UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS: UMA ANÁLISE
JURISPRUDENCIAL
MARINA DE OLIVEIRA MELIM
Itajaí, novembro de 2010
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS: UMA ANÁLISE
JURISPRUDENCIAL
MARINA DE OLIVEIRA MELIM
Monografia submetida à Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI, como
requisito parcial à obtenção do grau de
Bacharel em Direito.
Orientadora: Professora Msc. Queila Jaqueline Nunes Martins
Itajaí, de novembro de 2010
AGRADECIMENTO
Agradeço imensamente aos meus pais, Erico e
Marli, pela educação baseada em trabalho e
determinação, que proporcionou a conclusão
deste curso; em especial à minha mãe, por
tamanha preocupação com este trabalho
acadêmico.
Agradeço também aos meus irmãos, Mariana e
Jean, e ao meu querido Angelo pelo carinho e os
momentos de descontração, bem como a Dalton e
Rose pelo apoio e incentivo.
Do mesmo modo, agradeço a Prof. Queila, pelo
auxílio prestado nesta pesquisa.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a Claudio Melim, por ser
meu grande e compreensivo amigo, fiel
companheiro, dedicado e carinhoso esposo, uma
pessoa definitivamente especial. Afirmo que este
trabalho foi concluído devido ao seu apoio e
paciência.
Desde já, faço esta dedicatória também a Maria
Helena de Oliveira Melim, o nosso anjo.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, novembro de 2010
Marina de Oliveira Melim
Graduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale
do Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Marina de Oliveira Melim, sob o
título A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias:
uma análise jurisprudencial, foi submetida em 25 de novembro de 2010 à banca
examinadora composta pelos seguintes professores: Msc. Queila Jaqueline
Nunes Martins, orientadora e presidente da banca e Msc. Emanuela Cristina de
Andrade Lacerda, examinadora, e aprovada com a nota ___________,
_______________________.
Itajaí, novembro de 2010
Professora Msc Queila Jaqueline Nunes Martins
Orientadora e Presidente da Banca
Professora Msc Emanuela Cristina de Andrade Lacerda
Examinadora da Monografia
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................... VII INTRODUÇÃO ..................................................................................... 1 CAPÍTULO 1 ........................................................................................ 3 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS ................................................................................... 3 1.1 PERSONALIDADE JURÍDICA ......................................................................... 3 1.2 A PERSONIFICAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA .............................................. 8 1.3 AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO ...................................... 13 1.4 AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS ............................................................... 16 CAPÍTULO 2 ...................................................................................... 23 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA:
DISREGARD DOCTRINE .................................................................. 23 2.1 BREVE HISTÓRICO ....................................................................................... 23 2.2 AS PESSOAS JURÍDICAS
E
A
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 30 2.3 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 34 2.4
ASPECTOS
PROCESSUAIS
DA
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA ............................................................................. 53 CAPÍTULO 3 ...................................................................................... 56 UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA .............. 56 3.1 DIREITO CIVIL ............................................................................................... 56 3.2 DIREITO DO TRABALHO .............................................................................. 64 3.3 DIREITO DO CONSUMIDOR ......................................................................... 70 3.4 DIREITO TRIBUTÁRIO................................................................................... 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 80 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 84 RESUMO
O presente trabalho aborda uma análise jurisprudencial
acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Destaca as
categorias necessárias para embasar o entendimento do instituto, qual sejam
personalidade jurídica e pessoa jurídica, bem como destaca os aspectos
relevantes acerca da teoria como forma de compreensão da conceituação e
aplicabilidade da teoria no caso concreto, além de demonstrar as divergências
consistentes em cada tema. Por fim, apresenta vários julgados que demonstram
os diferentes entendimentos e pressupostos para a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica no ramo do direito civil, do direito do
trabalho, do direito do consumidor e do direito tributário.
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica.
O seu objetivo é elaborar um estudo acerca da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica com base na norma positivada e no
entendimento doutrinário, bem como analisar a sua aplicabilidade no caso
concreto através da apresentação de julgados de distintos tribunais.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando de
apresentar os conceitos para determinadas categorias da parte geral do Direito
Civil, que servem de embasamento teórico para compreensão do instituto da
desconsideração, quais sejam “personalidade jurídica” e “pessoa jurídica”. Além
de demonstrar a personificação da pessoa jurídica, as pessoas jurídicas de direito
privado e as sociedades empresárias.
No
Capítulo
2,
tratando
de
trabalhar
a
teoria
da
desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, elucida-se o
histórico do surgimento do instituto, os dispositivos do ordenamento jurídico
brasileiro relativos à teoria, a analise das categorias pertinentes ao entendimento
da aplicabilidade da desconsideração, bem como o destaque dos aspectos
processuais.
No Capítulo 3, tratando de demonstrar a aplicabilidade da
teoria através da analise de julgados de diversos ramos do direito, como o direito
civil, do consumidor, do trabalho e tributário.
As categorias fundamentais para a monografia, bem como
os seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer da monografia.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as
Considerações
Finais,
nas
quais
são
apresentados
pontos
conclusivos
destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões
sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
2
Para a presente monografia foram levantadas as seguintes
hipóteses:
Hipótese 1 - A autonomia patrimonial é um direito absoluto,
que não admite, em qualquer hipótese, a equiparação da sociedade com os
sócios que a compõe.
Hipótese 2 - No âmbito do direito civil, do direito do trabalho,
do direito do consumidor e do direito tributário têm que estar, obrigatoriamente,
presentes as causas do art. 50 do Código Civil, ou seja, o abuso da personalidade
jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade e confusão patrimonial para que
seja admitida a desconsideração da personalidade jurídica.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase
de Investigação1 foi utilizado o Método Indutivo2, na Fase de Tratamento de
Dados o Método Cartesiano3, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente
Monografia é composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as
Técnicas do Referente4, da Categoria5, do Conceito Operacional6 e da Pesquisa
Bibliográfica7.
1
“[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente
estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da
pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.
2
“[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma
percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e
Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.
3
Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE,
Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.
22-26.
4
“[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o
alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma
pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa
jurídica. p. 62.
5
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD,
Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31.
6
“[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita
para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa
jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45.
7
“Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD,
Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 239.
CAPÍTULO 1
A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS
1.1 PERSONALIDADE JURÍDICA
O presente trabalho científico parte do pressuposto de que o
respeito à diversidade e à dinamicidade do conhecimento humano, em especial
do conhecimento jurídico, se apresenta como um requisito necessário para que a
pesquisa seja realizada com o devido cuidado em relação à conceituação das
categorias centrais utilizadas pelo texto, evitando que a compreensão das idéias
aqui expostas seja eventualmente comprometida por percepções semânticas
inadequadas ao contexto teórico no qual está inserida esta monografia.
Sobre isso, Tércio Sampaio Ferraz8 ensina que:
Ao analisarmos a discussão, delimitamos nosso campo de
interesse na medida em que nos fixamos no discurso
enquanto discussão fundamentante ou discurso que se
fundamenta. [...] A discussão fundamentante deve ser
entendida como discussão racional. A palavra ‘racional’ é
extremamente equívoca e exige uma explicação. Uma
discussão é por nós denominada racional quando os
agentes do discurso não deixam as ações lingüísticas que
executam determinarem-se por elementos exteriores à
própria discussão, no sentido de que esses eventuais
elementos devam ser postos pela discussão, em termos de
mútuo entendimento. [...] Em outras palavras, poderíamos
dizer que uma discussão é racional quando os agentes
não se deixam determinar por meras emoções ou por
meras tradições e costumes. (Grifo nosso)
8
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma
pragmática do discurso jurídico. (p. 29-30)
4
Assim,
este
primeiro
capítulo
inicia
destacando
características conceituais pontuais sobre as categorias principais, a fim de
estabelecer uma base semântica mínima que colabore para a identificação segura
dos elementos teóricos que se mostram relevantes para a formulação de um
entendimento
doutrinário
acerca
das
características
constitutivas
da
Personalidade Jurídica no âmbito do Direito Civil brasileiro.
A palavra Personalidade, em sentido comum, representa
basicamente o conjunto de características naturais e culturais que individualizam
uma pessoa perante seu meio social, sendo que isso pode ser constatado através
das definições gerais que lhe atribui o Dicionário Aurélio9:
[...] personalidade [...] 1. Caráter ou qualidade do que é
pessoal; pessoalidade. 2. O que determina a individualidade
duma pessoa moral. 3. O elemento estável da conduta de
uma pessoa; sua maneira habitual de ser; aquilo que a
distingue de outra [...].
Essa conceituação coloquial da palavra Personalidade
também tem seu uso científico fortemente amparado pelo desenvolvimento da
Psicologia, tendo em vista o trabalho de construção das chamadas “Teorias da
Personalidade”, para as quais, em sua grande maioria:
A personalidade consiste concretamente em uma série de
valores ou termos descritivos que descrevem o indivíduo que
está sendo estudado em termos das variáveis ou de
dimensões que ocupam uma posição central dentro de uma
teoria específica.10
Embora
esse
significado
mais
comum
da
palavra
Personalidade ampare notoriamente o trabalhado de estudiosos da Psicologia, o
mesmo, para efeitos deste trabalho, serve como indicativo para um dos sentidos
jurídicos atribuídos a esta palavra, conforme se pode perceber pela formulação de
9
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XX. (p. 1553)
10
HALL, Calvin S; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade. (p. 33)
5
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery11, que, ao definirem o que vem
a ser “Sujeito de direito”, explicam que:
É a pessoa, ou seja, o ente dotado de personalidade. A
personalidade
civil
(CC
2º),
ou
simplesmente,
personalidade, é a qualidade de quem é pessoa e é a
marca determinante de individualização do sujeito como
sendo aquele determinado e específico sujeito de direito,
não outro. (Grifo nosso)
Ou seja, no âmbito do Direito, ainda que não apenas isso, a
palavra Personalidade também representa a individualidade da pessoa perante
seu ambiente social, uma vez que toda e qualquer ordem jurídica se estabelece
com o fim precípuo de acomodar interesses e relações exclusivamente humanas,
tornando imprescindível a determinação de atributos que possam individualizar as
pessoas perante este processo de organização jurídica da sociedade. Assim, a
partir dessa necessidade de distinção das pessoas perante o ordenamento
jurídico ao qual estão submetidas, surge a chamada Personalidade Jurídica.
Além de determinadora de atributos individualizadores da
pessoa perante o mundo do Direito, a categoria Personalidade Jurídica pode ser
entendida também como a aptidão de adquirir direitos e contrair obrigações.
Neste sentido, Bruno Mattos e Silva12 explica:
[...] Já se disse que a personalidade jurídica nada mais é do
que a aptidão atribuída pela ordem jurídica a pessoas para
exercer direitos e contrair obrigações, ainda que seja
necessária a assistência ou a representação por outras
pessoas. Ou seja, quem tem personalidade jurídica pode ser
sujeito de direitos e deveres jurídicos.
No mesmo caminho, ao definir o significado geral da palavra
Personalidade, inserida no contexto jurídico, Maria Helena Diniz13 explica que,
11
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 197)
12
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 179)
13
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 661, v.3)
6
para o Direito Civil, essa palavra (Personalidade) significa “[...] Aptidão,
reconhecida juridicamente, para exercer direito e contrair obrigações”.
Ora, unindo as duas percepções acerca da palavra
Personalidade, a comum, que entende a mesma como um conjunto de
características individualizadoras da pessoa, e a jurídica, que a define como a
aptidão para exercer direitos e contrair obrigações, pode-se, por inferência, propor
que, para efeitos deste texto, a categoria Personalidade Jurídica seja entendida
como um conjunto de características gerais – juridicamente determinadas –
que individualizam a pessoa perante seu contexto social, a fim de torná-la
apta para exercer direitos e contrair obrigações.
Ocorre que tal entendimento, tendo em vista o pressuposto
estabelecido pelo primeiro parágrafo deste capítulo, evidencia a relevância de
outra categoria de extrema importância para este trabalho, que é a “Pessoa”,
sendo que essa evidência torna importante o destaque da formulação de Bruno
Mattos e Silva14, que, ao complementar a sua explicação sobre a Personalidade
Jurídica, esclarece que:
Seja como for, é certo que, nos dias de hoje, o direito
confere personalidade jurídica a qualquer ser humano,
independentemente da idade, do sexo, da condição social,
da raça ou de qualquer outro atributo. Todo ser humano tem
personalidade jurídica. Juridicamente, o ser humano é
chamado de pessoa física ou pessoa natural.
E, além disso:
O direito pode conferir personalidade jurídica a certas
entidades, que são chamadas de pessoas jurídicas ou de
pessoas morais. O próprio ordenamento jurídico estabelece
quais são as condições para que determinadas entidades
sejam consideradas pessoas.
Ou seja, a partir do citado esclarecimento, além da distinção
existente entre os dois tipos de pessoas, a física (ou natural) e a jurídica (ou
14
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 179)
7
moral), percebe-se que a noção de Personalidade Jurídica, em sentido amplo,
não deve ser confundida com a de Pessoa Jurídica, pois a Personalidade
Jurídica, nesse sentido, é uma característica tanto das pessoas físicas quanto
das jurídicas.
Nesta direção, Gladston Mamede15 ensina que:
[...] a personalidade jurídica é um véu que veste cada
personagem (cada ator, cada pessoa) do cenário e da trama
jurídica, podendo ser colocado sobre um único ser humano
(da mesma maneira que, em alguns sistemas jurídicos, pode
haver seres humanos sem o véu da personalidade jurídica, a
exemplo dos condenados à morte civil – civil deth), sobre um
conjunto de pessoas (universitates personarum), um
conjunto de bens (universitates bonorum) etc.
Também essa formulação de Mamede torna importante o
alerta sobre a distinção entre Personalidade Jurídica (em sentido amplo) e a
Pessoa Jurídica, tendo em vista a extensa utilização, pela doutrina, da expressão
Personalidade Jurídica para ambas as situações, ora em sentido amplo, como
nas explicações acima citadas de Bruno Mattos e Silva e de Gladston Mamede,
ou então servindo como atributo exclusivo e ou até como sinônimo direto da
categoria Pessoa Jurídica, o que pode ser verificado através do “Dicionário
Jurídico” de Maria Helena Diniz16, no qual, ao definir especificamente o verbete
“Personalidade Jurídica”, a autora afirma se tratar da:
Qualidade das pessoas jurídicas de direito privado
(associações, sociedades, fundações) e de direito público
(União, Estados, Municípios, autarquias, fundações públicas)
que as torna capazes para a prática de atos jurídicos, uma
vez que são reconhecidas pela lei, tendo direitos e deveres
próprios, que não se confundem com os das pessoas
naturais que nelas atuam.
15
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 29)
16
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 661, v.3)
8
Evidenciando que, nesse caso, “Personalidade Jurídica” se
apresenta como uma categoria diretamente ligada à noção de Pessoa Jurídica,
sendo que tal opção conceitual se justifica no texto citado, uma vez que a autora
utiliza, para definir a Personalidade Jurídica das Pessoas Físicas (ou naturais), a
expressão “Personalidade Civil”, a qual ela conceitua como sendo a:
Aptidão legal de ser sujeito de direitos. [...] Qualidade de
pessoa natural que se inicia com o nascimento, gerando
direitos e deveres, no âmbito patrimonial e obrigacional, na
seara cível [...].
Tratam-se apenas de opções teóricas conceituais distintas
que, se devidamente esclarecidas e compreendidas pelo leitor, não trazem
maiores conseqüências para a efetividade do processo de comunicação, seja ele
verbal escrito ou oral. Não obstante, para efeitos deste trabalho, a categoria
Personalidade Jurídica será utilizada sempre em sentido amplo, significando,
como já dito anteriormente, um conjunto de características gerais –
juridicamente determinadas – que individualizam a pessoa, seja ela física ou
jurídica, perante seu contexto social, a fim de torná-la apta para exercer
direitos e contrair obrigações.
1.2 A PERSONIFICAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
Inicialmente, quanto à diferenciação entre as categorias
Pessoa Física (ou natural) e Pessoa Jurídica, distinção essa de extrema
relevância para os objetivos do presente estudo, destaca-se a formulação de
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery17, através da qual os autores
explicam que:
Pessoa natural é sinônimo de pessoa física, ser humano, ou
‘pessoa singular’. É termo utilizado para distinguir o homem
de outros titulares de direito que o são por processo artificial
de ficção jurídica. O direito confere personalidade às
17
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 197)
9
pessoas naturais (ou pessoas físicas) e, por ficção, às
pessoas jurídicas, ou pessoas ‘coletivas’ (CC 40 e 69).
Todas elas podem ser sujeitos de direitos e de obrigações.
Por sua vez, Maria Helena Diniz define a categoria “Pessoa
Natural” (ou física) como sendo o “[...] Ser humano considerado como sujeito de
direitos e obrigações”18, e a categoria “Pessoa Jurídica” como uma “Unidade de
pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins,
reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”19.
Para Fábio Ulhoa Coelho20:
Pessoa jurídica é um expediente do direito destinado a
simplificar a disciplina de determinadas relações entre os
homens em sociedade. Ela não tem existência fora do
direito, ou seja, fora dos conceitos tecnológicos partilhados
pelos integrantes da comunidade jurídica. Tal expediente
tem o sentido, bastante preciso, de autorizar determinados
sujeitos de direito à prática de atos jurídicos em geral.
Através dessas citações se percebe, desde logo, a
característica inicial e mais evidente que diferencia juridicamente as Pessoas
Físicas das Pessoas Jurídicas, pois, enquanto a Pessoa Física (ou natural) possui
uma existência real (física e corporal), a Pessoa Jurídica se caracteriza como
sendo uma ficção resultante de essencialidades jurídicas que visam, conforme as
citadas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, “[...] simplificar a disciplina de
determinadas relações entre os homens em sociedade”. Ou seja, enquanto a
Pessoa Física se estabelece de forma real (material), a Pessoa Jurídica se
constitui de forma virtual, existindo apenas de maneira fictícia no âmbito do
ordenamento jurídico.
Partindo dessa diferenciação essencial entre os dois tipos de
Pessoas (Físicas e Jurídicas) e com vistas ao foco do presente estudo, surge
18
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 671, v.3)
19
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 669, v.3)
20
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 112)
10
então outra característica diferenciadora extremamente relevante, a qual se refere
aos diferentes modos de surgimento da existência de tais Pessoas perante o
mundo jurídico, ou seja, quanto à identificação do momento efetivo da
personificação jurídica dessas Pessoas, sejam elas Físicas ou Jurídicas.
Neste sentido, a existência das Pessoas Físicas começa,
para o Direito brasileiro, nos moldes do artigo 2º do Código Civil de 2002, com o
“nascimento com vida” da pessoa natural (ser humano), enquanto o início da
“vida” da Pessoa Jurídica se dá a partir do seu ato jurídico constitutivo. Ou seja,
enquanto a Pessoa Física se personifica juridicamente a partir de um fato
biológico (natural), que é o nascimento de um ser humano, a Pessoa Jurídica
ganha sua personalidade perante o mundo do direito a partir de um ato humano
voluntário, de natureza cultural, o qual deve se pautar por regras jurídicas
previamente estabelecidas, a fim de ser considerado válido perante a sociedade
juridicamente constituída.
Cabe aqui um pequeno registro acerca dos direitos do
nascituro, o qual, ainda que não tenha adquirido personalidade jurídica, já se
caracteriza como um sujeito de direito. Sobre isso, Nelson Nery21 explica que:
Antes de nascer o nascituro não tem personalidade jurídica,
mas tem natureza humana (humanidade), razão de ser de
sua proteção jurídica pelo CC: Infans conceptus pro nato
habetur. O direito de nascer é o primeiro do homem.
Para que se possa iniciar uma compreensão acerca do
“nascimento” da Pessoa Jurídica e, conseqüentemente, das características
específicas da sua personificação perante o Direito, torna-se importante destacar
a explicação de Fábio Ulhoa Coelho22, para quem:
No direito brasileiro, as pessoas jurídicas são divididas em
dois grandes grupos. De um lado, as pessoas jurídicas de
direito público, tais a União, os Estados, os Municípios, o
21
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 199)
22
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 109)
11
Distrito Federal, os Territórios e as autarquias; de outro, as
de direito privado, compreendendo todas as demais.
Conforme essa explicação e nos moldes do que estabelece
o artigo 41 do Código Civil de 2002, infere-se que, dentre outras características,
as Pessoas Jurídicas de direito público são instituídas “por lei”, enquanto, por sua
vez, as Pessoas Jurídicas de direito privado “nascem” a partir de um acordo de
vontades, que passa a valer juridicamente “com a inscrição no respectivo registro”
(artigo 45 do Código Civil). Ou seja, ainda que tanto as Pessoas Jurídicas de
direito privado quanto às de direito público tenham a sua constituição realizada
por um ato jurídico, esse ato difere em cada um dos casos, caracterizando-se por
um acordo de vontades levado ao registro no primeiro caso (privado) e por um ato
legislativo no segundo (público).
Sobre isso, Gladston Mamede23 ensina que:
A criação e existência de uma pessoa jurídica de Direito
Privado é escrituralmente assinalada. [...] O ato constitutivo
é o primeiro elemento da dimensão escritural da pessoa
jurídica; será um contrato social [...] ou estatuto [...]. Para
além do ‘véu da personalidade civil’, que permite a
compreensão da sociedade como uma pessoa jurídica, estáse diante de um acordo de vontades, registrado em
instrumento próprio (estatuto ou contrato social).
Diante dos objetivos propostos pela presente monografia,
mostra-se desnecessário qualquer aprofundamento teórico sobre as Pessoas
Jurídicas de direito público, uma vez que tal abordagem pouco contribuiria para
uma compreensão acerca do instituto da Desconsideração da Personalidade
Jurídica das Sociedades Empresárias.
Como visto através da citada formulação de Gladston
Mamede, quanto ao ato constitutivo das Pessoas Jurídicas de direito privado, o
mesmo pode se realizar de duas formas: por contrato ou estatuto.
23
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 31-32)
12
Sobre eles, o mesmo autor24 estende suas explicações,
esclarecendo que tanto o contrato como o estatuto se caracterizam como um
instrumento que:
[...] define as relações entre os membros da entidade e,
portanto, arbitra os limites à atuação de cada qual,
permitindo compor o regulamento pelo qual a pessoa jurídica
resolverá seus ‘assuntos internos’. Ali, no plano interno, vale
dizer, das relações entre os sócios, não há personificação:
há o acordo de vontade, o regulamento, o contrato que, no
plano externo, será institucionalizado como uma pessoa.
Caindo no perigoso plano das analogias, ouse lembrar
aqueles longos dragões de pano do folclore chinês: para
quem os vê de fora, trata-se de uma figura única: a
personagem dragão (sua pessoa); para quem deles
participa, trata-se de um conjunto de atos e relações entre
indivíduos (por vezes dois, por vezes muito mais) que devem
agir harmonicamente (seguindo determinados padrões de
comportamento, respeitando limites e funções) para que a
personagem possa cumprir suas finalidades.
Ocorre que o ato constitutivo por si só, seja ele um contrato
ou um estatuto, não faz nascer automaticamente a Personalidade da Pessoa
Jurídica perante o mundo do Direito, pois, nos moldes do disposto pelo artigo 45
do Código Civil de 2002:
Art. 45 Começa a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado com a inscrição do ato constitutivo no
respectivo registro, precedida, quando necessário, de
autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se
no registro todas as alterações por que passar o ato
constitutivo.
Ou seja, o “véu” da Personalidade Jurídica passa a cobrir a
Pessoa Jurídica apenas depois da regular inscrição do seu ato constitutivo no
24
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 32)
13
respectivo órgão de registro, o qual (órgão) será determinado conforme o tipo de
ato constitutivo que se pretenda registrar.
1.3 AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO
Conforme prevê o artigo 44 do Código Civil brasileiro, são
consideradas Pessoas Jurídicas de direito privado: as associações, as
sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos.
Entretanto, Bruno Mattos e Silva25 ressalva que:
Há entendimento no sentido de que esse rol [do artigo 44]
não seria exaustivo, isto é, podem existir outras pessoas de
direito privado, além das associações, sociedades,
fundações, partidos políticos e organizações religiosas.
Avalio, contudo, que esse entendimento somente pode ser
aceito caso a lei estabeleça a existência de um outro tipo de
pessoa jurídica de direito privado com características e
regime jurídico diferente das pessoas previstas no art. 44.
E exemplifica o contexto, afirmando que:
Pode a lei criar abstratamente um novo tipo de pessoa
jurídica ou criar ou autorizar a criação de uma pessoa
jurídica específica (ex.: uma empresa pública). Nesse
sentido, não há dúvidas que uma empresa pública é uma
pessoa jurídica de direito privado, embora não prevista no rol
do art. 44 do novo Código Civil.
As associações, nos termos do artigo 53 do Código Civil
brasileiro, são constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não
econômicos, ou seja, que se estabeleçam juridicamente para a consecução de
objetivos que, mesmo desenvolvendo atividades econômicas, não tenham o lucro
como o seu objetivo final.
25
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 194-195)
14
Neste sentido, Nelson Nery26 explica que:
Constituídas por um número mais avantajado de indivíduos,
tendo em vista fins morais, pios, literários, artísticos, em
suma, objetivos não econômicos, as associações se
propõem a realizar atividades não destinadas a proporcionar
interesse econômico aos associados. As associações
podem participar de atividades lucrativas para alcançar
objetivos. O que não faz parte da essência da associação é
o lucro como finalidade. O eventual lucro arrecadado por
esta associação deve ser nela “reinvestido”.
Por seu turno, as fundações têm como característica
essencial não se constituírem pela união de pessoas, mas sim pela “afetação de
um patrimônio a uma determinada finalidade mediante a criação de pessoa
jurídica sem a existência de sócios”27. Ou seja, no caso das fundações inexistem
os sócios (pessoas naturais).
Quanto à finalidade das fundações, em seu parágrafo único,
o artigo 62 do Código Civil brasileiro estabelece que “A fundação somente poderá
constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”, entretanto,
assim como ocorre com as associações, Bruno Mattos Silva28 explica que:
[...] isso não significa que a fundação não possa praticar atos
de conteúdo econômico como meio para obter receitas para
as suas atividades. Pode a fundação, por exemplo, ser
locadora de um imóvel e obter renda.
Além das associações e fundações, bem como das
sociedades, que serão vistas de maneira mais aprofundada a seguir, o rol
estabelecido pelo artigo 44 do Código Civil brasileiro também inclui, como
Pessoas Jurídicas de direito privado, os partidos políticos e as organizações
religiosas.
26
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253)
27
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 195)
28
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 196)
15
Os partidos políticos são regidos por legislação própria e sua
criação
e
regulamentação
decorre
de
princípios
constitucionalmente
estabelecidos, o que se verifica pelo ensinamento de Nelson Nery29, para quem:
A liberdade de criar ou de participar de partido político é
decorrência do princípio constitucional de liberdade de
associação previsto na CF 5º XVII. A criação se dá na forma
da L. 9096/95, sendo vedada, nos termos do CF 5º XVIII,
qualquer interferência estatal em seu funcionamento. [...]
Conquanto a CF 17 garanta a liberdade de criação, fusão,
incorporação e extinção de partidos políticos, não pode essa
espécie de associação civil ferir os princípios da soberania
nacional, do regime democrático, do pluripartidarismo,
observados sempre os direitos fundamentais do homem.
As organizações religiosas, por sua vez, em razão do
disposto pelo § 1º do artigo 44 do Código Civil brasileiro, acrescentado pela Lei nº
10.825/2003, são livres quanto a sua criação, organização, estrutura interna e
funcionamento, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou
registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.
Entretanto, quanto a essa liberdade estabelecida pelo
referido § 1º do artigo 44 do Código Civil brasileiro, Bruno Mattos Silva30 salienta
que:
[...] tal liberdade não é absoluta. Evidentemente, não
poderão prever os estatutos que a organização religiosa
proverá lavagem de dinheiro ou que seus fiéis serão
escravos, por exemplo. O alcance do dispositivo é apenas
no tocante às regras aplicáveis à criação, organização,
estruturação e funcionamento das organizações religiosas
previstas para as demais pessoas jurídicas.
Ou seja, a liberdade concedida às organizações religiosas
não as exclui do controle de legalidade e legitimidade constitucional de seu
29
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253)
30
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 196)
16
registro, bem como do reexame pelo Poder Judiciário da compatibilidade de seus
atos com a lei e com seus estatutos.
Por fim, tem-se as sociedades também como tipos de
Pessoas Jurídicas de direito privado, as quais, pelo conteúdo do artigo 981 do
Código Civil brasileiro, caracterizam-se como a união contratual de pessoas que
reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício
de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Para Maria Helena Diniz31, a categoria Sociedade, no âmbito
do Direito Comercial, pode ser entendida como uma:
Reunião de duas ou mais pessoas que combinam pôr em
comum seus bens, sua indústria, ou seus bens e indústria,
conjuntamente, para obter lucros, repartindo entre si os
proveitos e as perdas resultantes dessa comunhão [...].
Assim, fica evidenciado que os elementos que identificam as
Pessoas Jurídicas de direito privado do tipo Sociedades são a união contratual de
pessoas e a finalidade econômica (intuito de lucro).
1.4 AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS
Pelo conteúdo do artigo 982 do Código Civil, extrai-se que
dois são os tipos de Sociedades possíveis: a empresária e a simples. Sendo que,
conforme Fábio Ulhoa Coelho32:
A distinção entre sociedade simples e empresária não
reside, como se poderia pensar, no intuito lucrativo. [...] O
que irá, de verdade, caracterizar a pessoa jurídica de direito
privado não estatal como sociedade simples ou empresária
será o modo de explorar o seu objeto. O objeto social
explorado
sem
empresarialidade
(isto
é,
sem
31
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 487, v.4)
32
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 110-111)
17
profissionalmente organizar os fatores de produção) confere
à sociedade o caráter de simples, enquanto a exploração
empresarial do objeto social caracterizará a sociedade como
empresária.
Percebe-se então que a existência ou não de uma
organização de bens materiais e imateriais (intelectuais) com fito mercantil é o
que distingue as Sociedades do tipo empresárias e simples.
Esclarecendo esta distinção, no que tange as características
das Sociedades do tipo simples, Gladston Mamede33 explica que:
É o que se passa com algumas sociedades de profissionais
liberais, nas quais cada um dos sócios desempenha, isolada
e independentemente, por força de lei (ex vi legis) ou em
virtude da vontade (ex voluntate), o objeto social. A
sociedade de advogados é um exemplo de sociedade
simples ex vi legis, já que tal característica é determinada
pelos artigos 16 e 17 da Lei 9.906/94 (Estatuto da Advocacia
e da Ordem dos Advogados do Brasil). Para exemplificar
uma situação de sociedade simples ex voluntate, cito a
sociedade estabelecida por dentistas, com nome de
estabelecimento (Grupo Odontológico), estrutura comum
(prédio, telefones, aparelho de radiografia etc.), pessoal
comum (secretária, telefonista, copeira, faxineira), mas na
qual cada dentista conserva sua própria carteira de clientes,
aos quais serve pessoalmente.
Feitos esses destaques acerca da distinção entre as
Sociedades do tipo simples e as do tipo empresárias, cabe aqui uma explicação
de Nelson Nery34 sobre a separação legal dos conceitos de Empresário e de
Sociedade Empresária. Para o autor:
A opção do legislador foi a de dividir a atividade empresarial
exercida por pessoa física de outra exercida por pessoa
33
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 07)
34
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 253)
18
jurídica. Empresário é a pessoa física que exerce atividade
empresarial (CC 966); sociedade empresária é a pessoa
jurídica que exerce atividade empresarial (CC 982).
Ou seja, tal formulação deixa claro que o Empresário,
segundo o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que seja inscrito no Cadastro
Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ por questões de ordem fiscal tributária,
não é ele (Empresário) Pessoa Jurídica e sim uma Pessoa Física que exerce a
atividade empresarial.
Por sua vez, a atividade empresarial pode ser caracterizada
como aquela que articula os fatores de produção (capital e trabalho) com o
objetivo de produção e circulação de bens e serviços para obtenção de resultados
econômicos favoráveis (lucro) que proporcionem o acréscimo patrimonial dos
envolvidos, sejam eles os Empresários (pessoas físicas) ou os sócios de uma
Sociedade Empresária (pessoa jurídica). Ficando evidenciado que a característica
comum entre os Empresários e a Sociedade Empresária está no exercício da
atividade empresarial.
Dito
isso,
cabe
destacar
que
desta
relação
(entre
Empresário e Sociedade Empresária) percebe-se uma diferença essencialmente
relevante para os objetivos deste trabalho, pois enquanto o Empresário
(individual) exerce a atividade empresarial a partir da sua própria personalidade
jurídica, ou seja, daquela que reveste juridicamente a sua pessoa física, a
Sociedade Empresária, após o devido registro do seu ato constitutivo nos órgãos
respectivos, desenvolve a sua existência apoiada na personificação da sua
pessoa jurídica, ou seja, na sua própria personalidade jurídica.
Essa diferença é relevante, pois é justamente este véu
personalístico que passa a recobrir a Sociedade Empresária, distinguindo-a das
personalidades de seus sócios, que, com o apoio do instituto da Desconsideração
da Personalidade Jurídica, pode ser judicialmente retirado com o intuito de expor
as personalidades jurídicas dos sócios (e seus patrimônios pessoais) a fim de
responsabilizá-los (penalizá-los) por conseqüências danosas que eventualmente
19
tenham provocado para a ordem social, escondidos atrás da proteção da pessoa
jurídica da Sociedade Empresária da qual participam.
A partir dos ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho35,
destacam-se três conseqüências bastante precisas da personalização das
sociedades empresárias, as quais conferem a sua pessoa jurídica certa
autonomia que acaba, por vezes, viabilizando as ferramentas para a prática de
atos abusivos e/ou fraudulentos de seus sócios contra outras pessoas (físicas ou
jurídicas), são elas:
a) Titularidade negocial – quando a sociedade empresarial
realiza negócios jurídicos (compra matéria-prima, celebra
contrato de trabalho, aceita uma duplicata etc.), embora
ela o faça necessariamente pelas mãos de seu
representante legal [...], é ela, pessoa jurídica, como
sujeito de direito autônomo, personalizado, que assume
um dos pólos da relação negocial. O eventual sócio que
a representou não é parte do negócio jurídico, mas sim a
sociedade.
b) Titularidade processual – a pessoa jurídica pode
demandar e ser demandada em juízo; tem capacidade
para ser parte processual. A ação referente a negócio da
sociedade deve ser endereçada contra a pessoa jurídica
e não os seus sócios ou seu representante legal. Quem
outorga mandato judicial, recebe citação, recorre, é ela
como sujeito de direito autônomo.
c) Responsabilidade patrimonial – em conseqüência,
ainda, de sua personalização, a sociedade terá
patrimônio próprio, seu, inconfundível e incomunicável
com o patrimônio individual de cada um de seus sócios.
Sujeito de direito personalizado autônomo, a pessoa
jurídica responderá com o seu patrimônio pelas
obrigações que assumir. Os sócios, em regra, não
responderão pelas obrigações da sociedade.
35
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 113-114)
20
Certo é que nem todo tipo de sociedade empresária facilita
juridicamente a prática de atos abusivos e/ou fraudulentos por parte de seus
sócios. Neste sentido, torna-se relevante um rápido destaque acerca dos tipos
societários existentes no direito empresarial brasileiro, bem como dos critérios de
classificação dessas sociedades no que tange pontualmente a responsabilidade
dos sócios pelas obrigações da Sociedade Empresária.
Segundo Gladston Mamede36:
As sociedades empresárias personalizadas devem adotar
um dos tipos societários anotados nos artigos 1.039 a 1.092
do Código Civil: (1) sociedade em nome coletivo; (2)
sociedade em comandita simples; (3) sociedade limitada; (4)
sociedade anônima; (5) e sociedade em comandita por
ações.
Para efeitos do presente texto, não se mostra relevante uma
abordagem aprofundada acerca das características gerais de cada um dos
citados tipos de sociedade, restando importante apenas destacar a questão
relativa à classificação das mesmas quanto à responsabilidade dos sócios pelas
obrigações sociais.
Tendo em vista a já apontada autonomia patrimonial da
Sociedade Empresária, nascida da sua personalização perante o ordenamento
jurídico, em regra, os sócios não respondem pelas obrigações da mesma, sendo
isso definido pelo artigo 1.024 do Código Civil brasileiro nestes termos: “Os bens
particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade,
senão depois de executados os bens sociais”. Ou seja, a responsabilidade dos
sócios pelas obrigações da sociedade empresária é sempre subsidiária.
Assim, quando se fala em subsidiariedade, diz-se que só
quando estiverem esgotadas as forças patrimoniais da sociedade é que se poderá
pensar em executar o patrimônio particular dos sócios por passivos sociais.
36
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 07)
21
A partir daí, Fábio Ulhoa Coelho37 ensina que:
Se o patrimônio social não foi suficiente para integral
pagamento dos credores da sociedade, o saldo do passivo
poderá ser reclamado dos sócios, em algumas sociedades,
de forma ilimitada, ou seja, os credores poderão saciar seus
créditos até a total satisfação, enquanto suportarem os
patrimônios particulares dos sócios. Em outras sociedades,
os credores somente poderão alcançar dos patrimônios
particulares um determinado limite, além do qual o
respectivo saldo será perda que deverão suportar. Em um
terceiro grupo de sociedades, alguns sócios têm
responsabilidade ilimitada e outros não.
Neste sentido, as Sociedades Empresárias podem ser
classificadas em três tipos:
a) Sociedade ilimitada: na qual os sócios respondem todos
ilimitadamente pelas obrigações sociais, sendo que no
direito brasileiro apenas a sociedade em nome coletivo
se enquadra nesta classificação;
b) Sociedade mista: onde alguns sócios respondem de
forma limitada e outros ilimitadamente, enquadrando-se
nesta categoria a sociedade em comandita simples, cujo
sócio comanditado responde ilimitadamente e o sócio
comanditário de forma limitada, e a sociedade em
comandita por ações, na qual os sócios diretores têm
responsabilidade ilimitada e os demais respondem
limitadamente;
c) Sociedade limitada – em que todos os sócios respondem
de forma limitada pelos passivos sociais, sendo a
sociedade limitada e a sociedade anônima inseridas
nesta categoria.
37
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. (p. 117)
22
O Código Civil brasileiro dispõe as regras para determinação
das referidas limitações de responsabilidade, porém, ainda que legalmente
estabelecidas, diante de ações abusivas e fraudulentas por parte dos sócios, tais
limitações poderão ser judicialmente ignoradas com o fito de equilibrar eventuais
discrepâncias jurídicas nascidas da irresponsabilidade de pessoas que por
ventura tentem se esconder por trás do véu da personalidade jurídica da
Sociedade Empresária, sendo esse o tema que será abordado pelo próximo
capítulo.
Por fim, cabe registrar que o presente capítulo buscou
estabelecer bases conceituais panorâmicas acerca das categorias mais
relevantes para o estudo do instituto da Desconsideração da Personalidade
Jurídica, o que se fez através da construção de uma proposta de conceito para
Personalidade Jurídica, da análise sobre a diferença entre pessoa física e jurídica,
da identificação das características da personificação da pessoa jurídica, da
abordagem sobre os tipos de pessoa jurídica de direito privado no Brasil e,
finalmente, dos elementos caracterizadores das Sociedades Empresárias.
CAPÍTULO 2
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA:
DISREGARD DOCTRINE
Este capítulo visa destacar os aspectos relevantes acerca do
instituto da desconsideração da personalidade jurídica, utilizando-se da
conceituação e analise de doutrinadores do ordenamento jurídico pátrio, bem
como pesquisadores estrangeiros, os quais deram as primeiras e essenciais
lapidações na teoria.
Apesar da objetividade e confiabilidade das fontes primárias,
as pesquisas realizadas demonstraram a dificuldade na obtenção das mesmas,
principalmente no que tange o surgimento do instituto da desconsideração da
personalidade jurídica. Neste sentido, a autora apoiou-se em fontes secundárias a
fim de viabilizar uma melhor compreensão sobre o referido contexto histórico.
Além da analise histórica e conceitual da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica que serve de embasamento para a
compreensão teórica da essência do instituto, o capítulo objetiva demonstrar a
aplicabilidade da referida teoria, que será analisada com casos práticos, através
de julgados, no próximo e derradeiro capítulo.
2.1 BREVE HISTÓRICO
O precursor da doutrina da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica no Brasil foi Rubens Requião, como o mesmo constata em
sua obra “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica: disregard
doctrine”:
Não temos lembrança, em nossas constantes peregrinações
pelas páginas do direito comercial pátrio, de haver
encontrado doutrina nacional ou estudos sobre o uso
24
abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica, o que nos daria,
se correta nossa impressão, o júbilo de apresentá-la pela
primeira vez [...].38
Requião apresentou sua obra em conferência proferida na
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, na qual citou as obras
do alemão Rolf Serick e do italiano Piero Verrucoli como sendo as pioneiras a
tratarem da Desconsideração da personalidade Jurídica.
O professor paranaense explica em seu estudo que “a
doutrina desenvolvida pelos tribunais norte-americanos, da qual partiu o Prof. Rolf
Serick para compará-la com a moderna jurisprudência dos tribunais alemães, visa
a impedir a fraude ou abuso através do uso da personalidade jurídica, e é
conhecida pela designação “disregard of legal entity” ou também pela “lifting the
corporate veil”.”39
Da mesma forma, as pesquisas de André Pagani de Souza
demonstram a obra “Forma e realidade da pessoa jurídica” de Rolf Serick como
sendo um dos primeiros trabalhos sobre o tema da desconsideração da
personalidade jurídica. 40
Pagani de Souza explica que, em tese de doutorado, no ano
de 1953, o professor germânico buscou definir “os critérios que autorizam o juiz a
ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em relação às pessoas que a
compõe, sempre que ela for utilizada como instrumento na realização de fraudes
ou abuso de direito.” 41
Segundo Rubens Requião, o professor Serick inicia sua tese
com as palavras conceituais:
38
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752)
39
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752)
40
SERICK, Rolf, 1966 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade
jurídica: aspectos processuais. (p. 32)
41
SERICK, Rolf, 1966 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade
jurídica: aspectos processuais. (p. 32)
25
A jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os
casos extremos em que resulta necessário averiguar quando
pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica
para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e
afete especialmente a seus membros.42
Acerca destas palavras de Serick, Pagani destaca que:
Ou seja, ele notou que há situações em que o respeito
incondicionado à forma da pessoa jurídica pode levar a
resultados injustos. Apesar dessa observação, o jurista
alemão reconheceu que casos como esses são
problemáticos porque o ordenamento jurídico constituiu as
pessoas jurídicas como sujeitos autônomos claramente
distintos de seus membros.43
A separação da personalidade jurídica das pessoas jurídicas
e de seus membros, constituindo-os como sujeitos de direito distintos, que dá
inicio à obra de Serick, é o que norteia a teoria em questão, e o que defini a
possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, uma
vez que a autonomia patrimonial é o pressuposto da discussão, ou seja, é
necessário que se apresente a diferenciação das pessoas jurídicas em relação
aos membros que a compõe, estabelecida na ordem jurídica, para que seja
possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica.
Neste sentido, Requião salienta a preocupação de Serick em
discutir a questão da desconsideração como um instituto capaz de servir de forma
real ao seu ordenamento jurídico, qual seja o alemão, e não tratar do certame de
maneira especulativa, constituindo apenas um simples dispositivo do direito
americano da sociedade.
42
SERICK, Rolf, 1966 apud REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da
personalidade jurídica. (p. 752)
43
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 32)
26
Desta forma, extrai-se da obra do brasileiro o entendimento
constituído pelo professor alemão:
“em qualquer país em que se apresente a separação incisiva
entre pessoa jurídica e os membros que a compõe, se
coloca o problema de verificar como se há de enfrentar
aqueles casos em que essa radical separação conduz a
resultados completamente injustos e contrários ao direito.” 44
A formulação do alemão serve como alicerce à implantação
da teoria no sistema jurídico brasileiro, visto que neste país, na maior parte das
formas de constituição de empresas, existe a diferenciação entre a pessoa
jurídica e seus integrantes.
Seguindo na análise da tese de Rolf Serick, André Pagani de
Souza destaca que a forma da pessoa jurídica é um estimulo para se perseguir
fins ilícitos com aparência de legalidade e em razão disso, a autonomia da pessoa
jurídica só deve ser respeitada na medida em que servir para os objetivos a que
foi criada. Caso contrário, a pessoa jurídica deve ser desconsiderada para
alcançar as pessoas que agem por meio dela. Para Pagani, Serick chama a
atenção para o fato de ser levada em consideração a conduta das pessoas que
agem pela pessoa jurídica para desconsiderar o principio da autonomia
patrimonial, uma vez que não se concebe pessoa jurídica sem as pessoas que a
compõe e praticam atos por ela.45
Por fim, Rolf Serick sistematiza a teoria da personalidade
jurídica em quatro princípios ou proposições, as quais são referenciadas por
44
SERICK, Rolf, 1966 apud REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da
personalidade jurídica. (p. 753)
45
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 34)
27
Guilherme Calmon Nogueira da Gama em sua obra intitulada “Desconsideração
da Personalidade da Pessoa Jurídica: visão crítica da jurisprudência”. 46
Neste trabalho, Gama demonstra as proposições da
seguinte forma:
a) caso a estrutura formal da pessoa jurídica seja utilizada
de maneira abusiva, o juiz poderá descartá-la para frustrar o
resultado contrário ao Direito que se persegue; b) não é
suficiente a alegação de que sem a desconsideração não se
possa atingir a finalidade de uma norma ou de um negócio
jurídico; c) as normas fundantes nas qualidades ou
capacidades
humanas,
ou
que
consideram
valores
humanos, também devem ser aplicadas às pessoas jurídicas
quando a finalidade da norma corresponder a esta classe de
pessoas, admitindo-se que se penetre na personalidade das
pessoas situadas atrás da pessoa jurídica para comprovar
se concorrem as hipóteses das quais depende a eficácia da
norma; d) se a forma da pessoa jurídica for utilizada para
ocultar a identidade que, de fato, existe entre as pessoas
que intervieram em um determinado ato, poderá ser
descartada tal forma quando a norma que se deva aplicar
pressupor que a identidade ou diversidade dos sujeitos
interessados
não
é
puramente
nominal,
mas
verdadeiramente efetiva.47
Estes princípios foram essenciais para o entendimento da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica e até os dias atuais são
utilizados para analisar o caso concreto.
46
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 5)
47
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 5)
28
Além da “Forma e realidade da pessoa jurídica”, de Serick,
outra obra pioneira na formulação de entendimento acerca da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é um estudo do professor italiano
Piero Verrucoli, no ano de 1964, que estabelece que “a atribuição de
personalidade jurídica a determinados grupos de indivíduos é um “privilégio”
concedido pelo Estado e como tal não pode dar origem a situações injustas ou
contrárias ao direito. Se o “privilégio” concedido pelo Estado for utilizado para fins
contrários ao direito, deve haver o que ele chamou de “superamento” da
responsabilidade jurídica, que nada mais é que a desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita.”48
O jurista italiano, segundo André Pagani de Souza, recebe
criticas de Fabio Ulhoa Coelho na obra Desconsideração da personalidade
jurídica, nas páginas 26-27, além de criticas suas, visto que seu argumento,
citado a poucas linhas acima, de a concessão de personalidade jurídica as
pessoas jurídica é privilégio atribuído pelo Estado, não é suficiente para explicar o
motivo
pelo
qual
os
membros
da
pessoa
jurídica
se
favorecem
da
desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que há casos que a
personalidade jurídica é ignorada em favor do sócio.49
Pagani faz alusão ao favorecimento do sócio com a
desconsideração da personalidade jurídica através da Súmula 486 do STF, que
estabelece:
Súm.486.STF. Admite-se a retomada para sociedade da
qual o locador, ou seu cônjuge, seja sócio, com participação
predominante no capital social.
Apesar das criticas, o italiano, professor da Universidade de
Piza, através de sua obra, ainda referenciada por Pagani de Souza, proporciona o
vislumbre do precedente judiciário mais antigo acerca da doutrina da
48
VERRUCOLI, Piero, 1964 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade
jurídica: aspectos processuais. (p. 35)
49
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. (p.
35)
29
desconsideração da personalidade jurídica, qual seja o caso “Salomon v.
Salomon & Co., proveniente da Inglaterra.
Neste epsódio, ocorrido em 1897, um comerciante chamado
Aaron Salomon constitui uma company chamada Salomon & Co., em conjunto
com outros seis membros da família. Em seguida, o comerciante cedeu o fundo
de comércio à “Salomon & Co.” e recebeu por isso vinte mil ações representativas
da sua contribuição para a sociedade. Já os outros integrantes receberam apenas
uma ação cada. Na sequencia, a “Salomon & Co.” assumiu obrigações no valor
de dez mil libras esterlinas. Logo depois a sociedade se demonstrou insolvente.
Assim, a “Salomon & Co.” entrou em liquidação, e o liquidante para defender os
interesses dos credores quirografários sustentou que a atividade da sociedade
era a atividade de Aaron e que este último havia se utilizado do artifício da pessoa
jurídica para limitar sua responsabilidade. Por isso, o liquidante pediu que
Salomon fosse condenado a pagar os débitos da sociedade. Em primeira e
segunda instâncias, o pedido do liquidante foi acolhido. Porém, na Casa de
Lordes, o entendimento das instancias inferiores foi reformado, decidindo-se
definitivamente que não havia responsabilidade pessoal de Aaron Salomon pelos
débitos da “Salomon & Co.50
Rubens Requião, em seu texto “Abuso de direito e fraude
através da personalidade jurídica: disregard doctrine, faz menção a outros
precedentes judiciários, que seriam interesses a cargo de ilustração, mas como
não cabe deter o conteúdo aos casos históricos, passa-se a outros destaques.
50
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 36)
30
2.2 AS
PESSOAS
JURÍDICAS
E
A
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Como já visto no capitulo anterior, a pessoa jurídica em nada
se confunde com os membros que a compõe, ambos são sujeitos de direitos e
obrigações, mas possuem personalidades completamente distintas.
Essa idéia de separação entre pessoa jurídica e os seus
membros estava explícita no Código Civil de 1916 no caput do art. 20:
“As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus
membros.”
Apesar
de
a
letra
legal
não
ter
sido
reproduzida
expressamente, a personalidade jurídica atribuída às pessoas jurídicas é um
direito comumente concebido como absoluto, pelo qual é garantido a sua aptidão
de exercer direitos e contrair obrigações. Esse direito, concedido pelo Estado, cria
um invólucro aos bens da pessoa jurídica, o que gera o princípio da autonomia
patrimonial, ou seja, o patrimônio da pessoa jurídica não se identifica com o
patrimônio dos sócios, que possuem “vidas” distintas, como pode ser observado
ao analisar o texto do art. 45 do Código Civil Brasileiro em vigor:
“Art.45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado com a inscrição do ato constitutivo no
respectivo registro, precedida, quando necessário, de
autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se
no registro todas as alterações por que passar o ato
constitutivo.”
Este artigo, pode-se dizer que narra o “nascimento” da
pessoa jurídica, que ocorre, obviamente, em momento diverso do de seus
integrantes. Seu nascimento depende da vontade da pessoa física, e também de
atribuições legais exigidas pelo Estado.
Acerca do principio da autonomia patrimonial que surge a
partir da separação da pessoa jurídica, de seus integrantes, Requião enfatiza que
31
“uma das mais decisivas conseqüências da concessão da personalidade jurídica,
outorgada pela lei [...] é a sua autonomia patrimonial, tornando a responsabilidade
dos sócios estranha à responsabilidade social [...].” 51
O jurista continua esclarecendo que ”esta responsabilidade
da sociedade, alheia a responsabilidade dos sócios, faz com que a personalidade
jurídica possa vir a ser usada como anteparo de fraude, sobretudo para contornar
as proibições estatutárias do exercício de comércio ou outras vedações legais”
52
.
A concessão de personalidade jurídica, diversa de seus
membros, às pessoas jurídicas, remete à formulação do italiano Piero Verrucoli,
que confirma que a doutrina que estabelece que a concessão da personalidade
jurídica as pessoas jurídicas, pelo Estado, é um privilégio, ou melhor dizendo, é
uma ficção criada pelo mesmo, que gera a existência de um novo ser no mundo
jurídico. No entanto, o fato de tal benesse ser concedida pelo Poder Público de
forma pré-estabelecida, com fulcro em lei, não justifica o cerramento dos olhos do
judiciário ou a falta de pré-questionamento acerca dos fins contrários ao direito
que tal concessão do Estado pode gerar.
A titulo de melhor compreensão da questão discutida no
parágrafo anterior utiliza-se das mais bem formuladas palavras de Rubens
Requião:
Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da
personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de
indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a
fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a
personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago,
alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem
para fins ilícitos ou abusivos.53
51
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754)
52
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 751)
53
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 753)
32
E ainda:
Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei,
como concessão do Estado objetivando [...] a realização de
um fim nada mais procedente do que se reconhecer ao
Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o
direito concedido está sendo adequadamente usado.54
Como a questão da responsabilidade distinta entre os sócios
e a sociedade, proveniente do principio da autonomia patrimonial, gerado pela
atribuição da personalidade jurídica à pessoa jurídica, é o que propicia os atos
fraudulentos e abusivos de direito e o que permite a desconsideração da
personalidade jurídica, vale firmar, pelas palavras de Guilherme Calmon Nogueira
da Gama, “que o pressuposto fundamental da desconsideração é a existência de
uma entidade personalizada. Caso haja uma sociedade despersonalizada [...] ou
irregularmente constituída [...], não há que se falar em personalidade como meio
para fraudes, tampouco em desconsideração.” 55
A concepção de que a pessoa jurídica é um ser, diferente de
seus membros, com autonomia patrimonial, conceituada pelo pensamento
jurídico, concebe a personalidade jurídica como um véu impenetrável, através do
qual não se pode atingir a pessoa natural do sócio.
No
entanto,
Requião
reza
que
a
doutrina
da
desconsideração repudia esse absolutismo atribuído sobre o direito da
personalidade. Segundo ele, “apresenta-se, por conseguinte, a concessão da
personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto,
permitindo a legitima penetração inquiridora em seu âmago.” 56
Apesar dos efeitos fraudulentos e contrários ao direito,
provenientes do mau uso da personalidade jurídica pelas pessoas jurídicas, o
54
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754)
55
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 5)
56
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 754)
33
qual o instituto da desconsideração visa combater, jamais propugnou-se nos
entranhes dessa doutrina o fim da pessoa jurídica. Do contrário, a teoria da
desconsideração foi criada para zelar pela pessoa jurídica nos moldes que ela foi
criada e para resguardar pelos fins legais que a mesma deve procurar atingir.
Dessa forma entende André Pagani de Souza:
O que se busca coibir com a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica é exatamente o mau uso da pessoa
jurídica. Por vezes, a pessoa jurídica e o principio da
autonomia patrimonial são invocados para encobrir fraude
ou abuso de direito, ou simplesmente a pessoa jurídica é
utilizada para finalidade diversa daquela para a qual foi
concebida.57
Neste sentido, acerca da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica em relação ao instituto da pessoa jurídica, destaca-se do
texto de Gama:
Trata-se de uma elaboração teórica destinada à coibição da
práticas fraudulentas que se valem da pessoa jurídica. E é,
ao mesmo tempo, uma tentativa de preservar o instituto da
pessoa jurídica, ao mostrar que o problema não reside no
próprio instituto, mas no mau uso que se pode fazer dele.58
Gama complementa que dá-se “o surgimento da teoria da
personalidade da pessoa jurídica, entre outros instrumentos para coibir, reprimir e
sancionar o uso equivocado da pessoa jurídica.” 59
57
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 43)
58
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 7)
59
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 4)
34
Sendo assim, entendido que a personalidade jurídica das
pessoas jurídicas não é um direito absoluto e sim relativo, compreende-se que a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem a ser a forma de
penetrar o véu que encobre as pessoas jurídicas e atingir os que agem por meio
dela, quando estes praticam atos abusivos e contrários ao direito.
2.3 A
APLICAÇÃO
DA
TEORIA
DA
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nelson Nery Junior conceitua o instituto da desconsideração
da personalidade jurídica como a “possibilidade de se ignorar a personalidade
jurídica autônoma da entidade moral sempre que esta venha a ser utilizada para
fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída, permitindo
que o credor de obrigação assumida pela pessoa jurídica alcance o patrimônio
particular de seus sócios ou administradores para a satisfação de seu crédito.” 60
O renomado doutrinador traz essa conceituação para o
instituto ao analisar, em sua obra “Código Civil Comentado”, o artigo 50; qual seja
a principal norma acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Ainda que positivada, para Bruno Mattos e Silva “a
desconsideração da personalidade jurídica não depende, necessariamente, da
existência de norma positiva: ela é uma teoria, fundada em princípios jurídicos” 61,
tanto que para a aplicação dessa teoria no Brasil, antes de sua positivação, “o
desvio de finalidade ou abuso de direito, em violação à boa-fé objetiva, na prática
de atos lesivos por intermédio da pessoa jurídica, já eram considerados
pressupostos para aplicação da teoria da desconsideração”
62
, no entanto, devido
a influência jurídica romano-germânica com grande apego pelo direito escrito, a
60
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
61
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 233)
62
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 10)
35
teoria somente ganhou força com o advento do Código Civil de 2002, que
normatizou o instituto da desconsideração no referido art.50, que dispõe:
Art.50. Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte,
ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no
processo, que os efeitos de certas e determinadas
relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa
jurídica.(Grifo nosso)
Este artigo, no entanto, não é propriamente uma inovação,
visto que, em 1990 o Código de Defesa do Consumidor já contemplava a teoria
da desconsideração em seu artigo 28, que será aludido em breve.
O artigo 50 do Código Civil Brasileiro é o baluarte do instituto
da desconsideração da personalidade jurídica e é de suma importância analisá-lo
categoricamente para cercar todos os critérios que norteiam a possibilidade de
concessão da desconsideração da personalidade jurídica pelo judiciário, os quais
estão grifados no próprio texto do artigo transcrito acima.
A norma supracitada elenca as hipóteses de aplicação da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas antes disso, Fábio
Ulhoa Coelho é categórico ao reafirmar:
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica
somente deve ser aplicada nas hipóteses em que a
autonomia da pessoa jurídica se apresenta como um
obstáculo para a composição dos diversos interesses
envolvidos no caso concreto, ou melhor, para realização de
justiça.63 (Grifo nosso)
63
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 42)
36
O que o autor faz com esta afirmação é reforçar a idéia que
já se concebeu com o texto desta autora, de que cabe a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica de uma pessoa jurídica quando os
integrantes da última, através de atos abusivos ou fraudulentos, deturparem a
forma da primeira.
A repressão a essas práticas abusivas e fraudulentas
através do mau uso da pessoa jurídica é o que fomenta a “teoria maior” da
desconsideração da personalidade jurídica, que, pela qual, segundo Ulhoa
Coelho, “o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas como forma de coibir fraudes e abusos praticados por meio dela.” 64
Neste contexto de atos abusivos ou fraudulentos, inicia-se a
interpretação do art. 50, com analise do conceito operacional “abuso da
personalidade jurídica”, qual seja o motivo primitivo para a concessão da
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Este motivo está consolidado na vertente subjetiva da “teoria
maior” a qual contempla o “abuso de direito” e a “fraude” como as práticas
autorizadoras da aplicação da teoria da desconsideração ao caso concreto.65
A admissão destes requisitos como pressupostos para
aplicação da teoria da desconsideração é amplamente repercutida nas decisões
dos tribunais de justiça e tribunais superiores.
A cargo de exemplo, lê-se trecho de decisão do tribunal do
estado de Santa Catarina, proferida em Agravo de Instrumento de nº
2002.023753-7, da Terceira Câmara de Direito Comercial, datada de 20 de março
de 2003:
“O mero fato da simples inexistência de bens em nome da
executada, não autoriza a incidência, de plano, da teoria da desconsideração da
64
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 35)
65
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 44)
37
personalidade jurídica, pois, para tanto, de mister é a configuração de fraude ou
abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial.”
Além do “abuso de direito” e da “fraude” como pressupostos
de admissibilidade da desconsideração, o conceito operacional “desvio de
finalidade”, que segundo o art. 50, caracteriza o “abuso da personalidade jurídica”,
também é incluído como desdobramento da “teoria maior subjetiva”, como se
extrai de julgado da Min. Nancy Andrighi, do STJ, contido na obra de Nelson Nery
Junior:
Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a
demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da
desconsideração),
ou
a
demonstração
de
confusão
patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).66
Neste certame se pontuou a questão da confusão
patrimonial como “teoria maior objetiva” da desconsideração, mas falar-se-á desta
causa para admissão da desconsideração da personalidade jurídica mais adiante.
Antes faz-se necessário estudar as categorias “abuso de direito”, “fraude” e
“desvio de finalidade” no contexto da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica.
No que concerne ao abuso de direito, resume Rubens
Requião, citando diretamente Pedro Batista Martins:
O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-lo,
escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para
outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao
espírito da instituição, comete, sem dúvida, um ato abusivo;
atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e
contra o equilíbrio das relações jurídicas.67
66
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
67
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 755)
38
Utilizando-se destas palavras, Requião explica que o sujeito
deve exercitar seus direitos tendo em vista a função deles ou a finalidade social
que objetivam. Ao praticar ato, conforme a lei, mas contrário a essa finalidade,
este ato é abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direito.68
Neste mesmo sentido é o entendimento de Guilherme
Calmon Nogueira da Gama que “ensina que o abuso de direito é o exercício
irregular ou abusivo de direito pelo seu titular; é a conduta lícita que se mostra
desconforme com a finalidade que o ordenamento pretende alcançar e promover
naquela circunstancia fática.” 69
Em entendimento completamente oposto se posiciona Maria
Helena Diniz ao afirmar que o abuso de direito não consiste em uma conduta
lícita, mas sim a pratica de um ato ilícito, conforme leciona em seu dicionário
jurídico:
ABUSO DE DIREITO. Direito civil. Exercicio anormal ou
irregular de um direito, ou seja, além de seus limites e fins
sociais, causando prejuízo a outrem, sem que haja motivo
legítimo que o justifique. É um ato ilícito sui generis, que
gera o dever de ressarcir o dano causado. 70
Com a mesma opinião encontramos Gladston Mamede que
situa o abuso de direito no ordenamento jurídico de acordo com o art. 187 do
Código Civil, pelo qual “o abuso de direito caracteriza ato ilícito, configurando-se
sempre que o titular de um direito (de uma faculdade), ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes.” 71
68
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 755)
69
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 14)
70
71
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. (p. 35, v.1)
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 242)
39
Por mais que entenda que o abuso de direito constitui ato
ilícito, Mamede reconhece que a questão é controversa, razão pela qual explica
que a caracterização da ilicitude decorrerá do excesso manifesto, inequívoco e
flagrante.72
Ainda no que diz respeito ao abuso de direito, cumpre-se
complementar com as palavras de Rubens Requião, que diz que “não há porque
confundir a teoria do abuso de direito com a do ato ilícito, ou, mais
particularmente, com a fraude. Considera-se ato fraudento, como o conceituam os
revisores do Projeto de Código de Obrigações, no art. 67, “o negócio jurídico
tramado para prejudicar credores, em beneficio do declarante ou de terceiro”. No
abuso de direito não existe, propriamente, trama contra o direito de credor, mas
surge do inadequado uso de um direito, mesmo que seja estranho ao agente o
propósito de prejudicar o direito de outrem. 73
Sendo assim, pode-se inferir que o abuso de direito ainda é
questão a ser discutida, visto a complexidade e divergência na conceituação do
tema. Já no tocante a fraude, resta mais fácil a conceituação, visto que é
generalizado o entendimento de que “fraude” consiste na pratica de ato ilícito para
prejudicar terceiro, de acordo com o explanado acima por Rubens Requião, bem
como conforme entendimento de Marina Helena Diniz:
FRAUDE. 1. Direito civil. a) Manobra artificiosa para
prejudicar terceiro; b) má-fé; c) engano ou burla; d)
ocultação da verdade.74
Gama confirma a conceituação de “fraude”, bem como
contextualiza a categoria no cenário da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica ao afirmar:
72
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – direito societário: sociedades simples e
empresárias. (p. 242)
73
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 756)
74
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v.2 (p. 686)
40
“A fraude, normalmente, consiste em expediente utilizado
para iludir ou ludibriar um terceiro, causando-lhe prejuízo e,
muitas vezes, não é perceptível imediatamente. Trata-se de
uma manobra engendrada por alguém para o fim de causar
prejuízo a outra pessoa, utilizando-se de artifícios que
mascaram a antijuridicidade da conduta. É o meio ardiloso
através do qual o sócio ou administrador da pessoa jurídica
cria uma situação de prejuízo ao credor e vantagem para si,
de modo que o prejudicado acredita estar celebrando
negócio com garantia ou sem determinado grau de risco,
quando, na realidade, encontra-se em situação exatamente
oposta.” 75
Ao
analisar
“fraude”
no
contexto
da
teoria
da
desconsideração da personalidade jurídica, Mattos e Silva destaca que “parte da
doutrina entende que sempre deve existir o elemento fraude, ou seja, a intenção
de se furtar ao cumprimento de uma obrigação para que possa ser aplicada a
desconsideração da personalidade jurídica.” 76
Contudo, tal entendimento diverge do que já foi elucidado
como ponto de vista de Rubens Requião, que claramente diferencia o abuso de
direito da fraude, ou seja, trata desses dois conceitos como requisitos diversos na
aplicação da teoria da desconsideração, podendo ser identificado um ou outro,
além das palavras de André Pagani de Souza, que diz que a confusão patrimonial
como causa de causa de desconsideração da personalidade jurídica independe
dos elementos “abuso de direito” e “fraude”.77
Venosa, por sua vez, diz que nas causas que ensejam a
desconsideração é procurado um escudo de legitimidade na realidade técnica da
75
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 24)
76
77
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226)
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 60)
41
pessoa jurídica, mas o ato é fraudulento e ilegítimo, e ainda “a modalidade de
fraude é múltipla, sendo impossível enumeração apriorística. Dependerá do
exame do caso concreto. Poderá ocorrer fraude à lei, simplesmente, fraude a um
contrato ou fraude contra credores [...]”
78
, ou seja, conclui-se que o autor atribui
“fraude” a todas hipóteses de desconsideração.
Assim compreende-se o entendimento de Maria Helena
Diniz, pois a autora cita a fraude contra credores como o instrumento a ser
combatido pela teoria da desconsideração, conforme retira-se de sua obra:
“A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica
visa impedir a fraude contra credores, levantando o véu corporativo,
desconsiderando a personalidade jurídica num dado caso concreto [...].” 79
Discorda Mattos e Silva80, que estabelece que as causas
para desconsideração contidas no art. 50 do Código Civil independem da intenção
de prejudicar terceiros, ou seja, do elemento “fraude”; que a fraude é um
pressuposto doutrinário e que “o art. 50 não fala em utilização de artifício
malicioso para prejudicar credores, não fala em dolo, não fala em fraude”.81
Assim, como a questão do abuso de direito constituir, ou
não, ato ilícito, a questão da fraude ser pressuposto indispensável para a
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica também constrói uma
divergência doutrinária.
Neste contexto de fraude e abuso de direito, infere-se que
estes são espécies do gênero “desvio de finalidade”, visto que, como
demonstrado eles formam a “teoria maior subjetiva”, e além de que tem a mesma
natureza jurídica, ou seja, utilizam-se do princípio da autonomia patrimonial para
alcançar fim diverso para o qual foi criado, enfim, a fraude e o abuso de direito é
78
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 272)
79
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 300)
80
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226)
81
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 231)
42
que são os pressupostos subjetivos a serem analisados para caracterizar o desvio
de finalidade.
Pode-se entender neste sentido de acordo com Fábio
Konder Comparato, citado por André Pagani de Souza que o desvio de finalidade
seja critério para desconsideração da personalidade jurídica, caracterizado pelo
uso inadequado da pessoa jurídica, invocado para encobrir fraude ou abuso de
direito, ou simplesmente a utilização da pessoa jurídica para finalidade diversa
daquela para a qual foi concebida.82
Gama conceitua o desvio de finalidade como “uma disfunção
nas atividades da sociedade, um desvirtuamento dos fins primeiros que deveriam
ser seguidos na prática pela sociedade.” 83
Nelson Nery Junior, por sua vez, ao definir em que consiste
o desvio de finalidade atribui a possibilidade da caracterização deste a partir da
pratica de atos ilícitos além da pratica da atividade incompatível com a autorizada.
Tal posicionamento tem as seguintes palavras:
“A identificação do desvio de finalidade nas atividades da
pessoa jurídica deve partir da constatação da efetiva
desenvoltura com que a pessoa jurídica produz a circulação
de serviços ou de mercadorias por atividade lícita,
cumprindo ou não o seu papel social, nos termos dos traços
de sua personalidade jurídica. Se a pessoa jurídica se põe a
praticar atos ilícitos ou incompatíveis com sua atividade
autorizada, bem como se com sua atividade favorece o
enriquecimento
de
seus
sócios
e
sua
derrocada
administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de
direito desconsiderar sua personalidade e alcançar o
82
COMPARATO, Fábio Konder, 2005 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da
personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 44)
83
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 6)
43
patrimônio das pessoas que se ocultam por detrás de sua
existência jurídica.84
Perseguir objetivo diferente do que consta no ato constitutivo
para prejudicar alguém
85
é a explicação dada por Maria Helena Diniz, no que
concerne ao desvio de finalidade.
Já Bruno Mattos e Silva demonstra um entendimento mais
subjetivo ao destacar aspectos valorativos no que tange o desvio finalidade,
conceituando-o como “a utilização da pessoa jurídica para fins distintos dos
objetivos ou valores que motivaram a criação dessa figura jurídica.” 86
Este autor explica que o desvio de finalidade “ocorre quando
a pessoa jurídica é criada para finalidades que não são condizentes com a função
jurídica a ela determinada (ex.: no caso de uma sociedade, é a de exercer
atividade econômica)”
87
e “quando, embora criada legitimamente, os sócios ou
administradores utilizam-se da pessoa jurídica para finalidades outras, que não as
devidas.” 88
Nota, assim, que a questão é mais assentada, sendo que os
autores convergem para o entendimento que o desvio de finalidade consiste no
desvio da realização dos fins legítimos para os quais foi criada a pessoa jurídica.
Ao analisar a obra do citado Mattos e Silva, depare-se com
uma analise divergente acerca da compreensão das categorias “desvio de
finalidade” e “confusão patrimonial” com sendo casos de “abuso da personalidade
jurídica”. Mattos e Silva, ao contemplar o artigo 50 do Código Civil, estabelece
que “esse dispositivo, tal como redigido, afirma que pode o juiz desconsiderar a
84
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
85
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 305)
86
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229)
87
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 226)
88
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 227)
44
personalidade jurídica para atingir bens dos sócios ou administradores quando
ocorrer abuso da personalidade jurídica ou confusão patrimonial.” 89
Desta forma, ao trabalhar a conceituação de “desvio de
finalidade”, o autor demonstra que pode-se equiparar-lo igual e somente a “abuso
da personalidade jurídica”, tratando a “confusão patrimonial”, como algo alheio a
esta última categoria, o que permite inferir-se que tal compreensão surge da
analise diferenciada acerca da vírgula que se encontra antes da expressão “ou
pela confusão patrimonial”.
Trabalhando o conceito operacional “confusão patrimonial”
encontra-se, este, fundamentado na vertente “objetiva” da “teoria maior”, que vale
reforçar pelas palavras de Fábio Ulhoa Coelho já referenciadas em outra
oportunidade, é a teoria “pela qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos
praticados por meio dela.”
Desse modo, como a confusão patrimonial é considerada
uma forma de mau uso da pessoa jurídica, ou seja, utilizar-se do principio da
autonomia patrimonial para fins diversos dos quais foi concebida, resta
caracterizada a “confusão patrimonial” como abuso da personalidade jurídica e
fica difícil situá-la como outra categoria.
Desta
mesma
forma,
contestando
a
hipótese
de
compreensão diversa do art. 50 devido à língua portuguesa, apresentada por ele,
Bruno Mattos e Silva, conceitua a categoria:
“A confusão patrimonial é a hipótese em que os sócios ou
administradores utilizam em proveito próprio os bens e
recursos
da
pessoa
jurídica.Trata-se
de
uma
“promiscuidade” entre bens dos sócios, associados ou
administradores e bens da sociedade. Penso que a confusão
patrimonial não deixa de ser uma modalidade de abuso da
89
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229)
45
personalidade jurídica da sociedade, pois a autonomia
patrimonial tem uma função jurídica que restou violada pelos
sócios ou administradores.” 90
Segundo André Pagani de Souza, a teoria da confusão
patrimonial foi ensinada por Fábio Konder Comparato, que diz que caso haja
confusão patrimonial entre bens dos sócios e das sociedades (utilizam os
mesmos imóveis como sede, os mesmos móveis para se locomover, a sociedade
paga contas pessoais dos sócios etc.), não há por que respeitar a autonomia
patrimonial da pessoa jurídica, pois ela está sendo utilizada para uma finalidade
distinta daquela para a qual foi concebida. 91
Neste certame, Nelson Nery Junior explica que “também é
aplicada a desconsideração nos casos em que houver confusão entre o
patrimônio dos sócios e da pessoa jurídica. Essa situação decorre da não
separação do patrimônio do sócio e da pessoa jurídica por conveniência da
entidade moral.92
As palavras de Maria Helena Diniz confirmam este
entendimento ao afirmar que a confusão patrimonial é a “mistura do patrimônio
social com o particular do sócio.” 93
Sendo assim, resta elucidada a teoria maior subjetiva (abuso
de direito, fraude, desvio de finalidade) e a objetiva; que esta última, segundo
Pagani, Fábio Ulhoa Coelho ensina que facilita a prova no processo judicial, ou
seja, a parte não tem que provar os aspectos subjetivos como o abuso de direito e
90
SILVA, Bruno Mattos. Direito de empresa: teoria da empresa e direito societário. (p. 229)
91
COMPARATO, Fábio Konder, 2005 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da
personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 59-60)
92
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
93
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v.1 (p. 306)
46
a fraude, basta demonstrar a existência de confusão patrimonial para que se
proceda a desconsideração. 94
Além das causas embasadas na “teoria maior subjetiva”
(abuso de direito, fraude e desvio de finalidade) e na “teoria maior objetiva”
(confusão patrimonial) há a corrente que preza pela “teoria menor” que, segundo
Ulhoa Coelho, autoriza a penetração no véu da personalidade jurídica e possibilita
afastar a autonomia patrimonial pelo simples prejuízo do credor.95
No entanto, tendo em vista o posicionamento doutrinário e
jurisprudencial,
não
cabe
conceber
como
válida
a
“teoria
menor”
da
desconsideração, motivo pelo qual o próprio nome já sugere, trata-se de uma
forma de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que
deturpa o instituto da pessoa jurídica.
A chamada “teoria menor” é resultado da decretação
afobada da desconsideração da personalidade jurídica, pelo simples fato de o
credor não ter logrado êxito em receber o que lhe é devido, sem haver qualquer
indagação sobre a ocorrência de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial.
96
Fabio Ulhoa Coelho explica que o prejuízo do credor pelo
inadimplemento da pessoa jurídica não caracteriza causa para desconsideração,
ao afirmar que “não é suficiente a simples insolvência do ente coletivo, hipótese
em que, não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as
regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência.” 97
A teoria menor tem aplicabilidade no que concerne ao direito
do consumidor, devido a hipossuficiência deste nas relações de consumo; tanto
94
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 60)
95
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 35)
96
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 39)
97
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 127)
47
que o legislador, no art. 28 da Lei 8.0780 de 1990, prevê diversas outras causas
para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Com o intuito de facilitar a explanação, transcreve-se a
referida norma:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica
da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver
abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A
desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade
da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica
sempre que sua personalidade for, de alguma forma,
obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos
consumidores.
O Código de Defesa do Consumidor, como se lê, traz outras
hipóteses de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito
das relações de consumo, além da caracterização do abuso de direito, fraude,
desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Essas hipóteses visam a proteção
do consumidor, mas são alvo de controvertidas discussões, uma vez que podem
não ser consideradas aplicáveis com embasamento na teoria da desconsideração
da
personalidade
jurídica,
visto
que
são
contrárias
aos
pressupostos
estabelecidos pela doutrina, um dos quais é a impossibilidade de a mera
insolvência da sociedade por má administração ser motivo para penetrar o véu da
personalidade jurídica.
Neste sentido é o entendimento de Gama:
“Obviamente que, em termos gerais, a tutela jurídica dada
ao consumidor deve ser mais protetiva do que aquela
ministrada em relações paritárias e, por isso, é perfeitamente
48
possível o reconhecimento da aplicação da teoria da
desconsideração em espectro mais amplo quando o
beneficiário for o consumidor. Todavia, é fundamental que
seja apurada a fraude ou o abuso no uso da personalidade,
sob pena de desvirtuamento da teoria da pessoa jurídica.” 98
Pagani de Souza estabelece que as hipóteses de aplicação
contidas no caput do artigo, quais sejam o “excesso de poder”, “infração da lei”,
“fato ou ato ilícito”, “violação dos estatutos ou contrato social”, também a
“falência”, “estado de insolvência”, “encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração” são condutas imputáveis aos sócios e
administradores e não é a personalidade jurídica que impede o ressarcimento dos
danos causados, por este motivo não há o que se falar em teoria da
desconsideração. 99
Ainda segundo Pagani, podemos destacar a crítica de
Raquel Sztajn acerca do art. 28 do CDC:
Claramente o texto do art.28 da Lei 8.078 de 90 não segue a
filosofia que informa a aplicação da teoria nos sistemas de
origem. O texto mistura defeitos dos atos para os quais o
sistema já prevê remédios próprios. Ou o legislador não
entendeu a função da teoria da desconsideração ou, ao que
parece, desejou banalizar, vulgarizar a técnica, para torná-la
panacéia nacional da defesa do consumidor. 100
Venosa se manifesta acerca do dispositivo contribuindo que
a redação do mesmo é reclamada pela doutrina, mas que a ampla abrangência
deste artigo permite que juiz examine a oportunidade e a conveniência da
98
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 23)
99
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 65-66)
100
SZTAJN, Raquel, [s.d.] apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade
jurídica: aspectos processuais. (p. 67)
49
desconsideração no caso concreto e que razões de equidade devem orientá-lo.
101
Devido a esta abrangência nas hipóteses de aplicação da
desconsideração e a questão da hipossuficiência do consumidor, nas relações de
consumo, conforme caput do art. 28 do CDC, o próprio juiz poderá desconsiderar
a personalidade jurídica.
Esta situação se difere no que tange a aplicação no Direito
Civil, visto o conceito operacional destacado no art. 50 de que pode o juiz decidir
“a requerimento da parte, ou do Ministério Publico”, o que veda a aplicação ex
officio.
Acerca deste assunto, Gama complementa:
[...] pelo Código de 2002 o juiz não pode aplicá-la ex officio,
só podendo fazê-lo a requerimento da parte, ou do Ministério
Publico quando lhe couber intervir no processo. Tal
disposição, a principio, conflita com o disposto no art. 28 da
Código de Defesa do Consumidor, que afirma que o juiz
poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade
[..].102
Esta
diferenciação
na
aplicação
da
teoria
da
desconsideração pode ser fundamentada no caráter que possui as demandas de
Direito Civil e de Direito do Consumidor, conforme explica Gama:
“Para a correta solução da questão, é necessário analisar o
ideário que embasa cada dispositivo. Enquanto o Código
Civil visa regrar relações entre sujeitos em suposta
igualdade e que mantêm relações privadas [...], o Código de
Defesa do Consumidor tem, notadamente, um caráter
101
102
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 274)
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 12)
50
protecionista,
[...]
havendo
forte
tendência
de
se
considerarem as questões a ele relativas como de ordem
pública.” 103
Desta forma, como consta expresso no artigo 50 a
necessidade de requerimento da parte ou do Ministério Público, esta questão não
enseja maiores discussões.
Da mesma forma é visto o conceito operacional destacado
no art. 50 do CC, qual seja “efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações”. Esta expressão do dispositivo fomenta que “a desconsideração da
pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia
episódica.” 104
Fábio Ulhoa Coelho, com mais aprofundamento, explica a
questão:
“A teoria da desconsideração da pessoa jurídica não
questiona o principio da autonomia patrimonial, que continua
válido e eficaz [...]. Assim, a pessoa jurídica desconsiderada
não é extinta, liquidada ou dissolvida pela desconsideração;
não
é,
igualmente,
invalidada
ou
desfeita.
Apenas
determinados efeitos de seus atos constitutivos deixam de
se produzir episodicamente.” 105
Este é entendimento unânime na doutrina, mas Venosa
complementa que o efeito da desconsideração possui gradação, ou seja, “estará
na medida da prática de um ato isolado abusivo ou fraudulento, ou de uma série
de atos, o que permitirá a desconsideração equivalente.” 106
103
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 12)
104
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 127)
105
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. v.1 (p. 243)
106
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 275)
51
Sobre o tema, o autor ainda esclarece:
“Por vezes, a simples desconsideração no caso concreto é
suficiente para restabelecer o equilíbrio jurídico. Outras
vezes, será necessário ato mais abrangente, como a própria
decretação da extinção da pessoa jurídica.” 107
Além de estabelecer que os efeitos da desconsideração
recaem sobre certas e determinadas obrigações, o artigo 50 do CC determina que
tais efeitos sejam “estendidos aos bens particulares dos administradores ou
sócios” da pessoa jurídica, o que substância o último conceito operacional a ser
trabalhado.
Este tema também requer atenção, uma vez que, segundo
Gama, existe o entendimento de que “de acordo com a redação do art. 50,
conclui-se que ele seria apenas uma forma de responsabilizar subsidiariamente o
sócio, ou seja, só poderia ser aplicada a desconsideração quando o patrimônio da
própria pessoa jurídica fosse insuficiente para o total ressarcimento do lesado.” 108
Fábio Ulhoa Coelho entende que “ignorando a autonomia
patrimonial, será possível responsabilizar-se, direta, pessoal e ilimitadamente, o
sócio por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade.” 109
Com este entendimento de Coelho de que o sócio é
responsabilizado
diretamente,
deduz-se
que,
nos
casos
que
ensejam
desconsideração da personalidade jurídica, o autor não atribui responsabilidade à
pessoa jurídica.
Segundo Gama, para Assumpção Alves, “a desconsideração
deve ser usada para, atingindo diretamente o patrimônio do sócio responsável
107
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. (p. 275)
108
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 12)
109
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. (p. 126)
52
pelo ato abusivo, conservar o patrimônio da pessoa jurídica e também dos demais
sócios não envolvidos na subversão.” 110
De acordo com entendimento seu, Gama dispõe:
“A teoria da desconsideração da personalidade jurídica da
pessoa jurídica somente deve ser aplicada para atingir os
que agiram fraudulentamente ou de modo abusivo, ou de
alguma forma se beneficiaram com tal conduta, mas não
deve atingir os demais sócios e administradores que não
agiram com fraude ou abuso. As pessoas que não se
aproveitaram do véu da personalidade para a prática de
fraude
ou
do
abuso,
com
efeito,
não
podem
ser
responsabilizadas patrimonialmente, sendo inoponível a
teoria da desconsideração a tais pessoas.” 111
Neste
certame
Nelson
Nery
Junior,
com
apelo
jurisprudencial demonstra o tema através de entendimento do STJ:
Desconsideração da personalidade jurídica. Limitação.
Jornada I STJ 7: Só se aplica a desconsideração da
personalidade jurídica quando houver a prática de ato
irregular; e limitadamente, aos administradores ou sócios
que nela hajam incorrido. 112
Pode-se inferir que a responsabilidade direita do sócio ou
administrador da pessoa jurídica, em detrimento à atribuição de responsabilidade
à pessoa jurídica, mostra-se como entendimento majoritário e neste contexto de
responsabilidade dos sócios, cabe fazer alusão da teoria da “desconsideração em
sentido inverso”.
110
ALVES, Alexandre Assumpção, 2003 apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da.
Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica: visão crítica da jurisprudência. (p. 13)
111
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 13)
112
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 250)
53
Esta teoria consiste que, da mesma forma que o credor pode
intentar a execução de seus créditos em nome da pessoa jurídica através da
desconsideração da personalidade jurídica para atingir os bens do sócio, pode
também valer-se da pessoa jurídica para cobrar dívida pessoal do sócio quando
este faz uso da pessoa jurídica para prejudicar terceiros.
Vislumbra-se na obra de Nery Junior, o entendimento do
STJ, proveniente da Jornada IV STJ 283, de que “é cabível a desconsideração da
personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se
valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a
terceiros.”113
Citando Calixto Salomão Filho, André Pagani de Souza
esclarece que “por óbvio, a teoria da desconsideração inversa só será aplicada
para tornar sem efeito a transferência indevida do patrimônio do sócio para a
sociedade.” 114
Sendo assim, após a caracterização das categorias através
de diversos entendimentos doutrinários, resta demonstrado, superficialmente, os
aspectos relevantes acerca da desconsideração da personalidade jurídica no que
tange ao direito material.
2.4 ASPECTOS
PROCESSUAIS
DA
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
A desconsideração da personalidade jurídica, no seu
aspecto material, está substanciada no artigo 50 do Código Civil, no entanto, não
há previsão legal correspondente aos aspectos processuais, o que gera
entendimentos divergentes acerca da aplicação processual do instituto.
113
114
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
SALOMÃO FILHO, Calixto, 2002 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da
personalidade jurídica: aspectos processuais. (p. 64)
54
As ações que intentam a desconsideração da personalidade
jurídica de uma pessoa jurídica estão embasadas nos princípios constitucionais
do contraditório e ampla defesa, mas as mesmas são objeto de discussão no que
tange ao momento processual que podem ser aplicadas.
Nesse contexto, segundo Gama, surgem três alternativas:
a) a desconsideração aplicada por mera decisão na
execução; b) a desconsideração como demanda autônoma
através do processo de conhecimento; c) a desconsideração
no incidente na execução.115
A primeira hipótese, por ferir o devido processo legal e
afirmar a teoria menor, ou seja, não atender aos pressupostos materiais acerca
da possibilidade de concessão da desconsideração, deve ser considerada
inaplicável.
Por sua vez, a segunda hipótese, qual seja a demanda
autônoma através de processo de conhecimento, constitui o entendimento de
Humberto Theodoro Junior, que discorre:
“a responsabilidade extraordinária, como a proveniente do
abuso de gestão, violação do contrato, dolo, etc., depende
de prévio procedimento de cognição e só pode dar lugar à
execução quando apoiada em sentença condenatória contra
o sócio faltoso.” 116
E ainda de Fábio Ulhoa Coelho, que explana:
“O juiz não pode desconsiderar a separação entre pessoa
jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial
115
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
visão crítica da jurisprudência. (p. 27)
116
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v.2 (p.103)
55
própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da
sociedade contra os sócios ou seus controladores” 117
Além de mera decisão na execução ou através de processo
de conhecimento, têm-se a última proposição de que pode-se admitir a ação
incidental no processo de execução e sobre esta vertente, utiliza-se das
pesquisas de Nelson Nery Junior para demonstrar a posição da Ministra Nancy
Andrighi do STJ, qual seja:
A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal.
Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz,
incidentemente no próprio processo de execução (singular
ou coletivo), levantar o véu da personalidade jurídica para
que o ato de expropriação atinja os bens particulares de
seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à
lei ou contra terceiros. (STJ, 3ª T., REsp 332763-SP, rel.
Min. Nancy Andrighi, v.v., j. 30.4.2002, DJU 24.6.2004,
p.297). 118
Neste sentido, segundo André Pagani de Souza, converge a
doutrina majoritária, e destaca o posicionamento de Fábio Konder Comparato,
que sustenta que a ação incidental na execução assegura o devido processo legal
e o contraditório, além de apresentar a óbvia vantagem da celeridade.” 119
Isto posto, visto que não há previsão legal expressa e diante
dos divergentes entendimentos, pode-se inferir que os aspetos processuais, no
que concerne o momento oportuno para pleitear ação de desconsideração da
personalidade jurídica, é assunto ainda a ser debatido pela doutrina e pela
jurisprudência e questionado a cada pretensão jurídica intentada.
117
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2 (p. 55)
118
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. (p. 249)
Nelson Nery Junior, p250
119
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 118)
56
CAPÍTULO 3
UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Neste último capítulo, analisar-se-á os acórdãos proferidos
por tribunais de diferentes instâncias a fim de demonstrar os pontos controversos
acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no tocante aos
requisitos para sua efetiva aplicabilidade nos distintos ramos do direito.
Como
se
verificará
a
seguir,
divergentes
são
os
entendimentos colhidos nos julgados, o que denota tratar-se de matéria não
pacificada. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode tratada de
uma forma pelo direito civil, e de maneira completamente distinta pelo direito do
trabalho, por exemplo.
Essas divergências jurisprudenciais se embasam na também
divergente posição doutrinária, demonstrada no capítulo anterior. Os autores têm
posicionamento distinto quanto às causas que ensejam a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, o momento processual a ser proposta
a desconsideração, e sobre essas questões que discutirão os acórdãos que
seguem explanados de acordo com a divisão dos ramos de direito elucidados.
3.1 DIREITO CIVIL
Como bem fundamentada por Rolf Serick, Rubens Requião
e outros doutrinadores, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em
síntese, “visa a impedir a fraude ou o abuso através do uso da personalidade
jurídica”
120
e ela é admitida no caso concreto quando configurado estes
pressupostos, conforme preceitua o seguinte julgado:
120
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. (p. 752)
57
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução. Penhora.
Bens nomeados pela devedora. Não trazida aos autos das
certidões imobiliárias respectivas. Omissão da executada.
Inexistência de outros bens a penhorar. Presunção de má
gestão dos sócios da devedora. DESCONSIDERAÇÃO da
PERSONALIDADE JURÍDICA. Pressupostos não delineados
com
precisão.
Decisão
insustentável.
Em execução promovida contra sociedade empresarial
admite-se a DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE
JURÍDICA quando for ela utilizada para a realização de
fraudes ou com abuso de DIREITO. O simples fato de não
terem sido localizados bens da devedora passíveis de
penhora e de não terem sido carreados aos autos os
comprovantes de propriedade de imóveis por ela indicados,
não autoriza, por isso só, a presunção de má gestão dos
sócios. De mister faz-se, para que se afaste a roupagem da
PERSONALIDADE JURÍDICA, a prova cabal de haverem os
sócios administradores atuado com excesso de poder ou
com infração à lei, ao contrato social ou estatutos da
sociedade. Grifo nosso 121
Estes pressupostos para a concessão da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica são necessários visto que o instituto
trata-se de medida de exceção, uma vez que o que se pretende é resguardar o
principio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, e fazer prevalecer a
separação incisiva entre o patrimônio do sócio e da sociedade.
O art. 50 do Código Civil estabelece que nos casos de abuso
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e pela confusão
patrimonial é permitido utilizar-se da desconsideração da personalidade jurídica
121
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2003.009499-7, da
1ª Vara Cível da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 13 de novembro de 2003. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
58
para atingir o sócio que agiu diversamente dos fins da sociedade, conforme se
verifica no entendimento de douto desembargador do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina:
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO
-
Ação
monitória
-
Ajuizamento contra pessoa JURÍDICA - Etapa executória Pretensão à penhora de bens particulares de sócio - Teoria
da 'disregard of legal entity' - Pressupostos não positivados Negativa judicial - Decisão correta - Insurgência recursal
desatendida.
Acolhida pretensão monitória contra pessoa JURÍDICA, a
circunstância de não dispor ela de bens passíveis de
concretizar o crédito reconhecido, não autoriza, por si só, a
aplicação da teoria da 'disregard of legal entity', com a
penhora
em
bens
particulares
de
sócio
seu.
A
DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA
condiciona-se, não apenas à prova da dissolução de fato da
sociedade, ou da inexistência de bens em nome da mesma,
mas, acima de tudo, à comprovação do cometimento,
pelos sócios-administradores, da prática de atos com
excesso de poderes ou com infração à lei ou ao contrato
social. 122Grifo nosso
Além deste, mais consistente se mostra a situação ao
analisar sentença do Min. Aldir Passarinho Junior, do STJ:
CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
PERSONALIDADE
CAUTELAR.
JURÍDICA.
ARRESTO.
DESCONSIDERAÇÃO.
REQUISITOS. AUSÊNCIA. DESPROVIMENTO. I. "Nos
122
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.023753-7, da
2ª Vara Cível da Comarca de Tubarão, Florianópolis, SC, 20 de março de 2003. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
59
termos do Código Civil, para haver a desconsideração da
personalidade jurídica, as instâncias ordinárias devem,
fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de
sua finalidade ou confusão patrimonial desta com a de
seus sócios, requisitos objetivos sem os quais a medida
torna-se incabível." (REsp 1.098.712/RS, Rel. Min. Aldir
Passarinho
Junior,
Quarta
Turma,
unânime,
04/08/2010). II. Agravo regimental desprovido.
123
DJe:
Grifo
nosso
Além dos pressupostos estabelecidos no art. 50 do Código
Civil, apesar de não ser causa estabelecida expressamente, a fraude também
permite a desconsideração da personalidade jurídica, ela está contida no
embasamento da teoria, e pode ser vislumbrada do seguinte acórdão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA - MEDIDA EXCEPCIONAL NECESSIDADE DE PROVA CONVINCENTE DA FRAUDE
AO
PRINCÍPIO
DA
AUTONOMIA
DA
SEPARAÇÃO
PATRIMONIAL - AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS FECHAMENTO DAS PORTAS DA EMPRESA POR FORÇA
DE MANDADO DE DESPEJO - INEXISTÊNCIA DE PROVA
DA
MÁ-FÉ
-
RECURSO
IMPROVIDO.
A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA,
por se tratar de medida excepcional, uma vez que pode
acarretar graves e irreversíveis prejuízos ao patrimônio
particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo
de prova convincente do uso fraudulento do princípio da
autonomia
da
separação
patrimonial.
Assim, a dificuldade de encontrar bens da empresa
123
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 20090093528-1, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasília, DF, 16 de setembro de 2010.
Disponível em: www.stj.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
60
executada, por si só, não é permissivo para que se adote a
disregard doctrine, sem que haja comprovação da conduta
irregular
dos
sócios.
Do mesmo modo, não se aplica a medida excepcional,
quando não comprovada má-fé na conduta da empresa, que
fecha as suas portas por força de mandado de despejo, e
não com intenção de fraudar credores. 124 Grifo nosso
Neste sentido, fica evidente que estando configurados os
pressupostos pode-se desconsiderar a personalidade jurídica de determinada
pessoa jurídica para atingir o patrimônio dos sócios. No entanto, além disso,
pode-se utilizar da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para
alcançar outra empresa do mesmo grupo econômico e assim promover
determinada execução pretendida, como o que ocorre na sentença abaixo:
TRIBUTÁRIO
-
ARRENDAMENTO
EXECUÇÃO
MERCANTIL
FISCAL
-
-
ISS
-
NOMEAÇÃO
À
PENHORA DE LETRAS FINANCEIRAS DO TESOURO
NACIONAL - RECUSA PELO CREDOR - PENHORA DE
DINHEIRO DE EMPRESA INTEGRANTE DO MESMO
CONGLOMERADO
FINANCEIRO
-
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO [...] 3. A solidariedade - ativa e passiva não se presume: decorre de lei ou da vontade das partes
(CC, art. 265). Não há solidariedade passiva entre empresas
tão-somente por pertencerem ao mesmo grupo econômico.
A penhora de bens da empresa que não é parte na relação
negocial só é admissível se presentes os pressupostos
legais
que
autorizam
a
DESCONSIDERAÇÃO
da
PERSONALIDADE JURÍDICA previstos no Código Civil (art.
50) e no Código de Defesa do CONSUMIDOR (art. 28).
124
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2005.016455-0, da
1ª Vara Cível da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 08 de novembro de 2005. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
61
Aquele estabelece "regra geral de conduta para todas as
relações jurídicas travadas na sociedade, o que evita que os
operadores do DIREITO tenham de fazer - como faziam malabarismos dogmáticos para aplicar a norma - outrora
limitada a certos microssistemas jurídicos - em seus
correspondentes campos de atuação (civil, trabalhista,
comercial etc.)” 125
Assim como a execução de uma empresa pode ser
direcionada a outra do mesmo grupo, a teoria da desconsideração também
permite a responsabilização da sociedade por obrigação pessoal do sócio, a
chamada “desconsideração da personalidade jurídica inversa”.
A
Min.
Nancy
Andrighi,
do
STJ,
contribui
com
esclarecimentos no Recurso Especial 2007-0045262-5, julgado em 22 de junho
de 2010:
Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é
combater a utilização indevida do ente societário por seus
sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o
sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o
integraliza
na
pessoa
jurídica,
conclui-se,
de
uma
interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a
desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo
a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas
pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos
previstos na norma.126
125
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.011231-9, da
Vara Comercial da Comarca de Brusque, Florianópolis, SC, 17 de agosto de 2004. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
126
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2007-0045262-5, do Tribunal de
Justiça do Mato Grosso do Sul, Brasília, DF, 22 de junho de 2010. Disponível em: www.stj.jus.br.
Acessado em 18 de outubro de 2010.
62
No
entanto,
vale
firmar
que
para
que
ocorra
a
desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso o sócio não pode
mais possuir bens a serem penhorados, veja:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO PROPOSTA
CONTRA
PESSOA
FÍSICA.
DESCONSIDERAÇÃO
INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA DE
CRÉDITO DA SOCIEDADE COMERCIAL INTEGRADA
PELO
DEVEDOR.
PRESSUPOSTOS
NÃO
COMPROVADOS. DECISÃO INSUBSISTENTE. RECLAMO
RECURSAL
ACOLHIDO.
Na DESCONSIDERAÇÃO inversa da PERSONALIDADE
JURÍDICA de empresa comercial, afasta-se o princípio da
autonomia
patrimonial
da
pessoa
JURÍDICA,
responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do
sócio.
Tal
somente
é
admitido,
entretanto,
quando
comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com
o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém
controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir
integralmente,
conquanto
não
integrem
eles
o
seu
patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da
pessoa
Contudo,
JURÍDICA
essa
medida
extrema
controlada.
torna
absoluta
a
indispensabilidade de comprovação, pelo credor, de todos
os pressupostos autorizatórios da desconstituição inversa da
PERSONALIDADE JURÍDICA da empresa comercial, o que
não ocorre quando, comprovadamente, o executado tem
bens próprios, sendo passíveis de penhora, outrossim, as
suas quotas sociais nas empresas por ele integradas. 127
127
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1, da
1ª Vara Cível da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 13 de setembro de 2001. Disponível
em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
63
Verificados os pressupostos e possibilidades de concessão
da desconsideração da personalidade jurídica, passa-se as questões de cunho
processual, e uma delas é o discutido tema de qual o momento processual
cabível para ser arguida a desconsideração da personalidade jurídica, se no curso
do processo de execução ou em processo de conhecimento.
A última opção, como visto no capítulo anterior, é de
entendimento de doutrinadores como Fábio Ulhoa Coelho e Humberto Theodoro
Junior, mas a possibilidade da argüição da desconsideração no curso do
processo de execução tem forte influência no entendimento da Min. Nancy
Andrighi do STJ, conforme demonstrado também no capitulo antecessor.
Neste sentido, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - Execução contra empresa
comercial - Pretensão à inclusão de sócio no pólo passivo da
ação, com penhora em bens particulares do mesmo DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA Pressupostos não comprovados - Indeferimento - Decisão
incensurável
-
Recurso
desprovido.
A DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA
de empresa comercial devedora pode ser declarada nos
próprios autos da ação de execução contra ela proposta,
desde que comprovados, à saciedade, os fatos que
justifiquem com suficiência a medida extrema. E a simples
circunstância de não terem sido encontrados bens da
executada passíveis de penhora, ou mesmo a suspensão de
suas atividades, sem dissolução regular, são razões que,
independentemente da prova da conduta faltosa do sócio,
seja em razão de excesso de mandato, seja em decorrência
da prática de atos contrários à lei ou ao contrato social, não
64
justificam a responsabilização pessoal dos sócios da
devedora. 128
Outra questão processual polêmica é a qualidade jurídica do
sócio para embargar, figura como parte e utiliza os embargos à execução, ou
figura como terceiro e faz uso dos embargos de terceiro.
Foi possível localizar julgado neste último sentido no
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ou seja, o magistrado entende que
desaparece a figura de terceiro, como se observa:
Agravo. Embargos de terceiro. Decisão em medida cautelar
de arresto. Situação fática que conduz ao juízo de
verossimilhança no que tange à DESCONSIDERAÇÃO da
PERSONALIDADE JURÍDICA, ao abuso de direito e à
separação patrimonial. Desaparecimento da qualidade de
terceiro. Recurso desprovido.129
Isto
posto,
infere-se
que
as
decisões
acerca
da
desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito civil são pacificas
em relação à necessidade da configuração dos requisitos estabelecidos no art. 50
do Código Civil, bem como a fraude ou o abuso de direito. No entanto, no tocante
a questão processual, ainda resta entendimentos divergentes.
3.2 DIREITO DO TRABALHO
Devido ao seu caráter protecionista a Consolidação das Leis
do Trabalho – CLT possui dispositivos que visam garantir o direito do trabalhador
128
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2002.025985-9, da
3ª Vara Cível da Comarca de Joinville, Florianópolis, SC, 13 de março de 2003. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
129
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.020748-6, da
3ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 25 de abril de 2002. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
65
e um desses dispositivos trata da solidariedade entre as empresas que formam o
mesmo grupo, conforme preceitua o parágrafo 2º do art. 2 da CLT, que lê-se
abaixo:
§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada
uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a
direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo
industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica,
serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente
responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
Além do amparo ao trabalhador, característica da CLT, para
Rubens Requião o referido dispositivo tem relação com a teoria da
desconsideração, como se pode verificar quando afirma que “nada mais está
admitindo senão a aplicação da doutrina, pois despreza e penetra o “véu” que as
encobre e individualiza, desconsiderando a personalidade independente de cada
uma das subsidiárias.” 130
Desta forma, demonstra-se que a teoria da desconsideração
da personalidade jurídica tem aplicação no que tange ao direito do trabalho e fica
confirmado através de acórdãos do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região
– TRT12, como pode se averiguar no que segue:
BENS
DE
SÓCIO.
PENHORA.
TEORIA
DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. O
direcionamento da execução ao sócio da executada é lícito,
pois a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
permite ultrapassar os efeitos da responsabilidade da
pessoa jurídica para o membro da sociedade, que com seus
130
REQUIÃO, Rubens, 1969 apud SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade
jurídica: aspectos processuais. (p. 49)
66
bens particulares deve garantir a execução.131
O direito do trabalho possui pressuposto de utilizar o direito
civil subsidiariamente, o que ocorre também na aplicação da doutrina da
desconsideração. As decisões são fomentadas com base no art. 50 do Código
Civil:
EXECUÇÃO.
JURÍDICA.
DESPERSONALIZAÇÃO
Somente
poderá
ser
DA
PESSOA
determinada
a
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade
quando inequivocamente demonstrado o abuso configurado
pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, a teor do
disposto no art. 50 do Código Civil. 132
No que tange a essa aplicação do art.50 do CC, encontra-se
divergências acerca das causas para a admissão da desconsideração da
personalidade jurídica, uma vez que no Código Civil verifica-se o abuso da
personalidade jurídica, desvio de finalidade e confusão patrimonial, enquanto que
no direito do trabalho admite-se de forma majoritária a aplicação da teoria com a
simples insolvência da pessoa jurídica, como denota-se no julgados colhidos no
TRT12:
EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. Possuindo a executada débitos trabalhistas e
não apresentando bens para satisfazer sua dívida, correta a
decisão
que
autorizou
a
desconsideração
da
sua
131
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 02456-2006-03012-00-4, da 4ª Vara do Trabalho da Comarca de Joinville, Florianópolis, SC, 09 de novembro de
2009. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
132
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04922-2006-00512-00-6, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Itajaí, Florianópolis, SC, 17 de setembro de 2010.
Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
67
personalidade jurídica (art. 50 CC) e determinou que a
execução prossiga contra sua sócia. 133
TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. A insolvência da pessoa jurídica executada
constitui premissa para o direcionamento da execução aos
seus sócios. Inexistindo tal comprovação, é ilegítima a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica.134
Neste certame, infere-se que se no âmbito do direito do
trabalho a simples insolvência da pessoa jurídica é causa para desconsideração
da personalidade jurídica, não estaria se tratando propriamente da teoria da
desconsideração, uma vez que esta pressupõe a caracterização do abuso da
personalidade jurídica, não se admitindo neste a insolvência, conforme se
demonstra na análise da teoria no âmbito do direito civil.
Ainda assim, apesar a admissão da simples insolvência
como causa de desconsideração, a matéria resta controvertida, e além disso é
necessário que estejam esgotados os bens da pessoa jurídica antes de direcionar
a execução ao sócio, como verifica-se:
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
EXISTÊNCIA DE BENS DA SOCIEDADE EMPRESARIAL.
IMPOSSIBILIDADE
DE
REDIRECIONAMENTO
DA
EXECUÇÃO AOS SÓCIOS. A teoria da desconsideração da
personalidade jurídica da sociedade empresarial somente
poderá ser aventada com fins de afetação do patrimônio dos
133
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04260-2009-03112-00-3, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 21 de maio de 2010.
Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
134
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 05358-2007-00212-00-0, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Blumenau, Florianópolis, SC, 03 de fevereiro de
2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
68
seus sócios quando verificada a insuficiência de bens da
devedora. Havendo lastro patrimonial de propriedade da
empresa executada, indevida é a desconsideração de sua
personalidade, bem assim nulos os atos praticados com
vista à expropriação de bens dos seus sócios.135
Outra discussão emergente é o momento processual a ser
proposta a desconsideração da personalidade jurídica, que de acordo com os
acórdãos garimpados é admissível no processo de execução, resguardada,
porém, a necessidade de citação do sócio para figurar no pólo passivo da
demanda, uma vez que este não se confunde com a pessoa jurídica. Este
posicionamento foi observado nos seguintes acórdãos:
EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA DA EXECUTADA. NECESSIDADE DE CITAÇÃO
DOS
SÓCIOS.
DEVIDO
OBSERVÂNCIA
PROCESSO
LEGAL.
DO
PRINCÍPIO
Considerando
que
DO
o
ordenamento jurídico pátrio foi edificado no sentido de
distinguir a pessoa jurídica da de seus sócios e, com isso,
dissociar o universo patrimonial de ambos, fazendo com que
cada um tenha vida distinta da do outro, é imperioso que,
valendo-se o magistrado da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica da executada, determine a regular
citação dos sócios antes de promover a afetação de seu
patrimônio jurídico, sob pena de ferimento do devido
processo legal.136
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
DA EMPRESA EXECUTADA. INCLUSÃO DOS SÓCIOS
135
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 01742-2009-01012-00-0, da Vara do Trabalho da Comarca de Brusque, Florianópolis, SC, 01 de junho de 2010.
Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
136
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 00831-2002-03112-00-4, da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 22 de outubro de
2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
69
RETIRANTES
NO
POLO
PASSIVO
DA
DEMANDA.
INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO. NULIDADE. A citação dos
sócios
retirantes,
quando
há
a
desconsideração
da
personalidade jurídica da empresa e a sua inclusão no polo
passivo da demanda, é imprescindível à realização da
penhora sobre os bens particulares destes (inteligência dos
arts. 880 da CLT e 618, II, do CPC). A inobservância de tal
preceito legal enseja o reconhecimento da nulidade da
penhora.137
Ainda na questão processual, fica evidenciado que ao ser
concedida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio, que como já
visto, precisa ser citado, passa a ser parte do processo, ainda que não
originariamente, e ao ter recaído sobre seus bens, penhora, não pode embargos
como terceiro, pois assim não mais o é, como demonstra o julgado do TRT12:
CONSTRIÇÃO DE BENS DE SÓCIO DA EMPRESA.
EMBARGOS DE TERCEIROS. PARTE ILEGÍTIMA PARA
PROPOR O RECURSO. CONFIGURAÇÃO. Em sintonia
com a decisão do TRT que não aceitou os embargos à
execução opostos pela empresa, por serem parte ilegítima
para a defesa do bem do sócio, porque somente o sócio é
quem tem legitimidade para opor embargos à execução
contra a constrição que recaiu sobre bens de sua
propriedade,
não
poderia
o
agravante
ter
oferecido
embargos de terceiro, senão embargos à execução,
observados os prazos legais. Quem integra a execução, seja
originariamente,
seja
por
decisão
ulterior
(sucessão,
desconsideração da personalidade jurídica etc.) é executado
e não terceiro e, como tal, deve se valer dos embargos à
137
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 04568-2003-01812-00-3, da 2ª Vara do Trabalho da Comarca de Blumenau, Florianópolis, SC, 20 de maio de
2010. Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
70
execução, não tendo legitimidade para embargar de terceiro.
Agravo de petição conhecido para se negar provimento.138
Neste certame ficam tratadas as principais questões acerca
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito do
trabalho.
3.3 DIREITO DO CONSUMIDOR
Como explanado no capítulo anterior, há uma grande
discussão sobre ser o art.28 do Código de Defesa do Consumidor um dispositivo
referente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que
este positiva mais causas para a aplicação da teoria do que propriamente o uso
deturpado do instituto da pessoa jurídica.
Esse contra censo também paira nas decisões dos
magistrados, há aqueles que entendem tratar-se todas as causas do art.28 como
sendo suficientes para a aplicação da disregard doctrine, enquanto outros, ainda
que estejam expressas a demais causas no dispositivo, entendem que deve haver
a comprovação do abuso de direito, fraude, abuso de poder.
O art. 28 do CDC abriga a falência, a insolvência, o
encerramento das atividades da pessoa jurídica ou até mesmo a própria pessoa
jurídica como obstáculo ao ressarcimento do consumidor como causas para
desconsideração, pois o legislador entende que o consumidor seja vulnerável nas
relações de consumo.
No entanto, a corrente que não abraça o art. 28 do CDC
como desconsideração diz que o mesmo prejudica o instituto da pessoa jurídica,
que o sócio não pode sofrer o ônus incondicional nas situações em que age com
boa-fé e que por este motivo não pode se valer apenas da interpretação literal.
138
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Agravo de Petição nº 00064-2008-01712-00-2, da Vara do Trabalho da Comarca de Mafra, Florianópolis, SC, 20 de maio de 2010.
Disponível em: www.trt12.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
71
Desta forma é o entendimento da desembargadora Maria do
Rocio Santa Ritta da Primeira Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, conforme selecionada ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO. DÍVIDA AFETA
A
SOCIEDADE
LIMITADA.
AMBICIONADA
A
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
ART. 28, § 5º, DO CDC. INTERPRETAÇÃO LITERAL
INSUFICIENTE. TUTELA DA BOA-FÉ E DA GARANTIA DO
DESENVOLVIMENTO
COMPROVAÇÃO
DO
NACIONAL.
USO
NECESSIDADE
DETURPADO
DO
DE
ENTE
MORAL. PROVIDÊNCIA NÃO IMPLEMENTADA PELOS
EXEQÜENTES.
RECURSO
DESPROVIDO.
A
DESCONSIDERAÇÃO da PERSONALIDADE JURÍDICA
somente se admite quando o escudo da separação
patrimonial é utilizado para fins destoantes do DIREITO. Não
se pode conceber, diante do princípio da boa-fé, que,
mesmo agindo os sócios nos estreitos limites da legalidade e
da honestidade, tenham seu patrimônio desfalcado para
cobrir
dívidas
da
respectiva
sociedade.
É bastante justo que a empresa arque, objetivamente, com
os danos que causar ao CONSUMIDOR; agora, impor este
ônus diretamente e incondicionalmente aos sócios, é medida
de
todo
desproporcional,
que
compromete
o
desenvolvimento da nação, um dos objetivos da República
Federativa do Brasil (art. 3º, II, da CF).139
Na íntegra deste julgado a desembargadora reza que a
interpretação literal do art. 28 do CDC é insatisfatória, revelando total
descompasso com o sistema legal no qual ele se encontra envolto, além disso,
139
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da
5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
72
fere o principio da igualdade material, pois desconsidera o comportamento dos
sócios, se de boa ou má-fé. 140
Neste sentido, ela complementa:
As relações consumeristas são regidas pelo princípio geral
da boa-fé implícito na Constituição Federal e expresso no
Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, III) - princípio este
que
fundamenta,
em
última
análise,
a
teoria
da
desconsideração da personalidade jurídica. Não se pode
conceber, portanto, que, mesmo agindo os sócios nos
estreitos limites da legalidade e da honestidade, tenham seu
patrimônio desfalcado para cobrir dívidas da respectiva
sociedade. A boa fé é merecedora de prêmios e não
punição.141
Os defensores da literalidade do texto do art. 28 do CDC,
por sua vez, entendem que cabe a desconsideração sem necessariamente a
configuração do abuso da personalidade, sendo suficiente qualquer dos requisitos
expressos no referido dispositivo.
Neste sentido, da sentença para o Agravo de Instrumento nº
2000.018889-1 de São José retira-se a citação do culto magistrado catarinense,
Dr. Antônio do Rego Monteiro Rocha, acerca das causas que ensejam a
desconsideração no âmbito do Direito do Consumidor, que assim expõe:
Enfim,
a
personalidade
jurídica
só
poderá
ser
desconsiderada mediante os seguintes pressupostos: a) ato
antijurídico contrário ao direito, mediante ação ou omissão,
consistente em abuso de direito, excesso de poder, infração
140
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da
5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
141
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2004.034501-6, da
5ª Vara Cível da Comarca da Capital, Florianópolis, SC, 23 de agosto de 2005. Disponível em:
www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
73
da lei, fato ou ato ilícito ou violação de estatutos, bem como
quando
houver
encerramento
ou
falência,
estado
inatividade
de
provocados
insolvência,
por
má
administração; b)responsabilidade objetiva do fornecedor de
produto ou serviço; c) prejuízo ao consumidor, decorrente de
lesão objetiva na relação de consumo; d) existência de
obstáculo criado pela sociedade jurídica para impedir a
responsabilização do membro da sociedade que infringiu o
direito do consumidor; e) nexo de causalidade entre o
antijurídico praticado pela pessoa moral e o prejuízo sofrido
pelo consumidor, através de obstáculos à reparação
pretendida. Inexistentes os requisitos acima, o magistrado
não pode e não deve desconsiderar a personalidade jurídica,
por ser motivo de exceção e porque o instituto da
desconsideração é o meio para cuidar dos desvios
funcionais da personalidade jurídica, pelo que não pode ser
prodigalizado sem fundamentação jurídica. 142.
Sendo assim, a partir destas palavras pode-se perceber que
o magistrado atribui todas as citadas situações como constitutivas da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica e no mesmo texto afirmar que a teoria
é medida de exceção.
Deste modo, pode-se deduzir que a questão é, do mesmo
modo que na doutrina, motivo para diferentes posicionamentos e decisões nos
tribunais.
142
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2000.018889-1, da
1ª Vara Cível da Comarca de São José, Florianópolis, SC, 13 de setembro de 2001. Disponível
em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
74
3.4 DIREITO TRIBUTÁRIO
Em matéria de direito tributário no que concerne à teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, concebe-se rapidamente a matéria da
“responsabilidade tributária”, ou mais precisamente a “responsabilidade de
terceiros”, capitulada no Código Tributário Nacional – CTN no artigo art. 135, I, II,
III, que dispõem:
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos
correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos
praticados com excesso de poderes ou infração de lei,
contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes das pessoas
jurídicas de direito privado.
No entanto, apesar da relação criada deste dispositivo com a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, grande é a discussão acerca
desse tema, uma vez que, se a responsabilidade é imputada diretamente aos
sócios, esses já são os destinatários específicos da norma e a distinção entre a
pessoa jurídica e o sócio não é empecilho para responsabilizar o mesmo,
portanto, não está se tratando de desconsideração da personalidade jurídica ao
aplicar estes dispositivos do CTN. 143
Neste sentido, é o entendimento do autor André Pagani de
Souza:
Caso o sócio, o acionista, o administrador ou a sociedade
sejam destinatários específicos de normas que lhes atribuam
responsabilidade pelo abuso de direito ou pela realização de
143
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 47)
75
fraudes,
não
há
falar
desconsideração
da
em
aplicação
personalidade
da
teoria
jurídica.
da
Nessas
hipóteses, a responsabilidade é imputada diretamente ao
sócio, acionista, administrador ou à própria pessoa jurídica,
conforme o caso.144
Calixto Salomão Filho, por sua vez, na obra “O novo direito
societário” expõe que o artigo do CTN acima mencionado é exemplo da aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundamentada em
dispositivos legais. 145
Neste mesmo sentido, colhe-se julgado do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina – TJSC, no qual o magistrado entende o art.135 do
CTN como a previsão para a aplicabilidade da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica:
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA - EXECUÇÃO FISCAL
- SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE
LIMITADA
-
PENHORÁVEL
INEXISTÊNCIA
-
PRESUNÇÃO
DE
PATRIMÔNIO
DE
DISSOLUÇÃO
IRREGULAR - PEDIDO DE CITAÇÃO DOS SÓCIOSGERENTES, NÃO OBSTANTE, INDEFERIDO - SITUAÇÃO
EXCEPCIONAL
DE
CABIMENTO
DA
TEORIA
DA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EXEGESE DO ART. 135, III, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO
NACIONAL
-
REFORMADO
PRECEDENTES
-
-
INTERLOCUTÓRIO
AGRAVO
PROVIDO
Os sócios diretores, gerentes ou representantes de empresa
por
cotas
de
responsabilidade
limitada
respondem
solidariamente pela obrigação tributária, nos termos do art.
135, III do CTN, quando há dissolução irregular da
144
SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais.
(p. 47)
145
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário (p. 196-197)
76
sociedade ou, segundo a doutrina e a jurisprudência, se
comprovada a prática de atos com excesso de poder,
infração de lei do contrato social ou estatutos. É a aplicação
da disregard doctrine, também conhecida como teoria
da disregard of legal entity ou, em bom vernáculo, teoria
da desconsideração da pessoa jurídica, pela qual,
visando coibir um possível abuso de direito, entravador e
prejudicial à atividade do Estado, o sócio de empresa
dissolvida irregularmente em nome da qual não são
encontrados mais bens passíveis de garantir a satisfação de
seus débitos tributários, ou o que comprovadamente praticou
algum daqueles atos mencionados, passa a ser equiparado
à própria pessoa jurídica que representa, podendo, sem
necessidade de expedição de nova CDA, ser citado e ter seu
patrimônio sujeito ao gravame garantidor do implemento da
referida obrigação. (Grifo nosso) 146
De acordo com o que preceitua o próprio caput do art. 135
do CTN e o que pôde ser observado no acórdão acima, uma das causas que
ensejam a responsabilização do terceiro perante a obrigação da pessoa jurídica,
ou seja, o “redirecionamento” da responsabilidade, é a comprovação de atos
praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou
estatutos” os quais caracterizam o abuso da personalidade ou o desvio de
finalidade, que são pressupostos para a aplicação da teoria da desconsideração,
o que cria a conexão do dispositivo com a teoria.
Essa relação estabelecida entre o art. 135 do CTN com a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser verificada
maciçamente nos julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, conforme
lê-se nas ementas elencadas abaixo:
146
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 2001.004093-0, da
Vara da Fazenda Pública da Comarca de Balneário Camboriú, Florianópolis, SC, 09 de agosto de
2001. Disponível em: www.tj.sc.gov.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
77
TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO
FISCAL. COMPROVADA DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA
EMPRESA.
REDIRECIONAMENTO.
SÓCIO-GERENTE.
Quando a sociedade se extingue irregularmente cabe
responsabilizar
o
sócio-gerente,
permitindo-se
o
redirecionamento. Assim, é dele o ônus de provar não ter
agido com dolo, culpa, fraude ou excesso de poder. (Grifo
nosso)147
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
EXECUÇÃO
FISCAL.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
-
Apenas
em
situações
excepcionais,
em
face
da
importância do princípio da autonomia patrimonial da pessoa
jurídica, é possível a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica, sendo necessária, outrossim, a prova
concreta do desvio de finalidade da empresa. 148
EMBARGOS
À
REDIRECIONAMENTO.
ILEGITIMIDADE
HONORÁRIOS
EXECUÇÃO
ART.
PASSIVA
135,
DO
ADVOCATÍCIOS.
FISCAL.
III,
DO
CTN.
SÓCIO-GERENTE.
[...]
3.
O
mero
inadimplemento do tributo não caracteriza infração legal.
Apenas a atuação das pessoas elencadas nos incisos
do art. 135 do CTN com dolo, excesso de poderes ou
infração à lei, contrato social ou estatutos possibilitaria
o redirecionamento do feito executivo à pessoa do
147
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000172793.2010404.0000, da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, RS, 19 de maio de
2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
148
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000763971.2010.404..0000, da 1ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Porto Alegre, Porto Alegre,
RS, 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
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sócio-gerente.[...]149
Sendo assim, apesar das divergências doutrinárias, a
jurisprudência
mostra-se
convergente
ao
entendimento
de
que
o
redirecionamento da responsabilidade da pessoa jurídica para o terceiro (sócio,
administrador, gerente) disposta no art. 135 do CTN trata-se da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica.
Consoante
aos
acórdãos
citados,
a
titulo
de
complementação, acerca do inadimplemento da obrigação tributária constituir
causa de redirecionamento de responsabilidade ao sócio, vale firmar as palavras
da desembargadora Maria de Fátima Freitas Labarrére, proferidas no teor do
citado agravo de instrumento de nº 0001727-93.2010.404.0000:
A
responsabilidade
tributária
do
sócio
gerente
ou
administrador permite a separação patrimonial e está
expressamente autorizada na norma legal em referência (art.
135 CTN), sendo firme o entendimento jurisprudencial no
sentido de que o simples inadimplemento da obrigação
tributária não é suficiente para caracterizar infração à lei a
que se refere o legislador.
Com efeito, o que pode constituir infração, o que pode levar
o diretor, gerente ou administrador, a tornar-se responsável,
é a causa do não pagamento, mas jamais este próprio efeito,
tomado isoladamente. Então, é preciso que se investigue,
casuisticamente, as razões dessa inadimplência, para
verificar se, entre elas, estariam fatos capazes de serem
149
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação nº 2005.70.09.000967-8, da 2ª
Vara da Fazenda da Comarca de Ponta Grossa, Porto Alegre, RS, 14 de abril de 2010. Disponível
em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
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enquadrados como 'excesso de poderes, infração à lei, ao
contrato social ou aos estatutos'. 150
Desta forma, a partir do texto da desembargadora, nota-se
que o não pagamento das obrigações tributárias não é causa para desconsiderar
a personalidade jurídica da pessoa jurídica para atingir o patrimônio dos sócios.
150
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº 000172793.2010404.0000, da 1ª Vara de Execuções Fiscais da Comarca de Porto Alegre, Porto Alegre,
RS, 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 18 de outubro de 2010.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente monografia buscou analisar o instituto da
desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias, bem
como seus efeitos no âmbito do direito civil, direito do trabalho, direito do
consumidor e direito tributário, através de julgados de distintos tribunais.
Para tanto, no Capítulo I verificou-se a conceituação das
principais categorias que servem de embasamento teórico para compreensão do
instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
A
principal
categoria,
“personalidade
jurídica”,
foi
caracterizada através do entendimento de diversos autores, e pôde-se inferir que
se trata de um conjunto de características gerais – juridicamente determinadas –
que individualizam a pessoa perante seu contexto social, a fim de torná-la apta
para exercer direitos e contrair obrigações.
Partindo do pressuposto de que a personalidade jurídica é
atribuída as pessoas, foi necessária a explanação que há dois tipos de pessoa,
física ou natural (ser humano) e jurídica ou moral (ente fictício).
Em seguida, demonstrou-se o momento da personificação
das pessoas. As físicas adquirem a personalidade a partir do nascimento,
enquanto as jurídicas, através do registro do ato constitutivo.
Sendo a desconsideração das pessoas jurídicas o objeto
deste trabalho, prosseguiu-se a pesquisa com foco nestas, com a distinção entre
pessoa jurídica de direito público e pessoa jurídica de direito privado.
Na sequência foi abordado os tipos de pessoas jurídicas de
direito privado, quais sejam as fundações, associações, partidos políticos,
organizações religiosas e as sociedades.
81
Para encerrar e estreitar o tema, foram diferenciadas as
sociedades simples das sociedades empresárias, as quais foram o prisma da
análise da desconsideração da personalidade jurídica.
No segundo Capítulo foi abordado o contexto histórico da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o surgimento nos tribunais
norte-americanos e alemães, o primeiro caso de decisão judicial por
desconsideração da personalidade jurídica, as formulações dos autores que
foram os precursores da teoria, como Rolf Serick, Piero Verrucoli e Rubens
Requião.
Segundo os referidos autores, a autonomia patrimonial,
gerada pela concessão de personalidade distinta à pessoa jurídica, que a separa
dos membros que a compõe, pode ser utilizada como anteparo de fraudes e atos
contrários ao direito.
Com o intuito de afastar o absolutismo atribuído sobre o
direito de personalidade, a teoria da desconsideração visa penetrar o véu da
personalidade jurídica para atingir e responsabilizar os sócios que agem por meio
da pessoa jurídica.
Acerca da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, o dispositivo mais importante é o artigo 50 do Código Civil, que elucida as
causas para aplicação da desconsideração neste âmbito do direito.
A fim de analisar a aplicabilidade da teoria, buscou-se
conceituar as categorias presentes neste dispositivo, quais sejam o “abuso da
personalidade jurídica”, alcançando as categorias “abuso de direito” e “fraude”;
“desvio de finalidade”; “confusão patrimonial”; “requerimento da parte ou do
Ministério Público”; “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigação
estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios”.
Observou-se a teoria maior objetiva e a teoria maior
subjetiva, além da teoria menor, que tem aplicabilidade no direito do consumidor e
direito do trabalho.
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Abordou-se também a teoria da desconsideração em sentido
inverso, que visa responsabilizar a pessoa jurídica pelos atos dos sócios.
Os aspectos processuais, que elucidam o momento
processual a ser proposta a desconsideração da personalidade jurídica também
foram demonstrados.
Por fim, o Capítulo III analisou a aplicabilidade da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica através da demonstração de julgados
de diferentes tribunais no diversos ramos do direito.
Com essa analise pode-se confirmar que a teoria da
desconsideração constitui instituto com grande divergência, pois no direito civil
necessita restar demonstrado os pressupostos estabelecidos no art. 50 para que
seja concedida a desconsideração.
No direito do trabalho, por sua vez, a simples invocação de
insolvência da pessoa jurídica já constitui causa que admite a desconsideração.
O direito do consumidor visa proteger a vulnerabilidade do
consumidor e por isso há entendimento de que não é necessário estar presente a
fraude, o abuso de direito, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.
Divergências são encontradas também no direito tributário,
pois, uma vez que o artigo 135 do Código Tribunal Nacional prevê
responsabilização direta dos sócios, não estaria se tratando de desconsideração
da personalidade jurídica, visto que a mesma não é obstáculo para atingir o sócio.
No tocante as hipóteses, a primeira não foi confirmada, pois
o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi criado, justamente,
para contrapor o absolutismo do princípio da autonomia patrimonial e atingir os
membros da pessoa jurídica que praticam atos atentatórios ao direito.
A Segunda hipótese, por sua vez, também não restou
confirmada, visto que a aplicabilidade da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica é mutável de acordo com o ramo de direito em questão, ou
83
seja, no direito civil e no direito tributário as causas do artigo 50 precisam estar
necessariamente demonstradas para que seja concedida a desconsideração da
personalidade jurídica. No direito do trabalho, devido à proteção a ser concedida
ao empregado, pressupõe que a simples insolvência da pessoa jurídica já
constitui medida para aplicação da desconsideração. No mesmo sentido segue o
direito do consumidor, que visa proteger o mesmo no mercado de consumo e por
isso admite que não estejam presentes as causas do artigo 50 do Código Civil,
devido a vulnerabilidade do consumidor, mas não é entendimento único e
enfrenta divergência.
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85
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