PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL Prof. Dr. Marcelo Negri Soares São Paulo 2014 Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica Autores: Vanessa Deschauer Franci; 1 Wellington José Paschoalli Filho.2 Área do Direito: Processual Civil e Civil. RESUMO: Este trabalho pretende analisar, ainda que de forma sintética, porém, cuidadosa, a questão envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica. Será tratado o aspecto histórico envolvendo o instituto, as teorias maior e menor aplicáveis na identificação de casos de sua aplicação, além do regramento tratado no Código de Defesa do Consumidor. Por fim, será feita uma análise do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Palavras-chave: desconsideração da personalidade jurídica, histórico, teorias maior e menor, Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. SUMÁRIO:1. Introdução – 2. Histórico - 3. Teorias maior e menor - 4. Desconsideração inversa da personalidade jurídica - 5. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil - 6. Considerações finais - 7. Referências bibliográficas 1 Assistente Jurídico de Desembargador do TJ/SP. Especialização em Direito Público – Escola Paulista da Magistratura do TJ/SP (EPM). Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). 2 Bacharel em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Advogado em atividade. Pós-Graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). p. 1 1. INTRODUÇÃO A desconsideração da personalidade jurídica, como se sabe, é medida excepcional. Por certo, a pessoa jurídica é a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios que visa à obtenção de certas finalidades, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações3. Isto porque, para a realização de algumas atividades, mostra-se necessária a união de várias pessoas, as quais, todavia, têm medo de comprometer todo o seu patrimônio, motivo pelo qual se criou o instituto da pessoa jurídica, ou mais precisamente, as sociedades personificadas, com conduta volitiva e patrimônio próprio. Com o registro civil da pessoa jurídica ter-se-á a aquisição da personalidade jurídica. Tal registro de atos constitutivos dar-se-á no Registro Civil dasPessoas Jurídicas e declarará a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais e as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso (artigo 46 do Código Civil). Contudo, se for verificado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, o que se denomina o abuso da personalidade jurídica, consoante disposição do artigo 50 do Código Civil, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, isto é o que denomina desconsideração da personalidade jurídica – objeto de estudo deste trabalho. 2. HISTÓRICO Com o reconhecimento da personalidade jurídica, o administrador da empresa pode explorar atividade econômica com limitação de prejuízos pessoais, como já foi analisado brevemente acima. Esta possibilidade permitiu uma série de fraudes e abusos de direito. As sociedades contraem, em seu nome, inúmeras obrigações (por exemplo, empréstimo, aquisição de bens imóveis, compra de mercadorias, etc.), não restando, 3 FIÚZA,Ricardo e outros. Novo Código Civil Comentado. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 2 contudo, bens suficientes em seu patrimônio para a solvência das obrigações, ficando os sócios com os ganhos, e o prejuízo com os credores, cuja falência, via de regra, acaba sendo decretada. Assim, a partir do século XIX começaram a surgir preocupações com esta má utilização da pessoa jurídica. Inicialmente, buscaram meios idôneos para reprimi-la, como a teoria da soberania HAUSSMANN e MOSSA, que imputava responsabilidade ao controlador de uma sociedade de capitais por obrigações não cumpridas. A desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se, primeiramente, nos países da Common Law, indicando os doutrinadores a ocorrência do primeiro caso na Inglaterra, denominado Caso Salomon x Salomon Co em 1897, o qual, apesar de ter sido reformado em grau de recurso pela Casa dos Lordes, que prestigiou a autonomia patrimonial da sociedade, aí já estava plantada a semente da "disregard doctrine"4. Nos EUA, o primeiro caso se deu em 1.809. Foi o chamado caso Bank of United States vs. Deveaux, no qual o Juiz Marshall afastou a pessoa jurídica e considerou a característica dos sócios individualmente falando. Com efeito, não se trata propriamente de um leading case, mas apenas de uma primeira manifestação que olhou além da pessoa jurídica e considerou as características individuais dos sócios. Pode-se afirmar, contudo, que foi a partir da jurisprudência anglo-saxônica que se desenvolveu a teoria da desconsideração da pessoa jurídica. No Brasil destaca-se especialmente, o artigo de Rubens Requião publicado em 1969, com o título Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. 3. TEORIAS MAIOR E MENOR A doutrina processualista divide a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em duas teorias, a maior e a menor. Fábio Ulhoa Coelho, nos direciona inicialmente no sentido de que, “a maior é a qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela, e a menor, em que o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, 5ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 35.) A teoria maior está vinculada ao artigo 50 do CC, ou seja, vinculada ao abuso e a fraude: 4 Teoria da desconsideração da personalidade jurídica. p. 3 Art. 50 - Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Ou seja, segundo a teoria maior, para efeito de desconsideração, exige-se o requisito específico do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Veja alguns julgados: TEORIA DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - DISSOLUÇÃO IRREGULAR - "Execução Penhora - Sociedade por cotas - Dissolução irregular Incidência sobre os bens de seu representante legal Admissibilidade. O arresto sobre bem particular de sócio por dívida contraída por empresa que se encontra desativada, sem que respondam pelas obrigações antes assumidas. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica." (2º.TACIVIL - Ap.c/Rev. 433.508 - 9ª.Câm.-Rel.Juiz Claret de Almeida - j.07.06.1995) AASP Ementário 18/95, 1959/3. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - "...A Doutrina do superamento da personalidade jurídica tem por escopo impedir a consumação de abusos e fraudes." (2.ºTACIVIL - 8.ª Câm.; Ag.de Instr. n.º 505.963-0/0Mogi-Guaçu; Rel.Renzo Leonardi; j.18.09.1997) AASP, Ementário, 2037/93. O Ministro Ari Pargendler, em suas teses figurando como Relator, asseverou sobre a teoria maior que: “exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). (REsp 279273/SP, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, Relª p/o Ac. Min. Nancy Andrighi, J. 04.12.2003, DJ 29.03.2004, p. 230). Já a teoria menor, mais fácil de ser aplicada, adotada pelo CDC e pela legislação ambiental, não se exige a demonstração de tal requisito (REsp. 279.273/SP). Mais uma vez aqui, o Ministro Ari Pargendler demonstra com bastante detalhe acerca da teoria menor, explorando o seguinte: “a teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no direito do consumidor e no direito ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão p. 4 patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. Ou seja, para que se proceda a desconsideração da personalidade jurídica da empresa (disregard doctrine) no rumo teórico menor, o traço de requerimento não necessita abarcar a existência de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial, mas que o credor demonstre apenas a insatisfação do não pagamento do crédito feito pelo devedor. 4. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA Neste ponto, traçaremos breves relatos sobre o entendimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Após esclarecidos os principais pontos da disregard doctrine, observamos um outro modo de facilitar a coerção patrimonial a fim de satisfazer a solvência do crédito. Trata-se da possibilidade de se atingir o patrimônio da sociedade empresária (pessoa jurídica), para obstar a prática abusiva de ocultação de patrimônio (da pessoa física que está sofrendo um litígio), ou seja, o devedor neste caso, pratica as fraudes e através do manto da autonomia da pessoa jurídica obsta a prática abusiva através do ente personalizado. O Conselho da Justiça Federal já tratou do referido tema, na formação do enunciado 283 do CJF/STJ que preceitua ser "cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada inversa para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro” (Resp 948.117/MS) Vejamos a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no voto da Ministra Nancy Andrighi: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇAO DE SENTENÇA. PENHORA DE BEM PERTENCENTE À EMPRESA DA QUAL É SÓCIO O EXECUTADO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇAO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. DISREGARD DOCTRINE. I A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracterizase pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. II Considerando-se que a p. 5 finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. III A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, "levantar o véu" da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. IV À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular. VI Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos. (STJ, Processo nº RENº 948.117 - MS (2007/0045262-5, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Publicado em: 22/07/2010) – (grifamos) Logo, claramente possível, a desconsideração da pessoa jurídica para responsabilizá-la pelas obrigações assumidas pelos seus sócios. 5. ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Com efeito, no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (versão do Senado Federal), o tema é tratado na Parte Geral, dentro do Título IV – Das partes e Dos Procuradores, em um capítulo apartado – Capítulo II – denominado “DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA”. O artigo 62 trata do abuso da personalidade jurídica e indica as hipóteses de sua utilização. Veja: Art. 62 - Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica. p. 6 Já o artigo 63 indica que o referido incidente será específico para a questão, processado nos próprios autos e sem pagamento de custas (art. 924, do Anteprojeto), cabendo ao juiz, após o devido processo legal e garantida a ampla defesa, proferir decisão resolvendo a questão, conforme artigos abaixo transcritos: Art. 63 - A desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedimento previsto nesta Seção. Parágrafo único. - O procedimento desta Seção é aplicável também nos casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por parte do sócio. Art. 64 - Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis. Art. 65 - Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento. Essas são as notas principais sobre a desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil projetado. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O instituto da desconsideração da personalidade jurídica já se encontra consolidado no nosso ordenamento jurídico, imprescindível para a prática forense nos Tribunais, e agora terá nova normatização processual, permitindo o seu processamento de forma incidental nas demandas em curso, garantindo a aplicação dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da celeridade e do razoável tempo de duração do processo, além de dirimir dúvidas até então existentes, como a possibilidade do juiz poder ou não agir de ofício para a decretação dessa desconsideração. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto / Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. FIÚZA,Ricardo e outros. Novo Código Civil Comentado. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1ago.2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3104>. Acesso em: 15 out. 2014. p. 7