RITOS DE MORTE NA LEMBRANÇA DE VELHOS"
Ana Lúcia Magela de Rezende1
Geralda Fortina dos Santos2
Valda da Penha Caldeira2
Zldia Rocha Magalhaes2
RESUMO: " Ritos de morte na lem bra nça de vel hos" concretizou-se como pesq uisa a partir
do desconforto vivido pelas autoras em suas relações profissionais, o nde a questão da morte
era sempretangenciada. Caracteriza-se como u ma investigaçãode inspiração fenomenológica ,
que utilizando-se do relato oral de sujeitos de terceira idade, procu rou recu perar, decodificar
e interpretar os ritos mortuários. Dos depoimentos surgiram as u nidades de sig nificado :
Sentimentos e Sig nificados diante da Morte; A Hora da Morte; A M o rt e Anu nciada ;
Preparativos do Corpo ; A Sentinela; O Cortejo Fúnebre ; A Ú ltima Morad a ; A Volta para
Casa ; A Mort, e Lem brad a ; e sobre elas incidiu a nossa análise . Esta n os possibilitou a
com preensão do vivenciar a morte, refletir as atitudes dos profissionais de saúde ao assistir
o cliente e seus familiares nesta experiência existencial do ser-para-a-morte. A morte
raciona lizada pelo con hecimento científico , im pessoalizada nos cuidados tecnologizados
esconde novos ritos, transm utados pelas novas representações q ue a sociedade construiu .
UNITERMOS: Atitudes pera nte a morte - Rituais fu nerários - Idosos - Eq uipe de assistência
ao paciente
1. I NTRODUÇÃO
Ritos de morte na lembrança de velhos concre­
tizou-se como pro posta de pesq uisa a partir da
verbalização do desconforto vivido pelas autoras ,
em suas re lações profissionais, onde a q uestão
da morte era sem pre tangenciad a . Enquanto en­
fermeiras, sem pre nos preocu pou a dificu ldade
que os profissionais de saúde e m gera l , particu lar­
mente osde enfermagem , enfrentam ao lida r com
a morte, em atividades cotidianas.
A m o rte , o e n frenta mento do limite, é
insuportavelmente angustia nte , e esta angústia
precisa ser domesticada pelas representações
simbólico-sociais que a m ediatizam , relativizando,
a estranheza do evento. As interpretações míticas
da morte cum prem esta fu nção : esvazia r a a ngús­
tia experimentada dia nte de u m fato ameaçador e
tomaro fe nômeno caótico , familiar. Fazerdele um
fato sobre o qual o homem tem alg u m controle não
req uer, somente, explicações técnico-científicas.
Os ritos presentes em n ossa sociedade mo­
d e rna , m a l g rado tod a tecn o l ogia e ciê n cia
racionalista , ocupam um espaço fu ndamental­
mente legítimo e necessário à eufemização da
angústia do finir. Tais ritos têm caráter protetor da
sociedade e restau ra m o conj u nto socia l . Apre­
senta m-se com o teatralidades, representações'
de crenças, sentimentos e emoções q u e esta be- .
lece m a agregação social , cimentam as relações,
construindo elos de ligação, pela pa rticipação de
todos e de-cada um, numa m esma representação
socia l .
Por considerar a morte e o seu cortej o de ritos
como da ordem do societa l , do pertencimento
grupal , é que tentamos analisá-los como fenômeno
socia l . A com preensão da morte ê do morrer, e
não a sua explicação , coloca-se para o profissi-
Trabalho apresentado como Tema Livre no 46° Congresso Brasileiro de Enfermagem. Porto Alegre, 30 de outubro a 4
de novembro de 1 994.
1 Professora visitante do Departamento de Enfermagem da U FSC. Membro do N úcleo de Pesquisas é Estudos sobre
Quotidiano em Saúde - N U P EQS-SC .
2 Professora da Escola de Enfermagem da U FMG . Membro do N U P EQS-MG.
R.
Bras. Enferm. Brasília,
v.
48, n. 1 ,
p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 995
7
onal de saúde com o de suma relevância , mas é
também extre m a mente paradoxal . A formação
profission a l , m a rcada pe lo modelo médico-bioló­
gico hegemônico , confere aos profissionais de
saúde algum pod er explicativo sobre os fenôme­
nos da saúde-doença , vida e morte, mas não
facilita a sua compreensão.
Os ritos d esdobram-se em inúmeras m a nifes­
tações, e estão relacionados à cultura , idade do
morto , crenças e religião , mas conserva m u m
núcleo eidético d e ca ráter regenera d o r o u
terapêutico , diante da angústia d a finitude.
A rit u a l iz a ç ã o está p rese n te n a vid a
contemporânea , em bora sob novas formas "raci­
onalizadas" , como são as exigências d a ciê ncia
e da sociedade moderna.
Enca min har a proposta desta pesq uisa atra­
vés da inte rpretação dos ritos mortuários nos
pareceu uma fecunda via de resgate do sim bólico ,
tão su bestimado n a racion a lid ade do m u ndo mo­
derno. Tal análise pode nos fornecer chaves para
a compreensão do vivenciar a morte em nossa
sociedade conte m porânea e, pa rticu larmente ,
refletir sobre as atitudes do profissional de saúde
no assistir os clientes e seus fa miliares nesta
experiência existencial do ser-para-a-morte. Para
nos aproximarmos d a fl uidez deste fenômeno, ao
mesmo te m po tão co ncreto e tão amorfo , é preci­
so que em preg uemos a bordagens sensíveis e
maleáveis mas, nem por isto , menos científicas.
Dia nte da preca riedade da vid a , o desejo de
onipotência de produzir u m a ciê ncia que nos
tra nscenda, merece ser recolocado. É o q ue esse
cotidia no insu peráve l , onde se dão as nossas
peq uenas m o rtes de todos os dias, todas as
perdas em direção à finitude, nos propõe pensar.
Assim , nesta investig ação, tive mos como
objetivo compreender a situação da morte enquanto
fenômeno social, através d a:
- reconstrução dos ritos mortuários a partir
de depoimentos;
- tradução dos sig nificados destes ritos;
- interpretação das sim bologias ritual ísticas
da morte.
O estudo caracterizou-se como uma a bordagem
qualitativa de inspiração fenomenológica dos ritos
mortuários. Optou-se pela utilização da técnica de
História Ora l , através d e relatos de sujeitos de
terceira idade. Estes sujeitos tinham idades acim a
de 55 anos, co m memória preservad a ; era m de
am bos os sexos, com vivências em cidades do
interior e metrópole. O g ru po de sujeitos para o
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R.
Bras. Enferm. Brasília,
v.
48, n. 1,
p. 7- 16, jan./mar. 1 995
estudo foi de dez.
De posse dos relatórios das entrevistas trans­
critas, as pesq uisadoras iniciara m u m processo
de leitura e discussão. Dos discu rsos dos sujeitos
emergiram as seg uintes u nidades de sig nificado:
- A hora da morte: com preende o momento
mesmo da morte , atitudes, comportamentos
e manifestações de pessoas q ue participam
daquele morrer.
- A morte anunciada: co ntempla sinais e
símbolos que expressa m a presença da
morte na com u nidade à qual pertence o
morto.
- Preparativos do corpo: e n g l oba tod o
movimento da com unidade, que se organiza
para dar contin uidade aos rituais fúnebres,
a partir da morte constatada.
- A sentinela: com preende toda forma de
manifestação com unitária e pública durante
a exposição do corpo .
O cortejo fúnebre: traduz a ca minhada do
loca l do velório ao loca l da inumação.
Engloba formas de tra nsporte do corpo ,
comportamentos e atitudes das pessoas
que pa rticipa m do cortejo fúnebre.
- A últim a morada: d e s c re ve a s
características d o cemitério, das sepulturas,
dos túm ulos e da in u mação.
- A volta para casa: com preende as atitudes
e com portamentos dos familiares e demais
pessoas a pós a in u mação.
- A morte lembra da : sig n ifica t o d a
m a n ifest ação i m p l í cita o u expl ícita
config u rada nos sentimentos e com porta­
m e n tos dos fa milia res e pessoas da
com u nidade à q u a l pertence o morto.
2. SENTI M ENTOS E S I G N I FICADOS DIANTE
DA MORTE
Temporalidade da Morte
Tem po linear e tem po cíclico da morte
A morte é , a ntes de tud o , u m a questão de
tem pora lidade. A linearidade d e um tem po que
começa e se esvai, até o fim previsto , mas não
d a t a d o , p recisa s e r e s c a m ot e a d a . E s t a
precariedade do viver é então afrontada d e maneira
ardilosa , pa ra poder se vivenciar, com u m n ível de
a ngústia su portável , este tem po que passa . Tem­
se, assim , a il usão d a vitória sobre a morte. Para
MAFFESOLl (3) , este "afrontamento do destino"
é sinalizado por algu mas atitudes, tais como a
importência atribu ída ao presente e à repetição. O
"presentelsmo" demonstra u m querer viver com
i ntensidade o agora, o i nstante que "precisa ser
consumido, rapidamente consumido em excesso,
quando se conhece a sua precariedade" (3.P.25).
Viver como se fôssemos imortais. "Eu nlJo falo em
morte com os meus filhos (. . . ) e eu sei lá o que vai
ter depois". O que vale é o hoje e este desejo de
viver o presente é manifestado tanto nas formas
escapistas do esba njamento da energ ia, do
dinheiro, do sexo; na frivol idade e no consumismo,
como a contenção e na usura .
Para o s sujeitos, talvez e m função de suas
idades, a idéia de morte assum e uma relativa
convivencial idade. Para "conformar-se", a pessoa
"precisa sermuito vivida, muito experimentada da
vida, já ter sofrido bastante". Todavia, o "preparo"
para a morte é sem pre relativo, ambíg uo, sempre
"está faltando uma coisinha", e Deus reserva "um
lugarpara a gente acabar de completaraquilo que
nlJo fez".
A re petição, q uerdas ações q ue "preparam"
para a transcendência, quer ideal izada em outra
vida, além da terrena, parece del i near a ciclagem
temporal, q ue é mediadora do enfrentamento da
morte. Enquanto o tem po l i near ind ica u m nascer
e u m morrer, o tem po cícl ico, vivido no cotidiano,
na repetição das boas obras que preparam o
homem para a boa morte, ou na crença numa outra
vida, assegu ram a conti n uação, instauram o não­
'
tempo. A repetição cria a i lusão de que nada
passa, roda o relógio ao contrário, i nverte a roda
do tempo. A l i nha reta do tempo l i nearé espichada
e enrolada, portanto, aumentada de tamanho.
Cada ciclo retom a sobre o a nterior, não numa
repetição mecênica, mas sim e n riquecido pelas
vivências pretéritas, seg ue seu curso .. . infi n ito.
Alg u ma transformação ocorre, mas é assegu rada
a idéia da imortalidade, mediadora que dFibla a
insuportável consciência da fin itude.
A idade d o morto
Dependendo da idade do morto, os sujeitos
informaram ter sentimentos d iferentes. A morte
de uma criança é atribuída maior dor, enquanto o
velho, consideram-no mais próximo dela.
Embora a criança possa contar com maior
com placência d e Deus ". . . a criança, por muito
rebelde que seja, Deus ama, né, a criança". O
vel ho, "se ele arrumar a trouxa dele bem
arrumada... Deus perdoa, né ?". A vida é tida como
u m bem maior, de mais valor q ue a morté. Mesmo
contando com o amor de Deus e, conseqüente­
mente , ser d ispensada das "boas obras"que, até
mesmo por falta de tempo, não realizou, a vida
ai nda é mais desejada . Assim, mesmo que a
"cidade dos justos" seja delineada como um lugar
de vida melhor, é aq ui, no caótico mundo h umano,
que se deseja estar. Este futu ro incerto da morte
e do além dela não é desejado, sobretudo para um
serque poderia m u ito ainda desfrutar das delícias
do mundo humano.
A morte do velho é reportada como a de
alguém para q uem chegou a hora: "Já viveu, já fez
tudo': M(. . .) praticamente já nlJo está vivendo muito,
porque perde a sensibilidade, perde os reflexos
(. . . ) a memória (. . . ) entlJo, vai pra outra". Este
depoimento, particularmente, atenta para a
decrepitude n a vel h i ce, pel a d i m i n u i ção de
possibilidades d e vida participativa, cuja felicidade
deve agora ser enco ntrada em "outra" vida.
Demonstra o esgotamento das potencialidades e
o uso do tempo do viverque passou . "Já trabalhou
a morrer, já viveu a vida"{. . .) "já realizou, já fez
alguma coisa". Enquanto o velho "já fez", a
criança ainda "nlJo fez nada". Este fazer h u mano
asseg u ra o estar vivo e utilizando o tempo em sua
plenitude. Os sentimentos diante da morte i nfantil
demonstram a frustração pelo não uso do tempo
que seria possível aproveitar.
Espacialidade da morte
A morte e a Proxenia
A proxim idade afetiva, ou consangüínea, faz
com que a perda através da morte seja mais
dolorosa e de mais d ifícil enfre ntamento . Este
sentimento é caracterizado pela i mpotência e m
reverter ou i nterfe ri r n o evento .
Tem po e espaço aparecem, n os discursos,
como dimensões sign ificativas para os sujeitos e
demarcadoras de experiências vividas enquanto
singulares, afetivas, i m pessoalizadas e públicas:
"(. . .) porque o povo de hoje nlJo tem aquele
sentimento': "(. . . ) todo mundo era muito junto,
nlJo tinha uma obrigaçlJo forte puxando. (. . . ) A
morte no interiorera assim, todo mundo sofria,
até quem nlJo era parente". "(. . .) A gente
participava (. . .) porque era todo mundo muito
unido, nlJo tinha assim esta vida diferente
R. Bras. Enferm. Brasília,
v.
48, n. I , p. 7-1 6, jan.lmar. 1 995
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daqui, que te chama atenção para uma coisa
e pra outra, que se voltava muito pro parente,
um pro outro'�
Estas fa las demonstram comparação entre
um espaço-tem po-soci a l , onde a proxenia era a
tônica . Um tem po vivido melancól ico e que pas­
sou . Um espaço outro , onde "a pessoa dependia
muito um do outro': onde "não tinha obrigação
forte puxando ", e u m outro momento-lugar, dife­
rente , menos acolhedor, onde se sentem estran­
geiros.
Acostumar com a morte e seus sinais é visto
pelos sujeitos, como um processo irreversível dos
tem pos modernos e das cidades g ra ndes, onde a
m as s i f i c a ç ã o faz o s s e n t i m e nt o s s e re m
civi lizadamente contidos. A complexidade d a vida
moderna su bstitu iu a proxenia, vivida com i ntensi­
dade nos locais de orige m , pe las obrigações e
demandas múltiplas, d ificu lta ndo às pessoas sen­
tirem-se próxi mas. Os ritos tornaram-se ceri mô­
nias de convivência, maneirismos sociais, e o
sentir a morte do outro � relativizado , porq ue ele é
apenas mais um que morre, no burbu ri n ho m oder­
no de cidade g rande. A morte se desloca de su�
essência ontológ ica para a rea l idade ôntica , ine­
rente apenas àquele q u e morre u , porta nto , a
partici pação dos outros reduz-se à exte rioridade
da aparênci a .
A morte e o hospital
. O hospital é visto não só como o lugaradequado
para se morrer, mas ta m bém como lugar restrito,
o nde os fa m i l i a res têm acesso re l ativo. A
im preg naçãoda morte fica distanciada da moradia
e também dos fa m i l iares. As marcas, os sinais da
morte fi ca m assi m re servados a u m l u g a r
i m pessoal , longe d o s l ugares de afeto e convívio.
Se a escolha do l ugar fosse a própria casa , por
ser mais fa m i liar, espaço de proxe m i a , por outro
lado as marcas desta morte i m preg nariam este
loca l de lem branças dolorosas, com as quais a
fa mília teria de conviver:
"Foi aqui nesta sala que ela esteve (. . .) Para
meus filhos não guardarem aquela hora triste
na casa, parece que o hospital é menos duro
para a família".
Anular ÓS sinais da morte , mobil izá-los na
espacial idade não con h ecida e d ista nciada da
vida cotid iana e , para tal , a bri r m ão do conforto
emocional· q u e a casa pode proporcionar àquele
que morre. A ambigüi9ade é i nsolúvel. Permanecer
10
R.
Bras. Enferm. Brasília,
v.
48,
"até o último minuto", ou entregar o pa rente , o
amigo a mãos estran has, mesmo que tecn ica­
mente com petentes, n u m momento de tanta
vul nerabilidade? As d úvidas, nas q uais mergu­
lham estes discursos, são águas escu ras e pro­
fundas e nos permitem a penas i ndagar: quanto de
racional ismo modern o , a sufocar o desejo em
funçã o da prag maticidade, permeiam estes
discu rsos?
Crença na vida além da morte
O além da morte se coloca como u m mistério,
mas este "outro lado", nos d iscu rsos, é uma
espacial idade para a q ual se prepara , leva-se uma
bagagem - o que se fez do lado de cá . O
enfrentamento do q u e aguarda o m orto do "outro
lado" é mediado pelas boas ações que se praticou
enquanto vivo . É i m portante que na prestação de
contas, o sa ldo seja positivo para o i ngressa nte no
além .
Volta a fig u rar' nos d iscu rsos, a idéia da
repetição, do tem po cícl ico, da tra nsformação,
mas não do acabamento . "Por que eu vejo uma
planta, uma planta que nunca acaba, mesmo que
morra, fica uma semente, fica uma . . . é uma
transformação". A meta morfose , tão estudada
pelos interessados das cu ltu ras orientais, onde as
fronteiras entre os m u ndos natura l e sobrenatural
mostram-se tênues, é u m a presença . Esta pre­
sença explicitada na cosmolog i a , nos rituais e
mitos, permite que através de cód igos moventes
a reconstrução ocorra (7) Lá , o o utro lado, é uma
continuação do lado de cá, onde o j u lgamento vai
se processar a partir das obras rea l izadas aq u i , e
assi m , será conferido ao entra nte u m l ugar.
A repetição é assim u m a maneira de negociar
com a morte, domesticando a idéia do "nunca
mais".
•
Morte e mana
À morte e ao morto são conferidos poderes
mágicos. Em bora um outro sujeito asseg u re não
senti r medo.e que o "morto não faz mal a ninguém,
tenho medo é de vivo': a associação e ntre a morte
e o poder mágico é representação sempre presente,
ao longo da história do homem. MAUSS(4} vai
denom inar "mana" essa força sobrenatural e
i ndefi n ida e faz dela uma categoria de anál ise
sociológ ica:
.
"O mana não é simplesmente uma força, um
n . 1 , p . 7- 16, jan.lmar. 1 995
ser, é também uma qualidade e um estado (. . . )
qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica,
ser mágico, posse do poder mágico, ser en­
cantado, agir magicamerite". (4, p . 162)
Esta mágica , l igada à rriorte, remete à noção
da impureza e da conspurcação . A morte já foi
vista como i mpreg nada de miasmas, e chegou-se
mesmo, na E u ropa do século XVl I l , a formular-se
uma "teoria miasmática".
A compu lsão da lavar tud o , mesmo que o
velório seja "limpinho": (. . .) eu tiro e tomo banho
inteirinho, que tudo que está �m mim vaipra água
(. . .) sinto um pouco de náusea, um pouco de nojo",
demonstra m q u e a representação miasmática
sobrevive a todo cientificismo explicador.
A pol uição dia morte é uma representação
social fortemente m a rcada !'la d iversidade das
culturas h u manas. Ela remete à idéia angustiante
da desordem e do descontr.
desordem é a morte. Ela estraga o pad rão da
p l e n i t u d e d esej a d a . A o rd e m precisa se r
recomposta e o ba nho, a preocu pação com a
l i m peza , não estão aq u i atreladas à questão
est,étiça ou meramente higiênica . Tal preocupação
assu me um caráter s i m bólico não trad uzível
meramente em asseio. DOUGLAS(2) sustenta
que nossas concepções sobre sujeira não são
somente higiên icas, mas também ritual ísticas,
i nteg radas a u m sistema de símbolos nem sem pre
faci lmente expl icitado .
A hora da morte
Na Idade Méd i a até meados do século XVI I I , a
morte fazia parte do cotidiano das pessoas,
existindo assi m , uma relação de proxim idade
entre os vivos e os mortos. A imagem que se tinha
da morte era mostrada através de d uas pri ncipais
características: a simplicidade fam i l i a r e a sua
publicidade, sendo que o morrer em público
persistiu até o fi m do sécu lo XIX.(1)
A morte era reg u lamentada por u m ritual
costumeiro, ela não se apoderava , traçoeira , da
pessoas. Sendo assim , algu mas pessoas tinham
presse nt i m e ntos sobre o m o mento de sua
ocorrência.
A crença de q u e a rr.iorte avisa , e de que a
pessoa q u e va i morrer, é quem com u n ica a sua
própria morte, aparece no depoimento de D.
Ra i m u nd a , q u a ndo ela busca , na memóri a , as
lembranças da morte .de sua avó .
"De manhã ela disse: Olha, prepara que eu vou
mOffer hoje às cinco horas, (. . .) prepara, man­
da fazer biscoito, fazer bolo". .
O moribu ndo presidindo à própria m orte, sendo
o centro de todas as atenções, isso era conside­
rado a "boa morte". Assi m , todos os parentes,
a m igos e vizi n hos era m convocados a participar
daquele morrer. N i ng uém pod i a m orrer sozinho.
"(.. .) antes dele mOfferjá estava fazendo quar­
to, porque ele ia mOffer qualquer hora e não
deixava sozinho" (D. Dedé) .
Ar.tigamente a m orte era costumeira , fami l iar,
existia "uma hora da morte'� Uma hora i m portante
tanto para aquele que ia morrer, como para os que
ficavam , com o d isse D . Diva :
"(. . .) minha mãe mOffeu em casa. Ela mOffeu
cercada de todo o carinho, de todos os filhos,
fizemos tudo o que a gente podia fazer'.
A sensação do dever cu m prido eximia todo
sentimento de culpa, com o faci l itava a aceitação
da morte.
A morte anunciada
A morte era anunciada com vários sinais. Sua
man ifestação mais sig nificativa era exátamente o
jeito ou a forma de repica r o sino.
A comunicação oficial de u m morrer procu rava
preparar as pessoas da com u n idade para o enter­
ro , e as alertava sobre a perda que aquela fam ília
acabava de sofrer.
"(. . . ) quando antigamente dava aquele sinal
com o sino o dia inteiro - de hora em hora, de
duas em duas horas, aquele sino fúnebre, né ?
(D. Raimunda)
A morte de uma pessoa i m punha a intensifica­
ção das relações sociais. Cada g ru po passava a
exigir dos seus sobreviventes o desempenho de
papéis recristalizadores, que consistiam em privi­
legiar determ i nadas relações e evitar outras. Afi­
nai,
"(. . .) a morte de um individuo não é um evento
isolado, mas representa tantos eventos quantas
relações o individuo morto mantivesse: amiza­
des, inimizades, paternidade, filiação, aliança,
propriedade. . . Todas essas relações, que cons­
tituem o tecido social, COffem o risco de se
romper, ou se rompem efetivamente". (6, p 85)
As pessoas não morrem mais em casa e sim
nos hospitais. E nestes observamos m u ita dificu l­
dade para se a n u nciar a presença da morte. Em
gera l , não fica claramente defi n ido a quem cabe
fazer esta com u n icação. Então ela passa a ocor-
R. Bras. Enferm. Brasília,
..
v.
48, n. 1, p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 99S
11
rer qe várias formas: o pessoal de enfermagem
entra em contato com o serviço social, quando ele
existe, 'para providenciar a comunicação aos fam i­
liares; quando a morte ocorre à noite é a própria
enfermagem que procura fazer a comunicação
diretamente aos parentes, ou então, passa a
i nformação à funerária para que ela o faça .
Existe ainda, uma o utra forma em que o anún­
cio da morte nos h ospitais se faz e que talvez seja
a mais dolorosa: é a do leito vazio. Não m uito raro
o sistema de com u n i cação falha, por não ter
atribu ído a tarefa a pessoas certas. Ao chegarem
ao hospital para visitar o seu doente, os familiares
surpreendem-se com o l e ito vazio . Buscam
i nformações e se defrontam com o falecimento do
seu ente q ue rido.
Aos familiares, nesta situação, cabe fazer
com unicações às pessoas das relações do morto.
Por sua vez, essa com u n i cação mais ampla,
dirigida a todos os que compõem o círculo social
d o morto, ta m bém fica restrita po r l i m ites
econômicos.
Preparativos do corpo
Ao longo da h istória, a necessidade do cumpri­
mento de ritos para o enfrentamento da morte
pode ser observada através do preparo do corpo .
Existiam as pessoas que se i ncubiam de
determinadas tarefas pelo ritual estabelecido
como, por exemplo, as pessoas que lavavam o
corpo , costuravam rou pa para o defu nto e que
faziam os caixões.
Lavaro corpo é o q ue se i m punha após a morte
: constatada . Sobre isto os nossos entrevistados
nos contaram, com uma riqueza de detalhes:
( ..) se a pessoa mOffeu, elas vinham [as
comadres] buscava a água fria e a{ jogava,
punha uma gamelona debaixo da cama (. . .)
virava um vidro de creolina na água da bacia e
(...) enxugardefunto pra quê? Deixava ele lá, na
cama (. . .) (D. Dedé) .
Na vivência dos nossos entrevistados era co­
mum o uso da mortalha para vestir o corpo do
morto.·A mortalha identificava o morto, falava por
ele e dele enquanto sujeito social . Dizia de sua
idade, sexo e posição social.
A decisão sobre o tipo de mortalha para vestir
o morto era tomada pelos parentes, vizi nhos, que
participav am daquele rito fúnebre . M u itas vezes a
pessoa teria escolhido, antes de morrer, a rou pa
com a qual gostaria de ser enterrada .
o
"
12
.
R. Bras. Enferm. Brasília,
v.
o
A s descrições da feitura dos caixões são, da
mesma forma que as mortalhas, bastante varia­
das. Eram forrados por pano de várias cores que
i ndicavam a idade, o sexo e as posses do morto.
Seg u ndo Debret, apud REIS(5) , o branco e o rosa
cobriam caixões de crianças; o azul-celeste, os
das moças; o preto, os de ad u ltos. Os panos
podiam ser tafetá , seda, veludo, decórado� com
galões de prata ou ouro .
A importância que o caixão representava
naquelas comun idades está expressa , como d iz
REI S(5,p 149) M,
entre os acessórios funerários,
aquele em que conduzia o cadáver era o que
definia a dignidade da morte " .
Aos nossos e ntrevistados não fa ltou a
comparação entre a sua vivência dos ritos fúnebres
no i nterior, e o que ocorre em nossos d ias, com a
influência de uma cidade com grande concentração
populacional :
"(. . .) quando vai pro hospitaljá vem preparado,
né ? se mOffeu em casa, leva pro hospital, lá o
corpo vem preparado, né ? ... inclusive acho
que já vem até dentro do caixi1o, né ? (D .
Custódia).
Os ritos fúnebres do preparo d o corpo, foram
transferidos para dentro do hospitais para serem
executados por quem? De que forma? Essa ou
essas pessoas con hecem os rituais, os quais a
pessoa q u e morre u g ostaria q u e fossem
cumpridos? Elas conhecem o ritual que os seus
fam iliares lhe ofereceriam?
• • •
A sentinela
O velório e ra feito na casa do falecido e o que
o marcava era a sol idariedade. As pessoas que
não estavam presentes, fazendo "quarto" ao
moribundo, ao saber da morte , deixavam as
"obrigações" e iam velar o morto. Passavam a
noite toda "vigiando"o morto, fazendo senti nela.
Na salo a pri ncipal ou no q uarto maior da casa ,
o corpo ficava , geralmente , sobre a mesa . Se a
família tinha menos recursos, uti lizava-se uma
cama ou mesmo uma esteira . Quando o falecido
era muito grande, i mprovisava-se uma porta como
mesa. O ambiente era de recolh imento , de tristeza ,
de reza e cantoria o tempo todo.
Do lado de fora , o a m b i ente era mais
descontraído. Para passar o tempo, as pessoas,
predominantemente os homens, tomavam cacha­
ça , contavam piadas, contavam histórias. H istóri­
as de morte, de assombração.
48, n. 1, p. 7- 16, jan.lmar. 1 99S
As fronteiras eram tênues, demarcando a
espacialidadedo sagrado edo profano, relativizando
uma e outra d i mensão. O morto era ponto de
l igação entre os ritos - cânticos e rezas - num
espaço sag rado , e a festa - as com idas, bebidas,
namoro - que se desenrolava num espaço profano.
No espaço sag rado - a sala onde se "guardava"o
defu nto - não eram servidas as comidas e bebidas .
A elas era reservado u m espaço d iferenciado - na
rua , onde se acendia uma foguei ra , ou no fundo da
casa , na cozi nha. Todavia, estes espaços esta­
vam integ rados a uma espacial idade maior - a
casa'do morto�
Nos velórios atuais, o espaço não é mais o da
casa , mas sim um velório contratado , pago . Em
geral, anexo , existem os bares e cantinas. Aq ueles
que desejam comer ou beber algo, deslocam-se
ta mbém até este outro espaço e pagam o que
consome m .
A demarcação entre o s espaços sagrado e
profano se absol utiza m . Estes, já não i nteg ram a
espacial idade maiorda casa . Embora geografica­
mente aproxi mados, não guardam mais a antiga
relação. Talvez o com portamento de i r à ca ntina
para beber e abandonaro morto e sua fam ília, já no
restrito tem po em que ocorre o velório, seja visto
como desrespeitoso .
O velório, hoje anexo aos hospita is, ou aos
cem itérios, mantém algu mas características dos
antigos velórios. Não tem mais cantoria, não tem
mais reza a noite tod a , mas continua sendo uma
ocasião de encontro coletivo e de reag rupamento
de pessoas, que, m u itas vezes, só se encontram
nessas ocasiões, devido a amigos comuns. Apesar
da lanchonete, conti n ua-se servindo cafezi nho,
leite, biscoito , não j u nto ao cadáver, nãe para
todos, mas ainda existe "para dar mais conforto".
No d izer de RODRIGUES (6,p. 95)
"Os funerais sl10 as principais ocasiões de
encontro coletivo e de reagrupamento dos
individuos. (. . . ) Ocasiões em que os vivos
fazem um espetáculo para si mesmos, do qual
cada pessoa é ao mesmo tempo ator e espec­
tador, compondo um sistema de signos em
que se exprime a posiçl1o social do morto e a
de todos os participantes em relaçl10 ao grupo
familiar e à sociedade global".
o cortejo fúnebre
Os e nterros, naquela época , eram m u ito sim­
ples, populares: ca ixão feito sob medida, carrega-
do na alça porq uatro pessoas, com sentimento de
sol idariedade
. , o que amenizava o sofrimento pela
perda.
Na roça , no mato , os corpos e ram transporta­
dos em padiolas, redes, carroça , carro de boi ,
bangüê. Bang üê consistia e m :
"(. . . ) amarrava o lençol e m dois paus compri­
dos, punham o cadáverassim no meio e quatro
pessoas nas quatro' pontas dos paus. Na
cidade colocava o caixl1o". (D . Diva)
Dependendo da posição social do morto , usavam:-se outros meios para transportar o corpo :
"Agora aqueles fazendeiros, aquele pessoal
que tinha uma possezinha, tinha carro de boi,
outra hora era charrete e maiorparte do povo ia
a cavalo". (D . Custódia)
Nas cidades e em suas proximidades, termi­
nado o velório, o corpo era colocado no caixão, e
então ia para a m issa de "corpo prpsente"
'
encomendação da alma a Deus. Isto possi bilitava
a sua entrada no céu e, ao mesmo tempo, garantia
a sua saída deste m u ndo, seu não retorno à terra
dos vivos.
Antigamente o enterro era feito com m u ito
sacrifício . A maioria das pessoas ia a pé , caixão
ca rregado por quatro pessoas. H oje, mesm o nos
lugares onde não há m u ito recu rso, o enterro é
mais fáci l :
"Isso agora já tem carrinho; já· tem uma
empresinha lá, nesse lugar pequeno, entl1o,
cada um empurra um bocado, empurra na
estrada, a Rio-Bahia". (Sr. João)
A ú ltima morada
Os cem itérios eram sempre no alto de u m
morro , peq uenos, afastados da cidade, m u ro pin­
tado de branco, separando o m u ndo dos vivos do
m u ndo dos mortos. A inumação simbol izava a
saída defi n itiva do morto da sociedade dos vivos
e sua entrada no rei n o dos mortos.
I ndependentemente do papel desempenhado
pelo morto na sociedade, todos tinham seu espa­
ço delimitado pela cova (ou túmu lo) , e pela cruz
(ou lápide) identificando o "proprietário"daquele
espaço .
Atualmente os cem itérios são ainda n u m mor­
ro , mas, cada vez mais d isfarçados de acordo com
as representações q u e hoje se tem da morte.
M úsica am biente , vista para u m lago, colinas com
árvores, sem aq ueles sinais da morte, de a ntiga­
mente - sepultura , cruz, mausoléus, lápide de
R. Bras. Enferm. Brasília,
v.
48, n. I, p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 995
13
família.
Hoje estes espaços são confu nd idos com a
natureza , e até mesmo aten uados por ela. As
sepulturas, quando visíveis, são d iscretíssimas.
Assim , como diz RODR I G U ES (6,p.1
A morte é maquilada e por isso dificilmente
visfvel em sua verdadeira fisionomia. Ele [o
cemitério] co"esponde à versIJo moderna da
imposiçIJo de silêncio à morte. "
A volta para casa
Terminado o enterro, as atenções dos presentes
se deslocam do morto para os fam iliares:
"Depois do enterro, o pessoal costumava voltar
para casa juntos, para dar assistência à famf­
lia. "(D. Raimunda)
O "voltar para casa juntos': "a uniIJo" nos traz
à memória a noção de socialidade que expressa
"uma solidariedade de base que une os habitantes
de um mesmo lugar' (3,p52). No pensamento de
MAFESSOLl(3) , a noção de sócialidade u ltrapassa
a noção de social (racional) e i ncorpora todas as
min úsculas situações vividas no cotidiano societal.
Nesse sentido, o "ser-junto-com" assume u m
caráter med iador entre o que é rea l , uma situação
de morte, de perda, e o que se imagina, que se
pode fazer diante de tal situação. E, neste
momento, o que i m porta é "nIJo deixar a gente
sozinho", em q ue "a gente"que é o outro hoje, pode
ser o "nós" amanhã.
Por outro lado, o m ito da i mortalidade e o tabu
da morte, marcas da sociedade moderna ocidental,
e n g e n d ra m n o v o s r i t o s q u e d i n a m i z a m
comportamentos e atitudes d e pessoas e g ru pos
sociais consona ntes com os valores modern istas.
Daí, surgem formas diferenciadas, "racionalizadas"
condizentes com a sociedade atual, como nos
mostra a fala de D. Auxi liadora:
"Depois do ente"o aqui a pessoa esquece [a
morte] com mais facilidade. Acho que é a
ocupaçlJo, a vida é mais agitada, parece que o
pessoal distrai melhor. No interior ficava dias e
dias, ninguém tinha outro' assunto, ninguém
comentava outra coisa, só a morte da pessoa.
E aqui, nIJo; você vai ao enterro, depois que sai
do cemitério cada um vai viver sua vida normal"
A morte lemb rada
O que pudemos o bservar é que a prática do
luto, principalmente n o que se refere ao seu sinal
14
R. Bras. Enferm. Brasília,
v.
exteriorizado - o uso da cor preta no vestuário­
varia de acordo com o g rau de estreitamento do
vínculo social com o morto. É o que nos falaram os
nossos entrevistados:
"Quando o parente era muito próximo, pai,
mIJe, filho, vestia o luto fechado, (. . .) quando
era distante punha uma tarja preta no chapéu
. ou no braço". (Sr. Petrônio) .
A partir das representações si m bólico sociais
do luto , observamos que, de u m lado, era deverdo
enlutado manter u m isolamento do convívio social ,
e este isolamento só pod ia ser quebrado q uando
fosse-para participar de ritos de cu nho religioso .
Isto porque os ritos de expressão relig iosa , nas
situações de morte , já fazem parte do ritual fúne­
bre. E a Igreja passa a ser um espaço para
consternação individual e coletiva, onde as pesso­
as podem l i berar suas reações emocionais, pro­
vi ndas das lem branças daq uele que morreu recen�
temente . Por outro lado, a cor preta do vestuário
incorporava , ou deveria incorporar, todas as mani­
festações detristeza e dor, mostrando, si m bolica­
mente para todo o grupo, ou com un idade, o estado
de espírito da pessoa que perdeu um pa rente
próxi mo. Se alguém não se vestia de preto , era
sinal de que "(. . . ) nIJo tá ligando pra pessoa que
morre u" (Sr. Petrônio) .
S e h á meio século atrás, n a lembrança dos
entrevistados, a morte era mostrada e lem brada
em todas as suas manifestações e dimensões,
hoje ela perdeu o espaço para sua exteriorização
dando lugar a novos "ritos racionalizados". A cor
preta , por exemplo, passa a sim bol izar o "luxo" e
o l uto permanece e se transforma num senti mento
contido , não exteriorizado .
"(. . . ) a pessoa tem que ter luto é por dentro, é
no coraçIJo. "(Sr. Petrôn io)
"O luto [vestuário] nIJo representa o sentimen­
to, o sentimento está dentro da pessoa, está lá
dentro escondido, ninguém vê". (Sr. Reservindo)
3. CONSI DERAÇÕES FINAIS
A morte, enquanto fenômeno extremo, para
ser i nteg rada socialmente, exige que dela se
elaborem representações. Racional izada pelo
co n h e ci m e nt o c i e nt ífico , m o d e rn izada na
construção das manifestações, i m pessoalizada
nos cu idados tecnologizados, esconde novos
ritos, transmudados pelas novas representações
que a sociedade desenvolveu da morte.
Os ritos p e rs i st e m o b sc u re ci d o s p e l a
48, n. I, p. 7- 16, jan./mar.1995
praticidade do m u nd o modern o . S u bsistem l iga­
dos ao imaginá ri o coletivo com o rico aceNo da
história da h umanidade.
A i mortalidade dos ritos mortuários, a vitalida­
de com que perfu ram a camada densa da razão ,
demonstra q u e conservam, n a sua reatualização ,
seu forte potencial tera pêutico. As representações
sociais da morte , manifestada n os ritos, restau ram
o tecido social por ela fragi lizad o .
Avan ços tecnológ i cos e de conhecimentos
médico-biológicos determinararn a medicalização
social," e fizeram do ser humano um consumidor
de cuidados de saúde . Todavia, não afastaram a
angústia do homem d iante da morte , apesar da
parafernália da tecnologização da saúde. A ciência
não pode curara homem da m o rte , nem do medo
que ela suscita. Nestas frestas os ritos se insinuam,
co mo m ed iadores para este e nfrentamento.
Recompora perda, geren ciara desordem ca usada
pela morte, i ntegrá-Ia no cotidiano, ajudara aceitar
o fenômeno com sua estranheza , são fu nções
das ritual ísticas mortuárias.
N os rituais, gerenci ad os pel as poderosas
instituições hospitalares, os proflSS i onaisde saúde
assu m e m os papéis d a �oci edade . · A
i mpessoalidade i nstitu cional. apenas cam ufla o
ser-aí d os profissionais. A a pare nte frieza com
que recebem esta onerosa carga de prestar os
úJtimos cuidados ao moribundo, ao corpo morto, e
aos familiares, possibilita outras leiturasque devem
ir além do estereótipo. E é tam bém , como seres
humanos, que se deparam com a morte do outro ,
e esta explicita a s suas pró prias mortes.
Todavia, esta carga desagradável do lidar com
a morte é atenuada pela i nd iferença constru ída do
profissional de saúde. Estereoti pado na i magem
daq uele "acostumado" a esta tarefa , i mpõe-se a
ele (e ele mesmo se i m põe) , a repressão das
m a n ifestações e m ocio nais, escondendo n o
energismo, na aparente d u reza e praticidad e , o
vitalismo humano d o se r-aí-com-os-outros.
A paixão, que se manifesta n os sentimentos
p uros, se exterio riza nas várias máscaras, dentro
da teatralidade social. MAFFESOLl (3) reporta , ao
analisar a sexualidade, aos comportamentos hipo­
sexuais dos mártires e devotos da cristandad e ,
onde o corpo erasupliciado para a bafaros desejos
"
carnais. N esses supl ícios podem ser identificadas
verdadeiras manifestações org iásticas, e nas de­
m onstrações da fé em C risto , através dos
supl ícios, os d esejos corporais também eram
aten d idos. O profissionalismo exp l icitado no
<
d istanciamento d o ó bito poderia ser com preendi­
d o comQ u m tipo de com portamento h i po , que se
coloca como uma forma aliviadora e terapêutica
desta angústia d ia nte da morte, tal como as
explosões de e moções "exageradas" em h i per.
Assim , a aparente ausência de ritos, na morte
hospitalizada , pode ser vista como ritos às
avessas. A n egação dos ritos assegu ra as suas
presen ças, persegu i nd o os m esmos efeitos. "
O desejo, que sustentou a trajetória deste
trabalho, foi tocar o i ntocável , soltar a voz aprisio­
nada no mal-estar q u e o tema sempre causa,
reafirmar o lugar privilegiado do rito na compreen­
são d o vivido h u mano.
Acreditamos que, ao final d este trajeto , o texto
se coloca com o a i ncidência de luz em uma
perspectiva do fenômeno, enquanto outras faces
contin uam obscurecidas. Desvelarcada pequeno
ângulo, tendo certeza de que a i nteireza da morte
" sempre continuará desconhecida, é tarefa na q ual
desejamos q u e os profissionais de saúde se
envolvam . Estas aproximações sucessivas podem
criar interlocuções enriquecedoras que não elimi­
narão o mal-estar, mas q u e construi rão formas
mediadoras do seu enfrentamento. No vivido,
enquanto matéria-prima para o d esvelamento do
fenômeno, delineia-se u m a trajetória i mportante
para esta aproximação, i mpondo�se como via
metodológica de eleição .
Ouvir o s velhos, dar voz a este silêncio, tão
rico e subestimado, revelou-se para nós como u m
caminho fascinante. U m pouco da h istória d o
homem , da nossa história , ficou registrada . Os
sujeitos sent i ra m-se tão valorizad os que se
mostraram perplexos. Por q u e as pessoas da
universidade estavam precisando deles, d ispu­
nham-se a ouvi-los? O que de i mportante teriam
eles para n os ralatar? Na riq u eza deste acesso
escondido, tão pouco consu ltado, repousa a
sabedoria de quem viveu m u ito e tem m u ito a
d izer, basta perg untar-lhes. A alteridade destas
experiências i l u minou o ca m i n h o , alargou nosso
olhar e n os fez desvestirmo-nos de nossas
armaduras de profissionais, para captar o o"lhardo
o utro , diferente d o n osso e tão necessário à nossa
complementaridade.
Mais que entrevistados, eles foram nossos
g u ias, receberam-nos em suas casas e com suas
falas simples com o é a sabedori a , e ntrecortadas
de troPf;lços de l inguag e m , de emoção , de espan­
to , de prazer em se sentire m úteis, eles nos
legaram pedaços importa ntes do seu viver. Confi-
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48, n. 1 , p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 99S
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a ram a nós u m pouco das histórias de suas vidas
que unimos em config u rações coloridas pelo nos­
s o e n t u s i a s m o e refre a m o s , n o ri g o r
epistemológico , sem todavia e m pobrecê-Ias. Na
curva do tempo vivido, os sujeitos nos mostrara m ,
carinhosamente, que a m o rt e é dizível e que os
ritos falam dela, mesmo no silêncio i m posto pela
racionalid ade.
ABSTRACT: This a phenomenologial study rites i n the memory of elderly people , orig inated
from the discomfort lived by the a uthors in their professional life dealing with death and dying .
Verbal i nformation from elderly people was collected with the objective of recovery a nd
decod ing mortuary rites. N i n e themes orig inated from these informations: feel i ngs a nd
meanings i n relation to death , the time of death , the a n n unciation death , the body's
preparations, the watcher, the fu nera l procession , the g rave, the ret u m to home, the
remembered death. The resu lts gave the a uthors opportun ity to understand better the
attitudes of health professionals in ca ri ng for patients and their fam i l ies i n this existencial
experience of to - be - for - death . The death rational ized by scientific knowledge a nd
nonpersonal tech nolog ical care h ides new rites, transmuted by new representations which
the society built.
KEYWORDS : Attitude to death - Funera l rites - Ederly - Patient care team
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sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1 994.
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Encaminhado para publicaçao em 4/1 1 / 94.
Aprovado' para publicaçao em 20/2/95.
48, n. 1, p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 995
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