertence e também sobre os dez anos de sua atuação profissional na educação superior salesiana, possibilitando a verificação empírica de como ocorre a implementação das políticas educacionais do atual momento histórico no interior das instituições e de como elas se corporificam na configuração das instituições salesianas de educação superior. Ressalta-se que o objeto aqui explicitado vincula-se diretamente à Linha de Pesquisa Políticas Educacionais, Gestão da Escola e Formação Docente, especificamente aos estudos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas Políticas de Educação Superior (GEPPES), do Programa de Mestrado em Educação da UCDB. O processo histórico da internacionalização da educação superior inicia-se com a própria índole da universidade como centro de produção do conhecimento que recebe de diversas partes do mundo tanto alunos como mestres para desenvolver programas e projetos de estudos, debates e pesquisas. É o que se observa na antiguidade clássica em cidades como Atenas, Rodes e Alexandria que se constituíam como centros culturais de referência e contavam com movimento de professores e alunos que intercambiavam experiências e conhecimentos (MANACORDA, 1989, p. 9-70). Entre os séculos XII e XIII o movimento de professores e alunos intensifica-se com a criação das primeiras universidades européias que procuram responder às demandas de formação da nascente classe burguesa. Destaca-se, nesse sentido, o movimento dos mestres vacantes e as ordens religiosas dominicana, jesuíta e franciscana em torno das quais se organizam as primeiras universidades européias (MANACORDA, 1989, p 140-181). Durante os séculos XVII e XVIII as universidades sistematizam as trocas de professores e alunos. Esse processo culmina com a celebração de acordos e programas governamentais de intercâmbio cultural, especialmente no período pós-guerra na Europa visando a reconstrução dos países e o restabelecimento dos laços culturais e econômicos. Nos países periféricos do capitalismo a internacionalização ocorre inicialmente com os estudantes desses países que buscam as universidades européias e norte-americanas 14 para sua formação e também por meio da qualificação de professores que encontram nas universidades européias e americanas a possibilidade de realizarem cursos de pósgraduação e também participarem de programas de intercâmbio em projetos de pesquisa e cursos. Outro aspecto importante nesse processo de integração entre países centrais e periféricos ocorre na década de 1970 quando muitos países latino-americanos recebem assessoria de universidades européias e americanas que visam o desenvolvimento das universidades e a criação de novos programas e campos de conhecimento. Não obstante, a intensificação do processo de internacionalização na educação superior, na última década do século vinte, estrutura-se no interior dos blocos econômicos e dos organismos multilaterais que acompanham e dirigem a transnacionalização, procurando estabelecer um modelo cosmopolita de educação superior: A década de 90 é marcada pela transnacionalização político-econômica mundial, com a formação de megablocos. Subjacente a tal panorama, consubstanciado prioritariamente em acordos econômicos de integração, paira uma proposta de internacionalização dos sistemas de ensino superior dos países que compõem estes megablocos. Tal proposta, com diferenciados graus de relações, objetiva a construção de um modelo cosmopolita de ensino superior (Kerr, 1990) voltado a um mundo onde estudantes e professores estudem o que almejam, sem referência a uma nacionalidade específica, e tenham a possibilidade de produzirem e de trocarem conhecimentos. (MOROSINI, 1998, p. 23). Dessa maneira, o cenário central deixa de ser as universidades e transpõe-se para o âmbito político, comercial e financeiro. Nesse sentido destaca-se a Declaração da UNESCO de 1998 que estabelece a cooperação internacional no âmbito da educação superior como uma meta a ser perseguida pelas nações em vista do aprimoramento intelectual e cultural das mesmas e da redução das diferenças tecnológicas, de qualificação e formação com o objetivo de diminuir as barreiras que impedem a integração dos países ao processo de globalização. É também importante nesse contexto ressaltar o debate em torno da nova visão sobre a educação superior: constitui-se como um direito dos cidadãos ou como um serviço a ser explorado comercialmente no mercado internacional? O posicionamento dos blocos econômicos dos países centrais tende a ser, em relação aos países periféricos, utilizando-se da solidez de suas instituições universitárias, o de oferecer a educação superior no mercado internacional como um serviço e, assim, 15 alcançar dividendos que tornem o financiamento desse nível de educação menos custoso em seus próprios países e, simultaneamente, como fonte de lucro. Essa visão corrobora-se no documento “Acordo Geral do Comércio de Serviços” (1995) da Organização Mundial para o Comércio. Do ponto de vista da relevância social, esta pesquisa traz à tona a problemática da atual crise do capital, após a grande fase de expansão que se iniciou no pós-guerra com suas repercussões para a Educação Superior Confessional Salesiana e, no seu interior, pretende analisar os caminhos que as IUS estão desenvolvendo a fim de se verificar as contradições presentes nesse processo de se construir e se consolidar, frente aos desafios do mercado e do capital, das reformas educacionais patrocinadas pelos agentes financeiros mundiais e do conseqüente surgimento de “um novo modelo de universidade mundial – neoprofissional, heterônoma, operacional e empresarial/competitiva” (SGUISSARDI, 2005, p. 5), a sua proposta de educação superior. A fundamentação metodológica da pesquisa foi baseada na abordagem qualitativa, priorizando a análise documental. Isso porque a constituição da Rede IUS é um processo institucionalizado que corrobora na elaboração de documentos que têm força de mando, de cunho deliberativo e que, portanto, repercutem no campo da gestão, administração, impostação e definição institucionais de cada uma das IUS. Esse movimento institucionalizado prevê a implantação de planos de trabalho, com ações muito bem definidas nos documentos chamados de Programas Comuns. A análise desses Programas Comuns e suas conseqüências para a prática institucional das IUS revelam-se como imprescindíveis para o entendimento do processo de construção da Rede IUS e suas políticas. A análise documental realizada referiu-se, portanto, a fontes documentais primárias, de caráter oficial, produzidas ao longo dos anos de criação, implantação e implementação da Rede IUS, isto é, desde 1995, quando se encontra o primeiro registro documental oficial dos inícios da Rede, até 2007, ano estabelecido como limite para o período de análise. Classificam-se essas fontes em primárias e oficiais porque constituem um conjunto de documentos emanados dos órgãos institucionais oficiais da Rede e da Congregação Salesiana e porque fornecem informações diretas das vicissitudes históricas, políticas, administrativas e ideológico-filosóficas primordiais para sua compreensão 16 A análise documental compõe-se não somente das fontes, mas também dos critérios de seleção e análise das mesmas para poder se compreender o objeto de pesquisa, sendo que a sua escolha e o seu tratamento prévio são o primeiro passo da pesquisa documental (RODRÍGUEZ, 2004, p. 6). Por isso, dentre as fontes documentais disponíveis, tendo-se em vista o problema de pesquisa levantado, a concepção e abordagem que se pretende da Rede IUS, realizou-se a seleção daquelas que constituíram o corpus documental da pesquisa (RODRÍGUEZ, 2004, p. 10). Foram eleitos como documentos para a análise o “Encontro de Brasília”, realizado em 1995; o Diagnóstico (2001), que apresenta um balanço situacional na visão do coordenador do processo de construção da Rede IUS, Pe. Carlos Garulo; O “IUS Report” (2001), documento que perfaz um Censo das IUS no mundo, com dados relevantes para o entendimento de suas iniciativas, origens, número de alunos, situação financeira, cursos, atividades de extensão e de pesquisa entre outros; o documento “Identidade das IUS” (2003) que apresenta as concepções de educação superior, confessionalidade e gestão das IUS; “Políticas para as IUS” (2003) que traz uma série de estratégias que visam alavancar as instituições para atingir o ideal traçado na “Identidade das IUS” (2003); e o Programa Comum II (2003) que se caracteriza por ser um plano de gestão estratégica organizado em torno de alguns eixos fundamentais para a administração das atividades da Rede IUS. Também foram analisadas algumas cartas e pronunciamentos do Reitor-Mor da Congregação Salesiana: “Carta Circular de Oito de Dezembro de 1997” (ACG 362, 1998, p. 90); “Carta Circular Por Vós Estudo” (ACG 361, 1997, p. 2). O Reitor-Mor é a autoridade máxima das IUS responsável pelo governo mundial de todas as atividades, obras e instituições de educação mantidas pela Congregação Salesiana. Sublinha-se que o conjunto formado pelos documentos Diagnóstico, IUS Report, Identidade e Políticas para as IUS forma o Marco Referencial das IUS e seu processo de construção foi resultado de um primeiro programa de ação conjunta de todas as IUS – por isso mesmo denominado Programa Comum I. Selecionados e classificados os documentos, procurou-se realizar uma leitura prévia dos mesmos e, em seguida, uma leitura reflexiva que permitissem uma compreensão mais adequada da Rede IUS e o estabelecimento de categorias de análise (RODRÍGUEZ,2004, p. 7-8). Esse processo corroborou na construção de um quadro de categorização por meio do qual se classificou o conteúdo de cada uma das fontes 17 documentais. Desta forma procedeu-se à análise utilizando-se categorias que pudessem ajudar na compreensão e explicitação do objetivo da pesquisa bem como na construção da resposta ao problema levantado. Priorizaram-se as categorias identidade, gestão e internacionalização, como capazes de fazer vir à tona as contradições, os sentidos e idiossincrasias inerentes ao processo de construção da Rede IUS. Dada a centralidade da categoria identidade para o problema levantado nessa dissertação, requer-se esclarecer que “significa examinar as características próprias, os traços comuns delineadores” (BITTAR, 1999, p. 88) que a Rede IUS assume como concepção para sua atuação na educação superior, ressaltando-se que entre essas se destaca a confessionalidade católica e salesiana em suas vertentes religiosa, ética e pedagógica. Concebe-se também que a construção da Identidade e sua afirmação são processos históricos marcados pela tensão instaurada devido às diferenças e contradições inerentes à dinâmica de seus diversos elementos ao longo do desenvolvimento concreto da Rede IUS em cada uma de suas afiliadas (BITTAR, 1999, p. 89-90). A identidade é construída e delineada nos princípios institucionais e confessionais totalizantes. Porém a identidade é um processo em construção (BITTAR, 1999, p. 226) quando se refere à maneira como será interpretada, construída e afirmada pela Rede IUS no âmbito da educação superior católica e no âmbito da historicidade das instituições e das políticas para a educação superior. Por isso considera-se que a Identidade não está definida aprioristicamente. Não é metafísica, mas histórica e, logo, passível de ser analisada. Não é atributo psicológico, mas institucional, pois se refere a um modelo estruturante que transparece em concepções e valores de uma cultura organizacional a partir dos quais as instituições estabelecem uma dialética com o contexto em que estão inseridas, retratando uma experiência histórica específica. Por isso na análise levou-se em conta o contexto das políticas internacionais para a educação superior erigidas em tempos de mundialização do capital e da globalização como fenômeno cultural, social e também político-econômico. Em outras palavras, considera-se na análise o processo histórico e suas vicissitudes como fundamentais para o entendimento das ações, opções, projetos e concepções adotados na constituição da Rede IUS. Nesse sentido emergem temas como a democratização do acesso; a privatização da educação superior; a formação de conglomerados financeiros que exploram serviços educacionais; o estabelecimento da profissionalização das instituições e empresariamento 18 da educação superior; a cultura de avaliação e a formação de padrões de qualidade e de internacionalização entre outros. Com base no material analisado, estruturou-se a dissertação em três capítulos: o Primeiro Capítulo “O Processo de Implantação da Rede IUS” analisa como se deu esse processo e quais seus principais momentos e decisões. Destarte são colocados três tópicos principais que demonstram o desenrolar do processo: a) as Assembléias e o Programa Comum I, centrando a análise nos documentos “Diagnóstico” e “IUS Report”; b) as origens históricas das IUS, traçando um rápido panorama de seu desenvolvimento, procurando relacionar esse movimento com as políticas de expansão do setor privado na educação superior como uma tendência mundial; e, c) a expansão das IUS e a políticas para a educação superior que visa a verificar como ocorre a aproximação entre essas instituições e as políticas adotadas, explicitando as contradições que ocorrem no processo, especialmente colocando a problemática e também as estratégias adotadas para firmar a identidade confessional. O segundo capítulo “A Concepção de Identidade Confessional Salesiana Definida pela Rede IUS” analisa a concepção da identidade católica salesiana construída pelas IUS no interior de três documentos: a) o “Documento de Brasília” de 1995; b) “Carta Circular do Reitor Mor” Pe. Juan Edmundo Vechi intitulada “Por Vós Estudo”, de 1997; c) Documento “Identidade das IUS”, de 2001. Analisa-se cada um desses documentos, explicitando como eles abordam a concepção da identidade confessional e suas relações com a educação superior. Ao mesmo tempo em que se procurou traçar o perfil confessional da Rede IUS também se buscou demonstrar a concepção de educação superior que a Rede assume. O terceiro capítulo “O Processo de Internacionalização e a Afirmação da Identidade” estabelece um vínculo de análise entre o que a Rede IUS faz em termos de estratégias e políticas adotadas para a internacionalização e como as agências internacionais e os blocos econômicos tratam desse tema, procurando-se apontar aspectos coincidentes entre as escolhas da Rede IUS e as políticas mais amplas de internacionalização da educação superior e as repercussões desse processo para a afirmação da identidade confessional. Por fim procurou-se ressaltar algumas “Conclusões” que foram se delineando ao longo dos três capítulos, tendo como referência o processo de globalização, as políticas para a educação superior e a temática da Identidade, da Gestão e da Internacionalização, 19 sublinhando um ponto de análise central: a dialética entre a construção da identidade e as estratégias para sua afirmação e o contexto sócio-econômico e cultural que tem como ponto de inflexão as políticas para a educação superior oriundas do processo de mundialização do capital. A Banca de Exame de Qualificação indicou diversos aspectos que precisavam ser melhor elaborados, contribuindo para que o trabalho aprofundasse a análise das categorias e do referencial teórico. Acatou-se no corpo do trabalho a sugestão da Banca, que apontou a necessidade de trazer dados que melhor caracterizassem as instituições salesianas, sua quantidade, sua distribuição nos países e seu perfil institucional. A temática da internacionalização foi ampliada por meio da utilização de bibliografia que analisa a sua formatação no contexto norte americano, europeu e latino-americano. Isso enriqueceu a análise que até então estava muito focada no contexto brasileiro. A categoria identidade salesiana carecia de diferenciações para se delinear a sua posição no contexto católico. Por isso foram acrescidos documentos da Igreja Católica que possibilitam a apreciação das orientações e do pensamento católicos sobre a educação superior e de como a educação superior salesiana se relaciona com essas exigências emanadas do Magistério da Igreja Católica. Procurou-se conferir um tom mais pessoal às conclusões, explicitando nelas o pensamento do autor após as análises e dados apresentados no corpo da dissertação. Desse modo, pretende-se que, após o desenvolvimento desta pesquisa, o estudo possa contribuir para adensar as reflexões dos pesquisadores da área, em especial do GEPPES/UCDB. CAPÍTULO I O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA REDE IUS Denomina-se Rede IUS ou Rede Internacional das IUS a formação de um conglomerado internacional composto pelas Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) que são ligadas à Igreja Católica, mais especificamente à Congregação Salesiana, associação religiosa católica fundada pelo sacerdote italiano João Bosco na primeira metade do século dezenove e que tem como missão principal atuar na educação formal e informal da juventude. Este capítulo tem como objetivo analisar os principais momentos e o processo de decisão que corroborou na criação da Rede IUS. Nesse sentido destacam-se a atuação do Reitor Mor da Congregação Salesiana Padre Juan Edmundo Vecchi; a realização das primeiras assembléias (1995, 1998, 2001), a definição do Programa Comum I (1998) e a instauração de um amplo processo de conhecimento da realidade situacional de cada uma das Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) que culmina com a construção do documento “IUS Report” (2001) e do “Diagnóstico” (2001), fundamentais para a compreensão das origens, desenvolvimento e expansão das IUS. O capítulo objetiva ainda estabelecer um paralelo entre o processo de criação e expansão dessas instituições e a decisão de implantar uma Rede IUS com as recentes tendências para as políticas de educação superior. 1.1 As orientações do Reitor Mor e sua contribuição para a implantação da Rede IUS Em Carta de oito de dezembro de 1997 (Atos do Conselho Geral – ACG, 362, 1998, p. 90) dirigida aos Inspetores e respectivos Conselhos Inspetoriais e aos Salesianos que trabalham nas Instituições Salesianas de Educação Superior, o Reitor Mor Padre Juan 21 Edmundo Vecchi, em consonância com o Conselho Geral, instituiu junto à Direção Geral “um serviço em vista das Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS”. Em outras palavras, esse ato significava que o Dirigente Máximo da Sociedade Salesiana chamou para a si a responsabilidade imediata de coordenar mundialmente as linhas gerais de trabalho e orientações das Instituições de Educação Superior da Congregação, nomeando, para esse fim, o Padre Carlos Garulo, da Espanha, como Delegado do Reitor Mor para as Instituições Salesianas de Educação Superior. O Reitor Mor explicita, nessa Carta, os objetivos desse serviço: realizar um estudo da situação das Instituições Salesianas de Educação Superior, com levantamento de dados, análises e conclusões, já que a Congregação não possuía dados consolidados sobre sua atuação no campo da educação superior; definir, por parte do Reitor Mor e do Conselho Geral, a política geral da Congregação nesse campo e emitir orientações autorizadas para todas as Instituições Salesianas de Educação Superior que, até então, funcionavam isoladamente, isto é, sem um projeto comum de atuação e sem orientações orgânicas sobre a Identidade Confessional da Congregação; dar início a um projeto de colaboração internacional entre as Instituições Salesianas de Educação Superior; Orientar e acompanhar as Inspetorias responsáveis pelas IUS (Ibid,1998, p.90). Esse ato formal do Reitor Mor Padre Juan Edmundo Vecchi representou a convergência de um processo de reflexão estratégica sobre a presença da Congregação na Educação Superior. Um dos momentos importantes desse processo foi a Primeira Assembléia das Instituições Salesianas de Educação Superior realizada em Brasília de 12 a 14 de agosto de 1995. Dessa Assembléia emanou documento final apresentando as motivações para a presença da Congregação na educação superior, as oportunidades de evangelização e formação da juventude que esse nível de ensino proporciona; os riscos que devem ser evitados e as necessidades a ser atendidas como, por exemplo, o planejamento adequado das instituições. Nesse documento menciona-se, pela primeira vez, a criação de uma associação internacional das Instituições Salesianas de Educação Superior. Também transparece nele a preocupação com a identidade salesiana. Outra nota presente ao longo dessa reflexão que antecede a criação do serviço para as IUS é a qualificação dos salesianos para atuarem no campo educacional. O mesmo Padre Juan Edmundo Vecchi expressa em termos orgânicos a necessidade, as áreas prioritárias e os desafios que a cultura moderna e o mundo intelectual e científico exigem 22 em termos de preparação para o adequado exercício do trabalho educativo que a Congregação é chamada a realizar: Especifiquei no discurso conclusivo do CG24 a dimensão concreta do investimento preferencial para a formação. “Investir quer dizer estabelecer e manter prioridades, garantir condições, operar segundo um programa que coloque em primeiro lugar as pessoas, as comunidades, a missão. Investir em tempo, em pessoal, em iniciativas, em recursos econômicos para a formação é tarefa e interesse de todos”. (ACG 361, 1997, p.9). Na mesma Circular, o Reitor Mor dedica uma atenção especial às IUS. Realça, por um lado, a necessidade de se preparar os salesianos para atuarem nesse campo educativo, já que até então a formação dos salesianos, de modo geral, estava voltada para a atuação pastoral ou para a atuação em escolas de educação básica, pois os planos da Congregação não consideravam a educação superior como um campo inerente à sua missão educacional. Por outro lado, o Reitor Mor estabelece como prioridade “[...] traçar com maior clareza a identidade e a orientação desses centros” (ACG 362, 1998, p. 90). Em duas passagens o Reitor Mor aponta a necessidade da Direção Geral da Congregação acompanhar e coordenar essa nova frente de missão: Essa é uma frente de missão relativamente nova e, portanto, a ser acompanhada, coordenada e clarificada. Será preciso elaborar um encaminhamento autorizado (o Projeto para as universidades salesianas, como plataforma declarativa da inspiração fundamental), promover o diálogo e o intercâmbio entre essas instituições e acompanhar o caminho das Inspetorias nessa nova experiência. A obtenção dos objetivos salesianos deverá ser garantida também nos estatutos. (ACG 362, 1998, p. 90). Na segunda passagem, o Reitor Mor aponta os motivos da preocupação da Direção Geral para com as IUS, frisando as repercussões institucionais: Queremos acompanhar a partir do Conselho Geral, com particular atenção, o desenvolvimento da presença salesiana nesta fronteira, que apresenta desafios não indiferentes do ponto de vista institucional, dos destinatários, dos colaboradores, da economia e, sobretudo, do projeto, mas que pode ser extraordinariamente fecunda para a evangelização da cultura e para uma presença particular no mundo da educação. (ACG 362, 1997, p. 92). 23 Nos anos que se seguiram – 1998 a 2003 - foram realizadas três conferências internacionais das IUS, denominadas “Assembléias das IUS”, que objetivavam constituir marcos de referência explicitados em documentos de identidade, de políticas e de ações estratégicas e operacionais que visavam à sua efetiva consolidação num projeto globalizado da Congregação, garantindo unidade de identidade e de políticas, colaboração internacional em rede para a consecução de padrões de qualidade e de significatividade das IUS e uma política de gestão embasada nos valores educacionais da Congregação. Por meio dessas iniciativas pretendeu-se efetivar as orientações do Reitor Mor expressas na Carta de Instituição do Serviço para as IUS (1998). A percepção da necessidade de se definir esses marcos de referência surgiu como resultado da prospecção realizada por meio do documento “IUS Report” (2001) e, anteriormente, pelo próprio Reitor Mor acompanhado do Conselho Geral da Congregação. Tanto o Reitor Mor e o Conselho Geral como os dirigentes de cada IUS percebem que o contexto exige sistematização, profissionalização e atuação conjunta para a continuidade das atividades da Congregação na educação superior. 1.2 As Assembléias e o Programa Comum I A Primeira Assembléia das IUS foi realizada, como citado anteriormente, em Brasília, de 12 a 14 de agosto de 1995. Ela antecede o desencadeamento institucional – formalizado – da criação da rede IUS. Foi baseado nessa primeira Assembléia, e sob sua influência, que o Reitor Mor decidiu criar o serviço do Delegado do Reitor Mor para as IUS. A segunda Assembléia foi realizada em Roma, de 10 a 13 de julho de 1998. Dedicou-se a constituir os primeiros objetivos do trabalho em comum e a definir a metodologia desse trabalho. Ali se estruturou o método de construção do “IUS Report” (2001) e do “Diagnóstico Situacional” (2001) das IUS no mundo e a construção dos documentos “Identidade” (2003) e “Políticas” (2003). A terceira Assembléia foi realizada em Roma, de 13 a 17 de julho de 2001. Nela foram apresentados o “IUS Report” (2001) – ou “Dossiê IUS” (2001) – e o “Diagnóstico” (2001) situacionais das IUS. Foram votados e aprovados os documentos “Identidade” (2003) e “Política” (2003), posteriormente encaminhados para aprovação do Reitor Mor e do Conselho Geral. 24 O “IUS Report” (2001) ilustra, em suas 320 páginas, um quadro panorâmico de informações sobre as IUS no mundo. É estruturado em dez capítulos precedidos por uma apresentação do Padre Carlos Garulo, Delegado do Reitor Mor para as IUS. O primeiro capítulo faz um breve histórico das IUS, apresenta seu desenvolvimento, as razões de seu surgimento, seu status legal e institucional, a missão tal qual declarada em seus documentos e classificação das mesmas. O segundo capítulo apresenta as atividades acadêmicas: as áreas e tipificações do ensino, a pesquisa – tipos e campos; a produção científica e a extensão. O terceiro capítulo caracteriza os alunos quanto ao número, distribuição nos cursos e condição econômico-social. O quarto capítulo trata dos recursos humanos: professores, corpo administrativo e salesianos. O quinto capítulo relata a infraestrutura física disponível e os serviços de apoio. O sexto capítulo elenca as relações externas das IUS: entre as IUS, com outras universidades ou centros de Educação Superior e com instituições não universitárias. O sétimo capítulo traça o perfil econômico-financeiro das IUS. O oitavo capítulo descreve as práticas de administração e gestão das IUS. O nono capítulo analisa como é vivenciada a avaliação interna e externa das IUS. O décimo capítulo explicita as relações entre as IUS e suas respectivas mantenedoras – as Inspetorias Salesianas. Entende-se que é importante para a compreensão da envergadura do conjunto das IUS e de suas atividades, a sua caracterização institucional, os países em que estão implantadas, trazendo dados que perfazem o status quo dessas instituições. É a primeira vez que a Congregação procede a um levantamento de dados dessa natureza. O Delegado do Reitor-Mor para as IUS, Padre Carlos Garulo, no documento “Diagnóstico” (2001) apresentou sua análise de cada um dos pontos levantados nos dez capítulos do “IUS Report” (2001) e, também, aponta as tarefas que deverão ser enfrentadas por todos naquele início dos trabalhos de construção da Rede Internacional das IUS. Praticamente encontra-se nesse documento, de forma embrionária, todo o processo que seria instaurado com o objetivo de imprimir solidez para a Rede IUS. Destaca-se, a título de ilustração, sua posição em defesa da necessidade de sistematizar a especificidade salesiana na universidade quanto aos objetivos, fins e estilo; a insistência sobre a edificação de um projeto institucional que contemple essa especificidade e a busca de uma bem fundamentada qualidade institucional no que é próprio de uma Instituição de Educação Superior. 25 A quarta Assembléia foi realizada em Roma, de 9 a 13 de julho de 2003. Nela foi estabelecido o Programa Comum II, de cunho operativo, uma vez que as assembléias precedentes haviam definido a situação, a identidade e as políticas, tratava-se, agora, de estabelecer objetivos e linhas de ação com vistas a operacionalizar o marco referencial construído. Esse Programa constitui-se em torno de três eixos estratégicos: primeiro, criar uma plataforma humana fundada sobre a identidade, para operar nas instituições; segundo, garantir os fundamentos das instituições: a carta de navegação, os recursos humanos e os recursos humano-financeiros; terceiro, tecer relações setoriais entre as IUS e construir a IUS-net. O “IUS Report” (2001) consta de dez capítulos que são precedidos por uma apresentação do Delegado do Reitor Mor para as IUS, conforme relato anterior. É um conjunto vasto de dados e informações que perfazem a realidade interna e externa das IUS no mundo. A orientação para sua elaboração partiu do Programa Comum I elaborado durante o II Encontro das IUS em 1998 que destacou como um de seus objetivos o levantamento da situação das IUS por meio de uma sólida e adequada metodologia que proporcionasse uma documentação fiel à realidade complexa em que se encontram as diversas IUS, que fosse profissional e profunda, desenvolvida de tal maneira que pudesse colaborar para o estabelecimento de uma cultura de avaliação entre as IUS. Abrange as instituições que são da Congregação Salesiana, as que têm participação societária da Congregação e as que são apenas administradas pela congregação. Persegue esse objetivo tendo duas referências importantes diante da complexidade da tarefa, a fim de não se desorientar: é um dossiê para uso da Congregação que deseja manter-se coerente às finalidades próprias da Educação Superior – que assumiu como um dos campos de sua atuação – e à sua Missão Apostólica Evangelizadora (IUS Report, 2001, p. 7). Em sua apresentação, o Delegado do Reitor Mor para as IUS frisa, entre as dificuldades encontradas para a elaboração do Dossiê, a ausência do hábito de sistematizar informações e dados entre as IUS, o fato de ser a primeira vez em que essa tarefa é empreendida, a inexperiência dele e da equipe de colaboradores (Ibidem, 2001, p. 7). Ainda na apresentação o Delegado apresenta o caminho utilizado para a elaboração desse Dossiê, os instrumentos utilizados para a coleta de documentos, dados e informações disponíveis e a classificação da documentação coletada. Essa explanação 26 metodológica é imprescindível para a posterior análise desse documento, facilitando sua compreensão e o conseqüente entendimento da realidade das IUS (Ibidem, 2001, p. 7-9). Quanto ao caminho de elaboração, o ponto de partida foram os objetivos do Reitor Mor na Circular de criação do serviço para as IUS e os emanados do Programa Comum I. Os instrumentos para coleta de dados foram submetidos à apreciação prévia das IUS, visando alcançar o máximo envolvimento de cada uma das instituições e o aprimoramento dos instrumentos. Seguiu-se a aplicação dos instrumentos e verificação dos dados coletados para garantir a fidedignidade. Os dados foram sistematizados em tabelas temáticas e procederam-se à sua leitura, análise e interpretação. Redigiu-se o Dossiê e, baseado nele, elaborou-se um Diagnóstico das IUS, ressaltando-se seus pontos fortes e fracos e traçando-se, em linhas gerais, possíveis trajetos de curto, médio e longo prazos (IUS Report, 2001, p. 8). Quanto aos instrumentos de coleta de dados, são sete, e Padre Carlos Garulo os agrupa em três categorias, tendo como critério a natureza de cada um deles: a primeira categoria de instrumentos é composta pelo formulário de coleta de dados sobre as IUS e foi respondido por 98% das instituições. A segunda categoria de instrumentos compõe-se de cinco formulários e versam sobre a avaliação interna e externa das IUS. Os primeiros três voltaram-se para os membros da comunidade acadêmica: professores, corpo administrativo e estudantes; o quarto formulário foi aplicado aos inspetores salesianos; o quinto formulário foi aplicado aos reitores, sendo idêntico ao formulário aplicado aos inspetores, possibilitando uma comparação entre os pontos de vista interno e externo às instituições sobre as mesmas questões (Ibidem, 2001, p. 8). É importante sublinhar que o Programa Comum I foi delineado e aprovado na II Assembléia das IUS em 1998 e programado para os anos 1998 a 2002. Consistiu principalmente na elaboração do Marco de Referência das IUS composto dos documentos “Identidade” (2003), “Políticas” (2003), “IUS Report” (2001) e “Diágnóstico” (2001), sendo, portanto, que avaliação de seus dirigentes e participantes é de suma importância para estabelecer o alcance e também as percepções dos membros das IUS sobre o processo em andamento. A terceira categoria de instrumentos consiste nas visitas empreendidas pelo Delegado do Reitor Mor às instituições salesianas no mundo. Essas visitas ocorreram no período de 1999 a 2001. Foram visitados 86% das IUS em dezoito países de três 27 continentes – América, Europa e Ásia. Os objetivos das visitas foram, segundo o Padre Carlos Garulo, conhecer as pessoas e as instituições, seus projetos e problemas; estimular a sinergia – cooperação; tornar conhecido o processo instaurado a partir da criação do serviço para as IUS por parte do Reitor Mor. Além do corpo principal, o Dossiê é complementado pelo Diagnóstico, tabelas de dados e alguns anexos. O Delegado do Reitor Mor enfatiza em sua apresentação do “IUS Report” (2001) que o mesmo “apenas descreve a situação das IUS a partir da coleta de dados, sem nenhum julgamento, e constitui a base do Diagnóstico, com a garantia de procurar a maior objetividade possível, sendo consciente de que nunca será totalmente objetivo e completo” (IUS Report, 2001, p. 90). Procurar-se-á justamente, na análise desse documento, entender os sentidos e o porquê de sua constituição, seus limites e intenções, bem como a sua utilização e objetivos a que serviu nesse processo de internacionalização das IUS. O Diagnóstico é um documento de análise do conteúdo do Dossiê. É de autoria do Delegado do Reitor Mor, Padre Garulo, e apresenta seu ponto de vista sobre as forças e fraquezas das IUS que foram detectados com base nos dados do Dossiê. É um texto breve, de vinte páginas. Percorrendo cada um dos capítulos do Dossiê, o texto apresenta comentários, análises, aponta possíveis caminhos de ação e indica tarefas que devem ser assumidas. Nele transparece uma avaliação positiva das IUS, mas chama atenção para a necessidade de um novo modo de proceder, mais sistematizado, orgânico e planejado a fim de se constituir a especificidade do carisma salesiano no modo de conduzir a Educação Superior. Registra também que não basta a riqueza de informações trazidas pelo Dossiê: “[...] há que se chegar a um diagnóstico valorativo da situação” (Diagnóstico, 2001, p. 3). Na elaboração de sua “tentativa de construir um diagnóstico”, o Delegado do Reitor Mor segue dois critérios: “pensar em termos de Congregação”, o que significa pensar em termos do conjunto das IUS e ter “[...] diante dos olhos um quadro de referência universitário e salesiano suficientemente completo, isto é, não perder de vista o esquema temático que apresenta o ‘IUS Report’” (Diagnóstico, 2001, p. 3). Além de trabalhar sobre os pontos fortes e fracos das IUS, o Diagnóstico procura também indicar os pontos nevrálgicos e estratégicos para que a presença salesiana na Educação Superior seja significativa (Diagnóstico, 2001, p. 4). 28 A análise desse documento tem importância para a pesquisa na medida em que explicita a visão do líder executivo na implementação da Rede IUS. A análise de seu ponto de vista com certeza trará colaboração importante para saber o que foi priorizado e o que foi deixado em segundo plano nesse processo. Antes de se voltar para a análise dos significados dos documentos produzidos pela Rede IUS, é importante caracterizar a origem e a evolução históricas dessas Instituições. 1.3 As origens e as transformações históricas das Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS A Sociedade de São Francisco de Sales – ou Congregação Salesiana, sediada em Roma, mantém em diversas partes do mundo 43 Instituições de Educação Superior. Essas instituições nasceram da atividade educacional da Congregação, fundada em 1864 pelo sacerdote católico italiano João Bosco. A Congregação Salesiana tem como missão a educação da juventude, principalmente das classes populares. Para realizar esse objetivo, a Congregação dedicou-se primordialmente à organização do trabalho educativo no interior das escolas profissionais, internatos, colégios de educação básica e média e os denominados oratórios que oferecem serviços de educação religiosa ao lado de atividades lúdicas para ocupar o tempo livre da juventude em um ambiente humano e cristão de qualidade. Ao longo de suas primeiras décadas de fundação, a Congregação foi expandindo sua presença pelo continente europeu e, em seguida, para as Américas, Austrália, Ásia e África, de tal maneira que a Congregação no início do século vinte já desenvolvia suas atividades nos cinco continentes, assumindo uma dimensão mundial. Até o ano de 1934 suas atividades restringiam-se às escolas básicas e secundárias, à educação profissional, às atividades educativas religiosas, catequéticas e lúdicas, abrangendo crianças e jovens compreendidos na faixa etária de até dezoito anos. Nesse período, as atividades no campo da educação superior diziam respeito apenas à formação dos próprios quadros da Congregação, isto é, cursos seminarísticos de Filosofia e Teologia destinados à formação dos candidatos ao sacerdócio, bem como a formação pedagógica e/ou técnica dos seus membros leigos, ou seja, não ordenados. 29 O ano de 1934 representou um marco de mudança nesse contexto. Os salesianos chegaram à Índia em 1922, liderados pelo Padre Louis Mathias. Apenas doze anos mais tarde – 1934 – fundaram a primeira instituição salesiana de educação superior em Shillong, denominada “St Anthony’s College”. Essa iniciativa representou um fato novo, posicionando os salesianos da Índia na vanguarda dos trabalhos educacionais da Congregação. Dessa forma anteciparam-se aos salesianos dos países ocidentais já mais estabelecidos e estruturados (Diágnóstico, 2001, p. 12). Inicialmente, as atividades do St Anthony’s College estavam voltadas para a formação dos seminaristas da Congregação, porém com uma novidade: os cursos foram reconhecidos pelas instâncias educacionais da Índia com títulos de cursos de educação superior uma vez que o St Anthony’s College foi credenciado nos órgãos oficiais para este fim. Pouco a pouco esse College foi expandindo suas atividades para diversas áreas acadêmicas, aumentando seu número de alunos abrindo suas portas para os jovens da região (IUS Report, 2001, p. 15). Com a mesma finalidade inicial de formar os jovens salesianos, em 1938 os salesianos fundaram um novo College, em Sonada, na fronteira com o Nepal. Em 1940 os salesianos de Turim, por iniciativa do Reitor Mor, estabelecem o Pontifício Ateneu Salesiano que em 1973 é transformado na Pontifícia Universidade Salesiana. Observa-se que o objetivo inicial das instituições salesianas de educação superior é de formar os quadros da Congregação. Em seguida ocorre a expansão das atividades e da abrangência de cursos e alunos. Partindo dessas três primeiras instituições, a presença salesiana na educação superior vai se transformando, passando por diversas etapas de crescimento. Tal crescimento é mais acelerado nas últimas três décadas do século vinte. De 1935 a 1940 surgem os primeiros três centros elencados acima. Na década de 1950, surgem três novas instituições: Tirupattur, Índia; Lorena, Brasil; Bahia Blanca, Argentina. Portanto, de 1935 a 1950 o número passa a ser de seis instituições. Na década de 1960 são acrescentadas mais seis instituições, passando a ser doze. Entre 1971 e 1980 mais seis são criadas, elevando o número total a dezoito. Na década de 1980 a 1990 são fundadas oito novas instituições, chegando a vinte e seis o número total. De 1991 a 2000 dezessete instituições são criadas, contabilizando quarenta e três instituições (IUS Report, 2001, p. 23). 30 No gráfico a seguir, pode-se observar o surgimento dessas instituições ao longo das décadas e seus percentuais de crescimento em cada uma delas. Percebe-se que o maior crescimento percentual ocorre da década de 1980 para a década de 1990, sessenta e cinco por cento. Logo após o gráfico encontra-se uma tabela descritiva com os nomes e localização de cada instituição, distribuídas nos continentes. 31 Gráfico 01 Fonte: IUS Report, 2001, p. 300. 32 Quadro 01 Fonte: IUS Report, p. 105. 33 O crescimento acelerado dessas instituições é uma das razões alegadas nos documentos “IUS Report” (2001) e “Diagnóstico” (2001) para que a Congregação desencadeie um processo de análise e conhecimento desse fenômeno no conjunto de suas obras e atividades. O crescimento é “excessivamente rápido” em duas frentes: número de instituições e número de alunos. Trata-se de um desenvolvimento precário, “[...]com freqüência sem fundamentos suficientes de projeto, de recursos humanos e econômicos” (Diagnóstico, 2001, p. 5). Ao acusar essa precariedade institucional, o Diagnóstico chama a atenção para a necessidade de um futuro desenvolvimento organizacional por meio da gestão adequada. Em relação aos alunos, o grande número deles nas instituições quebra uma das características do método educacional da Congregação: a atenção e o conhecimento personalizados do aluno. A precariedade refere-se também à inexperiência da Congregação no campo universitário diante das exigências específicas da educação superior e a consideração dos recursos humanos e econômicos disponíveis para fazer frente às exigências desse campo. Os dois documentos enfatizam que, entre as características desse crescimento, ressalta-se que ele não foi planejado nem pelo núcleo central da Congregação, nem pelas províncias nacionais ou regionais da Congregação: Este fenômeno ocorreu de uma maneira tão espontânea e isolada que até o momento da elaboração deste informe não se teve conhecimento generalizado do mesmo na Congregação, nem tão pouco de suas reais dimensões. Nossa conclusão comprovada é que não houve de fato nenhum planejamento e previsão por parte do governo central da Congregação, nem tão pouco regional-interinspetorial, e, às vezes, nem sequer local-inspetorial. (Diágnóstico, 2001, p. 5). Não houve, portanto, nenhuma coordenação nem organicidade no desenvolvimento dessas instituições. Mais ainda, afirmam os mesmos documentos, até então havia um desconhecimento e falta de dados sistematizados sobre essas instituições e sobre esse fenômeno novo na Congregação: Diante desse fenômeno tão particular devemos nos perguntar: qual a razão para o deslocamento das atividades educacionais salesianas dos níveis primários e secundários para o nível superior? É resposta a algum projeto coordenado ou a um plano geral anteriormente estabelecido?... A partir dos dados utilizados no Relatório temos que concluir que nem no governo central nem nos governos nacionais e regionais houve qualquer planejamento para a coordenação desse desenvolvimento. Ainda mais, 34 durante muito tempo houve um desconhecimento desse fenômeno e de suas dimensões (IUS Report, 2001, p. 17). A precariedade do desenvolvimento refere-se, portanto, à falta de planejamento e gestão adequados às atividades da educação superior. Não obstante, é preciso notar que até então, o modo de proceder da Congregação para essa área como para as demais atividades nunca foi centralizado no sentido de uma política única nem em termos de planejamento. Houve sim, nos avanços territoriais da Congregação pelo mundo sempre uma organização de seus projetos missionários e de evangelização. Porém não há uma tradição de planejamento minucioso com escalonamento dos tipos de instituições a serem criadas nos locais onde esteja presente. Essas são frutos das interações entre a própria experiência da Congregação e as sociedades onde estão situadas. Portanto a observação do “Diagnóstico” (2001) como do “IUS Report” (2001) que acusam falta de planejamento e desconhecimento central sistemático sobre a realidade das IUS refere-se não só às IUS, mas também a outras áreas da Congregação e revelam um modo de proceder descentralizado onde as comunidades regionais e locais possuem certa autonomia em seu modo de se organizar, mesmo localmente. Em outras palavras, planejamento e articulação mundial, em termos de administração sistemática para todas as operações e estratégias da Congregação, na educação superior ou em suas atividades mais antigas, nunca de fato existiram. Trata-se de uma novidade trazida por essa iniciativa de constituir a Rede das Instituições Universitárias Salesianas – Rede IUS, sendo essa a primeira experiência da Congregação em termos de estabelecer e constituir, em suas atividades, um padrão administrativo orgânico de cunho internacional. O modo de proceder até então foi sempre de unidade em termos de princípios maiores como o Sistema Preventivo que caracteriza o método pedagógico da Congregação e a Espiritualidade que dá a maneira de vivenciar o cabedal religioso da Congregação em sua atuação educacional e de evangelização. O avanço quantitativo dessas instituições, ainda que não planejado, demonstra mudança e exige um reposicionamento nos trabalhos educacionais da Congregação. Até então a educação superior era um campo desconhecido para os Salesianos tradicionalmente voltados para a educação básica e profissional da juventude. Após quase um século de trabalhos educacionais nesse último campo, a Congregação muda e amplia seu perfil de atuação. 35 Cabe ressaltar que essas instituições são muito variadas em termos de organização administrativa universitária. Existem universidades, faculdades afiliadas a universidades, faculdades isoladas e instituições que oferecem estudos de caráter superior, mas não conduzem a títulos universitários reconhecidos. Sob a sigla IUS – Instituições Universitárias Salesianas, reúnem-se, portanto, instituições de diferentes status acadêmicos e, de certa forma, o termo IUS é inapropriado nesse sentido. Porém, o que se desejou com a adoção dessa nomenclatura é o de reunir todas as instituições mantidas pela Congregação a fim de se conferir a elas uma identidade internacional e empreender o que se traçou no Programa Comum I: constituir a Rede Internacional das IUS e direcionar um processo amplo de reflexão e planejamento. Sobre essa complexidade e também essa dicotomia interna assim se manifesta: O termo IUS é usado para designar um conjunto de instituições diferenciadas pelo nível de estudo que oferecem e pelos títulos acadêmicos que conferem: algumas, estudos superiores ou universitários com os títulos correspondentes; outras, estudos terciários não universitários. O uso de certa maneira forçado e até incorreto desse termo pode criar confusão; porém é justificado por uma razão pragmática: como um ponto de partida pra iluminar uma realidade complexa, desconhecida em seu desenvolvimento internacional. Por isso decidiu-se ser melhor não excluir nenhuma instituição acadêmica que trabalhe com níveis superiores de educação cujo desenvolvimento e realização normalmente se dá em uma universidade (IUS report, 2001, p. 19). Esses termos requerem algumas explicações: as universidades, compreendidas em termos clássicos, compõem 11 instituições; as faculdades afiliadas a universidades estão ligadas e subordinadas a uma universidade, via convênio, e são 23. Essa figura jurídica não existe no Brasil, mas no total das IUS elas possuem grande peso, pois perfazem cinqüenta e três por cento do seu total. As faculdades isoladas formam uma personalidade jurídica exclusiva do Brasil e são quatro. As instituições de estudos terciários ou superiores que não conduzem a títulos reconhecidos são as mais difíceis de compreensão. O “IUS Report” (2001) assim se manifesta sobre esse grupo: As instituições de nível terciário não-universitário formam o menor grupo: cinco no total. Quatro delas são centros de estudos com carreiras particularmente centradas na formação de professores, porém não exclusivamente. A quinta é um instituto técnico de nível superior. (IUS Report, 2001, p. 21) 36 Dessas cinco instituições de nível superior não universitárias, quatro estão localizadas na Argentina e uma no Peru. Nota-se que não há menção à figura dos Centros Universitários, exclusividade do Brasil. Mesmo assim a Congregação mantém no Brasil dois desses: um com sede em Americana, estado de São Paulo, e outro com sede em Lins, também em São Paulo. Registra-se que o Centro Universitário de Americana está contado entre as onze universidades, certamente porque possui autonomia e também desenvolve pesquisa, tendo Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu. Nos gráficos que seguem, podemos observar como as IUS dividem-se em cada uma das categorias. Predomina instituições de educação superior que não são universidades. Pode-se também verificar que sua maioria está localizada nos continentes em desenvolvimento especialmente América do sul e central, que possuem o maior número, e Ásia. 37 Gráfico 02 Fonte: IUS Report, 2001, p. 301. 38 Essa distribuição revela que as IUS são marcadamente instituições que estão fora do conceito tradicional de universidade. Apesar da existência de onze universidades, a predominância é de faculdades isoladas, uma vez que se entende o termo “faculdades afiliadas” designador de instituições semelhantes às faculdades isoladas conhecidas no Brasil. Isso acaba por condicionar o desenvolvimento de tais instituições do ponto de vista acadêmico clássico, especialmente em termos de pesquisa e extensão. Não obstante, há que se reconhecer que é considerável o número de universidades propriamente ditas, comprometidas, portanto, com a construção do conhecimento em termos clássicos de ensino, pesquisa e extensão. Porém, nem todas essas universidades realizam pesquisa. Duas delas, perguntadas se realizam ou não pesquisa, responderam que não (IUS Report, 2001, p. 32). Como essas universidades é que liderarão o processo de constituição da Rede das Instituições Universitárias Salesianas, a sua atuação direcionará a constituição da Rede especialmente em relação à definição do marco de referência, onde são explicitados os fundamentos e concepções definidores das IUS. Prevalecem nesses os termos tradicionais do tripé universitário. Se por um lado é positiva a postura da Rede IUS em definir sua concepção de educação superior baseada no ideal da universidade que constrói o conhecimento indissociável do ensino, pesquisa e extensão, por outro lado essa postura demandará grandes esforços para superar a lacuna entre o ideal proposto e a realidade institucional dado pela composição da Rede IUS. Apesar das dificuldades, existem elementos propícios uma vez que, mesmo não sendo todas as IUS, trinta e uma delas declararam realizar pesquisa; apenas nove não a realizam (entre elas as duas universidades!); 64% realizam pesquisa em áreas definidas pela instituição o que demonstra a existência de pesquisa institucionalizada, o que é positivo; além dessas, dez realizam pesquisa também em áreas de livre escolha de seus pesquisadores e seis realizam pesquisa somente em áreas de livre iniciativa dos pesquisadores (IUS Report, 2001, p. 32-33; 191). As pesquisas realizadas nessas IUS dividem-se em três categorias: pesquisa aplicada, pesquisa pura e pesquisa de divulgação, voltada para a demonstração de resultados de atividades de extensão ou ligadas a trabalhos sociais. 93,55% realizam pesquisa aplicada; 32,26% fazem pesquisa de divulgação; 25,8% realizam pesquisa pura. Essa classificação da pesquisa não é suficientemente clara, porém é como se encontra no “IUS Report” (2001). Não é informado quais pesquisas são ligadas a programas de pós- 39 graduação, se estão ligadas a projetos mais amplos e como estão organizadas em termos de grupos. O campo de pesquisa mais frequente é a Educação, pois 42% das instituições realizam pesquisa na área. Os aspectos abordados vão desde as teorias e sistemas educacionais aos aspectos sociais da educação como também pedagogia e didática. Outro campo de destaque é o da sociologia abordando aspectos gerais ou comunidades específicas: comunidades rurais, indígenas, juventude e comunidades marginalizadas (IUS Report, 2001, p. 33). Outro campo de atividade acadêmica a se verificar é o da extensão. Vinte e nove das 43 IUS realizam atividades de extensão. Destas, 23 realizam atividades definidas previamente pela instituição sendo, portanto, atividades institucionalizadas e projetadas. Quatro realizam atividades de livre iniciativa dos promotores e cinco combinam atividades previamente definidas e de livre iniciativa. As atividades são relacionadas aos cursos e ligadas aos seus currículos ou são mais voltadas para as necessidades das comunidades locais ou regionais. São desenvolvidas para atender instituições civis, eclesiásticas ou públicas ou para atender as comunidades. As iniciativas mais expressivas são as de cunho social que visam estabelecer intervenções para atender demandas de comunidades carentes via formação e treinamento (IUS Report, 2001, p. 34-35). É necessário analisar também as informações a respeito da produção científica, uma vez que ela está intimamente ligada tanto à pesquisa, primordialmente, como também à extensão, como divulgação. No “IUS Report” (2001) encontra-se dados sobre esse item. Em primeiro lugar assim manifesta-se sobre a definição da produção científica: “por produção científica entendemos periódicos científicos, livros, artigos e conferências publicadas ou proferidas por professores e, ainda, eventos culturais e científicos promovidos pelas instituições acadêmicas” (IUS Report, 2001, p. 35). Sete das IUS possuem periódicos científicos, perfazendo um total de 43 periódicos. 53% deles iniciaram sua circulação entre os anos de 1995 e 2000. Destaca-se que se trata do período de instalação da atual política de avaliação que exige produtividade dos pesquisadores e instituições, sendo, portanto, reflexo dessa política. A área de maior ocorrência é provavelmente a Educação, com 11 periódicos na área. Outros assuntos abordados são Direito, Filosofia, Lingüística e Literatura, Sociologia, Educação Física e Espiritualidade Salesiana. Quanto aos livros, artigos e eventos, o IUS Report traz informações sobre 28 das 43 IUS. Entre os anos 1997 e 1999 a produção de livros cresceu 50%, passando de 111 40 para 169 títulos. No mesmo período, apesar dos dados não serem confiáveis, a produção de artigos em periódicos especializados cresceu 13% e a realização de eventos culturais e científicos cresceu 42% (IUS Report, 2001, p. 35). Com base nesses dados, pode-se afirmar que a Rede IUS, mesmo não se compondo de universidades em sua maioria, realiza atividades de pesquisa e de extensão expressando sua tentativa de construção mais global do conhecimento ainda que de forma incipiente e também possui relativa produção científica. Pode-se então afirmar que mesmo sendo, por uma parte, resultado da política de privatização da educação superior, as IUS distanciam-se da visão mercantilista da educação procurando perseguir o desafio de construir o conhecimento de forma global, não visam lucro, mas sustentabilidade de suas instituições e procurando manter seus princípios confessionais católicos. Há que se considerar também que além de ser resultado de um esforço institucional em busca de qualidade, reconhecimento e prestígio acadêmico de produzir conhecimento, as atividades de pesquisa bem como a produção científica refletem, em seu crescimento acentuado, as Políticas de Avaliação que exigem cada mais vez produtividade de pesquisadores, cursos e programas sendo um dos critérios mais relevantes para ranqueamento, credenciamento e reconhecimento de instituições bem como de sua qualidade no contexto internacional. O “IUS Report” (2001) traz dados quantitativos sobre a pesquisa como sobre a produção científica. Aspectos qualitativos como endogenia, indexação de periódicos, classificação de eventos e avaliação dos mesmos pelas agências nacionais ou internacionais, não são abordados. Ainda em relação ao gráfico 02, observa-se que as universidades da Rede IUS estão em sua maioria absoluta localizadas na América, nove; uma na Europa e uma na Ásia. Não são universidades de países centrais e, portanto, não são protagonistas na elaboração das políticas mundiais para a educação superior e também não estão entre as universidades mundialmente mais reconhecidas por sua produção acadêmico-científica. Por isso pode-se afirmar que tanto pela localização, já que em sua maioria as IUS estão nos países periféricos, seja pelo perfil institucional, uma vez que a maior parte é composta por instituições isoladas, a Rede IUS é definida por um perfil secundário no contexto internacional e se insere nesse contexto com todas as conseqüências inerentes à sua caracterização e às políticas construídas para a educação superior. 41 Isso não descrendencia as IUS. Muitas delas têm papel preponderante nas regiões em que estão inseridas. Ao atribuir a essas instituições um papel secundário no contexto global pretende-se chamar a atenção para as conseqüências de sua localização em países periféricos e para pouca tradição das mesmas, visto que em sua maioria foram criadas ao longo das duas últimas décadas. Trata-se, por isso, da constituição de uma rede de instituições de educação superior presentes em sua maioria nos países periféricos, não sendo centros de produção do conhecimento altamente especializado; são instituições voltadas em grande parte para o ensino e a profissionalização e apenas uma pequena parcela produz pesquisa e extensão. 1.4 A expansão da IUS e as políticas para a educação superior O período em que se expandem as IUS coincide com o aprimoramento e a execução das políticas privatistas para educação superior, especialmente para a sua expansão nos países capitalistas periféricos. Essa expansão diversificou sistemas tanto do ponto de visa da tipificação das instituições como também no que se refere ao aumento da presença privada na educação superior. É o que acontece, por exemplo, no Brasil, como conseqüência da política mundial para a educação superior construída em organismos como UNESCO, BID, Banco Mundial e nos blocos econômicos como União Européia, Alca, Mercosul, sendo que nas definições dessas políticas assumem a preponderância o ponto de vista dos países capitalistas centrais defensores dos interesses do capital internacional. Nesse período, mais especificamente o compreendido entre os anos de 1996 e 2001, no Brasil ocorre a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pelo Congresso Nacional – Lei 9394/1996. Os anos que se sucederam foram marcados pela gestão do então Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), atuando decididamente para a diversificação da educação superior brasileira, com acentuada tendência de abertura para a iniciativa privada de cunho empresarial, passando, esta, a deter o maior número de alunos e de IES. Ao analisar os dados do Instituto Nacional Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), sobre número de matrículas e sua distribuição de acordo com a natureza jurídica das instituições e confrontá-los com os dados fornecidos pela Associação 42 Brasileira das Universidades Comunitárias (ABRUC), Bittar (2006, p. 283), considerando como “estritamente comunitárias” as filiadas à ABRUC, conclui que as instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas detêm apenas 14% do total de matrículas do setor privado que, por sua vez, em seu conjunto, possui 70% do número de matriculados na educação superior do Brasil, ficando o setor público com os 30% restantes. Ristoff (2006, p. 39) também caracteriza o sistema de educação superior brasileiro como “altamente privatizado”, indicando, a partir dos dados do Censo da Educação Superior de 2004, que 90% das instituições que compõem o sistema são privadas. Os números de 2005 confirmam a tendência: segundo dados do Censo da Educação Superior de 2005, o Brasil conta com 2165 instituições de educação superior, sendo 231 públicas e 1934 privadas. Estas se subdividem em 1520 privadas empresarias e 414 privadas comunitárias, confessionais e filantrópicas, das quais apenas 52 são filiadas à ABRUC (INEP, 2005; ABRUC, 2005). De ambas as análises conclui-se que a expansão do sistema de educação superior ocorreu pela via privada empresarial e que as IES privadas comunitárias, confessionais e filantrópicas propriamente ditas representam uma pequena parcela, a menor, do dito sistema. Isto significa que a forte expansão do setor na década de 1990 é resultado de uma política mercantilista para a educação superior, vista como um bem de consumo. Outra marca na análise de Ristoff (2006, p. 40) é que o setor privado acabou por seguir a via mais fácil à sua expectativa de lucro: as muitas instituições de educação superior criadas na década de noventa são instituições isoladas, descomprometidas com a pesquisa e, portanto, com uma visão incompleta de construção do conhecimento. Apenas 8,4% do sistema são constituídos por universidades. Configura-se, destarte, um “[...] sistema de Ensino Superior centralizado, privatizado, diversificado, elitista e excludente, aparentemente grande, mas extremamente pequeno para as dimensões do Brasil” (RISTOFF 2006, p. 40). Essa análise coincide com o perfil da Rede IUS uma vez que seja no Brasil seja no seu conjunto, a Rede IUS é constituída em sua maioria por instituições isoladas e não por universidades, como analisou-se anteriormente, mesmo que a Rede IUS assumirá o ideal da universidade em termos clássicos em seu marco de referência. É o que se pode constatar no diagnóstico: Mesmo as IUS que desenvolvem mais e melhor a pesquisa e a produção científicas reconhecem que há muito a se fazer para adquirir níveis aceitáveis de qualidade e para se destacar com identidade própria em 43 algum campo. A maior parte das IUS não se colocou seriamente a questão da pesquisa e da produção científicas, dedicando todas suas energias à docência e à transmissão de conhecimentos. Por isso registramos o grande déficit das IUS no que, na melhor tradição da universidade, representa sua primeira e mais genuína tarefa: a investigação científica. (Diagnóstico, 2001, p. 10). Não obstante essa inconsistência e imaturidade das IUS no campo da pesquisa, analisou-se também que muitas delas realizam atividades nesse campo e que assumem a concepção do tripé ensino, pesquisa e extensão para a realização da sua missão educacional. Entrementes, configura-se um cenário extremamente mercantilista para a educação superior, caracterizado pela alta concorrência entre as IES particulares, stricto sensu, a desvalorização das universidades públicas e a instauração de uma crise entre as IES confessionais, menos agressivas em suas iniciativas mercadológicas e comprometidas com valores educacionais – dentre os quais destacamos a valorização do bem comum, a construção da cidadania, o aperfeiçoamento da pessoa humana num projeto ético e integral de formação e a construção do conhecimento - que não se limitam simplesmente à busca de vantagens econômicas com a exploração do mercado educacional. O contexto delineiase, desta forma, muito adverso para a continuidade da proposta educacional de que as IES confessionais são portadoras. Ao mesmo tempo em que as IUS beneficiam-se desse movimento sentem também seu refluxo uma vez que se percebem inadequadas em suas estratégias empresariais já que sua presença na educação superior possui outros fins que não a formação de capital e lucro. O movimento privatista-empresarial na educação superior liga-se ao contexto de “mundialização do Capital”. Chesnais (1996, p. 12-15) indica essa fase como uma nova configuração do capitalismo, com padrões próprios de acumulação e amplo poder para definir todas as esferas da vida social, não só a econômica. Os fundos de capital, os títulos, a liquidez imediata, a fluidez das aplicações globais e o triunfo do capital financeiro sobre o produtivo são as notas principais dessa nova configuração dos padrões de acúmulo de capital, juntamente com a formação de blocos econômicos, de grandes conglomerados financeiros e empresariais. Observa-se, portanto, que a proposta de construção da Rede IUS ocorre no momento dessa nova configuração do capital, isto é, no contexto da “mundialização do capital”, de cunho financeiro, quando se assiste aos primeiros aportes de capital de grupos interessados em constituir conglomerados econômico-educacionais. 44 A nota marcante desta tendência hoje hegemônica é a redução do Estado, especialmente no que tange no sentido de garantir direitos sociais dos cidadãos, e o abandono da concepção de Estado do Bem Estar Social, a fim de se ampliar o campo de exploração econômica, criando-se novos mercados. O Estado passa a ser um órgão regulador das atividades do mercado, incorporando todas as funções de agente promotor do desenvolvimento e do bem-estar dos cidadãos, ou melhor, consumidores-clientes, regidos pela lei da oferta e da procura. Neste âmbito, antigos direitos, segundo Chauí (apud SGUISSARDI, 2004, p.1), passam a ser tratados como serviços a serem ofertados pelo mercado e consumidos pelos cidadãos-clientes. Entre eles a educação. Na avaliação de Sguissardi (2004, p. 2), uma série de aparatos jurídicos e contratuais é posta em funcionamento para garantir um novo relacionamento entre a sociedade, o Estado e a universidade, a fim de garantir a preponderância dos meios de produção e dos interesses mercadológicos na definição dos rumos e modelos de concepção da universidade. Novamente acontece uma reforma universitária empreendida não do interior da universidade, não a partir dos sujeitos que a compõem, mas imposta pelo capital. Destarte, aquilo que era direito, que era público, passa a ser serviço, passa a ser privado. Por isso Sguissardi (2004) caracteriza esta concepção de universidade como “neoprofissional, heterônoma e competitiva”: a universidade absorve as características do mercado e passa a servir a seus interesses e necessidades. Oliveira (2002, p. 27) analisa, por exemplo, como os interesses do mercado influenciam a escolha e a predominância de áreas e temas de pesquisa dentro da universidade, ocorrendo o detrimento de temas talvez irrelevantes para o capital, mas primordiais para a promoção e alargamento das bases sociais e culturais. Assim, os interesses do capital moldam o tipo de ciência que é construído em uma universidade que é, neste cenário, predominantemente um agente instituído pelo mercado e que, a partir da concepção da teoria do capital humano, visa não a constituição de cidadãos e de uma sociedade humanizada, mas simplesmente a produção de mão-de-obra qualificada, capaz de alimentar as estruturas produtivas do mercado. Esse processo, segundo Oliveira (2002, p. 32ss), determina as relações entre os cientistas, a produção do conhecimento, sua avaliação e a sua circulação e usufruto. Tudo na universidade passa a ser concebido em termos de mercadoria e não como bens culturais de acesso universal. 45 Salmeron (2002, p. 5) frisa muito bem que esta pressão pela mercantilização da educação superior é global e está sendo gestada e consolidada no âmbito dos organismos internacionais chamados de multilaterais, mas que na verdade assumem e defendem os interesses dos países centrais. Dentre estes, assume um papel fundamental o Banco Mundial. Uma das estratégias desse banco e de seus aliados é, segundo Ianni (1997, p. 3035), a satanização do sistema educacional público, que visa retirar-lhe a credibilidade e instaurar uma nova ordem que induz à privatização, profissionalização e à concepção da universidade em termos de administração, racionalidade financeira e administrativa e a serviço do tecnicismo, sem um horizonte humanístico maior. Nos acordos e rodadas de negociação da Organização Mundial do Comércio (OMC), a educação está sendo concebida como um serviço por pressões de grupos financeiros que desejam ampliar suas atividades educacionais para os países emergentes, pois sendo a educação uma mercadoria ou serviço, deixa de ser um direito dos cidadãos e uma responsabilidade do Estado para ser uma atividade a se explorar economicamente. Nesse sentido pode-se afirmar que a existência das IUS é conseqüência das políticas públicas gestadas internacionalmente e assumidas pelos Estados nacionais, especialmente os periféricos, que nas últimas décadas, devido ao processo de globalização, precisaram atender a demanda por educação superior por conta da necessidade de qualificação de mão de obra exigida por um novo paradigma de produção: o conhecimento como fator econômico decisivo. A expansão das IUS e o seu perfil composto preponderantemente como instituições isoladas voltadas mais para o ensino do que para a produção do conhecimento é conseqüência dessa política global de expansão da educação superior pela via privada com vistas a não onerar o Estado, criando-se, inclusive, instrumentos e formas para a exploração econômica dessa demanda. Porém, mesmo inseridas nesse processo, as IUS pretendem ser portadoras de uma proposta e de uma concepção singulares de educação superior capazes de diferenciá-las do movimento privatista e capitalista em curso. É essa pretensão que estará na base da decisão de constituir a Rede IUS como fator de manutenção e fortalecimento da identidade católica e salesiana num processo dialético com o contexto mais amplo das políticas educacionais globais bem como diante da nova realidade da mundialização econômico-social. 46 Na dialética desse processo, enfrentarão um desafio relevante para suas pretensões: localizadas em países do “terceiro mundo”, as IUS colocam-se o objetivo de atender a demanda por educação superior, focando-se na juventude das classes menos favorecidas. Porém esse objetivo traz muitos desafios e contradições uma vez que a busca de qualidade nos serviços educacionais gera custos muito altos e a falta de recursos dessas classes, impedem que de fato aconteça a meta proposta, a não ser de maneira marginal, isto é, a juventude das classes populares acabam sendo presença menor entre os alunos. Os dados socioeconômicos dos alunos demonstram isso, conforme gráfico 03. O próprio Diagnóstico reconhece esta situação de contradição: Cremos que alguns projetos institucionais das IUS são impossíveis ou ao menos difíceis de realizar por conta de suas utopias, isto é, projetos a favor das classes sociais desfavorecidas em países pobres e que se propõem ofertar serviços acadêmicos de qualidade que têm sempre altos custos. Isso leva ao fracasso a iniciativa ou à frustração da Congregação como instituição promotora se tais projetos são redirecionados, para sua sobrevivência, para as classes mais abastadas. (Diagnóstico, 2001, p.7). 47 Gráfico 03 Fonte: IUS Report, 2001, p. 310. 48 Pelos dados dos alunos no gráfico 03, o que acaba acontecendo é justamente o redirecionamento dos projetos para classes mais favorecidas economicamente. Por isso, se ao longo da sua história a Congregação logrou atender as classes populares, predominantemente de operários, em suas escolas profissionais e escolas de níveis primário e secundário, bem como através de suas atividades religiosas nas paróquias em que está presente, o mesmo não está acontecendo em suas instituições de educação superior, ao menos na mesma intensidade. Pode-se observar no gráfico que no conjunto das IUS o público de estudantes provém, em sua maioria, das “classes média e média baixa”1 que somam 86% do alunado. Se no conjunto ambas as classes possuem igual percentual de participação (43%), nas regiões continentais há pequenos deslocamentos que retratam o posicionamento das IUS: na América, o público predominante está com a classe média (52%) e média alta (5%) que, somadas, ocupam 57% do alunado, caracterizando um público elitizado. A classe média baixa detém 32% dos alunos e a classe baixa 11% . A presença maior das classes baixas ocorre na Ásia onde 62% dos alunos são da classe média baixa e 15% da classe baixa, perfazendo um total de 77% do alunado, frente a uma participação de apenas 23% de alunos da classe média. Já na Europa a predominância está com a classe média que ocupa 50% do alunado das IUS. Porém, essa presença da classe média é menor que a observada na América onde essa classe ocupa 52% do alunado. O perfil europeu só é mais elitizado devido à presença da classe alta que participa com 10% do alunado. Não obstante, as IUS da Europa conseguem atender 40% de alunos da classe média baixa enquanto as da América atendem 32%. Considerando-se os contextos diferenciados, pode-se notar certa distorção no perfil dos públicos atendidos nos dois continentes. Não obstante, conclui-se que as IUS mantêm a tendência das escolas católicas e particulares de tradicionalmente atender as camadas média e alta da sociedade. Com base nesses dados, pode-se compreender que no processo de constituição da rede IUS, uma das necessidades sentidas por essas instituições é a de redefinir sua identidade e seus objetivos para buscar uma adequação entre o que estão realizando e os ideais proclamados e também definir claramente qual o seu papel no conjunto das obras da Congregação, a fim de que as dicotomias sejam dirimidas. 1 Convém registrar que o “IUS Report” não traz uma explicação que esclareça os critérios de definição para as classes sociais. 49 Entretanto, é preciso notar também que as IUS procuram, de diversas formas, atender e favorecer alunos de menor poder aquisitivo. No período de 1997 a 1999, foram destinados pelas 43 instituições cerca de nove milhões de dólares americanos em incentivos aos alunos de baixa renda. Desse montante, 90,67% provêm de receitas próprias e o restante de fontes externas. As formas de distribuição variam entre bolsas, estágios remunerados e descontos em mensalidades. As IUS das Américas são as que mais oferecem bolsas e incentivos aos seus alunos, muitas delas motivadas por isenções fiscais ligadas à filantropia, como é o caso do Brasil (IUS Report, 2001, p. 70-72). Essas iniciativas demonstram que as IUS têm que lidar constantemente com os ganhos necessários para a sua sustentabilidade e também com a atenção aos seus alunos preferenciais, das classes populares. Demonstra também a pouca margem de manobra que possuem para atender a demanda das juventudes dessas classes. Explicita, ainda, a forma como atende a classe de poder aquisitivo mais baixo: especialmente por meio das bolsas de estudos. No gráfico 04 fica evidente o ponto fraco das IUS quanto ao problema do financiamento: as fontes principais de financiamentos advêm das taxas acadêmicas vindas dos alunos, isto é, mensalidades. E os montantes são expressivos, devendo os alunos possuir poder econômico suficiente para arcar com os custos. Na verdade as IUS são dependentes exclusivamente das mensalidades pagas pelos alunos. Os demais itens da receita são irrelevantes. Observando o gráfico e considerando-se os dados do IUS Report, para 14 das IUS as mensalidades correspondem a mais de 90% de suas receitas. Para sete outras o percentual é um pouco menor, mas não deixa denotar dependência: varia entre 88,52% e 67,25% (IUS Report, 2001, p. 67). 50 Gráfico 04 Fonte: IUS Report, 2001, p. 319. 51 Dez das IUS sobrevivem de fontes externas advindas de recursos públicos, doações de agências de auxílio financeiro e fundos da própria Congregação, no caso de se tratar de IUS voltadas para a formação dos novos quadros de religiosos da Congregação Salesiana. Das trinta e duas IUS que responderam ao IUS Report sobre a situação financeira, 15 declararam possuir alguma receita advinda de serviços prestados a terceiros sendo que a receita obtida varia entre 2% a 17,78% da receita total. E mais: das 14 IUS que se autofinanciam em mais de 90% com as mensalidades dos alunos, apenas seis declararam obter alguma receita com serviços prestados a terceiros. Um dado preocupante é a estagnação da participação desse último item na composição da receita, indicando que no período avaliado, não se tem buscado alternativas para a dependência exclusiva das mensalidades e também alijamento de professores e alunos do sistema de produção (IUS Report, 2001, p. 67). Essa dependência das mensalidades assume um ponto crítico na medida em que põe as IUS na impossibilidade real de atender classes menos favorecidas como proclamam em seus ideais e, por outro lado, a configuração de um cenário mercantilista para a educação superior que tende atualmente para o empresariamento, inclusive com a formação de sociedades anônimas exploradoras desses serviços globalmente, trazem sérios riscos para a sobrevivência dessas instituições que, apesar do crescimento indicado, começa a sentir, especialmente no Brasil, o esgotamento do ciclo expansionista e já acumula altos índices de ociosidade de vagas e decréscimo nas receitas. Os dados de receita que se referem ao período de 1997 a 1999, auge do movimento de expansão, são positivos e indicam variação de superávit entre 11,50% e 30% (IUS Report, 2001, p. 66). São margens positivas, mas pequenas e acrescente-se que no período analisado pelo IUS Report (2001) houve instituições com índices ainda menores, variando entre 1,31% e 5,86% o que revela prejuízos. Há casos isolados, duas instituições, em que o superávit atinge 50% (IUS Report, 2001, p. 65-66). É importante notar que nesse período três quartos da receita total de todas as IUS provieram das IUS das Américas cuja maioria absoluta está na América Latina, região onde as políticas de privatização têm sido mais agressivas e, ao mesmo tempo, região que possui maiores índices de exclusão da educação superior e também de precariedade econômico-social (IUS Report, 2001, p. 65). 52 Comparando as receitas com as despesas inerentes às atividades acadêmicas, mesmo num cenário ainda positivo, 11 IUS apresentam uma folha de pagamento que ultrapassa 70% da receita, o que é preocupante. O restante trabalha com uma folha de pagamento que consome em torno de 65% e 50% da receita. Outros itens importantes de despesa como pesquisa e extensão são menores, refletindo já certo comprometimento da receita com outros itens tais como manutenção, investimentos em equipamentos e construções. As despesas com pesquisa consomem, na média, não mais que 7% da receita. Há um caso isolado de gastos em torno de 20% da receita (Universidade Católica de Brasília). Investimentos em extensão são ainda menores: atingem uma média de 4% da receita. Há um caso isolado de gastos acima de 14% da receita – também Universidade Católica de Brasília (IUS Report, 2001, p. 69-70). Esses números indicam que, se em um cenário favorável, as receitas são comprometidas principalmente com folha de pagamento, restando pouco para atividades de pesquisa e extensão, a tendência é de se desenhar um quadro crítico nos momentos desfavoráveis. Uma vez que a Rede IUS pretende assumir perfil de educação superior entendida em termos clássicos da universidade que produz pesquisa e extensão, esse equilíbrio financeiro tende, de fato, a ser quebrado. Pode-se afirmar, portanto, que a Rede IUS não possui lastro financeiro suficiente para empreender a implantação de um modelo de educação superior que projete suas instituições no campo da pesquisa, a menos que se encontrem outras fontes de financiamento para esse projeto. No caso do Brasil, que experimentou forte expansão na educação superior privada durante a década de 1990, os momentos desfavoráveis já se fazem sentir. Se a década de 1990 foi de expansão, agora se tem um refluxo desse movimento que perdeu fôlego devido à incapacidade de pagamento de mensalidades por parte das classes menos favorecidas. Essa situação se expressa nos números do sistema de Educação Superior brasileiro: conforme dados do INEP, o setor privado é responsável por noventa por cento de todas as IES do país. Na análise de Ristoff (2006, p. 39), o sistema “é altamente privado, situandose, na verdade, entre os mais privados do mundo”, como demonstra a tabela que compara a participação do setor privado em alguns países, indicando o Brasil com maior participação: 53 Tabela 02 Fonte: Braga, 2005, p. 62. Ristoff (2006, p. 45) indica, ainda, que esta estruturação do sistema dá sinais de esgotamento e inviabilidade. As vagas oferecidas pelo setor privado estão com alto índice de ociosidade, em torno de quarenta por cento, e as novas levas de alunos do ensino médio vêm de famílias com baixa renda. Portanto, a democratização de acesso e a expansão do sistema deixados a cargo do mercado revelaram-se falaciosos e ineficazes, já que, segundo dados do próprio INEP, apenas 10,4% dos jovens entre dezoito e vinte e quatro anos estão freqüentando a educação superior, o que denota o caráter elitista do sistema e sua incapacidade de absorver as camadas mais carentes da população. Às distorções de concepção e modelos institucionais adotados, somam-se as de caráter excludente, privando o país de “um forte sistema de educação superior” (BRASIL, PNE, p. 92). Como afirmava Martins (1987, p. 45), “a expansão pela privatização nada tem a ver com uma real democratização”. A complexidade e diversidade do sistema fortemente privatizado, que experimenta o seu esgotamento, instauraram uma exarcebada competição entre as instituições, especialmente entre as de fins lucrativos, empresas educacionais propriamente ditas. Segundo Bittar (2002, p. 51-64), assiste-se a uma “verdadeira guerra” entre as instituições na busca por alunos: “a educação superior transformou-se num grande supermercado, em cujas prateleiras produtos e serviços disputam a atenção e o desejo dos consumidores”. Os materiais de campanha publicitária e os dados apresentados pela autora indicam a apresentação da educação superior com características de produto a ser adquirido pelos alunos, considerados clientes, vistos como fonte de lucro pelos proprietários do ensino; indicam, ainda, o forte crescimento do setor empresarial que molda os cursos de forma a atender suas expectativas financeiras. 54 Nesse ambiente, as instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais procuram apresentar-se como um modelo alternativo de ensino: “o segmento das instituições comunitárias busca também estratégias que visam demonstrar para a sociedade que suas instituições são uma alternativa de ensino, pois oferecem ao aluno uma formação humanista, fundada em princípios éticos da cidadania e da consolidação da democracia” (BITTAR, 2002, p. 53). Apesar dessa postura, as IUS brasileiras não deixam de sentir as conseqüências desse cenário. Não obstante o Brasil apresentar os maiores índices de privatização e uma das menores taxas de escolarização líquida na educação superior entre os países da América Latina, a problemática da qualidade, do financiamento e da inclusão não é exclusividade de seu sistema de educação superior: abrange também os demais países da região, ainda que de formas diferenciadas. O gráfico seguinte mostra a evolução das matrículas no conjunto da América Latina e Caribe e deixa patente que a expansão mais acentuada ocorreu via setor privado. Gráfico 05 55 Em recente entrevista, Alberto Dibbern, membro do Conselho de Administração da UNESCO – IESALC e Secretário de Políticas Universitárias da Argentina afirmou: Não há dúvida de que o principal desafio da educação superior em nossa região é a inclusão. Nesses anos muitos países iniciaram políticas que possibilitam melhores índices, entretanto, salvo raras exceções, os resultados não são ainda os que desejamos. A universalização na Venezuela, a regionalização no Brasil, o programa de bolsas na Argentina, as políticas de articulação na Colômbia são alguns exemplos dessas políticas. Porém persiste o desafio de uma real melhoria dos índices não só em termos de inclusão, mas também de qualidade e de percentual de concluintes em relação aos ingressantes... Como medida para os próximos dez anos, creio ser fundamental garantir a qualidade do sistema, com relevância e compromisso social, sistemas de bolsa e maior abrangência territorial. (Boletim IESALC n. 183, 2009). Essa afirmação de Dibbern está fundamentada na primeira diretriz do Plano de Ação da Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES 2008) que estabelece: “Promover a expansão da cobertura na Educação Superior, tanto em estudos de graduação como de pós-graduação, com qualidade, relevância e inclusão social” (Plano de Ação CRES 2008, p. 2). Para a implementação dessa meta, o Plano de Ação CRES 2008 recomenda aos governos: Incrementar a cobertura com padrões de qualidade adequados, até alcançar a meta de 40% até o ano 2015, levando em consideração que a cobertura bruta média para a região é atualmente de 32% e a média dos países desenvolvidos é de 55%. Para atingir o objetivo, é necessário que cada país defina metas nacionais de aumento da cobertura para o período, em nível de graduação e pós-graduação, assim como estratégias para promover a desconcentração geográfica da oferta, promovendo um esforço convergente entre os governos da região. (CRES, 2008, p. 2). Dessa maneira pode-se afirmar que a inclusão é uma prioridade para a região a ponto de tornar-se uma das cinco diretrizes do Plano de Ação da Conferência Regional. Quanto à problemática do financiamento, que engloba os debates sobre o sistema público e o privado, o Plano de Ação CRES 2008 reconhece a necessidade de investimentos do setor público com vistas a recuperar o sistema público de educação superior dos países da região, de maneira que tenham a capacidade de oferecer maior número de vagas: Aumentar os orçamentos estatais para a Educação Superior, promovendo uma política de recuperação do setor público, especialmente em países onde existe um desequilíbrio relativo à oferta no setor privado, 56 implementando instrumentos adequados para a prestação de contas. (CRES, 2008, p. 3). Por isso infere-se que a questão do sucateamento das IES públicas e a privatização da educação superior estão na pauta dos países da região que têm se defrontado com a realidade de que as IES privadas não têm condições de promover a inclusão, pois ao se buscar a democratização do acesso, deseja-se atingir as classes menos favorecidas, justamente as que não possuem condições de autofinanciamento. Para que isso ocorra é necessário, na visão da Conferência Regional, ampliar o aparato das políticas públicas de inclusão: Ampliar as políticas de inclusão para o ingresso na graduação e pósgraduação e prover novos mecanismos de apoio público aos estudantes (bolsas de estudo, créditos educativos, residências estudantis, serviços de saúde e alimentação, assim como o acompanhamento acadêmico e a orientação vocacional e profissional), destinados a gerar equidade, diminuir a deserção, melhorar o desempenho dos estudantes, suprir deficiências de formação e promover a inclusão digital (CRES, 2008, p. 3). Partindo-se da primeira diretriz e das recomendações do Plano de Ação CRES 2008, pode-se concluir que a educação superior exige tanto para a sua qualidade como também para a sua relevância e compromisso sociais, uma sólida capacidade de financiamento e o apoio de políticas de investimento que suplantam o alcance do autofinanciamento estudantil por meio de mensalidades. Tendo como referência esse contexto, ao observar-se a expansão das IUS, uma pergunta do IUS Report é importante: “Diante de um fenômeno tão particular nós nos perguntamos: qual a razão para esse deslocamento das atividades educacionais da Congregação do nível básico e médio para o nível superior?” (IUS Report, 2001, p. 16-17). Na verdade as motivações aduzidas para a criação dessas instituições nos mais variados contextos sociais e geográficos em que se encontram são também multifacetadas. O Dossiê situacional das IUS faz uma classificação dessas razões principais, agrupando-as por temas que se repetem nessas motivações (IUS Report, 2001, p. 18-19). Dessa forma, apresenta um “mapa de motivações para a criação das IUS”. Elencamos as principais: a) “responder às necessidades educacionais ou do mercado de trabalho das regiões em que estão estabelecidas: 16 instituições de 38 (42,11%); b) providenciar a formação acadêmica 57 dos salesianos: 15 de 38 instituições (39,47%); c) continuar o trabalho educacional realizado nas escolas secundárias: 12 de 38 IUS (31,57%); d) formar professores, tanto salesianos como colaboradores externos à Congregação: sete de 38 IUS (18,42%); e) oferecer educação superior à juventude das classes populares: sete de 38 IUS (18,42%); f) adaptar-se à evolução do mercado educacional, mais favorável no nível universitário do que aos secundário e primário: três de 38 IUS (7,89%) (IUS Report, 2001, p. 18-19). Na avaliação do Diagnóstico, existem razões principais, declaradas abertamente e outras secundárias, não declaradas abertamente, veladas, mas que trazem uma importância para o entendimento da criação dessas instituições dentro da Congregação. No grupo das razões principais as motivações estão em consonância com as finalidades e ideais declarados da Congregação. São razões sociais, educativas e pastorais (de evangelização). Porém, entre as razões secundárias, prevalecem as econômicas. No Diagnóstico estas razões secundárias são quatro: as IUS são o resultado natural do desenvolvimento dos colégios; as transformações no mercado educacional que trouxeram a diminuição de alunos da faixa etária inicial e a conseqüente necessidade de buscar um novo público em outra faixa, no caso os universitários; aproveitamento de estruturas ociosas dos colégios; busca de solvência e segurança econômicas (Diagnóstico, 2001, p. 5-6). Observa-se essa discrepância entre os objetivos proclamados, em coerência com os valores defendidos pela Congregação, e a pressão do fator econômico e administrativo a forçar a busca de sobrevivência institucional. Portanto, já na criação individual, mesmo antes de se pensar em uma rede, as IUS têm que resolver a sua necessidade de recursos financeiros e se vêem diante do desafio de conciliar essa necessidade com os ideais educacionais da Congregação. Nesse sentido cabe uma análise dessas motivações para a criação dessas instituições como também verificar qual a missão que cada uma delas se propõe no contexto da educação superior. No próprio IUS Report encontra-se um quadro sistematizado da missão de cada uma das IUS conforme está proclamado em seus estatutos. O diagnóstico traça algumas considerações avaliativas em relação à missão proclamada nos estatutos. Em primeiro lugar constata que as IUS possuem uma concepção ampla de educação, concebida em termos de formação humana e cristã. Essa concepção possui alguns referenciais importantes: a pessoa como um todo; a atenção às comunidades 58 regionais onde estão localizadas as diversas IUS e a Igreja Católica. Há também a repetição de alguns princípios, entre eles o Sistema Preventivo de Dom Bosco, ou sistema salesiano de educação, a formação humana e cristã, a síntese entre fé e cultura, o estudo dos da realidade e dos fenômenos humanos para transformá-los à luz do evangelho (Diagnóstico, 2001, p. 6). O Diagnóstico traz ainda uma afirmação importante sobre esse panorama: “[...] observamos que esta formulação da missão salesiana é praticamente idêntica à das escolas e não traz novidades e diferenças que se esperaria de um campo tão distinto. Por outro lado, essa formulação não atinge a prática cotidiana da universidade” (Diagnóstico, 2001, p. 6-7). Em outras palavras, o diagnóstico está apontando tanto uma inadequação dessas formulações para a realidade das universidades como também uma contradição entre o que se estabelece nessas formulações e a práxis universitária salesiana no interior de cada uma das IUS. Essa inadequação acabará por desencadear a busca de uma melhor formulação para a missão da IUS, o que se tentará alcançar com a construção do documento Identidade, que será abordado mais adiante. Pode-se concluir dessa parte que o desconhecimento pelo governo central da Congregação, constituído pelo Reitor Mor e pelo Conselho Geral que o assessora, de toda a realidade e complexidade das IUS como também problemas de inadequação com a missão da Congregação; de formulação desapropriada da própria imagem como instituição de educação superior; o crescimento acelerado e a novidade dessas instituições no conjunto das obras da Congregação, desencadearam, no governo central um processo de reflexão e uma vontade de atuar de maneira diferente em relação a essas instituições. Transpareceu, pelas análises, que a Congregação pretende construir um projeto de atuação conjunta e o primeiro passo dado para esse fim foi o de conhecer a realidade das IUS o que foi alcançado pela construção do IUS Report. Pelas análises desse documento referencial, percebeu-se que se trata de instituições variadas em seu formato jurídico, presentes em três continentes. A expansão das IUS demonstra que elas estão ligadas ao processo de ampliação da iniciativa privada na educação superior, sendo que seus índices de maior crescimento ocorrem justamente nos anos de 1990 a 2000, período em que se implantam as reformas educacionais mundialmente, orientadas por políticas de privatização e redução da presença do estado na educação superior e a conseqüente formação do mercado educacional mundializado. 59 Encontrou-se, ainda, indícios de que esse movimento de privatização influenciou a tomada de decisão da Congregação em constituir com as IUS uma rede internacional com vistas a fortalecer sua atuação, manter a identidade de sua concepção de educação superior e proteger-se da visão mercadológica da educação. Simultaneamente explicitou-se que a expansão das IUS beneficiou-se das políticas educacionais uma vez que sem abertura por elas proporcionadas não encontrariam espaço para sua existência. Essas políticas também influenciaram o perfil institucional das IUS uma vez que a expansão favoreceu a diversificação das instituições de educação superior. Pelos dados notou-se que entre as IUS encontramos universidades, faculdades isoladas, centros universitários e faculdades ligadas a universidades. Frisou-se que essa última categoria não é contemplada no Brasil enquanto que as faculdades isoladas são exclusividade brasileira. Notou-se ainda que das 43 instituições, apenas 11 são universidades, sendo que os dados do IUS Report consideram um centro universitário como universidade. Esse perfil do conjunto da rede acompanha a diversificação das instituições como uma característica da educação superior em tempos de mundialização do capital: Uma outra tendência observável em distintas regiões do globo é a diversificação institucional. A diversidade institucional tem um valor muito elevado, que os Estados tratam de manter e respeitar. A lei da sobrevivência a que as instituições estão submetidas gera um regime exarcebado de competitividade entre elas e os diversos sistemas de educação superior. Tanto pela ampliação das demandas por mais vagas quanto por estratégia de sobrevivência, emergem mais e novos tipos de organização. A expansão diversificada se dá por criação de novas instituições de modelo diferenciado e por transformação das antigas. Essas novas instituições devem agora adaptar-se a diversificadas demandas externas, muitas delas também de tipo novo. (SOBRINHO, 2003, p. 169-170) Essa diversificação provocou o crescimento de instituições não universitárias que passaram a deter um número expressivo de matrículas. É o que se observa, por exemplo, na América Latina e Caribe, como demonstra o gráfico 06, reforçando a afirmação de que o perfil diversificado que a Rede IUS segue está determinado por esse contexto maior. 60 Gráfico 06 Índice de crescimento das matrículas em universidades e instituições de educação superior não universitária na América Latina (1994-2003). Fonte: UNESCO/IESALC, 2007, p. 189. Apesar de seu perfil diversificado, percebeu-se que as IUS perseguem um ideal de educação superior em termos clássicos, isto é, fundado no tripé ensino, pesquisa e extensão. Essa concepção as afasta de uma visão fragmentada do conhecimento, porém gera-lhes desafios de cunho econômico-financeiro: manter as atividades inerentes à universidade apenas com mensalidades de alunos e, ao mesmo tempo, buscar a popularização da educação superior em países periféricos onde a maioria da população jovem ainda não tem acesso a esse nível de educação justamente por falta de condições econômicas e sociais adequadas, sendo os sistemas ainda elitizados apesar da forte demanda por educação superior. Conclui-se, enfim, que as IUS estão plenamente inseridas no processo global de mundialização econômica e das políticas para a educação superior e estabelecem com esse cenário cultural e econômico mais amplo uma relação dialética ora aproximando-se e compactuando com suas tendências, ora sofrendo suas conseqüências e ora procurando distanciar-se para auto-afirmar seus ideais e concepções. CAPÍTULO II A CONCEPÇÃO DE IDENTIDADE CONFESSIONAL SALESIANA DEFINIDA PELA REDE IUS Neste capítulo analisa-se a concepção da identidade católica salesiana construída pelas IUS no interior de três documentos: o Documento de Brasília (1995), a Carta Circular do Reitor Mor Pe. Juan Edmundo Vechi intitulada “Por Vós Estudo” (1997) e o Documento Identidade das IUS (2003). Pretende-se demonstrar a evolução dessa concepção percorrendo cada um desses documentos e explicitando como cada um deles aborda os rumos da identidade confessional e suas relações com a Educação Superior. 2.1 A confessionalidade: o caráter católico e salesiano na educação superior no Documento de Brasília 1995 O I Encontro dos Responsáveis das Universidades e dos Institutos Universitários Administrados pela Congregação Salesiana ocorreu em Brasília em 1995, de 12 a 14 de agosto. Dele emanou um documento que consta de uma apresentação e introdução geral escritas pelo Padre Luc Van Looy, à época Conselheiro Geral para a Pastoral Juvenil. Possui dois capítulos: o primeiro capítulo traz o texto de uma conferência dirigida por Julio Terán Dutari, padre jesuíta, cujo tema é “o específico cristão e católico das universidades católicas”. Sua conferência tem como base o documento “Ex Corde Ecclesiae” (1990), encíclica papal sobre as universidades católicas. Logo após, o capítulo traz reflexões dos participantes que, reunidos em dois grupos de trabalho apresentam contribuições relativas ao tema proposto na conferência. O primeiro grupo apresenta contribuições enucleadas pela pergunta “que tipo de 62 universidade?” e o segundo grupo trabalha sobre a pergunta “A inspiração cristã: como tornála operativa?”. Discute-se muito nesse capítulo a questão da identidade católica e salesiana como também o modelo de universidade a ser seguido. Porém, as reflexões não são de caráter conclusivo. Seguem um estilo mais centrado na explicitação das intuições de cada participante a respeito do tema da identidade católica e do perfil de educação superior desejado, como um grande debate. Outras questões importantes são debatidas nesse capítulo: o acesso à universidade, o condicionamento econômico para o acesso, os custos financeiros para se manter a excelência acadêmica, a busca de fontes alternativas de financiamentos e a profissionalização da gestão universitária. Esses temas são levantados, debatidos, mas não se aponta sistematicamente compromissos a serem seguidos nem se constitui um manifesto sobre a identidade católica salesiana. São levantados elementos importantes para a sua constituição, todavia não são estabelecidos de forma orgânica. Após as contribuições dos grupos seguem-se três páginas de comentários do conferencista, Pe. Julio Terán Dutari, que ampliam o alcance das reflexões dos grupos. Esses comentários são enucleados em dois tópicos e estruturam as contribuições dos grupos. O primeiro – “A universidade Católica como Universidade” – discute a tipificação da universidade salesiana que se pretende construir. Deste tópico destaca-se que o conferencista chama a atenção para dois aspectos: a identidade e a sensibilidade aos setores de “escassos recursos”. Sobre aquele primeiro aspecto assim comenta: Que tipo de universidade buscamos? Antes de mais nada sublinho a oportunidade da pergunta proposta e aceita pelo grupo com muito sentido de responsabilidade: a situação geral de instituições que estão começando uma existência universitária ou preparando-se para ela, facilita e exige que a Congregação Salesiana se pergunte sobre a identidade que deve configurar nessas instituições. (IUS, 1995, p. 19). Esse comentário sintetiza a preocupação do grupo de salesianos reunidos em Brasília com o a definição do perfil institucional da educação superior promovida pela Congregação. Essa preocupação tornar-se-á central ao longo de todo o documento. Por outro lado o comentário revela outro aspecto das instituições salesianas de educação superior: trata-se de instituições que estão iniciando sua trajetória ou mesmo ainda nem iniciaram suas atividades, estando presentes nesse encontro salesianos que estavam, à época, planejando a abertura de IES. É um momento favorável para se estabelecer ações e concepções que estejam em 63 consonância com os valores da confessionalidade católica salesiana e, ao mesmo tempo, que permitam transparecer efetivamente os ideais da Congregação com essa atividade educacional. Nesse aspecto o Encontro de Brasília realizou-se num momento estratégico para as IUS: como analisou-se no capítulo anterior é o período de maior expansão das mesmas e, portanto, revela-se adequada a iniciativa da Congregação em debater sobre o significado das IUS em sua missão educacional e religiosa. Esse aspecto da novidade explica a presença nesse encontro do Padre Jesuíta e conferencista principal Julio Terán Dutari: pretende ser um contato da Congregação Salesiana com a tradição jesuítica na educação superior uma vez que essa Ordem Religiosa possui ampla e antiga tradição na educação superior estando, inclusive, nas origens das primeiras universidades européias. Não obstante a importância dessa tentativa de aurir da experiência jesuítica e da relevância desse encontro para as IUS, o documento dele emanado tem um caráter incipiente ainda, apesar de que suas intuições serão aprofundadas e amadurecidas ao longo do processo de implantação da Rede IUS. A conferência do Padre Dutari catalisa e direciona os debates: em torno dela gravita as reflexões dos participantes. O segundo aspecto para o qual o Padre Dutari chama a atenção no seu primeiro tópico de comentários sobre o perfil institucional da educação superior salesiana é a questão do acesso da juventude da classe pobre. Assim escreve: Entre as características assinaladas como importantes para o tipo de universidade que se deseja privilegiar está a sensibilidade aos setores sociais de escassos recursos: ser universidades ‘populares’, não elitistas no sentido econômico e social. Sou da opinião que isto é muito justo e muito delicado, porém contém uma problemática bastante complexa, segundo a experiência de outras universidades que assumiram a mesma opção. Há o fato de que o acesso à universidade, ainda que esteja condicionado exclusivamente, do ponto de vista formal, ao sucesso no exame vestibular, está condicionado economicamente, pois os estudantes que logram sucesso nesses exames são os que cursaram as escolas secundárias de maior prestígio acadêmico e que costumam ser pagas (e com freqüência são religiosos). Fora isso, para que um estudante universitário possa permanecer na universidade supõe-se um custo econômico alto, se a instituição quer manter um nível de excelência acadêmica de acordo com as exigências de uma verdadeira universidade. (IUS, 1995, p. 19-20). Nesse longo comentário o Padre Dutari faz eco à preocupação dos salesianos presentes nesse encontro e exprime também a contradição em que se encontram: por um lado têm consciência de que é inerente à identidade católica salesiana e, portanto, à educação 64 salesiana, a abertura à juventude operária e dos setores mais empobrecidos. Querem, segundo as palavras do Padre Dutari, projetar uma educação superior que alcance essa juventude. Todavia defrontam-se com a problemática da desigualdade das condições de acesso que, do ponto de vista acadêmico, privilegia os de melhor condição, que tiveram melhor preparação no ensino secundário; do ponto de vista sócio-econômico privilegia esses que tiveram condições de bancar a escola secundária particular, de melhor qualidade, e que possuem poder econômico capaz de sustentar os altos custos de permanência no curso superior. Ainda que a grande oferta de vagas na educação superior permita, do ponto de vista formal, amplo acesso inclusive aos que não logram grande desempenho no exame vestibular, a segunda barreira, a econômica, permanece especialmente no caso das instituições salesianas de educação superior, que exigem, para sua sustentabilidade financeira, o pagamento de mensalidades. A busca de um alto padrão acadêmico pela Rede IUS no futuro, como se verá logo mais, perseguindo a excelência acadêmica constituindo sólidas instituições capazes de integrar ensino, pesquisa e extensão, só agravará esse quadro uma vez que aumenta os custos das mensalidades para os alunos. Trata-se, destarte, de uma contradição que se tende a aprofundar, ainda mais num contexto em que a saturação de ofertas no setor privado da educação superior desencadeia concorrência acirrada por alunos de maior poder aquisitivo, capazes de manter os custos exigidos por uma educação superior de alto padrão. Quais as sugestões ou saídas apontadas no documento para a superação dessa contradição? Continuando a citar as palavras do Padre Dutari, tem-se o que segue: É possível e necessário fazer todos os esforços para buscar fontes alternativas de financiamento para não fazer recair os altos custos sobre os estudantes e tão pouco sobre professores mal remunerados. Além disso, seja qual for o custo das despesas estabelecidas para os alunos, será necessário criar possibilidades especiais para estudantes carentes que tenham indispensável aptidão acadêmica: introduzir pensão diferenciada; oferecer bolsas totais e parciais; administrar o crédito educativo. (IUS, 1995, p. 20). Fontes alternativas de financiamento e condições especiais para estudantes carentes são, portanto as duas alternativas propostas pelo documento de Brasília para que as IUS possam efetivamente favorecer o acesso democrático às suas instituições e cumprir o seu papel social proposto na sua identidade e na sua tradição educativa. Já que se trata de um aspecto relevante da identidade salesiana que tem uma repercussão especial no atual contexto cultural em que se discute o acesso à educação superior com vistas à sua democratização nos 65 países em desenvolvimento e sendo que, contrariamente a essa tendência, assiste-se ao estabelecimento de grupos econômicos que exploram a educação como um serviço, um bem comercializável passível de ser objeto da atividade econômica com a conseqüente aferição de lucros, a capacidade da Rede IUS em responder a essa contradição tem uma notável repercussão para o desfecho deste tensionamento: ou colaborará para a afirmação da educação como um direito humano fundamental ou simplesmente confirmará que se trata de um bem comercial oferecido a quem pode participar do sistema de produção e tem a precípua finalidade de capacitar o consumidor para colocar-se no mercado, sendo capaz de se inserir na estrutura de produção como mão de obra especializada, que detém o direito de remuneração. Recente documento da UNESCO baliza bem essa problemática e a disputa a ela subjacente: Uma das questões que está provocando um debate ativo e às vezes polarizado é a liberalização e a promoção de intercâmbio comercial de serviços de educação por meio de acordos comerciais. A idéia de mobilidade acadêmica e translado de estudantes e especialistas entre países não é nova. A transferência de estudantes, programas educativos e provedores de educação através das fronteiras com fins comerciais e lucrativos está expandindo-se e esta questão adquiriu um novo impulso e importância com o estabelecimento do Acordo Geral Sobre o Comércio de Seviços AGCS). Este novo acordo comercial internacional é administrado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e é o primeiro acordo multilateral que abarca o comércio de serviços. Convênios anteriores, como o Acordo Geral sobre Aranceles Aduaneiros e Comércio (GATT) tratavam do comércio de produtos. No marco regulatório do AGCS, a educação é um dos doze serviços principais e a educação superior é uma dos cinco setores da educação. O acordo prescreve normas e condições específicas para liberalizar e regularizar o comércio e são essas regulamentações que se constituem o centro do debate acerca do AGCS. A inclusão do comércio de serviços de educação superior no marco do AGCS é uma realidade e não se modificará. Cada país pode determinar em que medida permitirá que os provedores estrangeiros de serviços de educação tenham acesso ao mercado interno. As inquietudes crescentes da comunidade docente de todo o mundo têm sua origem no fato de que a OMC, por ser uma organização cujo objetivo é promover o comércio com finalidade de se obter eficiência econômica, não possui competência na esfera educacional e, por isso, pode influir negativamente no desenvolvimento sustentável da educação. (UNESCO/IESALC, 2004). Por isso cabe a pergunta: a Rede IUS atinge a meta de buscar outras fontes de financiamento que não sejam as mensalidades dos alunos? Essas fontes alternativas de recursos, se existentes, possibilitam a diminuição efetiva dos custos para o aluno pobre e colabora para a popularização ou democratização da educação superior nas instituições que compõem a Rede IUS e, ao mesmo tempo, tornam-se relevantes para a sustentabilidade de 66 uma educação superior de alto padrão acadêmico? Antes mesmo dessas perguntas, cabe investigar se o documento de Brasília aponta mecanismos para se implantar essa cultura de busca de novas fontes de financiamento. No comentário do Padre Dutari pode-se verificar que essa questão deve ser resolvida por meio de uma gestão profissionalizada, tecnificada: “para solucionar este e outros problemas fundamentais para o tipo de universidade que se pretende manter, é importante preparar o pessoal diretivo e administrativo, também o da própria Congregação, para uma gestão universitária cada vez mais tecnificada” (IUS, 1995, p. 20). Desta forma pode-se concluir que o documento de Brasília, ainda que de forma incipiente, estabelece um nexo entre identidade católica salesiana, democratização de acesso e gestão profissional numa interdependência entre esses elementos sendo que o caráter decisivo recai sobre a gestão universitária profissionalizada uma vez que, na visão do documento, irá garantir a efetiva aquisição de fontes alternativas de recursos a fim de se favorecer a democratização com a diminuição dos custos para os alunos e a possibilidade de sustentação financeira adequada das IUS e, assim, garantir a efetividade de um aspecto fundamental da identidade salesiana: a popularização, no sentido social e econômico, isto é, a democratização da educação superior. O tema das fontes alternativas de recursos refere-se à prestação de serviços remunerados, seja em termos de extensão seja de pesquisas, desenvolvidas para instituições, pessoas ou empresas. Já a profissionalização da gestão requer a introdução de mecanismos administrativos que proporcionem maior eficácia na aplicação dos recursos obtidos das mensalidades dos alunos. A ineficiência na gestão provoca aumento de custos desnecessários, como afirma Riveros: Observa-se uma tendência em aplicar políticas públicas com o objetivo de se melhorar a eficiência interna das instituições de educação superior… Alguns sinais de ineficiencia interna são as altas taxas de desistência em algunas carreiras e universidades, demoras adicionais ao tempo projetado de titulação, baixas taxas de graduação, duplicação de conteúdos entre programas de graduação e pós-graduação. É necesario determinar os custos de formaçào de estudantes, por uma parte, como um produto distinto da pesquisa e da extensão…Em todo caso, o aumento de custos derivado da ineficiencia das IES presiona por um maior gasto público por aluno ou de aumento das mensalidades no caso das IES privadas. O desafio consiste em como aumentar a efetividade das políticas para melhorar a efetividade da gestão interna das instituições por meio de instrumentos que não afetem a autonomia das instituições (RIVEROS, 2008, p. 15). 67 Porém, essa lógica patrocinada pelo Banco Mundial, é alheia à cultura organizacional das universidades e traz para o interior das mesmas, procedimentos empresariais desconhecidos o que muitas vezes gera conflitos e fragmentação e subserviência das universidades aos interesses de mercado: A redução de investimentos públicos na educação superior é uma das diretrizes do Banco Mundial explicitadas no documento A educação superior: lições da experiência, de novembro de 1993. Nesse conhecido documento, o Banco Mundial faz um duro diagnóstico da educação superior dos países do terceiro mundo, condenando o excesso de gastos ao qual estaria correspondendo uma baixa produtividade e decretando as medidas que deveriam ser tomadas: estimular a diversificação, das instituições, e a competitividade entre elas; estimular a expansão das instituições privadas; incentivar as instituições públicas a buscarem financiamentos alternativos, inclusive cobrança de taxas estudantis; vincular o financiamento público ao aumento da produtividade. O investimento atrelado aos critérios de produtividade e retorno econômico é uma das expressões práticas do Estado gestor e avaliador, que assume uma função centrada rigidamente na gerência e no controle. (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 104). O segundo bloco de comentários do Padre Dutari aglutina-se ao redor do título “A universidade católica como católica: como realizar os três requisitos cristãos específicos?”. Esses requisitos são: a inspiração cristã que deve permear todas as instituições católicas de educação; a reflexão da fé em consonância com os ensinamentos e o pensamento católico especialmente por meio da ética e da teologia cristãs; e o serviço institucional ao povo de Deus na perspectiva religiosa católica por meio dos diversos serviços de extensão (IUS, 1995, p.14) Este bloco versa sobre as reflexões em torno da especificidade do caráter confessional católico no interior das universidades católicas. Tem como referência a própria Encíclica Papal Ex Corde Ecclesiae, o documento conciliar Lúmen Gentium e o Código de Direito Canônico 2. Nesses documentos estão contidos os referenciais exigidos de toda instituição católica de educação superior, especialmente as universidades. Deste bloco é 2 A Constituição Apostólica EX Corde Ecclesiae de Sua Santidade o Papa João Paulo II, de 1990, assim define as Universidades Católicas: “Nascidas do coração da Igreja”, as universidades católicas se inserem no curso da tradição que remonta às origens da universidade como instituição e, por sua vocação, consagram-se à pesquisa, ao ensino e à formação dos estudantes, livremente reunidos com seus mestres animados pelo amor ao conhecimento. Compartilham com as demais universidades a missão buscar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la em todos os campos do conhecimento... Têm a tarefa privilegiada de unificar existencialmente, no trabalho intelectual, duas realidades distintas que tendem a se opor como se fossem antitéticas: a busca da verdade e a certeza de se conhecer a fonte da verdade. A Constituição Dogmática “Lúmen Gentium”, emanada do Concílio Vaticano II, celebrado entre os anos de 1960-1965, define a Igreja diante do mundo, seus princípios, sua missão, atividades e instituições. O Código de Direito Canônico regula e legisla a Igreja Católica no todo. 68 interessante notar de que forma essa preocupação com a confessionalidade se manifesta e reflete nos participantes. Do resumo do Padre Dutari pode-se concluir que a sensibilidade dos dirigentes das IUS aponta para alguns aspectos: em primeiro lugar a existência de um grupo comprometido com a identidade católica das instituições: Creio que este é o ponto decisivo: que haja essa equipe de pessoas convencidas que animem a partir dos princípios católico-cristãos todo o funcionamento, o planejamento, a avaliação e o desenvolvimento da universidade. Ali devem estar os mantenedores e os colaboradores em ativa participação. Se ao princípio da vida institucional pode ser mais fácil reunir e aglutinar esse núcleo de pessoas, deve-se assegurar que se conserve, se renove e se amplie posteriormente, para que a universidade cresça verdadeiramente como católica. (IUS, 1995, p. 20). O que se pode observar nesse comentário é que o documento de Brasília, nesse ponto do caráter confessional, mais do que lembrar princípios ou doutrinas católicas, deposita sua preocupação e como chave de sucesso para a garantia da identidade católica numa equipe de pessoas bem constituída e que tenham competência para dirigir as instituições e sejam pessoas de intensa vivência e conhecimentos cristãos. A esse grupo cabe assegurar a inspiração cristã das instituições católicas salesianas, como núcleo dinamizador. Essa mesma equipe deve garantir que as instituições católicas atinjam seu segundo aspecto: “a reflexão contínua sobre as questões acadêmicas e os problemas do mundo a partir da fé cristã” (IUS, 1995, p. 21). Sobre este aspecto assim manifesta-se o documento: “aqui tudo depende de que existam docentes altamente preparados em sua competência científica e em sua profissão de fé cristã, que exerçam uma efetiva influência sobre a atividade acadêmica do conjunto universitário” (IUS, 1995, p. 21). A comunidade acadêmica tem ainda um terceiro aspecto a cuidar para que a identidade da universidade seja mantida como católica: que as atividades de extensão e de pesquisa, vistos como serviços à Igreja e à Sociedade, “tenham na realidade o efeito de conduzir a Cristo e a seu Evangelho e não sejam concebidas e recebidas como uma simples oferta assistencial a mais entre as muitas que existem por parte de toda classe de organismos” (IUS, 1995, p. 21). O fato para o qual se deseja chamar atenção na análise desse segundo bloco que estende o olhar sobre a centralidade dessa equipe qualificada e de perfil quase que exclusivo já que seus membros devem possuir não somente qualificação profissional e acadêmica, mas também experiência e formação religiosa católica consistentes é o seguinte: de um lado o 69 documento de Brasília e, mais adiante, os demais documentos da Rede IUS acertam ao ancorar a efetividade de sua identidade, seja do ponto de vista acadêmico, seja do ponto de vista religioso católico salesiano, na presença de pessoas e equipes qualificadas. Não obstante esse mesmo acerto converte-se num obstáculo para a consecução da democratização do acesso às suas instituições devido aos altos custos de remuneração dessas pessoas. Esse fato corrobora o que se afirmou anteriormente: a busca de um alto padrão acadêmico na constituição das IUS exige a contrapartida de investimentos de altas cifras de capital humano e financeiro. Se por um lado a Rede IUS vai se amalgamando em torno de uma séria proposta acadêmica e cristã por outro lado vai se afastando da possibilidade de efetivar sua opção preferencial de atendimento às classes populares. Mesmo a profissionalização da gestão exige a formação de equipes e meios especializados, contribuindo para o fortalecimento dessa lógica: qualificação e especialização exigem capital e investimentos altos e, conseqüentemente, altos custos de operação o que reverbera em mensalidades ascendentes para os alunos. A tabela seguinte retrata a relação entre as receitas e os gastos com a remuneração de docentes e pessoal administrativo nas IUS: 70 Tabela 03 Fonte: IUS Report, 2001, p. 236. 71 A centralidade da comunidade acadêmica dirigente, seja em seu corpo docente seja no corpo administrativo, para a manutenção e assertividade da identidade institucional tem outro aspecto crítico: a quase exclusividade das pessoas que compõem estas equipes exige também estabilidade e permanência por longos anos das mesmas nos serviços da Congregação, pois a formação e aquisição da cultura organizacional da tradição educacional salesiana se dão na prática e no contato com os ambientes da própria instituição. Isso significa que a rotatividade de pessoas não é bem-vinda e, sendo assim, crises na sustentabilidade econômica que venham a exigir demissões de pessoas não apenas rompem os vínculos de confiança e de crença nos valores proclamados e defendidos pelas IUS, por meio dos docentes e dirigentes administrativos, mas também promovem um largo vazio, pois a constituição de equipes com esse perfil leva muito tempo. O segundo capítulo do documento tem como eixo o tema sobre como se manifesta a identidade salesiana nas universidades e institutos universitários. O tema é trabalhado apresentando-se a experiência de duas universidades salesianas: a Universidade Católica Blas Cañas, de Santiago do Chile, e a Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. Note-se que a identidade salesiana nesse encontro não tem um referencial específico sistematizado em documentos orgânicos e sua reflexão inicial ocorre com base no documento papal “Ex-Cordiae Ecclesiae” (1990), pela conferência do Padre Dutari e, nesse capítulo, pela práxis das universidades presentes. Por isso adquire realce fundamental a contribuição que estas trazem já que constituem um dos elementos a partir dos quais se constrói a reflexão sobre a identidade salesiana na educação superior. A exposição dessas universidades praticamente traz para a educação superior a tradição educacional e os valores da educação salesiana para o contexto acadêmico e vai delineando como esses elementos tomam forma e se adequam no ambiente universitário pela práxis dos sujeitos que nele interagem. O terceiro capítulo é o documento final do encontro e tem como título “Os salesianos e a universidade”. Subdivide-se em três partes, cujos respectivos títulos são: “uma nova presença salesiana”, que traz afirmações sobre a irreversibilidade da atuação da Congregação no campo da Educação Superior, as razões que levaram a Congregação a atuar nesse campo educacional, as oportunidades que o trabalho universitário representa, os riscos, necessidades e desafios emanados desse trabalho; “a resposta educativa salesiana”, que prioriza o tema da identidade salesiana, destacando a importância de preservar a tradição pedagógica da 72 Congregação de maneira dinâmica, criativa e numa linguagem adequada ao meio universitário; a necessidade de pessoas comprometidas e que tenham conhecimento e experiências profundas tanto do que é a universidade como do que significa o carisma educativo salesiano; pede que o ideário salesiano seja explicitado num quadro de referência; ressalta o sentido social da universidade, resgatando a centralidade que a juventude das classes populares tem para o carisma salesiano e a promoção do protagonismo humano, profissional, social e eclesial. O terceiro título “Linhas para a institucionalização, organização e colaboração” aponta para a busca de um ideário comum e da colaboração mútua. Por fim o documento traz uma conclusão também escrita pelo conselheiro para a pastoral juvenil3, padre Luc Van Looy. É nesse documento que encontramos pela primeira vez a questão da identidade salesiana no interior das instituições de educação superior mantidas ou administrados pela Congregação Salesiana. Esse documento estabelece a questão perguntando-se sobre a especificidade da educação superior no desenrolar da missão educativa da Congregação e em que termos é possível manter a missão da Congregação no ambiente universitário. A Congregação possui identidade e missão e pretende configurá-las para a educação superior. Essa convergência exige reflexões e debates que conduzam à construção de um padrão de referência para a sua atuação. Assim se expressa o documento: “[...] Colocamo-nos o problema da tarefa específica da universidade no conjunto da missão salesiana: como e sob quais condições pode-se realizar nossa missão nos ambientes universitários [...]” (IUS, 1995, p. 4). Em seguida o documento afirma a importância da atuação na educação superior como uma forma privilegiada de promover a integração da juventude na sociedade: “[...] assumir a educação superior nas inspetorias, dentro do projeto inspetorial, é um aspecto importante para preparar os jovens para uma inserção mais consciente e ativa na sociedade” (IUS, 1995, p. 4). O documento reconhece, portanto, que a educação superior proporciona e completa a educação da juventude e que por isso deve ser assumida e prevista nos planos das atividades educacionais das inspetorias da Congregação com vistas à promoção da juventude. Nesse sentido, o documento expressa que a Congregação “tomou consciência da importância desta ampliação do campo educativo, da urgência de fazer funcionar plenamente o sistema 3 A Pastoral Juvenil forma um dicastério, isto é, uma Secretaria ligada ao Reitor Mor da Congregação Salesiana. Nela estão concentradas a coordenação e organização de todas as atividades da Congregação no mundo que se relacionam com a educação e evangelização da juventude. É uma Secretaria de grande relevância na Congregação, sendo que muitos dos Reitores Mores eleitos ocuparam esse cargo. 73 educativo de Dom Bosco e o projeto educativo salesiano nesses ambientes qualificados” (IUS, 1995, p. 4). Dessas passagens do documento, pode-se inferir que os salesianos que trabalham na educação superior reconhecem esse campo educativo como oportuno e importante no conjunto dos trabalhos educacionais da Congregação em prol da juventude e desejam definir em que termos esse trabalho da Congregação deve ser sistematizado para ser expressão do sistema educativo de Dom Bosco. Os salesianos perguntam-se também sobre como esse trabalho pode harmonizar-se com o conjunto da missão da Congregação. Há, portanto, uma aceitação para a atuação na educação superior por parte da Congregação. Não obstante emerge entre os salesianos a necessidade de precisar em que termos esses trabalhos serão desenvolvidos e como se dará sua integração com o conjunto da missão da Congregação. Essas preocupações tomam corpo em algumas perguntas levantadas pelo documento: “[...] O que significa estar presentes como cristãos no mundo da ciência? Como se pode evangelizar a sociedade a partir da ciência? Existe um modo especificamente cristão de fazer um trabalho científico? [...]” (IUS, 1995, p. 6). O documento procura construir sua resposta tendo um olhar para os “destinatários e sua cultura” e para “a ciência como resposta para desenvolvimento da sociedade” (IUS, 1995, p. 6). O documento une esses dois pólos, a ciência e a pessoa, respeitando a tradição educacional da Congregação: [...] é importante ter sempre presente o fato de que no modo salesiano de observar a realidade, as pessoas do professor e do aluno ocupam o centro das atenções. Os processos de mudanças e as respostas que a ciência quer dar ao ritmo da história se encontram nas mãos das pessoas. Mais especificamente, na linguagem salesiana, o que nos move é o bem da juventude, construtora do futuro da sociedade. Por isso queremos considerar nossas instituições de educação superior como o modo de estar presente no contexto juvenil, como instrumento de acompanhamento que permite à juventude crescer e entrar livre e consciente na sociedade, para transformá-la de acordo com os critérios do Evangelho. (IUS, 1995, p. 6). O documento explicita desta forma, um elemento importante da identidade das instituições salesianas de educação superior: a centralidade das pessoas, tanto do professor como do aluno. E estabelece a existência dessas instituições em função dessas pessoas, da sua promoção, e as vê como sujeitos históricos, capazes de transformação e de guiar os processos humanos sociais. Dessa passagem transparece outra faceta na busca de definição da identidade confessional salesiana: a transformação da sociedade a partir dos critérios do 74 Evangelho. O documento vai se defrontar com essa afirmação em diversas passagens procurando estabelecer os principais desafios institucionais em relação ao compromisso confessional católico e salesiano. Em sua segunda parte, intitulada “O Aspecto Cristão e Católico das Universidades Católicas”, no título segundo cujo título é “A Universidade Católica como instituição cristã”, retoma essa dialética entre sociedade e evangelho, isto é, confessionalidade católica e sociedade, baseado nos documentos da Igreja Católica Ex Corde Eclesiae e Gaudium et Spes, como também no Código de Direito Canônico, e afirma a concepção cristã em termos de “Inspiração Cristã comunitária” dentro das Universidades Católicas, cuja missão é “dar visibilidade à Igreja para ajudá-la a cumprir seu múnus docente” (IUS, 19995, p. 14). Essa missão é assegurada pela mediação de um “núcleo cristão convencido em que estejam representados os diversos setores da Igreja: hierarquia da Igreja, direção, docentes, fiéis leigos e a juventude como agente e não como mera receptora” (IUS, 1995, p. 14). Outra mediação importante para a consecução da missão é a “Pastoral universitária, denominada como “pastoral do entendimento”, para formar no cristão a maneira de ver o mundo e o ser humano, de perceber valores e antivalores, de julgar, de propor ideais e de criar projetos histórico-sociais.” (IUS, 1995, p. 14). Dessa forma, fica estabelecido que a Missão das Universidades Católicas é a de ser um canal qualificado para se estabelecer interlocução com a sociedade acadêmica e assegurar a transmissão do pensamento católico e dos valores do Evangelho. Dois aspectos são fundamentais: equipe de pessoas comprometidas com esse pensamento e com o Evangelho e a ação da Pastoral compreendida como sistematização, reflexão e comunicação do pensamento e dos valores cristãos, tendo como referência o saber humano e a fidelidade aos ensinamentos cristãos. Nesse processo de sistematização do pensamento cristão, três canais são privilegiados para se estabelecer interlocução com o pensamento científico: a Ética, a Teologia e a Doutrina Social da Igreja. É o que se pode ver explicitado no item segundo, da segunda parte: Aporte à reflexão da fé sobre o saber humano em fidelidade à mensagem cristã apresentada pela Igreja: lugar especial da Ética (geral, profissional e própria de cada disciplina); necessidade da Teologia (como uma Faculdade ou Cátedra e em relação com as demais disciplinas e cursos); atualidade da Doutrina Social da Igreja. (IUS, 1995, p. 14). 75 Ao identificarem-se com o patrimônio cultural do pensamento cristão, as Universidades Católicas constroem um perfil humanístico em seus princípios de atuação e de concepção. Ética, Teologia e Doutrina Social buscam colocar as Universidades Católicas em sintonia com as problemáticas humanas contemporâneas. Em outra vertente, o documento caracteriza as Universidades Católicas como servidoras do povo de Deus, isto é, dos membros da Igreja, e da sociedade em geral. Nesse ponto o documento tem a intenção de demonstrar mais especificamente que essas universidades têm como missão assegurar determinados serviços em benefício das comunidades católicas, como público privilegiado delas, e também para a sociedade em geral. Assim afirma o terceiro item da segunda parte: Serviço institucional ao povo de Deus e à família humana em seu caminho transcendente: Escolher temas e formas de investigação aplicada (que tenham maior facilidade de financiamento); inserção na pastoral de conjunto; as mais diversas formas de extensão universitária; facilitar o acesso à educação superior aos setores populares. (IUS, 1995, p. 15). Um primeiro foco a ser analisado é a relação entre “serviço institucional” e “caminho transcendente”. Por serviço institucional compreendem-se todo o conjunto de atividades desenvolvido nas universidades católicas como universidades: ensino, pesquisa e extensão. Por “caminho transcendente” o documento compreende o sentido religioso que se quer dar àquele conjunto de atividades. Em sua quarta parte afirma: [...] Devemos cuidar que as muitas atividades desenvolvidas por nossas instituições, seja extensão universitária ou projetos de pesquisa, tenham de fato o objetivo de levar a Cristo e seu Evangelho e não sejam concebidas ou recebidas como uma simples oferta assistencial... Isso significa que os membros da comunidade universitária que participam nestes programas devem estar conscientes desse sentido cristão dos mesmos e devem apresentá-los de forma adequada aos seus públicos-alvo. (IUS, 1995, p. 21). Há, portanto, uma constante defesa da catolicidade procurando fazer com que essa seja sempre o sentido não só subliminar, mas explícito de toda a missão e identidade das universidades católicas e, portanto, o seu diferencial. O segundo foco de análise nessa afirmação se refere aos serviços oferecidos. Dentre eles destaca-se “escolher os temas e formas de investigação aplicada (que tenham maior facilidade de financiamento)” e “facilitar o acesso à educação superior aos setores populares”. 76 Se por um lado há a afirmação da identidade fundada nos princípios religiosos católicos, por outro lado essa mesma identidade exprime-se por meio de serviços que procuram traduzir na práxis institucional a identidade proclamada a fim de se estabelecer coerência. Porém, nessa operacionalização de princípios, encontram-se diversas contradições e dificuldades no processo de implantação. Esses argumentos conduzem a atenção para a historicidade do processo de constituição e construção da identidade confessional mais ampla e também especificamente salesiana. O âmbito da historicidade é marcado pela contradição dos processos em que se desenrolam e influenciam o ser e o agir dessas instituições como também pela intencionalidade de um projeto. A construção da identidade não se produz apenas sob a influência do contexto em que se inserem essas instituições como também não se decide apenas na metafísica dos ideais proclamados: produz-se como a síntese desses dois aspectos. Isto significa que o contexto intensamente mercantilizado da educação superior, especialmente no Brasil tem suas repercussões para a concepção histórica de identidade das universidades católicas salesianas. Ainda que sua influência não se manifeste nos documentos referenciais, esse contexto tem repercussões para sua gestão, para a organização do trabalho e para o financiamento de suas atividades. Deve-se considerar que a identidade se manifesta e se expressa como um tensionamento histórico entre os pólos dos ideais e do contexto. O significado da identidade e suas repercussões decidem-se não aprioristicamente, mas no momento histórico definido e determinado por questões sociais, econômicas, culturais que oferecem parâmetros de ação e definem estratégias institucionais. O próprio amadurecimento das instituições, sua consolidação como universidade ou instituição de educação superior, proporcionará melhores condições ou não no direcionamento de seu ser e agir institucionais, isto é, de sua identidade, frente ao contexto em que flui a história. Ganha importância, nessa ótica, a hipótese central do doutoramento de Bittar: [...] embora as universidades comunitárias (entre as quais as confessionais) proclamem possuir uma identidade própria que as diferencia dos demais segmentos de ensino superior, esta identidade é um processo em construção, mais avançado em algumas, incipiente em outras. (BITTAR, 1999). A construção da identidade é, portanto, resultado de um processo. A ação dos sujeitos envolvidos na história oferece os elementos de interação que fundamentarão os caminhos institucionais da universidade católica salesiana. Os ideais, o contexto histórico e 77 ação dos sujeitos envolvidos são considerados como forças interacionais determinantes nesse processo de construção da identidade. O documento não apresenta uma concepção de confessionalidade. Nele não se encontra sistematizada a identidade das IUS. São encontrados elementos que a compõem, porém não há organicidade definida, um conceito estabelecido de identidade. O documento coloca a necessidade de que as instituições de educação superior sejam portadoras de valores do evangelho em um contexto cultural volátil e no interior dos sistemas nacionais de educação que também passam por reformas e transformações: [...] Em muitos países do mundo, os governos estão estudando as reformas do sistema educativo nacional e remodelando os programas educativos. Isto requer uma atenção precisa e sistemática da parte de nossas universidades para estar presentes com os valores do Evangelho nos novos sistemas. Em muitos países os salesianos estão comprometidos ativamente neste processo. No “Encontro sobre A Escola e as Culturas Emergentes na América Latina”, realizado em Cumbayá no ano passado, os salesianos e as Filhas de Maria Auxiliadora insistiram com força sobre a necessidade de reler o Sistema Preventivo de Dom Bosco para o atual contexto (IUS, 1995, p. 6-7). Num processo contínuo de transformação social e cultural, o documento reconhece a necessidade de uma contínua atualização dos valores educacionais da tradição educativa salesiana e de sua expressão de tal forma que a força original permaneça. Essa atualização deve ser sistemática e precisa, isto é, construída numa linguagem acadêmica, própria para a realidade da educação superior: A universidade é chamada a avaliar os processos educativos e as respostas aos tempos novos. A integração de todos os novos estímulos em um só caminho formativo, como Dom Bosco integrava os elementos que agradavam aos jovens e lhes dava um valor educativo, será algo tipicamente salesiano (IUS, 1995, p. 7). Nessa linha o documento recoloca diversas perguntas: “Qual poderá ser o modo tipicamente universitário de integrar as inquietudes dos jovens de hoje no processo educativo, como fez Dom Bosco em seu tempo através da música, dos jogos, das bandas e do teatro?” ( IUS, 1995, p. 7). Essa pergunta refere-se à necessidade de, no processo educacional salesiano, focar não apenas conteúdos formais e científicos, mas também humanísticos, que remetem ao conjunto e à integralidade da pessoa, aspectos esses relacionados à centralidade da pessoa. Refletindo sobre os princípios da educação salesiana, questiona: “Como podemos levar a cabo 78 estas orientações e princípios em nossas instituições universitárias de modo que cheguem a ser expressão salesiana com estilo e ritmo próprios?” (IUS, 1995, p. 7). O documento estende sua análise para a sociedade e pergunta-se como pode as IUS localizar nela a sua atuação e sua contribuição: Como as instituições salesianas de educação superior poderão dirigir-se não só aos estudantes, mas também influenciar a criação de uma sociedade atenta aos valores humanos e cristãos? Como uma instituição salesiana de educação superior poderá entrar na defesa dos direitos humanos, em particular o direito à vida e à educação? Como pode uma universidade criar laços com toda a sociedade e estender-se ao campo social? (IUS, 1995, p. 7). Dessas elaborações do documento pode-se afirmar que as instituições salesianas buscam sistematizar-se e estruturar-se em termos de concepção confessional diante de si mesmas, da tradição da Congregação e das sociedades em que estão inseridas. Nesse processo de autodefinição, estão conscientes de serem portadoras de um sentido confessional próprio, isto é, baseado no Evangelho e na tradição salesiana, e procuram trazer para o interior de suas atividades e relacionamentos institucionais, em si e com a sociedade, a marca dessa confessionalidade numa linguagem que seja adequada para a realidade da universidade; que seja capaz de estabelecer significatividade e compreensão diante de seus interlocutores. Algumas dimensões ganham importância nesse processo. Os salesianos indicam nesse documento quais as áreas em que desejam que a sua tradição educacional seja mais relevante e atinja maior influência. Ganha especial destaque nesse sentido a concepção integral da pessoa e dos processos educacionais: busca-se sistematizar uma concepção confessional salesiana que esteja integrada aos processos culturais e de construção dos saberes. Com isso o projeto educacional que o documento procura estabelecer quer evitar dicotomias internas na concepção educativa e também evitar que a confessionalidade seja algo estranho, sobreposto ou paralelo, ao serviço educacional empreendido. Nesses termos, expressa: A presença na sociedade, na política e na Igreja é, para Dom Bosco, de grande importância. Não queria somente atender aos jovens do oratório. A universidade dirige o pensamento contemporâneo, desde uma posição crítica e propondo valores constantes aos cidadãos e aos cristãos. Um aspecto particular nesse sentido verifica-se na integração da cultura (a ciência) com a sociedade (o povo) e a fé (o Evangelho). A universidade salesiana deverá contemplar seriamente esta tarefa, tratando ao mesmo tempo o estudo, o tempo livre e a celebração; adultos e jovens; leigos e 79 religiosos; instituição e família; conectando constantemente pedagogia, didática, espiritualidade num mesmo movimento de educaçãoevangelização e evangelização-educação. O específico salesiano é enfocar tudo desde uma ótica educativa (IUS, 1995, p. 8). Retomando, nessa ótica, a questão do papel das IUS no conjunto das obras da Congregação, o documento afirma: A releitura do sistema preventivo nos dará a capacidade de dirigir nossas obras (oratórios, escolas, paróquias, centros juvenis) de modo completo. A qualidade de todas nossas obras depende de nossas universidades. O pensamento salesiano é dirigido por quem pensa e aplica o estudo à realidade educativa ordinária. Nossas comunidades têm uma urgente necessidade de ser iluminadas para interpretar e reler sua ação educativo-pastoral com uma mentalidade integral e com ampla visão (IUS, 1995, p.9). O documento atribui às IUS o papel de serem as responsáveis pela atualização da tradição educacional da Congregação corroborada no Sistema Preventivo. Trata-se de tarefa estratégica, da qual depende a continuidade das atividades educacionais da Congregação. A essa tarefa está ligada a qualidade dessas obras. As IUS têm a responsabilidade de ser centro de reflexão e reconstrução do pensamento educativo da Congregação que deve dirigir e gerir com qualidade todas as atividades da Congregação nesse campo. Isso supõe que as IUS tenham sólidos conhecimentos e vivência do Sistema Preventivo. Porém, o próprio documento reconhece que as IUS estão buscando sistematizar sua maneira específica de expressar e entender essa tradição. Aponta o documento no item doze da parte que traz a síntese das apresentações de cada IUS: “[...] Questões em aberto: identidade salesiana; sentido da missão salesiana universitária a serviço da Igreja; integração com o mundo salesiano” (IUS, 1995, p. 11). Diante disso, como poderão as IUS assumir a responsabilidade de ser um centro do pensamento educacional salesiano se ainda não se estabeleceram em relação a essa identidade? O documento de Brasília reflete sobre a confessionalidade e a tradição educacional salesiana e seus valores. Porém, não sistematiza a identidade confessional salesiana. Pode-se caracterizar esse documento como expressão da tomada de consciência da Congregação para o fenômeno da educação superior no conjunto de suas obras educacionais, mas não logra definir claramente o perfil que se deseja construir nem de que forma a confessionalidade e a tradição salesiana serão explicitados e darão consistência para a atuação da Congregação no 80 meio acadêmico. Tem o mérito de expor as grandes questões com o que o grupo dirigente das IUS se defronta: como articular com coerência e de maneira sincrônica a educação superior e os valores educacionais católicos e salesianos? Como, por um lado, garantir excelência acadêmica para as IUS e, por outro lado, atualizar em seu interior toda a especificidade da educação católica e salesiana? Os princípios são de certa forma, explicitados, mas não tomam corpo orgânico e nem se desdobram em orientações práticas capazes de traduzirem os princípios proclamados em eixos de ação e organização das IUS. Não traz desdobramentos para gestão de maneira objetiva nem desencadeia um processo de mudança de rumos. Não cria estruturas de acompanhamento nem metas ou objetivos comuns. Transparece que a intenção global do documento é de expressar a atenção reflexiva da Congregação em relação à educação superior. Verificar os desafios, colocar princípios que poderão ser amadurecidos e pensados com vistas a um desenvolvimento ulterior. Mesmo retomando a temática da gestão, apesar de não haver nenhuma tomada de decisão que comprometa a prática nem desencadeie um novo processo, traz alguns pontos de vista. Em primeiro lugar expõe um indicativo em termos de profissionalização da gestão, apontando a necessidade de que se busque a qualidade da formação e o aperfeiçoamento contínuo como uma exigência inerente ao meio universitário: Antes de tudo será necessário criar uma mentalidade de busca constante. A Congregação necessita viver um constante estado de formação. Devemos dar-nos conta de que sem estudo não se influencia os processos da sociedade. Para atender juventude com uma proposta de qualidade, é necessário estar presentes onde se elaboram as estratégias da educação. Isto requer pessoas preparadas e com experiência. (IUS, 1995, p. 9). Essa afirmação é definidora, pois aponta um sentido que irá inspirar a atuação futura da Congregação no campo da educação superior: a busca da profissionalização da administração das IUS. 2.2 A Carta Circular “Por Vós Estudo”: identidade, qualidade e profissionalização Uma clara repercussão dessa intuição do documento é a Carta do Reitor Mor Pe. Juan Edmundo Vecchi, intitulada “Por vós estudo: a preparação adequada dos irmãos e a qualidade do nosso trabalho educativo”, de 15 de setembro de 1997, escrita pelo Reitor Mor Padre Juan Edmundo Vecchi. Essa carta é uma avaliação do Reitor Mor sobre o mundo da 81 cultura e as exigências que daí decorre para a formação dos salesianos que são chamados a atuar no campo educativo nas diversas iniciativas e obras da Congregação ao redor do mundo. Enquanto analisa a situação cultural da sociedade hodierna e orienta a Congregação para a qualificação continuada com vistas ao trabalho significativo e de qualidade na Educação da juventude, o Reitor Mor sublinha a importância das IUS e aponta para a necessidade de uma nova programação e já traz a indicação de que o Conselho Geral irá acompanhar mais de perto as IUS com vistas a uma melhor estruturação das mesmas. A Carta possui oito títulos e uma conclusão. O oitavo item trata exclusivamente das universidades e demais instituições salesianas de Educação Superior. Nela afirma: “[...] A qualidade emerge como exigência em todos os setores da vida, da cultura e da ação. É retratada em termos de “excelência” a perseguir, de “competência” a cultivar, de “qualidade total” a realizar”. Nesse sentido afirma Beynon: As novas teorias do ‘pós-fordismo’ e da ‘flexibilidade’ enfatizaram a importância do trabalho e a necessidade gerencial que implica um envolvimento de pessoal nas tomadas de decisão, já que as empresas enfrentam um mundo cada vez mais complexo e imprevisível [...] As companhias ‘enxutas’ e suas gerências põem mais e mais ênfase sobre a necessidade de envolver seu quadro de funcionários, de desenvolver o ‘trabalho de equipe’ e de incrementar a educação e as oportunidades de treinamentos disponíveis para os empregados, considerados como um dos recursos mais valiosos de qualquer corporação. Nas livrarias, as prateleiras das seções de administração de empresas estão abarrotadas de livros sobre qualidade total, assunto comum nas cadeiras oferecidas pelas faculdades hoje em dia. Este é o ‘zunzunzum’da década. (BEYNON, 1998, p. 16-17). Se por um lado essa Carta do Reitor Mor está em sintonia com o documento de 1995 ao apontar a necessidade de qualificação de pessoal como expressão de profissionalização da gestão e da atuação da Congregação na educação superior, por outro lado a mesma Carta parece concordar com a análise precedente de que o documento de Brasília não estabelece claramente a identidade das IUS. Assim explicita o Reitor Mor na Carta: É indispensável, em primeiro lugar, traçar com maior clareza a identidade e a orientação desses centros. Embora reconhecendo que têm uma organização geral inspirada na mentalidade cristã e transmitem uma visão humanista e religiosa, há sempre o risco de achatar-se na mentalidade dominante, mais do que constituir-se como instâncias de diálogo e propostas alternativas. (ACG 361, 1997, p. 17) 82 Considerando que o documento de Brasília é de 1995 e a Carta do Reitor Mor é de 1997, pode-se estabelecer que o dirigente máximo da Congregação e o Conselho Superior avaliam que é preciso continuar o caminho iniciado em Brasília, aprofundá-lo e defini-lo melhor. Na visão do Reitor Mor, a sociedade e a cultura trazem desafios que requerem mais das IUS em termos de embasamento e de organização para tornarem-se interlocutoras qualificadas no ambiente cultural de então. Por meio dessa Carta o Reitor Mor expressa a percepção sobre a globalização, que está presente numa nova época histórica: A missão salesiana, como notávamos acima, entrou, em todos os lugares, em fronteiras novas, geográficas ou culturais, e esse movimento não cessará num futuro imediato. Antes, a mundialidade, as urgências pastorais, a possibilidade de presenças influentes em raio amplo modificarão ainda o nosso modo de agir. Uma visão sábia das coisas leva a prover às necessidades locais, mas também a considerar a contribuição a ser dada a algumas iniciativas que superam os horizontes inspetoriais e exprimem a missão salesiana em nível regional, nacional e internacional. (ACG 361, 1997, p. 8). Entendida como nova fase do processo civilizatório, a globalização não permite às instituições subtrair-se à sua influência. Por isso percebe-se que o pensamento do Reitor Mor nessa carta absorve alguns dos conceitos globalizados, especialmente a teoria do capital humano, ao colocar como meta para o pessoal salesiano a qualificação com vistas a maior produtividade e melhor consecução dos objetivos da Congregação. Percebemos que não basta ser mais numerosos ou dispor de meios mais poderosos para incidir mais; é preciso, sobretudo, ser mais discípulos de Cristo, entrar mais profundamente no Evangelho, qualificar a vida das comunidades, centrar melhor, do ponto de vista pastoral, os projetos e intervenções. Com uma palavra que pode parecer ‘secular’, trata-se do problema da qualidade; em linguagem evangélica, é a genuinidade e a força transformadora do fermento. A qualidade emerge como exigência em todos os setores da vida, da cultura e da ação. Fala-se dela em termos de ‘excelência’ a perseguir, de ‘competência’ a cultivar, de ‘qualidade total’ a realizar [...] De outra parte, competências adequadas e reconhecidas são hoje exigidas também pela diversificação e complexidade das intervenções educativas, que comportam conhecimentos mais completos e práticas mais consolidadas. Uma fraca qualidade profissional empobrece a proposta educativa, diminui a incidência do nosso trabalho e, agravando-se, poderia tirar-nos fora do campo da educação. Advertimos esse risco sobretudo em alguns âmbitos onde as novidades aparecem mais evidentes, como a comunicação social, o mundo universitário, as áreas da ‘insatisfação juvenil’. (ACG 361, 1997 p. 11-12). 83 À primeira vista, a busca de competência e formação de pessoas parece não trazer maiores problemas; porém, definir a qualidade pela via da “qualidade total” e da “competência” aproxima o discurso da Congregação ao movimento do capital que busca na qualificação das pessoas não a humanização, mas a expropriação de lucros: Note-se que a sutil mudança de terminologia, de capital humano para capital intelectual representa o avanço da classe hegemônica em seus propósitos de objetivação, expropriação e controle do conhecimento. De acordo com Nonaka e Takeuchi, novas formas de gerenciamento, que eles associam ao modelo oriental, adotam a exploração do conhecimento tácito e não do explícito, como no modelo ‘ocidental’. É na apropriação do saber tácito que reside o ‘segredo’ da formação e preservação do capital intelectual. A Teoria do Capital Humano e a Teoria do Capital Intelectual são, como faces da mesma moeda, ao mesmo tempo iguais e diferentes: são iguais em sua lógica instrumental, nas relações de produção fundadas no antagonismo que lhes são subjacentes e são diferentes porque a expropriação é mais violenta, pela alienação daquilo que, até então, era considerado inalienável: o saber. A mudança de humano para intelectual denuncia esse processo de alienação: não é mais o homem, o capital, mas sua parte ‘útil’, que pode ser expropriada. O uso da terminologia ‘intelectual’ denota maior objetivação do que o uso da terminologia ‘humano’, que remete à integralidade do ser. Em Schultz a inalienabilidade era característica do capital humano: ‘Dado que a educação se torna parte da pessoa que a recebe, referir-me ei a ela como capital humano. Dado que se torna parte integral da pessoa, não pode ser comprada ou vendida ou tratada de acordo com as nossas instituições, como propriedade. Não obstante, é uma forma de capital se presta serviços de um determinado valor’. (SANTOS, 2004, p. 17). O Reitor Mor pretende que essa qualificação prepare criticamente os salesianos para que não ocorra o “risco de achatar-se na mentalidade dominante” e sejam capazes de “constituir-se como instância de diálogo e propostas alternativas”. Se a Congregação absorve nessa Circular do Reitor Mor a mentalidade cultural dominante, pretende que esse referencial contribua para a clarificação de seus princípios e obras, ajudando a reestruturá-los ao momento histórico-cultural sem perder o que há de genuíno. Quanto a essa reorganização e clarificação, assim afirma o Reitor Mor: Numerosos documentos apelam para o esforço de uma clara organização. A Igreja está levando adiante, em contexto de nova evangelização, a pastoral da cultura que tende a produzir mudanças na concepção econômico-social, na atitude diante da vida, na elaboração da ética, na criação de relações novas, na proposta de um sentido que ilumine natureza, história e tensões em ato (ACG 361, 1997, p. 6) 84 O Reitor Mor está em sintonia com as intuições de Brasília, porém aponta um novo contexto e necessidades que ainda não foram abordadas pela Congregação. Essas necessidades estão sendo explicitadas em termos de definição e sistematização da identidade, qualificação, qualidade, organização e, portanto, gestão e sistematização. É o que se verifica na seguinte passagem da Carta: “Nossas Universidades devem definir a sua orientação conforme o caráter “católico” e a sua “filosofia educativa” em sintonia com os critérios salesianos, constituindo-se em centros de formação de pessoas e elaboração de cultura de inspiração cristã”. É retomada a questão da identidade, percebida no I Encontro em Brasília, mas também aponta novamente que é imprescindível defini-la, sistematizá-la, de tal maneira que possa ser o caráter informativo das IUS, isto é, tenha a capacidade de ser um paradigma capaz de distingui-la e alicerçá-la. Essa afirmação também une a identidade com a questão da formação: num contexto que valoriza o conhecimento, a chamada “sociedade do conhecimento”, exige da Congregação a qualificação de seu pessoal e de suas instituições; mas permite também que suas instituições de educação superior formem pessoas qualificadas segundo seu paradigma, isto é, segundo a identidade salesiana. Porém o sucesso dessa meta ambiciosa da Congregação está ligada à qualidade da identidade estruturada e vivida no interior das IUS. Essa percepção da Carta desemboca numa decisão, um tanto velada ainda, de empreender um novo processo dentro da Congregação em relação à educação superior: Essa é uma frente de missão relativamente nova e, portanto, a ser acompanhada, coordenada e clarificada. Será preciso elaborar um encaminhamento autorizado (o Projeto para as Universidades salesianas, como plataforma declarativa da inspiração fundamental), promover o diálogo e o intercâmbio entre essas instituições e acompanhar o caminho das Inspetorias nessa nova experiência. (ACG 361, 1997, p. 16) O Reitor Mor expressa a entrada em uma nova fase, já não mais apenas reflexiva. Indica uma fase de acompanhamento, coordenação e clarificação bem como de intercâmbio e diálogo entre as IUS. Essa fase pretende ser também caracterizada em termos de projeto. Na passagem citada, “o Projeto para as Universidades Salesianas”. Uma série de elementos e categorias novos estão sendo apresentados e gestados nessa Carta e, como será analisado adiante, serão determinantes para a estruturação da Rede IUS. Pelo caráter global da Carta e, mais especificamente, pela citação em análise, a Rede IUS se utilizará das ferramentas de planejamento e gestão oriundas da Administração para embasar a sua identidade e caracterizar 85 a sua gestão. Na Carta do Reitor Mor esse pensamento administrativo se exprime em termos de qualidade, qualificação do pessoal salesiano ligada à qualificação institucional, definição sistemática e qualificada da identidade em termos culturais, católico e salesiano, vista desde já como “plataforma declarativa de inspiração fundamental”. Desse ponto de vista pode-se afirmar que o documento de Brasília, em relação à definição da Identidade é ainda incipiente. Mesmo em termos de construção da Rede IUS não é definidor. Não obstante é rico em termos de levantamento de questões que serão debatidas e estudadas pela Congregação na outra fase já indicada pelo Reitor Mor na sua Carta. Com base nessas reflexões, retomadas de forma sistemática em outros referenciais, especialmente os referenciais da teoria do capital humano, da administração e gestão no contexto da globalização ou mundialização, serão sistematizados os projetos e princípios da Congregação para a sua atuação na educação superior. É interessante notar que entre o documento de Brasília, de 1995, e a Carta do Reitor Mor, de 1997, passam-se dois anos e meio. Por esse tempo o documento de Brasília parece esquecido e a questão da educação superior deixada à parte, sem a produção de nenhum novo documento público da Congregação em relação a esse tema. Quando surge a Carta em 1997, o tema é trazido à tona dentro de uma nova perspectiva de análise por parte do Reitor Mor e do Conselho Superior da Congregação: deseja-se profissionalizar as IUS, planejá-las e sistematizá-las, aglutinando-as numa nova perspectiva. Retomando na análise a questão da historicidade do processo de construção da identidade, essa mudança de impostação da reflexão e gestão das IUS leva à pergunta: por que a mudança de rumos? O que acontece para que de um encontro incipiente em Brasília passese a uma postura de vontade sistemática de acompanhamento? Verificou-se no capítulo anterior que as IUS experimentam um crescimento acentuado ao longo da década de 1990 passando a ter um peso expressivo no conjunto das obras da Congregação. Por outro lado o movimento de expansão acontece de maneira mais expressiva em países em desenvolvimento onde a educação superior não é universalizada. Esse movimento acontece também no contexto sócio-econômico de mundialização do capital e conseqüente reforma do Estado. Nesse contexto, antigos direitos são rediscutidos especialmente o do acesso à educação. A educação começa a ser objeto de negociação nos organismos internacionais por pressão de grupos que entrevêem a possibilidade de lucros com a exploração de serviços educacionais ao perceberem a forte demanda por educação superior 86 nos países emergentes. Esse é o fator determinante para que a estruturação da rede IUS aconteça a fim de que seja um meio de fortalecimento de suas afiliadas em termos de gestão e identidade, pois se começa a sofrer uma forte pressão com a transformação da educação em bem de serviço e sua entrega nas mãos da iniciativa privada. Essa tendência acompanha o movimento do capital que encontrou no setor de serviços uma nova fronteira de exploração e uma das últimas possibilidades de investimentos lucrativos: Visto sob o ângulo das necessidades do capital concentrado, o duplo movimento de desregulamentação e de privatização dos serviços públicos constitui uma exigência que as novas tecnologias vieram atender sob medida. Atualmente, é no movimento de transferência, para a esfera mercantil, de atividades que até então eram estritamente regulamentadas ou administradas pelo Estado, que o movimento de mundialização do capital encontra suas maiores oportunidades de investir. (CHESNAIS, 1996, p. 186). A construção da Rede pretende-se assegurar que as IUS não sejam apenas uma oferta privada de educação superior e que a gestão adequada ofereça condições de sobrevivência econômica. Por isso pretende-se demonstrar, nesta análise que se está construindo, que a Rede IUS une gestão e identidade como dois feixes de sustentação institucional que se complementam e entrelaçam a fim de se dar consistência para suas afiliadas seja do ponto de vista administrativo seja do ponto de vista da identidade que pretendem constituir. Nesse sentido o documento traz outras problemáticas enfrentadas em relação à identidade salesiana. Entre essas, o documento coloca os destinatários das IUS, isto é, os alunos a que pretendem atingir. Pela tradição da Congregação, seus serviços educacionais estavam voltados para a juventude das classes populares. Porém, ao longo da sua história, a Congregação multifacetou o público por ela atendido, recebendo em suas instituições classes mais abastadas. Nesse sentido, assim se expressa o documento: “[...] Destinatários: ordinariamente a juventude da classe média-baixa; intencionalidade popular e opção pelos pobres, especialmente nos serviços de extensão, de caráter social.” (IUS, 1995, p. 10). Como declaração de princípios, há coerência com a tradição da Congregação. Porém vive-se aí um conflito que abarca duas vertentes: primeiro, o documento reconhece, de maneira sutil, que os alunos das IUS são oriundos de “classe média”, aqui adjetivada de “baixa”, o que implica que as “classes pobres” não estão freqüentando suas salas de aula. Segundo, o documento compromete as IUS com uma “intencionalidade popular”, o que é coerente, e significa erigir o 87 foco nas classes populares como um critério de ação e um princípio norteador para as decisões e o posicionamento das IUS nas sociedades em que estão. Não obstante, essa intencionalidade aparece ligada às classes pobres somente como serviços de extensão, isto é, como atendimento social que as IUS prestam à sociedade envolvente. Somente aí o foco prioritário é realizado, sendo a juventude dessa classe deixada em segundo plano no atendimento principal, isto é, como alunos dos cursos que estas oferecem. Essa contradição é sentida pelo próprio documento que reconhece as exigências inerentes à educação superior de qualidade como geradoras de custos altos demais para serem bancados pela juventude das classes populares. O gráfico seguinte apresenta o custo anual por aluno em dólares americanos nas IES da América Latina e Caribe, onde se encontra uma grande população de jovens de baixo poder aquisitivo. Considerando-se que a renda das classes mais baixas na região não ultrapassa a média de mil dólares anuais, pode-se inferir que muitos jovens estão sem condições de arcar com os custos da educação superior. Gráfico 07 Custo Anual por Aluno Fonte: IESALC/UNESCO, 2007, p. 17. 88 O documento de Brasília exprime essa contradição como um dilema de difícil solução, por meio de uma pergunta: “[...] Como balancear excelência, qualidade e popularidade?” (IUS, 1995, p. 12). Essa mesma contradição é apresentada no discurso do Reitor-Mor da Congregação por ocasião de sua visita à Universidade Católica Dom Bosco em Campo Grande-MS: “[...] Então, a Universidade tem que ser uma comunidade com uma clara proposta educativa e cultural, de alto nível. Popularizar a Universidade significa pô-la ao alcance dos pobres, não significa abaixar o nível” (CHÁVEZ, 2004, p. 8). O Encontro de Brasília assim se expressa sobre essa temática: que as IUS “[...] sejam sensíveis aos setores de recursos escassos” (IUS, 1995, p. 18). Porém, o que acaba ocorrendo nas IES privadas e, logo, também nas IUS é que as melhores instituições, devido às suas taxas elevadas, recebem os alunos melhor posicionados economicamente enquanto os de menor poder aquisitivo freqüentam instituições de qualidade duvidosa. Neste sentido afirma a UNESCO em relação às IES privadas da América Latina e Caribe: Em geral, as IES privadas dependem fundamentalmente dos pagamentos efetuados pelas famílias ou pelos estudantes. Os dados mostram que cerca de 90% da receita das IES privadas da região depende desses pagamentos. A exceção é a Colômbia e a Bolívia onde a receita advinda de outras fontes chega a 30%. Por ser as famílias que financiam a educação privada, tende-se a reproduzir as iniqüidades da sociedade: as famílias com maiores recursos enviam seus filhos a boas IES privadas que têm maiores custos anuais enquanto as famílias de menor poder aquisitivo, quando podem financiar a educação superior, o fazem em instituições de menor custo e qualidade. (IESALC/UNESCO, 2007, p. 77-78). Apesar da abertura aos setores mais pobres da população, o documento das IUS não apresenta caminhos a serem seguidos para atingir o objetivo de atender a demanda desses setores por educação superior, sem perder a qualidade dos serviços ofertados. Por outro lado há uma clara defrontação com a escassez de recursos que limita a concretização com segurança daquele objetivo. Aí encontra-se o impedimento para a implementação desse ponto da identidade católica salesiana na educação superior. Essa contradição aprofunda-se especialmente no caso do Brasil em que apenas 13% (INEP, 2004) da população em idade de cursar a universidade estão freqüentando a educação superior. Os dados do IBGE/PNAD indicam, conforme tabela a seguir, que o perfil 89 socioeconômico desses, em sua maioria, é de jovens das classes que possuem renda familiar de cinco ou mais salários. A juventude em idade de cursar a educação superior e que está fora da mesma pertence às classes mais baixas, com renda inferior a três salários. Gráfico 08 Fonte: Braga, 2004, p. 15. A contradição torna-se contundente ao se ver os dados sobre o ensino médio no país: enquanto há uma crescente tendência de universalização desse nível de ensino, a educação superior, apesar das taxas de crescimento da última década, dá sinais de esgotamento dos canais de democratização. Observa-se no próximo gráfico como as taxas de escolarização líquida e bruta do ensino médio se comportam nessa década, variando de 40% a 60% e 93% a 108% respectivamente. Comparando-se com a taxa de escolarização da educação superior, em torno de 13% (MEC/INEP 2005), percebe-se que há um estrangulamento na passagem de um para o outro nível de educação. 90 Gráfico 09 Fonte: Braga, 2005, p. 13. As universidades privadas empresariais e as privadas confessionais exibem crescentes índices de ociosidade de suas vagas, o que denota saturação do setor pelo fato de não haver mais famílias em condições de financiarem-se no pagamento de mensalidades. O gráfico seguinte demonstra como o número de vagas nas IES privadas brasileiras são superiores ao número de ingressantes. 91 Gráfico 10 Fonte: Braga, 2005, p. 21. O setor privado dá sinais de esgotamento do ciclo de expansão e setor público não tem recebido investimentos necessários para a sua expansão consistente, apenas paliativos como o recente Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), do governo federal. Em sua apresentação, o governo federal reconhece a estagnação do setor privado e a necessidade de investimentos públicos na educação superior para o atendimento da demanda: Embora a maior oferta de vagas na graduação ocorra hoje no setor privado de ensino superior, a expansão desse setor apresenta sinais de esgotamento, principalmente pela saturação de mercado em várias profissões e pela inadimplência de segmentos sociais incapazes de arcar com o alto custo da educação superior. Desta forma, a ampliação das vagas na educação superior pública torna-se imperativa para o atendimento da grande demanda de acesso à educação superior. (BRASIL, REUNI, 2007, p. 7). O Programa pretende apoiar o país para alcançar a meta traça no Plano Nacional de Educação de que 30% dos jovens entre 18 e 24 anos estejam na educação superior até o final 92 da década, tendo como objetivo estabelecer condições que permitam as universidades federais subsidiarem o ingresso de um numero maior de alunos: Criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, no nível de graduação, para o aumento da qualidade dos cursos e pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes nas universidades federais, respeitadas as características particulares de cada instituição e estimulada a diversidade do sistema de ensino superior. (BRASIL, REUNI, 2007, p. 10). Pretende aumentar a taxa de conclusão dos cursos de graduação e a relação entre o número de professores por alunos: A meta global do programa é alcançar, gradualmente, ao final de cinco anos, a contar do início de cada plano: taxa de conclusão média de noventa por cento nos cursos de graduação presenciais; relação de dezoito alunos de graduação por professor em cursos presenciais. (BRASIL, REUNI, 2007, p. 12). É paliativo no sentido de que não prevê aumento de vagas, mas estabelece estratégias apenas para a diminuição dos índices de evasão por meio do melhor aproveitamento de recursos materiais e humanos já disponíveis. Entretanto não deixa de cumprir o papel de estimular a adoção de políticas públicas que favoreçam a democratização além de que aumenta os investimentos do Estado na educação superior. Apesar de ser um programa paliativo, o REUNI tem uma forte repercussão para as IUS no Brasil porque tende a agravar o quadro do esgotamento e conseqüente ociosidade das vagas. Nesse contexto, se colocam o objetivo de atender a juventude das classes populares. A democratização do acesso compõe sua concepção de educação superior: As IUS realizam uma opção preferencial pelos jovens das classes populares, superando qualquer postura elitista, não apenas em relação aos destinatários, mas também na orientação da pesquisa e no desenvolvimento dos diversos serviços universitários. Isso implica algumas escolhas: a) favorecer o acesso à universidade aos jovens que provenham dos ambientes populares e do mundo do trabalho; [...]. (Identidade, 2003, p. 10). Porém, como realizar esse objetivo num contexto adverso economicamente? As IUS possuem políticas nesse sentido como as bolsas de estudo, estágios remunerados e parceria com os governos. Porém não logram atingir plenamente esse objetivo pela escassez das fontes de recursos já que sua maior fonte de receita são as mensalidades. 93 2.3 O Documento Identidade: Projeto Institucional, Identidade e Gestão Procura-se analisar nesse item como o documento Identidade da Rede IUS constrói relações entre identidade, gestão e projeto institucional, procurando demonstrar que a rede assimila, dessa forma, as tendências globalizadas para a educação superior. A Sociedade de São Francisco de Sales, entrando numa nova fase de concepção das IUS, procurou definir mais amplamente a sua atividade educacional na educação superior. Três documentos são referenciais neste processo instaurado em 1997: o Dossiê e o Diagnóstico da situação das IUS; o documento Identidade das IUS; e o documento Políticas para as IUS 2003-2008. O Conjunto desses três documentos constitui o Marco Referencial para a presença salesiana na educação superior. O trabalho de construção desses documentos foi denominado Programa Comum I das IUS 1998-2001. Esse Programa foi delineado durante o II Encontro das IUS realizado em Roma em 1998, de 10 a 13 de julho e reuniu todos os reitores, os inspetores salesianos, o Reitor Mor dos salesianos e membros do Conselho Geral com o objetivo de “acordar um plano de ação trienal, cujo desenvolvimento ajudasse a definir o futuro das IUS” (Identidade, 2003, p. 21) com base em uma referência comum. Decidiu-se nesse II Encontro das IUS elaborar e definir um documento denominado “A Identidade das IUS”. Para tanto foi nomeada uma comissão entre os membros participantes que elaborou um instrumento de trabalho posteriormente submetido à apreciação de todas as IUS durante a Conferência 2000 realizada por regiões: em junho de 2000 em Quito, Equador, para as IUS latinas; em fevereiro de 2001 em Benediktbeurn, Alemanha, para a Europa anglo-saxônica e, no mesmo mês, em Bancoc, para a Ásia. De 13 a 17 de julho de 2001 realizou-se o III Encontro das IUS, em Roma. A Assembléia aprovou o redação do documento que em julho de 2002 foi submetido à apreciação e aprovação do Reitor-Mor e do Conselho Geral, sendo aprovado em 7 de janeiro de 2003. O Documento Identidade (2003) ficou estruturado em uma introdução e dois capítulos: o primeiro “Identidade das IUS” e o segundo “Escolhas operativas fundamentais das IUS”. A Introdução é dividida em duas partes e treze números. A primeira parte, composta pelos sete primeiros números, apresenta as relações históricas e conceituais entre a Congregação e a educação superior; a segunda parte, do número oito ao treze, apresenta as finalidades do documento entre as quais destacam-se: “definir as características da presença 94 salesiana na educação superior” e a de que o documento seja “fonte principal de inspiração e de orientação do Projeto institucional com que cada uma das IUS justifica, planeja e realiza a sua ‘missão’ cultural e científica, educativa e pastoral, como serviço salesiano a uma sociedade concreta” (Identidade, 2003, p. 9). No Capítulo I, Identidade das IUS, são traçados referenciais importantes como a concepção educacional a ser seguida, de caráter explicitamente humanista, cristão e salesiano; apresenta também elementos que compõem a identidade específica das IUS: primeiro, a opção pela juventude das classes populares que deve influenciar as iniciativas de pesquisa, ensino e extensão, as intervenções sociais e a formação de colaboradores e docentes. Segundo, o compromisso de todos os membros da comunidade acadêmica com o projeto institucional de formação e construção da verdade, baseado na interdisciplinaridade, no trabalho cooperativo e na co-responsabilidade. Terceiro, a orientação cristã e salesiana do projeto institucional por meio de “[...] uma concepção humana fundada no Evangelho, de uma consciência ética fundada nos valores da justiça e da solidariedade, do diálogo entre as culturas e as religiões, da atenção especial ao âmbito da educação, à formação dos educadores, ao campo da técnica e do trabalho, e ao mundo da comunicação” (Identidade, 2003, p. 14). Quarto, a intencionalidade educativo-pastoral do projeto institucional “[...] segundo as características da pedagogia e da espiritualidade salesiana” (Identidade, 2003, p. 15). Outra referência importante nesse capítulo é a definição do caráter acadêmico que se deseja construir em cada IUS. Transparece no item primeiro “natureza das IUS” uma clara opção por instituições que sejam concebidas em termos clássicos de promoção da pesquisa, do ensino e da extensão, valorizando, assim, o caráter científico e acadêmico das IUS. Afirma o documento que as IUS têm por finalidade promover “[...] o desenvolvimento da pessoa humana e do patrimônio cultural da humanidade, mediante a pesquisa, a docência, a formação superior e contínua e os diversos serviços oferecidos às comunidades locais, nacionais e internacionais” (Identidade 2003, p. 11). No capítulo II, Escolhas Operativas Fundamentais das IUS, o documento procura apontar caminhos que valorizem a formação dos colaboradores, sujeitos da comunidade acadêmica, capazes de empreender um projeto amplo de formação e construção do conhecimento que visam a “construção de uma nova sociedade, cujo centro é o ser humano entendido em suas dimensões histórica, cultural, pessoal e coletiva, imanente e transcendente” (Identidade, 2003, p. 18). 95 Outra indicação importante desse capítulo é a de que as IUS passem a trabalhar com um “projeto institucional – de caráter cultural e científico, pedagógico-educativo e pastoral (Identidade, 2003, p. 18)” que seja capaz de exprimir a especificidade de cada IUS frente às demais ofertas de educação superior nos locais onde estão inseridas. Ressalta-se também, nesse capítulo, que as IUS desejam alcançar incidência e significatividade na sociedade em coerência com sua natureza e identidade. Essa incidência deve ser buscada por meio da pesquisa e do ensino em áreas do conhecimento que estejam em sintonia com a missão salesiana; através de projetos que estimulem o envolvimento de outras instâncias da sociedade voltadas para a educação popular; através da “sinergia” entre as IUS e outras entidades (Identidade, 2003, p. 19). O documento insiste que a finalidade de criação do serviço às IUS e a institucionalização de sua rede é: [...] buscar as condições gerais comuns que assegurem, seja em cada uma das instituições como no seu conjunto, uma presença salesiana significativa em nível científico, educativo e pastoral, entre os centros que produzem e promovem cultura na sociedade. (Identidade, 2003, p. 8). Com base nessa afirmação, entende-se que o objetivo final da Rede é de assegurar as “condições gerais comuns” para que a IUS possam ter espaço de destaque “entre os centros que produzem e promovem cultura na sociedade”, isto é, entre as demais instituições de educação superior. Portanto infere-se que o estabelecimento da rede IUS visa assegurar qualidade dos fundamentos institucionais a fim de que esteja garantida a “presença salesiana significativa” de cada uma de suas afiliadas e também do seu conjunto. Esta presença é entendida em termos “científico, educativo e pastoral”. Em outras palavras, a compreensão do por que dessa Rede deve ser buscada na tentativa da congregação salesiana de assegurar qualidade às suas IES para oferecer às mesmas continuidade e diferenciação no contexto dos demais “centros de produção e promoção de cultura na sociedade”. O texto parece indicar que existe uma preocupação com a qualidade institucional, com a fidelidade aos princípios educacionais da congregação e, ao mesmo tempo, uma preocupação com a concorrência que as IUS enfrentam. Essa citação apresenta também os elementos que devem compor a qualidade ou significatividade das IUS: a qualidade deve ser alcançada nos campos “científico, educacional e pastoral”. Por outro lado 96 o grande espectro sobre o qual repousa o tema da “presença significativa” é o da identidade, entendida como “condições gerais comuns”. A questão da identidade constituiu-se como a primeira preocupação no movimento de constituição da Rede. Tanto é que ela compôs um dos eixos temáticos do Programa Comum I definido pelos dirigentes máximos das IUS e integra o marco de referência da rede IUS. O próprio fato de a Rede compilar o documento Identidade expressa a centralidade do tema para a Rede. Além de conceber a identidade como “condições gerais comuns”, o documento toma a identidade sob a impostação de “orientações gerais que permitam a cada comunidade acadêmica universitária elaborar o próprio projeto cultural-científicotecnológico-educativo-pastoral salesiano” (Identidade, 2003, p. 9). Por isso pode-se inferir que o documento precisa construir um referencial comum a ser partilhado por todas as IUS, considerando a sua heterogeneidade institucional, cultural e jurídica. Trata-se de buscar um ordenamento de princípios que assegure uniformidade de fundamentos capazes de justificar a razão de ser dessas instituições e de enquadrá-las e conferir-lhes um lugar próprio no conjunto de obras mantidas pela congregação salesiana. Em outra vertente, a identidade possui um aspecto prático: orientar o planejamento institucional das IUS. O planejamento não seguirá apenas as nuances dos contextos em que estiverem as IUS, mas deverá seguir um referencial pré-definido, construído em comum. Quer-se, desta forma, atingir também uma certa uniformidade na linguagem dos planos e no processo de planejamento. É importante notar o entrelaçamento entre identidade e planejamento: a rede objetiva que o planejamento seja canal privilegiado para a explicitação e construção da identidade e que, por outro lado, o planejamento tenha na identidade sua fonte inspiradora: [...] a aspiração mais imediata deste documento é tornar-se fonte principal de inspiração e de orientação do Projeto institucional com que cada uma das IUS justifica, planeja e realiza a sua missão cultural e científica, educativa e pastoral, como serviço salesiano a uma sociedade concreta da qual se sente parte e em favor da qual se empenha com todas as suas forças (Identidade, 2003, p. 9). O documento frisa que pertencer à Rede IUS significa partilhar uma concepção prática, definida em planos de ação, sobre educação superior, ciência e pastoral. Ainda nesse sentido, o número 8, letra “b” estabelece como finalidade do documento Identidade: “ajudar as IUS na implantação de um Projeto institucional”. Já a letra C afirma que outra finalidade 97 desse documento está relacionada a “imprimir uma orientação autorizada e estável sobre a qual promover, ao longo dos anos [...] políticas e planos estratégicos para toda a Congregação no campo universitário”. Levando-se em consideração que a identidade é um processo em construção é interessante essa perspectiva do documento que elege o processo de planejamento e de definição de políticas como meios, ferramentas decisivas para sua concretização. É no interior desse processo que se galgará atingir a identidade proclamada ou não. No horizonte da importância do planejamento para a construção da identidade, cabe visitarmos o capítulo “I. Identidade das IUS”. Esse capítulo possui dois subtemas distribuídos entre os números 14 a 24 do documento. O subtema 2 intitula-se “Elementos de identidade das IUS” e compreende os números de 18 a 24, compondo-se em quatro itens. O título do segundo item é “Comunidade acadêmica comprometida com o projeto institucional” e abrange os números 20 e 21. O terceiro item intitula-se “Projeto institucional salesianamente orientado”. O segundo capítulo do documento, “Escolhas operativas fundamentais das IUS” [25-33] possui quatro subtemas, sendo que o primeiro é “trabalhar com um projeto institucional” [26-28]. Pretende-se, desta maneira, demonstrar como o tema do planejamento – definido como “projeto institucional” - percorre todo o documento Identidade das IUS e liga-se estreitamente ao tema da identidade: Ao procurar definir sua identidade, as IUS elegem o “projeto institucional” como um dos elementos fundantes de sua identidade e não apenas como um meio de expressar sua identidade de forma prática. Nesse sentido o subtema “Elementos de identidade das IUS” é cabal ao apresentar como um dos elementos dessa identidade a “Comunidade acadêmica comprometida com o projeto institucional” [20-21]: Uma instituição salesiana de educação superior se configura como a comunidade de todos aqueles que, segundo a própria responsabilidade acadêmica e profissional, em sintonia com os valores cristãos e salesianos do projeto institucional, se empenham na busca da verdade e na missão formadora de modo co-responsável e aberto às diversas realidades culturais e sociais (Identidade, 2003, p. 13). Um segundo subtema revelador, nesse sentido, é o que compõe o terceiro elemento da identidade: “Projeto institucional salesianamente orientado”: “também as IUS, como as demais universidades, realizam a pesquisa, organizam o ensino e difundem a cultura, visando o saber, o saber fazer, o saber ser e o saber comunicar e partilhar. Isso o exprime num próprio projeto institucional universitário” (Identidade, 2003, p. 14, n. 22). 98 Já o segundo capítulo “Escolhas operativas fundamentais das IUS” afirma no subtema “1. Trabalhar com um projeto institucional”: Cada IUS representa a vontade manifesta da Congregação salesiana de estar presente no campo da educação superior com uma missão específica. Esta se expressa num específico projeto institucional – de caráter cultural e científico, pedagógico-educativo e pastoral, organizativo e normativo, o qual, respondendo às exigências da realidade local e da universidade, plasma e aplica de modo global em termos operativos a identidade acima descrita. Não se pode conceber um trabalho rigoroso na universidade por parte das IUS sem a referência e a condução de um projeto institucional. (Identidade, 2003, p. 17, n. 26). O documento caracteriza, ainda, a evolução e a natureza desse projeto: “O projeto se desenvolve progressivamente mediante planos estratégicos e planos operativos limitados nos objetivos e no tempo” (Identidade, 2003, p. 17, n. 28). Transparece assim que o Projeto Institucional é garantia de que a Identidade atinge o cotidiano institucional, garante também rigor universitário, sendo sua chave de sucesso acadêmico e dá o tom específico de cada IUS no contexto das diversas ofertas de educação superior. Neste último sentido, acrescenta: “Do conjunto do projeto institucional deveriam aparecer evidentes as características específicas de cada uma das IUS perante as outras ofertas no ensino superior do mesmo território”. A diferenciação das IUS vem da sua identidade estruturada em um projeto institucional de educação superior. Como se vê a centralidade do Projeto institucional em relação à identidade, qualidade institucional e acadêmica, diferenciação e enfrentamento da concorrência é primordial e ganha amplo destaque no documento. Conclui-se do até agora analisado que a identidade, entendida em termos de “condições gerais comuns” e de “orientações gerais”, possui um elemento de planejamento definido como “projeto institucional”. Significa afirmar que a identidade das IUS constrói-se com um elemento de gestão e está voltada para ela. A identidade pretende erigir-se como um princípio gestor das IUS; que tenha, portanto, reflexos decisivos na condução acadêmicoadministrativa dessas IES. Isto significa também que a identidade é concebida na perspectiva de projeto, isto é, está orientada para a práxis do cotidiano e para a orientação do futuro: é elemento fundante das ações do presente e das possibilidades de continuidade institucional. 99 Estabelecido, pela análise, o entrelaçamento entre identidade e planejamento no interior do documento Identidade das IUS, cabe agora analisar como se desdobra, na constituição da Rede, essa associação entre identidade e planejamento. No segundo capítulo, o subtema “2. Escolha e formação permanente dos docentes e dos gestores das IUS”, após realçar a exigência de formação permanente de professores e gestores, afirma: “Esse processo de formação permanente deve promover nos docentes e gestores um perfil adaptado às exigências do projeto institucional”. Esse perfil é descrito em cinco letras. Dentre elas destacam-se: “a) capacidade de auto-formação e auto avaliação; b) capacidade de compartilhar um projeto institucional”; “e) capacidade de gestão universitária eficaz e competente”. O tema do projeto institucional repercute não só na identidade, mas também no projeto de formação e no perfil profissional dos principais membros da comunidade acadêmica: professores e gestores. A formação desses deve prepará-los para vivenciar uma cultura de planejamento, em que a referência constante a um projeto institucional deve marcar toda e qualquer iniciativa. Nota-se também que por meio do projeto institucional adentram os temas da avaliação e da gestão. No mesmo capítulo segundo, o subtema “Gestão da qualidade”, após definir o que se entende por “gestão de qualidade”, elenca os onze requisitos necessários para assegurar a qualidade. Desses, quatro têm relação direta com o planejamento/plano institucional: consideração pelo Projeto institucional da universidade como verdadeira magna charta; articulação do Projeto com planos estratégicos e planos operativos particulares; sistematicidade e disciplina no desenvolvimento do Projeto e dos planos; avaliação rigorosa e constante das realizações. Das análises dos três documentos aqui apresentados, pode-se concluir que o processo de implantação da Rede Internacional das IUS busca estabelecer cooperação e também padrões de gestão dessas instituições a fim de que possam operar de maneira orgânica e sistemática em sua gestão e realização de projetos e atividades acadêmicas. Esse processo está sendo construído por meio de documentos que traduzem a assimilação de uma linguagem profissional, voltada para resultados, eficiência e eficácia, denotando aceitação de padrões de qualidade assumidos por organismos internacionais. Por outro lado os documentos explicitam uma visão própria e específica de educação superior e de políticas que diferem das concepções neoliberais de educação entendida apenas como serviço a ser explorado em 100 função do lucro e da formação de capital financeiro erigido dessa exploração. Difere também no sentido de que a Rede IUS possui uma concepção ampla de educação superior, entendida de forma clássica – ensino, pesquisa e extensão, e acresce a essa a sua visão humanista e cristã que tem suas raízes na experiência educativa da Congregação Salesiana e na finalidade da sua presença na educação superior. Essa concepção traduz-se num projeto integral de educação e formação do ser humano: “As IUS, por isso, se caracterizam pela sua opção em favor da juventude das classes populares, pelas comunidades acadêmicas com clara identidade salesiana, pelo projeto cultural, cristã e salesianamente orientado, e pela intencionalidade educativo-pastoral” (Identidade, 2003, p. 12, n. 18). Conclui-se desse processo, que ao empreender a constituição da Rede, as IUS procuram, pelo analisado, defender sua identidade num momento delicado de elaboração de políticas capitalistas neoliberais sobre a educação superior que tem comprometido e ameaçado a sua proposta educacional seja pela via da concorrência, seja pela via da concepção distorcida de educação trazida pela fundamentação da globalização do capital. Essas políticas trouxeram uma acentuada diversificação das instituições que promovem educação superior não com o intuito de possibilitar a sua democratização, mas de servir à obtenção de dividendos. Ao longo dos anos/1990 e inícios dos anos 2000, a educação superior brasileira demonstrou pujante crescimento impulsionada pelo avanço do setor privado que detém o maior número de instituições: Das 162 universidades, 43 (26,5%) são federais, 31 (19,1%) são estaduais, 4 (2,5%) são municipais e 84 (51,9%) são privadas. Da totalidade dos centros universitários, apenas um é federal e dois são municipais; os outros 74 são privados. Das 105 faculdades integradas, três são municipais e 102 são privadas. Das 1.240 faculdades, escolas e institutos, sete (0,6%) são federais, 25 (2,0%) são estaduais, 48 (3,9%) são municipais e 1.160 (93,5%) são privadas. Dos 53 centros de educação tecnológica, 22 são federais, nove são estaduais e 22 são privados. (Inep, 2003). (OLIVEIRA, 2006, p. 16). Esse processo mudou a face da educação superior no Brasil, diversificando-a do ponto de vista institucional, indicando predomínio de instituições que se dedicam prioritariamente ao ensino de graduação: O Brasil já possuía uma grande diversificação em seu sistema de ensino superior mesmo antes da Constituição de 1988. Essa diversificação se aprofundou a partir da aprovação da Lei nº 9.394, de 20/12/96 (LDB). Dados do MEC/Inep/Seec, do Censo das Instituições de Ensino Superior de 2002, mostram que o sistema possui 1.637 instituições; dessas, 162 (9,9%) são 101 universidades, 77 (4,7%) são centros universitários, 105 (6,4%) são faculdades integradas, 1.240 (75,7%) são faculdades, escolas e institutos e 53 (3,2%) são centros de educação tecnológica (Inep, 2003). Predomina, portanto, nesse cenário, um conjunto de instituições que prioritariamente desenvolvem atividades relacionadas ao ensino de graduação. (OLIVEIRA, 2006, p. 16). Quanto ao numero de alunos matriculados, o período 1989-2002 proporciona um crescimento extraordinário de 129,1%. Desse total o setor privado participa com 76,2% das matriculas novas. O setor privado no período 1995-2002 expande-se fortemente, acumulando índice de 129,3%, enquanto que as instituições públicas federais crescem 44,7% e as estaduais 73,7% (OLIVEIRA, 2006, p. 17). Todo esse crescimento é motivado pelas taxas crescentes de alunos concluintes do ensino médio que demandam acesso na educação superior. Também o Plano Nacional de Educação (PNE) influencia como política catalisadora desse processo de expansão no sentido de atingir a meta de matricular 30% dos jovens entre 18 e 24 anos na educação superior. Sua influência cresce ao se considerar o veto do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso à meta de assegurar o aumento do número de vagas no setor público de tal forma que nunca fosse inferior a 40% do total oferecido pelo sistema. Destarte, o caminho escolhido para se atingir a taxa de escolaridade de 30%, foi o da iniciativa privada (OLIVEIRA, 2006, p. 18). Porém os dados do INEP apontam para uma taxa de escolaridade líquida na educação superior de aproximadamente 12,1% atualmente. O aumento de vagas no setor privado foi ineficaz para se alcançar a meta estabelecida no PNE uma vez que ainda estando com o índice de escolaridade em torno 12,1%, o setor privado apresentou em 2002 37,4% de ociosidade no preenchimento de suas vagas enquanto esse índice atinge 7% no setor público (OLIVEIRA 2006, p. 19). Portanto a meta não foi atingida via privatização não porque o setor privado criou vagas insuficientes, mas porque dá sinais de esgotamento em sua capacidade de expansão devido à falta de condições de pagamento de mensalidades por parte das camadas mais pobres da população que estão chegando às portas da universidade. Amaral (2006), ao analisar essa problemática, coloca os seguintes questionamentos: Esse duplo movimento, um pequeno porcentual de vagas não-preenchidas nas públicas e um elevado porcentual de vagas não preenchidas nas privadas estaria indicando que a sociedade não está conseguindo pagar as mensa- 102 lidades nas instituições privadas? Estaria sendo atingido o limite para as famílias brasileiras pagarem mensalidades, em função da enorme desigualdade social brasileira? Ou seja, existiria uma exaustão no ensino superior privado? Há que se lembrar ainda do porcentual elevado de inadimplência presente nas instituições privadas, o que preocupa os dirigentes desse setor e lhes impõe sérias dificuldades para planejar as atividades acadêmicas a serem desenvolvidas. A inadimplência seria, também, mais um indicador de exaustão das famílias brasileiras em financiar os estudos universitários de seus filhos (AMARAL, 2006, p. 19). Um fator limitante, mais do que qualquer outra forma de oposição, tem, portanto, frustrado as perspectivas do processo de expansão da educação superior via iniciativa privada empresarial, especialmente no Brasil: a desigualdade social conseqüência da concentração de renda. Citando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Amaral aponta que 62,9% dos brasileiros residem em domicílios cuja renda não ultrapassa cinco salários mínimos; 9,3% em domicílios cuja renda está de 10 até 20 salários mínimos; 4,9% residem em domicílios com renda superior a vinte salários mínimos (Ibidem, 2006, p. 20). O autor considera que somente aquelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos podem custear o pagamento de mensalidades cujo valor médio ele estabelece em quatrocentos reais. Portanto seriam 14,2% das famílias nessa condição. Este seria o percentual de jovens entre 18 e 24 anos em condição de realizarem sua educação superior em instituições privadas o que representa 3.257.511 jovens. O Censo da Educação Superior de 2002 indica que as instituições privadas estão com 2.428.258 alunos matriculados o que para o autor indica sinais claros de esgotamento da capacidade máxima de expansão do setor (Ibidem, 2006, p. 20). Estudos conduzidos pelo próprio setor privado da educação superior indicam que houve desaceleração: a taxa média de crescimento anual entre os anos 1997 e 2002 foi de 17%. Já em 2003 houve queda para 8% em 2003. A projeção do setor para os anos de 2005 a 2010 é de crescimento em torno de 5% ao ano (BRAGA, 2005, p.7; 14). A perspectiva de crescimento é baixa e deve-se ressaltar que o setor privado está considerando o ingresso de alunos em cursos cujas mensalidades são menores que a média estimulada por Amaral (2006) por se tratar de cursos de curta duração. Ainda nesses estudos o setor privado traz alguns dados que estão em convergência com o estudo de Amaral: a maior parte da demanda reprimida por educação superior encontra-se nas famílias com renda inferior a três salários mínimos já que essas somam mais 103 de 90% da população. Essas famílias possuem apenas 12% dos jovens que estão nas IES. Já as famílias com renda superior aos 10 salários mínimos detêm mais de 50% das matriculas (Idem, 2005, p. 15). Diante desses dados concluem: Considerando os elementos comentados nos parágrafos anteriores, fica claro que só haverá possibilidade de crescimento semelhante ao dos últimos anos (mais de 10% ao ano), caso sejam encontradas políticas de financiamento estudantil públicas ou privadas, que garantam um aporte maciço de alunos oriundos de famílias com renda inferior a três salários mínimos. (BRAGA, 2005, p. 15). Assim desenha-se um quadro de alta concorrência e de perspectivas problemáticas para as IUS: entende-se dos dados que não falta seu público prioritário, isto é, os jovens das classes mais baixas. O que falta são alternativas de sustentabilidade e financiamento que colaborem para que as IUS tenham capacidade de realizar sua identidade no aspecto do atendimento aos seus alunos preferenciais bem como para se manter num mercado competitivo. CAPÍTULO III O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE Este capítulo apresenta a análise de como a Rede IUS concebe a internacionalização da educação superior e quais as principais estratégias e políticas adotadas para sua efetivação. Procura também comparar essas opções adotadas com a agenda dos organismos multilaterais e dos blocos geo-econômicos, procurando indicar aspectos coincidentes entre elas e suas repercussões para a identidade das IUS. 3.1 A categoria internacionalização É necessário apresentar uma nova categoria de análise para a problematização deste objeto de pesquisa: a internacionalização da educação superior. Ela constitui-se um eixo ao redor do qual circulam uma série de processos que tem sua origem no movimento de globalização do capital e na tendência da Organização Mundial do Comércio (OMC) em considerar a educação um serviço a ser explorado pelo capital transnacional, desencadeando um processo global de privatização da educação superior. Concomitante ao processo de expansão da privatização ocorre a formação do capitalismo acadêmico com a criação de sociedades educacionais de capital aberto ou sociedades limitadas para as quais já não contam os limites políticos do Estado-nação uma vez que atuam em âmbito internacional. Em conseqüência forma-se um mercado mundial de educação a ser explorado pelo capital financeiro ou por grandes grupos empresariais internacionais o que acentua a perspectiva mercadológica da educação superior (MOROSINI, 2006, p. 108). 105 Nesse processo intervêm diversos autores que vão amalgamando e configurando as políticas a serem seguidas. A Organização Mundial do Comércio, por meio do termo “Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços”, relacionado ao comércio internacional de serviços aprovado em 1995 é um sujeito decisivo para a definição da educação como serviço a ser comercializado sendo que a educação integra os termos do acordo em praticamente todos os seus níveis. Essa concepção é resultado direto da política de privatização da educação superior, com a conseqüente presença de entes privados no controle das instituições. Outro resultado dessa política é que países centrais, detentores de níveis tecnológicos e de conhecimento mais avançados e consolidados em suas instituições enxergam a possibilidade de exploração estruturada mundialmente e se organizam para a efetiva exploração desses serviços. Morosini (2006, p. 115) aponta que países como “Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Japão já apresentaram à OMC propostas de negociações para a liberalização do comércio dos serviços educacionais”. Observa-se que os países centrais, percebendo sua vantagem competitiva nesse campo, desejam efetivar suas possibilidades de ganhos diretos com a exploração desses serviços ao mesmo tempo em que reduzem drasticamente seus investimentos estatais na educação superior. Alguns tratados são relevantes nesse encaminhamento por já dividirem e constituírem papéis a serem seguidos no processo. Há muito os países centrais vem pressionando pela afirmação do conhecimento e da tecnologia com finalidades exploratórias visando lucros. A política internacional sobre propriedade intelectual e patentes é uma expressão acabada dessa tendência: fortes investimentos em inovação e tecnologia são incentivados por sólida política de defesa da propriedade intelectual, ainda que muitas vezes patentes e tecnologia sejam construídas sobre o patrimônio da biodiversidade e de conhecimentos primitivos de países e povos desprovidos de capital, o que tem aferido lucros que favorecem os países centrais detentores de tecnologias avançadas. Da mesma forma desejase estabelecer a mesma política para a exploração dos serviços educacionais. No cenário internacional, portanto, a educação e o conhecimento estão cada vez mais distantes da perspectiva de direito humano fundamental e afirma-se, por meio de tratados concretos, seu tratamento mercadológico. Esses tratados moldam o cenário internacional da educação superior, seja do ponto de vista técnico, acadêmico e pedagógico, seja do ponto de vista político e 106 econômico. A organização internacional dá-se em blocos geopolíticos-econômicos com destaque para a atuação dos países centrais que conduzem o processo conforme seus interesses e necessidades e também determinam as políticas dos organismos e agências multilaterais para o setor. Destaca-se a formação do espaço europeu de educação superior por meio de alguns dispositivos que normatizam e fomentam as relações dos países membros da União Européia no campo da educação superior, dentre os quais se ressaltam a declaração de Sobornne e de Bolonha 4 (MOROSINI, 2006, p. 116-119). Do ponto de vista técnico-acadêmico indicam a padronização e “harmonização dos sistemas e estruturas educacionais”. Nesse processo, alguns mecanismos são adotados para sua viabilidade: sistema de créditos padronizados que permite a mobilidade de estudantes, estabelecimento de dois níveis que prevêem a graduação e a pós-graduação, credenciamento de diplomas para a circulação dos profissionais, a avaliação da qualidade e criação de uma dimensão européia para a educação superior como expressão do caráter internacional. Já as políticas adotadas para o direcionamento do processo apontam para a adoção de estratégias globais; a diversificação das fontes de financiamento, que passam a ter fundos de origem pública e privada; profissionalização de recursos humanos capazes de compreender e atuar a internacionalização; atenção para o desenvolvimento dos currículos, redes de pesquisa bem como a capacitação para a pesquisa. Destaca-se, ainda, “o reconhecimento do valor efetivo dos procedimentos para a avaliação da qualidade na atividade internacional” (MOROSINI, 2006, p. 117). A formação desse espaço internacional de educação superior é marcada pela complexidade tanto política como técnica e permite o surgimento de uma nova configuração para a educação superior em todo o continente europeu com repercussões para o mundo globalizado. Conceitos presentes nessa experiência européia também conduzirão a formação da Rede IUS: políticas globais, profissionalização, formação de recursos humanos, avaliação, atenção para a qualidade de currículos e da pesquisa. Sem dúvida esse fato é marcante para a decisão da Congregação salesiana empreender a 4 As declarações de educação superior da UE reúnem diretivas para estabelecer a prática de colaboração e reconhecimento mútuo entre as diversas comunidades universitárias européias e que formalizam a construção do Espaço Europeu de Ensino Superior – EAHE. Várias declarações contribuíram para este objetivo, assentando as bases para a articulação dos sistemas de Educação Superior... Ainda em 1998A Declaração da Sobornne instituiu as bases para a criação de um Espaço Europeu de Educação Superior. Um ano depois, a declaração de Bolonha estabeleceu os princípios e os compromissos para orientar as universidades européias. 107 constituição de sua Rede IUS. Cresce a importância desse bloco para a internacionalização da educação superior à medida que se alarga o bloco europeu pela adesão de novos países. Morosini (2006, p. 120-121) analisa esse movimento acompanhando seu desenrolar ao longo das declarações de Lisboa, Praga, Berlim e Bergen5 que indicam, além da consolidação e avanços da harmonização e estruturação da educação superior no interior do bloco, o amadurecimento da percepção da sua importância para o desenvolvimento da nova sociedade européia e a inserção de novos países nesse espaço comum de educação. Outros temas presentes na agenda européia para a criação do espaço europeu de educação superior são relevantes para a Rede IUS: empregabilidade e papel estratégico do conhecimento para o desenvolvimento humano e social bem como para a formação de uma mentalidade cultural capaz de compartilhar valores, tradições e culturas num espaço comum (MOROSINI, 2006, p. 118). Outro aspecto que aumenta a incidência do padrão europeu na constituição da Rede IUS, além dos já mencionados, é que a coordenação mundial está sediada na Europa e muitos de seus assessores e dirigentes e especialmente os técnicos são europeus e foram técnicos da União Européia ou da própria UNESCO. Apesar de a maioria das IUS estarem na América Latina e Ásia, considerando-se que esses continentes são áreas que sofrem notável influência tanto dos organismos internacionais como dos próprios países centrais, ficam postos os fatos que sustentam a percepção de que a Rede IUS será constituída não só no cenário da globalização da educação superior, mas irá absorver muito das experiências e das políticas internacionais para a educação superior. Acrescente-se nessa análise que a repercussão internacional da experiência do bloco europeu na constituição do espaço comum de educação superior constitui uma das intencionalidades da União Européia que pretende “fazer do sistema europeu uma referência mundial” (MOROSINI, 2006, p. 124). Nesse sentido a União Européia, por 5 A Declaração de Lisboa foi firmada pelos chefes de Estado e de governo europeus em 2000 e prevê a valorização da educação superior como um novo objetivo para o desenvolvimento da União Européia; a Declaração de Praga foi firmada por 32 ministros europeus da educação superior e reafirma o compromisso de estabelecer uma Área Européia para a educação superior até 2010. Estabeleceu-se um sistema de graus elegíveis e comparáveis, baseado em dois ciclos principais, adotou-se um sistema de créditos comum, promoveu a mobilidade, a cooperação para a garantia da qualidade e a inserção da dimensão européia na educação superior por meio de currículos, cursos e graus oferecidos em parceria com países diferentes, conduzindo a um reconhecimento conjunto; Declaração de Berlim de 2003 que instituiu a avaliação dos resultados alcançados, definiu prioridades e fixou novos objetivos com a finalidade de acelerar a concretização da Área Européia da Educação Superior; a Conferência de Bergem realizou-se em 2005 reunindo os signatários do Processo de Bolonha e novos integrantes da UE e teve como objetivo avaliar a implantação do Espaço Europeu de Educação Superior. 108 meio do “Processo de Bolonha” exprime a sua concepção da educação superior em termos estratégicos para a continuidade da sociedade do conhecimento e para o modo de produção nele baseado e que, para se manter na hegemonia do capital, é necessário produzir novos, avançados e estratégicos conhecimentos: A Comissão das Comunidades Européias estabelece, num documento emitido em 5 de fevereiro de 2003 em Bruxelas, que o crescimento da sociedade do conhecimento depende da produção de maiores conhecimentos, da sua transmissão através da educação e formação, estando indissociavelmente ligada à sua divulgação pelas tecnologias de informação e comunicação e da sua utilização em novos serviços ou processos industriais. (MOROSINI, 2006, p. 122). Percebe-se como ocorre o liame entre sociedade e universidade: o conhecimento é tratado em termos técnicos e de saberes capazes de inovar e relançar a sociedade em elaborações mais complexas capazes de sustentar sua existência e, principalmente, modo de produção e as demais esferas sociais no sentido de fomentar em comportamentos, atitudes e saberes, uma sociedade alicerçada na tecnologia. Os processos envolvidos indicam a formação de um matiz tecnológico, prático, para o conhecimento, passível de gerar serviços, produtos e processos de produção e de ser consumido em larga escala, isto é, divulgado. Nesse ambiente compreende-se por que a aquisição de saberes é crucial para o exercício da cidadania e para a inserção social. Por isso a necessidade de se preparar os cidadãos para apreenderem e autoconstruírem o conhecimento. Para cumprir adequadamente esse papel, as instituições que exercem a educação superior precisam trabalhar com novos paradigmas, muitas vezes externos a elas, e, para isso, adotam um sistema complexo de gestão e concepção de si e da sociedade bem como dos indivíduos para chegar aos resultados desejados. Retomando o tema das repercussões, a experiência da União Européia reflete-se em acordos e programas de cooperação com outros blocos. Pode-se citar alguns mais relevantes: o programa América Latina Formação Acadêmica (ALFA) de cooperação entre instituições da América Latina e da União Européia com o objetivo de criação de políticas comuns para reconhecimento e validação de títulos bem como a equalização de programas e cursos; O Espaço Comum de Educação Superior União Européia, América Latina e Caribe (UEALC) que busca harmonização de currículos e programas para a livre 109 circulação de diplomas e profissionais entre a América Latina, Caribe e Europa, bem como o desenvolvimento de padrões de qualidade e avaliação para embasar critérios de credenciamento dos cursos e diplomas (MOROSINI, 2006, p. 134-136). A globalização vai se corroborando na formação de diversos blocos geopolíticos e econômicos. Assiste-se, por exemplo, à formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA); do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). No interior desses blocos verificam-se as contendas e divergências especialmente relacionadas a tópicos econômicos e sobre avanços nos acordos comerciais e alfandegários. Destaca-se o tensionamento entre ALCA e MERCOSUL: os países membros do MERCOSUL almejam sua consolidação e aprofundamento enquanto são cautelosos quanto à implantação da ALCA, mais defendida pelos interesses dos Estados Unidos. Em sua evolução o MERCOSUL tem englobado outros países da região e por meio da Declaração de Cuzco desencadeou a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações na qual se fundirá com as nações membro do Pacto Andino (MOROSINI, 2006, p. 151). A formação desses blocos indica como países centrais e periféricos se preparam e atuam para definir, conduzir e defender interesses e perspectiva e determinam o novo cenário global em termos de cultura, economia, política e educação. Esse é o cenário em que se desenvolve a nova educação superior e que é importante para a compreensão da formação da Rede IUS indicando que a tendência do contexto é a convergência na condução desse nível de educação: convergência de políticas, de cursos, títulos, programas, administração e procedimentos. Não obstante há também tensões e conflitos especialmente nos âmbitos da autonomia das universidades, financiamento e protecionismo. Nota-se que a internacionalização é um tema em torno do qual se aglutinam tensões e disputas de visões em que se antagonizam uma concepção mais comercial, defendida no interior de organismos comprometidos com o interesse do capital internacional e dos países centrais e outra tendência que procura impostar um sentido de democratização e inclusão social concebendo a educação como um direito de todo cidadão e como vetor de integração num mundo globalizado, levando-se em consideração o valor econômico e social do conhecimento. 110 3.2 A concepção de internacionalização para a Rede IUS no Documento de Brasília Ao analisar os documentos sobre os quais está registrado o processo de construção da Rede IUS, pode-se afirmar que ela se constitui num mesmo período em que os Estados estão catalisados no processo de globalização e descortinam a educação superior e sua reforma a partir desse ângulo. Nesse processo os Estados, especialmente os centrais, iniciam um processo de reforma da educação superior a partir das exigências da própria globalização e tendem a constituir um cenário marcado pelo viés do mercado, isto é, empreendem a internacionalização da educação superior de tal modo que possa atender à vontade do capital que deseja criar um mercado acadêmico e também liberar os Estados do financiamento desse nível de ensino justamente para possibilitar sua exploração mercadológica mundialmente. Percorrendo o estabelecimento da Rede IUS, o Encontro de Brasília revela-se como seu embrião. Naquele encontro as dezoito instituições participantes já manifestam o interesse em constituir uma rede: O intercâmbio entre os participantes responsáveis diretos de vários institutos, nos ofereceu uma bela oportunidade de mútua informação, de confrontação e de avaliação [...] Os participantes querem dar consistência ao fenômeno dos centros universitários salesianos fundando a Associação Salesiana das Universidades (ASU) para assegurar a continuidade dos encontros e seu desenvolvimento. (IUS, 1995, p.3-4). A possibilidade da construção da Rede IUS é vista como oportunidade de aprofundamento do processo de conhecimento mútuo e de troca de experiências em termos de informação, comparação e avaliação das vivências institucionais. Os participantes chegam a estabelecer um nome provisório para a Rede – ASU, e querem, nela reunidos, realizar encontros posteriores para dar continuidade ao processo e ampliá-lo. Concebem esse desenvolvimento nos seguintes termos: Nesse primeiro encontro, queremos lançar a pedra fundamental para o futuro. Quem de nós não pensa já desde o início na instituição de uma rede entre os institutos salesianos ou na mútua conexão computadorizada de nossas bibliotecas? A comunicação rápida e constante de nossos tempos nos convida a estar continuamente em contato entre nós; a internet favorece o intercâmbio constante de informação e de iniciativas para animar-nos na missão. Nossos institutos saem, assim, de seu lugar geográfico e histórico para inserir-se em uma rede internacional de obras salesianas comprometidas com a cultura e a ciência, para a educação e evangelização da juventude. (IUS, 1995, p. 5). 111 Praticamente indica a sensibilidade diante do contexto da globalização que pede intercâmbio e comunicação rápidos, formação de redes capazes de suportar esse processo e de dar às instituições um alcance que supere os limites geográficos, ampliando sua eficácia e maximizando os recursos individuais disponíveis potencializando os resultados, meios e fins do conjunto das obras da Congregação. Indicam também a finalidade dessa possível Rede: promoção da cultura e da ciência; educação e evangelização da juventude. Os participantes do encontro de Brasília demonstram ainda sintonia com o momento histórico cultural em outro aspecto além da formação de uma Rede: o estabelecimento de políticas comuns como expressão da vontade de internacionalizar suas atividades na educação superior. Assim afirmam: Na base de nosso encontro está a preocupação de desenvolver uma política compartilhada na Congregação a respeito da educação superior. Estamos presentes como responsáveis de 18 institutos; o Conselho Geral está representado por dois conselheiros; queremos dar um primeiro passo na busca de uma política comum para o futuro. (IUS, 1995, p. 9). Os participantes, nesse sentido, chegam a tomar uma decisão: “Que os Dicastérios da Pastoral Juvenil e da Formação elaborem algumas linhas de orientação sobre as universidades para toda a Congregação e estabeleçam uma espécie de ideário geral” (IUS, 1995, p. 47). Ao lado da formação da Rede de intercâmbio e comunicação e compartilhamento de experiências e projetos, a busca de políticas comuns de atuação e concepção irá moldar a Rede IUS e serão eixos fundamentais para sua existência. Paralelamente ao processo de reforma universitária global nos países, as IUS procuram estabelecer, nesse contexto, a sua concepção e sua política de educação superior, revelando uma sintonia com essa tendência mundial. Como que influenciada pela relevância que o tema adquire no contexto internacional, pela sua estratégica posição em termos sociais e econômicos, a Congregação procura definir sua atuação na educação superior e essa posição tem caráter vital uma vez que se trata de sua missão precípua. Por isso pode-se interpretar a postura de seus membros nesse encontro como uma tentativa de posicionar-se estrategicamente frente ao movimento internacional diante do tema da educação superior e das tensões e conflitos de interesses inerentes. Os 112 participantes lançam alguns princípios que revelam, no seu entendimento, que caminhos, valores e horizontes devem ser privilegiados na instituição da Rede: Esta associação pode ter o objetivo de dar uma resposta salesiana aos problemas emergentes do mundo universitário e da cultura, respeitando a peculiaridade de cada país: favorecendo a cultura da vida e da solidariedade; fortalecendo a presença salesiana em cada país; favorecendo a inserção salesiana na cultura; favorecendo o intercâmbio entre nossas instituições e outras; estabelecendo linhas de ação comuns; ajudando-nos na compreensão da realidade juvenil. (IUS, 1995, p. 48). Essas linhas gerais de orientação indicam a busca de fortalecimento das ações das instituições salesianas de educação superior do ponto de vista cultural, tornando-as relevantes nos contextos em que atuam. Ao mesmo tempo apontam para políticas gerenciais à medida que pedem intercâmbio, ações comuns e maior compreensão do fenômeno juvenil. Pretende-se, desta forma, que a Rede favoreça a significatividade cultural e acadêmica das IUS, garantindo-lhes inserção no contexto internacional da educação superior. Os participantes avançam na definição do perfil dessa Rede indicando espaços de colaboração e ações pontuais que favoreçam a colaboração mútua: [...] Colaboração: realizar entre nós convênios de intercâmbio cultural; Concretizar edições e publicações comuns; iniciar intercâmbio de alunos e professores; organizar seminários internacionais anuais rotativos sobre temas fundamentais comuns; estabelecer convênios com universidades não salesianas; intercambiar publicações já existentes em nossas instituições; ter e pôr à disposição bibliotecas especializadas; preparar-se para a utilização da internet. (IUS, 1995, p. 48). Percebe-se que a colaboração efetiva prevista ocorre em torno iniciativas mais voltadas para a função pesquisa, especialmente em termos de sua divulgação em publicações e realização de seminários, como também o compartilhamento de infra-estruturas universitárias como a biblioteca e redes tecnológicas. O intercâmbio de alunos e professores aponta para a inserção da graduação no processo de construção de espaços comuns. Porém, como analisa Morosini (2008, p. 293), o campo da pesquisa é mais profícuo ao intercâmbio, pois se encontra mais livre diante da complexidade legislativa nacional e internacional sendo a graduação muito mais difícil de intercambiar devido às restrições impostas pelos entes estatais. De qualquer forma observa-se a coincidência da agenda IUS para a internacionalização com a dos organismos internacionais que apontam no mesmo sentido de 113 intercâmbio, projetos de pesquisa em parceria, realização de fóruns e debates e intercâmbio de professores e alunos, bem como a formação de redes tecnológicas capazes de impulsionar a aglutinação das instituições envolvidas no processo. Por fim, no documento de Brasília, os participantes tomam a decisão formal de fundação da Rede IUS nestes termos: Decidimos formar a ‘Associação Salesiana de Universidades – ASU’ e assumimos a tarefa de concretizá-la. Estamos conscientes que o nome de universidade deve entender-se analogamente, incorporando, além das universidades, institutos universitários e institutos superiores de educação. Evidentemente se deve informar ao Conselho Geral da Congregação e pedir-lhe a aprovação da fundação. Os 18 institutos presentes são considerados como sócios fundadores. O título escolhido com 20 votos sobre dos é traduzível como tal em várias línguas como Associação Salesiana de Universidades. Constituiremos uma pequena comissão para elaborar os estatutos e levar adiante concretamente a associação. (IUS, 1995, p. 52). Cabe frisar que apesar do Encontro de Brasília corroborar formalmente a criação da Rede então denominada Associação Salesiana de Universidades (ASU), tal ato não se consubstancia na prática, pois não são elaborados os estatutos, não há registro de aprovação do Conselho Geral da Congregação para tal ato e as iniciativas que iriam dar corpo à formação da Rede ASU não acontecem também: não ocorre o intercâmbio de professores e alunos, de publicações e projetos de pesquisa nem se realizam os seminários internacionais previstos. A vontade dos participantes nesse encontro perde-se no tempo, ficando esquecida, apesar da lucidez de suas análises, projeções e decisões. Nem mesmo acontece a formação de um ideário comum de políticas e concepções de educação superior a ser partilhado por todos os membros do grupo. A Congregação não dá continuidade imediata a esse processo. Somente dois anos mais tarde é que a Congregação reabre esse assunto em sua agenda de governo e retoma o processo de constituição da Rede e busca a sua consubstanciação. Não obstante a descontinuidade desse processo, o que os participantes do Encontro de Brasília constroem em termos de internacionalização é retomado integralmente e aprofundado nas Assembléias das IUS que se iniciam a partir do novo processo instaurado em 1997. Pode-se perguntar o porquê desse fato. Procuraram-se registros documentais que pudessem elucidar uma resposta, porém eles não existem ou não foram disponibilizados. Talvez uma das razões seja que não foi constituída, nesse período, uma estrutura específica para dinamizar e liderar a execução das decisões. 114 3.3 A internacionalização e a identidade no Documento “Políticas para as IUS” O ponto de partida para a construção do documento “Políticas para a Presença Salesiana na Educação Superior” foram as orientações emanadas do Programa Comum I que já previa a elaboração dessas políticas como imprescindíveis para a realização de uma nova fase para as IUS e também como suporte para atuação em rede. Tendo como referência essas orientações, procedeu-se à consulta de 33 especialistas internos e consultores externos ligados à Congregação, às IUS e outras instituições da qual resultou o instrumento de trabalho “Política universitaria. Contributi per la riflessine (abril-junho 2001)” apresentado à análise e contribuição dos participantes do III Encontro das IUS, dado em Roma em 2001. Os dirigentes presentes nesse Encontro apresentaram contribuições, críticas e alterações ao instrumento de trabalho. Posteriormente construiu-se um “índice detalhado para um hipotético documento de políticas” (Políticas, 2003, p. 23) o qual foi debatido, analisado e recebeu contribuições escritas na Conferência IUS 2001 da Ásia, realizada em Hyderabad, e da América, Campo Grande. A Europa participou por meio de consultas individuais. Surgiu a primeira redação do texto em julho de 2002. Houve, a seguir, última consulta às IUS, aos inspetores e conselhos inspetoriais e em novembro de 2002 foi elaborada a segunda redação do texto que em dezembro foi apresentado ao Reitor Mor e ao Conselho Geral, vindo a ser aprovado em 7 de janeiro de 2003 juntamente com o documento Identidade. Transparece em seu processo de construção o caráter coletivo do documento, entendido como resultado de colaboração entre as IUS e as instâncias administrativas da Congregação e indica a concretização do terceiro objetivo explicitado na Carta do Reitormor Pe. Juan Edmundo Vecchi de 1997 que desencadeou o processo de construção da Rede IUS: dar orientações operativas gerais para o futuro próximo das IUS (Políticas, 2003, p. 10). As Políticas, juntamente com o Diagnóstico e o documento Identidade constituem o Marco Referencial da Rede IUS. Explicitam, ainda, o consenso das IUS sobre a concepção e os projetos para a atividade da Congregação na educação superior. No plano das políticas a serem seguidas, destaca-se a clara orientação para que as IUS “construam seus programas e eixos estratégicos e operacionais de forma conjunta” (Políticas, 2003, p. 3), traduzidos em programas comuns de atividades e planejamentos. Assim estão sendo constituídos programas comuns voltados para a formação de recursos 115 humanos, a constituição operacional da rede internacional IUS e o planejamento institucional. Analisar-se-á esses aspectos no Plano Comum II que prevê ações voltadas para cada um desses itens. Percebe-se que a internacionalização da Rede IUS inicia-se pela constituição de um projeto de gestão comum, de caráter transnacional, pois pretende com um projeto de Identidade, de Políticas e, mais tarde, de Planos Comuns, estabelecer um todo homogêneo no sentido de concepção de educação superior, de afirmação de identidade confessional e de práticas de gestão. A internacionalização transparece, portanto, num projeto transnacional de educação superior que tem como metas assegurar a identidade e a sustentabilidade do projeto acadêmico e dos recursos financeiros: Com estas políticas pretende-se continuar o caminho empreendido no período 1998-2002 e dar sólidos fundamentos à presença salesiana atual na educação superior, de modo que os centros já existentes cresçam em qualidade e se desenvolvam ou outros novos sejam criados no futuro, de acordo com uma identidade própria de instituições universitárias, de inspiração cristã e caráter católico, e de índole salesiana (POLÍTICAS, 2003, p. 5). Com essa afirmação compreende-se que as políticas construídas pretendem afirmar a Identidade das IUS fundamentando sua qualidade institucional acadêmica e a sua identidade confessional católica e salesiana. Essa perspectiva está em consonância com a hipótese de que a Rede pretende consolidar a presença da Congregação na educação superior. Percebe-se também nessa afirmação o embricamento entre gestão, identidade e a própria construção da Rede IUS. Essas políticas pretendem também pavimentar o caminho de construção da Rede, atendendo à vontade anterior dos participantes do Encontro de Brasília, cumprindo, assim, o papel de guia do conjunto das IUS. Nesse sentido afirma o documento Políticas: As políticas aqui delineadas entendem guiar o conjunto das instituições de educação superior promovidas pela Congregação Salesiana, sem, contudo, eximir cada uma das IUS da responsabilidade de definir as suas precisas políticas acadêmicas, que serão depois agregadas aos documentos institucionais pertinentes. (POLÍTICAS, 2003, p. 10). Nota-se que a pretensão das “Políticas” é de ser um guia de cunho geral, oferecendo um horizonte maior de referência e de identidade, mas não tolhe as 116 características regionais dos contextos onde estão inseridas as IUS e, portanto, suas vicissitudes particulares. Porém essas particularidades não compõem, obviamente, a preocupação central do documento Políticas e da Rede. Ao contrário, seu objetivo focal é o estabelecimento de uma identidade comum forte partilhada por todas as IUS na pretensão de se superar a realidade dispare inicial levantada nos documentos Diagnóstico e Relatório 2001. As políticas erigidas pretendem levar as IUS dessa situação inicial aferida em 2001 para uma situação mais qualificada. Especialmente pretende ser uma ponte entre essa realidade e o ideal projetado no documento Identidade. É o que se encontra explicitado na seguinte afirmação: A escolha destas políticas foi feita tendo-se por base dois pontos de referência fundamentais: por um lado, a situação atual das IUS, refletida no Relatório IUS 2001 e, sobretudo, no Diagnóstico; por outro lado, o ideal traçado no documento Identidade das IUS. A implementação destas políticas deveria levar a um rigoroso processo de crescente qualificação das IUS, passando da situação atual existente a outra mais ideal. (POLÍTICAS, 2003, p. 11). Por isso, pode-se concluir que as Políticas acrescentam à identidade das IUS um elemento novo até então: pretendem ser uma afirmação de que a identidade dessas instituições é caracterizada também pela inerência de seu trabalho em Rede que engloba o compartilhamento comum da concepção de educação superior. Pretendem, portanto atuar num mesmo âmbito de compreensão do que seja a educação superior e também partilhar um horizonte comum de metas, projetos e ações. Afirmam-se como um conjunto que age em bloco para a consecução de seu objetivo maior: afirmar a índole católica e salesiana e garantir relevância na educação superior na esfera internacional. Assim o processo de internacionalização visa consolidar a identidade das IUS e sua qualificação. Nesse processo há um nexo entre identidade, internacionalização e qualidade institucional. Observando-se mais de perto a questão da qualidade é ligada ao processo de gestão. Esse elemento percorre todo o movimento de constituição da Rede IUS perfazendo seus diversos aspectos e está voltado também para a afirmação da identidade uma vez que a internacionalização corrobora em Programas, Planejamentos e Políticas comuns que estão voltados para a melhoria institucional do ponto de vista da gestão a fim de ser afirmar a identidade: 117 Essa percepção da Rede IUS sobre o papel estratégico de um projeto internacional de gestão está em consonância com Franco (2006) que reconhece a importância da profissionalização da gestão, a existência de um “core” gerencial forte e competente como uma condição crucial para a sustentabilidade institucional dentro de uma perspectiva internacional no atual processo de mundialização. Cada IUS seja dotada dos instrumentos e dos procedimentos que garantam a orientação, a direção, a gestão e o funcionamento de acordo com a identidade e com as políticas estabelecidas para que tais orientações permeiem a vida ordinária da instituição. Os instrumentos e os procedimentos são os seguintes: a) Para a orientação geral da instituição, atente-se para o Projeto institucional, que tem a função de verdadeira magna charta ou constituição que orienta de maneira integral e prática a vida da instituição. Por isso, ele explicita a sua missão e visão – ou seja, a sua identidade universitária, católica e salesiana, e a sua intencionalidade edcuativo-pastoral – a fim de dar-lhe cumprimento, em um cenário concreto, local e universal ao mesmo tempo, no quadro destas políticas ou daquelas que a Congregação Salesiana possa estabelecer no futuro; concretiza as áreas científicas nas quais a instituição concentra seu trabalho e os critérios pelos quais se orientará diante de hipotéticas futuras ampliações ou reduções de campo; os cursos que oferece e os respectivos currículos de estudo; os programas das disciplinas de acordo com a ciência correspondente e congruentes com a identidade própria da instituição; a filosofia da educação e do ensino que a instituição propõe para a pesquisa, a docência e os serviços de extensão; o estilo de vida universitária e as características pelas quais a instituição quer diferenciarse de outras instituições similares; o corpus normativo (estatutos, regulamentos...) e a organização. (POLÍTICAS, 2003, p. 18-19). Pelo descrito acima esse Plano pouco difere do que se entende por Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) no Brasil. Considerando-se que se trata de um instrumento do Ministério da Educação que executa sua política em consonância com a concepção do Estado como ente avaliador e regulador, pode-se inferir que esse posicionamento da Rede IUS pouco acrescenta de novidade em termos de garantia de identidade e de competência gerencial efetiva. Exprime também a cooptação da Rede IUS diante do ideário das agências internacionais que estão moldando a formação da nova cultura organizacional e gerencial da educação superior que enfatiza os resultados para atender os interesses do processo de globalização. Pode-se afirmar que, sob esse aspecto, a Rede IUS traz uma forte influência desses organismos internacionais em termos de gestão da educação superior. Isso ocorre não somente no caso do Brasil e das IUS, mas constitui uma tendência mundial para a educação superior, como afirma DIAS Sobrinho: 118 O controle e a regulação, chamados genericamente de avaliação, porém, quase sempre indevidamente, são processos centrais das reformas do Estado e da Educação Superior [...] Um rápido balanço das estratégias adotadas neste campo pela Inglaterra pode ajudar, como um caso exemplar, a ampliar a compreensão das reformas da educação superior que estão se globalizando. As políticas de reformas praticadas na Inglaterra são emblemáticas para a compreensão dos novos sentidos e papéis que a educação superior vem assumindo por toda a parte. Esse é um dos países em que mais fortemente se deram as reformas e transformações na educação superior nos dois últimos decênios e aquelas de mais largo e profundo impacto. Essas transformações foram importantes não somente no nível interno, mas também se tornaram exemplares para as reformas que se encetaram em diversos países de distintos continentes e guardam estreitas semelhanças com as teses e práticas de organismos multilaterais, como Banco Mundial e a OCDE (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 175-176). O desdobramento do Projeto Institucional em planos estratégicos e operacionais corrobora essa repercussão da cultura organizacional preconizada pelas agências sobre a Rede IUS: Para o desenvolvimento do Projeto institucional, sirvam-se as IUS: do plano estratégico e tático, o qual favorece a progressiva realização global, de maneira ordenada e sistemática, do Projeto institucional durante um período de tempo determinado (vários anos); estabelece as metas e objetivos a serem progressivamente alcançados, as opções estratégicas e as linhas de ação; prevê os recursos humanos e financeiros necessários, os tempos para cada linha de ação e a forma de acompanhamento e de avaliação; e do plano plano operacional, o qual auxilia na progressiva realização do plano estratégico e tático por períodos anuais; estabelece os objetivos gerais e específicos a serem alcançados, cada uma das operações (a seqüência de atividades que as compõem, o momento e a duração) necessárias para alcançar os objetivos, o modo de realizar as ações, os recursos humanos necessários e os responsáveis, os orçamentos e a disponibilidade financeira ou a fonte segura de tais fundos. (POLÍTICAS, 2003, p. 19). Não obstante, o Projeto Institucional sistematiza a gestão das IUS proporcionando uma realidade diferente da anterior à implantação da Rede, estabelecendo uma racionalidade administrativa até então desconhecida. Vale ressaltar que o Projeto Institucional denominado pela Rede IUS como Carta de Navegação, para poder ser concluído pelas IUS levou um prazo superior ao estabelecido pelo Programa Comum II, traduzindo assim a dificuldade das instituições em construir esse instrumento de gestão apesar das orientações emanadas da coordenação central da Rede, o que também 119 demonstra certa resistência ao processo de mudança e consolidação de uma nova cultura organizacional. Outro aspecto em que a Rede alcança a implantação de um novo padrão de procedimentos e de qualidade institucional é o do credenciamento. Antes da implantação da Rede IUS esse aspecto jurídico já importante e que adquire maior relevância no contexto da busca de reconhecimento internacional das IUS era descuidado por muitas instituições. Para o caso das IUS no Brasil esse fato nos causa estranheza uma vez que a regulação, acompanhamento e avaliação das IES brasileiras é um fato consolidado. Entretanto, em seu conjunto, não é o que se observa entre as IUS. Entende-se por que a Rede adota entre as suas políticas a busca do credenciamento de suas instituições diante das agências nacionais nos diversos países em que se localizam. Aproveitando-se dessa situação diferenciada em relação ao credenciamento, a Rede acaba por definir metas estabelecendo que as IUS busquem credenciamento nos órgãos reguladores nacionais e, no caso das que já o possuem, procurem credenciar-se nas agências internacionais ou comitês e grupos de pesquisa capazes de conferir projeção internacional. Dessa maneira compreende-se a afirmação da Rede em suas Políticas: [...] credenciamento, que é um reconhecimento público da instituição segundo os padrões de qualidade elaborados por um organismo externo de reconhecido prestígio nacional e/ou internacional. Por meio dele se busca a excelência acadêmica, assegurando níveis de qualidade; além de conferir credibilidade e prestígio, o credenciamento serve para dar tranqüilidade à instituição quanto às próprias opções e para orientar na tomada de decisões a respeito de novas metas. (POLÍTICAS, 2003, p. 20). A Rede assimila, dessa forma, a tendência avaliativa e de ranqueamento e controle sobre a educação superior, característica do processo global para a educação. A assunção do conceito de credenciamento ligado à busca da qualidade e à avaliação insere, portanto, a Rede IUS no movimento mais amplo das políticas que regem a educação superior. Essas políticas voltadas para a qualidade são consubstanciadas em agências internacionais de avaliação e credenciamento. Muitas dessas agências agem em rede para garantir padrões e procedimentos para a avaliação da qualidade, credenciamento e reconhecimento de cursos e diplomas bem como para possibilitar a mobilidade de alunos e aproveitamento internacional de créditos. É o caso da Rede Internacional de Agências para a Garantia de qualidade na Educação Superior (INQAAHE); a Associação Universitária Internacional 120 iberoamericana de Pós-graduação (AUIP). Essas duas agências, mais a UNESCO, formam o consórcio Registro Internacional de Qualidade (WQR). Acrescente-se as Agências de Acreditação e de Garantia da Qualidade (QAAS), reconhecidas internacionalmente com aval do consórcio WQR (MOROSINI, 206, p. 113-114). Há outras agências internacionais, ligadas geralmente aos blocos geopolíticos e formadas pela rede das agências avaliadoras dos países membros. A citação destas contribui para ilustrar o contexto mais amplo em que se insere a política da Rede IUS nesse ponto do credenciamento e da qualidade. Nota-se, nesse processo, convergência entre qualidade, avaliação e credenciamento em termos de objetivos e procedimentos (MOROSINI 2006, p. 127). Além do credenciamento, a preocupação com a qualidade se traduzirá em outra política: a cessão do processo de expansão. Como analisado, no capítulo primeiro desta dissertação, as IUS beneficiaram-se e acompanharam o processo de expansão privada da educação superior como conseqüência da demanda mundial por educação. Porém, ao perceberem sua rápida expansão a reação é de se retirar desse processo expansionista e passar a dar solidez para as suas instituições formando a rede internacional das IUS. Esse passa a ser o posicionamento das IUS, pondo freio ao movimento expansionista no interior da Congregação. Observa-se no documento Políticas esse posicionamento dos dirigentes das IUS: No sexênio 2002-2008, inspetorias e IUS concentrem-se preferencialmente em consolidar e fortalecer a qualidade das instituições já existentes antes de fazê-las crescer aceleradamente ou de empenhar-se na criação e gestão de outras novas (POLÍTICAS, 2003, p. 24). Pretende-se, portanto, iniciar outro processo que se distancie do movimento de formação de um capitalismo acadêmico caracterizado pela exploração econômica em escala multinacional dos serviços educacionais, com conseqüente acúmulo de capital e adoção de estratégias empresariais e financeiras tais como a criação de sociedades anônimas e negociação de ativos em mercados de capitais, instituindo-se grandes grupos empresariais e financeiros que atuam na educação superior comercializando serviços. Ao mesmo tempo pretende instaurar um processo que assegure, no interior dessa tendência mundial, sustentabilidade da proposta da Congregação para a educação superior por meio do fortalecimento institucional e da qualidade acadêmica. Assim o processo de construção da Rede aponta desde já para uma proposta alternativa ao simples movimento 121 de expansão e privatização da educação superior, ao mesmo tempo em que assume conceitos como qualidade, gestão e internacionalização. Resta saber que acepções esses termos assumirão ao longo do processo de constituição da Rede IUS. Morosini contextualiza a internacionalização identificando a formulação de políticas públicas voltadas para a transnacionalização da educação superior ligadas ao Estado concebido como “avaliativo/regulador/supervisor”. Relaciona este movimento com a expansão da educação superior em todos os países e à tentativa de padronização internacional da educação superior (MOROSINI, 2006 p. 113). A função avaliativa do Estado e seu papel regulador assumem preponderância no processo de internacionalização uma vez que garante a padronização e ranqueamento por meio de sistemas que aferem a qualidade. No âmbito internacional essa passa a ser a tendência determinante na educação superior. As IUS acabam assumindo essa tendência procurando criar para si, a partir do modelo das grandes agências reguladoras internacionais que influenciam e determinam as políticas de avaliação dos órgãos nacionais, padrões de qualidade e sistemas de avaliação e gestão inspirados nesse modelo do Estado regulador/avaliador. Nesse contexto as IUS concebem a cultura da avaliação como estratégica para o desenvolvimento institucional: Para o aperfeiçoamento constante da instituição, utilizem-se as IUS dos seguintes procedimentos: a avaliação institucional, a qual consiste na análise objetiva, metódica e contínua do desenvolvimento dos projetos e dos planos, – dando especial ênfase aos processos, contribuições e resultados etc. –, mediante o uso de dados e opiniões relacionados a critérios previamente definidos; envolve toda a comunidade acadêmica; ajuda a acompanhar e a controlar a gestão da instituição e a tomar em tempo medidas de correção após a identificação dos pontos fortes e fracos, os riscos e as tendências que não conduzem à obtenção das finalidades e dos objetivos propostos. A auto-avaliação ou avaliação interna da instituição deve ser praxe ordinária das IUS. Ela se completa com a auditoria ou avaliação externa que também deve ser feita periodicamente nas IUS por organismos competentes com a participação da comunidade acadêmica. Além de uma segurança maior no andamento das instituições, essa dúplice praxe criará nas IUS uma benéfica “cultura da avaliação” fundada na co-responsabilidade e no profissionalismo de todos. (POLÍTICAS, 2003, p. 19-20). Observa-se, nessa afirmação da Rede IUS, uma gama de conceitos e práticas que se encontram delineados na nova política global para a educação superior baseada na racionalidade do capital que procura inserir na academia a cultura administrativa própria 122 das empresas. Alguns conceitos ilustram essa nova cultura: projetos, planos, processos, objetivos, resultados, controle, auditoria e profissionalismo. Nesse sentido, observa Dias Sobrinho: Dizendo ainda de outra maneira, o que está em jogo é a imposição de uma racionalidade instrumental à universidade, materializada na gestão empresarial e na ideologia da eficiência, competitividade e produtividade. A ideologia alimenta a crença de que uma instituição bem gerenciada de acordo com as exigências de mercado seria consequentemente uma instituição ajustada e de boa qualidade. A gestão empresarial combina-se com a concepção de universidade instrumental, ou seja, uma instituição entendida como função da economia [...] A idéia de eficiência e produtividade aqui se torna sinônimo da noção de qualidade. Segundo a concepção eficientista e produtivista, a qualidade da educação superior tem sua expressão mais exata e clara na quantificação e posterior classificação dos produtos finais (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 107). Tudo isso ligado à avaliação contínua e à cultura de avaliação. Um dos reflexos dessa cultura é a formulação de ranking internacional de universidades que procura classificar as melhores universidades do mundo. Morosini (2006) cita dois rankings: da revista “The Times” e da universidade chinesa “Shangai Jiao Tong University”. A Rede IUS não define em suas Políticas as acepções de avaliação que seguirá e também não define padrões que seguirá tanto na avaliação institucional interna como externa. Também não define quais órgãos serão encarregados da avaliação externa: se a Rede IUS terá uma equipe de avaliadores ou se simplesmente irá servir-se das avaliações já delimitadas pelos órgãos oficiais dos Estados em que estão inseridas. Entrementes, há uma coincidência de termos e conceitos que aproxima a visão da Rede IUS daquilo que vem sendo gestado nas agências multilaterais, nos acordos internacionais e nas políticas de avaliação assumidas nos Estados. É notória a coincidência com o sistema de avaliação do Brasil, por exemplo, que por sua vez, segue o que está estabelecido nos órgãos internacionais. A assimilação dessa concepção pela Rede IUS revela a influência das políticas globais. Ao mesmo tempo revela que a constituição da Rede IUS faz-se à sombra do pensamento hegemônico internacional para a educação superior que procura uma padronização das instituições e de procedimentos, especialmente em termos de gestão na qual tem papel preponderante a avaliação e o controle. É o que indica o fortalecimento das políticas de inspeção e regulação que regulam os processos de autorização, 123 acompanhamento e reconhecimento de cursos e instituições bem como a emissão de diplomas e títulos. Tudo isso para assegurar a formação profissional voltada para o mercado de trabalho, a eficiência das instituições e a garantia de um padrão globalizado, já que a economização da sociedade e da educação é transnacional: Como o mercado é globalizado, também na educação superior essas avaliações devem propiciar elementos objetivos de comparação nos níveis nacionais e transnacionais. Embora haja diferenças entre as perspectivas e os estágios de avaliação praticadas nos diversos países, parece correto indicar que, uma vez permitida e incentivada a abertura do sistema, em contrapartida se torna necessário pôr em prática um dispositivo de controle e fiscalização – pois é sobretudo a isso que se aplicam, na maioria dos casos, os sistemas de avaliação implementados pelos governos. Trata-se principalmente de controlar, pela avaliação, como está sendo exercida a responsabilidade de preparar profissionais para o mercado de trabalho, qual a dimensão quantitativa dessa formação em razão das necessidades do mercado... Além disso, trata-se cada vez mais de estabelecer os parâmetros e os indicadores comparativos da qualidade das instituições em uma dimensão transnacional, pois o mercado educacional tende crescentemente à globalização (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 186-187). A Rede IUS não se distancia dessa tendência e erige a Avaliação como um dos pilares pelo qual pretende dar solidez para suas instituições. Essa faceta indica que no seu processo de formação, a Rede IUS constrói-se num processo dialético com o contexto da globalização. Pode-se afirmar, portanto, que sua existência explica-se pela influência do processo de globalização, como resultado e reação dinâmica a esse. Morosini chama atenção para a complexidade de acepções presentes no conceito de internacionalização. Nele a autora pontua a dimensão internacional mais aplicada ao século XX e que se caracteriza por trocas institucionais particulares em âmbito internacional que podem ser classificadas como cooperação mútua; a educação internacional instituída nos Estados Unidos durante a guerra fria por razões políticas e de segurança; e a internacionalização da educação superior ligada à globalização e seus impactos sobre a educação superior (MOROSINI, 2006, p. 115). A Rede IUS acompanha esse movimento e utiliza-se do processo global de internacionalização com a pretensão de emergir como sujeito ativo no processo: A participação em redes de universidades significa, antes de tudo, a sinergia entre as IUS e sua consolidação como presença salesiana na educação superior, quer se trate de presença em nível mundial quer seja 124 limitada a áreas continentais ou regionais, lingüísticas ou de especialização científica. A participação, entretanto, deve estender-se a outras redes de universidades, privilegiando as universidades e/ou faculdades católicas e pontifícias (POLÍTICAS, 2003, p. 23). A Rede IUS é constituída como um sistema aberto que interage entre si, mediante as trocas institucionais e com os demais organismos e entes sociais. Ressalta-se nesse processo que sua finalidade é de afirmar a concepção de educação superior proclamada pela Rede: A articulação das IUS há de se basear, antes de tudo e fundamentalmente, em uma rede de relacionamentos, intercâmbios e colaborações que incluam tanto a reflexão e o aprofundamento de assuntos de interesse geral – v.g. a orientação e o modo prático de entender e conduzir a presença salesiana na educação superior –, quanto às relações de colaboração bilateral ou multilateral entre elas (POLÍTICAS, 2003, p. 24) Essa articulação ampla que se serve de intercâmbios, colaborações e compartilhamento de concepções e estratégicas vai tecendo a Rede IUS frente aos riscos que emergem do processo de globalização: a perda da identidade e da autonomia universitárias; o uso das energias da academia a serviço do mercado; a submissão da cooperação intelectual ao lucro empresarial; a formação do “capitalismo acadêmico, que identifica uma tendência global de privatização da educação superior [...] e a dominação de corporações e nações ricas” (MOR0SINI, 2006, p. 116-117). A Rede pretende, portanto, estabelecer um padrão diverso de educação superior e fortalecer a competitividade das IUS no contexto de mundialização do capital. Pode-se afirmar que a formação da Rede IUS ocorre em conseqüência e como resposta ao processo de globalização que traz, por sua vez, a internacionalização da educação superior. É uma mudança na forma da Congregação Salesiana organizar e conceber a sua atuação na educação superior. Essa mudança se dá no âmbito de um processo dialético e visa dar continuidade institucional às IUS por meio da formação da Rede. Trata-se de um processo dinâmico que ora assimila padrões, conceitos e comportamentos advindos da globalização ora procurando afirmar concepções próprias e, assim, consolidar a identidade católica salesiana e garantir a sobrevivência da proposta, estabelecendo-se como interlocutor ativo no processo de globalização (MOROSINI, 2006, 125 p. 105). A percepção das IUS nesse processo é de que a formação da Rede internacional soma as forças individuais e pode constituir um caminho eficaz de auto-afirmação. A tentativa da Rede é de oferecer alternativa de concepção da educação superior que seja diversa da concepção de bem econômico e de mercado a ser explorado, favoreça a qualificação da juventude para sua inserção no mercado de trabalho e proporcione mudanças na sociedade. Para isso a Rede precisará apresentar uma concepção de educação superior que não seja apenas atendimento das necessidades do capital, mesmo que, em dado momento, tenha que preparar os jovens para aturarem no mercado de trabalho, assim as IUS concebem-se como: [...] uma contribuição salesiana à formação qualificada dos jovens para o acesso ao mercado do trabalho e para um seu responsável empenho social, de modo que tal empenho ultrapasse as exigências e as necessidades do mercado, produzindo mudanças e novos desenvolvimentos na mesma sociedade. (POLÍTICAS, 2003, p. 4). Verifica-se que a Rede IUS estabelece uma dialética com a globalização e, de certa forma, é contraditório uma vez que assume muitas de suas tendências e políticas, no caso, o aspecto imprescindível da educação superior como preparação para o mercado de trabalho; e rejeita ou tenta superar outros aspectos: no caso procura conceber a educação superior como agente de mudança dos processos sociais e crítica do próprio mercado, não pactuando com subserviência da educação às exigências e interesses do mercado, concebendo-a como um bem social. Porém, os aspectos da globalização e suas políticas para a educação são mais assimilados e estruturados no interior das IUS, como os referenciais de avaliação utilizados pela Rede; o atendimento de alunos via mensalidades, que demonstra pactuação prática com a concepção da educação como um serviço a ser prestado na esfera privada; a expansão das instituições salesianas como resultado do incremento da privatização da educação superior como via indicada aos países periféricos para atenderem à demanda por educação superior sem onerar os cofres do Estado. As tentativas de afastamento desse cenário são muito tênues, ficando mais nos ideais proclamados do que em ações práticas, como, por exemplo, a proposta de se atender as classes populares que demandam formação superior; a democratização da educação superior; a concepção de conhecimento mais amplo baseado em ensino, pesquisa e extensão. As IUS continuam preocupadas em garantir os tradicionais valores católicos na 126 educação e formação das novas gerações, sendo um espaço privilegiado de formação de opinião, disseminando na sociedade os ideais católicos. O foco da internacionalização, como processo histórico-social, é composto pela preocupação com o ensino que desemboca na construção de currículos internacionais de aprendizagem com destaque para a necessidade da experiência internacional do aluno; o domínio da língua inglesa e o intercâmbio internacional de professores e alunos. Outro vértice importante neste foco é o método de aprendizagem não mais centrado no professor, mas no aluno pesquisador, na interação desse com o mundo e o destaque para o “ensino e aprendizagem em rede” (MOROSINI, 2006, p. 119). A tecnologia da informação, especialmente o uso da internet, tem papel central para a internacionalização e a formação “[...] das comunidades de estudantes de ensino superior, ou seja, a formação de redes” (MOROSINI, 2006, p. 120). As IUS percebem a importância desse uso de tecnologia, elegendo-a como ferramenta necessária para alcançar a formação da rede e permitir a fluência de seus trabalhos e projetos. Afirmam também a importância cultural das redes tecnológicas ao mesmo tempo em que vêem a necessidade de uma postura crítica positiva no seu uso e no seu significado: O trabalho com redes tecnológicas de informação e comunicação exige das IUS: a dotação estendida a cada uma das instituições de tais redes, a sua utilização como fato normal para o estudo, a docência, os serviços e a comunicação interna e externa, a pesquisa e o estímulo para o ensino virtual à distância, ao menos como alternativa complementar do ensino presencial. E tudo isso para penetrar criticamente no componente cultural desse fenômeno contemporâneo, fenômeno que se torna imprescindível compreender e dele se apossar especialmente por parte de instituições com finalidade e perspectivas educativas (POLÍTICAS, 2003, p. 23-24). Porém, é preciso ressaltar que a internacionalização não se restringe a essas dimensões de ensino e de tecnologia, mas atinge as universidades como um todo e aponta, como se viu anteriormente, para uma vasta complexidade de conceitos, formas e acepções que envolvem políticas de organismos multilaterais e políticas nacionais ligadas ao processo de mundialização do capital e a criação de um “capital acadêmico” (MOROSINI, 2006, p. 121). Dentre essas políticas destaca-se a busca de qualidade internacional, seja de cursos e programas, seja de instituições, sendo que o modelo que mais se coaduna com essa perspectiva da qualidade é o da universidade empreendedora e sustentável (MOROSINI, 2006, p. 105). A formação da Rede IUS procura atender esse princípio e 127 aproximar as IUS desse novo paradigma internacional para a educação superior, especialmente inserindo suas instituições no padrão das tecnologias de informação e comunicação. Por isso Rede deseja que “[...] as IUS trabalhem sinergicamente em rede, seja participando de redes de universidades seja utilizando-se de redes tecnológicas de informação e comunicação” (POLÍTICAS, 2003, p. 22). Retomando as questões dos riscos advindos do processo de globalização para a educação superior, o principal deles advém da “determinação da educação superior como um bem comercial regulamentado pela OMC, sobrepondo-se à concepção de educação como bem público componente fundante do Estado-nacão” (MOROSINI, 2006, p. 122). Essa disputa em torno da internacionalização da educação superior deve ser considerada também sob o panorama maior do novo paradigma sócio-cultural: as sociedades tecnologicamente avançadas nas quais o conhecimento é o determinante para as forças produtivas e define, portanto, o sistema econômico vigente, caracterizado pela mobilidade, adaptabilidade e criatividade dos processos; formação de redes produtivas internacionais suportadas por recursos tecnológicos avançados que permitem interação e distribuição de informações e produtos. Nesse contexto, onde o conhecimento possui valor agregado no conjunto do sistema de produção, a educação superior, ainda que construída em instituições de diversos perfis, detém uma centralidade visível e, por isso, a disputa em torno de sua hegemonia e da definição de seus padrões sendo que as sociedades mais avançadas tecnologicamente têm notável preponderância na determinação de concepções. Essa tendência é, portanto, reflexo sócio-cultural do movimento de mundialização do capital que traz, junto consigo, os paradigmas dos países capitalistas hegemônicos. Nessa vertente cultural pode-se caracterizar o sistema social ligado à globalização como heterogêneo do ponto de vista cultural e, simultaneamente, como transnacional e universal. No plano político, o Estado apresenta-se como um espaço supranacional, sendo as esferas políticas transnacionais, isto é, as forças internacionais disputam e moldam os antigos Estados Nacionais, definindo a agenda política, especialmente nos países periféricos: A ciência e a tecnologia passaram a dar condições aos Estados desenvolvidos de globalizarem a economia, interferindo diretamente no mecanismo econômico dos Estados Periféricos, que foram alterando de 128 forma substancial seu cotidiano “nacional”, para se adaptarem às demandas dos mandatários do globo (SANFELICE, 2008, p. 71). Esse novo Estado não possui controle da atividade econômica e persegue os mesmos padrões da administração privada, seguindo modelos de eficiência e qualidade, o que termina sendo imposto às universidades: Em avaliação, há que se pensar em duas lógicas contraditórias, ainda que muitas vezes combinem alguns de seus aspectos: a lógica dos interesses do mercado e a lógica dos interesses da sociedade. De um lado, a ideologia da universidade para o mercado, uma organização em função da economia. De acordo com este paradigma, a avaliação se materializa como instrumento de controle sobre os indivíduos, as instituições e o sistema e opera, como se fossem valores primordiais, a eficiência, o lucro, a produtividade, a competitividade, a operacionalidade, a racionalidade instrumental (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 109). Em consequência da valorização econômica e social do conhecimento, já que se trata de uma sociedade definida por conceitos de tecnologia, competência e eficiência, as melhores oportunidades de emprego e salários estarão com os sujeitos que detiverem maior complexidade de formação, ou seja, títulos acadêmicos de maior nível. Essa tendência acaba influenciando um novo relacionamento entre o poder estatal e a educação superior: por um lado o Estado retira-se do financiamento da educação superior e, por outro, influenciado pelo parâmetro da qualidade e eficiência, impõe uma intensa cultura de avaliação, com a qual pretende garantir que as instituições ofereçam resultados capazes de impactar positivamente numa sociedade ávida por mão de obra qualificada. Nessa perspectiva a educação superior assume papel vital para a democratização da sociedade uma vez que é o nível de conhecimento que determina o papel do cidadão no conjunto social. Por isso a elitização do acesso à educação superior determina uma sociedade excludente enquanto que amplo acesso define alta perspectiva de democratização. Porém, não se pode deixar de mencionar as tensões que se acumulam ao redor dessa necessidade de democratização do acesso: a educação superior, no contexto da globalização e mundialização do capital, acompanha essa tendência por meio da internacionalização de seus padrões, mas sofre pressão de grupos que desejam explorar os seus serviços de forma lucrativa, instaurando uma tensão que aponta em sentido contrário à democratização e afirmação da educação como um direito humano fundamental. Essa tensão se agrava com a desobrigação do Estado em financiar esse nível de educação, 129 deteriorando as condições de viabilidade da democratização, especialmente nos países periféricos em que a maioria da população não consegue autofinanciar-se para a obtenção desse grau de ensino. Por isso identificam-se duas tendências opostas quando a internacionalização da educação superior é discutida no âmbito dos organismos multilaterais ou nos blocos internacionais regionais: uma em que prevalece os interesses econômicos dos países centrais na forma de privatização dos serviços educacionais ou precarização desses serviços por parte dos países periféricos de modo que os centrais sejam os provedores internacionais desses serviços, angariando lucros por eles. Já outra tendência aponta para a necessidade da consolidação da educação superior em todas as sociedades já que é uma força que contribui para a inserção social e econômica. A Congregação Salesiana apresenta percepção da controvérsia internacional sobre educação superior e das tensões que em torno dela se aglutinam e pretendem que suas instituições estejam articuladas para não serem destruídas pelo processo de globalização e para não assumirem aleatoriamente os seus padrões, mas sejam capazes de se erigir como um player internacional nesse processo. Por isso o posicionamento na formação da Rede internacional: “O processo iniciado pelas IUS no período 1998-2002 deve cristalizar-se em fórmulas precisas de coordenação institucional e de articulação das relações e colaboração entre si” (POLÍTICAS, 2003, p. 24). A articulação institucional entre as IUS pressupõe múltiplas perspectivas diante dos contextos nacionais e internacionais ao mesmo tempo em que aponta para uma convergência de tendências e similitudes no quadro das orientações para a educação superior, compondo uma complexidade inerente seja ao momento cultural seja à própria educação superior. Como parte dessa complexidade, há que se considerar as particularidades e as tendências regionais e seus atores que, na contramão da convergência das tendências, constituem um outro pólo de forças, indicando divergências, interesses e necessidades que precisam ser atendidas ( DIAS SOBRINHO, 2003, p 162). Nesse sentido, os países vêm desenvolvendo, acompanhando os termos de produtividade, competitividade e eficiência na gestão o conceito chamado de pertinência para as instituições de educação superior que significa a correspondência entre a filosofia institucional, as demandas da sociedade e o contexto de aceleradas mudanças em que está inserida a educação superior (IESALC, 2007, p. 12). Pode-se verificar que as políticas 130 assumem essa complexidade exigida da educação superior para poder responder de maneira significativa aos desafios propostos pela sociedade: Para a sua orientação, desenvolvimento, avaliação permanente e consolidação, as IUS deverão ter os seguintes pontos de referência: a) de uma ótica acadêmica: [...] uma grande atenção diante da evolução da mesma instituição universitária, marcada por novos fatores condicionantes, quais sejam: o número maciço de estudantes, os relacionamentos democráticos, a interdisciplinaridade, as novas tecnologias, o rigor na organização e na utilização dos recursos, a globalização nas perspectivas, nos interesses e nos relacionamentos, nos efeitos nocivos e excludentes para os mais desfavorecidos, sem esquecer o lugar onde os centros estão implantados e o serviço local que deveria ser irrenunciável para toda IUS. De uma ótica social: necessidades locais da sociedade em que cada IUS está inserida, especialmente as que mais dizem respeito à missão salesiana em favor das classes populares (POLÍTICAS, 2003, p. 13). Por isso pode-se afirmar que no processo de internacionalização, assim como na afirmação da identidade, as IUS almejam apresentar uma alternativa para a formação de um mercado educacional e para a formação pura e simples de um capitalismo acadêmico decorrente da exploração da educação superior como um bem de serviço. Sua concepção indica oposição a esse movimento e a formação da Rede se dá como resistência e enfrentamento ao mesmo tempo em que buscam assegurar a continuidade da proposta salesiana de educação superior. Entretanto, novamente a Rede se depara com a dificuldade das fontes de recursos para que suas afirmações encontrem plena realização. A própria Rede, nesse aspecto, afirma que cada uma das instituições deve autofinanciar-se, o que significa apoiar-se ainda nas mensalidades dos alunos. Esse aspecto problemático é assim expresso pela Rede: O princípio do autofinanciamento de cada centro terá por base principalmente as entradas provenientes dos alunos, sem esquecer a opção preferencial, de serviços a terceiros e de contribuições advindas por diversos títulos do Estado e de entidades estatais e/ou particulares (POLÍTICAS, 2003, p. 22). Rede apresenta tentativas de estabelecer políticas de busca de novas fontes recursos para financiar as funções universitárias, especialmente pesquisa e extensão. Não obstante essa intenção, a Rede não consegue se desvencilhar das mensalidades como fonte principal de recursos e essa questão não foi ainda enfrentada suficientemente, explicitando 131 uma contradição que percorre todo o processo da Rede. Pode-se afirmar que a Rede estabelece políticas de gestão e define a identidade de forma sistemática, porém não logra resolver, ao menos por enquanto, as fontes de recursos que lhe permitam atuar decisivamente para a democratização da educação superior, apesar de sua decisiva contribuição em prol de uma educação para todos. Vale trazer à tona que essa problemática tem reflexo não apenas sobre a democratização mas também sobre a continuidade das IUS: elas precisam continuar a captar alunos que tenham efetiva condições de pagamento das mensalidades afim de se viabilizar em seu projeto de educação superior. Trata-se, portanto, de uma posição muito frágil levando-se em consideração os contextos em que se encontram e, principalmente, a decisão de não formar um conglomerado capitalista e nem agir como tal, o que impede ganhos de escala, atuação em mercados de capitais e ganho de competitividade na concorrência global. Por outro lado as IUS ainda não conseguiram afirmar-se como uma instituição internacional de cunho filantrópico capaz de captar recursos e doações e também não são reconhecidas como uma competência internacional seja em áreas de pesquisa seja de serviços a tal ponto que ganhem recursos com a execução desses serviços. Essa é uma vontade ainda não plenamente realizada. Em todo caso, a Rede expressa assim sua intenção de mudança nesse aspecto: Com fins específicos de formação do pessoal, pesquisa, serviços de extensão universitária, operações estratégicas conjuntas, bolsas de estudo etc., é necessário proceder ativamente à busca de auxílios econômicos, a partir dos quais, se for necessário, se poderia criar um fundo econômico para as IUS. Para tudo isso será conveniente utilizar os procedimentos mais adequados, respeitando sempre as responsabilidades já estabelecidas na Congregação Salesiana – tanto em nível inspetorial quanto central – para a busca, gestão e decisão sobre os fundos. Tratando-se de fundraising ou de outras vias, é aconselhável servir-se de estruturas da Congregação já em funcionamento, garantindo nelas o serviço especializado de informação e orientação no campo da educação superior (POLÍTICAS, 2003, p. 23). Diante da necessidade de sustentação de condições favoráveis ao autofinanciamento, a decisão anterior da Rede IUS em não dar continuidade ao ciclo de expansão apresenta-se, de certa forma, negativo. É claro que da perspectiva econômica é arriscado expandir instituições sem identidade sólida, sem uma cultura de planejamento, mecanismos de controle e avaliação e sistemas eficientes e rápidos de gestão. Porém, em 132 termos de competitividade, a escala é muito importante, tanto quanto uma cultura empreendedora sustentada por uma administração completa. Na tentativa de se consolidar em termos de identidade, políticas e gestão, a Rede IUS não tem considerado a participação no mercado como essencial. Ao contrário, a Rede pretende deliberadamente que novas instituições sejam criadas dentro de um complexo projeto de gestão e de um conjunto de procedimentos agora centralizados e rígidos. Sublinhe-se que a tendência atual no mercado educacional já não a criação de novas instituições, mas a expansão via fusão e/ou aquisição de concorrentes. Porém a Rede posiciona-se no sentido de não priorizar a expansão seja na forma de novas instituições seja na forma de aquisições. Aliás, sobre essa possibilidade não há manifestação oficial da Rede. Eis a forma como se manifesta: Diante da conveniência de reestruturar – para o desenvolvimento ou para redução – as IUS existentes ou para abrir outras novas, considere-se a possibilidade de superar a área estritamente inspetorial e chegar, junto com outras inspetorias, a colaborações de âmbito nacional ou regional. Seja como for, para criar um novo centro de educação superior ou para transformar substancialmente um já existente, as inspetorias deverão aterse às seguintes exigências: a) para iniciar o processo: Como ponto de partida, comunicar ao Reitor-Mor e ao seu conselho a intenção de iniciar os procedimentos para a criação ou transformação de um centro, servindo-se para isso de um documento de declaração de intenções, no qual o inspetor fará constar: uma clara necessidade social de educação superior para os destinatários preferenciais da missão salesiana ou uma necessidade especial de caráter estratégico para a inspetoria e/ou para as inspetorias da Região; a integração do novo centro no projeto orgânico da inspetoria; os recursos humanos disponíveis, incluída a presença qualificada de uma comunidade salesiana ou de salesianos qualificados e em número suficiente, relacionados com uma comunidade ou com a mesma inspetoria; os recursos financeiros com que se conta; o grau de viabilidade para conseguir a autorização do organismo oficial para a abertura do centro. Perante esta declaração de intenções, o Reitor-Mor e o seu Conselho dará ou negará ao inspetor a correspondente autorização escrita para continuar o processo. Para o pedido de aprovação do projeto: No caso de se ter recebido a autorização pedida, o inspetor deverá apresentar ao Reitor-Mor e ao seu Conselho: o projeto institucional bem definido e concreto, segundo as características indicadas no n. 30; o plano estratégico (cf. n. 31) para, no mínimo, cinco anos, que conte com os recursos humanos e econômico-financeiros suficientes; e que entre os recursos humanos se conte com a presença de salesianos qualificados; um plano operacional detalhado que corresponda ao primeiro ano de atividade do centro. Considerada essa documentação, o Reitor-Mor e o seu Conselho dará, solicitará modificações ou negará ao inspetor a correspondente autorização escrita, para seguir adiante com o projeto (POLÍTICAS, 2003, p. 26). 133 Essa nova política da Rede IUS difere da situação observada na década de 1990 quando eram criadas instituições sem nenhum planejamento prévio e, muitas vezes, sem o conhecimento dos órgãos centrais da Congregação. Essa nova postura por um lado reflete o amadurecimento da política da Congregação para a educação superior. Os procedimentos indicados e exigidos estão novamente em consonância com o que é praticado no contexto das agências reguladoras sejam nacionais ou internacionais. Segue-se os mesmos padrões e verifica-se, mais uma vez, o reflexo das políticas mais amplas sobre a Rede IUS. Note-se também que a prioridade, em caso de abertura de novas instituições é de que sejam circunscritas não mais no raio de atuação de uma única inspetoria, mas tenham caráter nacional ou regional para consolidar a vontade de sinergia ou colaboração efetiva. Inclusive a busca de iniciativas conjuntas tem como um dos seus objetivos o melhor aproveitamento dos recursos e a redução dos custos de financiamento. Não obstante, o tema da democratização da educação superior no interior da Rede IUS segue o debate internacional em torno da educação superior. As conferências da UNESCO em 1998 e em 2003 pretendem construir um caminho que “[...] facilite a integração e à inclusão dos estudantes e professores nesse círculo vital” (MOROSINI, 2008, p. 291). A internacionalização, como cooperação, é vista como vetor para a “[...] melhoria da qualidade da educação superior, administração e financiamento da educação” (Ibidem, 2008). Desta forma a internacionalização é posta pela UNESCO sob uma perspectiva positiva e esse órgão fomenta esse movimento utilizando-se da Associação Internacional de Universidades (IAU) e também dos próprios documentos e iniciativas de cooperação internacional emanadas das conferências. Morosini, ao analisar a Segunda Reunião dos Parceiros da Educação Superior de 2003, assim avalia: Neste encontro de 2003 a Unesco dá continuidade à referida Conferência e destaca também a internacionalização da educação superior. Aponta como desenvolvimentos mais importantes pós-paris: a maior complexidade das estratégias e do crescimento das várias iniciativas voltadas para alcançar ou fortalecer a internacionalização, devido principalmente à globalização acelerada; a combinação das racionalidades acadêmica e econômica que impulsionam o processo; e a importância geral da internacionalização e do contexto global na discussão sobre políticas posteriores, nos níveis institucional, sistêmico e internacional na educação superior (MOROSINI, 2008, p. 291). 134 A autora constata, portanto, o avanço do tema da internacionalização nos debates e iniciativas da Unesco como reflexo de seu desenvolvimento na sociedade global. Frisa, destarte, um crescimento de estratégias que favoreça o desenvolvimento institucional da academia no sentido de sua transnacionalização e, ao mesmo tempo, a importância que esse tema adquire para a definição de políticas de educação superior. A análise da autora vincula a internacionalização ao movimento da globalização sendo, nessa perspectiva, uma de suas conseqüências. Continuando sua análise, Morosini sublinha como a Unesco, utilizando-se da IAU desdobra suas orientações em ações que perfazem a consolidação da internacionalização: [...] as IES tomem iniciativas de internacionalização, entre as quais a formulação de políticas institucionais e, especificamente, de currículos para a formação de cidadãos internacionais e de garantia de qualidade no processo de internacionalização; ocorra a expansão dos fluxos de internacionalização para as regiões subdesenvolvidas baseada em códigos de ética internacionais e no desenvolvimento de parcerias entre iguais; haja a remoção de obstáculos à mobilidade e o aproveitamento de professores aposentados no processo; e finaliza com a necessidade de fóruns para a discussão. (MOROSINI, 2008, p. 291). Os meios apontados para a consolidação do processo de internacionalização, indicados pela UNESCO são: construção de políticas voltadas para esse fim; currículos que habilitem a formação de cidadãos internacionais; fluxo em direção aos países em desenvolvimento por meio de parcerias e mobilidade de professores. Assim o processo de internacionalização adquire um matiz prática que inclusive possibilita a aferição de seu grau de desenvolvimento com o objetivo de favorecer a integração dos povos por meio da educação. Destarte a UNESCO constrói um liame entre educação e inclusão social; e a orientação de seus documentos é lúcida em revelar o papel estratégico que o conhecimento exerce na sociedade hodierna. Por isso insiste na promoção desse nível de estudos entre todos os povos e procura despertar sensibilidade das forças políticas e econômicas internacionais para a importância desse tema na agenda global a fim de se promover a diversidade, a inclusão e a formação para o trabalho numa sociedade estruturada sobre o conhecimento e o reconhecimento do direito de imigração num mundo marcado pela mobilidade em todas as esferas sociais, mas que tende à intolerância e à discriminação étnica (MOROSINI, 2008, p. 292). 135 O documento prossegue indicando os caminhos que serão percorridos para que se efetive na prática o trabalho em conjunto. Destaca-se o estabelecimento dos programas comuns de atuação, o estabelecimento de prazos e metas e uma coordenação internacional dos trabalhos. Transparece nessa sistemática uma assertividade maior em relação a Brasília que não chegou a definir tão claramente o planejamento dos trabalhos: Estas políticas serão atuadas por um período limitado de tempo, por meio de programas comuns para todas as IUS. Continuando a prática já experimentada, serão tais programas propostos às IUS pelo Dicastério para a Pastoral juvenil, debatidos e acordados entre todas elas, preocupando-se depois o Dicastério de animar e conduzir à sua realização (POLÍTICAS, 2003, p. 15-16). O estabelecimento de Programas Comuns para toda a Rede IUS e sua articulação e coordenação mundial por meio do Dicastério para a Pastoral Juvenil constitui uma novidade em relação à Brasília e torna-se expressão da vontade de efetivar o projeto de uma atuação conjunta e coordenada. O documento exprime certa insistência nesse ponto, pois traz essa mesma afirmação na afirmação seguinte onde são delineados a responsabilidade e o papel do Dicastério da Pastoral Juvenil nessa coordenação, incumbindo-o da condução e desenvolvimento das Políticas e Programas comuns e as colaborações entre as IUS, favorecendo entre elas debates e acordos. Esse papel adquire de certa forma um sentido positivo, pois coaduna forças e projetos, permite sua concretização e converte-se na expressão formal de seu caráter internacional: A coordenação institucional das IUS estará sob a responsabilidade do Dicastério para a Pastoral Juvenil. O seu serviço às IUS se concentrará, sobretudo, na condução do desenvolvimento das políticas gerais e dos programas comuns, assim como daquelas iniciativas de colaboração entre várias instituições que possam servir de modelo ou exemplo para as demais (POLÍTICAS, 2003, p. 24). 3.4 Gestão, identidade e internacionalização no Plano Comum II O Plano Comum II organiza-se em torno de três eixos estratégicos. O primeiro: criar uma plataforma humana fundada sobre a identidade, para operar nas instituições. Possui dois objetivos: o planejamento e organização das instituições e garantir que o 136 funcionamento ordinário das instituições seja permeado pela identidade proclamada: as relações interpessoais, o modo cooperativo de funcionamento dos organismos institucionais no interior de cada IUS e o desenvolvimento dos colaboradores como “profissionais-educadores”. O tema da profissionalização em função da identidade é central nesse primeiro eixo. Esse aspecto permite que a Rede absorva a tendência global em que as organizações concentram suas expectativas de resultados na qualificação das pessoas e na sua formação. Avalia-se que a Rede encontra a estratégia certa para a garantia de sua identidade: que os membros das comunidades acadêmicas das IUS sejam formados segundo a perspectiva, os valores e a tradição educativa da Rede. Por isso a identidade deixa de ser concebida como mero assessório, mas, uma vez delineada de forma sistemática, pretende atuar em toda a Rede IUS, abarcando todos os seus processos institucionais por meio das pessoas. Essa perspectiva da profissionalização dos colaboradores alarga-se no eixo seguinte com o tema dos Recursos Humanos. Pode-se perguntar quais foram as iniciativas de formação para a assimilação da Identidade traçada. Resumiu-se em um curso denominado “Aprendizagem Cooperativa” construído em torno da tradição pedagógico-educativa da Congregação. Outras iniciativas ficaram sob a responsabilidade das instituições individualmente. O segundo eixo: garantir os fundamentos das instituições tem três colunas: a Carta de Navegação que é “um conjunto de instrumentos e procedimentos para garantir a orientação e a gestão das instituições dentro do quadro de referência” - é composta pelo Projeto Institucional, Plano Estratégico e Plano Operativo; os Recursos Humanos “para tornar realidade quanto está programado no Projeto Institucional”; os Recursos Financeiros, “para garantir o funcionamento ordinário e através do tempo das instituições” (PLANO COMUM II, p. 3). Esse eixo está voltado para o desenvolvimento da gestão da Rede IUS e contempla a agenda das políticas globais para a educação superior em termos de administração e racionalidade. Porém, é de se notar que esse conjunto de procedimentos administrativos não logrou a constituição ainda de uma nova cultura e pode-se afirmar que há um conflito latente nas instituições entre a situação anterior à implantação da Rede, mais informal e solto, e a construção do atual, mais sistematizado e racionalizado. Também não se chegou ainda à formação de um padrão de gestão que possa ser classificado como empreendedor, sustentável e inovador, porém o processo instaurado visa atingir essa meta 137 por uma gestão propositiva, isto é, capaz de envolver entes internos e externos à comunidade especialmente acadêmica os acompanhando novos papéis as mudanças desempenhados por no cenário estudantes, internacional professores, administradores, órgãos e governos reguladores e supervisores, tendências de mercado, indústrias e empresas em geral, bem como repercussões regionais (FRANCO, 2006, p. 214). Já o padrão empreendedor e inovador que se deseja atingir visa a elevar a capacidade de sustentação da mudança contínua no interior das IUS fortalecendo elementos que a favoreçam: “diversificação da base financeira; fortificação do centro diretivo; expansão do desenvolvimento periférico; estímulo à comunidade acadêmica e cultura empreendedora integrada” (FRANCO, 2006, p. 216). O desafio é fazer tudo o que está construído nos Planos, denominados Carta de Navegação, seja transformado em racionalidade prática capaz de orientar e focar os processos de mudança rumo ao sistematizado nos documentos de referência. Em cada uma das conferências regionais, procurou-se, ao longo da década 2003-2007, atender uma das linhas do segundo eixo do Programa. Primeiro foram elaboradas as Cartas de Navegação cujas orientações de construção, denominadas guias, foram apresentadas aos participantes da conferência e San Tiago do Chile, em 2004. Em seguida os participantes da Rede IUS voltaram-se para as políticas de formação e utilização dos Recursos Humanos disponíveis. A grande questão permanece intocada: os recursos financeiros. A Rede não inovou nem estabeleceu consensos e orientações novas nesse aspecto. O terceiro eixo: tecer relações setoriais entre as IUS e construir a IUS-net. Tem como principal objetivo construir grupos de intercâmbio por área de interesse ou conhecimento. Estão instituídos os grupos da área de Educação, de Engenharia e o grupo encarregado de promover cursos de formação de recursos humanos – ofereceu o curso Aprendizagem Cooperativa. A Rede IUS estabeleceu um portal virtual amplo e tem se utilizado dele para o desenvolvimento dessas iniciativas e o incremento da sinergia ou colaborações. Vale frisar que as instituições envolvidas na área de Educação reuniram-se em Turim, Itália, em 2007 e traçaram parcerias de pesquisa, atuação conjunta para pesquisa e oferecimento de cursos que consolidem a Rede como promotora de referência na área das Ciências da Educação. Em julho de 2007, do dia 10 ao dia 14, ocorreu em Roma a V Assembléia das IUS. Nessa ocasião o Padre Carlos Garulo, Coordenador Geral das IUS, apresentou um 138 balanço dos dez anos da Rede IUS por meio de um relatório intitulado “1997-2007 Visão Interna do Processo das IUS - VIPIUS”. Logo no primeiro parágrafo da introdução há uma afirmação que coincide com o que se afirmou nessa dissertação e que ressalta-se como conclusão: As Instituições Salesianas que se ocupam da Educação Superior – poucas ou muitas, grandes ou pequenas, melhores ou piores, de recente ou de mais antiga criação, em uma área geográfica ou outra – não escapam às dinâmicas de transformação acelerada, nem tão pouco aos condicionamentos que afetam ao funcionamento de todos os sistemas de educação nas diferentes regiões do mundo (VIPIUS, 2007, p. 7). À guisa de conclusão das análises pode-se afirmar que a criação da Rede IUS segue as tendências internacionais para a educação superior que apontam para expansão quantitativa de instituições e alunos, acompanhada de uma crise de financiamento que impede seja a universalização do acesso seja a qualificação das instituições, especialmente as particulares como são as IUS. A própria existência da Rede IUS aponta uma outra tendência que vem a ser a privatização do setor educacional e também a sua internacionalização para atender aos interesses do capital que encontrou no setor de prestação de serviços em geral e na educação em particular uma nova fronteira de exploração que, devido ao alto retorno financeiro, prolonga o ciclo de acumulação. CONCLUSÕES Procurou-se com esta Dissertação analisar se a constituição da Rede das Instituições Salesianas de Educação Superior contribui para a afirmação da identidade confessional salesiana. Essa questão remeteu-nos a um primeiro objetivo: verificar como ocorreu o processo de implantação da Rede IUS. Para conhecer esse processo e suas razões, ampliou-se o raio de análise, o que possibilitou relacionar a Rede IUS com as políticas educacionais e com a globalização e a mundialização do capital. Essa análise permite concluir que as IUS e a Rede que procuram construir são resultado, síntese, das políticas educacionais e do contexto sócio-econômico e cultural e da visão de educação superior e de confessionalidade que seus membros procuram exprimir. As IUS estão plenamente inseridas no processo global de mundialização econômica e das políticas para a educação superior e estabelecem com esse cenário cultural e econômico mais amplo uma relação dialética ora aproximando-se e compactuando com suas tendências, ora sofrendo suas conseqüências e ora procurando distanciar-se para auto-afirmar seus ideais e concepções. Encontra-se no documento VIPIUS uma afirmação que traduz esse processo dialético: “Para uma instituição como a Congregação Salesiana, recém aterrissada e sem tradição na educação superior, era necessário reconhecer o novo cenário e definir sua identidade e missão a serem aplicadas a ele. Esta foi a primeira preocupação [...]” (VIPIUS, 2007, p. 15). Transparece assim o reconhecimento de dois olhares: um para a cenário histórico e outro para a tradição e a identidade da Congregação Salesiana. Ainda em outra passagem, chama-se atenção para esse processo dialético: “Ademais, foi necessário conjugar a natureza e as exigências próprias tanto do novo cenário como da identidade e da missão próprias da Congregação, resolvendo qualquer possível contradição” (VIPIUS, 2007, p. 15). Além da consciência da dialética entre os dois termos, isto é, a Identidade e o cenário histórico, mais especificamente a mudanças 140 aceleradas da globalização, também há na afirmação a aceitação de que se trata de um processo que gera contradições e conflitos a serem pensados e resolvidos. Dessa maneira o processo de construção da Rede IUS desencadeou-se, por uma parte, devido ao desconhecimento pelo governo central da Congregação de toda a realidade e complexidade das IUS como também aos problemas de inadequação com a missão da Congregação; à formulação desapropriada da própria identidade como instituição de educação superior; ao crescimento acelerado e a novidade dessas instituições no conjunto das obras da Congregação. Por outra parte, a existência das IUS no conjunto das obras educacionais da Congregação Salesiana é resultado das políticas para a educação superior que acompanham o processo de globalização, a saber, a expansão do acesso, a diversificação das instituições, a privatização como escolha que reflete tanto a mercantilização da educação como também a visão neoliberal do Estado. Transpareceu, pelas análises, que a Congregação pretende construir um projeto de atuação conjunta, formando a Rede IUS. Percebeu-se que se trata de instituições variadas em seu formato jurídico, presentes em três continentes. O seu desenvolvimento histórico demonstra que elas estão ligadas ao processo de ampliação da iniciativa privada na educação superior, sendo que seus índices de maior crescimento ocorrem justamente nos anos de 1990, período em que se implantam as reformas educacionais mundialmente orientadas por políticas de privatização e redução da presença do Estado na educação superior e a conseqüente formação do mercado educacional mundializado. Encontraram-se, ainda, indícios de que esse movimento de privatização influenciou a tomada de decisão da Congregação em constituir com as IUS uma rede internacional com vistas a fortalecer sua atuação, manter a identidade de sua concepção de educação superior e proteger-se da visão mercadológica da educação. Simultaneamente explicitou-se que a expansão das IUS beneficiou-se das políticas educacionais uma vez que sem abertura por elas proporcionada não encontrariam espaço para sua existência. Essas políticas também influenciaram o perfil institucional das IUS uma vez que a expansão favoreceu a diversificação das instituições de educação superior. Apesar desse perfil percebeu-se que as IUS perseguem um ideal de educação superior em termos clássicos, isto é, fundado no tripé ensino, pesquisa e extensão. Essa concepção as afasta de uma visão fragmentada do conhecimento, porém gera-lhes desafios de cunho econômico-financeiro: manter as atividades inerentes à universidade apenas com 141 mensalidades de alunos e, ao mesmo tempo, buscar a popularização da educação superior em países periféricos nos quais a maioria da população jovem ainda não tem acesso a esse nível de educação justamente por falta de condições econômicas e sociais adequadas, sendo os sistemas ainda elitizados, apesar da forte demanda por educação superior. Conclui-se que o processo de implantação da Rede Internacional das IUS busca estabelecer cooperação e também novos padrões de gestão dessas instituições a fim de que possam operar de maneira orgânica e sistemática em sua gestão e realização de projetos e atividades acadêmicas. Esse processo está sendo construído por meio de documentos que traduzem a assimilação de uma linguagem profissional, voltada para resultados, eficiência e eficácia, denotando aceitação de padrões de qualidade assumidos por organismos internacionais. Após a análise da implantação da Rede, na construção de respostas ao problema de pesquisa desta Dissertação, foi estabelecido um segundo objetivo: identificar qual é a concepção de identidade confessional católica salesiana. Foi possível constatar alguns elementos importantes que compõem ou se relacionam diretamente com a explicitação da identidade das IUS. Verificou-se também como a identidade se articula com os referenciais das políticas internacionais para a educação superior. Os documentos explicitam uma visão própria e específica de educação superior e de políticas que diferem das concepções neoliberais de educação entendida apenas como serviço a ser explorado em função do lucro e da formação de capital financeiro erigido dessa exploração. Difere também no sentido de que a Rede IUS possui uma concepção ampla de educação superior, entendida de forma clássica – ensino, pesquisa e extensão, e acresce a essa a sua visão humanista e cristã que tem suas raízes na experiência educativa da Congregação Salesiana e na finalidade da sua presença na educação superior. Essa concepção traduz-se num projeto integral de educação e formação do ser humano. Conclui-se desse processo, que ao empreender a constituição da Rede, as IUS procuram, pelo analisado, defender sua identidade no momento de implementação de políticas capitalistas neoliberais sobre a educação superior que tem comprometido e ameaçado a sua proposta educacional pela concorrência e por meio da concepção de educação trazidas pela globalização do capital e do neoliberalismo. Essas políticas trouxeram uma acentuada diversificação das instituições que promovem educação superior não com o intuito de oferecer a sua democratização, mas de 142 servir à obtenção de dividendos. Isso ocorre de forma mais acentuada nos países periféricos uma vez que a educação superior nos países centrais encontra-se num estágio muito mais avançado e é deles que provêm as atuais políticas de educação em tempos de globalização. O planejamento, a avaliação, a verificação de qualidade, a profissionalização de recursos humanos, o credenciamento, a formação de redes tecnológicas e de comunicação aparecem coincidentes na agenda global para a educação superior, como se apresenta nos blocos geopolíticos e estão presentes nas políticas da Rede IUS. Nota-se uma tendência acentuada para aspectos burocráticos, sendo que as iniciativas de sistematização da gestão e da identidade deixam na sombra aspectos cruciais, especialmente a sustentabilidade. Não atinge dinamismo e agilidade como também não privilegia aspectos como inovação, sustentabilidade e capacidade empreendedora, fundamentais para o contexto de competição e concorrência. Após dez anos de trabalhos de formação da Rede IUS, os projetos de gestão, de avaliação e também de criação de novas instituições começam a acontecer. Nesse sentido abre-se novas perspectivas de estudos especialmente no que tange verificar como esses projetos que estão sendo implementados coadunam-se com o horizonte geral traçado nos documentos analisados nesta dissertação. Também a temática do financiamento e da sustentabilidade mereceria pesquisas específicas no sentido não só de se verificar a viabilidade econômica dos empreendimentos mas também explicitar como ocorre atualmente e até que ponto está em consonância com os princípios estabelecidos no marco de referência da Rede IUS. REFERÊNCIAS AMARAL, Nelson C.; OLIVEIRA, J.F. Políticas de acesso e expansão da Educação Superior: concepções e Desafios. Brasília: INEP, 2006. BEYNON, Huw. As práticas do trabalho em mutação. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. São Paulo: Boitempo, 1998. BITTAR, Mariluce; OLIVEIRA, J.F.; MOROSINI, Marília (Orgs.). Educação Superior no Brasil:10 anos pós LDB. Brasília: INEP, 2008. BITTAR, Mariluce. 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