UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL MARINA DE OLIVEIRA MELIM Itajaí, novembro de 2010 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL MARINA DE OLIVEIRA MELIM Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Professora Msc. Queila Jaqueline Nunes Martins Itajaí, de novembro de 2010 AGRADECIMENTO Agradeço imensamente aos meus pais, Erico e Marli, pela educação baseada em trabalho e determinação, que proporcionou a conclusão deste curso; em especial à minha mãe, por tamanha preocupação com este trabalho acadêmico. Agradeço também aos meus irmãos, Mariana e Jean, e ao meu querido Angelo pelo carinho e os momentos de descontração, bem como a Dalton e Rose pelo apoio e incentivo. Do mesmo modo, agradeço a Prof. Queila, pelo auxílio prestado nesta pesquisa. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a Claudio Melim, por ser meu grande e compreensivo amigo, fiel companheiro, dedicado e carinhoso esposo, uma pessoa definitivamente especial. Afirmo que este trabalho foi concluído devido ao seu apoio e paciência. Desde já, faço esta dedicatória também a Maria Helena de Oliveira Melim, o nosso anjo. TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo. Itajaí, novembro de 2010 Marina de Oliveira Melim Graduando PÁGINA DE APROVAÇÃO A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Marina de Oliveira Melim, sob o título A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias: uma análise jurisprudencial, foi submetida em 25 de novembro de 2010 à banca examinadora composta pelos seguintes professores: Msc. Queila Jaqueline Nunes Martins, orientadora e presidente da banca e Msc. Emanuela Cristina de Andrade Lacerda, examinadora, e aprovada com a nota ___________, _______________________. Itajaí, novembro de 2010 Professora Msc Queila Jaqueline Nunes Martins Orientadora e Presidente da Banca Professora Msc Emanuela Cristina de Andrade Lacerda Examinadora da Monografia SUMÁRIO RESUMO ........................................................................................... VII INTRODUÇÃO ..................................................................................... 1 CAPÍTULO 1 ........................................................................................ 3 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS ................................................................................... 3 1.1 PERSONALIDADE JURÍDICA ......................................................................... 3 1.2 A PERSONIFICAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA .............................................. 8 1.3 AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO ...................................... 13 1.4 AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS ............................................................... 16 CAPÍTULO 2 ...................................................................................... 23 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: DISREGARD DOCTRINE .................................................................. 23 2.1 BREVE HISTÓRICO ....................................................................................... 23 2.2 AS PESSOAS JURÍDICAS E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 30 2.3 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 34 2.4 ASPECTOS PROCESSUAIS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 53 CAPÍTULO 3 ...................................................................................... 56 UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA .............. 56 3.1 DIREITO CIVIL ............................................................................................... 56 3.2 DIREITO DO TRABALHO .............................................................................. 64 3.3 DIREITO DO CONSUMIDOR ......................................................................... 70 3.4 DIREITO TRIBUTÁRIO................................................................................... 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 80 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 84 RESUMO O presente trabalho aborda uma análise jurisprudencial acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Destaca as categorias necessárias para embasar o entendimento do instituto, qual sejam personalidade jurídica e pessoa jurídica, bem como destaca os aspectos relevantes acerca da teoria como forma de compreensão da conceituação e aplicabilidade da teoria no caso concreto, além de demonstrar as divergências consistentes em cada tema. Por fim, apresenta vários julgados que demonstram os diferentes entendimentos e pressupostos para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no ramo do direito civil, do direito do trabalho, do direito do consumidor e do direito tributário. INTRODUÇÃO A presente Monografia tem como objeto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O seu objetivo é elaborar um estudo acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica com base na norma positivada e no entendimento doutrinário, bem como analisar a sua aplicabilidade no caso concreto através da apresentação de julgados de distintos tribunais. Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando de apresentar os conceitos para determinadas categorias da parte geral do Direito Civil, que servem de embasamento teórico para compreensão do instituto da desconsideração, quais sejam “personalidade jurídica” e “pessoa jurídica”. Além de demonstrar a personificação da pessoa jurídica, as pessoas jurídicas de direito privado e as sociedades empresárias. No Capítulo 2, tratando de trabalhar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, elucida-se o histórico do surgimento do instituto, os dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro relativos à teoria, a analise das categorias pertinentes ao entendimento da aplicabilidade da desconsideração, bem como o destaque dos aspectos processuais. No Capítulo 3, tratando de demonstrar a aplicabilidade da teoria através da analise de julgados de diversos ramos do direito, como o direito civil, do consumidor, do trabalho e tributário. As categorias fundamentais para a monografia, bem como os seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer da monografia. O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 2 Para a presente monografia foram levantadas as seguintes hipóteses: Hipótese 1 - A autonomia patrimonial é um direito absoluto, que não admite, em qualquer hipótese, a equiparação da sociedade com os sócios que a compõe. Hipótese 2 - No âmbito do direito civil, do direito do trabalho, do direito do consumidor e do direito tributário têm que estar, obrigatoriamente, presentes as causas do art. 50 do Código Civil, ou seja, o abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade e confusão patrimonial para que seja admitida a desconsideração da personalidade jurídica. Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação1 foi utilizado o Método Indutivo2, na Fase de Tratamento de Dados o Método Cartesiano3, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é composto na base lógica Indutiva. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas do Referente4, da Categoria5, do Conceito Operacional6 e da Pesquisa Bibliográfica7. 1 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101. 2 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104. 3 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26. 4 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 62. 5 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31. 6 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45. 7 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 239. CAPÍTULO 1 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS 1.1 PERSONALIDADE JURÍDICA O presente trabalho científico parte do pressuposto de que o respeito à diversidade e à dinamicidade do conhecimento humano, em especial do conhecimento jurídico, se apresenta como um requisito necessário para que a pesquisa seja realizada com o devido cuidado em relação à conceituação das categorias centrais utilizadas pelo texto, evitando que a compreensão das idéias aqui expostas seja eventualmente comprometida por percepções semânticas inadequadas ao contexto teórico no qual está inserida esta monografia. Sobre isso, Tércio Sampaio Ferraz8 ensina que: Ao analisarmos a discussão, delimitamos nosso campo de interesse na medida em que nos fixamos no discurso enquanto discussão fundamentante ou discurso que se fundamenta. [...] A discussão fundamentante deve ser entendida como discussão racional. A palavra ‘racional’ é extremamente equívoca e exige uma explicação. Uma discussão é por nós denominada racional quando os agentes do discurso não deixam as ações lingüísticas que executam determinarem-se por elementos exteriores à própria discussão, no sentido de que esses eventuais elementos devam ser postos pela discussão, em termos de mútuo entendimento. [...] Em outras palavras, poderíamos dizer que uma discussão é racional quando os agentes não se deixam determinar por meras emoções ou por meras tradições e costumes. (Grifo nosso) 8 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. (p. 29-30) 4 Assim, este primeiro capítulo inicia destacando características conceituais pontuais sobre as categorias principais, a fim de estabelecer uma base semântica mínima que colabore para a identificação segura dos elementos teóricos que se mostram relevantes para a formulação de um entendimento doutrinário acerca das características constitutivas da Personalidade Jurídica no âmbito do Direito Civil brasileiro. A palavra Personalidade, em sentido comum, representa basicamente o conjunto de características naturais e culturais que individualizam uma pessoa perante seu meio social, sendo que isso pode ser constatado através das definições gerais que lhe atribui o Dicionário Aurélio9: [...] personalidade [...] 1. Caráter ou qualidade do que é pessoal; pessoalidade. 2. O que determina a individualidade duma pessoa moral. 3. O elemento estável da conduta de uma pessoa; sua maneira habitual de ser; aquilo que a distingue de outra [...]. Essa conceituação coloquial da palavra Personalidade também tem seu uso científico fortemente amparado pelo desenvolvimento da Psicologia, tendo em vista o trabalho de construção das chamadas “Teorias da Personalidade”, para as quais, em sua grande maioria: A personalidade consiste concretamente em uma série de valores ou termos descritivos que descrevem o indivíduo que está sendo estudado em termos das variáveis ou de dimensões que ocupam uma posição central dentro de uma teoria específica.10 Embora esse significado mais comum da palavra Personalidade ampare notoriamente o trabalhado de estudiosos da Psicologia, o mesmo, para efeitos deste trabalho, serve como indicativo para um dos sentidos jurídicos atribuídos a esta palavra, conforme se pode perceber pela formulação de 9 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XX. (p. 1553) 10 HALL, Calvin S; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade. (p. 33) 5 Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery11, que, ao definirem o que vem a ser “Sujeito de direito”, explicam que: É a pessoa, ou seja, o ente dotado de personalidade. A personalidade civil (CC 2º), ou simplesmente, personalidade, é a qualidade de quem é pessoa e é a marca determinante de individualização do sujeito como sendo aquele determinado e específico sujeito de direito, não outro. (Grifo nosso) Ou seja, no âmbito do Direito, ainda que não apenas isso, a palavra Personalidade também representa a individualidade da pessoa perante seu ambiente social, uma vez que toda e qualquer ordem jurídica se estabelece com o fim precípuo de acomodar interesses e relações exclusivamente humanas, tornando imprescindível a determinação de atributos que possam individualizar as pessoas perante este processo de organização jurídica da sociedade. Assim, a partir dessa necessidade de distinção das pessoas perante o ordenamento jurídico ao qual estão submetidas, surge a chamada Personalidade Jurídica. Além de determinadora de atributos individualizadores da pessoa perante o mundo do Direito, a categoria Personalidade Jurídica pode ser entendida também como a aptidão de adquirir direitos e contrair obrigações. Neste sentido, Bruno Mattos e Silva12 explica: [...] Já se disse que a personalidade jurídica nada mais é do que a aptidão atribuída pela ordem jurídica a pessoas para exercer direitos e contrair obrigações, ainda que seja necessária a assistência ou a representação por outras pessoas. Ou seja, quem tem personalidade jurídica pode ser sujeito de direitos e deveres jurídicos. No mesmo caminho, ao definir o significado geral da palavra Personalidade, inserida no contexto jurídico, Maria Helena Diniz13 explica que, 11 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 197) 12 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 179) 13 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 661, v.3) 6 para o Direito Civil, essa palavra (Personalidade) significa “[...] Aptidão, reconhecida juridicamente, para exercer direito e contrair obrigações”. Ora, unindo as duas percepções acerca da palavra Personalidade, a comum, que entende a mesma como um conjunto de características individualizadoras da pessoa, e a jurídica, que a define como a aptidão para exercer direitos e contrair obrigações, pode-se, por inferência, propor que, para efeitos deste texto, a categoria Personalidade Jurídica seja entendida como um conjunto de características gerais – juridicamente determinadas – que individualizam a pessoa perante seu contexto social, a fim de torná-la apta para exercer direitos e contrair obrigações. Ocorre que tal entendimento, tendo em vista o pressuposto estabelecido pelo primeiro parágrafo deste capítulo, evidencia a relevância de outra categoria de extrema importância para este trabalho, que é a “Pessoa”, sendo que essa evidência torna importante o destaque da formulação de Bruno Mattos e Silva14, que, ao complementar a sua explicação sobre a Personalidade Jurídica, esclarece que: Seja como for, é certo que, nos dias de hoje, o direito confere personalidade jurídica a qualquer ser humano, independentemente da idade, do sexo, da condição social, da raça ou de qualquer outro atributo. Todo ser humano tem personalidade jurídica. Juridicamente, o ser humano é chamado de pessoa física ou pessoa natural. E, além disso: O direito pode conferir personalidade jurídica a certas entidades, que são chamadas de pessoas jurídicas ou de pessoas morais. O próprio ordenamento jurídico estabelece quais são as condições para que determinadas entidades sejam consideradas pessoas. Ou seja, a partir do citado esclarecimento, além da distinção existente entre os dois tipos de pessoas, a física (ou natural) e a jurídica (ou 14 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 179) 7 moral), percebe-se que a noção de Personalidade Jurídica, em sentido amplo, não deve ser confundida com a de Pessoa Jurídica, pois a Personalidade Jurídica, nesse sentido, é uma característica tanto das pessoas físicas quanto das jurídicas. Nesta direção, Gladston Mamede15 ensina que: [...] a personalidade jurídica é um véu que veste cada personagem (cada ator, cada pessoa) do cenário e da trama jurídica, podendo ser colocado sobre um único ser humano (da mesma maneira que, em alguns sistemas jurídicos, pode haver seres humanos sem o véu da personalidade jurídica, a exemplo dos condenados à morte civil – civil deth), sobre um conjunto de pessoas (universitates personarum), um conjunto de bens (universitates bonorum) etc. Também essa formulação de Mamede torna importante o alerta sobre a distinção entre Personalidade Jurídica (em sentido amplo) e a Pessoa Jurídica, tendo em vista a extensa utilização, pela doutrina, da expressão Personalidade Jurídica para ambas as situações, ora em sentido amplo, como nas explicações acima citadas de Bruno Mattos e Silva e de Gladston Mamede, ou então servindo como atributo exclusivo e ou até como sinônimo direto da categoria Pessoa Jurídica, o que pode ser verificado através do “Dicionário Jurídico” de Maria Helena Diniz16, no qual, ao definir especificamente o verbete “Personalidade Jurídica”, a autora afirma se tratar da: Qualidade das pessoas jurídicas de direito privado (associações, sociedades, fundações) e de direito público (União, Estados, Municípios, autarquias, fundações públicas) que as torna capazes para a prática de atos jurídicos, uma vez que são reconhecidas pela lei, tendo direitos e deveres próprios, que não se confundem com os das pessoas naturais que nelas atuam. 15 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 29) 16 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 661, v.3) 8 Evidenciando que, nesse caso, “Personalidade Jurídica” se apresenta como uma categoria diretamente ligada à noção de Pessoa Jurídica, sendo que tal opção conceitual se justifica no texto citado, uma vez que a autora utiliza, para definir a Personalidade Jurídica das Pessoas Físicas (ou naturais), a expressão “Personalidade Civil”, a qual ela conceitua como sendo a: Aptidão legal de ser sujeito de direitos. [...] Qualidade de pessoa natural que se inicia com o nascimento, gerando direitos e deveres, no âmbito patrimonial e obrigacional, na seara cível [...]. Tratam-se apenas de opções teóricas conceituais distintas que, se devidamente esclarecidas e compreendidas pelo leitor, não trazem maiores conseqüências para a efetividade do processo de comunicação, seja ele verbal escrito ou oral. Não obstante, para efeitos deste trabalho, a categoria Personalidade Jurídica será utilizada sempre em sentido amplo, significando, como já dito anteriormente, um conjunto de características gerais – juridicamente determinadas – que individualizam a pessoa, seja ela física ou jurídica, perante seu contexto social, a fim de torná-la apta para exercer direitos e contrair obrigações. 1.2 A PERSONIFICAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA Inicialmente, quanto à diferenciação entre as categorias Pessoa Física (ou natural) e Pessoa Jurídica, distinção essa de extrema relevância para os objetivos do presente estudo, destaca-se a formulação de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery17, através da qual os autores explicam que: Pessoa natural é sinônimo de pessoa física, ser humano, ou ‘pessoa singular’. É termo utilizado para distinguir o homem de outros titulares de direito que o são por processo artificial de ficção jurídica. O direito confere personalidade às 17 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 197) 9 pessoas naturais (ou pessoas físicas) e, por ficção, às pessoas jurídicas, ou pessoas ‘coletivas’ (CC 40 e 69). Todas elas podem ser sujeitos de direitos e de obrigações. Por sua vez, Maria Helena Diniz define a categoria “Pessoa Natural” (ou física) como sendo o “[...] Ser humano considerado como sujeito de direitos e obrigações”18, e a categoria “Pessoa Jurídica” como uma “Unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”19. Para Fábio Ulhoa Coelho20: Pessoa jurídica é um expediente do direito destinado a simplificar a disciplina de determinadas relações entre os homens em sociedade. Ela não tem existência fora do direito, ou seja, fora dos conceitos tecnológicos partilhados pelos integrantes da comunidade jurídica. Tal expediente tem o sentido, bastante preciso, de autorizar determinados sujeitos de direito à prática de atos jurídicos em geral. Através dessas citações se percebe, desde logo, a característica inicial e mais evidente que diferencia juridicamente as Pessoas Físicas das Pessoas Jurídicas, pois, enquanto a Pessoa Física (ou natural) possui uma existência real (física e corporal), a Pessoa Jurídica se caracteriza como sendo uma ficção resultante de essencialidades jurídicas que visam, conforme as citadas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, “[...] simplificar a disciplina de determinadas relações entre os homens em sociedade”. Ou seja, enquanto a Pessoa Física se estabelece de forma real (material), a Pessoa Jurídica se constitui de forma virtual, existindo apenas de maneira fictícia no âmbito do ordenamento jurídico. Partindo dessa diferenciação essencial entre os dois tipos de Pessoas (Físicas e Jurídicas) e com vistas ao foco do presente estudo, surge 18 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 671, v.3) 19 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 669, v.3) 20 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 112) 10 então outra característica diferenciadora extremamente relevante, a qual se refere aos diferentes modos de surgimento da existência de tais Pessoas perante o mundo jurídico, ou seja, quanto à identificação do momento efetivo da personificação jurídica dessas Pessoas, sejam elas Físicas ou Jurídicas. Neste sentido, a existência das Pessoas Físicas começa, para o Direito brasileiro, nos moldes do artigo 2º do Código Civil de 2002, com o “nascimento com vida” da pessoa natural (ser humano), enquanto o início da “vida” da Pessoa Jurídica se dá a partir do seu ato jurídico constitutivo. Ou seja, enquanto a Pessoa Física se personifica juridicamente a partir de um fato biológico (natural), que é o nascimento de um ser humano, a Pessoa Jurídica ganha sua personalidade perante o mundo do direito a partir de um ato humano voluntário, de natureza cultural, o qual deve se pautar por regras jurídicas previamente estabelecidas, a fim de ser considerado válido perante a sociedade juridicamente constituída. Cabe aqui um pequeno registro acerca dos direitos do nascituro, o qual, ainda que não tenha adquirido personalidade jurídica, já se caracteriza como um sujeito de direito. Sobre isso, Nelson Nery21 explica que: Antes de nascer o nascituro não tem personalidade jurídica, mas tem natureza humana (humanidade), razão de ser de sua proteção jurídica pelo CC: Infans conceptus pro nato habetur. O direito de nascer é o primeiro do homem. Para que se possa iniciar uma compreensão acerca do “nascimento” da Pessoa Jurídica e, conseqüentemente, das características específicas da sua personificação perante o Direito, torna-se importante destacar a explicação de Fábio Ulhoa Coelho22, para quem: No direito brasileiro, as pessoas jurídicas são divididas em dois grandes grupos. De um lado, as pessoas jurídicas de direito público, tais a União, os Estados, os Municípios, o 21 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 199) 22 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 109) 11 Distrito Federal, os Territórios e as autarquias; de outro, as de direito privado, compreendendo todas as demais. Conforme essa explicação e nos moldes do que estabelece o artigo 41 do Código Civil de 2002, infere-se que, dentre outras características, as Pessoas Jurídicas de direito público são instituídas “por lei”, enquanto, por sua vez, as Pessoas Jurídicas de direito privado “nascem” a partir de um acordo de vontades, que passa a valer juridicamente “com a inscrição no respectivo registro” (artigo 45 do Código Civil). Ou seja, ainda que tanto as Pessoas Jurídicas de direito privado quanto às de direito público tenham a sua constituição realizada por um ato jurídico, esse ato difere em cada um dos casos, caracterizando-se por um acordo de vontades levado ao registro no primeiro caso (privado) e por um ato legislativo no segundo (público). Sobre isso, Gladston Mamede23 ensina que: A criação e existência de uma pessoa jurídica de Direito Privado é escrituralmente assinalada. [...] O ato constitutivo é o primeiro elemento da dimensão escritural da pessoa jurídica; será um contrato social [...] ou estatuto [...]. Para além do ‘véu da personalidade civil’, que permite a compreensão da sociedade como uma pessoa jurídica, estáse diante de um acordo de vontades, registrado em instrumento próprio (estatuto ou contrato social). Diante dos objetivos propostos pela presente monografia, mostra-se desnecessário qualquer aprofundamento teórico sobre as Pessoas Jurídicas de direito público, uma vez que tal abordagem pouco contribuiria para uma compreensão acerca do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Empresárias. Como visto através da citada formulação de Gladston Mamede, quanto ao ato constitutivo das Pessoas Jurídicas de direito privado, o mesmo pode se realizar de duas formas: por contrato ou estatuto. 23 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 31-32) 12 Sobre eles, o mesmo autor24 estende suas explicações, esclarecendo que tanto o contrato como o estatuto se caracterizam como um instrumento que: [...] define as relações entre os membros da entidade e, portanto, arbitra os limites à atuação de cada qual, permitindo compor o regulamento pelo qual a pessoa jurídica resolverá seus ‘assuntos internos’. Ali, no plano interno, vale dizer, das relações entre os sócios, não há personificação: há o acordo de vontade, o regulamento, o contrato que, no plano externo, será institucionalizado como uma pessoa. Caindo no perigoso plano das analogias, ouse lembrar aqueles longos dragões de pano do folclore chinês: para quem os vê de fora, trata-se de uma figura única: a personagem dragão (sua pessoa); para quem deles participa, trata-se de um conjunto de atos e relações entre indivíduos (por vezes dois, por vezes muito mais) que devem agir harmonicamente (seguindo determinados padrões de comportamento, respeitando limites e funções) para que a personagem possa cumprir suas finalidades. Ocorre que o ato constitutivo por si só, seja ele um contrato ou um estatuto, não faz nascer automaticamente a Personalidade da Pessoa Jurídica perante o mundo do Direito, pois, nos moldes do disposto pelo artigo 45 do Código Civil de 2002: Art. 45 Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Ou seja, o “véu” da Personalidade Jurídica passa a cobrir a Pessoa Jurídica apenas depois da regular inscrição do seu ato constitutivo no 24 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 32) 13 respectivo órgão de registro, o qual (órgão) será determinado conforme o tipo de ato constitutivo que se pretenda registrar. 1.3 AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO Conforme prevê o artigo 44 do Código Civil brasileiro, são consideradas Pessoas Jurídicas de direito privado: as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos. Entretanto, Bruno Mattos e Silva25 ressalva que: Há entendimento no sentido de que esse rol [do artigo 44] não seria exaustivo, isto é, podem existir outras pessoas de direito privado, além das associações, sociedades, fundações, partidos políticos e organizações religiosas. Avalio, contudo, que esse entendimento somente pode ser aceito caso a lei estabeleça a existência de um outro tipo de pessoa jurídica de direito privado com características e regime jurídico diferente das pessoas previstas no art. 44. E exemplifica o contexto, afirmando que: Pode a lei criar abstratamente um novo tipo de pessoa jurídica ou criar ou autorizar a criação de uma pessoa jurídica específica (ex.: uma empresa pública). Nesse sentido, não há dúvidas que uma empresa pública é uma pessoa jurídica de direito privado, embora não prevista no rol do art. 44 do novo Código Civil. As associações, nos termos do artigo 53 do Código Civil brasileiro, são constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos, ou seja, que se estabeleçam juridicamente para a consecução de objetivos que, mesmo desenvolvendo atividades econômicas, não tenham o lucro como o seu objetivo final. 25 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 194-195) 14 Neste sentido, Nelson Nery26 explica que: Constituídas por um número mais avantajado de indivíduos, tendo em vista fins morais, pios, literários, artísticos, em suma, objetivos não econômicos, as associações se propõem a realizar atividades não destinadas a proporcionar interesse econômico aos associados. As associações podem participar de atividades lucrativas para alcançar objetivos. O que não faz parte da essência da associação é o lucro como finalidade. O eventual lucro arrecadado por esta associação deve ser nela “reinvestido”. Por seu turno, as fundações têm como característica essencial não se constituírem pela união de pessoas, mas sim pela “afetação de um patrimônio a uma determinada finalidade mediante a criação de pessoa jurídica sem a existência de sócios”27. Ou seja, no caso das fundações inexistem os sócios (pessoas naturais). Quanto à finalidade das fundações, em seu parágrafo único, o artigo 62 do Código Civil brasileiro estabelece que “A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”, entretanto, assim como ocorre com as associações, Bruno Mattos Silva28 explica que: [...] isso não significa que a fundação não possa praticar atos de conteúdo econômico como meio para obter receitas para as suas atividades. Pode a fundação, por exemplo, ser locadora de um imóvel e obter renda. Além das associações e fundações, bem como das sociedades, que serão vistas de maneira mais aprofundada a seguir, o rol estabelecido pelo artigo 44 do Código Civil brasileiro também inclui, como Pessoas Jurídicas de direito privado, os partidos políticos e as organizações religiosas. 26 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253) 27 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 195) 28 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 196) 15 Os partidos políticos são regidos por legislação própria e sua criação e regulamentação decorre de princípios constitucionalmente estabelecidos, o que se verifica pelo ensinamento de Nelson Nery29, para quem: A liberdade de criar ou de participar de partido político é decorrência do princípio constitucional de liberdade de associação previsto na CF 5º XVII. A criação se dá na forma da L. 9096/95, sendo vedada, nos termos do CF 5º XVIII, qualquer interferência estatal em seu funcionamento. [...] Conquanto a CF 17 garanta a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, não pode essa espécie de associação civil ferir os princípios da soberania nacional, do regime democrático, do pluripartidarismo, observados sempre os direitos fundamentais do homem. As organizações religiosas, por sua vez, em razão do disposto pelo § 1º do artigo 44 do Código Civil brasileiro, acrescentado pela Lei nº 10.825/2003, são livres quanto a sua criação, organização, estrutura interna e funcionamento, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. Entretanto, quanto a essa liberdade estabelecida pelo referido § 1º do artigo 44 do Código Civil brasileiro, Bruno Mattos Silva30 salienta que: [...] tal liberdade não é absoluta. Evidentemente, não poderão prever os estatutos que a organização religiosa proverá lavagem de dinheiro ou que seus fiéis serão escravos, por exemplo. O alcance do dispositivo é apenas no tocante às regras aplicáveis à criação, organização, estruturação e funcionamento das organizações religiosas previstas para as demais pessoas jurídicas. Ou seja, a liberdade concedida às organizações religiosas não as exclui do controle de legalidade e legitimidade constitucional de seu 29 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253) 30 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 196) 16 registro, bem como do reexame pelo Poder Judiciário da compatibilidade de seus atos com a lei e com seus estatutos. Por fim, tem-se as sociedades também como tipos de Pessoas Jurídicas de direito privado, as quais, pelo conteúdo do artigo 981 do Código Civil brasileiro, caracterizam-se como a união contratual de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Para Maria Helena Diniz31, a categoria Sociedade, no âmbito do Direito Comercial, pode ser entendida como uma: Reunião de duas ou mais pessoas que combinam pôr em comum seus bens, sua indústria, ou seus bens e indústria, conjuntamente, para obter lucros, repartindo entre si os proveitos e as perdas resultantes dessa comunhão [...]. Assim, fica evidenciado que os elementos que identificam as Pessoas Jurídicas de direito privado do tipo Sociedades são a união contratual de pessoas e a finalidade econômica (intuito de lucro). 1.4 AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS Pelo conteúdo do artigo 982 do Código Civil, extrai-se que dois são os tipos de Sociedades possíveis: a empresária e a simples. Sendo que, conforme Fábio Ulhoa Coelho32: A distinção entre sociedade simples e empresária não reside, como se poderia pensar, no intuito lucrativo. [...] O que irá, de verdade, caracterizar a pessoa jurídica de direito privado não estatal como sociedade simples ou empresária será o modo de explorar o seu objeto. O objeto social explorado sem empresarialidade (isto é, sem 31 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 487, v.4) 32 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 110-111) 17 profissionalmente organizar os fatores de produção) confere à sociedade o caráter de simples, enquanto a exploração empresarial do objeto social caracterizará a sociedade como empresária. Percebe-se então que a existência ou não de uma organização de bens materiais e imateriais (intelectuais) com fito mercantil é o que distingue as Sociedades do tipo empresárias e simples. Esclarecendo esta distinção, no que tange as características das Sociedades do tipo simples, Gladston Mamede33 explica que: É o que se passa com algumas sociedades de profissionais liberais, nas quais cada um dos sócios desempenha, isolada e independentemente, por força de lei (ex vi legis) ou em virtude da vontade (ex voluntate), o objeto social. A sociedade de advogados é um exemplo de sociedade simples ex vi legis, já que tal característica é determinada pelos artigos 16 e 17 da Lei 9.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil). Para exemplificar uma situação de sociedade simples ex voluntate, cito a sociedade estabelecida por dentistas, com nome de estabelecimento (Grupo Odontológico), estrutura comum (prédio, telefones, aparelho de radiografia etc.), pessoal comum (secretária, telefonista, copeira, faxineira), mas na qual cada dentista conserva sua própria carteira de clientes, aos quais serve pessoalmente. Feitos esses destaques acerca da distinção entre as Sociedades do tipo simples e as do tipo empresárias, cabe aqui uma explicação de Nelson Nery34 sobre a separação legal dos conceitos de Empresário e de Sociedade Empresária. Para o autor: A opção do legislador foi a de dividir a atividade empresarial exercida por pessoa física de outra exercida por pessoa 33 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 07) 34 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253) 18 jurídica. Empresário é a pessoa física que exerce atividade empresarial (CC 966); sociedade empresária é a pessoa jurídica que exerce atividade empresarial (CC 982). Ou seja, tal formulação deixa claro que o Empresário, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que seja inscrito no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ por questões de ordem fiscal tributária, não é ele (Empresário) Pessoa Jurídica e sim uma Pessoa Física que exerce a atividade empresarial. Por sua vez, a atividade empresarial pode ser caracterizada como aquela que articula os fatores de produção (capital e trabalho) com o objetivo de produção e circulação de bens e serviços para obtenção de resultados econômicos favoráveis (lucro) que proporcionem o acréscimo patrimonial dos envolvidos, sejam eles os Empresários (pessoas físicas) ou os sócios de uma Sociedade Empresária (pessoa jurídica). Ficando evidenciado que a característica comum entre os Empresários e a Sociedade Empresária está no exercício da atividade empresarial. Dito isso, cabe destacar que desta relação (entre Empresário e Sociedade Empresária) percebe-se uma diferença essencialmente relevante para os objetivos deste trabalho, pois enquanto o Empresário (individual) exerce a atividade empresarial a partir da sua própria personalidade jurídica, ou seja, daquela que reveste juridicamente a sua pessoa física, a Sociedade Empresária, após o devido registro do seu ato constitutivo nos órgãos respectivos, desenvolve a sua existência apoiada na personificação da sua pessoa jurídica, ou seja, na sua própria personalidade jurídica. Essa diferença é relevante, pois é justamente este véu personalístico que passa a recobrir a Sociedade Empresária, distinguindo-a das personalidades de seus sócios, que, com o apoio do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, pode ser judicialmente retirado com o intuito de expor as personalidades jurídicas dos sócios (e seus patrimônios pessoais) a fim de responsabilizá-los (penalizá-los) por conseqüências danosas que eventualmente 19 tenham provocado para a ordem social, escondidos atrás da proteção da pessoa jurídica da Sociedade Empresária da qual participam. A partir dos ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho35, destacam-se três conseqüências bastante precisas da personalização das sociedades empresárias, as quais conferem a sua pessoa jurídica certa autonomia que acaba, por vezes, viabilizando as ferramentas para a prática de atos abusivos e/ou fraudulentos de seus sócios contra outras pessoas (físicas ou jurídicas), são elas: a) Titularidade negocial – quando a sociedade empresarial realiza negócios jurídicos (compra matéria-prima, celebra contrato de trabalho, aceita uma duplicata etc.), embora ela o faça necessariamente pelas mãos de seu representante legal [...], é ela, pessoa jurídica, como sujeito de direito autônomo, personalizado, que assume um dos pólos da relação negocial. O eventual sócio que a representou não é parte do negócio jurídico, mas sim a sociedade. b) Titularidade processual – a pessoa jurídica pode demandar e ser demandada em juízo; tem capacidade para ser parte processual. A ação referente a negócio da sociedade deve ser endereçada contra a pessoa jurídica e não os seus sócios ou seu representante legal. Quem outorga mandato judicial, recebe citação, recorre, é ela como sujeito de direito autônomo. c) Responsabilidade patrimonial – em conseqüência, ainda, de sua personalização, a sociedade terá patrimônio próprio, seu, inconfundível e incomunicável com o patrimônio individual de cada um de seus sócios. Sujeito de direito personalizado autônomo, a pessoa jurídica responderá com o seu patrimônio pelas obrigações que assumir. Os sócios, em regra, não responderão pelas obrigações da sociedade. 35 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 113-114) 20 Certo é que nem todo tipo de sociedade empresária facilita juridicamente a prática de atos abusivos e/ou fraudulentos por parte de seus sócios. Neste sentido, torna-se relevante um rápido destaque acerca dos tipos societários existentes no direito empresarial brasileiro, bem como dos critérios de classificação dessas sociedades no que tange pontualmente a responsabilidade dos sócios pelas obrigações da Sociedade Empresária. Segundo Gladston Mamede36: As sociedades empresárias personalizadas devem adotar um dos tipos societários anotados nos artigos 1.039 a 1.092 do Código Civil: (1) sociedade em nome coletivo; (2) sociedade em comandita simples; (3) sociedade limitada; (4) sociedade anônima; (5) e sociedade em comandita por ações. Para efeitos do presente texto, não se mostra relevante uma abordagem aprofundada acerca das características gerais de cada um dos citados tipos de sociedade, restando importante apenas destacar a questão relativa à classificação das mesmas quanto à responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Tendo em vista a já apontada autonomia patrimonial da Sociedade Empresária, nascida da sua personalização perante o ordenamento jurídico, em regra, os sócios não respondem pelas obrigações da mesma, sendo isso definido pelo artigo 1.024 do Código Civil brasileiro nestes termos: “Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”. Ou seja, a responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade empresária é sempre subsidiária. Assim, quando se fala em subsidiariedade, diz-se que só quando estiverem esgotadas as forças patrimoniais da sociedade é que se poderá pensar em executar o patrimônio particular dos sócios por passivos sociais. 36 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 07) 21 A partir daí, Fábio Ulhoa Coelho37 ensina que: Se o patrimônio social não foi suficiente para integral pagamento dos credores da sociedade, o saldo do passivo poderá ser reclamado dos sócios, em algumas sociedades, de forma ilimitada, ou seja, os credores poderão saciar seus créditos até a total satisfação, enquanto suportarem os patrimônios particulares dos sócios. Em outras sociedades, os credores somente poderão alcançar dos patrimônios particulares um determinado limite, além do qual o respectivo saldo será perda que deverão suportar. Em um terceiro grupo de sociedades, alguns sócios têm responsabilidade ilimitada e outros não. Neste sentido, as Sociedades Empresárias podem ser classificadas em três tipos: a) Sociedade ilimitada: na qual os sócios respondem todos ilimitadamente pelas obrigações sociais, sendo que no direito brasileiro apenas a sociedade em nome coletivo se enquadra nesta classificação; b) Sociedade mista: onde alguns sócios respondem de forma limitada e outros ilimitadamente, enquadrando-se nesta categoria a sociedade em comandita simples, cujo sócio comanditado responde ilimitadamente e o sócio comanditário de forma limitada, e a sociedade em comandita por ações, na qual os sócios diretores têm responsabilidade ilimitada e os demais respondem limitadamente; c) Sociedade limitada – em que todos os sócios respondem de forma limitada pelos passivos sociais, sendo a sociedade limitada e a sociedade anônima inseridas nesta categoria. 37 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 117) 22 O Código Civil brasileiro dispõe as regras para determinação das referidas limitações de responsabilidade, porém, ainda que legalmente estabelecidas, diante de ações abusivas e fraudulentas por parte dos sócios, tais limitações poderão ser judicialmente ignoradas com o fito de equilibrar eventuais discrepâncias jurídicas nascidas da irresponsabilidade de pessoas que por ventura tentem se esconder por trás do véu da personalidade jurídica da Sociedade Empresária, sendo esse o tema que será abordado pelo próximo capítulo. Por fim, cabe registrar que o presente capítulo buscou estabelecer bases conceituais panorâmicas acerca das categorias mais relevantes para o estudo do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, o que se fez através da construção de uma proposta de conceito para Personalidade Jurídica, da análise sobre a diferença entre pessoa física e jurídica, da identificação das características da personificação da pessoa jurídica, da abordagem sobre os tipos de pessoa jurídica de direito privado no Brasil e, finalmente, dos elementos caracterizadores das Sociedades Empresárias. CAPÍTULO 2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: DISREGARD DOCTRINE Este capítulo visa destacar os aspectos relevantes acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, utilizando-se da conceituação e analise de doutrinadores do ordenamento jurídico pátrio, bem como pesquisadores estrangeiros, os quais deram as primeiras e essenciais lapidações na teoria. Apesar da objetividade e confiabilidade das fontes primárias, as pesquisas realizadas demonstraram a dificuldade na obtenção das mesmas, principalmente no que tange o surgimento do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Neste sentido, a autora apoiou-se em fontes secundárias a fim de viabilizar uma melhor compreensão sobre o referido contexto histórico. Além da analise histórica e conceitual da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que serve de embasamento para a compreensão teórica da essência do instituto, o capítulo objetiva demonstrar a aplicabilidade da referida teoria, que será analisada com casos práticos, através de julgados, no próximo e derradeiro capítulo. 2.1 BREVE HISTÓRICO O precursor da doutrina da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil foi Rubens Requião, como o mesmo constata em sua obra “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica: disregard doctrine”: Não temos lembrança, em nossas constantes peregrinações pelas páginas do direito comercial pátrio, de haver encontrado doutrina nacional ou estudos sobre o uso 24 abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica, o que nos daria, se correta nossa impressão, o júbilo de apresentá-la pela primeira vez [...].38 Requião apresentou sua obra em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, na qual citou as obras do alemão Rolf Serick e do italiano Piero Verrucoli como sendo as pioneiras a tratarem da Desconsideração da personalidade Jurídica. O professor paranaense explica em seu estudo que “a doutrina desenvolvida pelos tribunais norte-americanos, da qual partiu o Prof. Rolf Serick para compará-la com a moderna jurisprudência dos tribunais alemães, visa a impedir a fraude ou abuso através do uso da personalidade jurídica, e é conhecida pela designação “disregard of legal entity” ou também pela “lifting the corporate veil”.”39 Da mesma forma, as pesquisas de André Pagani de Souza demonstram a obra “Forma e realidade da pessoa jurídica” de Rolf Serick como sendo um dos primeiros trabalhos sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica. 40 Pagani de Souza explica que, em tese de doutorado, no ano de 1953, o professor germânico buscou definir “os critérios que autorizam o juiz a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em relação às pessoas que a compõe, sempre que ela for utilizada como instrumento na realização de fraudes ou abuso de direito.” 41 Segundo Rubens Requião, o professor Serick inicia sua tese com as palavras conceituais: 38 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752) 39 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752) 40 SERICK, Rolf, 1966 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 32) 41 SERICK, Rolf, 1966 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 32) 25 A jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros.42 Acerca destas palavras de Serick, Pagani destaca que: Ou seja, ele notou que há situações em que o respeito incondicionado à forma da pessoa jurídica pode levar a resultados injustos. Apesar dessa observação, o jurista alemão reconheceu que casos como esses são problemáticos porque o ordenamento jurídico constituiu as pessoas jurídicas como sujeitos autônomos claramente distintos de seus membros.43 A separação da personalidade jurídica das pessoas jurídicas e de seus membros, constituindo-os como sujeitos de direito distintos, que dá inicio à obra de Serick, é o que norteia a teoria em questão, e o que defini a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a autonomia patrimonial é o pressuposto da discussão, ou seja, é necessário que se apresente a diferenciação das pessoas jurídicas em relação aos membros que a compõe, estabelecida na ordem jurídica, para que seja possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica. Neste sentido, Requião salienta a preocupação de Serick em discutir a questão da desconsideração como um instituto capaz de servir de forma real ao seu ordenamento jurídico, qual seja o alemão, e não tratar do certame de maneira especulativa, constituindo apenas um simples dispositivo do direito americano da sociedade. 42 SERICK, Rolf, 1966 apud REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752) 43 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 32) 26 Desta forma, extrai-se da obra do brasileiro o entendimento constituído pelo professor alemão: “em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõe, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito.” 44 A formulação do alemão serve como alicerce à implantação da teoria no sistema jurídico brasileiro, visto que neste país, na maior parte das formas de constituição de empresas, existe a diferenciação entre a pessoa jurídica e seus integrantes. Seguindo na análise da tese de Rolf Serick, André Pagani de Souza destaca que a forma da pessoa jurídica é um estimulo para se perseguir fins ilícitos com aparência de legalidade e em razão disso, a autonomia da pessoa jurídica só deve ser respeitada na medida em que servir para os objetivos a que foi criada. Caso contrário, a pessoa jurídica deve ser desconsiderada para alcançar as pessoas que agem por meio dela. Para Pagani, Serick chama a atenção para o fato de ser levada em consideração a conduta das pessoas que agem pela pessoa jurídica para desconsiderar o principio da autonomia patrimonial, uma vez que não se concebe pessoa jurídica sem as pessoas que a compõe e praticam atos por ela.45 Por fim, Rolf Serick sistematiza a teoria da personalidade jurídica em quatro princípios ou proposições, as quais são referenciadas por 44 SERICK, Rolf, 1966 apud REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 753) 45 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 34) 27 Guilherme Calmon Nogueira da Gama em sua obra intitulada “Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica: visão crítica da jurisprudência”. 46 Neste trabalho, Gama demonstra as proposições da seguinte forma: a) caso a estrutura formal da pessoa jurídica seja utilizada de maneira abusiva, o juiz poderá descartá-la para frustrar o resultado contrário ao Direito que se persegue; b) não é suficiente a alegação de que sem a desconsideração não se possa atingir a finalidade de uma norma ou de um negócio jurídico; c) as normas fundantes nas qualidades ou capacidades humanas, ou que consideram valores humanos, também devem ser aplicadas às pessoas jurídicas quando a finalidade da norma corresponder a esta classe de pessoas, admitindo-se que se penetre na personalidade das pessoas situadas atrás da pessoa jurídica para comprovar se concorrem as hipóteses das quais depende a eficácia da norma; d) se a forma da pessoa jurídica for utilizada para ocultar a identidade que, de fato, existe entre as pessoas que intervieram em um determinado ato, poderá ser descartada tal forma quando a norma que se deva aplicar pressupor que a identidade ou diversidade dos sujeitos interessados não é puramente nominal, mas verdadeiramente efetiva.47 Estes princípios foram essenciais para o entendimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e até os dias atuais são utilizados para analisar o caso concreto. 46 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 5) 47 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 5) 28 Além da “Forma e realidade da pessoa jurídica”, de Serick, outra obra pioneira na formulação de entendimento acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é um estudo do professor italiano Piero Verrucoli, no ano de 1964, que estabelece que “a atribuição de personalidade jurídica a determinados grupos de indivíduos é um “privilégio” concedido pelo Estado e como tal não pode dar origem a situações injustas ou contrárias ao direito. Se o “privilégio” concedido pelo Estado for utilizado para fins contrários ao direito, deve haver o que ele chamou de “superamento” da responsabilidade jurídica, que nada mais é que a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.”48 O jurista italiano, segundo André Pagani de Souza, recebe criticas de Fabio Ulhoa Coelho na obra Desconsideração da personalidade jurídica, nas páginas 26-27, além de criticas suas, visto que seu argumento, citado a poucas linhas acima, de a concessão de personalidade jurídica as pessoas jurídica é privilégio atribuído pelo Estado, não é suficiente para explicar o motivo pelo qual os membros da pessoa jurídica se favorecem da desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que há casos que a personalidade jurídica é ignorada em favor do sócio.49 Pagani faz alusão ao favorecimento do sócio com a desconsideração da personalidade jurídica através da Súmula 486 do STF, que estabelece: Súm.486.STF. Admite-se a retomada para sociedade da qual o locador, ou seu cônjuge, seja sócio, com participação predominante no capital social. Apesar das criticas, o italiano, professor da Universidade de Piza, através de sua obra, ainda referenciada por Pagani de Souza, proporciona o vislumbre do precedente judiciário mais antigo acerca da doutrina da 48 VERRUCOLI, Piero, 1964 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 35) 49 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 35) 29 desconsideração da personalidade jurídica, qual seja o caso “Salomon v. Salomon & Co., proveniente da Inglaterra. Neste epsódio, ocorrido em 1897, um comerciante chamado Aaron Salomon constitui uma company chamada Salomon & Co., em conjunto com outros seis membros da família. Em seguida, o comerciante cedeu o fundo de comércio à “Salomon & Co.” e recebeu por isso vinte mil ações representativas da sua contribuição para a sociedade. Já os outros integrantes receberam apenas uma ação cada. Na sequencia, a “Salomon & Co.” assumiu obrigações no valor de dez mil libras esterlinas. Logo depois a sociedade se demonstrou insolvente. Assim, a “Salomon & Co.” entrou em liquidação, e o liquidante para defender os interesses dos credores quirografários sustentou que a atividade da sociedade era a atividade de Aaron e que este último havia se utilizado do artifício da pessoa jurídica para limitar sua responsabilidade. Por isso, o liquidante pediu que Salomon fosse condenado a pagar os débitos da sociedade. Em primeira e segunda instâncias, o pedido do liquidante foi acolhido. Porém, na Casa de Lordes, o entendimento das instancias inferiores foi reformado, decidindo-se definitivamente que não havia responsabilidade pessoal de Aaron Salomon pelos débitos da “Salomon & Co.50 Rubens Requião, em seu texto “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica: disregard doctrine, faz menção a outros precedentes judiciários, que seriam interesses a cargo de ilustração, mas como não cabe deter o conteúdo aos casos históricos, passa-se a outros destaques. 50 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 36) 30 2.2 AS PESSOAS JURÍDICAS E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Como já visto no capitulo anterior, a pessoa jurídica em nada se confunde com os membros que a compõe, ambos são sujeitos de direitos e obrigações, mas possuem personalidades completamente distintas. Essa idéia de separação entre pessoa jurídica e os seus membros estava explícita no Código Civil de 1916 no caput do art. 20: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.” Apesar de a letra legal não ter sido reproduzida expressamente, a personalidade jurídica atribuída às pessoas jurídicas é um direito comumente concebido como absoluto, pelo qual é garantido a sua aptidão de exercer direitos e contrair obrigações. Esse direito, concedido pelo Estado, cria um invólucro aos bens da pessoa jurídica, o que gera o princípio da autonomia patrimonial, ou seja, o patrimônio da pessoa jurídica não se identifica com o patrimônio dos sócios, que possuem “vidas” distintas, como pode ser observado ao analisar o texto do art. 45 do Código Civil Brasileiro em vigor: “Art.45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.” Este artigo, pode-se dizer que narra o “nascimento” da pessoa jurídica, que ocorre, obviamente, em momento diverso do de seus integrantes. Seu nascimento depende da vontade da pessoa física, e também de atribuições legais exigidas pelo Estado. Acerca do principio da autonomia patrimonial que surge a partir da separação da pessoa jurídica, de seus integrantes, Requião enfatiza que 31 “uma das mais decisivas conseqüências da concessão da personalidade jurídica, outorgada pela lei [...] é a sua autonomia patrimonial, tornando a responsabilidade dos sócios estranha à responsabilidade social [...].” 51 O jurista continua esclarecendo que ”esta responsabilidade da sociedade, alheia a responsabilidade dos sócios, faz com que a personalidade jurídica possa vir a ser usada como anteparo de fraude, sobretudo para contornar as proibições estatutárias do exercício de comércio ou outras vedações legais” 52 . A concessão de personalidade jurídica, diversa de seus membros, às pessoas jurídicas, remete à formulação do italiano Piero Verrucoli, que confirma que a doutrina que estabelece que a concessão da personalidade jurídica as pessoas jurídicas, pelo Estado, é um privilégio, ou melhor dizendo, é uma ficção criada pelo mesmo, que gera a existência de um novo ser no mundo jurídico. No entanto, o fato de tal benesse ser concedida pelo Poder Público de forma pré-estabelecida, com fulcro em lei, não justifica o cerramento dos olhos do judiciário ou a falta de pré-questionamento acerca dos fins contrários ao direito que tal concessão do Estado pode gerar. A titulo de melhor compreensão da questão discutida no parágrafo anterior utiliza-se das mais bem formuladas palavras de Rubens Requião: Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.53 51 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754) 52 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 751) 53 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 753) 32 E ainda: Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado objetivando [...] a realização de um fim nada mais procedente do que se reconhecer ao Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado.54 Como a questão da responsabilidade distinta entre os sócios e a sociedade, proveniente do principio da autonomia patrimonial, gerado pela atribuição da personalidade jurídica à pessoa jurídica, é o que propicia os atos fraudulentos e abusivos de direito e o que permite a desconsideração da personalidade jurídica, vale firmar, pelas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “que o pressuposto fundamental da desconsideração é a existência de uma entidade personalizada. Caso haja uma sociedade despersonalizada [...] ou irregularmente constituída [...], não há que se falar em personalidade como meio para fraudes, tampouco em desconsideração.” 55 A concepção de que a pessoa jurídica é um ser, diferente de seus membros, com autonomia patrimonial, conceituada pelo pensamento jurídico, concebe a personalidade jurídica como um véu impenetrável, através do qual não se pode atingir a pessoa natural do sócio. No entanto, Requião reza que a doutrina da desconsideração repudia esse absolutismo atribuído sobre o direito da personalidade. Segundo ele, “apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto, permitindo a legitima penetração inquiridora em seu âmago.” 56 Apesar dos efeitos fraudulentos e contrários ao direito, provenientes do mau uso da personalidade jurídica pelas pessoas jurídicas, o 54 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754) 55 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 5) 56 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754) 33 qual o instituto da desconsideração visa combater, jamais propugnou-se nos entranhes dessa doutrina o fim da pessoa jurídica. Do contrário, a teoria da desconsideração foi criada para zelar pela pessoa jurídica nos moldes que ela foi criada e para resguardar pelos fins legais que a mesma deve procurar atingir. Dessa forma entende André Pagani de Souza: O que se busca coibir com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é exatamente o mau uso da pessoa jurídica. Por vezes, a pessoa jurídica e o principio da autonomia patrimonial são invocados para encobrir fraude ou abuso de direito, ou simplesmente a pessoa jurídica é utilizada para finalidade diversa daquela para a qual foi concebida.57 Neste sentido, acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em relação ao instituto da pessoa jurídica, destaca-se do texto de Gama: Trata-se de uma elaboração teórica destinada à coibição da práticas fraudulentas que se valem da pessoa jurídica. E é, ao mesmo tempo, uma tentativa de preservar o instituto da pessoa jurídica, ao mostrar que o problema não reside no próprio instituto, mas no mau uso que se pode fazer dele.58 Gama complementa que dá-se “o surgimento da teoria da personalidade da pessoa jurídica, entre outros instrumentos para coibir, reprimir e sancionar o uso equivocado da pessoa jurídica.” 59 57 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 43) 58 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 7) 59 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 4) 34 Sendo assim, entendido que a personalidade jurídica das pessoas jurídicas não é um direito absoluto e sim relativo, compreende-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem a ser a forma de penetrar o véu que encobre as pessoas jurídicas e atingir os que agem por meio dela, quando estes praticam atos abusivos e contrários ao direito. 2.3 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Nelson Nery Junior conceitua o instituto da desconsideração da personalidade jurídica como a “possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral sempre que esta venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída, permitindo que o credor de obrigação assumida pela pessoa jurídica alcance o patrimônio particular de seus sócios ou administradores para a satisfação de seu crédito.” 60 O renomado doutrinador traz essa conceituação para o instituto ao analisar, em sua obra “Código Civil Comentado”, o artigo 50; qual seja a principal norma acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Ainda que positivada, para Bruno Mattos e Silva “a desconsideração da personalidade jurídica não depende, necessariamente, da existência de norma positiva: ela é uma teoria, fundada em princípios jurídicos” 61, tanto que para a aplicação dessa teoria no Brasil, antes de sua positivação, “o desvio de finalidade ou abuso de direito, em violação à boa-fé objetiva, na prática de atos lesivos por intermédio da pessoa jurídica, já eram considerados pressupostos para aplicação da teoria da desconsideração” 62 , no entanto, devido a influência jurídica romano-germânica com grande apego pelo direito escrito, a 60 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) 61 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 233) 62 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 10) 35 teoria somente ganhou força com o advento do Código Civil de 2002, que normatizou o instituto da desconsideração no referido art.50, que dispõe: Art.50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.(Grifo nosso) Este artigo, no entanto, não é propriamente uma inovação, visto que, em 1990 o Código de Defesa do Consumidor já contemplava a teoria da desconsideração em seu artigo 28, que será aludido em breve. O artigo 50 do Código Civil Brasileiro é o baluarte do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e é de suma importância analisá-lo categoricamente para cercar todos os critérios que norteiam a possibilidade de concessão da desconsideração da personalidade jurídica pelo judiciário, os quais estão grifados no próprio texto do artigo transcrito acima. A norma supracitada elenca as hipóteses de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas antes disso, Fábio Ulhoa Coelho é categórico ao reafirmar: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica somente deve ser aplicada nas hipóteses em que a autonomia da pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo para a composição dos diversos interesses envolvidos no caso concreto, ou melhor, para realização de justiça.63 (Grifo nosso) 63 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 42) 36 O que o autor faz com esta afirmação é reforçar a idéia que já se concebeu com o texto desta autora, de que cabe a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de uma pessoa jurídica quando os integrantes da última, através de atos abusivos ou fraudulentos, deturparem a forma da primeira. A repressão a essas práticas abusivas e fraudulentas através do mau uso da pessoa jurídica é o que fomenta a “teoria maior” da desconsideração da personalidade jurídica, que, pela qual, segundo Ulhoa Coelho, “o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas como forma de coibir fraudes e abusos praticados por meio dela.” 64 Neste contexto de atos abusivos ou fraudulentos, inicia-se a interpretação do art. 50, com analise do conceito operacional “abuso da personalidade jurídica”, qual seja o motivo primitivo para a concessão da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Este motivo está consolidado na vertente subjetiva da “teoria maior” a qual contempla o “abuso de direito” e a “fraude” como as práticas autorizadoras da aplicação da teoria da desconsideração ao caso concreto.65 A admissão destes requisitos como pressupostos para aplicação da teoria da desconsideração é amplamente repercutida nas decisões dos tribunais de justiça e tribunais superiores. A cargo de exemplo, lê-se trecho de decisão do tribunal do estado de Santa Catarina, proferida em Agravo de Instrumento de nº 2002.023753-7, da Terceira Câmara de Direito Comercial, datada de 20 de março de 2003: “O mero fato da simples inexistência de bens em nome da executada, não autoriza a incidência, de plano, da teoria da desconsideração da 64 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 35) 65 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 44) 37 personalidade jurídica, pois, para tanto, de mister é a configuração de fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial.” Além do “abuso de direito” e da “fraude” como pressupostos de admissibilidade da desconsideração, o conceito operacional “desvio de finalidade”, que segundo o art. 50, caracteriza o “abuso da personalidade jurídica”, também é incluído como desdobramento da “teoria maior subjetiva”, como se extrai de julgado da Min. Nancy Andrighi, do STJ, contido na obra de Nelson Nery Junior: Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).66 Neste certame se pontuou a questão da confusão patrimonial como “teoria maior objetiva” da desconsideração, mas falar-se-á desta causa para admissão da desconsideração da personalidade jurídica mais adiante. Antes faz-se necessário estudar as categorias “abuso de direito”, “fraude” e “desvio de finalidade” no contexto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. No que concerne ao abuso de direito, resume Rubens Requião, citando diretamente Pedro Batista Martins: O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-lo, escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, comete, sem dúvida, um ato abusivo; atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio das relações jurídicas.67 66 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) 67 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 755) 38 Utilizando-se destas palavras, Requião explica que o sujeito deve exercitar seus direitos tendo em vista a função deles ou a finalidade social que objetivam. Ao praticar ato, conforme a lei, mas contrário a essa finalidade, este ato é abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direito.68 Neste mesmo sentido é o entendimento de Guilherme Calmon Nogueira da Gama que “ensina que o abuso de direito é o exercício irregular ou abusivo de direito pelo seu titular; é a conduta lícita que se mostra desconforme com a finalidade que o ordenamento pretende alcançar e promover naquela circunstancia fática.” 69 Em entendimento completamente oposto se posiciona Maria Helena Diniz ao afirmar que o abuso de direito não consiste em uma conduta lícita, mas sim a pratica de um ato ilícito, conforme leciona em seu dicionário jurídico: ABUSO DE DIREITO. Direito civil. Exercicio anormal ou irregular de um direito, ou seja, além de seus limites e fins sociais, causando prejuízo a outrem, sem que haja motivo legítimo que o justifique. É um ato ilícito sui generis, que gera o dever de ressarcir o dano causado. 70 Com a mesma opinião encontramos Gladston Mamede que situa o abuso de direito no ordenamento jurídico de acordo com o art. 187 do Código Civil, pelo qual “o abuso de direito caracteriza ato ilícito, configurando-se sempre que o titular de um direito (de uma faculdade), ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” 71 68 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 755) 69 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 14) 70 71 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 35, v.1) MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 242) 39 Por mais que entenda que o abuso de direito constitui ato ilícito, Mamede reconhece que a questão é controversa, razão pela qual explica que a caracterização da ilicitude decorrerá do excesso manifesto, inequívoco e flagrante.72 Ainda no que diz respeito ao abuso de direito, cumpre-se complementar com as palavras de Rubens Requião, que diz que “não há porque confundir a teoria do abuso de direito com a do ato ilícito, ou, mais particularmente, com a fraude. Considera-se ato fraudento, como o conceituam os revisores do Projeto de Código de Obrigações, no art. 67, “o negócio jurídico tramado para prejudicar credores, em beneficio do declarante ou de terceiro”. No abuso de direito não existe, propriamente, trama contra o direito de credor, mas surge do inadequado uso de um direito, mesmo que seja estranho ao agente o propósito de prejudicar o direito de outrem. 73 Sendo assim, pode-se inferir que o abuso de direito ainda é questão a ser discutida, visto a complexidade e divergência na conceituação do tema. Já no tocante a fraude, resta mais fácil a conceituação, visto que é generalizado o entendimento de que “fraude” consiste na pratica de ato ilícito para prejudicar terceiro, de acordo com o explanado acima por Rubens Requião, bem como conforme entendimento de Marina Helena Diniz: FRAUDE. 1. Direito civil. a) Manobra artificiosa para prejudicar terceiro; b) má-fé; c) engano ou burla; d) ocultação da verdade.74 Gama confirma a conceituação de “fraude”, bem como contextualiza a categoria no cenário da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao afirmar: 72 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e empresárias. (p. 242) 73 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 756) 74 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v.2 (p. 686) 40 “A fraude, normalmente, consiste em expediente utilizado para iludir ou ludibriar um terceiro, causando-lhe prejuízo e, muitas vezes, não é perceptível imediatamente. Trata-se de uma manobra engendrada por alguém para o fim de causar prejuízo a outra pessoa, utilizando-se de artifícios que mascaram a antijuridicidade da conduta. É o meio ardiloso através do qual o sócio ou administrador da pessoa jurídica cria uma situação de prejuízo ao credor e vantagem para si, de modo que o prejudicado acredita estar celebrando negócio com garantia ou sem determinado grau de risco, quando, na realidade, encontra-se em situação exatamente oposta.” 75 Ao analisar “fraude” no contexto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, Mattos e Silva destaca que “parte da doutrina entende que sempre deve existir o elemento fraude, ou seja, a intenção de se furtar ao cumprimento de uma obrigação para que possa ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica.” 76 Contudo, tal entendimento diverge do que já foi elucidado como ponto de vista de Rubens Requião, que claramente diferencia o abuso de direito da fraude, ou seja, trata desses dois conceitos como requisitos diversos na aplicação da teoria da desconsideração, podendo ser identificado um ou outro, além das palavras de André Pagani de Souza, que diz que a confusão patrimonial como causa de causa de desconsideração da personalidade jurídica independe dos elementos “abuso de direito” e “fraude”.77 Venosa, por sua vez, diz que nas causas que ensejam a desconsideração é procurado um escudo de legitimidade na realidade técnica da 75 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 24) 76 77 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226) SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 60) 41 pessoa jurídica, mas o ato é fraudulento e ilegítimo, e ainda “a modalidade de fraude é múltipla, sendo impossível enumeração apriorística. Dependerá do exame do caso concreto. Poderá ocorrer fraude à lei, simplesmente, fraude a um contrato ou fraude contra credores [...]” 78 , ou seja, conclui-se que o autor atribui “fraude” a todas hipóteses de desconsideração. Assim compreende-se o entendimento de Maria Helena Diniz, pois a autora cita a fraude contra credores como o instrumento a ser combatido pela teoria da desconsideração, conforme retira-se de sua obra: “A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica visa impedir a fraude contra credores, levantando o véu corporativo, desconsiderando a personalidade jurídica num dado caso concreto [...].” 79 Discorda Mattos e Silva80, que estabelece que as causas para desconsideração contidas no art. 50 do Código Civil independem da intenção de prejudicar terceiros, ou seja, do elemento “fraude”; que a fraude é um pressuposto doutrinário e que “o art. 50 não fala em utilização de artifício malicioso para prejudicar credores, não fala em dolo, não fala em fraude”.81 Assim, como a questão do abuso de direito constituir, ou não, ato ilícito, a questão da fraude ser pressuposto indispensável para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica também constrói uma divergência doutrinária. Neste contexto de fraude e abuso de direito, infere-se que estes são espécies do gênero “desvio de finalidade”, visto que, como demonstrado eles formam a “teoria maior subjetiva”, e além de que tem a mesma natureza jurídica, ou seja, utilizam-se do princípio da autonomia patrimonial para alcançar fim diverso para o qual foi criado, enfim, a fraude e o abuso de direito é 78 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 272) 79 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 300) 80 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226) 81 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 231) 42 que são os pressupostos subjetivos a serem analisados para caracterizar o desvio de finalidade. Pode-se entender neste sentido de acordo com Fábio Konder Comparato, citado por André Pagani de Souza que o desvio de finalidade seja critério para desconsideração da personalidade jurídica, caracterizado pelo uso inadequado da pessoa jurídica, invocado para encobrir fraude ou abuso de direito, ou simplesmente a utilização da pessoa jurídica para finalidade diversa daquela para a qual foi concebida.82 Gama conceitua o desvio de finalidade como “uma disfunção nas atividades da sociedade, um desvirtuamento dos fins primeiros que deveriam ser seguidos na prática pela sociedade.” 83 Nelson Nery Junior, por sua vez, ao definir em que consiste o desvio de finalidade atribui a possibilidade da caracterização deste a partir da pratica de atos ilícitos além da pratica da atividade incompatível com a autorizada. Tal posicionamento tem as seguintes palavras: “A identificação do desvio de finalidade nas atividades da pessoa jurídica deve partir da constatação da efetiva desenvoltura com que a pessoa jurídica produz a circulação de serviços ou de mercadorias por atividade lícita, cumprindo ou não o seu papel social, nos termos dos traços de sua personalidade jurídica. Se a pessoa jurídica se põe a praticar atos ilícitos ou incompatíveis com sua atividade autorizada, bem como se com sua atividade favorece o enriquecimento de seus sócios e sua derrocada administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de direito desconsiderar sua personalidade e alcançar o 82 COMPARATO, Fábio Konder, 2005 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 44) 83 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 6) 43 patrimônio das pessoas que se ocultam por detrás de sua existência jurídica.84 Perseguir objetivo diferente do que consta no ato constitutivo para prejudicar alguém 85 é a explicação dada por Maria Helena Diniz, no que concerne ao desvio de finalidade. Já Bruno Mattos e Silva demonstra um entendimento mais subjetivo ao destacar aspectos valorativos no que tange o desvio finalidade, conceituando-o como “a utilização da pessoa jurídica para fins distintos dos objetivos ou valores que motivaram a criação dessa figura jurídica.” 86 Este autor explica que o desvio de finalidade “ocorre quando a pessoa jurídica é criada para finalidades que não são condizentes com a função jurídica a ela determinada (ex.: no caso de uma sociedade, é a de exercer atividade econômica)” 87 e “quando, embora criada legitimamente, os sócios ou administradores utilizam-se da pessoa jurídica para finalidades outras, que não as devidas.” 88 Nota, assim, que a questão é mais assentada, sendo que os autores convergem para o entendimento que o desvio de finalidade consiste no desvio da realização dos fins legítimos para os quais foi criada a pessoa jurídica. Ao analisar a obra do citado Mattos e Silva, depare-se com uma analise divergente acerca da compreensão das categorias “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial” com sendo casos de “abuso da personalidade jurídica”. Mattos e Silva, ao contemplar o artigo 50 do Código Civil, estabelece que “esse dispositivo, tal como redigido, afirma que pode o juiz desconsiderar a 84 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) 85 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 305) 86 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229) 87 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226) 88 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 227) 44 personalidade jurídica para atingir bens dos sócios ou administradores quando ocorrer abuso da personalidade jurídica ou confusão patrimonial.” 89 Desta forma, ao trabalhar a conceituação de “desvio de finalidade”, o autor demonstra que pode-se equiparar-lo igual e somente a “abuso da personalidade jurídica”, tratando a “confusão patrimonial”, como algo alheio a esta última categoria, o que permite inferir-se que tal compreensão surge da analise diferenciada acerca da vírgula que se encontra antes da expressão “ou pela confusão patrimonial”. Trabalhando o conceito operacional “confusão patrimonial” encontra-se, este, fundamentado na vertente “objetiva” da “teoria maior”, que vale reforçar pelas palavras de Fábio Ulhoa Coelho já referenciadas em outra oportunidade, é a teoria “pela qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados por meio dela.” Desse modo, como a confusão patrimonial é considerada uma forma de mau uso da pessoa jurídica, ou seja, utilizar-se do principio da autonomia patrimonial para fins diversos dos quais foi concebida, resta caracterizada a “confusão patrimonial” como abuso da personalidade jurídica e fica difícil situá-la como outra categoria. Desta mesma forma, contestando a hipótese de compreensão diversa do art. 50 devido à língua portuguesa, apresentada por ele, Bruno Mattos e Silva, conceitua a categoria: “A confusão patrimonial é a hipótese em que os sócios ou administradores utilizam em proveito próprio os bens e recursos da pessoa jurídica.Trata-se de uma “promiscuidade” entre bens dos sócios, associados ou administradores e bens da sociedade. Penso que a confusão patrimonial não deixa de ser uma modalidade de abuso da 89 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229) 45 personalidade jurídica da sociedade, pois a autonomia patrimonial tem uma função jurídica que restou violada pelos sócios ou administradores.” 90 Segundo André Pagani de Souza, a teoria da confusão patrimonial foi ensinada por Fábio Konder Comparato, que diz que caso haja confusão patrimonial entre bens dos sócios e das sociedades (utilizam os mesmos imóveis como sede, os mesmos móveis para se locomover, a sociedade paga contas pessoais dos sócios etc.), não há por que respeitar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, pois ela está sendo utilizada para uma finalidade distinta daquela para a qual foi concebida. 91 Neste certame, Nelson Nery Junior explica que “também é aplicada a desconsideração nos casos em que houver confusão entre o patrimônio dos sócios e da pessoa jurídica. Essa situação decorre da não separação do patrimônio do sócio e da pessoa jurídica por conveniência da entidade moral.92 As palavras de Maria Helena Diniz confirmam este entendimento ao afirmar que a confusão patrimonial é a “mistura do patrimônio social com o particular do sócio.” 93 Sendo assim, resta elucidada a teoria maior subjetiva (abuso de direito, fraude, desvio de finalidade) e a objetiva; que esta última, segundo Pagani, Fábio Ulhoa Coelho ensina que facilita a prova no processo judicial, ou seja, a parte não tem que provar os aspectos subjetivos como o abuso de direito e 90 SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229) 91 COMPARATO, Fábio Konder, 2005 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 59-60) 92 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) 93 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 306) 46 a fraude, basta demonstrar a existência de confusão patrimonial para que se proceda a desconsideração. 94 Além das causas embasadas na “teoria maior subjetiva” (abuso de direito, fraude e desvio de finalidade) e na “teoria maior objetiva” (confusão patrimonial) há a corrente que preza pela “teoria menor” que, segundo Ulhoa Coelho, autoriza a penetração no véu da personalidade jurídica e possibilita afastar a autonomia patrimonial pelo simples prejuízo do credor.95 No entanto, tendo em vista o posicionamento doutrinário e jurisprudencial, não cabe conceber como válida a “teoria menor” da desconsideração, motivo pelo qual o próprio nome já sugere, trata-se de uma forma de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que deturpa o instituto da pessoa jurídica. A chamada “teoria menor” é resultado da decretação afobada da desconsideração da personalidade jurídica, pelo simples fato de o credor não ter logrado êxito em receber o que lhe é devido, sem haver qualquer indagação sobre a ocorrência de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial. 96 Fabio Ulhoa Coelho explica que o prejuízo do credor pelo inadimplemento da pessoa jurídica não caracteriza causa para desconsideração, ao afirmar que “não é suficiente a simples insolvência do ente coletivo, hipótese em que, não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência.” 97 A teoria menor tem aplicabilidade no que concerne ao direito do consumidor, devido a hipossuficiência deste nas relações de consumo; tanto 94 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 60) 95 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 35) 96 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 39) 97 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 127) 47 que o legislador, no art. 28 da Lei 8.0780 de 1990, prevê diversas outras causas para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Com o intuito de facilitar a explanação, transcreve-se a referida norma: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor, como se lê, traz outras hipóteses de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações de consumo, além da caracterização do abuso de direito, fraude, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Essas hipóteses visam a proteção do consumidor, mas são alvo de controvertidas discussões, uma vez que podem não ser consideradas aplicáveis com embasamento na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visto que são contrárias aos pressupostos estabelecidos pela doutrina, um dos quais é a impossibilidade de a mera insolvência da sociedade por má administração ser motivo para penetrar o véu da personalidade jurídica. Neste sentido é o entendimento de Gama: “Obviamente que, em termos gerais, a tutela jurídica dada ao consumidor deve ser mais protetiva do que aquela ministrada em relações paritárias e, por isso, é perfeitamente 48 possível o reconhecimento da aplicação da teoria da desconsideração em espectro mais amplo quando o beneficiário for o consumidor. Todavia, é fundamental que seja apurada a fraude ou o abuso no uso da personalidade, sob pena de desvirtuamento da teoria da pessoa jurídica.” 98 Pagani de Souza estabelece que as hipóteses de aplicação contidas no caput do artigo, quais sejam o “excesso de poder”, “infração da lei”, “fato ou ato ilícito”, “violação dos estatutos ou contrato social”, também a “falência”, “estado de insolvência”, “encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração” são condutas imputáveis aos sócios e administradores e não é a personalidade jurídica que impede o ressarcimento dos danos causados, por este motivo não há o que se falar em teoria da desconsideração. 99 Ainda segundo Pagani, podemos destacar a crítica de Raquel Sztajn acerca do art. 28 do CDC: Claramente o texto do art.28 da Lei 8.078 de 90 não segue a filosofia que informa a aplicação da teoria nos sistemas de origem. O texto mistura defeitos dos atos para os quais o sistema já prevê remédios próprios. Ou o legislador não entendeu a função da teoria da desconsideração ou, ao que parece, desejou banalizar, vulgarizar a técnica, para torná-la panacéia nacional da defesa do consumidor. 100 Venosa se manifesta acerca do dispositivo contribuindo que a redação do mesmo é reclamada pela doutrina, mas que a ampla abrangência deste artigo permite que juiz examine a oportunidade e a conveniência da 98 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 23) 99 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 65-66) 100 SZTAJN, Raquel, [s.d.] apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 67) 49 desconsideração no caso concreto e que razões de equidade devem orientá-lo. 101 Devido a esta abrangência nas hipóteses de aplicação da desconsideração e a questão da hipossuficiência do consumidor, nas relações de consumo, conforme caput do art. 28 do CDC, o próprio juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica. Esta situação se difere no que tange a aplicação no Direito Civil, visto o conceito operacional destacado no art. 50 de que pode o juiz decidir “a requerimento da parte, ou do Ministério Publico”, o que veda a aplicação ex officio. Acerca deste assunto, Gama complementa: [...] pelo Código de 2002 o juiz não pode aplicá-la ex officio, só podendo fazê-lo a requerimento da parte, ou do Ministério Publico quando lhe couber intervir no processo. Tal disposição, a principio, conflita com o disposto no art. 28 da Código de Defesa do Consumidor, que afirma que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade [..].102 Esta diferenciação na aplicação da teoria da desconsideração pode ser fundamentada no caráter que possui as demandas de Direito Civil e de Direito do Consumidor, conforme explica Gama: “Para a correta solução da questão, é necessário analisar o ideário que embasa cada dispositivo. Enquanto o Código Civil visa regrar relações entre sujeitos em suposta igualdade e que mantêm relações privadas [...], o Código de Defesa do Consumidor tem, notadamente, um caráter 101 102 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 274) GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 12) 50 protecionista, [...] havendo forte tendência de se considerarem as questões a ele relativas como de ordem pública.” 103 Desta forma, como consta expresso no artigo 50 a necessidade de requerimento da parte ou do Ministério Público, esta questão não enseja maiores discussões. Da mesma forma é visto o conceito operacional destacado no art. 50 do CC, qual seja “efeitos de certas e determinadas relações de obrigações”. Esta expressão do dispositivo fomenta que “a desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica.” 104 Fábio Ulhoa Coelho, com mais aprofundamento, explica a questão: “A teoria da desconsideração da pessoa jurídica não questiona o principio da autonomia patrimonial, que continua válido e eficaz [...]. Assim, a pessoa jurídica desconsiderada não é extinta, liquidada ou dissolvida pela desconsideração; não é, igualmente, invalidada ou desfeita. Apenas determinados efeitos de seus atos constitutivos deixam de se produzir episodicamente.” 105 Este é entendimento unânime na doutrina, mas Venosa complementa que o efeito da desconsideração possui gradação, ou seja, “estará na medida da prática de um ato isolado abusivo ou fraudulento, ou de uma série de atos, o que permitirá a desconsideração equivalente.” 106 103 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 12) 104 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 127) 105 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. v.1 (p. 243) 106 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 275) 51 Sobre o tema, o autor ainda esclarece: “Por vezes, a simples desconsideração no caso concreto é suficiente para restabelecer o equilíbrio jurídico. Outras vezes, será necessário ato mais abrangente, como a própria decretação da extinção da pessoa jurídica.” 107 Além de estabelecer que os efeitos da desconsideração recaem sobre certas e determinadas obrigações, o artigo 50 do CC determina que tais efeitos sejam “estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios” da pessoa jurídica, o que substância o último conceito operacional a ser trabalhado. Este tema também requer atenção, uma vez que, segundo Gama, existe o entendimento de que “de acordo com a redação do art. 50, conclui-se que ele seria apenas uma forma de responsabilizar subsidiariamente o sócio, ou seja, só poderia ser aplicada a desconsideração quando o patrimônio da própria pessoa jurídica fosse insuficiente para o total ressarcimento do lesado.” 108 Fábio Ulhoa Coelho entende que “ignorando a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar-se, direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade.” 109 Com este entendimento de Coelho de que o sócio é responsabilizado diretamente, deduz-se que, nos casos que ensejam desconsideração da personalidade jurídica, o autor não atribui responsabilidade à pessoa jurídica. Segundo Gama, para Assumpção Alves, “a desconsideração deve ser usada para, atingindo diretamente o patrimônio do sócio responsável 107 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 275) 108 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 12) 109 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 126) 52 pelo ato abusivo, conservar o patrimônio da pessoa jurídica e também dos demais sócios não envolvidos na subversão.” 110 De acordo com entendimento seu, Gama dispõe: “A teoria da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica somente deve ser aplicada para atingir os que agiram fraudulentamente ou de modo abusivo, ou de alguma forma se beneficiaram com tal conduta, mas não deve atingir os demais sócios e administradores que não agiram com fraude ou abuso. As pessoas que não se aproveitaram do véu da personalidade para a prática de fraude ou do abuso, com efeito, não podem ser responsabilizadas patrimonialmente, sendo inoponível a teoria da desconsideração a tais pessoas.” 111 Neste certame Nelson Nery Junior, com apelo jurisprudencial demonstra o tema através de entendimento do STJ: Desconsideração da personalidade jurídica. Limitação. Jornada I STJ 7: Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular; e limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido. 112 Pode-se inferir que a responsabilidade direita do sócio ou administrador da pessoa jurídica, em detrimento à atribuição de responsabilidade à pessoa jurídica, mostra-se como entendimento majoritário e neste contexto de responsabilidade dos sócios, cabe fazer alusão da teoria da “desconsideração em sentido inverso”. 110 ALVES, Alexandre Assumpção, 2003 apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 13) 111 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 13) 112 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 250) 53 Esta teoria consiste que, da mesma forma que o credor pode intentar a execução de seus créditos em nome da pessoa jurídica através da desconsideração da personalidade jurídica para atingir os bens do sócio, pode também valer-se da pessoa jurídica para cobrar dívida pessoal do sócio quando este faz uso da pessoa jurídica para prejudicar terceiros. Vislumbra-se na obra de Nery Junior, o entendimento do STJ, proveniente da Jornada IV STJ 283, de que “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.”113 Citando Calixto Salomão Filho, André Pagani de Souza esclarece que “por óbvio, a teoria da desconsideração inversa só será aplicada para tornar sem efeito a transferência indevida do patrimônio do sócio para a sociedade.” 114 Sendo assim, após a caracterização das categorias através de diversos entendimentos doutrinários, resta demonstrado, superficialmente, os aspectos relevantes acerca da desconsideração da personalidade jurídica no que tange ao direito material. 2.4 ASPECTOS PROCESSUAIS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A desconsideração da personalidade jurídica, no seu aspecto material, está substanciada no artigo 50 do Código Civil, no entanto, não há previsão legal correspondente aos aspectos processuais, o que gera entendimentos divergentes acerca da aplicação processual do instituto. 113 114 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) SALOMÃO FILHO, Calixto, 2002 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 64) 54 As ações que intentam a desconsideração da personalidade jurídica de uma pessoa jurídica estão embasadas nos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, mas as mesmas são objeto de discussão no que tange ao momento processual que podem ser aplicadas. Nesse contexto, segundo Gama, surgem três alternativas: a) a desconsideração aplicada por mera decisão na execução; b) a desconsideração como demanda autônoma através do processo de conhecimento; c) a desconsideração no incidente na execução.115 A primeira hipótese, por ferir o devido processo legal e afirmar a teoria menor, ou seja, não atender aos pressupostos materiais acerca da possibilidade de concessão da desconsideração, deve ser considerada inaplicável. Por sua vez, a segunda hipótese, qual seja a demanda autônoma através de processo de conhecimento, constitui o entendimento de Humberto Theodoro Junior, que discorre: “a responsabilidade extraordinária, como a proveniente do abuso de gestão, violação do contrato, dolo, etc., depende de prévio procedimento de cognição e só pode dar lugar à execução quando apoiada em sentença condenatória contra o sócio faltoso.” 116 E ainda de Fábio Ulhoa Coelho, que explana: “O juiz não pode desconsiderar a separação entre pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial 115 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 27) 116 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v.2 (p.103) 55 própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores” 117 Além de mera decisão na execução ou através de processo de conhecimento, têm-se a última proposição de que pode-se admitir a ação incidental no processo de execução e sobre esta vertente, utiliza-se das pesquisas de Nelson Nery Junior para demonstrar a posição da Ministra Nancy Andrighi do STJ, qual seja: A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletivo), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. (STJ, 3ª T., REsp 332763-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, v.v., j. 30.4.2002, DJU 24.6.2004, p.297). 118 Neste sentido, segundo André Pagani de Souza, converge a doutrina majoritária, e destaca o posicionamento de Fábio Konder Comparato, que sustenta que a ação incidental na execução assegura o devido processo legal e o contraditório, além de apresentar a óbvia vantagem da celeridade.” 119 Isto posto, visto que não há previsão legal expressa e diante dos divergentes entendimentos, pode-se inferir que os aspetos processuais, no que concerne o momento oportuno para pleitear ação de desconsideração da personalidade jurídica, é assunto ainda a ser debatido pela doutrina e pela jurisprudência e questionado a cada pretensão jurídica intentada. 117 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 55) 118 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249) Nelson Nery Junior, p250 119 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 118) 56 CAPÍTULO 3 UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Neste último capítulo, analisar-se-á os acórdãos proferidos por tribunais de diferentes instâncias a fim de demonstrar os pontos controversos acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no tocante aos requisitos para sua efetiva aplicabilidade nos distintos ramos do direito. Como se verificará a seguir, divergentes são os entendimentos colhidos nos julgados, o que denota tratar-se de matéria não pacificada. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode tratada de uma forma pelo direito civil, e de maneira completamente distinta pelo direito do trabalho, por exemplo. Essas divergências jurisprudenciais se embasam na também divergente posição doutrinária, demonstrada no capítulo anterior. Os autores têm posicionamento distinto quanto às causas que ensejam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o momento processual a ser proposta a desconsideração, e sobre essas questões que discutirão os acórdãos que seguem explanados de acordo com a divisão dos ramos de direito elucidados. 3.1 DIREITO CIVIL Como bem fundamentada por Rolf Serick, Rubens Requião e outros doutrinadores, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em síntese, “visa a impedir a fraude ou o abuso através do uso da personalidade jurídica” 120 e ela é admitida no caso concreto quando configurado estes pressupostos, conforme preceitua o seguinte julgado: 120 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752) 57 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução. Penhora. Bens nomeados pela devedora. Não trazida aos autos das certidões imobiliárias respectivas. Omissão da executada. Inexistência de outros bens a penhorar. Presunção de má gestão dos sócios da devedora. DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA. Pressupostos não delineados com precisão. Decisão insustentável. Em execução promovida contra sociedade empresarial admite-se a DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA quando for ela utilizada para a realização de fraudes ou com abuso de DIREITO. O simples fato de não terem sido localizados bens da devedora passíveis de penhora e de não terem sido carreados aos autos os comprovantes de propriedade de imóveis por ela indicados, não autoriza, por isso só, a presunção de má gestão dos sócios. De mister faz-se, para que se afaste a roupagem da PERSONALIDADE JURÍDICA, a prova cabal de haverem os sócios administradores atuado com excesso de poder ou com infração à lei, ao contrato social ou estatutos da sociedade. Grifo nosso 121 Estes pressupostos para a concessão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica são necessários visto que o instituto trata-se de medida de exceção, uma vez que o que se pretende é resguardar o principio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, e fazer prevalecer a separação incisiva entre o patrimônio do sócio e da sociedade. O art. 50 do Código Civil estabelece que nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e pela confusão patrimonial é permitido utilizar-se da desconsideração da personalidade jurídica 121 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2003.009499-7, da 1ª Vara Cível da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 13 de novembro de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 58 para atingir o sócio que agiu diversamente dos fins da sociedade, conforme se verifica no entendimento de douto desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: AGRAVO DE INSTRUMENTO - Ação monitória - Ajuizamento contra pessoa JURÍDICA - Etapa executória Pretensão à penhora de bens particulares de sócio - Teoria da 'disregard of legal entity' - Pressupostos não positivados Negativa judicial - Decisão correta - Insurgência recursal desatendida. Acolhida pretensão monitória contra pessoa JURÍDICA, a circunstância de não dispor ela de bens passíveis de concretizar o crédito reconhecido, não autoriza, por si só, a aplicação da teoria da 'disregard of legal entity', com a penhora em bens particulares de sócio seu. A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA condiciona-se, não apenas à prova da dissolução de fato da sociedade, ou da inexistência de bens em nome da mesma, mas, acima de tudo, à comprovação do cometimento, pelos sócios-administradores, da prática de atos com excesso de poderes ou com infração à lei ou ao contrato social. 122Grifo nosso Além deste, mais consistente se mostra a situação ao analisar sentença do Min. Aldir Passarinho Junior, do STJ: CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PERSONALIDADE CAUTELAR. JURÍDICA. ARRESTO. DESCONSIDERAÇÃO. REQUISITOS. AUSÊNCIA. DESPROVIMENTO. I. "Nos 122 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.023753-7, da 2ª Vara Cível da Comarca de Tubarão, Florianópolis, SC, 20 de março de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 59 termos do Código Civil, para haver a desconsideração da personalidade jurídica, as instâncias ordinárias devem, fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de sua finalidade ou confusão patrimonial desta com a de seus sócios, requisitos objetivos sem os quais a medida torna-se incabível." (REsp 1.098.712/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, unânime, 04/08/2010). II. Agravo regimental desprovido. 123 DJe: Grifo nosso Além dos pressupostos estabelecidos no art. 50 do Código Civil, apesar de não ser causa estabelecida expressamente, a fraude também permite a desconsideração da personalidade jurídica, ela está contida no embasamento da teoria, e pode ser vislumbrada do seguinte acórdão: AGRAVO DE INSTRUMENTO - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - MEDIDA EXCEPCIONAL NECESSIDADE DE PROVA CONVINCENTE DA FRAUDE AO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA SEPARAÇÃO PATRIMONIAL - AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS FECHAMENTO DAS PORTAS DA EMPRESA POR FORÇA DE MANDADO DE DESPEJO - INEXISTÊNCIA DE PROVA DA MÁ-FÉ - RECURSO IMPROVIDO. A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA, por se tratar de medida excepcional, uma vez que pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos ao patrimônio particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação patrimonial. Assim, a dificuldade de encontrar bens da empresa 123 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 20090093528-1, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasília, DF, 16 de setembro de 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 60 executada, por si só, não é permissivo para que se adote a disregard doctrine, sem que haja comprovação da conduta irregular dos sócios. Do mesmo modo, não se aplica a medida excepcional, quando não comprovada má-fé na conduta da empresa, que fecha as suas portas por força de mandado de despejo, e não com intenção de fraudar credores. 124 Grifo nosso Neste sentido, fica evidente que estando configurados os pressupostos pode-se desconsiderar a personalidade jurídica de determinada pessoa jurídica para atingir o patrimônio dos sócios. No entanto, além disso, pode-se utilizar da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para alcançar outra empresa do mesmo grupo econômico e assim promover determinada execução pretendida, como o que ocorre na sentença abaixo: TRIBUTÁRIO - ARRENDAMENTO EXECUÇÃO MERCANTIL FISCAL - - ISS - NOMEAÇÃO À PENHORA DE LETRAS FINANCEIRAS DO TESOURO NACIONAL - RECUSA PELO CREDOR - PENHORA DE DINHEIRO DE EMPRESA INTEGRANTE DO MESMO CONGLOMERADO FINANCEIRO - AGRAVO DE INSTRUMENTO [...] 3. A solidariedade - ativa e passiva não se presume: decorre de lei ou da vontade das partes (CC, art. 265). Não há solidariedade passiva entre empresas tão-somente por pertencerem ao mesmo grupo econômico. A penhora de bens da empresa que não é parte na relação negocial só é admissível se presentes os pressupostos legais que autorizam a DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA previstos no Código Civil (art. 50) e no Código de Defesa do CONSUMIDOR (art. 28). 124 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2005.016455-0, da 1ª Vara Cível da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 08 de novembro de 2005. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 61 Aquele estabelece "regra geral de conduta para todas as relações jurídicas travadas na sociedade, o que evita que os operadores do DIREITO tenham de fazer - como faziam malabarismos dogmáticos para aplicar a norma - outrora limitada a certos microssistemas jurídicos - em seus correspondentes campos de atuação (civil, trabalhista, comercial etc.)” 125 Assim como a execução de uma empresa pode ser direcionada a outra do mesmo grupo, a teoria da desconsideração também permite a responsabilização da sociedade por obrigação pessoal do sócio, a chamada “desconsideração da personalidade jurídica inversa”. A Min. Nancy Andrighi, do STJ, contribui com esclarecimentos no Recurso Especial 2007-0045262-5, julgado em 22 de junho de 2010: Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.126 125 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.011231-9, da Vara Comercial da Comarca de Brusque, Florianópolis, SC, 17 de agosto de 2004. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 126 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2007-0045262-5, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Brasília, DF, 22 de junho de 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 62 No entanto, vale firmar que para que ocorra a desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso o sócio não pode mais possuir bens a serem penhorados, veja: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO PROPOSTA CONTRA PESSOA FÍSICA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA DE CRÉDITO DA SOCIEDADE COMERCIAL INTEGRADA PELO DEVEDOR. PRESSUPOSTOS NÃO COMPROVADOS. DECISÃO INSUBSISTENTE. RECLAMO RECURSAL ACOLHIDO. Na DESCONSIDERAÇÃO inversa da PERSONALIDADE JURÍDICA de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa JURÍDICA, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa Contudo, JURÍDICA essa medida extrema controlada. torna absoluta a indispensabilidade de comprovação, pelo credor, de todos os pressupostos autorizatórios da desconstituição inversa da PERSONALIDADE JURÍDICA da empresa comercial, o que não ocorre quando, comprovadamente, o executado tem bens próprios, sendo passíveis de penhora, outrossim, as suas quotas sociais nas empresas por ele integradas. 127 127 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1, da 1ª Vara Cível da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 13 de setembro de 2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 63 Verificados os pressupostos e possibilidades de concessão da desconsideração da personalidade jurídica, passa-se as questões de cunho processual, e uma delas é o discutido tema de qual o momento processual cabível para ser arguida a desconsideração da personalidade jurídica, se no curso do processo de execução ou em processo de conhecimento. A última opção, como visto no capítulo anterior, é de entendimento de doutrinadores como Fábio Ulhoa Coelho e Humberto Theodoro Junior, mas a possibilidade da argüição da desconsideração no curso do processo de execução tem forte influência no entendimento da Min. Nancy Andrighi do STJ, conforme demonstrado também no capitulo antecessor. Neste sentido, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: AGRAVO DE INSTRUMENTO - Execução contra empresa comercial - Pretensão à inclusão de sócio no pólo passivo da ação, com penhora em bens particulares do mesmo DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA Pressupostos não comprovados - Indeferimento - Decisão incensurável - Recurso desprovido. A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA de empresa comercial devedora pode ser declarada nos próprios autos da ação de execução contra ela proposta, desde que comprovados, à saciedade, os fatos que justifiquem com suficiência a medida extrema. E a simples circunstância de não terem sido encontrados bens da executada passíveis de penhora, ou mesmo a suspensão de suas atividades, sem dissolução regular, são razões que, independentemente da prova da conduta faltosa do sócio, seja em razão de excesso de mandato, seja em decorrência da prática de atos contrários à lei ou ao contrato social, não 64 justificam a responsabilização pessoal dos sócios da devedora. 128 Outra questão processual polêmica é a qualidade jurídica do sócio para embargar, figura como parte e utiliza os embargos à execução, ou figura como terceiro e faz uso dos embargos de terceiro. Foi possível localizar julgado neste último sentido no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ou seja, o magistrado entende que desaparece a figura de terceiro, como se observa: Agravo. Embargos de terceiro. Decisão em medida cautelar de arresto. Situação fática que conduz ao juízo de verossimilhança no que tange à DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA, ao abuso de direito e à separação patrimonial. Desaparecimento da qualidade de terceiro. Recurso desprovido.129 Isto posto, infere-se que as decisões acerca da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito civil são pacificas em relação à necessidade da configuração dos requisitos estabelecidos no art. 50 do Código Civil, bem como a fraude ou o abuso de direito. No entanto, no tocante a questão processual, ainda resta entendimentos divergentes. 3.2 DIREITO DO TRABALHO Devido ao seu caráter protecionista a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT possui dispositivos que visam garantir o direito do trabalhador 128 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.025985-9, da 3ª Vara Cível da Comarca de Joinville, Florianópolis, SC, 13 de março de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 129 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.020748-6, da 3ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 25 de abril de 2002. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 65 e um desses dispositivos trata da solidariedade entre as empresas que formam o mesmo grupo, conforme preceitua o parágrafo 2º do art. 2 da CLT, que lê-se abaixo: § 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. Além do amparo ao trabalhador, característica da CLT, para Rubens Requião o referido dispositivo tem relação com a teoria da desconsideração, como se pode verificar quando afirma que “nada mais está admitindo senão a aplicação da doutrina, pois despreza e penetra o “véu” que as encobre e individualiza, desconsiderando a personalidade independente de cada uma das subsidiárias.” 130 Desta forma, demonstra-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem aplicação no que tange ao direito do trabalho e fica confirmado através de acórdãos do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região – TRT12, como pode se averiguar no que segue: BENS DE SÓCIO. PENHORA. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. O direcionamento da execução ao sócio da executada é lícito, pois a teoria da desconsideração da personalidade jurídica permite ultrapassar os efeitos da responsabilidade da pessoa jurídica para o membro da sociedade, que com seus 130 REQUIÃO, Rubens, 1969 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 49) 66 bens particulares deve garantir a execução.131 O direito do trabalho possui pressuposto de utilizar o direito civil subsidiariamente, o que ocorre também na aplicação da doutrina da desconsideração. As decisões são fomentadas com base no art. 50 do Código Civil: EXECUÇÃO. JURÍDICA. DESPERSONALIZAÇÃO Somente poderá ser DA PESSOA determinada a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade quando inequivocamente demonstrado o abuso configurado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, a teor do disposto no art. 50 do Código Civil. 132 No que tange a essa aplicação do art.50 do CC, encontra-se divergências acerca das causas para a admissão da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que no Código Civil verifica-se o abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade e confusão patrimonial, enquanto que no direito do trabalho admite-se de forma majoritária a aplicação da teoria com a simples insolvência da pessoa jurídica, como denota-se no julgados colhidos no TRT12: EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Possuindo a executada débitos trabalhistas e não apresentando bens para satisfazer sua dívida, correta a decisão que autorizou a desconsideração da sua 131 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 02456-2006-03012-00-4, da 4ª Vara do Trabalho da Comarca de Joinville, Florianópolis, SC, 09 de novembro de 2009. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 132 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04922-2006-00512-00-6, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 17 de setembro de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 67 personalidade jurídica (art. 50 CC) e determinou que a execução prossiga contra sua sócia. 133 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. A insolvência da pessoa jurídica executada constitui premissa para o direcionamento da execução aos seus sócios. Inexistindo tal comprovação, é ilegítima a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.134 Neste certame, infere-se que se no âmbito do direito do trabalho a simples insolvência da pessoa jurídica é causa para desconsideração da personalidade jurídica, não estaria se tratando propriamente da teoria da desconsideração, uma vez que esta pressupõe a caracterização do abuso da personalidade jurídica, não se admitindo neste a insolvência, conforme se demonstra na análise da teoria no âmbito do direito civil. Ainda assim, apesar a admissão da simples insolvência como causa de desconsideração, a matéria resta controvertida, e além disso é necessário que estejam esgotados os bens da pessoa jurídica antes de direcionar a execução ao sócio, como verifica-se: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXISTÊNCIA DE BENS DA SOCIEDADE EMPRESARIAL. IMPOSSIBILIDADE DE REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO AOS SÓCIOS. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresarial somente poderá ser aventada com fins de afetação do patrimônio dos 133 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04260-2009-03112-00-3, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 21 de maio de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 134 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 05358-2007-00212-00-0, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Blumenau, Florianópolis, SC, 03 de fevereiro de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 68 seus sócios quando verificada a insuficiência de bens da devedora. Havendo lastro patrimonial de propriedade da empresa executada, indevida é a desconsideração de sua personalidade, bem assim nulos os atos praticados com vista à expropriação de bens dos seus sócios.135 Outra discussão emergente é o momento processual a ser proposta a desconsideração da personalidade jurídica, que de acordo com os acórdãos garimpados é admissível no processo de execução, resguardada, porém, a necessidade de citação do sócio para figurar no pólo passivo da demanda, uma vez que este não se confunde com a pessoa jurídica. Este posicionamento foi observado nos seguintes acórdãos: EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EXECUTADA. NECESSIDADE DE CITAÇÃO DOS SÓCIOS. DEVIDO OBSERVÂNCIA PROCESSO LEGAL. DO PRINCÍPIO Considerando que DO o ordenamento jurídico pátrio foi edificado no sentido de distinguir a pessoa jurídica da de seus sócios e, com isso, dissociar o universo patrimonial de ambos, fazendo com que cada um tenha vida distinta da do outro, é imperioso que, valendo-se o magistrado da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da executada, determine a regular citação dos sócios antes de promover a afetação de seu patrimônio jurídico, sob pena de ferimento do devido processo legal.136 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA EXECUTADA. INCLUSÃO DOS SÓCIOS 135 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 01742-2009-01012-00-0, da Vara do Trabalho da Comarca de Brusque, Florianópolis, SC, 01 de junho de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 136 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 00831-2002-03112-00-4, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 22 de outubro de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 69 RETIRANTES NO POLO PASSIVO DA DEMANDA. INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO. NULIDADE. A citação dos sócios retirantes, quando há a desconsideração da personalidade jurídica da empresa e a sua inclusão no polo passivo da demanda, é imprescindível à realização da penhora sobre os bens particulares destes (inteligência dos arts. 880 da CLT e 618, II, do CPC). A inobservância de tal preceito legal enseja o reconhecimento da nulidade da penhora.137 Ainda na questão processual, fica evidenciado que ao ser concedida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio, que como já visto, precisa ser citado, passa a ser parte do processo, ainda que não originariamente, e ao ter recaído sobre seus bens, penhora, não pode embargos como terceiro, pois assim não mais o é, como demonstra o julgado do TRT12: CONSTRIÇÃO DE BENS DE SÓCIO DA EMPRESA. EMBARGOS DE TERCEIROS. PARTE ILEGÍTIMA PARA PROPOR O RECURSO. CONFIGURAÇÃO. Em sintonia com a decisão do TRT que não aceitou os embargos à execução opostos pela empresa, por serem parte ilegítima para a defesa do bem do sócio, porque somente o sócio é quem tem legitimidade para opor embargos à execução contra a constrição que recaiu sobre bens de sua propriedade, não poderia o agravante ter oferecido embargos de terceiro, senão embargos à execução, observados os prazos legais. Quem integra a execução, seja originariamente, seja por decisão ulterior (sucessão, desconsideração da personalidade jurídica etc.) é executado e não terceiro e, como tal, deve se valer dos embargos à 137 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04568-2003-01812-00-3, da 2ª Vara do Trabalho da Comarca de Blumenau, Florianópolis, SC, 20 de maio de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 70 execução, não tendo legitimidade para embargar de terceiro. Agravo de petição conhecido para se negar provimento.138 Neste certame ficam tratadas as principais questões acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito do trabalho. 3.3 DIREITO DO CONSUMIDOR Como explanado no capítulo anterior, há uma grande discussão sobre ser o art.28 do Código de Defesa do Consumidor um dispositivo referente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que este positiva mais causas para a aplicação da teoria do que propriamente o uso deturpado do instituto da pessoa jurídica. Esse contra censo também paira nas decisões dos magistrados, há aqueles que entendem tratar-se todas as causas do art.28 como sendo suficientes para a aplicação da disregard doctrine, enquanto outros, ainda que estejam expressas a demais causas no dispositivo, entendem que deve haver a comprovação do abuso de direito, fraude, abuso de poder. O art. 28 do CDC abriga a falência, a insolvência, o encerramento das atividades da pessoa jurídica ou até mesmo a própria pessoa jurídica como obstáculo ao ressarcimento do consumidor como causas para desconsideração, pois o legislador entende que o consumidor seja vulnerável nas relações de consumo. No entanto, a corrente que não abraça o art. 28 do CDC como desconsideração diz que o mesmo prejudica o instituto da pessoa jurídica, que o sócio não pode sofrer o ônus incondicional nas situações em que age com boa-fé e que por este motivo não pode se valer apenas da interpretação literal. 138 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 00064-2008-01712-00-2, da Vara do Trabalho da Comarca de Mafra, Florianópolis, SC, 20 de maio de 2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 71 Desta forma é o entendimento da desembargadora Maria do Rocio Santa Ritta da Primeira Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, conforme selecionada ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO. DÍVIDA AFETA A SOCIEDADE LIMITADA. AMBICIONADA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 28, § 5º, DO CDC. INTERPRETAÇÃO LITERAL INSUFICIENTE. TUTELA DA BOA-FÉ E DA GARANTIA DO DESENVOLVIMENTO COMPROVAÇÃO DO NACIONAL. USO NECESSIDADE DETURPADO DO DE ENTE MORAL. PROVIDÊNCIA NÃO IMPLEMENTADA PELOS EXEQÜENTES. RECURSO DESPROVIDO. A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA somente se admite quando o escudo da separação patrimonial é utilizado para fins destoantes do DIREITO. Não se pode conceber, diante do princípio da boa-fé, que, mesmo agindo os sócios nos estreitos limites da legalidade e da honestidade, tenham seu patrimônio desfalcado para cobrir dívidas da respectiva sociedade. É bastante justo que a empresa arque, objetivamente, com os danos que causar ao CONSUMIDOR; agora, impor este ônus diretamente e incondicionalmente aos sócios, é medida de todo desproporcional, que compromete o desenvolvimento da nação, um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, II, da CF).139 Na íntegra deste julgado a desembargadora reza que a interpretação literal do art. 28 do CDC é insatisfatória, revelando total descompasso com o sistema legal no qual ele se encontra envolto, além disso, 139 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da 5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 72 fere o principio da igualdade material, pois desconsidera o comportamento dos sócios, se de boa ou má-fé. 140 Neste sentido, ela complementa: As relações consumeristas são regidas pelo princípio geral da boa-fé implícito na Constituição Federal e expresso no Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, III) - princípio este que fundamenta, em última análise, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Não se pode conceber, portanto, que, mesmo agindo os sócios nos estreitos limites da legalidade e da honestidade, tenham seu patrimônio desfalcado para cobrir dívidas da respectiva sociedade. A boa fé é merecedora de prêmios e não punição.141 Os defensores da literalidade do texto do art. 28 do CDC, por sua vez, entendem que cabe a desconsideração sem necessariamente a configuração do abuso da personalidade, sendo suficiente qualquer dos requisitos expressos no referido dispositivo. Neste sentido, da sentença para o Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1 de São José retira-se a citação do culto magistrado catarinense, Dr. Antônio do Rego Monteiro Rocha, acerca das causas que ensejam a desconsideração no âmbito do Direito do Consumidor, que assim expõe: Enfim, a personalidade jurídica só poderá ser desconsiderada mediante os seguintes pressupostos: a) ato antijurídico contrário ao direito, mediante ação ou omissão, consistente em abuso de direito, excesso de poder, infração 140 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da 5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 141 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da 5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 73 da lei, fato ou ato ilícito ou violação de estatutos, bem como quando houver encerramento ou falência, estado inatividade de provocados insolvência, por má administração; b)responsabilidade objetiva do fornecedor de produto ou serviço; c) prejuízo ao consumidor, decorrente de lesão objetiva na relação de consumo; d) existência de obstáculo criado pela sociedade jurídica para impedir a responsabilização do membro da sociedade que infringiu o direito do consumidor; e) nexo de causalidade entre o antijurídico praticado pela pessoa moral e o prejuízo sofrido pelo consumidor, através de obstáculos à reparação pretendida. Inexistentes os requisitos acima, o magistrado não pode e não deve desconsiderar a personalidade jurídica, por ser motivo de exceção e porque o instituto da desconsideração é o meio para cuidar dos desvios funcionais da personalidade jurídica, pelo que não pode ser prodigalizado sem fundamentação jurídica. 142. Sendo assim, a partir destas palavras pode-se perceber que o magistrado atribui todas as citadas situações como constitutivas da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e no mesmo texto afirmar que a teoria é medida de exceção. Deste modo, pode-se deduzir que a questão é, do mesmo modo que na doutrina, motivo para diferentes posicionamentos e decisões nos tribunais. 142 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1, da 1ª Vara Cível da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 13 de setembro de 2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 74 3.4 DIREITO TRIBUTÁRIO Em matéria de direito tributário no que concerne à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, concebe-se rapidamente a matéria da “responsabilidade tributária”, ou mais precisamente a “responsabilidade de terceiros”, capitulada no Código Tributário Nacional – CTN no artigo art. 135, I, II, III, que dispõem: Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I – as pessoas referidas no artigo anterior; II – os mandatários, prepostos e empregados; III – os diretores, gerentes ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado. No entanto, apesar da relação criada deste dispositivo com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, grande é a discussão acerca desse tema, uma vez que, se a responsabilidade é imputada diretamente aos sócios, esses já são os destinatários específicos da norma e a distinção entre a pessoa jurídica e o sócio não é empecilho para responsabilizar o mesmo, portanto, não está se tratando de desconsideração da personalidade jurídica ao aplicar estes dispositivos do CTN. 143 Neste sentido, é o entendimento do autor André Pagani de Souza: Caso o sócio, o acionista, o administrador ou a sociedade sejam destinatários específicos de normas que lhes atribuam responsabilidade pelo abuso de direito ou pela realização de 143 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 47) 75 fraudes, não há falar desconsideração da em aplicação personalidade da teoria jurídica. da Nessas hipóteses, a responsabilidade é imputada diretamente ao sócio, acionista, administrador ou à própria pessoa jurídica, conforme o caso.144 Calixto Salomão Filho, por sua vez, na obra “O novo direito societário” expõe que o artigo do CTN acima mencionado é exemplo da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundamentada em dispositivos legais. 145 Neste mesmo sentido, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, no qual o magistrado entende o art.135 do CTN como a previsão para a aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica: RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA - EXECUÇÃO FISCAL - SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA - PENHORÁVEL INEXISTÊNCIA - PRESUNÇÃO DE PATRIMÔNIO DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR - PEDIDO DE CITAÇÃO DOS SÓCIOSGERENTES, NÃO OBSTANTE, INDEFERIDO - SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DE CABIMENTO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EXEGESE DO ART. 135, III, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL - REFORMADO PRECEDENTES - - INTERLOCUTÓRIO AGRAVO PROVIDO Os sócios diretores, gerentes ou representantes de empresa por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente pela obrigação tributária, nos termos do art. 135, III do CTN, quando há dissolução irregular da 144 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 47) 145 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (p. 196-197) 76 sociedade ou, segundo a doutrina e a jurisprudência, se comprovada a prática de atos com excesso de poder, infração de lei do contrato social ou estatutos. É a aplicação da disregard doctrine, também conhecida como teoria da disregard of legal entity ou, em bom vernáculo, teoria da desconsideração da pessoa jurídica, pela qual, visando coibir um possível abuso de direito, entravador e prejudicial à atividade do Estado, o sócio de empresa dissolvida irregularmente em nome da qual não são encontrados mais bens passíveis de garantir a satisfação de seus débitos tributários, ou o que comprovadamente praticou algum daqueles atos mencionados, passa a ser equiparado à própria pessoa jurídica que representa, podendo, sem necessidade de expedição de nova CDA, ser citado e ter seu patrimônio sujeito ao gravame garantidor do implemento da referida obrigação. (Grifo nosso) 146 De acordo com o que preceitua o próprio caput do art. 135 do CTN e o que pôde ser observado no acórdão acima, uma das causas que ensejam a responsabilização do terceiro perante a obrigação da pessoa jurídica, ou seja, o “redirecionamento” da responsabilidade, é a comprovação de atos praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos” os quais caracterizam o abuso da personalidade ou o desvio de finalidade, que são pressupostos para a aplicação da teoria da desconsideração, o que cria a conexão do dispositivo com a teoria. Essa relação estabelecida entre o art. 135 do CTN com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser verificada maciçamente nos julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, conforme lê-se nas ementas elencadas abaixo: 146 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.004093-0, da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Balneário Camboriú, Florianópolis, SC, 09 de agosto de 2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 77 TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. COMPROVADA DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA EMPRESA. REDIRECIONAMENTO. SÓCIO-GERENTE. Quando a sociedade se extingue irregularmente cabe responsabilizar o sócio-gerente, permitindo-se o redirecionamento. Assim, é dele o ônus de provar não ter agido com dolo, culpa, fraude ou excesso de poder. (Grifo nosso)147 AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. - Apenas em situações excepcionais, em face da importância do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, é possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, sendo necessária, outrossim, a prova concreta do desvio de finalidade da empresa. 148 EMBARGOS À REDIRECIONAMENTO. ILEGITIMIDADE HONORÁRIOS EXECUÇÃO ART. PASSIVA 135, DO ADVOCATÍCIOS. FISCAL. III, DO CTN. SÓCIO-GERENTE. [...] 3. O mero inadimplemento do tributo não caracteriza infração legal. Apenas a atuação das pessoas elencadas nos incisos do art. 135 do CTN com dolo, excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos possibilitaria o redirecionamento do feito executivo à pessoa do 147 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000172793.2010404.0000, da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, RS, 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 148 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000763971.2010.404..0000, da 1ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 78 sócio-gerente.[...]149 Sendo assim, apesar das divergências doutrinárias, a jurisprudência mostra-se convergente ao entendimento de que o redirecionamento da responsabilidade da pessoa jurídica para o terceiro (sócio, administrador, gerente) disposta no art. 135 do CTN trata-se da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Consoante aos acórdãos citados, a titulo de complementação, acerca do inadimplemento da obrigação tributária constituir causa de redirecionamento de responsabilidade ao sócio, vale firmar as palavras da desembargadora Maria de Fátima Freitas Labarrére, proferidas no teor do citado agravo de instrumento de nº 0001727-93.2010.404.0000: A responsabilidade tributária do sócio gerente ou administrador permite a separação patrimonial e está expressamente autorizada na norma legal em referência (art. 135 CTN), sendo firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que o simples inadimplemento da obrigação tributária não é suficiente para caracterizar infração à lei a que se refere o legislador. Com efeito, o que pode constituir infração, o que pode levar o diretor, gerente ou administrador, a tornar-se responsável, é a causa do não pagamento, mas jamais este próprio efeito, tomado isoladamente. Então, é preciso que se investigue, casuisticamente, as razões dessa inadimplência, para verificar se, entre elas, estariam fatos capazes de serem 149 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação nº 2005.70.09.000967-8, da 2ª Vara da Fazenda da Comarca de Ponta Grossa, Porto Alegre, RS, 14 de abril de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 79 enquadrados como 'excesso de poderes, infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos'. 150 Desta forma, a partir do texto da desembargadora, nota-se que o não pagamento das obrigações tributárias não é causa para desconsiderar a personalidade jurídica da pessoa jurídica para atingir o patrimônio dos sócios. 150 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000172793.2010404.0000, da 1ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente monografia buscou analisar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias, bem como seus efeitos no âmbito do direito civil, direito do trabalho, direito do consumidor e direito tributário, através de julgados de distintos tribunais. Para tanto, no Capítulo I verificou-se a conceituação das principais categorias que servem de embasamento teórico para compreensão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A principal categoria, “personalidade jurídica”, foi caracterizada através do entendimento de diversos autores, e pôde-se inferir que se trata de um conjunto de características gerais – juridicamente determinadas – que individualizam a pessoa perante seu contexto social, a fim de torná-la apta para exercer direitos e contrair obrigações. Partindo do pressuposto de que a personalidade jurídica é atribuída as pessoas, foi necessária a explanação que há dois tipos de pessoa, física ou natural (ser humano) e jurídica ou moral (ente fictício). Em seguida, demonstrou-se o momento da personificação das pessoas. As físicas adquirem a personalidade a partir do nascimento, enquanto as jurídicas, através do registro do ato constitutivo. Sendo a desconsideração das pessoas jurídicas o objeto deste trabalho, prosseguiu-se a pesquisa com foco nestas, com a distinção entre pessoa jurídica de direito público e pessoa jurídica de direito privado. Na sequência foi abordado os tipos de pessoas jurídicas de direito privado, quais sejam as fundações, associações, partidos políticos, organizações religiosas e as sociedades. 81 Para encerrar e estreitar o tema, foram diferenciadas as sociedades simples das sociedades empresárias, as quais foram o prisma da análise da desconsideração da personalidade jurídica. No segundo Capítulo foi abordado o contexto histórico da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o surgimento nos tribunais norte-americanos e alemães, o primeiro caso de decisão judicial por desconsideração da personalidade jurídica, as formulações dos autores que foram os precursores da teoria, como Rolf Serick, Piero Verrucoli e Rubens Requião. Segundo os referidos autores, a autonomia patrimonial, gerada pela concessão de personalidade distinta à pessoa jurídica, que a separa dos membros que a compõe, pode ser utilizada como anteparo de fraudes e atos contrários ao direito. Com o intuito de afastar o absolutismo atribuído sobre o direito de personalidade, a teoria da desconsideração visa penetrar o véu da personalidade jurídica para atingir e responsabilizar os sócios que agem por meio da pessoa jurídica. Acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o dispositivo mais importante é o artigo 50 do Código Civil, que elucida as causas para aplicação da desconsideração neste âmbito do direito. A fim de analisar a aplicabilidade da teoria, buscou-se conceituar as categorias presentes neste dispositivo, quais sejam o “abuso da personalidade jurídica”, alcançando as categorias “abuso de direito” e “fraude”; “desvio de finalidade”; “confusão patrimonial”; “requerimento da parte ou do Ministério Público”; “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigação estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios”. Observou-se a teoria maior objetiva e a teoria maior subjetiva, além da teoria menor, que tem aplicabilidade no direito do consumidor e direito do trabalho. 82 Abordou-se também a teoria da desconsideração em sentido inverso, que visa responsabilizar a pessoa jurídica pelos atos dos sócios. Os aspectos processuais, que elucidam o momento processual a ser proposta a desconsideração da personalidade jurídica também foram demonstrados. Por fim, o Capítulo III analisou a aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica através da demonstração de julgados de diferentes tribunais no diversos ramos do direito. Com essa analise pode-se confirmar que a teoria da desconsideração constitui instituto com grande divergência, pois no direito civil necessita restar demonstrado os pressupostos estabelecidos no art. 50 para que seja concedida a desconsideração. No direito do trabalho, por sua vez, a simples invocação de insolvência da pessoa jurídica já constitui causa que admite a desconsideração. O direito do consumidor visa proteger a vulnerabilidade do consumidor e por isso há entendimento de que não é necessário estar presente a fraude, o abuso de direito, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Divergências são encontradas também no direito tributário, pois, uma vez que o artigo 135 do Código Tribunal Nacional prevê responsabilização direta dos sócios, não estaria se tratando de desconsideração da personalidade jurídica, visto que a mesma não é obstáculo para atingir o sócio. No tocante as hipóteses, a primeira não foi confirmada, pois o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi criado, justamente, para contrapor o absolutismo do princípio da autonomia patrimonial e atingir os membros da pessoa jurídica que praticam atos atentatórios ao direito. A Segunda hipótese, por sua vez, também não restou confirmada, visto que a aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é mutável de acordo com o ramo de direito em questão, ou 83 seja, no direito civil e no direito tributário as causas do artigo 50 precisam estar necessariamente demonstradas para que seja concedida a desconsideração da personalidade jurídica. No direito do trabalho, devido à proteção a ser concedida ao empregado, pressupõe que a simples insolvência da pessoa jurídica já constitui medida para aplicação da desconsideração. No mesmo sentido segue o direito do consumidor, que visa proteger o mesmo no mercado de consumo e por isso admite que não estejam presentes as causas do artigo 50 do Código Civil, devido a vulnerabilidade do consumidor, mas não é entendimento único e enfrenta divergência. REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 2009-0093528-1, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasília, DF, 16 de setembro de 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2007-0045262-5, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Brasília, DF, 22 de junho de 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1, da 1ª Vara Cível da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 13 de setembro de 2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.004093-0, da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Balneário Camboriú, Florianópolis, SC, 09 de agosto de 2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.020748-6, da 3ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 25 de abril de 2002. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.023753-7, da 2ª Vara Cível da Comarca de Tubarão, Florianópolis, SC, 20 de março de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.025985-9, da 3ª Vara Cível da Comarca de Joinville, Florianópolis, SC, 13 de março de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.011231-9, da Vara Comercial da Comarca de Brusque, Florianópolis, SC, 17 de agosto de 2004. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da 5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. 85 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2003.009499-7, da 1ª Vara Cível da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 13 de novembro de 2003. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. 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