DIREITO TRIBUTÁRIO E
FINANÇAS PÚBLICAS I
AUTOR: LEONARDO DE ANDRADE COSTA
COLABORAÇÃO: ANA ALICE DE CARLI
GRADUAÇÃO
2012.1
Sumário
Direito Tributário e Finanças Públicas I
AULA 1 – PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA. AS NECESSIDADES PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO. BREVE HISTÓRICO
DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS EM FACE DA EVOLUÇÃO SOCIAL. ...................................................................... 3
AULA 2 – ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO NA FEDERAÇÃO. ..................................................................................... 23
AULA 3 – O ESTADO FINANCEIRO, A REPÚBLICA E O FEDERALISMO FISCAL. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES101. . 40
AULA 4 – O PLANEJAMENTO E AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS (PPA, LDO E LOA) ...................................................................... 55
AULA 5 – OS CRÉDITOS ORÇAMENTÁRIOS E ADICIONAIS ............................................................................................. 83
AULA 6 – A DESPESA PÚBLICA, A EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO E A RESPONSABILIDADE FISCAL. ............................................ 98
AULA 7 – O FINANCIAMENTO DOS GASTOS, AS OPERAÇÕES DE CRÉDITO E A DÍVIDA PÚBLICA EM FACE DO EQUILÍBRIO FISCAL. .. 116
AULA 8 – AS TRANSFERÊNCIAS CONSTITUCIONAIS E A PARTILHA DE RECEITA TRIBUTÁRIA NO FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO.....127
AULA 9 – A RECEITA PÚBLICA NO ÂMBITO DA TEORIA GERAL DOS INGRESSOS PÚBLICOS. ................................................. 146
AULA 10 – O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA. ......................................................... 167
AULA 11 – O PODER DE TRIBUTAR, A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E A CAPACIDADE TRIBUTÁRIA ATIVA ................................. 180
AULA 12 – A PARAFISCALIDADE COMO TÉCNICA ADMINISTRATIVA PARA DESENVOLVER ATIVIDADES
DE INTERESSE PÚBLICO E O TRIBUTO NA CR-88 ...................................................................................................... 210
AULA 13– ASPECTOS ECONÔMICOS DA TRIBUTAÇÃO E OS DIFERENTES SUBSTRATOS DE INCIDÊNCIA: O PATRIMÔNIO,
A RENDA E O CONSUMO..................................................................................................................................... 225
AULA 14 – A POLÍTICA FISCAL E A EXTRAFISCALIDADE: A NECESSÁRIA COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE EFICIÊNCIA ECONÔMICA,
JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E A CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUTOS. ............................................................... 255
AULA 15 – A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA, OS ELEMENTOS E AS DIVERSAS FASES DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA.
O MOMENTO DE FIXAÇÃO DO REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO. .................................................................................... 287
AULA 16 – AS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO PODER DE TRIBUTAR. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS.
A LEGALIDADE E A NECESSÁRIA PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA JUSTIÇA FISCAL. ............ 313
AULA 17– A ISONOMIA E A CAPACIDADE ECONÔMICA DO CONTRIBUINTE. DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DO NÃO CONFISCO. ......... 336
AULA 18 – A IRRETROATIVIDADE, AS ANTERIORIDADES E A LIBERDADE DE TRÁFEGO. ...................................................... 352
AULA 19 – ASPECTOS GERAIS DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS, DA NÃO INCIDÊNCIA E DAS ISENÇÕES. ................................. 368
AULA 20 – A IMUNIDADE RECÍPROCA, DOS TEMPLOS, DOS PARTIDOS POLÍTICOS, DOS SINDICATOS,
DAS ENTIDADES DE EDUCAÇÃO E DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ......................................................................................... 395
AULA 21 – A IMUNIDADE DOS LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E O PAPEL DESTINADO A SUA IMPRESSÃO
E AS DEMAIS VEDAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR ............................................................................ 427
AULA 22 – AS FONTES DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS: A LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA.
A CONSTITUIÇÃO E A EMENDA CONSTITUCIONAL. AS DENOMINADAS “CLÁUSULAS PÉTREAS” ............................................. 447
AULA 23 – AS LEIS COMPLEMENTARES, OS DECRETOS LEGISLATIVOS, OS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS, AS LEIS
ORDINÁRIAS E DELEGADAS, AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E AS RESOLUÇÕES DO CONGRESSO NACIONAL E DO SENADO FEDERAL..........472
AULA 24 – O REGULAMENTO E OS ATOS DO PODER EXECUTIVO COM FORÇA DE LEI MATERIAL. AS DEMAIS NORMAS
COMPLEMENTARES. ......................................................................................................................................... 499
ANEXO – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E EXERCÍCIOS ............................................................................................ 502
AVALIAÇÃO: DUAS PROVAS ESCRITAS (P1 E P2) COM CONSULTA EXCLUSIVA À LEGISLAÇÃO
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 1 – PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA. AS NECESSIDADES
PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO. BREVE
HISTÓRICO DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS EM FACE
DA EVOLUÇÃO SOCIAL.
1.1 PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA
A compreensão de cada parte que compõe o objeto de estudo das Finanças
Públicas1 e do Direito Tributário (juízo deôntico prescritivo do dever-ser),
assim como da interação de seu conjunto e a realidade social (juízo ôntico
descritivo do ser), pressupõe o entendimento de alguns elementos de natureza estruturante da atividade financeira do Estado e bem assim do caráter
multifacetado dos orçamentos, das despesas públicas, dos tributos e das demais receitas públicas não tributárias.
Conforme será visto, esses temas podem ser examinados a partir do ponto
de vista estritamente normativo, do enfoque exclusivamente econômico ou,
ainda, da perspectiva em que o Direito, a Economia e a Política se correlacionam e interpenetram. Destacam-se entre esses elementos, todos essenciais ao
entendimento da matéria e cuja análise efetivar-se-á ao longo do curso:
1. os princípios fundantes do ordenamento jurídico brasileiro voltados para a pulverização e contenção do exercício dos poderes estatais, destacando-se entre eles o sistema de distribuição de funções,
de independência e de harmonia entre os denominados “Poderes”
da República2, assim como a Forma de Estado3 Democrático4 de
Direito, usualmente denominados de Princípios Republicano, Federativo e Democrático, respectivamente, além da Forma e do Sistema de Governo5 implementados;
2. a função de planejamento exercida pelo Estado6 e a sua ligação com
as finanças públicas por meio dos orçamentos,7 instrumentos necessários para a realização da atividade financeira pública;
3. as diversas estratificações, fases e dinâmica dos gastos públicos bem
como das múltiplas fontes para o seu financiamento;
4. os diferentes substratos econômicos8 de incidência de tributos e os
correspondentes eventos juridicamente qualificados pela norma tributária9 a ensejar a instauração da relação jurídica-tributária, isto é,
a interligação entre as denominadas “bases econômicas de tributação” e as correlatas “hipóteses jurídicas de incidência dos tributos”;
5. as múltiplas possibilidades de repercussão econômica dos tributos
sobre os diversos agentes econômicos, os chamados contribuintes
de fato, que arcam com o ônus ou encargo financeiro do tributo
(eg. consumidores finais de bens e serviços, proprietários, locadores,
1
Nos termos em que será examinado
nesta aula, as Finanças Públicas e o
Direito Financeiro possuem o mesmo
objeto de estudo, isto é, a atividade
financeira do Estado. No entanto, a
disciplina jurídica é normativa e eminentemente prática, ao passo que a ciência das finanças é especulativa, não
possuindo caráter disciplinador, pois é
pré-normativa e atinente ao campo da
economia. Não quer dizer, entretanto,
que a ciência jurídica possua um fim
em si mesma e possa ser estudada,
compreendida e aplicada sem a permanente interação com os outros campos
do conhecimento formal e da realidade
que se interpenetram. De fato, a capacidade humana de compreender a
realidade é limitada, o que suscita as
inevitáveis segmentações dos objetos e
relações sob exame e bem assim a criação de modelos simplificados e parciais
para a sua análise.
2
Vide artigo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de
agora em diante simplesmente CR-88,
cujo Título IV intitula-se “Da Organização dos Poderes”. A parte relevante
do tema para o presente estudo será
apresentada na Aula 3 e detalhado na
Aula 4.
3
No caso brasileiro, a adoção da forma
de Estado Federado está expressa, em
especial, nos artigos 1º, 18 e 60, §4º,
I, da CR-88. O Federalismo Fiscal será
introduzido na Aula 2 ocasião em que
será iniciado o estudo do Capítulo II,
do Título VI, da CR-88 (art. 163 a 169),
intitulado “Das Finanças Públicas”. O
exame do atual regime de repartição
de receitas tributárias na Federação
brasileira será aprofundado na Aula 8
e a apresentação do sistema de atribuição de competências tributárias
entre os entes políticos no Brasil será
realizado na Aula 11, ocasião em que
será iniciada a análise do Capítulo I, do
Título VI, da CR-88, denominado “Do
Sistema Tributário Nacional” - art. 145
a 162 da CR-88.
4
O estudo da dinâmica e da ratio subjacente ao processo político democrático
é de fundamental importância para a
compreensão de quais deveriam ser,
sob o ponto de vista teórico, as atribuições de cada um dos denominados
Poderes da República na definição e
execução das políticas públicas a serem
implementadas pelos entes políticos,
assim como o papel do planejamento
e dos orçamentos na sociedade brasileira.
5
Vide art. 2º dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT).
Essa questão é importante, por exemplo, para a compreensão dos possíveis
efeitos sobre o exercício da competência tributária privativa dos entes
políticos subnacionais (Estados, Distrito
Federal e Municípios), na hipótese em
FGV DIREITO RIO
3
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
locatários, industriais, produtores agrícolas, comerciantes, prestadores de serviços em suas diversas modalidades, financeiros, manual
etc.), e que podem ser ou não a mesma pessoa designada em lei
como o sujeito passivo da relação jurídica-tributária (o denominado
contribuinte de direito, que possui o débito com o Fisco e tem o
dever de extinguir o crédito tributário);
6. os limites à atuação do Estado atual em face dos direitos e garantias
do cidadão contribuinte;
7. as fontes da legislação tributária, as diferentes estruturas normativas
de imposição10 e a aplicação da norma jurídica tributária à luz da
indissociável correlação entre o Direito e a Economia.
A necessidade do prévio entendimento desses elementos, que englobam
múltiplas disciplinas, decorre do fato de que as Finanças Públicas e a Tributação são subsistemas tanto do Direito como da Economia, e, ao mesmo
tempo, expressão e resultante de um longo processo de sedimentação Política
e Cultural de determinado povo, localizado em território definido em dado
momento histórico, sob as inevitáveis influências das múltiplas interações
dinâmicas de âmbito local, regional e global.
No entanto, se por um lado existe o requisito do exame multidisciplinar
e interdisciplinar das questões envolvidas, deve-se destacar que as normas
econômicas não possuem caráter impositivo formal por força de sua simples
existência, razão da indispensabilidade da norma jurídica, pois somente esta
reveste a coercitividade muitas vezes necessária à realização e disciplina da atividade financeira estatal e, ao mesmo tempo, pode, também, fixar os limites
e os parâmetros para a atuação do Estado de Direito, reduzindo o risco de
descumprimento11 das “regras do jogo” pelas partes que interagem nas relações financeiras e tributárias.
Cumpre, ainda, ressaltar que o estudo das Finanças Públicas possui caráter expeculativo e abrange toda a atividade financeira do Estado, isto é, os
orçamentos, as despesas, a dívida pública bem como as diferentes formas de
financiamento dos gastos públicos, destacando-se entre elas os tributos, as
receitas decorrentes do patrimônio do próprio Estado e o crédito público.
Destaque-se, entretanto, que, diferentemente do que ocorre com o Direito
Financeiro, o estudo das Finanças Públicas não tem caráter normativo, tendo em vista ter como objetivo precípuo a análise econômica e o estudo dos
possíveis impactos da atividade financeira do Estado.
Já o Direito Tributário, que no passado recente se encontrava formalmente inserido no escopo de estudo do Direito Financeiro, cuida tão somente
do tributo e da relação jurídica tributária. Dessa forma, a disciplina jurídica
dos tributos se ocupa apenas de um subconjunto pertencente ao âmbito da
estrutura da matéria financeira estatal, tendo em vista tratar tão somente de
que os tratados internacionais de natureza tributária firmados pelo presidente da República Federativa do Brasil, o
qual é ao mesmo tempo chefe do Poder
Executivo da União e chefe de Estado –
da República Federativa do Brasil, estabeleçam isenções e benefícios fiscais de
tributos estaduais e municipais. Sobre
o tema importante ressaltar a decisão
do Pleno do Supremo Tribunal Federal
(STF), por unanimidade, no Recurso
Extraordinário (RE) 229.096-0, acórdão
que será examinado na Aula 24.
6
O Estado atua, além do planejamento, que será objeto de estudo na Aula
4, na fiscalização e no incentivo, e
bem assim como agente normativo
e regulador da atividade econômica
(art.174 da CR-88), na prestação de
serviços públicos (art. 175 da CR-88),
na exploração da atividade econômica (art. 173 da CR-88), em regime de
monopólio ou não (art. 177 da CR-88),
no exercício do poder de polícia (art.
78 da Lei nº 5.172/66, norma denominada de Código Tributário Nacional
(CTN) pelo Ato Complementar n 36/67
e recepcionada com status de lei complementar pela CR-88, conforme será
examinado a partir da Aula 8).
7
O Plano Plurianual (PPA), a Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei
Orçamentária Anual (LOA).
8
São três os substratos econômicos de
incidência tributária: o Patrimônio,
a Renda e o Consumo. Ressalte-se,
entretanto, que determinado tributo
formulado e desenhado para atingir
determinada base econômica pode incidir, no mundo real, sobre outro substrato diverso, por força das condições
de mercado ou, ainda, em função das
normas jurídicas aplicáveis ou mesmo
de sua interpretação. A matéria será
inicialmente examinada na Aula 11 e
aprofundada nas Aulas 13 e 17.
9
Na aula 15 será examinada a técnica
adotada pelo Código Tributário Nacional (CTN) sob o ponto de vista jurídico
de incidência para criar a relação e a
obrigação tributária, o que se realiza
pela utilização tanto de situações
de fato como de situações jurídicas
previamente qualificadas pelo ordenamento.
10
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria
da Imposição Tributária. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva. (Coordenador).
Curso de Direito Tributário. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 1. Ensina o eminente
autor: “A imposição tributária, como
decorrência das necessidades do Estado
em gerar recursos para sua manutenção e a dos governos que o administram, é fenômeno que surge no campo
da Economia, sendo reavaliado na área
das Finanças Públicas e normatizado
pela Ciência do Direito. Impossível se
faz o estudo da imposição tributária,
FGV DIREITO RIO
4
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
uma espécie de receita pública coativa de regime jurídico diferenciado. No
entanto, o Direito Tributário desenvolveu-se de tal forma nos últimos 40
anos que a maior parte da doutrina12 aponta no sentido da sua “autonomia”,
ainda que relativa13, haja vista que os tributos gozariam de:
1. autonomia científica – existência de um conjunto de regras, princípios e institutos próprios, inaplicáveis aos outros ramos do direito
(ex: o lançamento para constituir o crédito tributário, o qual será
objeto de estudo nos próximos semestres; os princípios da anterioridade clássica e nonagesimal, a serem estudados na Aula 18 etc.);
2. autonomia normativa – As Constituições de 1946 (art. 5°, XV, b) e
de 196714 (art. 8°, XVII, c) apenas fixavam a competência da União
para legislar sobre normas gerais de Direito Financeiro, o qual se
consubstancia como a disciplina jurídica da atividade financeira,
sem haver menção expressa ao Direito Tributário. A Carta Magna
de 1988, por sua vez, confere status diferenciado ao Direito Tributário. O artigo 24, I, da CR-88 dispõe que compete à União, aos Estados e ao DF legislar concorrentemente sobre Direito Tributário e,
também, Direito Financeiro, de forma apartada e individualizada.
Ainda, o artigo 163, I, e o artigo 146, ambos da CR-88, conferem
à lei complementar a atribuição, respectivamente, para dispor sobre
Finanças Públicas e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária; e
3. autonomia didática – a maioria dos cursos universitários no Brasil
oferecem o curso de Direito Tributário, não sendo abordada a matéria financeira ou apenas examinada tangencialmente.
Em suma, apesar do Direito Financeiro e as Finanças Públicas possuírem
o mesmo objeto de estudo, isto é, a atividade financeira do Estado (AFE),
a primeira disciplina é eminentemente normativa e a outra marcadamente
especulativa. Em sentido análogo, o estudo dos tributos é objeto de exame
tanto do Direito Tributário como da Tributação, apesar do enfoque do primeiro ser jurídico e do segundo ser econômico. Inquestionável, entretanto,
que somente é possível compreender os tributos e a tributação no contexto
das Finanças Públicas em sua interação com a Política, o Direito e a Economia, fenômenos indissociáveis15 e usualmente analisados separadamente por
comodidade ou questões de ordem didática. O quadro abaixo sumariza de
forma esquemática o objeto de estudo do curso bem como a interação entre
as diversas disciplinas mencionadas:
em sua plenitude, se aquele que tiver
de estudá-la não dominar os princípios
fundamentais que regem a Economia
(fato), as Finanças Públicas (valor) e o
Direito (norma), uma vez que pretender
conhecer bem uma das ciências, desconhecendo as demais, é correr o risco de
um exame distorcido, insuficiente e de
resultado, o mais das vezes incorreto.”
11
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1983. Tradução de Gustavo
Bayer. p. 110 e 115. Assevera o autor
que: “a normatização dá continuidade a
uma expectativa, independentemente
do fato de que ela de tempos em tempos venha a ser frustrada. Através da
institucionalização o consenso geral é
suposto, independentemente do fato
de não existir uma aprovação individual (...) O direito não é primariamente
um ordenamento coativo, mas sim um
alívio para as expectativas. O alívio
consiste na disponibilidade de caminhos congruentemente generalizados
para as expectativas, significando uma
eficiente indiferença inofensiva contra
outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco de expectativa
contrafática”. A contenção e os limites
da atuação estatal na seara tributária
serão abordados durante todo o curso,
em especial após a Aula 16.
12
ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual
de Direito Financeiro & Direito Tributário. 15 ed. atual. com alterações no
CTN e ampl. Rio de Janeiro: Renovar,
2001. p.151. “Parece-nos indiscutível a
autonomia do Direito Tributário porque
possui conceitos, princípios e institutos
jurídicos que lhe são próprios e distintos dos demais ramos do direito”. O autor examina detalhadamente a questão
no Capítulo VI, p. 135-162.
13
Amaro, Luciano. Direito Tributário
Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p.1. Cf. ensina o autor:
“Dado o extraordinário desenvolvimento do direito atinente aos tributos, ganhou foros de ‘autonomia’ o conjunto
de princípios e regras que disciplinam
essa parcela da atividade financeira
do Estado, de modo que é possível
falar no direito tributário, como ramo
‘autônomo’da ciência jurídica, segregado do direito financeiro. Veremos, mais
adiante, a relatividade da ‘autonomia’
do direito tributário, a exemplo do que
se dá com os demais ramos do direito.”
14
A redação original do artigo 8°, XVII,
c, da Constituição de 1967 possuía a
seguinte redação: “Art. 8° - Compete
à União: I - (...); XVII – legislar sobre:
a) (...); c) normas gerais de direito
financeiro; de seguro e previdência
social; de defesa e proteção da saúde;
de regime penitenciário”. A alínea “c” foi
alterada pela Emenda Constitucional
n° 1, de 1969, que passou a expressar:
“c) normas gerais sobre orçamen-
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5
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
to, despesa e gestão patrimonial e
financeira de natureza pública; de
direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da
saúde; de regime penitenciário”. Já a
Emenda Constitucional n° 7, de 1977,
que conferiu nova redação ao dispositivo, dispunha: “c) normas gerais
sobre orçamento, despesa e gestão
patrimonial e financeira de natureza pública; taxa judiciária, custas e
emolumentos remuneratórios dos
serviços forenses, de registros públicos e notariais; de direito financeiro;
de seguro e previdência social; de
defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário”. O inciso II e IV, do
citado artigo 24 da atual Carta de 1988,
estabelecem competência legislativa
concorrente dos entes políticos para
legislar sobre “orçamento” e “custas
dos serviços forenses”.
15
1.2 AS FINANÇAS EM SEUS MÚLTIPLOS ASPECTOS
Fixadas essas noções preliminares, torna-se importante salientar o sentido
e o alcance da expressão finanças para melhor compreensão da matéria.
Em sentido comum16, as finanças expressam a situação de uma pessoa
natural ou jurídica, de direito público ou de direito privado, relacionadas aos
recursos econômicos disponíveis.
Os bens e direitos, meios necessários para a satisfação dos mais variados
desejos e objetivos de quem os possui, podem ter diversos graus de liquidez,
ou seja, a pessoa pode dispor desde moeda corrente nacional17 ou estrangeira
até imóveis de difícil alienação, seja em função das exigências legais para a
autorização de sua disposição ou em função de condições de mercado.
Por outro lado, é importante ressaltar a necessidade de que seja também
identificada, para as mesmas pessoas, titulares dos ativos, a existência e o
montante de possíveis obrigações vinculadas a essas disponibilidades, isto é,
se há também obrigações e dívidas assumidas, tendo em vista a relevância de
que seja determinada a posição patrimonial líquida (capital próprio).18
Assim, a determinação da posição econômica e financeira de uma pessoa,
de direito público ou privado, requer: (1) a definição de mecanismos para a
quantificação monetária19 dos ativos e passivos, à exceção daqueles valores
mantidos em caixa ou depositados em instituições financeiras, bem como
dos passivos já expressos em moeda corrente; e (2) de um sistema para a sua
evidência, controle e gerenciamento ao longo do tempo.
Idealmente, o sistema adotado para evidenciar as finanças, públicas ou
privadas, deve compreender grupos de contas que expressem a realidade da
atividade da organização, um regime de registro e contabilização dos atos e
fatos relevantes, bem como demonstrativos financeiros que possibilitem o
Para a compreensão do tema
recomenda-se a revisão da Aula 3 do
Material didático de Direito Constitucional I (2010.2) – intitulada Conceito
de Sistema.
16
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa/ Aurélio
Buarque de Holanda. 3ª ed. totalmente
revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira , 1999. “finanças. A situação
econômica de uma instituição, empresa, governo ou indivíduo, com respeito
aos recursos econômicos disponíveis,
esp. dinheiro, ou ativo líquido; ou condição financeira”.
17
O artigo 48, II, da Constituição da República de 1988 fixa a competência do
Congresso Nacional para dispor sobre
“emissões de curso forçado” e o artigo 315 do Código Civil de 2002 (Lei nº
10.406, de 10.01.2002) estabelece que
“as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente pelo valor nominal” salvo os casos
previstos em legislação especial, a teor
do disposto no artigo 318 do mesmo
CC. Já o artigo 1° da Lei n° 10.192/2001
determina que o pagamento das
obrigações pecuniárias exequíveis no
território nacional deve ser realizado
em real, ressalvadas as exceções previstas na legislação. Nos termos dos
artigos 5° e 42 da Lei n° 8.666/1993,
a qual dispõe sobre as licitações e os
contratos públicos, todos os valores,
preços e custos utilizados em licitações
devem ter como expressão monetária a
moeda corrente nacional, ressalvada a
hipótese de concorrência de âmbito internacional, cujo edital deve ajustar-se
às diretrizes da política monetária e do
comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes.
18
Sob o ponto de vista jurídico Caio Mário da Silva Pereira pontua que “A idéia
de patrimônio não está perfeitamente
aclarada entre os modernos juristas,
FGV DIREITO RIO
6
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
eficiente controle e a gestão da atividade da entidade e, ao mesmo tempo,
aptos a informar adequadamente a situação:
(a) Patrimonial, em determinado momento do tempo, bem como as
suas variações entre períodos determinados (mutações ou variações patrimoniais);
(b) Financeira, propriamente dita, adequada ao gerenciamento de liquidez de curto prazo e do fluxo de caixa necessário ao financiamento
das atividades operacionais correntes e de investimentos, bem como
da estrutura de capital e de solvência de longo prazo; e
(c) Orçamentária, que expresse se foram, e em que grau, atingidas as
metas estabelecidas, além de permitir o gerenciamento das ações
planejadas, tendo em vista que o orçamento moderno (orçamentoprograma) é instrumento essencial de ligação entre o planejamento
das ações e as finanças, permitindo a operacionalização efetiva e
concreta dos planos de trabalho, na medida em que os monetariza,
isto é, quantifica-os em moeda permitindo o estabelecimento de
cronogramas físico-financeiros.
Nesse sentido, cabe salientar que o correto entendimento dos mecanismos de quantificação monetária dos bens, direitos e obrigações, assim como
das respectivas demonstrações financeiras que os evidenciam, é pressuposto à
compreensão das Finanças Públicas e, em especial, de aspectos essenciais da
tributação da renda, que ao lado do consumo e do patrimônio consubstanciam os substratos econômicos de incidência tributária (vide nota 8).
Também é preliminar ao exame da matéria a distinção entre dois modelos
de medidas adotados em análise econômica, denominadas, respectivamente,
(1) stock measure, relacionado ao conceito de estoque, e (2) flow measure, vinculado à quantificação de fluxos. O fluxo é definido ao longo de um período
específico de tempo (por ano, mês, dia etc.), ao passo que o estoque refere-se
a um dado momento no tempo, e não durante e ao longo de um dado período de tempo. Essa análise permite o acompanhamento da execução do que
foi programando, por meio da verificação da execução dos orçamentos, o
que explicita a situação patrimonial e financeira em um dado momento do
tempo e ao longo do período. Assim, em termos gerais e de forma esquemática, visando à compreensão dos elementos constitutivos básicos da análise da
situação patrimonial e financeira de uma organização, pode-se representar o
que se deseja alcançar no momento da seguinte forma:
talvez em razão de não ter o direito
romano fixado com segurança as suas
linhas. Segundo a noção corrente, patrimônio seria o complexo das relações
jurídicas de uma pessoa apreciáveis
economicamente. (...) Daí dizer-se que
o patrimônio não é apenas o conjunto
de bens. (...) Noutros termos, o patrimônio se compõe de um lado positivo
e de outro negativo. A idéia geral é que
a noção jurídica de patrimônio não
importa balancear a situação, e apurar
qual é o preponderante. Por não se terem desprendido desta preocupação de
verificar o ativo, alguns se referem ao
patrimônio líquido, que exprime o saldo positivo, uma subtração dos valores
passivos dos ativos. Ao economista interessa a verificação. Também ao jurista
tem de cogitar dela às vezes, quando
tem de apurar a solvência do devedor,
isto é, a aptidão econômica de resgatar
seus compromissos com os próprios
haveres. Mas, em qualquer hipótese o
patrimônio abraça todo um conjunto
de valores ativos e passivos, sem indagação de uma eventual subtração ou de
um balanço”. In. PEREIRA,Caio Mário da
Silva. Instituições de direito civil. 19ª
ed. Volume I. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2002. p. 245.
19
Princípio Contábil do denominador
comum monetário.
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7
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Ao fluxo de receitas é contraposto o conjunto de despesas do período, o
que permite determinar a situação líquida do patrimônio, ao final do cada
exercício, bem como as variações patrimoniais entre dois momentos determinados no tempo. Cabe ressaltar, entretanto, a possibilidade de existir fluxo financeiro sem impacto no Patrimônio Líquido, o que será examinado durante
o curso. No exemplo, não foi alterada a situação do passivo ao longo do período a fim de facilitar essa análise inicial. Saliente-se, que parte da dificuldade
da gestão e do controle financeiro e patrimonial, público e privado, decorre
do fato de que a despesa ou a receita gerada em determinado exercício – sob
o ponto de vista jurídico ou econômico – nem sempre é realizada financeiramente no mesmo período, podendo ocorrer, portanto, desconexões entre:
(1) o fluxo monetário; e (2) a contabilização do evento que altera a situação
patrimonial líquida.
Nesse sentido, importante frisar que o curso deste semestre se inicia com
esta visão geral da matéria e da Atividade Financeira do Estado ao longo da
história. Até a Aula 10 serão abordados os diversos temas atinentes ao campo
tradicionalmente definido como pertinente ao Direito Financeiro e às Finanças Públicas, tais como o Financiamento dos Gastos e a Receita Pública no
âmbito da Teoria Geral dos Ingressos Públicos, a Despesa Pública, a Responsabilidade Fiscal, os Orçamentos (a Lei do Orçamento Anual – LOA, a Lei do
Plano Plurianual – PPA e a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO), o Controle da Execução Orçamentária, a Dívida Pública e o sistema de Repartição
Constitucional de Receitas Tributárias. Uma vez apresentados os elementos
que compõem o campo financeiro e bem assim o delineamento do perfil do
Federalismo Fiscal brasileiro e do sistema de repartição de funções entre os
denominados Poderes da República, a partir da Aula 11, com o estudo do
FGV DIREITO RIO
8
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Poder de Tributar e da Competência Tributária, será iniciado o estudo específico da Tributação e do Direito Tributário em seus aspectos estruturais, o que
envolve o exame da Parafiscalidade, dos substratos econômicos de incidência,
da Extrafiscalidade e da formação da relação jurídica-tributária. Na aula 16
é iniciado o estudo das denominadas limitações constitucionais ao Poder de
Tributar, o que pressupõe a distinção entre os institutos da isenção, da não
incidência e das imunidades tributárias. De fato, ao lado dos diversos princípios que visam proteger o contribuinte, as imunidades consubstanciam, de
acordo com a linguagem constitucional, limitações constitucionais ao Poder
de Tributar. Por fim, será examinado o conceito de legislação tributária e as
suas diversas espécies, considerando a necessidade de estudar a sua aplicação
no espaço e no tempo, matéria que será aprofundada nos próximos semestres
– Direito Tributário e Finanças Públicas II e III.
1.3 AS NECESSIDADES PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO.
Os indivíduos possuem interesses e demandas variadas, as quais, em seu
conjunto, formam o que se denomina de necessidades gerais ou sociais20.
Nesse sentido, as demandas coletivas seriam a resultante abstrata do somatório das necessidades individuais. O Estado, entretanto, considerando, por
um lado, a limitação21 dos recursos disponíveis (naturais, humanos, tecnológicos, financeiros etc.), e, por outro, as demandas individuais e sociais infinitas, elege, por meio do processo político, que varia de forma e conteúdo
no tempo e no espaço, aquelas para as quais alocará esforços visando ao seu
atendimento: são as chamadas necessidades públicas. Assim, uma vez fixado
normativamente o dever do Estado em realizar apenas algumas demandas
coletivas politicamente determinadas – as políticas públicas-, o que ocorre
modernamente por meio dos orçamentos, conforme será estudado nas próximas aulas, as mesmas se convolam e transmudam em necessidades públicas,
a serem satisfeitas por meio dos serviços públicos, os quais se qualificam
como o conjunto de bens e pessoas sob a responsabilidade do Estado. Os serviços públicos, que são instrumentos do Estado para o alcance dos fins a que
se propõe, se realizam, atualmente, quase que exclusivamente, por meio da
utilização da atividade financeira do Estado. Nesse sentido ensina Aliomar
Baleeiro22 que:
se, em tempos remotos, foi usual, e hoje, excepcionalmente, ainda se verifica
a requisição pura e simples daquelas coisas e serviços dos súditos, ou a colaboração gratuita e honorífica destes nas funções governamentais em verdade, na
fase contemporânea, o Estado costuma pagar com dinheiro os bens e o trabalho
necessários ao desempenho da sua missão. É o processo da despesa pública, que
20
Fábio Nadal e Marcio Cozatti apontam
no sentido de que “a necessidade pública não se confunde com necessidade
individual (cujo grupamento dá lugar
às necessidades gerais que são, por excelência, homogêneas) e necessidade
coletiva (não revestida de homogeneidade e que surge da contraposição de
interesses)”. NADAL, Fábio e COZATTI,
Márcio Faria. Direito Financeiro simplificado para concursos públicos.
São Paulo: Impactus, 2008. p. 19.
21
Importante salientar a existência da
denominada reserva do possível, adotada pela jurisprudência alemã, princípio
associado à constatação de que todos
os direitos têm custo e que os recursos
públicos são limitados, razão pela qual
haverá sempre e em qualquer circunstância a necessidade de escolha entre
o que será e o que não será realizado
pelo Poder Público. SCHWABE, Jürgen
(Organizador). Cinqüenta Anos de
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução
Leonardo Martins e outros. Montivideo:
Fundação Konrad Adenauer, 2005. p.
660-664.BVERFGE 33, 303. De fato, a
própria Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, denominado Pacto
de San José da Costa Rica, aprovada no
Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de
25.09.1992 e promulgada pelo Decreto
678, de 06.11.1992, estabelece em seu
art. 26, intitulado “desenvolvimento
progressivo”, que: “os Estados partes
comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como
mediante cooperação internacional,
especialmente econômica, a fim de
conseguir progressivamente a plena
efetividade dos direitos que decorrem
das normas econômicas, sociais e sobre
educação, ciência e cultura, constantes
da Carta da Organização dos Estados
Americanos, reformada pelo Protocolo
de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou
por outros meios apropriados.”
22
BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução
à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. p. 3-4.
FGV DIREITO RIO
9
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
substitui, com vantagem, o da requisição, o da gratuidade de cargos, o do apossamento dos cabedais dos inimigos vencidos, embora de tudo isso ainda perdurem resquícios, notadamente em tempo de guerra. A regra, hoje, é o pagamento
em moeda e, por isso, constitui atividade financeira a que o Estado, as províncias
e municípios exercem para obter dinheiro e aplicá-lo ao pagamento de indivíduos e coisas utilizadas na criação e manutenção de vários serviços públicos.
No atual contexto brasileiro, de determinação pelo processo político democrático das denominadas necessidades públicas, a serem atendidas pelo
insubstituível instrumento da atividade financeira do Estado moderno, é importante destacar que o poder constituinte originário definiu ser objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil23: “construir uma sociedade
livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Para alcançar tais mandamentos constitucionais, o poder público disciplina as relações econômicas
e sociais, planeja e executa uma série de ações, entre as quais se destaca a
política macroeconômica, cujos objetivos, correlatos àqueles fundamentais
constitucionalmente qualificados, podem ser sumarizados como: (a) a busca
de alto nível de emprego; (b) a estabilidade de preços; (c) a distribuição equitativa da renda; e (d) o crescimento econômico. Os principais instrumentos
utilizados na condução da política macroeconômica para atingir esses fins
são “as políticas fiscal, monetária, cambial e comercial, e de rendas”24, todas
integrantes da denominada atividade financeira do Estado, caso adotado um
conceito amplo25 para o termo. De fato, inquestionável a relevância e a interpenetração de cada uma dessas políticas econômicas, em especial para atingir
consistência e coordenação entre as políticas públicas que ensejam as despesas do governo e as metas macroeconômicas, matéria cujo exame detalhado
extrapola o objeto deste curso. Nessa toada, serão abordados nesse semestre
apenas os aspectos mais relevantes dessas questões, na medida em que o estudo dos instrumentos diretamente relacionados (1) à obtenção das receitas e
financiamento dos gastos, (2) à realização das despesas, (3) ao planejamento
orçamentário e à gestão fiscal e patrimonial do Poder Público suscitem uma
análise mais detalhada dos aspectos macroeconômicos que se imbricam. Assim, pode-se representar graficamente o objeto de estudo das próximas aulas
pela figura que se segue:
23
Art. 3º I, II, III e IV da CR-88.
24
VASCONCELLOS, Marco Antonio S. e
GARCIA, Manuel E. Fundamentos de
Economia. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 91.
25
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de
Direito Financeiro e Tributário. 11ª
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.
7. Assevera o autor que: “A expressão
atividade financeira tem a mesma
extensão do termo “finanças” que, surgindo na Idade Média por derivação da
palavra finare, é sinônimo de finanças
públicas, e não se aplica às finanças
privadas.”
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10
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Nessa mesma linha de pensamento, Kyoshi Harada26 conceitua a “atividade financeira do Estado como sendo a atuação estatal voltada para obter, gerir
e aplicar os recursos necessários à consecução das finalidades do Estado que,
em última análise, se resumem na realização do bem comum” (grifo nosso).
Aliomar Baleeiro27, por sua vez, adotando conceito mais amplo, define
que a “atividade financeira consiste em obter, criar, gerir e despender o dinheiro indispensável às necessidades, cuja satisfação o Estado assumiu ou
cometeu àqueloutras pessoas de direito público” (grifo nosso). De fato, a
própria CR-88 estabelece a competência da União para emitir moeda, atribuição a ser exercida exclusivamente por meio do Banco Central, em seu
artigo 164, dispositivo inserido no Capítulo II, do Título VI, da CR-88, intitulado “Das Finanças Públicas”. Dessa forma, tanto o eminente autor como a
Constituição incluem a política monetária diretamente no escopo da análise
da atividade financeira do Estado, o que será realizado neste curso apenas de
forma tangencial.
Pode-se concluir pelo que foi até aqui exposto, que a atividade financeira
é meramente instrumental, na medida em que apenas viabiliza a consecução
das políticas públicas, as quais traduzem os objetivos estatais fixados pelo
processo político (ex: educação, saúde, segurança pública, transporte etc.).
Portanto, a atividade finanaceira não constitui uma finalidade do Estado tendo em vista não possuir um fim em si mesma.
Assim sendo, sob o ponto de vista jurídico, o objeto de estudo do semestre
será a Constituição Financeira, a qual, segundo a melhor doutrina, é composta pelas Constituições Tributária, Orçamentária e Monetária28 (artigos 145 a
169 da CR-88), além dos dispositivos pertinentes à fiscalização orçamentária
dos Municípios (artigo 31 da CR-88); ao controle interno, externo e social
da execução orçamentária e da Administração Pública (artigos 70 e seguintes
da CR-88), ao orçamento do Poder Legislativo (artigos 51, IV, e 52, XIII, da
26
HARADA, Hiyoshi, Direito Financeiro
e Tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas,
2008. p. 4.
27
BALEEIRO. Op. Cit., p. 4.
28
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Volume V. O Orçamento na
Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.1.
Identifica o autor que: a “Constituição
Orçamentária é um dos subsistemas
da Constituição Financeira, ao lado da
Constituição Tributária e da Monetária,
sendo uma das Subconstituições que
compõem o quadro maior da Constituição de Estado de Direito, em equilíbrio
e harmonia com outros subsistemas,
especialmente a Constituição Econômica e a Política”
FGV DIREITO RIO
11
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
CR-88), do Poder Judiciário (artigo 99) e do Ministério Público (artigo 127).
Antes, porém, serão examinados, de forma sucinta, os principais períodos e
características mais relevantes da história dos tributos e das finanças públicas,
o que certamente auxiliará a compreensão da realidade e o atual estágio de
desenvolvimento da matéria.
1.4 BREVE HISTÓRICO DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS.
A leitura de diversos episódios marcantes em todo o curso da história
da humanidade revela uma verdade inquestionável, independentemente do
lugar objeto da pesquisa, os tributos as finanças públicas sempre tiveram e
continuam a ter influência determinante no curso das civilizações.
A primeira civilização de que se tem conhecimento29 concreto, cerca de
seis mil anos atrás, era denominada Sumer, uma localidade entre os rios Tigre
e Eufrates, no que hoje é o Iraque. Os acontecimentos históricos lá ocorridos
revelam a grande influência dos tributos já naquela época, e estão gravados
em hieróglifos encontrados em escavações em Lagash, localizado em Sumer.
Após um período de incidência tributária de forma generalizada e bastante
gravosa, um rei, chamado Urukagina, determinou a “liberdade”, por meio da
extinção dos coletores do rei. O que parecia ser a solução de todos os problemas ensejou um final amargo para o bondoso monarca e àqueles até então
submetidos à tirania fiscal: a localidade, após alcançada a almejada “liberdade”, foi totalmente destruída por invasores externos.
Abaixo, reproduz-se a figura (extraída do livro de Charles Adams, p. 2,
vide nota 21) contendo os símbolos que registraram e informam a existência
da lei libertadora de Urikagina.
29
ADAMS, Charles. For good and evil:
the impact of taxes on the course
of civilization. 2nd ed. United States:
Madison Books, 2001. p. 1-2. Revela o
autor: “Taxes are the fuel that makes
civilization run. There is no known
civilizations that did not tax. The first
civilization we know anything about
began six thousand years ago in Sumer, a fertile plain between the Tigris
and Euphrates rivers in modern Iraq.
The dawn of history, and tax history,
is recorded on clay cones excavated at
Lagash, in Sumer. The people of Lagash
instituted heavy taxation during a terrible war, but when the war ended, the
tax men refused to give up their taxing
powers. From one end of the land to
the other, these clay cones say, ‘there
were the tax collectors.’ Everything
was taxed. Even the dead could not
be buried unless a tax was paid. The
story ends when a good king named
Urukagina, ‘established the freedom’ of
the people, and once again, ‘There were
no tax collectors’. This may not have
been a wise policy, because shortly
thereafter the city was destroyed by
foreign invaders. There is a proverb
about taxes on other clay tablets from
this lost civilization which reads: You
can have a Lord, you can have a King,
but the man to fear is the tax collectors”
(grifo nosso).
FGV DIREITO RIO
12
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Esse exemplo reflete um problema crucial, a necessidade de recursos para
implementação de uma organização mínima e de proteção contra invasores
– questão que, mesmo após a criação dos denominados Estados-Nações Absolutistas continuou a se fazer presente.
Já na civilização egípcia, caracterizada por sua longevidade30, em contraponto à experiência libertária ocorrida em Lagash, era possível identificar,
após o descobrimento de escritos e desenhos dentro de pirâmides e tumbas
milenares, a existência de períodos de forte “pressão” de fiscais dos faraós
para garantir-lhes o recebimento da parcela de 20% (vinte por cento) a eles
pertencentes. Constata-se por meio de figuras e escritos milenares que nada
era ocultado, nem mesmos os ovos sob as aves.
Por sua vez, o grande jurista Marcus Tullius Cícero31 (106 – 43 a.C) difundiu no Império Romano a ideia grega contra os chamados tributos diretos,
nos seguintes termos, um ano antes de sua morte (44 a.C):
When constant wars made the Roman treasury run short, our forefathers often used to levy a property tax. Every effort must be made to prevent a repetition
of this; and all possible precaution must be taken to ensure that such a step will
never be needed … But if any government should find itself under necessity of
levying a tax on property, the utmost care has to be devoted to making it clear
30
ADAMS. Op. Cit. p. 5. Destaca o autor
que: “Egyptian civilizatian was highlighted by its enduring length. An advanced form of civilized life was in full bloom
along the Nile before 3000 b.c., and it
perpetuated itself until the fall of Rome”.
31
CICERO, Marcus Tullius. On Duties II.
In: Cícero. On the Good life. Tradução
Michael Grant . New York: Penguin
Classics, 1971. p. 162. Disponível em:
http://books.google.com.br. Pesquisa
realizada em 01.01.2009.
FGV DIREITO RIO
13
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
to the entire population that this simply has to be done because no alternative
exists short o complete national collapse.
Cabe salientar, entretanto, que o Império Romano é um exemplo clássico de
como a exigência de tributos com fundamento apenas na força, sem referência
ao valor justiça, transforma o direito de propriedade em um sistema de servidões sobre o homem, conforme assevera o professor Diogo Leite Campos32:
Eis, pois, o legado de Roma em matéria fiscal: o imposto como produto e
instrumento da opressão, crescendo à medida que se desenvolve a máquina político-administrativa; assente na força pura, sem referência à justiça. O imposto
‘nasceu’ em Roma caracterizado pela odiositas, fundado sobre a sua essência de
mal necessário, de limitação do Direito pela força do ‘princeps’, de instrumento
de dominação, ‘de império’. Enquanto as relações civis retiravam a sua força da
justiça que realizavam como instrumento de cooperação entre homens livres e
iguais. O carácter do imposto como produto e instrumento de um sistema de
dominação foi evidente desde a grave crise do que o Império Romano atravessou
a partir do século III. No decurso do principado de Diocleciano a economia e
a sociedade são organizadas em termos de acampamento militar. O imperador
estabelece a coacção como único instrumento de estabilização. Impõe-se uma escala de preços máximos para uma imensa lista de bens e serviços, estabelecendo
como única sanção, para infractores, a morte. Simultaneamente, os impostos,
destinados a manter uma máquina administrativa e militar crescente, aumentaram rapidamente. Criou-se um conjunto de impostos para financiar o aparelho
administrativo e militar; um imposto geral sobre as vendas; um imposto sobre
o rendimento; múltiplas prestações de serviços obrigatórias (transporte, fabrico de pão etc.). As atividades profissionais foram organizadas em corporações,
elementos e instrumentos do Estado, com carácter coactivo e hereditário. Na
última fase da sua história, a romanidade transforma-se numa comunidade em
que todos trabalham, mas ninguém para si próprio. A propriedade mantém-se, é
certo, como o ‘fundamento inamovível das relações humanas’; mas a sua função
deixou de ser ligada ‘naturalmente’ à satisfação das necessidades de seu titular,
para satisfazer os interesses públicos.
Dando um salto na cronologia da história, outro momento merece destaque na abordagem que se estabelece neste curso é o século XIII d.C., o qual,
para alguns autores33, representa o início da sistemática tributária que se consagra na atualidade, uma vez que foi a partir da promulgação da Carta Magna inglesa de 121534 que a legalidade ascendeu como princípio norteador
das relações tributárias, impondo ao Rei João-sem-Terra o dever de observar
limites para a criação de tributos. Na realidade, tal documento35 é decorrência da indignação dos barões proprietários de terras que forçaram King
32
CAMPOS, Diogo Leite de. A Jurisdicização dos Impostos: Garantias de Terceira Geração. In: MARTINS, Ives Gandra
da Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo:
Editora Forense, 2007, p. 87-88.
33
GALVÊAS, Ernani. Breve História dos
Tributos. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo:
Editora Forense, 2007, p. 318.
34
ADAMS. Op. Cit. p. 164. Um dos capítulos da Magna Carta trata da livre
circulação de mercadorias, conforme
se extrai do texto, in verbis: “Let all
merchants have safety and security to
go out of England, to come into England,
and to remain in and go about through
England, as well by land as by water, for
the purpose of buying and selling, without payment of any evil or injust tolls,
on payment of ancient and just customs”.
Conforme aponta o autor tal normativa
foi seguida pelos Estados Unidos e Canadá: “the United States and Canadian
constitutions adopted this principle of
internal free trade. Commerce moving
within the nation cannot be taxed. Freedom to travel in and out the country
cannot be curtailed. The Russians find
difficult to understand why the West emphasizes this basic human right. Magna
Carta is the source.”
35
Cf. pontua Ana Alice De Carli, in: Bem
de Família do Fiador e o Direito Humano Fundamental à Moradia. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009: “Na
seara da promoção e positivação dos direitos humanos, pode-se apontar como
marco histórico, a Carta Magna inglesa,
de 1215, a qual consagrou alguns direitos-garantias como o habeas corpus, o
devido processo legal, a propriedade
privada, e o princípio da legalidade.
Não obstante, a questionável legitimidade da referida Constituição - pois,
na verdade, consubstanciou apenas a
concretização dos interesses da burguesia -, ela representa um capítulo da
história do constitucionalismo inglês.”.
Cumpre, realçar, que o princípio da legalidade tributária antecede a própria
noção de legalidade em sentido lato.
FGV DIREITO RIO
14
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
John a assinar a Magna Carta, pois já não concordavam com os constantes
desrespeitos do monarca aos costumes tributários da realeza impondo-lhes
excessiva carga tributária. De fato, tributação adicional somente poderia ser
exigida com consentimento36, cujo conceito foi se alterando e expandindo ao
longo do tempo, haja vista que a anuência da classe comum então ascendente
economicamente passou também a ser exigida.
No mesmo período, isto é, ainda no século XIII, conforme ressalta Galvêas37, o rei Eduardo I foi compelido a ir além e aceitar a norma segundo a qual
“nenhum tributo poderá ser lançado pelo rei, sem o consentimento dos arcebispos, bispos, condes, barões, cavaleiros, burgueses e todos os homens livres...”.
Alguns séculos depois, já no ano de 1628, a Inglaterra edita o Bill of Rights, o qual proclama que “a partir desta data, nenhum cidadão será obrigado
a conceder qualquer dádiva ou empréstimo ao soberano, ou a pagar qualquer
tributo, sem a aprovação do Parlamento”; ou seja, concretizou-se o princípio
da legalidade consubstanciado no imperativo categórico no taxation without
representation (aliás, tal expressão foi largamente difundida pelos americanos
no período da revolução americana). Conforme preleciona Galvêas38 a referida norma-princípio é a base em que se fundam os orçamentos públicos
dos países modernos. Destaque-se, no entanto, nos termos apontados pelo
professor Ricardo Lobo Torres39 que:
É inútil procurar antes das revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII a
figura do orçamento. No mundo patrimonial já surgia a autorização dos estamentos e das cortes para a cobrança de impostos. Na Inglaterra a partir de 1215
e em Portugal, mas remotamente, tornava-se necessário o consentimento para
que o Rei pudesse lançar tributos, que tinha o caráter extraordinário e só se justificavam quando insuficientes os ingressos dominiais. Mas esses impostos, a rigor,
não se confundem com os que permanentemente passam a ser cobrados a partir da instauração da estrutura liberal de Governo, posto que eram apropriados
privadamente, sem a nota da publicidade que marca os tributos permanentes.
Era difícil distinguir a Fazenda do Rei e a do Estado, as despesas do Rei e do
Reino, as rendas da Coroa e do Reino. Assim sendo, não havia necessidade nem
de autorização para a cobrança dos ingressos dominiais nem para a realização
da despesa, pelo que descabe cogitar de orçamento no Estado Patrimonial.
(grifo nosso)
Portanto, o período denominado de Patrimonialismo é caracterizado pelo
Estado protetor contra as guerras e invasões externas, sendo as finanças fundamentadas em rendas patrimoniais e dominiais dos príncipes bem como
da exploração das colônias. A receita extrapatrimonial de tributos nesse período é secundária e excepcional, não havendo a necessidade de autorização
parlamentar para a sua efetivação, tampouco para a realização das despesas,
36
ADAMS. Op. Cit., p. 163. Esclarece o
autor que: “John’s attempt to stretch
the revenue devices of the realm had
failed, but not entirely. Extra taxation
could be collected with consent. In time
the consent concept expanded. A rising
class of wealthy commoners were called to meet in a House of Commons, to
approve taxation for commoners in the
same way the Great Council, approved
taxation for the nobility. The king now
became a politician. When extra revenue
was needed, he did not need to steal it
or arbitrarily increase taxation, he would
call together his two councils of taxpayer
representatives and present a case for
more taxation.”
37
GALVÊAS. Op. Cit., 318.
38
Idem. Ibidem. p. 318-319.
39
TORRES. Op. Cit. p. 3-4.
FGV DIREITO RIO
15
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
motivo pelo qual não existia orçamento sequer em sua concepção tradicional,
confundindo-se e entrelaçando-se as finanças do Rei e a do Estado.
O século XVIII, por sua vez, foi marcado pela independência americana
e pela revolução francesa, a qual proclama a proteção de alguns direitos humanos fundamentais – em especial a propriedade e a liberdade –, uma vez
que o Estado era visto como “inimigo da liberdade individual, e qualquer
restrição ao individual em favor do coletivo era tida como ilegítima”, preleciona Dallari.40
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da America, de 4 de
julho de 1776, proclama entre as razões da insatisfação com o King of Great
Britain: “For imposing taxes on us without our consent”. A Constituição dos
Estados Unidos, por sua vez, ratificada em julho de 1787, estabelece em seu
artigo 1º, seção 8, que:
The Congress shall have the Power 1. to lay and collect taxes, duties, imposts and excises, to pay the debts and provide common defense and general
welfare of the United States; but all duties, imposts and excises shall be uniform
throughout the United States. (grifo nosso)
Na mesma linha, a Constituição francesa de 03.09.1791 foi categórica na
contenção da prerrogativa impositiva, tendo em vista a necessidade de renovação anual da autorização parlamentar para tributar:
Titre V, art. 1 er: Les contributions publiques seront délibérées et fixées chaque
année par le Corps Legislatif, et ne pourront subsister au dela du dernier jour de La
session suivante, si elles n’ont pás été expressément renouvelée.
Se com o constitucionalismo nasce a idéia de orçamento incorporando as
garantias normativas da liberdade, por outro lado a marca do período era a
intervenção mínima do Estado na seara privada, apontando a liberdade contratual como um direito natural das pessoas. Com efeito, o pensador Adam
Smith sustentava que as relações econômicas deveriam ser regidas pelo princípio da liberdade de negociar, sem a participação do Estado. Era a denominada fase do Estado Liberal – caracterizado como Estado Mínimo ou Estado
de Polícia –, cuja premissa sob o aspecto econômico era por alguns denominada como a primazia da mão invisível do mercado para reger a economia.
A Revolução Industrial também merece realce, porquanto trouxe mudanças de diversas ordens, inclusive no campo da tributação, possibilitando a
imposição de tributos sobre a produção industrial, sobre o consumo, bem
como sobre o lucro e a renda auferida dos titulares de propriedade, acentua Galvêas41.
40
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16. ed.
atual. ampl. São Paulo: Editora Saraiva,
1991. p. 233.
41
Ver GALVÊAS. Op. Cit., 318-320.
FGV DIREITO RIO
16
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A visão clássica e mais difundida desse contexto, que perdura desde a fase
final do século XVIII, todo o século XIX até o início do século XX, é no sentido de que a atividade financeira do Estado Liberal era neutra, geralmente
classificada como finanças neutras ou fiscais42, pois tinha apenas a função de
arrecadar para fazer face às despesas decorrentes das prestações por ele exercidas, de caráter essencial, como as relacionadas à justiça, política, diplomacia,
defesa contra agressão externa e segurança da ordem interna. Os tributos,
conforme assevera Luiz Emygdio F. da Rosa Jr43, também eram caracterizados
pelo fim exclusivamente fiscal, posto que a exigência dos mesmos objetivaria
tão-somente a obtenção de recursos para financiar a atividade financeira.
Assim sendo, a atividade financeira exercida pelo Estado somente visava à
obtenção de numerário para fazer face às citadas despesas públicas, isto é, as finanças públicas tinham finalidades exclusivamente fiscais. Gaston Jéze resumiu
de maneira lapidar o alcance da atividade financeira desenvolvida pelo Estado no
período clássico, ao enunciar: ‘Il y a dês dépenses publiques; Il faut lês couvrir’.
Assim, as despesas tinham um tratamento preferencial sobre as receitas, uma vez
que essas visavam apenas a possibilitar a satisfação dos gastos públicos. Nesse período, portanto, o tributo tinha fim exclusivamente fiscal porque visava apenas
a carrear recursos para os cofres do Estado.
Percebe-se que a expressão fiscalidade é utilizada em dois âmbitos e contextos distintos, isto é, tanto no que se refere ao papel das finanças públicas
ao longo da história como também em relação às possíveis funções do tributo, que é atualmente, na maioria dos países, a principal fonte de receita pública. Sob o ponto de vista histórico das finanças públicas em geral, referida
doutrina traz vantagens para a compreensão da evolução do papel da atividade financeira do Estado sobre as ordens econômica e social ao longo dos
diferentes períodos, enfatizando características que seriam distintas em cada
época. É possível vislumbrar alguns pontos positivos na aludida segmentação
sob o ponto de vista didático, haja vista marcar de forma clara e precisa, em
períodos cronologicamente distintos (1) a fiscalidade – finanças neutras e
tributos somente com finalidade arrecadatória – de um lado; e a (2) extrafiscalidade e a parafiscalidade – finanças ativas e os tributos com finalidade não
apenas arrecadatória, a partir da segunda década do século XX-. No entanto,
apesar dessa vantagem pontual, conforme será examinado abaixo, o estudo
de determinados fatos isolados da história nos permite afirmar que a dissociação temporal entre a fiscalidade de um lado e a extrafiscalidade de outro
apenas facilita a compreensão da ênfase da intenção com que os tributos
foram utilizados em cada período da história, na medida em que os mesmos
também foram exigidos com outros objetivos que não meramente arrecadatórios em diversos momentos antecedentes ao denominado Estado de Bem-
42
SILVA, De Plácido e. Vocabulário
Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense.
Rio de Janeiro, 2002. p. 361. “Fiscal.
Derivado do latim, de fiscus, é vocábulo que nos vem do Direito Romano
com a significação de relativo ao fisco
ou ligado ao fisco, em que continua a
ser tido, tomado adjetivamente. Como
substantivo, designa a pessoa a quem
se comete a função ou atribuição de
vigiar ou zelar o cumprimento ou a execução de certas leis, preceitos ou regulamentos de ordem fiscal ou tributária,
ou empenhar-se pelo cumprimento de
regras jurídicas e disciplinares em certos estabelecimentos públicos ou particulares, e para manter a regularidade
na exação de certos atos de negócios,
que devem ser executados ou praticados por outrem”.
43
ROSA JR. Luiz Emygdio F. da. Manual
de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2001, p. 4-5.
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17
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
estar Social intervencionista, ou seja, de forma não neutra ou com fins outros
que não meramente “fiscais”, ainda que não qualificada a política tributária
com a denominação referida (“extrafiscalidade” ou “parafiscalidade”). Nesse
sentido apresenta Adams44 diversos exemplos históricos, dentre os quais duas
passagens emblemáticas, e que se referem, respectivamente: (1) à utilização
de tributos para influenciar a religião, como no caso do islamismo na Idade
Média e, também, (2) das tarifas aduaneiras e o conflito Norte e Sul que marca a confederação americana no período que antecedeu a guerra civil:
(1) The humanity in the tax policy of the Moslems was of utmost importance. The Arabs brought peace and gentleness to an overtaxed world. They
liberated the old Roman world from decadent, oppressive, and corrupt taxation.
Nothing illustrates better than the tax refunds they made to Christians and Jews
in Palestine in A.D. 636. At that time the Moslems had conquered most of the
lands of Judea, but their forces were overextended, and large body of Roman
troops was on the march from Antioch. At a war council the Moslems decided
to evacuate most of the conquered territories. After this decision made the Moslem leader called in the chief tax collector and gave him these instructions: ‘ You
should therefore refund the entire amount of money realized from them that our
relations with them remains unchanged but that as we are not in a position to
hold ourselves responsible for their safety, the pool tax, which is nothing but the
price of protection, is reimbursed to them’. Accordingly, the entire sum collected
from the Christian and Jewish communities was refunded to them. This affected
the Christians to such a degree that tears trickled down their faces and, one and
all, they passionately exclaimed: ‘May God bring you back to us.’ The effect on
the Jews was still more marked. They cried out with vehemence: ‘By the law ant
the prophets, the Roman emperor shall not take this city as long as the spark
of life scintillates in our bodies’. It’s too bad the Jews and Moslems today don’t
feel that way. The Moslems used taxation to bring converts into the faith. The
spread of Islam has been attributed to the sword and many historians harp on
the Moslem cry of ‘Death to the infidel. The Koran (9:29) certainly justifies that
course of action. In practice, the Moslems acted to the contrary. Slaughter was
not the normal modus operandi of even the most fanatical Moslems. Vanquished people were given three choices: death, taxes, or conversion to the faith.
With these options it was not necessary for conquered people to lose their heads
or their religion. (…)
(2) The tariff of 1828 was called ‘the tariff of abomination,’ a biblical term
meaning the greatest evil. Prior to that time the tariff was needed to repay the
national debt from the wars of 1812 and the revolution itself. By 1832 the national debt was paid and there was no justification for the import taxes at high
rates, except to promote a monopoly in the hands of Northern industrialists to
raise prices for Southern consumers. The South exported about three-quarters
of its goods and in turn used the money to buy European goods which carried
44
ADAMS. Op. Cit., (1) p. 133-134 e (2)
p.333.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
the high import tax. This means that the South paid about three-quarters of all
federal taxes, most of which were spent in the North. If they didn’t buy foreign
goods and pay high taxes the alternative was to buy Northern manufactured
products at excessively high prices. Either way Southern money ended up in the
North. The injustice of this arrangement dominated Southern hostilities toward
the North. Said one historian: ‘Indignation against the tariff as an unfair tax
injurious to their economy was general throughout the South’ A southerner, a
year after the Civil War ended expressed that indignation in a book appropriately clalled The lost Cause: ‘ In every measure that ingenuity of avarice devise the
North exactes from the South a tribute, which could only pay at the expense and
the character of an inferiour [sic] in the Union’.
Nessa toada, analisando as finanças funcionais e a utilização dos impostos alfandegários com fins extrafiscais em períodos remotos Aliomar Baleeiro45 pontua:
Os progressos das ciências econômicas, sobretudo depois do impulso que
lhes imprimiu a teoria geral de Keynes, refletiram-se na Política Fiscal e esta, por
sua vez, revolucionou a concepção da atividade financeira, segundo os preceitos
dos financistas clássicos.
Ao invés das ‘finanças neutras’ da tradição, com seu código de omissão e
parcimônia tão ao gosto das opiniões individualistas, entendem hoje alguns que
maiores benefícios a coletividade colhera de ‘finanças funcionais’, isto é, a atividade financeira orientada no sentido de influir sobre a conjuntura econômica.
Destarte, o setor público – ‘a economia pública’ não se encolhe numa vizinhança pacífica e tímida junto às lindes da economia privada. A benefício
desta é que deve invadi-la, para modificá-la, como elemento compensador nos
desequilíbrios cíclicos.
Em verdade, a despeito das novidades terminológicas, a ‘Política Fiscal’ é
apenas nova aplicação dos instrumentos financeiros para fins ‘extrafiscais’. A
Política Fiscal, no campo econômico, era bem conhecida dos clássicos para
o protecionismo por meio de impostos alfandegários. Alguns advogam para
fins “sócio-políticos”, como preferia dizer Seligman referindo-se às tendências de reforma social pelo tributo, defendidas por Wagner. Hoje a política
anticíclica de modificação da conjuntura e da estrutura atrai as atenções em
finanças extrafiscais.
Ademais, sob o ponto de vista econômico, nos termos em que será analisado na Aula 14 sobre a extrafiscalidade, os tributos, em regra, ainda que seja
possível instituí-los com a intenção exclusiva de obtenção de recursos para os
cofres públicos, afetam os preços relativos dos bens e serviços, modificam a
alocação dos recursos pelos agentes econômicos, alteram as decisões quanto
45
BALEEIRO. Op. Cit., p. 30-31.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
à melhor estrutura de financiamento corporativo, distorce a taxa de retorno
de determinada atividade econômica em detrimento de outra, independentemente da intenção do exator. Ou seja, a simples existência dos tributos
impacta o comportamento das pessoas, das famílias, das empresas e da sociedade como um todo, motivo pelo qual é ínsito à tributação redefinir a alocação dos recursos socialmente disponíveis, o que afeta a demanda e a oferta
no mercado de fatores de produção e de bens e serviços, razão pela qual,
economicamente, a extrafiscalidade (compreendida como outros efeitos além
da própria arrecadação) é inerente e indissociável da denominada fiscalidade.
Conforme já se pode extrair pelo que acima foi dito, sob o ponto de vista
do desenvolvimento histórico das finanças, a etapa subsequente é classicamente denominada de “fase de intervencionismo estatal” ou do “tributo com
fim extrafiscal”, e corresponde ao resultado da crise do Estado Fiscal do início
do século XX, em função do descompasso entre a liberdade econômica e a
realidade social. As desigualdades eram acentuadas, o que criou um grande
hiato entre o discurso de desenvolvimento econômico sem a participação do
Estado e o mundo da vida enfrentado por grande parte da massa humana,
que se via forçada a trabalhar por baixos salários e com péssimas condições
de vida. Como conseqüência de tal situação, já no século XIX, seguido pelo
século XX, movimentos sociais surgiram para combater o sistema liberal clássico vigente; marcado pelo individualismo exacerbado, momento em que
prevaleciam de forma absoluta os valores segurança jurídica, liberdade e
igualdade formal.
Nesse contexto, exsurgiu o denominado Estado de Bem-estar Social, que
traz a lume novos valores deixados de lado até então no contexto do Estado
Liberal Mínimo (ou de polícia), caracterizado como mero espectador ou ordenador distante dos fatos sociais. O Estado Social passa a ser ator decisivo
da conduta privada, com fundamento na visão de que a intervenção estatal
era conditio sine qua non para o alcance da justiça social e da igualdade material. Em conexão com esse movimento, os dispositivos orçamentários das
Constituições de diversos países foram alterados para abranger a intervenção
do Estado na ordem econômica e social.
Assevera Luiz Emygdio46 que o Estado passou a intervir na iniciativa privada especialmente pelas seguintes razões:
a) grandes oscilações porque passavam as economias (...); b) crises provocadas pelo desemprego que ocorria em larga escala nas etapas de depressão, gerando grandes tensões sociais; c) efeitos cada vez mais intensos das descobertas
científicas e de suas aplicações; e d) dos efeitos originados da Revolução Industrial com o surgimento de empresas fabris de grande porte, com o consequente
agravamento das condições materiais dos trabalhadores.
46
ROSA JR. Op. Cit., p. 5-6.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Para intervir na economia o Estado precisou criar novos instrumentos,
dentre eles surgiu, formalmente, a figura do tributo com natureza extrafiscal,
isto é, o tributo deixava de ser reconhecido por seu caráter eminentemente
arrecadatório para os cofres do Tesouro, para assumir, concomitantemente, a
feição de mecanismo coercitivo, utilizado pelo Poder Público com o fim de
atingir outros objetivos e metas de natureza econômica e social. Nesse sentido, merece trazer como exemplos de medidas impositivas de exação com
fulcro extrafiscal, as seguintes situações, que variaram ao longo da história:
1) aumento da alíquota do imposto sobre importação dos bens estrangeiros
com vistas a fomentar a indústria nacional e garantir as reservas de moedas
estrangeiras (instrumento auxiliar da política industrial e cambial); 2) redução das tarifas aduaneiras com o objetivo de reduzir os preços dos produtos
e as pressões inflacionárias em âmbito local (instrumento auxiliar da política monetária); 3) adoção de imposto sobre o patrimônio territorial urbano
com vistas à desestimular a especulação imobiliária, a má ou não utilização
do imóvel urbano – vide IPTU progressivo, nos termos do art. 182, §4º, da
CR-88 (instrumento auxiliar da política urbanística e de ocupação do solo);
4) a utilização do imposto sobre o câmbio, crédito e seguro para auxiliara a
política cambial e monetária, etc.
O Estado Intervencionista (Social) ganhou força, especialmente por conta
dos prejuízos causados pela II Guerra Mundial, período em que havia necessidade premente de se otimizar os recursos para fazer face as demandas coletivas. No entanto, as exigências sociais impuseram a necessidade de aumentos
contínuos da carga tributária e da criação de outras fontes de receitas para dar
cabo às políticas públicas, cada vez mais intervencionistas, implicando despesas crescentes, em especial pela demanda da Segurança Social/Seguridade
Social, abrangendo a Saúde, a Assistência e a Previdência Social. De fato, sob
influência do keynesianismo, o Estado de Bem-estar Social elevou sobremaneira o papel dos tributos, o que redundou no paulatino esgarçamento do
modelo do Welfare State, nos termos então estruturados. As constantes crises
do petróleo, no final dos anos 70, tornaram inviáveis as estruturas do Estado
Social, o qual carregava pesado fardo da dívida pública e de orçamentos desequilibrados e deficitários. As críticas vinham de todos os setores; em especial
do pensamento liberal extremado, que denunciava o aniquilamento da liberdade por meio da exacerbada intervenção estatal na economia e do crescente
peso dos tributos sobre os cidadãos.
Com a crise do Estado do Bem-estar Social, confome ensina o professor
Ricardo Lobo Torres47:
(...) modifica-se novamente o perfil da Constituição Orçamentária. As que já
estavam formalmente redigidas, como a da Alemanha, alteram-se substancialmente em sua interpretação. Nos Estados Unidos inicia-se a discussão sobre a
47
TORRES. Op. Cit. p. 3-6. Nesse cenário,
aponta o autor o Estado Liberal clássico, na sua versão minimalista, como
marco para o surgimento da cultura
orçamentária, destacando as mudanças ocorridas ao longo de seu percurso
histórico. Vale dizer que Estado Fiscal no
período clássico, também denominado
de Estado Guarda-Noturno, se restringia basicamente às atividades de poder
de polícia, à atividade jurisdicional e à
realização de alguns serviços públicos,
não exigindo, portanto, grande estrutura tributária.
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21
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Emenda tendente criar regra obrigatória de equilíbrio orçamentário. (...). O
grande problema atual da Constituição Orçamentária consiste em que deve ela
ser rica e explícita em princípios jurídicos, de modo a permitir a elaboração da lei
anual do orçamento segundo a ideologia do equilíbrio orçamentário e as idéias
de economicidade e transparência das despesas, Insista-se em que o aspecto do
gasto público é que se torna dramático nas finanças públicas contemporâneas.
Apesar das acentuadas mudanças ocorridas no sentido da liberalização,
privatização e foco do Estado na regulação da economia, reduzindo a face
estatal provedora, o denominado neoliberalismo não superou (e nem poderia!) de forma absoluta o Estado Social. De fato, o processo histórico, assim
como o processo de integração de mercados48, nunca é uniforme, contínuo e
linear, sendo certo que, a cada etapa, novas características são incorporadas e
diversas facetas do que existia no passado continuam a se fazer presente. Daí
a complexidade da realidade atual!
Nessa toada, por fim, importante realçar que o perfil e as características
da receita pública foram delineadas de diversas formas ao longo da história,
destacando-se entre elas, conforme ensina Aliomar Baleerio49: “as extorsões
sobre povos vencidos; doações (voluntárias) recebidas; recolhimento das rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; exigência coativa de tributos ou penalidades; tomada de empréstimos forçados, e; fabricação de dinheiro metálico ou de papel”. Para o eminente autor essas diferentes formas
de financiamento da atividade financeira do Estado, que ocorreram ao longo
da história, podem ser agrupadas ou reduzidas a cinco padrões, não necessariamente sucessivos, a saber:
1. parasitária: proveniente da extorsão, pilhagem e exploração contra
povos ou inimigos vencidos, característica do mundo antigo;
2. dominial: decorrente da exploração do próprio patrimônio (bens e
direitos) do Estado, tais como imóveis, terras etc., prática disseminada no período medieval;
3. regaliana: obtida através da exploração dos denominados direitos
regalianos, assim definidos como os privilégios conferidos e reconhecidos aos reis e príncipes para explorar certos serviços ou conferir esses direitos a terceiros em troca de pagamento ao Estado de
uma determinada contribuição (regalia);
4. tributária: obtida coativamente ou coercitivamente e que passaram
a ser a principal fonte de receita pública, e;
5. social: caracterizada pela utilização do tributo não somente como
meio para obtenção de receita, mas, também, com fins extrafiscais,
isto é, objetivando influenciar e modificar a ordem econômica e
sócio-política.
48
COSTA, Leonardo de Andrade. Seminário Brasil Século XXI, em 24 de
outubro de 2001, Brasília. O Direito na
Era da Globalização. Realização do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, p. 117. “Preliminarmente, é
importante enfatizar que a matéria tributária sempre foi e sempre será controversa pois traz dentro de si aspectos
jurídicos, econômicos, administrativos,
e, principalmente, de relações de poder.
Portanto, sua análise deve ser, necessariamente, multidisciplinar, e o produto
final será sempre a expressão do sopeso
entre as diversas variáveis envolvidas,
além, é claro, da visão de mundo do
pesquisador. Seu estudo, em face do
processo de integração de mercados,
deve ser desenvolvido em duas dimensões: (1) a primeira no que se refere às
diferentes formas em que se manifesta a integração internacional. Nesse
ponto, é importante salientar que o
processo de integração não tem sido,
historicamente, uniforme, contínuo
e linear. Daí decorre o primeiro fator
de complexidade para compreensão da
questão. Em suma, as diferentes formas
em que se manifesta o processo integrativo determinam discussões tributárias de natureza distintas e, sem dúvida, os problemas tributários em face
da criação de um Estado supranacional
têm grau de complexidade infinitamente superior ao do estabelecimento
de uma união aduaneira ou de uma
zona de livre comércio. (2) uma segunda dimensão do problema diz respeito
às questões tributárias propriamente
ditas. Inquestionável, que o estudo dos
aspectos tributários em uma economia
globalizada deve incluir a análise das
tarifas aduaneiras, dos impostos sobre
o consumo e, por fim, a apreciação dos
impostos diretos.”
49
BALEEIRO. Op. Cit., p.126.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 2 – ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO NA FEDERAÇÃO.
Examinados os aspectos gerais do curso, especificado o conceito de atividade financeira do Estado, bem como o que se entende por necessidades
públicas, e tendo sido abordada, ainda, em linhas gerais, a história dos tributos e das Finanças Públicas, cumpre agora avançar no estudo dos elementos
essenciais à compreensão da matéria. Nesse sentido, importante ressaltar que
a realização da despesa e a gestão fiscal e patrimonial do Estado moderno
suscitam a elaboração, a aprovação, a execução e o controle do orçamento, o
que pressupõe, necessariamente, a arrecadação de receita pública.
Antes, porém, do estudo individualizado da despesa, da receita, das operações de crédito, da dívida pública, da elaboração, da aprovação, da execução
e do controle do orçamento – o que se efetivará ao longo da primeira parte
do curso – impõe-se examinar algumas características estruturais do modelo
das finanças públicas nacionais, todas determinantes para o entendimento
de como as receitas, as despesas e o orçamento se interligam e operam na
República Federativa do Brasil da atualidade: o que facilitará a compreensão
de cada um dos elementos que compõem a atividade financeira estatal posteriormente.
Ressalte-se que dois desses elementos estruturantes das finanças públicas têm natureza jus-política – a forma de Estado Federada e o sistema de
distribuição de funções entre os Poderes da República – características que
possuem como ratio subjacente precípua evitar a concentração excessiva e os
abusos no exercício do poder, sendo, também, fundamentais à constituição
do perfil institucional brasileiro.
As referidas características serão apresentadas em dois tópicos distintos,
intitulados, respectivamente: O Federalismo Fiscal e o exercício da competência
tributária em face do orçamento, disciplina a ser introduzida neste momento;
e O sistema de distribuição de funções entre os Poderes e a natureza autorizadora
do orçamento para a efetivação das despesas, matéria a ser apresentada na próxima aula.
2.1 ASPECTOS GERAIS DA FEDERAÇÃO COMO FORMA DE ESTADO: O
ESTADO FEDERAL E OS ENTES POLÍTICOS (A UNIÃO, OS ESTADOS, O
DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS).
Nos termos já destacados na Aula 1, o Princípio Federativo é um dos pilares fundamentais ao delineamento do perfil institucional pátrio, ao lado do
Princípio Republicano, o qual suscita o ideário da limitação, temporariedade50 e exercício responsável do poder, e bem assim do caráter democrático51
do Estado de Direito brasileiro, no qual a soberania popular pressupõe que
50
Diferencia-se, dessa forma, da monarquia, que se caracteriza por ser
forma de governo hereditário.
51
Segundo Aristóteles, a igualdade
e a liberdade eram as bases fundantes da democracia. A democracia, ao
agregar valores como a igualdade e a
liberdade, contribui para a realização
da justiça. A justiça, para o pensador
grego, dividia-se em justiça geral e
justiça particular (ou legal): A Justiça
Geral seria “a distinção moral que torna os homens aptos a fazerem as coisas
justas, e que faz com que eles ajam com
justiça e desejem o que é justo”. A Justiça Particular ( legal ), por seu turno,
divide-se em: justiça comutativa e justiça distributiva. É a justiça decorrente
do Estado. Conforme acentua Costas
Douzinas, a justiça particular aristotélica “inaugura uma maneira totalmente nova de se olhar para as relações
jurídicas”. Vide DOUZINAS, COSTAS. O
Fim dos Direitos Humanos. Tradução
de Luzia Araújo. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2009, p. 52.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
governantes e governados sejam submetidos à mesma lei editada pelos representantes do povo, consoante o disposto no parágrafo único do art. 1º da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR-88).
Na história recente o Estado Federal tornou-se o modelo que melhor se associa à organização do Estado democrático, haja vista ser um sistema flexível
e eficiente para evitar o excesso de concentração do poder estatal e os riscos de
abusos. Assim, na linha de intelecção do ex-Ministro do Supremo Tribunal
Federal Carlos Mário da Silva Velloso52, o Federalismo consubstancia uma
forma de distribuição espacial de poder:
o Estado Federal é na verdade, forma de descentralização do poder, de descentralização geográfica do poder do Estado. Constitui técnica de governo, mas
presta obséquio, também à liberdade, pois toda a vez que o poder centraliza-se
num órgão ou numa pessoa tende a tornar-se arbitrário.
A doutrina estrangeira53, fugindo da dicotomia simplista de escolha entre
maior centralização ou não, também destaca o papel fundamental que o Federalismo desempenha para evitar o arbítrio e propiciar ambiente econômico eficiente:
O segundo motivo porque um debate entre prós e os contra seria estéril é que
a descentralização tem sido um imperativo político. Na maioria dos países, ela
teve motivação política. Um país descentralizado tem menor probabilidade de se
tornar uma ditadura do que um centralizado. Essa é a justificativa principal para
a descentralização. É um motivo muito forte. E que tem implicações econômicas, porque um pouco de estabilidade política é, com efeito, um pré-requisito
para a eficiência, a estabilização e redistribuição econômicas.
No entanto, apesar da concentração absoluta de poder ser um mal que se
objetiva combater, os riscos do excesso de descentralização também têm sido
identificados há algum tempo por muitos estudiosos, mesmo por parte dos
simpatizantes da Federação como forma de Estado. Com efeito, o próprio
Rui Barbosa, que havia sido grande defensor de um federalismo extremado
como forma de superação revolucionária do Estado Unitário no Brasil (adotado na Constituição do Império de 1824), posto ser a centralização absoluta
“incompatível com o liberalismo financeiro em país de dimensão continental”, alertava para o lado negativo dos excessos cometidos posteriormente,
conforme leciona Ricardo Lobo Torres54:
52
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Estado Federal e Estados Federados na
Constituição brasileira de 1988: do
equilíbrio federativo. BDA – Boletim
de Direito Administrativo. 1993. p.
290-310.
53
PRUD’HOMME, Rémy e SHAH, Anwar.
Centralização versus descentralização:
o diabo está nos detalhes. In: REZENDE,
Fernando e OLIVEIRA, Fabrício Augusto
de (Organizadores). Federalismo e
Intergração Econômica Regional –
Desafios para o Mercosul. Fórum das
Federações. Konrad Adenauer Stiftung.
2004. p. 63-99.
54
A discriminação de rendas da Constituição de 1891 e a voracidade dos Estados em busca da ampliação de suas fontes mereciam críticas constantes [de Rui]:
‘Aqui, pelo contrário, tudo que os Estados são, devem-no à revolução de 1889
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Volume I. Constituição
Financeira, Sistema Tributário e Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar,
2009. p. 82 e 90-91.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
e à Constituição de 1891. Eram províncias centralizadas: elevaram-se a Estados
autônomos. Vegetavam à custa das sobras da matéria tributável reservadas nas
suas fontes principais ao orçamento geral: hoje dominam independentemente,
pela Constituição republicana, um vasto campo tributário. E não lhes basta’. (...)
Antes de votada a Constituição já advertia o perigo dos excesso de descentralização: ‘pronunciando-me assim, me cinjo ao pressuposto de que o Congresso
Constituinte não alargue, em matéria de Tributos, a esfera das concessões franqueadas aos Estados pelo projeto. Se o domínio tributário da União for ainda
mais desfalcado, se novas fontes de renda se transferirem do governo central
para os governos locais, se prevalecerem certas emendas funestam que parecem
esquecerem as necessidades supremas da nossa existência, da nossa solidariedade
e da nossa hora com a nação, arvorando em princípio absoluto o egoísmo dos
Estados – nesse caso a dificuldade será tão grave, que não vejo como o legislador
poderia solvê-la imediatamente’.
Nessa toada, apesar da constatação inicial, no sentido da necessidade de
pulverização de poder, em movimento tipicamente centrífugo, de fluxo de
poder do centro para as periferias, a preocupação com os inconvenientes da
exacerbação no processo de descentralização excessiva sempre estiveram presentes no país. Saliente-se que o processo no Brasil diverge do contexto em
que ocorreu a adoção do regime federativo nos Estados Unidos. Após a independência das antigas colônias inglesas, pela Revolução Americana de 1776,
foram adotados os denominados Artigos da Confederação de 1781 – caracterizado por Estados independentes e soberanos, os quais foram posteriormente
substituídos pela Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, em
que a União passou a receber parcela dos poderes, em movimento centrípeto
[da periferia para o centro].
Nesses termos, múltiplos são os caminhos para se alcançar ou adotar o
regime federativo, havendo, no entanto, duas formas básicas por meio das
quais uma Federação pode se constituir: (1) por aglutinação de vários Estados
independentes, que resolvem abrir mão de sua soberania, para formar um
Estado Federal único, tal como ocorreu nos Estados Unidos; ou (2) pela descentralização espacial do poder no contexto de um Estado do tipo simples,
em movimento tipicamente centrífugo, isto é, a partir de um Estado inicialmente Unitário, a exemplo do Estado brasileiro55, o que pode ocorrer em um
Estado previamente centralizado ou não sob o ponto de vista administrativo.
Assim sendo, os aspectos históricos do processo de formação da Federação
delineam o modelo federativo de cada país de forma substancialmente diversa, o que se coaduna com o contexto social, econômico, espacial e temporal
de cada caso.
Ainda em contraponto aos imperativos da descentralização, sob a perspectiva político-social, conforme adverte Roberto Mangabeira Unger,56 de-
55
Foi com o advento da primeira Constituição republicana brasileira de 1891,
que o Brasil passou de Estado Unitário
para Estado Federal, assumindo também a forma republicana de governo,
nos termos de seu art. 2º.
56
Folha de São Paulo, 21 de fevereiro de
1985, Artigo nº 10.
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25
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
pendendo do momento histórico e das condições específicas de cada país, a
descentralização exacerbada pode fortalecer oligarquias locais que procuram
se perpetuar no poder a qualquer custo, em detrimento do bem comum:
A descentralização federativa fundada na subsidiariedade e na especialização de funções fortalece as oligarquias locais. Ajuda a imunizar as estruturas
consolidadas da sociedade brasileira contra as contestações, que crescem mais
facilmente na política nacional. E faz com que a coordenação federativa tome
mais ou menos como paradigma a ordem social existente. Se o Poder Central
tem sido no Brasil o parceiro privilegiado dos poderosos e abastados, também
tem servido como o único agente capaz de ameaçá-lo e de abrir espaços para a
criação de contra-modelos de organização social. (grifo nosso).
Pelo exposto, constata-se as divergentes causas e razões para a acomodação
e formação de um modelo de Estado conciliatório, em que a ponderação dos
diversos objetivos sejam alcançados, sem abrir, entretanto, espaço ou chance
para a ruptura da unidade, do regime Democrático ou do Estado de Direito.
Nessa senda, a dicotomia entre os objetivos de pulverização de poder para
evitar o arbítrio e a corrupção e, ao mesmo tempo, a busca pela harmonia e
coordenação das políticas públicas nacionais, favorece amplamente a adoção
de um modelo federativo de equilíbrio ou de conciliação, o que representa
uma das vantagens dessa forma de organização estatal. De fato, o modelo
de federalismo político implementado em cada país, o qual é determinante
para o sistema de federalismo fiscal adotado, se realiza sob a constante tensão entre o imperativo da unidade que congrega e une a nação de um lado
com a necessidade de autonomia das partes que compõem o todo íntegro
de outro lado. A resultante final entre essas variáveis, o que inclui os aspectos
históricos, políticos e culturais, delineiam um modelo de federalismo fiscal
de equilíbrio diferenciado em cada nação.
No caso brasileiro atual, a Constituição de 1988 consagra a sua forma de Estado já no seu artigo 1º57, ou seja, qualifica a República como federativa, o que
caracteriza o Brasil como uma Federação58. Importante perceber que a União,
como ente federado autônomo, não consta do referido art. 1º da CR-88, mas
sim o termo “união”, haja vista que a existência da Federação, previamente
declarada no início do dispositivo, já consagra e pressupõe a existência do ente
federal central. Em suma, a existência da União é pressuposto à existência da
Federação, sendo desnecessária a declaração expressa de sua presença. Trata-se,
portanto, o Estado Brasileiro, de um Estado complexo, constituído pela união
indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, em sentido análogo ao da Confederação e diametralmente oposto ao Estado Unitário simples.
Uma das características fundamentais do Estado Federado, a qual consubstancia um dos elementos distintivos da Confederação, é a inviabilidade
57
O artigo 1º da CR-88 adota a forma
federativa de Estado, ao dispor sobre a
“República Federativa do Brasil”, o que
é complementado, entre outros dispositivos, pelo art. 18, que estabelece a
autonomia da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, nos
termos da Constituição, e pelo artigo
60, §4º, I, que impede “a deliberação de
proposta de emenda tendente a abolir
a forma federativa de Estado”.
58
Os termos “a República Federativa do
Brasil”, “a Federação”, “o Estado Federal”
ou “Estado Federado” tem o mesmo
significado e serão utilizados indistintamente.
FGV DIREITO RIO
26
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
jurídica de separação ou segregação das partes (as unidades políticas subnacionais – os Estados Membros) que compõem o todo. Este Princípio da
indissolubilidade59 ou Princípio da proibição de secessão60 – da união entre
os Estados o Distrito Federal e os Municípios no caso brasileiro – está consagrado no mencionado art. 1º da Carta Constitucional de 1988. Em sentido
contrário, as Confederações se caracterizam pela possibilidade de secessão61.
Outros componentes estruturais também diferenciam essas duas formas de
Estado: na Confederação não há relação direta entre a União e os diversos
cidadãos residentes e domiciliados em cada Estado independente, de forma diversa do que ocorre na Federação, modelo que pressupõe a existência
de múltiplas ordens jurídicas incidentes sobre o mesmo território, inclusive
aquela emanada pela pessoa política que exerce o poder central. Essas diferenças estruturais – quanto à possibilidade de separação e da existência
ou não de relação jurídica direta entre a União e os residentes – decorre do
fato que a Confederação se constitui pela associação de vários Estados independentes e soberanos, ao passo que a Federação é apenas um Estado – o
Estado Federal único, que se forma pela união de unidades políticas autônomas, isto é, cada ente subnacional não é dotado de soberania, mas sim de
autonomia política, legislativa, administrativa, financeira, e etc, objetivando
alcançar o autogoverno, a autoadministração e etc. Dessa forma, a Federação é, ao mesmo tempo, conforme ensina Raul Machado Horta,62 um só Estado, fator de diferenciação da Confederação de Estados, e, também, “uma
pluralidade de Estados vinculados pelo laço federativo, e nisso se diferencia
do Estado Unitário”.
Assim sendo, ao contrário do Estado Unitário, que é simples, posto conter
apenas uma ordem jurídica emanada por um único Parlamento, um Pode
Judiciário e somente um Poder Executivo, o Estado Federado é composto ou
complexo, haja vista possuir múltiplos planos jurídicos concomitantemente
incidentes sobre o mesmo território nacional, tendo em vista coexistirem
múltiplos centros de poder que projetam diversos poderes estatais nos diferentes âmbitos da Federação. De fato, é possível conceber um Estado Unitário extremamente descentralizado sob o ponto de vista administrativo, no
qual as províncias possuam inúmeras atribuições. Entretanto, se as unidades
administrativas locais não são constitucionalmente dotadas de determinados atributos caracterizadores do federalismo, como a autonomia legislativa
e financeira, para proporcionar o autogoverno e políticas públicas próprias,
núcleos essenciais inafastáveis da Federação, dissolvida estará a essência dessa
forma de organização do Estado. Nesse sentido aponta Elcio Fonseca Reis63,
com fundamento nas lições do ex-Ministro do STF Carlos Mário da Silva
Velloso, que os Estados regionais autônomos, “em hipótese alguma, são confundidos com o Estado Federal, pois neste, a par da autonomia legislativa,
administrativa e financeira, há autonomia constitucional, fator de diferen-
59
Nessa linha, importante destacar que
a expressão “União”, conforme adverte
José Cretella Junior, é palavra equívoca que contém múltiplos significados,
dependendo da função atribuída
pela Constituição no caso específico,
conforme será adiante descrito. Vide,
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários
à Constituição Brasileira de 1988,
volume 1. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997. p.130. “Note-se
que união (com “u” minúsculo) tem,
pela grafia e pelo contexto, sentido
diverso do vocábulo “União” (com “U”
maiúsculo). Notem-se assim, nas várias
Constituições Brasileiras, os vocábulos
“união” (com “u” minúsculo) e “União”
(com “U” maiúsculo), o primeiro termo
unívoco e não técnico (= agrupamento,
agregado, junção, aglutinação, justaposição); o segundo termo equívoco,
mas técnico tendo os mais diferentes
sentidos” (grifo nosso).
60
O art, 1º, da CR/88, ao prever a união
indissolúvel dos Entes da Federação,
consagra o Princípio da Proibição do Direito de Secessão, ou seja, inadmite que
Estados ou Municípios rompam o pacto
federativo, ao vedar expressamente a
retirada do Estado Federal. Esse pacto
não inviabiliza a possibilidade de os
Estados e Municípios desmembraremse para formar novos Entes, nos termos
do art.18, §§ 3º e 4º da CR/88.
61
Derivado de “secessione (m)” o termo
significa afastar-se.
62
HORTA, Raul Machado. Reconstrução
do federalismo brasileiro. Revista de
Direito Público. nº 64, p. 15-29, 1982.
Aponta o autor que o Estado Federal
possui estrutura complexa, no qual “a
dualidade estatal projeta-se na pluralidade dos ordenamentos jurídicos
dentro da concepção tridimensional
dos entes federativos: a comunidade
jurídica total – o Estado federal -, a
federação, uma comunidade jurídica
central, e os Estados-Membros, que são
comunidades jurídicas parciais.”
63
REIS, Elcio Fonseca. Federalismo Fiscal: competências Concorrentes e Normas Gerais de Direito Tributário. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 25.
FGV DIREITO RIO
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ciação” (grifo nosso). Assim, enquanto o processo de desconcentração de poder caracteriza-se pela descentralização política, administrativa e financeira
entre o poder central e as regiões autônomas, o Estado federal possui, além
dessas características, a autonomia constitucional não passível de supressão.
Nessa linha, na forma de Estado Federado coexistem órbitas jurídicas
distintas64, com funções previamente traçadas pelo sistema de repartição de
competências constitucionais, o qual é ínsito a esta forma de Estado.
Em contexto agregativo tem-se a ordem jurídica total, o que compreende
a já mencionada interface com outros países,65 instituições internacionais e o
conjunto de todos os ordenamentos internos, parcias e centrais66. Esse agregado de normas representa o sistema normativo do Estado Federal, ou seja,
da República Federativa do Brasil, o qual compreende os atos normativos
expedidos pela União no exercício de suas múltiplas funções constitucionais,
pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
As comunidades jurídicas parciais, cujas normas incidem apenas sobre
parcela do território do país, são formadas por unidades políticas autônomas,
denominados em geral como Estados membros, o que inclui, no caso brasileiro, os Estados, o Distrito Federal e, também, os Municípios, todos dotados
de autonomia política, legislativa, administrativa, financeira e etc, nos termos
do art. 18 da CR-88.
Por sua vez, o sistema normativo central é constituído exclusivamente
pelas normas editadas pela União, de acordo com as suas múltiplas tarefas
fixadas na Constituição de 1988, possuindo, em todos os casos, eficácia em
todo o território brasileiro, razão de sua identidade. A existência de leis editadas pelo Congresso Nacional com características distintas, algumas de caráter
exclusivamente federal, as quais vinculam apenas os seus jurisdicionados e
administrados, e outras de âmbito nacional, disciplinadoras da atuação de
todos os entes políticos autônomos, inclusive da própria União como pessoa
jurídica de direito público interno, confere maior complexidade ao sistema,
conforme adverte Geraldo Ataliba67:
as dificuldades para o estabelecimento da distinção entre leis federais e leis nacionais decorrem da origem comum, porque ambas são leis editadas pela União.
64
Na parte final do curso serão examinadas todas as espécies normativas
tributárias, momento em que será
analisada a expressão “legislação tributária” de que trata o artigo 96 do Código
Tributário Nacional.
65
Na aula 23 será examinada a jurisprudência do STF que consagra a tese
no sentido de que o monopólio da
personalidade internacional é do Estado Federal, expressão institucional da
comunidade jurídica total, que não se
confunde com a União como ente político e pessoa jurídica de direito público
interno. Nesse sentido recomenda-se a
leitura do RE 229096.
66
Foi utilizado como critério de diferenciação entre a ordem jurídica
central e as ordens jurídicas parciais
o âmbito espacial de eficácia da norma
expedida, isto é, se a legislação editada
alcança por si só todo o território nacional ou apenas uma parcela limitada
deste. Nesse sentido, a norma expedida
pela União pode ter dupla função, isto
é, vincular todos aqueles no território
nacional sob jurisdição da República
Federativa ou disciplinar apenas os
atos daqueles subordinados à União
como ente político central. Em sentido
diverso, partindo de premissa distinta,
ou seja, estabelecendo como critério de
classificação os destinatários da norma,
a maioria dos autores, seguindo as lições de Kelsen, situam a lei de caráter
federal expedida pela União como situada dentro da ordem jurídica parcial
e aquela de âmbito nacional inserida
no bojo da ordem jurídica total, por
ser norma da Federação. Nesse sentido
vide REIS, Op. Cit. p. 119: “As normas
jurídicas emanadas pela União, pelos
Estados-Membros, pelo Distrito Federal
e pelos Municípios pertencem à ordem
jurídica parcial, pois somente se destinam a uma determinada parcela dos
administrados, na sua área territorial e
no seu âmbito de competência” (grifo
nosso)”. Nessa linha, a ordem jurídica
total seria expressa pelas normas de
caráter nacional expedidas pelo Estado
Federal, ao passo que as demais ordens
central (União), regional (Estados)
e locais (Municípios) seriam apenas
parciais.
67
De um lado, a União, por meio do Congresso, formado pela Câmara e
pelo Senado, tem a prerrogativa de expedir normas gerais68 de caráter nacional em matéria financeira e tributária, ex vi art. 24, §1º, art. 146, III e art.
163. Essas disciplinas são editadas em razão da função coordenadora que a
União exerce em relação aos diversos entes políticos subnacionais (Estados,
Distrito Federal e Municípios), todos entes autônomos, nos termos do já citado art. 18, o que tem por objetivo conferir unidade político-administrativa
ao Estado Federado. Dessa forma, a característica da norma expedida nesses
ATAILIBA, Geraldo. Normas gerais de
direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e municípios. RDP.
v. 10. p. 49.
68
Conforme será examinado na parte
final do curso, a disciplina das normas
gerais em matéria de legislação tributária é reservada às leis complementares, o que não ocorre como regra
nas demais áreas, como é o caso, por
exemplo, da Lei nº 8666/93 que, apesar
de ser lei ordinária, disciplina regras
gerais das licitações e concorrências públicas para todos os entes da Federação,
além de estabelecer regras específicas
FGV DIREITO RIO
28
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
termos é a sua função precípua de vincular e estabelecer parâmetros ao legislador da própria União quando edita suas normas específicas aos seus jurisdicionados e administrados, aos legisladores e aplicadores das leis dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse caso, a lei editada pelo Congresso Nacional é lei da Federação, do Estado Federal, e não propriamente da
União em sua acepção mais comum. Destaque-se que as normas gerais de
Direito Tributário e de Direito Financeiro são necessariamente veiculadas
por meio de lei complementar e não ordinária, tendo em vista o disposto
nos citados artigos 146, III, e 163 da CR-88, o que ocorre, por exemplo,
com o Código Tributário Nacional69 e a Lei de Responsabilidade Fiscal70.
Essas leis complementares que objetivam harmonizar a disciplina jurídica das
mencionadas matérias em âmbito nacional, posto vincularem o legislador de
todos os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), são
normas da República Federativa.
Por outro lado, a mesma União, agora em sentido específico do termo,
também expede, por meio do seu citado parlamento federal, formado pela
mesma Câmara e o mesmo Senado, normas em razão do exercício de suas
competências próprias por ser ente federado autônomo, qualificação sob a
perspectiva do Direito Constitucional, ente político que se situa no mesmo
plano hierárquico dos demais entes federados (Estados, Distrito Federal e
Municípios), nos termos do já citado art. 18 da CR-88. Essa estrutura constitucional projeta a mesma União como pessoa jurídica de direito público
interno sob o prisma do Direito Civil71, ao lado dos Estados, do Distrito
Federal, dos Territórios, dos Municípios, das autarquias e demais entidades
de caráter público criadas por lei. Nesse contexto, as normas específicas expedidas pela União não se destinam a disciplinar a atividade legislativa dos
entes federados, posto se dirigirem tão somente aos seus jurisdicionados e
administrados. Nessa linha, se adotado como parâmetro de classificação os
destinatários da norma, e não o seu aspecto espacial, como aqui propugnado,
essas normas editadas pela União nesses termos constituiriam uma ordem
jurídica parcial. Em sentido diverso, ao utilizar como critério classificatório o
seu âmbito territorial de incidência, as duas espécies normativas editadas pela
União se subsumem dentro da denominada ordem jurídica central, posto
serem aplicáveis em todo o país.
André Luiz Borges Netto72 enfatiza a importância da distinção entre as
normas gerais e específicas expedidas pela União, reflexo da mencionada dúplice função desse ente central da Federação, ao destacar:
(...) as normas gerais a que buscamos um conceito constituem-se em típico
exemplo de leis nacionais, pois não se tratam de comandos normativos simplesmente referentes à União ou disciplinadores de relações dessa pessoa política
com jurisdicionados e administrados seus, mas sim de normas que têm aplicação
somente para a União, matéria que será
brevemente analisada na aula sobre as
despesas públicas.
69
A Lei nº 5.172/66, norma denominada de Código Tributário Nacional (CTN)
pelo Ato Complementar nº 36/67, discplina matérias reservadas pela Constituição de 1988 à lei complementar.
70
Lei Complementar nº 101/2000.
71
Art. 41, I, do Código Civil de 2002.
72
NETTO, André Luiz Borges. Normas
Gerais e competência concorrente –
Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal, p. 179. Na aula 23 serão
examinadas as possíveis limitações da
atividade legislativa coordenadora da
União para não invadir a competência
dos entes subnacionais e bem assim
das restrições à criação de normas gerais pelos Estados, ressalvados os casos
de inexistência de lei federal em que se
aplica o § 3º do art. 24.
FGV DIREITO RIO
29
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
à totalidade do Estado Federal, sem exclusão de nenhuma parcela do território
pátrio. Não se esqueça, porém, que a União, no âmbito da competência legislativa concorrente, além de editar normas gerais como produto legislativo do
Estado nacional, também edita normas especificas, descendo a pormenores de
para tratar de assuntos relacionados à administração federal (serviços e agentes
federais), vinculando somente a conduta daqueles que se submetem às regras do
Governo Federal.
Nesse momento é importante destacar que sob a perspectiva das funções
institucionais73 da União no Estado Federal brasileiro, além da atribuição de
editar normas gerais e bem assim exercer as suas atividades normativas como
ente político autônomo e pessoa jurídica de direito público interno, a mesma
União também é Longa Manus da Sociedade Nacional, pois o Presidente
da República é ao mesmo tempo Chefe de Governo e de Estado, presentante da República Federativa do Brasil no Exterior, conforme o disposto
nos artigos 21, I, 84, VIII e art. 4º da CR/88. Assim, consoante a estrutura
jurídico-política-institucional do Estado brasileiro, a União, de acordo com
uma interpretação sistemática da Constituição, exerce pelo menos três papéis
institucionais fundamentais, os quais estão ora explícitos e por vezes implícitos no texto constitucional vigente. As três funções podem ser melhor compreendidas e visualizadas por meio da seguinte estratificação:
1 ) Ente Político – pessoa jurídica de
direito público – art. 18, CR/88
Papeis Jurídico-Institucionais da
União no Estado Federal
Brasileiro
2 ) Ente Coordenador da
Federação - art. 1º, caput, c/c art.
24, §1°, CR/88.
3) Longa Manus da Sociedade
Nacional – Presentante da
República Federativa do Brasil no
Exterior – art. 1º, p.u. c/c art. 4º,
art.84, VIII, CR/88
Com a adoção da forma federativa de Estado, a distribuição de diversas
funções à União e a inevitável coexistência de múltiplas ordens jurídicas no
território nacional, impõe-se a implementação de um sistema constitucional
de repartição de competências entre as unidades federadas, o que inclui, também, a previsão de edição das já referidas normas gerais (§1º do art. 24), ao
lado das demais competências legislativas (privativa – art.22, concorrente –
art. 24, suplementar – art. 24, §§2º a 4º, delegada – art. 22 parágrafo único e
73
Note que o critério de análise relativamente às funções da União agora não é
mais o aspecto espacial de aplicabilidade da norma editada.
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30
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
23, parágrafo único, e originária – art. 30, I) e das competências administrativas (exclusiva – art. 21, comum – art. 23, decorrente – implícita, originária
– art. 30). Nesse sentido, deve ser destacado que a CR-88, no artigo 24, I,
confere competência para a União, os Estados e o Distrito Federal legislarem
concorrentemente sobre Direito Financeiro, Orçamento e Tributário. Nessa
hipótese, a prerrogativa da União,74 como ente polítco de coordenação, é
limitada à expedição de normas gerais de caráter nacional, sendo atribuída,
ao mesmo tempo, a competência suplementar aos Estados. Corolário da
autonomia federativa estampada nos artigos 1º, 18 e 60, §4º, I, da CR-88,
os Municípios também têm a atribuição de suplementar a legislação federal
e estadual (artigo 30, II, da CR-88), assim como instituir e arrecadar tributos, aplicar suas rendas, submeter e prestar contas (art. 30, III, da CR-88),
analogamente às prerrogativas da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Portanto, a determinação fixada no artigo 163 da CR-88, no sentido de que
lei complementar federal disporá sobre finanças públicas, conforme ensina
Misabel Abreu Machado Derzi75, não afasta ou suprime a competência legislativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
para legislar sobre as finanças públicas, dívida pública, operações de crédito,
emissão e resgate da dívida pública, orçamentos, controle e fiscalização da execução financeira. Ao contrário, cada um desses entes políticos, mediante lei ordinária, aprova os seus orçamentos, operações de crédito, e empréstimos públicos.
No citado art. 163, a Constituição apenas prevê a necessidade de a União editar
normas gerais, por meio de lei complementar, para disciplinar princípios básicos a serem observados pelas leis ordinárias editadas nessa matéria pela União,
Estados-Membros e Municípios. Dentro dos limites constitucionais que lhes
são impostos, de respeito à diferenciação e às autonomias locais e regionais, as
normas gerais padronizam parcialmente as ordens jurídicas que convivem no
Estado brasileiro.
Assim, importante repisar que o Brasil é usualmente qualificado como uma
República Federativa tridimensional76, composta por três entes políticos internos distintos, diversamente do tradicional modelo dual adotado nos demais
regimes federados, os quais são compostos por apenas dois entes. De fato, o
artigo 68 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891
já consagrava a autonomia municipal em “tudo quanto respeite ao seu peculiar
interesse”, atribuição que foi se fortalecendo ao longo do tempo até o seu ápice
no texto constitucional de 1988, quando os municípios alcançaram o status
formal de entes federados, cujas prerrogativas vão muito além da autonomia
meramente administrativa, conforme será examinado ao longo do curso.
Nesse passo, de descentralização das finanças e da atribuição de competências tributárias aos entes políticos, serão inicialmente analisados os aspectos
74
Esse dispositivo constitucional (art.
24, §1º) parece se dirigir (“limitar-se-á
a estabelecer normas gerais”) exclusivamente à função coordenadora da
União, conforme acima salientado, tendo em vista que a mesma União, como
pessoa jurídica de direito público interno, no exercício de suas funções como
ente político autônomo, nos termos
do art. 18 da CR-88, também expede
normas específicas de caráter exclusivamente federal no bojo da competência concorrente, dentro dos limites
constitucionais estabelecidos, inclusive
no que pertine à matéria financeira e
tributária. Dessa forma, conforme já
salientado, pode-se distinguir a legislação expedida pela União em duas
modalidades, as leis de caráter nacional, posto vincularem a atividade legislativa dos entes políticos, e as leis de
natureza eminentemente federal, que
se dirigem exlcusivamente aos seus
jurisdiciondos e administrados. A União
pode expedir normas, por exemplo, de
direito financeiro e de direito tributário
concerenentes à sua atividade financeira específica, independentemente da
edição das normas gerais referidas no
citado §1º do artigo 24 da CR-88.
75
DERZI, Misabel de Abreu Machado.
Comentários aos arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei
de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed.
rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
p. 276-277.
76
Já Regis Fernandes de Oliveira aponta que “no Estado federal brasileiro,
em que são quatro entes federados,
União, Estados, Distrito Federal e Município, cada qual, para sua sobrevivência
e para atender às finalidades que lhes
são traçadas na Constituição, tem que
dispor de recursos para tanto.” In. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de
Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 124. Sob a perspectiva
tributária, o Distrito Federal cumula
as competências dos Estados (art. 155
caput da CR-88) e dos Municípios (art.
147, segunda parte, da CR-88). Nos
termos do artigo 32, §1º, da CR-88
ao “Distrito Federal são atribuídas as
competências legislativas reservadas
aos Estados e Municípios”, observadas
as disciplinas específicas, como, por
exemplo, o disposto nos artigos 21,
XIII, 32, §4º, 98, 128, I, d, 134, §1º, da
CR-88, etc.
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31
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mais relevantes do federalismo fiscal para depois ser examinado o problema
das desigualdades regionais na Federação. Também será objeto de análise no
próximo tópico a subordinação ou não do exercício da competência tributária à prévia autorização orçamentária, elemento que ao lado do sistema
constitucional de partilha de receitas e de transferências entre os entes federados, objeto da Aula 8, ajuda a identificar e delinear as interligações entre as
receitas, as despesas e o orçamento.
2.2 O FEDERALISMO FISCAL E O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA EM FACE DO ORÇAMENTO
A forma de Estado (unitário, federado ou confederado) adotada pela
República Federativa do Brasil é o primeiro elemento de natureza jurídicopolítica que, ao lado do sistema de distribuição de funções entre os poderes
da República, define o modelo de interação entre as receitas, despesas e o
orçamento, sendo também determinante para o delineamento do perfil institucional brasileiro.
Resguardado um núcleo essencial inafastável, nos termos adiante descritos, o federalismo é um conceito essencialmente jurídico-positivo, ou
seja, seu significado no mundo concreto depende de um conjunto amplo
de normas constitucionais, que abrange não apenas a declaração dessa forma de Estado. Na realidade a definição do modelo adotado no Brasil, por
exemplo, requer o exame de todas as regras de distribuição de competências
materias e legislativas que se encontram espalhadas pelo texto constitucional77, sejam ou não de natureza exclusivamente financeira, orçamentária
ou tributária.
O federalismo sempre foi objeto de estudo e controvérsia, posto tratarse de um sistema de organização político-institucional de sobreposição78, ao
contrário do Estado unitário, conforme já salientado. Portanto, a forma de
Estado federado79 pressupõe a existência e coordenação de múltiplas ordens
jurídicas incidentes sobre o mesmo território, sendo mecanismo eficiente à
limitação do poder central, com a vantagem de não possuir um modelo predefinido e estático. Dessa forma, o Estado federal possibilita variadas estruturas jurídico-políticas, as quais facultam a implementação de diferentes graus
de descentralização, o que se efetiva por meio do sistema constitucional de
repartição de competências. Com efeito, o perfil do federalismo de cada país
é delineado pela configuração do sistema de repatição de competências, o que
tem como pressuposto uma Constituição rígida, isto é, aquela cujo processo
de reforma é mais complexo do que aquele necessário para a edição das leis
infracostitucionais, havendo, no caso brasileiro, limitações materiais e circunstanciais ao lado de quorum e procedimento especial.
77
Vide, em especial, os artigos 21, 22,
23, 24, 25 e 30 da CR-88.
78
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito
Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, t. III. p. 268. Explica o
autor luso: “O Estado Federal tem como
núcleo uma estrutura de sobreposição,
a qual recobre os poderes políticos locais (dos Estados-membros), de modo
a cada cidadão ficar simultaneamente
sujeito a duas constituições (....).”
79
DA SILVA, José Afonso. Curso de
Direito Constitucional Positivo. 17ª
edição. São Paulo: Malheiros, 2000. p.
103: Aponta o professor que “a federação consiste na união de coletividades
regionais autônomas que a doutrina
chama de Estados federados, Estadosmembros ou simplesmente Estados”.
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32
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Cabe ressaltar, entretanto, que a Federação pode conter caráter meramente
nominal, se os seus pressupostos fundamentais não forem verdadeiros e efetivos, isto é, a Federação só existe materialmente se inviabilizada a possibilidade de usurpação de competências locais e de possível violação à autonomia
política, administrativa e, principalmente, financeira dos entes subnacionais.
Não obstante a impossibilidade de serem afastados esses núcleos essenciais
do federalismo, cumpre repisar que essa forma de Estado caracteriza-se por
ser maleável, vez que possibilita arranjos institucionais capazes de deixar aflorar o que há de melhor nas diversas áreas que compõem o seu conjunto,
adequado, portanto, àqueles países caracterizados80 pela diversidade interna,
complexidade, permanente mutação e, em geral, pela grande extensão territorial. Assim sendo, pela própria natureza das coisas, trata-se de uma solução
complexa para realidades de países cujas características físico-geográficas, culturais, políticas, econômicas ou sociais apresentem obstáculos muitas vezes
intransponíveis à imposição de um modelo único para todo o país, inviabilizando a gestão hierárquica tradicional de cima para baixo, de forma que o
governo central seja tão forte que imponha uma relação de dependência para
as unidades políticas locais.
Conforme já destacado, o sistema de repartição de competências materiais
e legislativas – aí inserida a competência tributária81, que ao lado das receitas
não tributárias e do sistema de partilha de recursos formam o complexo mecanismo de financiamento federado – é o núcleo central do federalismo, pois
delimita e configura o perfil da autonomia constitucional de cada regime,
sendo certo que o grau de independência financeira das unidades subnacionais determina o grau de autonomia da Federação. De fato, inexistente
aquela, não há que se falar em federalismo, isto é, a autonomia financeira é
um dos elementos nucleares do regime, podendo, no entanto, efetivar-se de
diversas formas e com diferentes níveis de descentralização, especialmente
pelo fato de que os recursos financeiros disponíveis para cada unidade federada realizar os seus gastos – e cumprir os encargos constitucionalmente
designados – corresponde ao conjunto:
(1) do somatório das receitas obtidas por cada unidade política no
exercício das respectivas competências tributárias, das receitas decorrentes da exploração do seu patrimônio, da exploração de atividades econômicas (comércio, agropecuária, indústria e serviços),
das operações de crédito, da alienação de bens, do recebimento de
amortização de empréstimos concedidos e ainda do superávit do
orçamento corrente etc.; adicionado
(2) da parcela decorrente do sistema de repartição de receitas e de transferências intergovernamentais na Federação, que podem ser voluntárias ou obrigatórias.
80
KUGELMAS, Eduardo. A evolução recente do regime federativo no Brasil.
HOFMEISTER, Wilhelm e CARNEIRO,
José Mário Brasiliense (Organizadores).
In: Federalismo na Alemanha e no
Brasil. SP- Fundação Konrad Adenauer,
Série de Debates nº 22, Vol I. 2001. p.
29: “Embora o número de países com
regime federativo seja relativamente pequeno, em torno de vinte, esse
conjunto inclui alguns dos maiores
em extensão territorial e/ou população – Estados Unidos, Rússia, Brasil,
Canadá, Índia – e a maior potência do
continente europeu, a Alemanha. Na
consolidação da democratização espanhola foi peça central a adoção de um
regime por vezes chamado de quase
federativo um notável grau de autonomia para as regiões. A recente reforma
belga institucionalizou mecanismos
federativos para permitir a convivência
entre duas populações diferenciadas, a
dos flamengos e a dos valões de língua
francesa. Para a construção institucional da África do Sul como país democrático após o fim do aparthied foi
estratégica a adoção de procedimentos
de tipo federativo. Em um dos países
unitários arquetípicos, o Reino Unido,
está em andamento um ambicioso projeto de power devolution, atendendo
às reivindicações da Escócia e do País de
Gales. Os projetos e desenhos institucionais relativos à construção européia
passam fatalmente por uma discussão
histórica e conceitual sobre a natureza
das federações e a distinção entre estas
e as confederações”.
81
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Estado Federal e Estados Federados na
Constituição brasileira de 1988: do
equilíbrio federativo. BDA – Boletim
de Direito Administrativo. p. 49-50,
1993. O Ministro destaca a necessidade
de um sistema constitucional de discriminação de rendas, compreendendo a
repartição de competência tributária e
a distribuição de receita tributária.
FGV DIREITO RIO
33
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A análise da repartição de receitas e das transferências será realizada na
aula 8, nos termos já enfatizados, e o exame das receitas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sob o ponto de vista do substrato
econômico de incidência e sob a perspectiva da distribuição de competências
tributárias no federalismo fiscal brasileiro, será realizada nas aulas 11 e 13,
sendo necessário, neste momento, apenas examinar dois aspectos da matéria.
O primeiro aspecto relacionado à receita a ser abordado neste momento,
refere-se ao fato de que no atual regime constitucional brasileiro, ao contrário
do passado recente, não há qualquer subordinação do exercício da competência tributária ao orçamento anual, no plano federal, estadual ou municipal.
Ou seja, diferentemente das despesas, as quais têm como requisito necessário a autorização legislativa específica, anualmente,82 em qualquer dos entes
federados, a tributação, principal origem de recursos para os entes públicos,
independe de autorização parlamentar ânua, em qualquer dos entes políticos. Nesse sentido, impõe-se apresentar a redação do §34 do artigo 141, da
Constituição de 194683, regra/princípio inserido entre os direitos e garantias
individuais e cujo texto foi repetido em sua integralidade pelo artigo 51 da
Lei n º 4.320, de 17.03.1964, norma recepcionada pela atual constituição
de 198884 com status de lei complementar, devendo-se destacar que a mesma
disciplina foi repetida, da mesma forma, no artigo 150, §29, da Constituição
de 1967, todos, nos seguintes termos:
Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária,
ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra. (grifo nosso)
Dessa forma, o exercício da competência tributária ficava subordinado e
dependente da autorização legislativa anual, concretizando, assim, o denominado princípio da Anualidade Tributária. Esse princípio, não mais aplicável
atualmente, conforme será analisado a seguir, distingue-se do chamado princípio da Anualidade Orçamentária, o qual estabelece a vigência anual para
o orçamento (LOA), após o que será necessária, para legitimar a atividade
financeira do Estado no exercício subsequente, nova autorização de natureza
política. Assim sendo, a Anualidade Orçamentária, ainda hoje vigente – a
teor do disposto no artigo 165, III, e §5º, da CR-88 – expressa o controle do
Parlamento sobre os demais Poderes relativamente ao Orçamento, ao prever
que o mesmo deve ser elaborado para durar apenas um ano, isto é, há necessidade de renovação da autorização legislativa anualmente. Já o princípio da
Anterioridade Orçamentária85 prevê que o orçamento deve ser aprovado antes do início do exercício financeiro ao qual se aplica, matéria a ser abordada
na Aula 4, conjuntamente com os demais princípios orçamentários.
82
O artigo 167, I e II, da CR-88, será
transcrito na próxima aula e reexaminado na Aula 4.
83
Destaque-se que o art. 25 da
Emenda Constitucional nº 18/65, de
01.12.1965, revogou expressamente o
citado §34 do artigo 141 da Constituição de 1946, que previa a anualidade
tributária, e consolidado, no art. 2º, II,
da Constituição, a jurisprudência que
havia se fixado no âmbito do STF. De
fato, a exigência de prévia autorização
orçamentária já havia sido mitigada
pelo STF por meio da edição da Súmula
66, aprovada na reunião plenária de
13/12/1963 e que enunciava: “É legítima a cobrança do tributo que houver
sido aumentado após o orçamento,
mas antes do início do respectivo
exercício financeiro.” Referia-se, então, pela primeira vez, à regra/princípio
hoje denominada de anterioridade
tributária. Dessa forma, com a nova
redação da Constituição de 1946 conferida pela EC 18/65 (art. 2º, II: “É vedado
à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios: (I) ...; (II) cobrar imposto sobre patrimônio e a renda, com
base em lei posterior è data inicial do
exercício financeiro a que corresponda”), constitucionalizou-se a jurisprudência do STF, suprimindo-se temporariamente o princípio da anualidade
tributária, e positivando-se o que hoje
entendemos por anterioridade tributária, entretanto, exclusivamente em
relação aos impostos sobre patrimônio
e renda. Posteriormente, com a edição
da Constituição de 1967, o princípio da
anualidade tributária foi novamente
constitucionalizado expressamente,
no art. 150, §29, até ser promulgada a
Emenda Constitucional nº 1/69, a qual
excluiu definitivamente a exigência de
prévia autorização orçamentária para o
aumento de tributo de nosso ordenamento (anualidade tributária).
84
Ressalte-se que Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado
Federal aprovou em junho de 2010 o
parecer e o substitutivo do relator, Senador Arthur Virgílio, ao Projeto de Lei
Complementar nº 229, de 2009, o qual
prevê a revogação da Lei nº 4320/64
(art. 125 do projeto de lei) e estabelece
nova disciplina para o disposto no artigo 165, §9°, da CR-88, além de alterar
a denominada Lei de Responsabilidade
Fiscal (Lei Complementar nº 101/00).
85
O princípio da Anterioridade Tributária (clássica e nonagesimal) por sua
vez, por se consubstanciar mais uma
importante limitação constitucional ao
Poder de Tributar será estudado de forma detalhada quando do exame dessas
limitações.
FGV DIREITO RIO
34
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, a qual ensejou
ampla revisão no texto constitucional de 1967, retirou definitivamente a
exigência de prévia autorização orçamentária para a cobrança de tributos,
ao estabelecer a seguinte redação ao §29 do artigo 153:
Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem
cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado
esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e o imposto
lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição.
Assim sendo, a cobrança de tributo passou a ser possível após a Emenda
nº 1/69, com a vigência da lei que a estabelece, observada, apenas, a necessidade de que o ato legislativo esteja em vigor antes do início do exercício
financeiro, sendo dispensável, portanto, a prévia autorização orçamentária,
conforme anteriormente exigido, com a mitigação fixada pela jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal fixada na Súmula 66.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 8, de 14 de abril de 1977,
alterou-se novamente a redação do dispositivo, sem modificar, entretanto,
a desvinculação do exercício da competência tributária da prévia autorização orçamentária:
Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem
cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado
esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e outros
especialmente indicados em lei complementar, além do imposto lançado por
motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição.(grifo nosso)
A Constituição de 1988, por sua vez, também não fixou qualquer requisito orçamentário para o exercício da competência tributária, estabelecendo,
tão somente, na alínea “b”, do inciso III, do seu artigo 150, o denominado
Princípio da Anterioridade tributária, o qual veda a cobrança de tributos “no
mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu
ou aumentou”, sem haver, entretanto, qualquer vinculação ou subordinação
da tributação à citada autorização na lei anual do orçamento.
Portanto, desde a Emenda nº 1/69, não mais se aplica o disposto na
parte final do artigo 51 da Lei n º 4.320/6486, tendo em vista a sua revogação87 por incompatibilidade com as ordens constitucionais supervenientes. Nesse sentido, não há mais controle político a cada ano pelo Poder
Legislativo, posto não haver exigência de renovação anual da permissão
para a cobrança de tributos. Essa hipótese, concernente à inexistência de
86
Não tendo havido até hoje a edição da
Lei Complementar prevista pelo artigo
163 da Constituição da República de
1988 (CR-88) no que se refere às normas gerais de Direito Financeiro e Orçamento, salvo quanto à responsabilidade na gestão fiscal (Lei Complementar
nº 101/2000 - LRF), continua vigente
e eficaz a Lei nº 4.320/64, no que não
conflitar com a Carta Magna e com a
LRF. Nesse sentido, ADI 1.726-MC, cuja
ementa dispõe: “A exigência de previa lei complementar estabelecendo
condições gerais para a instituição de
fundos, como exige o art. 165, § 9º, II,
da Constituição, está suprida pela Lei
nº 4.320, de 17/03/64, recepcionada
pela Constituição com status de lei
complementar; embora a Constituição não se refira aos fundos especiais,
estão eles disciplinados nos arts. 71 a
74 desta Lei, que se aplica à espécie:
a) o FGPC, criado pelo art. 1º da Lei
n. 9.531/97, é fundo especial, que se
ajusta à definição do art. 71 da Lei n.
4.320/63; b) as condições para a instituição e o funcionamento dos fundos
especiais estão previstas nos arts. 72 a
74 da mesma Lei.” (ADI 1.726-MC, Rel.
Min. Maurício Corrêa, julgamento em
16-9-98, DJ de 30-4-04)
87
Há duas corrente doutrinárias quanto à incompatibilidade de norma infra
constitucional antecedente à nova
ordem constitucional: (1) aqueles que
sustentam a sua revogação, sendo
desnecessário, portanto, declará-la inconstitucional; e (2) os que defendem
tratar-se de inconstitucionalidade
superveniente, a exigir o seu reconhecimento expresso, tendo em vista
fundamentar-se em conflito sob a perspectiva da hierarquia das normas. A
questão é assim analisada por Luís Roberto Barroso: “De um lado, há os que
sustentam que a nova Constituição, ao
entrar em vigor, simplesmente revoga
toda a legislação precedente com ela
incompatível. Portanto, cuidar-se-ia
de um conflito de natureza temporal,
a ser resolvido no plano da vigência da
norma. De outro lado, há os que sustentam a inadequação de se tratar tal
questão à luz do direito intertemporal,
sob argumento de que a regra lex posterior derrogat priori somente se aplica
a normas de igual hierarquia. Por via de
conseqüência, consideram que o conflito entre a Constituição e a lei anterior é
de natureza hierárquica, a ser resolvido
no plano da validade da norma. Logo,
se a Constituição e a norma anterior são
incompatíveis, é caso de pronunciar-se
a inconstitucionalidade da norma, e
não sua revogação”. In. BARROSO, Luís
Roberto. Interpretação e Aplicação da
Constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003. p.72. O Supremo Tribunal Federal
tendo em vista, também, as conseqüências práticas de uma ou outra
opção e considerando, ainda, que em
face da revogação não caberia controle
FGV DIREITO RIO
35
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
renovação anual da autorização legislativa, é severamente criticada por
Montesquieu.88
Verifica-se, nesses termos, diferenças consideráveis na interação do orçamento anual e as receitas quando comparada a sua relação com as despesas,
haja vista que estas pressupõem a sua fixação89 na lei orçamentária todos
os anos, ainda que a determinação possua, de fato, caráter meramente autorizador da realização dos gastos, conforme será explicitado nas próximas
aulas, ao passo que o exercício da competência tributária, principal fonte de
recursos públicos, independe de autorização na norma orçamentária anual,
a qual apenas prevê e estima a receita, malgrado o caráter coercitivo daquelas
de natureza derivada, as quais deitam raízes no classicamente denominado
poder de império (jus imperi) ou no espaço aberto pelos direitos humanos
fundamentais, conforme a tese mais atual. Assim, conforme salienta Ricardo
Lobo Torres90, “com a superveniência do Estado de Direito e com a independência e o primado da lei formal, dá-se a bifurcação entre anualidade tributária e a orçamentária, como pioneiramente afirmou O. Mayer, ao observar
que se desvanecera a conexão entre o direito de consentir impostos e o direito
do orçamento.”
2.3 O FEDERALISMO FISCAL E AS DESIGUALDADES REGIONAIS
O segundo aspecto relativo à receita a ser examinado nesta aula diz respeito ao fato de que o regime federativo possui contradições ínsitas a esta
forma de Estado. O principal paradoxo inerente ao federalismo decorre da
interação entre:
concentrado de constitucionalidade,
ao passo que enquadrada a questão
no sentido da inconstitucionalidade
superveniente seria cabível a ação direta, decidiu, na ADI 438, ponderando
a necessidade de limitar o número de
feitos que chegam àquele tribunal, que
se trata de revogação da norma antecedente e não de inconstitucionalidade
superveniente.
88
MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois,
I. Folio Essais. Edition Gallimard, 1995.
Livre XI, Chapitre VI. p. 339-340.
(1) uma de suas características nucleares:91 “a apropriação dos recursos
fiscais, determinada pela capacidade econômica das jurisdições”,
seja pela estrutura de produção de bens e serviços, de seus recursos
naturais ou pelo potencial de consumo local, o que repercute nos
resultados do exercício da competência tributária própria e das receitas patrimoniais ; e
(2) a “exigência de igualdade entre os cidadãos no que se refere ao acesso a bens e serviços públicos”, imperativo dos regimes democráticos modernos.
89
Portanto, pode-se concluir que, não obstante ser possível ao governo
central adotar medidas compensatórias na vertente das despesas diretas no
âmbito territorial dos entes subnacionais menos desenvolvidos, ou, ainda, a
existência de sistemas de transferências intergovernamentais equalizadoras, a
lógica regedora desta forma de Estado não afasta, por si só, a continuidade
91
Essa é a nomenclatura utilizada no
artigo 165, § 8º, da CR-88 o qual dispõe que a “lei orçamentária anual não
conterá dispositivo estranho à previsão
da receita e à fixação da despesa, não
se incluindo na proibição a autorização
para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de
crédito, ainda que por antecipação de
receita, nos termos da lei”.
90
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Volume V. O Orçamento
na Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
p. 330.
PRADO, Sérgio. Partilha de recursos
e desigualdade nas federações: um
enfoque metodológico. In: REZENDE,
Fernando e OLIVEIRA, Fabrício Augusto
de. (Organizadores). Descentralização
e Federalismo Fiscal no Brasil. Desafios da Reforma Tributária. Rio de Janeiro: FGV - Konrad Adenauer Stiftung,
2003. p. 274.
FGV DIREITO RIO
36
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
e o agravamento das denominadas desigualdades regionais. Essas diferenças
inter-regionais são refletidas, segundo a ratio subjacente92 aos artigos 3º, III,
151, I, 165, §7º, e 174, §1º, da CR-88, nas acentuadas desigualdades na
qualidade de vida dos cidadãos residentes em áreas geográficas distintas do
mesmo país.
Merece destaque o fato de que maior será a dependência em relação ao
complexo sistema de transferências financeiras, que objetiva levar recursos
das regiões com maior capacidade econômica para as regiões mais pobres e
de menor potencial econômico, quanto maior for o peso conferido à solidariedade em âmbito nacional. Assim, se as medidas adotadas na tentativa
de garantir simetria de resultados estiverem acompanhadas de vedações ao
exercício de competência legislativa local, ou seja, quanto maior o peso da solidariedade interpessoal, setorial e regional, afastando-se radicalmente o princípio da subsidiariedade, nos termos delineados no federalismo cooperativo
alemão93, maior assimetria no sistema de partilha de poder, o que implica
distorções no funcionamento das instituições e nos procedimentos políticos
burocráticos, tendo em vista o alto grau de centralização94, o que determina
forte interdependência e falta de agilidade na tomada de decisões, além de
que “percebe-se cada vez mais que a homogeneidade, quanto aos resultados, tem
seu preço.”95
Por outro lado, a simetria no sistema de partilha de poder conduz a resultados inevitavelmente assimétricos, isto é, admitir competências concorrentes em vários níveis, com plenos poderes de tributação e gastos para cada
ente político, como ocorre nos Estados Unidos96, berço do federalismo, ou
no Canadá97, implica desigualdade inter-regional, tendo em vista a salientada
contradição intrínseca à forma de Estado federado.
Impõe-se, agora, analisar as regras gerais do sistema de partilha de receitas
e de transferências dos recursos financeiros entre os entes federados de acordo
com o modelo de federalismo fiscal brasileiro, matéria que será detalhada na
já citada Aula 8. Importante destacar, nesse sentido, que existem duas questões preliminares, as quais revelam, do ponto de vista econômico-financeiro,
se há, ou não, equilíbrio federativo, ou seja, se as unidades federadas dos
diferentes níveis estão financeiramente aptas a realizar o que delas a população espera:
92
Aponta Ricardo Lobo Torres no sentido: “De notar que a equidade entre
regiões visa sobretudo a garantir a
equidade horizontal entre os cidadãos
domiciliados nas diferentes localidades
do país”. v. TORRES. Op.cit. p. 308.
93
Inexistente a autonomia legislativa
em matéria tributária (art. 83 da Lei
Fundamental da República Federativa
Alemã) no âmbito dos Estados-membros (Länder), cabe aos entes subnacionais apenas a execução das leis, o que
qualifica o federalismo alemão para
alguns como um “federalismo administrativo”, em oposição ao “federalismo
legislativo” que caracteriza o Canadá.
A Câmara Alta (Bundesrat) –segunda
câmara do parlamento nacional, composta por representantes dos governos
subnacionais, é o instrumento por
meio do qual os Estados federados influenciam a política tributária do país,
o que afasta a autonomia na produção
legislativa e inibe a competição entre
os mesmos, introduzindo assim um
sistema de influência coordenada sobre
a política federal. Elcio Fonseca, citando
Hans Joechen Vogel, esclarece ser “la
gestión de la mayor de los impuestos
corresponde a las autoridades financieras regionales, pero em cambio los
Länder solo parcialmente tienen competências legislativas em esta matéria
– incluso respcto des impuestos cuya
recaudación va a parar integramente
a sus arcas-. De ahí que el Bundesrat
sea la principal via de influencia de los
Länder el importe de sus propios ingresos fiscales” (Cf. Elcio Fonseca Reis, Op.
Cit. p. 47)
94
SCHULTZE, Rainer-Olaf. Tendências
da evolução do federalismo alemão:
dez teses, in Federalismo na Alemanha e no Brasil. Konrad Adenauer
Stiftung, Série de Debates nº 22, Vol.
I, abril 2001, p. 22. Destaca o autor a
necessidade urgente de reforma “que
levem em conta os desafios surgidos na
economia regional, e, também maior
pluralidade cultural”, salientando que
no contexto “da futura repartição da
arrecadação tributária entre União, estados e municípios, e ainda, a questão
das competências tributárias originárias dos estados (...) diferentes alíquotas de tributos não deveriam constituir
um tabu”
95
(1) a primeira, relativa à repartição de encargos para a prática de atos
materiais entre os diferentes níveis de governo, isto é, se a distribuição de funções e atribuições é clara e excludente, não deixando margem para dúvidas quanto ao que pode e deve ser exigido
especificamente da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios; e
SPHAN, Paul Bernd. Solidariedade
versus eficiência em uma federação:
o caso da Alemanha, in Federalismo
e Integração Econômica Regional –
Desafios para o Mercosul, Fórum das
Federações, Konrad Adenauer Stiftung,
2004, p. 153 e 177. Após apresentar
inúmeros aspectos negativos do sistema alemão, no sentido de que a
“subsidiariedade e, portanto, a diversidade regional foi sacrificada consistentemente em favor da solidariedade
nacional” enfatiza a necessidade de
FGV DIREITO RIO
37
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(2) se o montante de recursos financeiros disponíveis para o financiamento dos gastos para cada ente, individualmente, atende, ou não,
às necessidades administrativas que visam à realização das ações e
funções previamente fixadas no ordenamento jurídico.
No que concerne à primeira questão, ou seja, quanto à repartição de funções e encargos entre os entes federados, a CR-88 distribui as competências
materiais, em especial, nos seus artigos 21, 23, 25, 30 incisos V a IX, 144, 198
e 211 (competência exclusiva, comum e concorrente), o que tem sido objeto
de muitas críticas, conforme se extrai da doutrina de Fernando Rezende:98
a) a ausência de uma nítida divisão de competências99 entre as diversas
esferas governamentais (e também com referência à questão metropolitana) gera duplicação de esforços e lacunas na prestação dos serviços, com grandes desperdícios (financeiros e outros) na ação governamental;
b) em decorrência, evidencia-se a dificuldade de atribuir responsabilidade às agências governamentais pela prestação do serviço, o
que dificulta a relação usuário-governo e o controle social sobre a
ação governamental;
c) conflitos institucionais freqüentes refletem negativamente na eficiência de toda a máquina administrativa;
d) a falta de uma visão clara do que compete a cada esfera torna
praticamente impossível uma repartição adequada dos recursos
públicos que deveriam ser fixados em função da correspondência
recursos-encargos. (grifo nosso)
Relativamente ao segundo aspecto, isto é, quanto às fontes de financiamento100 dos gastos, cumpre repisar que os mesmos correspondem ao conjunto: (A) das receitas próprias de cada unidade política, receitas correntes e
de capital – obtidas, principalmente, por meio do exercício de suas competências tributárias, de suas receitas patrimoniais, de suas atividades econômicas e das operações de crédito; e (B) da parcela decorrente do sistema de
repartição de receitas tributárias e de transferências intergovernamentais, que
podem ser voluntárias ou obrigatórias, correntes ou de capital.
A análise da vinculação ou não dos recursos tributários arrecadados e recebidos a título de transferência corrente será realizada quando forem examinadas as receitas dos entes federados.
Pelo que foi até aqui apresentado nessa aula, pode-se verificar o caráter
essencial do estudo dos dois elementos de natureza jus-política, os quais são
determinantes ao delineamento da estrutura institucional do país relativamente à matéria financeira pública: o federalismo fiscal e a distribuição de
funções entre os poderes.
equilíbrio entre os dois princípios, com
a introdução do “direito dos estados de
lançar alguns impostos próprios. Uma
política tributária autônoma - pelo
menos “na margem” – é um elemento
essencial e constitutivo da soberania
estadual”, e finaliza alertando que
diante da “relutância em mudar as
regras que aparentemente desmantelariam a solidariedade inter-regional”
“é questionável se os governos alemães
estarão em posição de competir com
outras nações e regiões num mundo
globalizado.”
96
Apesar do elevado grau de autonomia, em especial em matéria tributária, Elcio Fonseca adverte que “já nas
primeiras décadas do século XX, os
Estados não possuíam condições de
resolver seus problemas sem a intervenção do Poder Central, o que levou
a uma centralização do sistema federativo americano”. Nesse sentido, José
Baracho conclui que “o conceito clássico
de federalismo, em que se assentava
o sistema americano, não foi capaz
de suportar as grandes modificações
econômicas e sociais que acompanham
as novas formas de desenvolvimento”
(Cf. Elcio Fonseca Reis, Op. Cit. p. 29).
Destaque-se, ainda, a inexistência, no
sistema americano, de um programa
formal de equalização da receita e
preocupações acerca de transferências
intergovernamentais, apesar de que,
no lado das despesas, sejam ponderadas questões regionais no processo de
decisão de alocação de recursos.
97
COURCHENE, Thomas J. Federalismo
e a nova ordem econômica: uma
perspectiva dos cidadãos dos processos, in Federalismo e Integração
Econômica Regional–Desafios para
o Mercosul, Fórum das Federações,
Konrad Adenauer Stiftung, 2004, p. 27:
“a Federação canadense é altamente
descentralizada tanto nas despesas
como nos impostos. Por exemplo:
as províncias aplicam suas próprias
alíquotas e categorias tributárias em
termos de imposto de renda (física ou
jurídica), seus próprios impostos de
consumo e, em geral, controlam os
recursos naturais dentro de suas fronteiras e são responsáveis por saúde,
educação, previdência e treinamento,
entre muitas outras áreas (...), não se
deve surpreender o fato de que o sistema canadense de transferências intergovernamentais sirva para ajustar essa
descentralização”. (grifo nosso)
98
REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.50.
99
A titularidade dos serviços de saneamento, por exemplo, ainda causam
polêmica, mesmo após a edição da
Lei nº 11.445/2007, a qual atribuiu
competência legislativa aos entes da
federação para que possam modernizar
a infraestrutura dos serviços públicos.
FGV DIREITO RIO
38
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O sistema de distribuição de funções entre os Poderes constitucionalmente instituídos, matéria a ser examinada na próxima aula, suscita elevado grau
de fricção entre as instituições nacionais, em especial as divisões de competências para aprovar as despesas, bem como a natureza meramente autorizadora do orçamento, associado à complexidade do modelo de federalismo
fiscal nacional, caracterizado por conflitos no plano horizontal e vertical, o
que frequentemente gera mais calor do que luz.
Conforme notícia extraída do sítio do
Supremo Tribunal Federal, 07 de Julho
de 2009: “Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 1842 e 2077)
discutem o tema ao questionarem leis
do estado do Rio de Janeiro que tratam
sobre a prestação de serviço de saneamento básico (Lei estadual 2.869/97) e
sobre a criação da região metropolitana
e da microrregião dos Lagos no estado
(Lei Complementar 87/89). O julgamento da ADI 1842 começou em abril
de 2004 e foi interrompido por diversas
vezes. Atualmente, as duas ações estão
sendo analisadas conjuntamente e a
matéria está nas mãos do ministro Ricardo Lewandowki, que pediu vista do
processo na sessão do dia 3 de abril de
2008. Sciarra ressalta que a finalização
desse julgamento é importante para
que, juntamente com a regulamentação da lei sobre saneamento básico,
seja possível estimular investimentos
públicos e privados na área. Ele destaca que esses investimentos ‘são muito
necessários’ já que hoje o país tem
‘uma cobertura muito baixa na área
de saneamento nos municípios brasileiros’. ‘Um dos entraves, justamente,
é a falta de definição de titularidade
[do saneamento básico]. Por isso nós
estamos aqui no Supremo dizendo da
necessidade, de o mais rápido possível,
se definir a questão da titularidade’,
ponderou”. Disponível em: <http://
www.stf.jus.br>.
100
A diferença entre as despesas e receitas, nestas incluídas os recursos financeiros provenientes das transferências
recebidas, voluntárias e obrigatórias,
corresponde ao que se denomina de
public sector borrowing requirements,
correspondente em português às necessidades de financiamento do setor
público, matéria que será examinada
na aula pertinente ao Financiamento
dos Gastos e Crédito Público.
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39
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 3 – O ESTADO FINANCEIRO, A REPÚBLICA E O FEDERALISMO
FISCAL. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES101.
Após a apresentação da forma de Estado da República e a introdução do
Federalismo Fiscal brasileiro, iniciaremos nesta aula o estudo acerca da natureza autorizadora do orçamento para a efetivação das despesas, bem como
o exame preliminar da relevância da distribuição de funções entre o Poder
Legislativo e o Poder Executivo no que se refere ao orçamento, matéria que
será detalhada na próxima aula. Nesse sentido, impõe-se agora analisar o
segundo elemento de natureza jus-política que também possui como ratio
subjacente evitar a concentração excessiva e os abusos no exercício do poder,
sendo, também, fundamental à constituição do perfil institucional brasileiro:
o sistema de distribuição de funções entre os Poderes da República que ocorre
no âmbito da Federação.
Nesse sentido, cumpre destacar que os Poderes Legislativos da União, dos
Estados do Distrito Federal e dos Municípios não estão limitados pela CR-88
à função de criar normas gerais e abstratas nos âmbitos de suas repectivas atribuições constitucionalmente estabelecidas. Compete às Casas Legislativas,
conforme será examinado ao longo do curso, também, além de outras atividades, autorizar despesas e receitas do Estado, fiscalizar a atividade de outras
entidades do Poder Público nas áreas previamente fixadas, como as contas
prestadas pelo Presidente da República, e, por simetria, dos Governadores e
Prefeitos, apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo e os
atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração Indireta (vide art.
48, II, IX e X da CR-88).
3.1 O SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES
A previsão do orçamento no Brasil, incluindo a fixação de despesas e a
estimativa de receitas orçamentárias, assim como a determinação de elaboração de um balanço geral das receitas e despesas do ano anterior, está expressa
desde a Constituição Política do Império, de 25 de Março de 1824, cujo art.
15, item 10, art. 36, item 1, e art. 172 dispõem, respectivamente:
Art. 15. É da atribuição da Assembléia Geral
..................
10). Fixar anualmente as despesas públicas, e repartir a contribuição direta.
..................
Art. 36. É privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa.
1º) Sobre impostos.
..................
101
Recomenda-se revisar o conteúdo
das Aulas 11 a 16 do material didático
de Direito Constitucional I (2010.2) antes da leitura desta aula.
FGV DIREITO RIO
40
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Art. 172. O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros
Ministros os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, apresentará na
Câmara dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço
geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente
o orçamento geral de todas as despesas publicas do ano futuro, e da importância
de todas as contribuições, e rendas publicas.
Conforme se verifica na Constituição Imperial, incumbia ao Poder Legislativo, por meio da Câmara dos Deputados, a iniciativa das leis sobre
impostos e à Assembléia Geral, composta pela “Câmara dos Deputados e
Câmara dos Senadores ou Senado”, nos temos do artigo 14, a aprovação da
lei orçamentária que fixava a despesa pública e repartia a denominada contribuição direta.
Ao Poder Executivo, que ao lado do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Poder Moderador constituíam os poderes políticos reconhecidos pela
Constituição do Império (art. 10), conforme já examinado na disciplina de
Direito Constitucional I102, incumbia, nos termos do transcrito artigo 172:
(A) elaborar o projeto do “orçamento geral de todas as despesas publicas do
ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas públicas”, ou
seja, estimar e orçar as receitas e despesas do ano subseqüente; (B) apresentar
“um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente”, o que permitia o controle das finanças; e (C) a execução orçamentária, a qual se efetivava pelo exercício de suas competências para a prática de
atos materiais e para “expedir decretos, instruções e regulamentos adequados
à boa execução das leis”, bem como “decretar a aplicação dos rendimentos
destinados pela Assembléia aos vários ramos da pública administração” (art.
102, itens 12 e 13).
A análise dos mencionados dispositivos da Carta do Império nos permite
identificar o primeiro conjunto de questões a serem disciplinadas quanto ao
orçamento, às receitas e às despesas públicas, isto é, a atribuição de competências e distribuição de funções103 entre os poderes constituídos, relativamente
a cada uma das etapas do orçamento e em relação à previsão, autorização e
efetivação das receitas e despesas.
De fato, as diversas características que podem assumir a distribuição de
prerrogativas, bem como as etapas compreendidas em todo o processo, revelam o perfil do orçamento em dado momento histórico, o que auxilia a
perquirição da natureza jurídica do ato, assim como a delinear o sistema de
freios e contrapesos entre os poderes constitucionalmente constituídos. A
natureza jurídica do orçamento é controvertida e objeto de amplo debate
na doutrina104, tendo em vista as suas especificidades. No Brasil, entretanto,
a própria CR-88 confere105 a natureza de lei em caráter formal às três peças
orçamentárias, o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO)
102
Aula 11, p. 68 do material didático de
Direito Constitucional I (2010.2).
103
Ensina o professor de Sorbonne
Laurent Versini que Montesquieu falava
de distribuição de poderes e funções e
não propriamente da sua separação:
“Partout ailleurs, le président parle de
distribuition des pouvoirs et non de
séparation. E livre XI, qui a pour objet
de montrer comment la distribution
des pouvoirs assure da liberté politique
d’abord en Angleterre (chap.6) pui dans
la république romaine (12 sq.), a jusque dans ses titres de chapitres toute la
précision souhaitable : voire chapiter 12,
<<Du gouvernment des rois à Rome, et
comment les trois pouvoirs y furrent distribués>> ; voyez égalment au chapitre
7 comment, dans les monarchies autres
que l’anglaise, le trois pouvoirs <<ont
chacun une distribuition particulière,
selon laquelle ils approchent plus moins
de la liberté politique>> : c’est dire
que le pouvoir exécutif, ou législatif,
ou judiciaire est partagé plus moins
inélgalement entre plusieurs autoriés.
La confusion est venue de l’ambiiguité
du mot pouvoir :les fonctions exécutive,
législative ou judiciaire étant dans les
démocraties modernes le plus souvent
exercées chacune par un organe spécialisé, on identifie la fonction avec
l’organe sous le nom de pouvoir alors
que pour Montesquieu la fonction doit
être répartie entre plusieurs organes
pour que le pouvoir arrête le pouvoir, et
que soit assurée la modération, donc la
liberté.” VERSINI, Laurent. Introduction.
In: MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois,
I. Folio Essais. Edition Gallimard, 1995.
p. 40-41
104
HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 57/58.
105
Ver em especial o artigo 165, caput,
e § 1º, §2º, §5º, §6º e §8º, da CR-88.
FGV DIREITO RIO
41
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
e os orçamentos anuais (LOA), matéria que será objeto de exame detalhado
na Aula 4. Apesar do artigo 166 da CR-88 estabelecer regime procedimental
específico para a apreciação, tramitação e votação dos projetos das leis orçamentárias, conforme será estudado adiante, aplicam-se aos mesmos, no que
não contrariar o disposto na Seção II, do Capítulo II, do Título VI da CR88 (artigo 165 a 169), as demais normas relativas ao processo legislativo.106
Assim, o quorum exigido para a sua aprovação é o comum, fixado no art. 47
da CR-88, a exigir a “maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus
membros”, e não o qualificado de lei complementar, disciplinado no art. 69,
razão pela qual, no atual regime jurídico brasileiro, o orçamento assume a
natureza de lei ordinária.107 Ressalte-se, entretanto, tratar-se de norma de
natureza especialíssima, posto não se amoldar perfeitamente ao conceito técnico de generalidade, abstração e impessoalidade, atributos que, como regra
geral, caracterizam a lei em sentido material108, sem mencionar a indeterminação temporal. A lei do orçamento anual, por exemplo, além de vigorar por
prazo determinado de um ano, produz efeitos concretos, motivos pelos quais
muitos autores sustentam não se qualificar o orçamento como lei sob o ponto
de vista material.109
Constata-se pela leitura das Constituições brasileiras de 1824, 1891, 1934,
1937, 1946, 1967 e 1967/69 que várias modalidades e critérios de fixação
de competência foram adotados no país até então, havendo períodos: (1) de
maior concentração de atribuições no Poder Executivo (ex. 1937); (2) aquelas
em que preponderava a atuação do Poder Legislativo (ex. 1891), que incluiu
a competência do Congresso Nacional para “orçar110 a receita, fixar a despesa
federal anualmente e tomar as contas da receita e despesa de cada exercício
financeiro”; e, finalmente, (3) as demais Constituições, que se caracterizaram
pela adoção de modelos muito detalhistas e de ampla distribuição de funções
e competências entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo (ex. 1824, 1934,
1946, 1967 e 1967/69), como é o caso, também, da Carta atual de 1988.
Cabe ressaltar que, à exceção da citada Constituição Imperial de 1824 – a
qual implementou um sistema quadripartido de poderes – as demais Constituições brasileiras adotaram o modelo tripartido de funções de Montesquieu, tendo, no entanto, assumido feições diversas e ponderações distintas
na alocação de atribuições relativas ao orçamento, às despesas e às receitas,
dependendo do contexto político, econômico e social. Importante salientar
que, não obstante estarem as competências previamente fixadas no plano
normativo-constitucional, no mundo real ocorrem retrações e ampliações no
campo de atuação de cada poder ao longo do tempo, dentro do mesmo regime constitucional e do mesmo sistema de governo (parlamentarismo ou
presidencialismo), visto que, além da realidade fática e política se alterarem,
a usurpação é ínsita ao exercício do poder, conforme salienta Fernando Papaterra Limongi:111
106
Artigo 166, §7º, da CR-88.
107
Na Aula 4 será detalhada a matéria,
ocasião em que se verificará que o PPA
é lei formal, sendo dependente do
orçamento anual para possuir eficácia
relativamente à realização das despesas. No mesmo sentido, a LDO também
é lei formal, compreendendo apenas as
metas e prioridades da administração
pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente e contendo simples orientação
para a elaboração da lei orçamentária
anual, razão pela qual não criam, em
regra, direitos subjetivos para terceiros
nem tem eficácia fora do âmbito dos
Poderes do Estado. Nesse sentido, Ação
Originária 533-9, em cuja decisão monocrática assevera o relator: “(...) Ademais, a alegação fundamentada em
suposto direito subjetivo do autor ao
repasse da verba requerida está afastada, conforme fundamento doutrinário
embasador da decisão mencionada,
que pela propriedade vale ser trasladado: a lei orçamentária possui “o claro
objetivo de limitar o orçamento à sua
função formal de ato governamental,
cujo propósito é autorizar as despesas
a serem realizadas no ano seguinte
e calcular os recursos prováveis com
que tais gastos poderão ser realizados,
mas não cria direitos subjetivos” (Luiz
Emydio F. da Rosa Jr., “Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário”, 10ª
edição, Renovar, p. 80). Em face de tais
circunstâncias, com respaldo no inciso
IX do art. 21 do RISTF, julgo prejudicada
esta ação. Publique-se. Brasília, 21 de
setembro de 2004. Ministro Eros Grau
Relator”.
108
Essa matéria tem relevância não
apenas sob o ponto de vista acadêmico, tendo em vista a sua importância
para a admissibilidade do controle
judicial de constitucionalidade na via
principal das leis orçamentárias, isto
é, por ação direta. A doutrina clássica,
que tem como um de seus expoentes
o professor San Tiago Dantas, pontua
que: “nem toda a lei é norma jurídica.
A lei é a estrutura externa da norma
jurídica, mas pode haver lei contendo
um ato administrativo, como por
exemplo: art. 1º, fica aberto um crédito
de tantos contos de réis para realização
do serviço de extinção da malária. A lei
aí é elaborada segundo os preceitos
constitucionais para esta espécie de
ato, mas não contém uma norma jurídica. Contém, apenas, um comando
administrativo; contém uma norma
que não é universal, que se concretiza
em torno de determinado caso, que é
particular e, portanto, pertence ao tipo
de comando administrativo, não ao
tipo de comando jurídico. Daí uma divisão: lei em sentido formal e lei em sentido material. A lei em sentido formal é
aquela elaborada segundo os preceitos
constitucionais referentes ao assunto,
FGV DIREITO RIO
42
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Como afirma Madison, não se nega que o poder é, por natureza, usurpador,
e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que
lhe foram fixados”. (“O Federalista”, n. 48). A limitação do poder, dada esta sua
natureza intrínseca, só pode ser obtida pela contraposição a outro poder, isto
é, o poder freando outro poder. Neste ponto, “O Federalista” se aproxima de
Montesquieu. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação de poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente
em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes
contém especificidades que merecem ser anotadas.
Na seara orçamentária é comum ocorrerem anualmente, no contexto
brasileiro atual, situações concretas de interação conflituosa entre o Poder
Legislativo e o Poder Executivo, abarcando, de forma subjacente, os inevitáveis conflitos político-partidários – aliados e oposição. A sua raiz, certamente, está, em especial, na tentativa de ampliação dos respectivos âmbitos de
atuação no que se refere ao orçamento, com reflexos diretos na previsão de
receitas e despesas e, em particular, na especificação e alocação dos gastos,
os quais têm como pressuposto necessário a sua previsão em lei112, além de
condicionarem os projetos e programas que norteiam a ação governamental. Essa disputa é suavizada em função das vinculações constitucionais e
legais de determinadas receitas à despesas específicas, como as de seguridade
social, folha de pagamentos e dos compromissos das dívidas, o que centraliza
o âmbito dessas tensões nas denominadas despesas de Investimentos.
O Poder Judiciário, sem dúvida, também se insere de forma decisiva nesse sistema de checks and balances relativamente ao orçamento, às receitas e
às despesas, notadamente por sua competência para exercer o controle de
constitucionalidade das leis e dos atos normativos, sem esquecer, entretanto,
que a atuação independente pressupõe autonomia financeira, razão pela qual
este Poder, como os outros, também atua ativamente em busca de proteção
de seus interesses financeiro-orçamentários. Nesse sentido vale ressaltar o disposto no artigo 99 da CR-88, que dispõe in verbis:
Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa113 e financeira.
§ 1º – Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
§ 2º – O encaminhamento proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I – no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais;
e lei em sentido material é aquela não
só elaborada desse modo, mas que
também contém uma norma jurídica”.
In: DANTAS, SAN TIAGO. Direito Civil.
Parte Geral. Clássicos da Literatura
Jurídica. 4ª tiragem. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1979. p.87-88. Nessa linha,
a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal sempre foi no sentido de considerar a lei de efeito concreto como
inidônea para o controle abstrato de
normas, razão pela qual considerava
majoritariamente inadmissível a ação
direta de inconstitucionalidade contra
lei orçamentária que destinasse determinada soma pecuniária ou percentagem de receita fixada para finalidade/
despesa específica, tendo em vista não
serem as normas dotadas de abstração
e generalidade (ADI 1640, ADI 2057,
ADI 2484). Essa jurisprudência tem sido
mitigada nos últimos anos (ADI 2.925,
ADI 2108), havendo diversas hipóteses,
quando os dispositivos especificamente
impugnados possuam suficiente grau
de generalidade, que o STF passou
a admitir o controle direto, o que será
objeto de análise quando do exame dos
denominados créditos adicionais.
109
Para análise detalhada quanto à
natureza do orçamento (Teoria da Lei
Formal, Teoria da Lei Material e A Teoria
da Lei “Sui Generis”) v. TORRES, Ricardo
Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume
V. O Orçamento na Constituição. 3ª
ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro.
Renovar, 2008. p. 93-99.
110
Nesse sentido, tendo em vista a competência do Poder Legislativo para “orçar”, isto é, estimar a receita e fixar a
despesa, constata-se a mudança radical
em relação à Constituição anterior, de
1824, a qual determinava a competência do Poder Executivo para elaborar a
peça orçamentária.
111
LIMONGI, Fernando Papaterra. “O
Federalista”: remédios republicanos
para males republicanos. In: WEFFORT,
Francisco C. Os Clássicos da Política.
Vol. 1. 13 ª ed. São Paulo: Editora Ática.
p 249-250.
112
Art. 167 da CR-88 estabelece que:
“São vedados: I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei
orçamentária anual; II – a realização
de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos
orçamentários ou adicionais; (...)”, ao
passo que o §8°, do art. 165, determina
que a LOA fixa as despesas. Essa questão será detidamente analisada na próxima aula pertinente aos Orçamentos.
113
A Súmula 649 do STF prescreve: “É
inconstitucional a criação, por Constituição estadual, de órgão de controle
administrativo do Poder Judiciário
do qual participem representantes
de outros Poderes ou entidades”. O
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43
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
II – no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
(*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004:
§ 3º – Se os órgãos referidos no § 2º não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de
acordo com os limites estipulados na forma do § 1º deste artigo.
(*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004:
§ 4º – Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta
orçamentária anual.
(*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004:
§ 5º – Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a
realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas,
mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais.
Esse dispositivo, bem como aqueles que conferem a prerrogativa ao Ministério Público, ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo para elaborarem
as suas respectivas propostas orçamentárias serão analisados na Aula 4.
Considerando o que foi exposto, percebe-se a distribuição de funções entre os poderes constitucionalmente constituídos enseja três tipos de interações
sistêmicas potencialmente conflituosas: (a) Poder Executivo-Poder Legislativo;
(b) Poder Legislativo-Poder Judiciário; e (c) Poder Executivo-Poder Judiciário. Conforme já examinado, considerando que no regime federativo adotado
na República Brasileira cada ente político (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios) possui o seu próprio orçamento, esses conflitos entre os Poderes
podem ocorrer nos diversos âmbitos da Federação. Constata-se, assim, que a
matéria financeiro-orçamentária suscita constantemente, durante o denominado ciclo orçamentário a ser examinado na próxima aula, a realização concreta
do denominado sistema de freios e contrapesos, o que pode ser mais intenso
ou não, dependendo do modelo de orçamento adotado no país, conforme será
explicitado a seguir e detalhado ao longo da primeira parte do curso.
3.2 A NATUREZA AUTORIZADORA DO ORÇAMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DAS DESPESAS
O orçamento anual no que se refere à realização das despesas pode ser
autorizativo ou impositivo. Nesses termos, uma vez aprovada a peça orça-
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao
qual foi atribuído o controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres
funcionais dos juízes foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio
da Emenda Constitucional 45/2004 que
incluiu, entre outros, o artigo 103-A e
103-B à Constituição da República Federativa de 1988.
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44
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mentária anual pelo Poder Legislativo, e sancionada pelo chefe do Poder
Executivo, duas possibilidades se afiguram quanto à realização das despesas
por parte da Administração Pública dos diversos Poderes: (1) a primeira, se
a autoridade responsável por sua execução não tem opção, ou seja, tem que
cumprir o que foi, ou vier a ser, determinado pela Casa Legislativa, contexto
no qual o orçamento se caracteriza como impositivo àquele que o executa;
ou (2) o segundo modelo, no qual a Casa Legislativa, ao aprovar o projeto de
lei orçamentária, apenas confere uma autorização para que a Administração
Pública do Poder respectivo, inclusive o próprio parlamento, realize o que foi
previsto. No segundo caso, o orçamento caracteriza-se por ser instrumento
meramente autorizador dos gastos e, por conseguinte, da execução dos programas deles decorrentes. Nesse segundo modelo, que é adotado atualmente
no Brasil (orçamento autorizativo), as despesas fixadas pelo Legislativo servem, na prática, como teto ou limite para o executor do orçamento, na medida em que este pode realizar o que se denomina de contingenciamento114,
assim como determinar, sem a anuência ou prévio consentimento parlamentar, o corte de despesas previstas no comando legislativo.
Rubens Penha Cysne115 analisa a questão nos seguintes termos:
Do ponto de vista da política de incentivos fica claro que o excesso de arbitrários contingenciamentos orçamentários (despesas aprovadas pelo Congresso
e unilateralmente não executadas pelo Executivo) acaba por gerar perdas para
todos os lados. Tratando-se o orçamento de um jogo repetido anualmente, deputados e senadores e destinatários das verbas reagem a tal prática, o que por sua
vez gera reação da parte do Executivo e nova reação do Legislativo, etc., num
ineficiente ciclo cujo limite se dita pela paciência e capacidade de cada ator de
calcular a reação dos demais. Um pouco de observação histórica e de outros países, a exemplo do que se sugere no item quatro acima, mostra que tal processo
também existia nos Estados Unidos até 1974, tendo nesta data sido abolido pelo
Budget Impoudment Act.
116
A edição do citado Impoundment Control Act of 1974, que é o título X
da lei federal117 disciplinadora do processo orçamentário nos Estados Unidos,
retirou a possibilidade de o Poder Executivo, unilateralmente, suprimir ou
cortar despesas previamente aprovadas pelo Congresso, salvo expressa autorização do próprio Parlamento. No entanto, todos os presidentes americanos
que assumiram posteriormente o cargo tentaram reduzir essa dependência
em relação ao Legislativo e, assim, reassumir a substancial parcela do poder
retirado pelo citado título X, sob o argumento de que não haveria vedação
constitucional expressa de se gastar menos do que o fixado pelo Congresso,
podendo o Poder Executivo definir, inclusive, itens individuais ou específicos
de despesas a serem contingenciadas e não todo o orçamento. Nesse sentido,
114
A expressão contingenciar significa
controlar as despesas do orçamento governamental impondo corte à conta de
uma rubrica orçamentária ou limitação
de empenho e movimentação financeira, o que deveria ter como objetivo exclusivo afastar a possibilidade de desequilíbrios financeiros no decorrer de um
exercício, considerando, em especial, a
frustração na realização das receitas
estimadas, conforme dispõe o artigo 9º
da Lei Complementar nº 101/2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse sentido, nos termos em que
será analisado a seguir, após identificados os recursos para o atendimento
dos programas fixados no orçamento,
cabe ao Poder Executivo estabelecer
cotas e prazos para a sua utilização
em consonância com o desempenho
da arrecadação, do comportamento e
ritmo das despesas em face das metas
de resultado primário do governo. No
entanto, na prática, o contingenciamento pode ser utilizado como forma
de ampliar o espaço de atuação do Poder Executivo no campo orçamentário.
No mesmo sentido, a possibilidade de
abrir créditos suplementares sem específica autorização legislativa, utilizando
o cancelamento de dotações indicadas
na lei orçamentária de forma genérica
como fonte ao crédito adicional amplia
o espaço de atuação do Executivo.
115
CYSNE, Rubens Penha. O predomínio
da agenda fiscal. Conjuntura Econômica. Dez 2007. Vol. 61. nº 12. Fundação Getúlio Vargas. p. 22.
116
Analogamente ao contingenciamento, impoundment significa a não execução pelo Poder Executivo, de forma
unilateral, isto é, sem prévio consentimento legislativo, das despesas fixadas
na lei orçamentária de forma detalhada
por itens. Nesses termos o Impondment
Control Act of 1974 é a lei federal, ou o
capítulo X da lei que regula o Processo
Orçamentário americano, que visa a
disciplinar e controlar o contingenciamento.
117
Congressional Budget and Impoundment Control Act of 1974 (Pub.L.
93-344, 88 Status. 297, 2 U.S.C. §
601–688.). United States. U.S. House of
Representatives Committee on Rules.
Disponível em: <http://www.rules.
house.gov/budget_pro.htm>. Pesquisa realizada em 20.05.2008.
FGV DIREITO RIO
45
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
para atender aos anseios da administração Clinton, foi editado o Line Item
Veto Act of 1996, o qual produziu efeitos até 12 de fevereiro de 1998, período
dentro do qual foram contingenciados valores substanciais das leis orçamentárias vigentes. No entanto, em 25 de junho de 1998, a Suprema Corte dos
Estados Unidos, em uma decisão de 6 votos contra 3, no caso Clinton v. City
of New York118, confirmou a decisão do juiz Thomas Hogan, da United States
District Court for the District of Columbia, a qual havia declarado inconstitucional o não cumprimento das despesas nos termos aprovados no orçamento (budget), isto é, considerou o Line Item Veto Act of 1996 incompatível
com a Constituição, na medida em que permitia a não realização de despesas
especificamente aprovadas pelo Congresso e de forma unilateral pelo Poder
Executivo. Dito de outra maneira, o Poder Judiciário americano considerou
indelegável a prerrogativa parlamentar de fixar as despesas de forma impositiva e discriminada. Em que pese a decisão da Suprema Corte, as tensões entre
os Poderes Executivo e Legislativo não arrefeceram, o que pode ser constatado pelo discurso inaugural da sessão legislativa do Congresso Americano de
2006 denominado State of the Union Address, em 31 de janeiro de 2006, no
qual o ex-presidente Bush urged Congress to “pass the line-item veto”119, o que
deixou transparecer que a questão, apesar de disciplinada pelo citado Congressional Budget and Impoundment Control Act of 1974, parece não ter sido
definitivamente pacificada. De fato, o atual presidente Barack Obama, que
já foi contra a delegação ao Poder Executivo, encaminhou ao Congresso, em
maio de 2010, uma proposta, denominada “Reduce unnecessary Spending
Act of 2010”, objetivando reestabelecer sistema semelhante ao “line-item
veto”, com algumas alterações120, conforme noticiado na imprensa americana
nos seguintes termos121:
Obama asks Hill for line-item veto he once opposed
As senator, turned down Bush (Monday, May 24, 2010.)
When President George W. Bush called for a kind of line-item veto four years ago, the top Senate Democrat said it was like getting a “bad sore throat,” and
the No. 2 House Democrat called it “a sham.” On Monday, President Obama
asked them to reconsider and pass something very similar, for his sake.
With fears of a Greek-style debt collapse roiling a Congress already balking
at new spending, the White House on Monday proposed a modified line-item
veto that would give the administration another crack at forcing Congress to
vote on spending cuts.
But the proposal will have to pass a Congress wary of giving up power over
the purse, and would require a reversal by many Democrats who voted against a
similar proposal from Mr. Bush. (...)
118
U.S. Supreme Court No. 97-1374.
WILLIAM J. CLINTON, PRESIDENT OF THE
UNITED STATES, ET AL, APPELLANTS v.
CITY OF NEW YORK ETAL. ON APPEAL
FROM THE UNITED STATES DISTRICT
COURT FOR THE DISTRICT OF COLUMBIA [June 25, 1998] Disponível em:
<http://caselaw.lp.findlaw.com>.Pesquisa realizada em 20.05.2008
119
Disponível em:<http://www.law.com/
jsp/article.jsp?id=1138874718390>.
Pesquisa realizada em 20.5.2008.
120
A proposta cria um procedimento
célere para “rescind unnecessary spending”. De acordo com o projeto o termo
“rescind” significa: “to eliminate or reduce
the amount of enacted funding”. Cópia
pode ser obtida em: <http://www.whitehouse.gov/omb/assets/blog/Unnecessary_Spending_Act.pdf>. Pesquisa
realizada em 20.5.2008.
121
Disponível em: <http://www.
washingtontimes.com/news/2010/
may/24/when-president-george-wbush-called-for-a-kind-of-/>. Pesquisa realizada em 23.6.2010.
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Isso posto, pode-se identificar a relevância do tema para a escolha de um
entre os diversos modelos jus-políticos possíveis para disciplinar o processo
orçamentário, especialmente no que se refere à sua relação com as despesas.
Saliente-se que no início de todo exercício financeiro no Brasil é comum
que o Poder Executivo edite Decreto para bloquear gastos que fora aprovado
na lei orçamentária anual (LOA) pelo Parlamento, tanto no âmbito da União
como dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. De fato, já no dia
02.01.2012, o Jornal Valor Econômico do anuncia que governo federal prevê
a necessidade de contingenciamento, tendo em vista que “as despesas com
benefícios previdenciários, assistência social, seguro-desemprego e abono
salarial, que constam do Orçamento da União para 2012, recém aprovado
pelo Congresso, estão subestimadas em cerca de R$ 8 bilhões”. Assim, “se
a previsão do governo se confirmar, a presidente Dilma Rousseff terá uma
dificuldade adicional para cumprir a meta de superávit primário deste ano,
equivalente a 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB), pois será obrigada a
fazer um contingenciamento ainda maior das verbas orçamentárias”.
Também no ano de 2011, já no dia 03 de janeiro, antes mesmo da sanção,
promulgação e publicação da LOA aprovada em dezembro de 2010 pelo
Congresso Nacional, já tinha sido anunciado pelo memso Jornal Valor, em
matéria intitulada “Decreto deve bloquear preventivamente o Orçamento”,
que a nova presidenta “Dilma Rousseff deve assinar, nos próximos dias, um
decreto de bloqueio preventivo do Orçamento da União, até que o projeto
aprovado pelo Congresso Nacional seja esmiuçado e as receitas e despesas,
reprogramadas pela área econômica do novo governo”. Na mesma linha, no
ano de 2010, após a edição de Decreto nº 7.144, de 30 de março de 2010,
ocasião em que foram bloqueados R$ 21,8 bilhões, foi editado o Decreto nº
7.189, de 30 de maio de 2010, para contingenciar mais R$ 7,61 bilhões dos
gastos autorizados pela lei do orçamento do exercício (LOA 2010), Lei nº
12.214, de 26 de janeiro de 2010.
Esses contingenciamentos, realizados por meio da limitação do empenho122 e a movimentação financeira, fundamentaram-se nos artigos 8º e 9º
da Lei Complementar nº 101/00, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os quais indicam que:
Art. 8o Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que
dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do
inciso I do art. 4o, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o
cronograma de execução mensal de desembolso.
Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica
serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda
que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso.
122
O conceito e a disciplina jurídica do
empenho serão estudados na Aula 5.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Art. 9o Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita
poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias
subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os
critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. (grifo nosso)
Como ocorre normalmente, a oposição critica o contingenciamento das
despesas, tendo em vista a redução do papel do parlamento em relação ao
orçamento. Nesse sentido, conforme amplamente noticiado pela Agência
Câmara123 no dia 02/06/2010, em relação ao orçamento de 2010:
A decisão do Executivo de ampliar o contingenciamento das despesas discricionárias (não obrigatórias) do orçamento deste ano em R$ 7,614 bilhões
foi criticada pela oposição nesta terça-feira, que viu na iniciativa deficiências no
planejamento dos gastos e da receita. Na base governista, o bloqueio foi encarado como uma medida de austeridade e de preocupação sobre a alta inflacionária
deste ano.
Para o coordenador da bancada do PSDB na Comissão Mista de Orçamento,
deputado Rogério Marinho (RN), a decisão mostra que o governo está falhando
no planejamento. “Ele não prevê corretamente receitas e despesas e isso faz com
que tenha que usar desses artifícios”, disse Marinho, lembrando que a razão do
bloqueio foi uma previsão de queda da arrecadação para este ano. Segundo ele,
o decreto de contingenciamento, publicado na segunda-feira no Diário Oficial
da União, evidencia ainda uma falta de prioridades do Executivo. “O governo
quer sinalizar ao mercado que tem austeridade para coibir a inflação. Mas o que
ele está fazendo é cortando ações essenciais ao Estado, como educação, quando
deveria cortar gastos ruins, como o excesso de cargos comissionados, de viagens
e diárias”, afirmou.
Marinho referiu-se ao fato de o bloqueio atingir o Ministério da Educação,
que teve a sua margem de empenho reduzida em R$ 1,339 bilhão, a maior entre
todos os ministérios. “O governo aparelhou o Estado e não tem a coragem de
cortar no custeio, no gasto ruim. Prefere cortar no essencial, no que significa
desenvolvimento e infraestrutura”, concluiu o deputado.
Equilíbrio
Já na base governista a revisão orçamentária foi encarada como uma necessidade. “Governo sério, que tem responsabilidade com as contas públicas, tem
que encarar isso [contingenciamento] como ato de rotina. Ele contingencia e, de
acordo com o equilíbrio das contas, vai liberando no decorrer do ano. Até para
não dizer que estamos fazendo ‘farra eleitoral’”, disse o deputado José Guimarães
(PT-CE).
Segundo ele, ao contrário do que diz a oposição, o bloqueio não atingiu as
‘partes nobres’ do orçamento, como o Programa de Aceleração do Crescimento
123
Notícia disponível no sítio: <http://
www.anajustra.org.br/noticias/noticia.asp?id=4386&cat=4>. Pesquisa
realizada em 28.06.2010. Matéria
intitulada “Oposição critica contigenciamento e base fala em austeridade”.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(PAC), os programas sociais, nem os recursos para o aumento do salário mínimo
e das aposentadorias e pensões dos beneficiários do INSS que ganham acima
do mínimo. “Gastança seria abrir as porteiras”, disse o deputado. Guimarães
afirmou ainda que o contingenciamento, ao limitar os gastos públicos federais,
vai diminuir a pressão sobre a inflação, que vem em ritmo de alta. O decreto de
contingenciamento é o segundo do ano. O primeiro, de março, já havia limitado as despesas em R$ 21,8 bilhões – R$ 21,5 bilhões no Executivo e R$ 300
milhões no Legislativo, Judiciário e Ministério Público da União (MPU). Desta
vez, o bloqueio foi de R$ 7,489 bilhões para o Executivo, R$ 24,4 milhões no
Legislativo, R$ 88,9 milhões no Judiciário e R$ 11,7 milhões no MPU.
Avaliação
Na consultoria de orçamento da Câmara, o impacto do novo contingenciamento na economia foi visto com reservas. Os consultores avaliam que ele
poderá não ter o efeito previsto pelo governo no controle da inflação. O motivo
é que o bloqueio não afetou a meta de superávit fiscal – de 2,15% do Produto
Interno Bruto (PIB) para o governo central (Tesouro Nacional, INSS e Banco
Central) e 0,2% para as estatais124. Com isso, as expectativas sobre a política
fiscal, e sobretudo a pressão que ela exerce sobre a manutenção do ritmo elevado
da atividade econômica, não deverão mudar. Ou seja, o Executivo mantém a sua
demanda em alta e o contingenciamento afeta apenas a programação temporal
dos gastos, avaliam os consultores.
Em abril de 2009 a União também havia contingenciado expressivo montante de gastos autorizados pela Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008, a
qual estimava receita e fixava a despesa para o exercício de 2009. A limitação
das despesas foi efetivada antes de completado três meses da aprovação do orçamento, por meio da edição do Decreto nº 6.808, de 27 de março de 2009,
o qual alterou o Decreto nº 6.752, de 28 de janeiro de 2009, que dispunha
sobre a programação financeira e estabelecia o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo para o exercício.
De forma análoga ao que ocorreu em 2009, o Jornal Valor125 noticiou o
contingenciamento realizado em 2008 nos seguintes termos:
O corte de R$19,41 bilhões anunciado há duas semanas pelo governo federal
nas despesas discricionárias da União, no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social, vai atingir principalmente os investimentos, sobretudo aqueles
incluídos pelo Congresso ao emendar o projeto inicial. (...) Alguns Ministérios
perdem praticamente toda verba de investimento aprovada pelos deputados e
senadores (...) entre custeio e investimentos, os órgãos do governo ficam proibidos de executar R$19,2 bilhões com o corte”, sendo que “os outros R$ 200
milhões terão de ser economizados pelos Poderes Judiciário e Legislativo e pelo
Ministério Público.
124
Vide art. 2º da Lei nº 12.017, de 12
de agosto de 2009, que dispõe sobre as
diretrizes para a elaboração e execução
da Lei Orçamentária de 2010 (LDO para
LOA de 2010).
125
Jornal Valor de 24 de abril de 2008,
p. A3.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Essa sistemática, que se repete a cada ano, suscita, obviamente, muito
embate político, como ocorreu em especial em 2008, pelo fato de que pouco
tempo após o contingenciamento, conforme noticiado pelo mesmo jornal,
em 21 de maio de 2008, p. A4, “o governo encaminhou ontem ao Congresso
uma nova reavaliação de receitas e despesas no âmbito do orçamento fiscal
e da seguridade social.(...) Em relação à estimativa feita pelo Congresso, o
adicional esperado para este ano já chega a R$17,52 bilhões no mesmo conceito. Diante disso, o governo anunciou que vai elevar em R$ 4,6 bilhões
os limites de empenho e movimentação financeira dos órgãos federais este
ano,relativamente às despesas discricionárias. Com isso reverte-se, parcialmente, o contingenciamento de R$19,4 bilhões anunciado logo após a sanção do orçamento” (grifo nosso).
Na mesma linha, por exemplo, a Secretária de Fazenda do Município do
Rio de Janeiro, informando ter dúvidas quanto à arrecadação que seria possível no ano de 2009, em função dos efeitos da crise financeira, declarou126 que
“queremos começar com muito contingenciamento”.
Os fatos descritos, que se repetem anualmente, ensejam constantes tentativas de redefinição do atual modelo orçamentário brasileiro no que se refere
à necessidade, ou não, da adoção do chamado orçamento impositivo.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 565/2006, à qual foram apensadas as PECs nºs 169/2003; 385/2005; 465/2005; 46/2007; e 96/2007, e
que possui como objetivo central tornar “obrigatória a execução da lei orçamentária”, proposta até hoje não aprovada, traduz a citada disputa por maior
espaço de atuação de forma explícita, especialmente na definição da alocação
e da utilização dos recursos públicos. A PEC nº 565/2006 intenciona acrescer o artigo 165-A à CR-88 para estabelecer em seu caput que:
a programação constante da lei orçamentária anual é de execução obrigatória,
salvo se aprovada, pelo Congresso Nacional, solicitação, de iniciativa exclusiva
do Presidente da República, para cancelamento ou contingenciamento, total ou
parcial, de dotação.
Dessa forma, caso fosse aprovada a alteração constitucional, além de tornar obrigatória a execução do orçamento, nos termos aprovados pelo Legislativo, somente seria possível alterar a programação estabelecida, pelo parlamento, por meio de cancelamento ou contingenciamento da dotação, se
aprovada previamente a alteração pelo próprio Congresso Nacional. Assim,
estaria inviabilizada a edição de Decreto do Executivo para efetivar cortes e
redimensionamento de despesas unilateralmente, como ocorre todos os anos.
A leitura da matéria abaixo, publicada no Jornal Valor do dia 07/05/2008,
relacionada à votação da citada PEC nº 565/2006 auxilia a compreensão do
126
Jornal Valor de 30 e 31 de dezembro
de 2008 e 1 de janeiro de 2009, p A5.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
contexto político atual e a sua correlação com a matéria orçamentária, especialmente no que se refere ao caráter autorizador da fixação de despesas pelo
Parlamento e o seu contingenciamento pelo Poder Executivo.
Por todo o exposto nesta aula, constata-se a relevância que assume o modelo de distribuição de competências entre o Poder Legislativo e o Poder
Executivo, matéria de cunho político-jurídico, em especial quanto à interligação entre (1) a realização das despesas e (2) a sua fixação no orçamento.
Nesse sentido, a natureza exclusivamente autorizadora do orçamento, no que
se refere à realização das despesas, caracteriza parte fundamental da estrutura
das finanças públicas do país, refletindo a atual ponderação dentro do sistema
de checks and balances brasileiro.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
As tensões e os desafios decorrentes da distribuição de funções entre os poderes constitucionalmente constituídos na área das finanças públicas podem
ser visualizados da seguinte forma:
A adoção da forma de Estado federado, já examinada na aula passada, eleva sobremaneira o escopo das relações potencialmente conflituosas no que se
refere à despesa, à receita, ao crédito, à dívida pública e ao orçamento, tendo
em vista que se abre a possibilidade de tensões entre os Poderes dos diferentes
níveis de governo, além das previsíveis contendas entre Poderes distintos das
diversas esferas de governo. De fato, o Federalismo Fiscal, por se estruturar
sob a constante tensão entre o imperativo da unidade do país de um lado e a
necessidade de autonomia local de outro, eleva em muito o grau de complexidade do modelo jurídico-institucional do país.
A interseção entre esses dois elementos – a distribuição de funções entre
os poderes e o modelo de federalismo fiscal – e os possíveis conflitos e tensões
decorrentes dessas interações, no plano vertical e horizontal, caracterizadora
da complexidade das Finanças Públicas da República Federativa do Brasil,
pode ser visualizada nos seguintes termos:
Ressalte-se que foram suprimidas, considerando a dificuldade de visualização, a reprodução gráfica dos conflitos entre os poderes dos diferentes
níveis de governo (ex. Poder Judiciário Estadual – Poder Executivo Municipal; Poder Judiciário no âmbito da União – Poder Executivo Estadual, etc),
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
o que representaria com maior fidedignidade a complexidade das interações
sistêmicas das finanças públicas na República Federativa do Brasil.
Em que pese o exposto, merece destaque a interessante análise sobre a
política orçamentária no presidencialismo de coalizão brasileiro realizada por
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi127, onde sustentam que,
na realidade, o conflito não seria propriamente entre os Poderes Executivo e
Legislativo, e sim entre os dois blocos parlamentares distintos, ou seja, aqueles que apóiam o Poder Executivo e outros que fazem oposição ao governo:
A principal fonte de conflitos do sistema político brasileiro não advém das
relações entre poderes e, sim, de clivagens político-partidárias. Os parlamentares dividem-se em dois grandes campos: os que apóiam e os que se opõem ao
Executivo. Essa distinção implica, em primeiro lugar, o apoio da maioria à centralização da condução do processo orçamentário em sua fase congressual. Há
uma delegação de poder das bases para as lideranças partidárias, representadas
neste caso pelo relator-geral e seus colaboradores diretos. Essa delegação explica
o papel reduzido que as emendas individuais desempenham na participação do
Congresso no processo orçamentário e a importância que as questões macroeconômicas assumem para os relatores. Antes de mais nada, o orçamento visa
garantir o sucesso da política do governo, especialmente a econômica, prioritária
no período analisado. (grifo nosso)
A despeito da pertinência da conclusão quanto à centralização das decisões nas mãos do relator-geral, da redução do papel das chamadas emendas
individuais, bem como da preponderância dos aspectos macroeconômicos
sobre o orçamento brasileiro, a mencionada subdivisão entre os dois blocos
parlamentares – de apoio e de oposição ao Executivo – consubstancia, sob
nosso ponto de vista, na verdade, elemento do processo político de nosso presidencialismo, o qual reflete o desdobramento político-partidário da tensão
estrutural subjacente ao processo de distribuição de funções entre os Poderes,
e não a principal fonte de conflitos do sistema político brasileiro. Dito de
outra forma, o sistema de distribuição de funções adotado e as definições
de natureza estruturantes, tais como o modelo de orçamento, impositivo ou
autorizativo, e a especificação das atribuições de cada Poder no processo orçamentário, precedem o embate político partidário e de formação de maiorias
parlamentares circunstanciais, uma vez que se encontram, no caso brasileiro,
consolidadas na própria Constituição.
Por fim, cumpre destacar que, nesse cenário de orçamento autorizativo, a
estimativa da receita assume caráter fundamental dentro do contexto orçamentário, pois é com base nela que são autorizadas as despesas (estimadas),
requisito necessário e essencial à sua efetivação nos termos do já citado artigo 167, incisos I e II, da CR-88. Assim, receita superestimada, o que pode
127
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub e LIMONGI, Fernando. Política Orçamentária no Presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Ed. FVG, 2008. p.15.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
decorrer da própria atuação parlamentar, conforme será estudado a seguir,
conduz e implica despesa autorizada em montante superior à realidade fiscal
possível. Essa possibilidade, de receita estimada acima do razoável, facilita a
acomodação política da elaboração do orçamento bem como o uso distorcido
ou indevido do mencionado contingenciamento dos gastos, unilateralmente
pelo Poder Executivo, tendo em vista o argumento sempre disponível, quando da execução do orçamento, da necessidade de manutenção do equilíbrio
orçamentário128 associado à natureza autorizadora da lei orçamentária anual. Essas características propiciam o ciclo vicioso e acirramento de atritos e
disputas com o Poder Legislativo, ainda que a base econômica sobre a qual
ocorram as disputas, conforme será estudado, seja limitada às denominadas
despesas discricionárias, haja vista a prévia vinculação de elevado percentual
de despesas na própria Constituição, em dispositivos legais sobre os quais o
legislador ordinário e o governo não tem muita margem de atuação ou por
força de dívidas contratuais.
Importante ressaltar, ainda, que a realização de receitas em nível superior
ao estimado durante a execução orçamentária, antes ou após possíveis contingenciamentos, deflagra a elevação dos limites de empenho e movimentação
financeira referente às despesas discricionárias, o que pode ensejar a reversão
parcial ou total do contingenciamento.129
Cabe repisar que o contingenciamento das dotações não pode incidir sobre as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente
político (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios), como pessoal,
transferências a estados e municípios, sentenças judiciais, inclusive aquelas
destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e sobre aquelas protegidas pela
lei de diretrizes orçamentárias.
Não obstante exposto, relativamente à importância da estimativa de receita, nos termos salientados por Harada130, “desde a Emenda 18/65, o requisito
da prévia estimativa de receita, decorrente de tributo criado ou aumentado,
deixou de existir como condição para sua cobrança. Talvez esse fato explique
o desinteresse dos parlamentares”. Entretanto, a Comissão Mista do Orçamento, cujas competências serão analisadas na próxima aula, possui um relator da receita, o qual, com o auxílio do Comitê de Avaliação da Receita,
examina e avalia aquelas previstas pelo Executivo131 no projeto de lei orçamentária132. O objetivo é verificar se o montante estimado está de acordo
com os parâmetros econômicos previstos para o ano seguinte. Na hipótese de
encontrar algum erro ou omissão, é facultado ao Legislativo reavaliar a receita
definida pelo Executivo e propor nova estimativa, com fundamento no artigo
166, §3°, III, a da CR-88.
Na próxima aula serão examinadas as diversa peças orçamentárias (PPA,
LDO e LOA) e o denominado ciclo orçamentário.
128
Apesar do objetivo geral de equilíbrio entre a receita e a despesa, uma
política fiscal anti-cíclica é defendida
por muitos economistas influenciados
pela teoria keynesiana, tendo em vista
a relevância da função estabilizadora
do governo, que ao lado das funções
alocativa e distributiva compõem a
denominada “política fiscal”. Uma
presença ativa do governo, agora novamente em evidência, por força da crise
internacional de 2008/2009, ensina Fabio Giambiagi, “passou a ser defendida,
principalmente, a partir da publicação
do livro da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda em 1936, de autoria
de John Maynard Keynes. Até então,
acreditava-se que o mercado tinha
uma capacidade de se auto-ajustar ao
nível de pleno emprego da economia.
A flexibilidade de preços e salários
garantiria este equilíbrio: a existência
de desemprego só seria explicada,
por exemplo, por um nível de salários
reais acima daquele que equilibraria
a demanda e a oferta de trabalho, o
que poderia ocorrer em razão da ação
dos sindicatos. Keynes, ao contrário,
apontava que o limite ao emprego era
dado pelo nível de demanda: as firmas só estariam dispostas a empregar
determinada quantidade de trabalho
conforme as expectativas de venda
de seus produtos. Desta forma, tudo
que pudesse ser feito para aumentar
a quantidade de gastos na economia
contribuiria para uma redução da taxa
de desemprego da economia. Neste
sentido, Keynes deu ênfase ao papel
do Estado mediante as políticas monetárias e, principalmente, fiscal para
promoverem alto nível de emprego.
(...) A política fiscal pode se manifestar
diretamente, através da variação dos
gastos públicos em consumo e investimento, ou indiretamente, pela redução
das alíquotas de imposto, que eleva a
renda disponível do setor privado. Por
exemplo, em uma situação recessiva o
governo pode promover um crescimento de seus gastos em consumo e/ou
investimento e com isso incentivar um
aumento da demanda agregada, tendo como resultado um maior nível de
emprego e renda da economia. Alternativamente, o governo pode reduzir
as alíquotas de impostos, aumentando,
desta forma, o multiplicador de renda
da economia. No caso da existência de
um alto nível de inflação, por sua vez,
decorrente de um excesso de demanda
agregada na economia, o governo pode
agir de forma inversa ao caso anterior,
promovendo uma redução da demanda
agregada, através da diminuição dos
seus gastos e/ou do aumento das alíquotas de impostos – que reduziria a
renda disponível e, consequentemente,
o nível de consumo da economia. Dependendo da situação, o governo pode
preferir agir sobre a demanda agregada
da economia através da política mone-
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 4 – O PLANEJAMENTO E AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS
(PPA, LDO E LOA)
Apresentados os aspectos gerais da matéria, delineados os conceitos de
necessidades públicas e da atividade financeira do Estado, estabelecidas as
grandes linhas do sistema de distribuição de funções entre os Poderes da República bem como do Federalismo Fiscal, todos necessários à determinação
de como as receitas e as despesas interagem com o orçamento, cumpre agora
iniciar o estudo do planejamento do setor público e a sua interligação com as
leis orçamentárias. De fato, somente por meio do planejamento das ações do
Estado é possível atingir o desejável equilíbrio de longo prazo entre as receitas
e as despesas públicas e, ao mesmo tempo, atender às necessidades públicas e
ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis.
4.1 AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS (PPA, LDO E LOA) E O CICLO ORÇAMENTÁRIO
Orçamento é termo derivado de orçar, do italiano orzare, o qual, em sentido vulgar, significa, segundo o Dicionário De Plácido e Silva133, “a estimativa de custo a respeito das coisas, cujo valor de construção, ou de custeio, é
necessário saber, por antecipação”.
Nas finanças públicas clássicas,134 o orçamento consubstanciava-se apenas
como instrumento de estimativa de receitas e de autorização de despesas por
objeto (pessoal, material, serviços, etc.), tendo em vista, quase exclusivamente, as
necessidades das unidades organizacionais e o objetivo de registrar os eventos. De
fato, conforme já destacado, a previsão constitucional do orçamento no Brasil,
incluindo a fixação de despesas e a estimativa de receitas, assim como a determinação de elaboração de um balanço geral destas e das despesas do ano anterior,
está expressa desde a Constituição Política do Império de 1824, possuindo à época, entretanto, conotação meramente contábil para o controle financeiro do que
se realizou, pois não era ainda instrumento de medição de desempenho, tampouco de planejamento de política fiscal. Não poderia ser diferente ante a concepção
de atuação do Estado Patrimonial, conforme já anotado no início da Aula 1.
Com o desenvolvimento do denominado orçamento de desempenho ou
de realizações, o enfoque passou a ser, também, em relação aos resultados
dos gastos e não apenas com o seu controle. A preocupação com o registro
da despesa assumiu caráter secundário e instrumental, pois o foco dirige-se à
contraposição entre as metas objetivadas e os resultados obtidos. O interesse,
nesses termos, não se finda apenas em quantificar o que o governo adquiriu
ou os itens de despesa, mas sim as suas ações para atender ao cidadão contribuinte. Nesse sentido, aponta Rubens Penha Cysne135, em análise sobre o
orçamento público norte-americano:
tária. Em casos de recessão ou desaceleração do crescimento econômico, o
governo pode promover uma redução
das taxas de juros, estimulando desta
forma o aumento dos investimentos e,
consequentemente o crescimento da
demanda agregada e da renda nacional, Alternativamente, em uma situação de excesso de demanda com impactos inflacionários, o governo pode
aumentar as taxas de juros, reduzindo,
desta maneira, a demanda agregada da
economia, Para se atingir as prioridades
da política econômica, o mais comum ,
na prática, é uma ação combinada das
políticas fiscal e monetária por parte do
governo.” In. GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM,
Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria
e Prática no Brasil. 3ª Rio de Janeiro:
Elsevier, 2008. p. 14/15.
129
Ressalte-se a relevância do disposto
no artigo 9 º, § 1º, da LRF, cuja aplicação objetiva garantir a realização
do que foi definido na LOA mesmo na
hipótese de contingenciamente, ao dispor que: “No caso de restabelecimento
da receita prevista, ainda que parcial,
a recomposição das dotações cujos
empenhos foram limitados dar-se-á de
forma proporcional às reduções efetivadas.” O empenho será estudado na
aula pertinente às despesas públicas.
130
HARADA. Op.cit. p.59.
131
O artigo 12, § 1º, da LRF estabelece
que a “Reestimativa de receita por parte do Poder Legislativo só será admitida
se comprovado erro ou omissão de ordem técnica ou legal”.
132
Um exemplo concreto pode auxiliar
a compreensão do tema: considerando
que a crise econômica mundial já havia
apresentado impacto concreto sobre a
atividade econômica e a arrecadação da
União no final do próprio exercício de
2008, conforme noticiado pelo Jornal
Valor da sexta-feira e fim de semana,
12, 13 e 14 de dezembro de 2008, A10,
“a Comissão Mista de Orçamento do
Congresso (CMO), aprovou ontem, a
revisão do relatório de arrecadação
do projeto de Orçamento da União para
2009 (...). Fica referendada, assim, a
redução de R$ 15,34 bilhões no volume esperado de receitas primárias
brutas no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social (que exclui
empresas estatais não-dependentes do
Tesouro Nacional). Em conseqüência
disso, cerca de R$ 10 bilhões do volume que iria para despesa de custeio
e investimento dos órgãos federais
terão que ser cortados pelo relator
geral (...)”.
133
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense. Rio
de Janeiro, 2002. p. 575.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
um passo adiante em relação ao orçamento itemista foi determinado pelo orçamento de desempenho, este último fruto dos estudos da Comissão Hoover, em
1949. O objetivo principal da Comissão Hoover foi reorganizar o Executivo norteamericano após a Segunda Guerra. Em uma de suas conclusões, a Comissão sugeriu
que o orçamento federal passasse a se estruturar com base em atividades e medidas
de desempenho (“o que o governo faz”), e não apenas com base nos itens de despesa
(“o que o governo gasta”). O foco deveria passar dos meios (despesas) aos fins (retorno ao contribuinte). Tratava-se tal mudança de ênfase, na verdade, de uma idéia que
se desenvolveu aos poucos, em função da elevação dos gastos públicos determinada
pelo New Deal (1933-1938) e pela Segunda Grande Mundial (1939-1945).
O orçamento de desempenho também se qualifica como orçamentoprograma se o mesmo, além de contrapor metas objetivadas e os resultados
obtidos, estiver, também, vinculado ao planejamento central136 das ações de
governo137. Nesse sentido, o orçamento-programa é o instrumento nuclear
de coordenação e realização do planejamento econômico e social, na medida
em que viabiliza, com programas anuais138, a realização do plano geral de
governo de desenvolvimento de longo prazo.
A introdução oficial do planejamento de governo no Brasil ocorreu com a
edição do Decreto-lei n° 200/1967, o qual estabelece no artigo 6°, I, que as
atividades da Administração Federal devem obedecer, entre outros, ao princípio do planejamento. O artigo 7° do mesmo diploma normativo, que faz
parte do Capítulo I denominado“ Do Planejamento”, dispõe, in verbis:
Art. 7º A ação governamental obedecerá a planejamento que vise a promover
o desenvolvimento econômico-social do País e a segurança nacional, norteandose segundo planos e programas elaborados, na forma do Título III, e compreenderá a elaboração e atualização dos seguintes instrumentos básicos:
a) plano geral de governo;
b) programas gerais, setoriais e regionais, de duração plurianual;
c) orçamento-programa anual;
d) programação financeira de desembolso.
Nessa linha de intelecção, o artigo 174 da CR-88 consagra o planejamento como instrumento essencial à ação do Estado, na medida em que o
mesmo é qualificado como determinante para o setor público. O dispositivo
da atual Constituição enuncia:
Art. 174 Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o
Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado. (grifo nosso)
134
Ensina Regis Fernandes que: “Classicamente, o orçamento é uma peça
que contém a previsão de receitas e a
autorização das despesas sem preocupação com planos governamentais e
com interesses efetivos da população.
Era mera peça contábil, de conteúdo
financeiro” v. DE OLIVEIRA, Regis Fernandes e HORVATH, Estevão. Manual
de Direito Financeiro. 3ª ed. revista e
ampliada. Editora Revista dos Tribunais,
1999. p.69.
135
CYSNE, Rubens Penha. O Orçamento
Público: o caso norte-americano. Conjuntura Econômica. Janeiro 2008. Vol.
62. nº 01. Fundação Getúlio Vargas. p.
19-20.
136
Conforme ensina Ricardo Lobo Torres, “O Estado do Planejamento não se
confunde com o Estado de Planificação,
que é sempre uma manifestação totalitária ou socialista, nem está em vias de
extinção, como pretendem os adeptos
do pós-modernismo, que vislumbram
o desaparecimento dos planos estatais,
substituídos pela repartição de responsabilidades financeiras entre o Estado e
a Sociedade”. v. TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. revista
e atualizada. Rio de Janeiro. Renovar,
2008. p.77.
137
Assim o orçamento é o elo entre o
sistema de planejamento e as finanças.
138
O artigo 16 do Decreto-lei 200/1967
dispõe que: “Em cada ano, será elaborado um orçamento-programa, que
pormenorizará a etapa do programa
plurianual a ser realizada no exercício
seguinte e que servirá de roteiro à execução coordenada do programa anual”.
FGV DIREITO RIO
56
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
No mesmo sentido, da utilização do orçamento como instrumento de
planejamento e de controle da ação governamental, a Constituição, no artigo 165, dispositivo inserido na Seção II do Capítulo II do Título VI, intitulada “Dos Orçamentos”, criou um sistema integrado de previsão, alocação e
controle de recursos coletivos, bem como de gestão e de execução das diretrizes, objetivos, metas e prioridades do setor público, o que se dá por meio de
três leis orçamentárias: o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias
(LDO) e os orçamentos anuais (LOA). Essas leis, apesar de consubstanciarem documentos distintos, possuem finalidade comum e harmônica, isto é,
atender as necessidade públicas consagradas por meio do processo político.
Saliente-se que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição, em particular aqueles de que tratam os artigos 21,
IX, 174, §1° e 214, devem ser necessariamente elaborados em consonância
com o plano plurianual (PPA) o qual, no âmbito da União, é apreciado pelo
Congresso Nacional139. Dessa forma, o planejamento estatal deve necessariamente ser coordenado ao PPA.
O PPA, conforme será detalhadamente examinado abaixo, abrange (a) os
três últimos anos do chefe do Poder Executivo em exercício; e (b) o primeiro
ano do mandato do sucessor, devendo a lei que o instituir, nos termos do
artigo 165, § 1º da CR-88, estabelecer, de forma regionalizada, as diretrizes,
objetivos e metas da Administração Pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes, bem como para as relativas aos programas de
duração continuada.140 Ainda, nos termos do artigo 167, §1º, da CR-88, nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá
ser iniciado sem a sua prévia inserção no Plano Plurianual, ou sem lei que
autorize a inserção, sob pena de crime de responsabilidade. Tendo em vista
consubstanciar mera enunciação de programação e orientação, o PPA é lei
formal, sendo dependente do orçamento anual para possuir eficácia relativamente à realização das despesas.
No mesmo sentido, a LDO141 também é lei formal, compreendendo apenas as metas e prioridades da Administração Pública – que inclui as despesas
de capital para o exercício financeiro seguinte e contém simples orientação
para a elaboração da lei orçamentária anual142– razão pela qual não cria, conforme ensina Ricardo Lobo Torres143, “direitos subjetivos para terceiros nem
tem eficácia fora da relação entre os Poderes do Estado”. Diferencia-se do
PPA na medida em que se refere às metas e prioridades para o exercício subseqüente. Constitui-se, dessa forma, em plano prévio operacional de curto
prazo, baseado em dados e informações de natureza econômica e social, para
fundamentar e orientar a posterior elaboração da proposta orçamentária do
Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público, isto é, um
verdadeiro elo de ligação entre o PPA e a LOA. A jurisprudência tradicio-
139
Art. 165, §4º, da CR-88.
140
Dispõe o artigo 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Lei Complementar nº 101/00, que: “Considera-se
obrigatória de caráter continuado a
despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo
normativo que fixem para o ente a
obrigação legal de sua execução por
um período superior a dois exercícios”.
141
O § 1º do art. 4º da LRF determina
que a LDO conterá Anexo de Metas
Fiscais, em que “serão estabelecidas
metas anuais, em valores correntes e
constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário
e montante da dívida pública, para o
exercício a que se referirem e para os
dois seguintes”.
142
Estabelece ainda o § 2º do artigo 165
da CR-88 que a lei de diretrizes orçamentárias “disporá sobre as alterações
na legislação tributária e estabelecerá
a política de aplicação das agências
financeiras oficiais de fomento.”
143
TORRES. . Op.cit. p.85.
FGV DIREITO RIO
57
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
nal do Supremo Tribunal Federal, a qual tem sido mitigada ultimamente,
conforme já salientado144, é no sentido de que, por se tratar de lei de efeitos
concretos, a LDO não se submete ao controle de constitucionalidade pela via
direta, conforme se depreende da ementa da ADI 2.484-MC:
Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários
certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está
sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. (ADI 2.484-MC,
Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 19-12-01)
Já a lei orçamentária anual (LOA), observados os princípios da universalidade, unidade, anterioridade, anualidade, legalidade, exclusividade, transparência, não afetação, equilíbrio financeiro, redistribuição de rendas, desenvolvimento econômico, e economicidade, conforme será explicitado no
final da aula, é o instrumento normativo que fixa a despesa e estima a receita
anualmente, evidenciando a política econômica e financeira de curto prazo
do governo.
Saliente-se, no que se refere à LOA, a relevância do orçamento-programa
como instrumento de medição do desempenho e de vinculação da execução
orçamentária ao planejamento central. Destaque-se, ainda nesse contexto, a
essencialidade da programação financeira de desembolso145 para a definição
do ritmo146 da execução orçamentária.
O fluxograma abaixo visa auxiliar a compreensão do que foi até aqui exposto:
Dessa forma, a Constituição estabelece três planejamentos orçamentários, os quais, conforme ensina Ricardo Lobo Torres147, são resultado da influência “da Constituição da Alemanha, que prevê o plano plurianual (eine
mehrjahrige Finanzplanung – art. 109, 3), o plano orçamentário (Haushaltsplan – art.110), e a lei orçamentária (Haushaltsgesetz – art. 110), só que lá
se discute se o plano orçamentário é realmente distinto da lei orçamentária.”
Com o objetivo aprofundar o estudo das três leis orçamentárias, inicialmente serão abordados os seus aspectos essenciais quanto à elaboração, iniciativa, apreciação e votação dos projetos, bem como à vigência das leis orça-
144
Em especial, ADI 2.925 e ADI-MC
4.048, que serão analisadas quando
da apresentação dos denominados
créditos adicionais que, ao lado dos créditos orçamentários, compõem as autorizações legislativas para que o Poder
Executivo possa realizar despesas para
a consecução dos projetos e programas
que decorrem do planejamento.
145
Dispõe o artigo 8° da Lei Complementar n° 101/2000: “Até trinta dias
após a publicação dos orçamentos,
nos termos em que dispuser a lei de
diretrizes orçamentárias e observado
o disposto na alínea c do inciso I do
artigo 4°, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o
cronograma de execução mensal de
desembolso.”
146
O artigo 17 do Decreto-lei n°
200/1967 dispõe que: “Art. 17. Para
ajustar o ritmo de execução do orçamento-programa ao fluxo provável de
recursos, o Ministério do Planejamento
e Coordenação Geral e o Ministério da
Fazenda elaborarão, em conjunto, a
programação financeira de desembolso, de modo a assegurar a liberação
automática e oportuna dos recursos
necessários à execução dos programas
anuais de trabalho”.
147
TORRES. Op.Cit.p.78.
FGV DIREITO RIO
58
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mentárias, o que ajudará a traçar o perfil de cada uma das leis. Com efeito, o
conjunto dessas matérias constitui parte do denominado Ciclo Orçamentário, o qual corresponde ao período em que se realizam as atividades próprias
e específicas do processo orçamentário no âmbito de cada ente político (da
União, de cada Estado, do Distrito Federal e de cada Município), compreendendo a elaboração, envio do projeto de lei, apreciação, emendas, votação,
sanção e publicação, execução das leis orçamentárias e de créditos adicionais
e, por fim, o controle interno, externo e social. Pode-se visualizar graficamente o exposto nos seguintes termos:
Na próxima aula serão analisados os Créditos Orçamentários e Adicionais
(Aula 5); na Aula 6 as Despesas Públicas e a Responsabilidade Fiscal na Execução do Orçamento; na Aula 7 será estudado o Financiamento dos Gastos, a
Dívida e as Operações de crédito; na Aula 8 as Transferências Constitucionais
e as Repartições de Receitas tributárias, na Aula 9 as Receitas Públicas e na
Aula 10 o Controle e a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública. Importante, ainda, destacar
que, em função do princípio da simetria e de nosso federalismo fiscal, os
mesmos princípios estruturantes das Finanças Públicas no âmbito da União
são aplicáveis aos Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive no que se
refere ao denominado ciclo orçamentário, ressalvadas as regras específicas que
serão objeto de estudo ao longo do curso.
4.2 INICIATIVA, ELABORAÇÃO, APRECIAÇÃO E VOTAÇÃO DOS PROJETOS
O PPA, a LDO e a LOA são leis de iniciativa do Poder Executivo, nos
termos do caput do artigo 165 da CR-88, e servem, conforme já salientado,
de elo de ligação entre o planejamento e a ação governamental, ou seja, a atuação concreta do poder público pressupõe a existência dos orçamentos, sem
os quais não pode haver utilização do dinheiro público para realizar despesas
(art. 167, I e II da CR-88). Nos termos do artigo 84, XXIII, e artigo 166,
§6° da CR-88, a iniciativa das leis orçamentárias é vinculada148 e privativa
148
É uma iniciativa indelegável e vinculada tendo em vista a fixação de prazos
fatais para a sua efetivação na própria
Constituição, sob pena de configurarse crime de responsabilidade política,
conforme será a seguir destacado. v.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo. Atlas,
2005. p. 621.
FGV DIREITO RIO
59
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
do Chefe do Poder Executivo149 a quem incumbe enviar ao Congresso Nacional os projetos de lei do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e
do orçamento anual. Assim, conforme observa Kyoshi Harada150, a proposta
orçamentária anual (LOA) do Poder Legislativo, na qual se inclui o Tribunal
de Contas, do Poder Judiciário e do Ministério Público: “são unificadas antes
do envio ao Parlamento para discussão”, o que não afasta as respectivas competências para elaborar as suas proposições151 dentro dos limites estipulados
conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias, nos
termos fixados nos artigos 99, § 1º, e 127, § 3º da CR-88 e da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar n° 101/2000 (LRF). Nessa toada, o
artigo 14 da LDO que trata das diretrizes para a elaboração da LOA de 2012
da União, Lei nº 12.456, de 12 de agosto de 2011, dispõe:
Art. 14. Os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do MPU encaminharão à
SOF/MP, por meio do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento – SIOP, até
15 de agosto de 2011, suas respectivas propostas orçamentárias, para fins de consolidação do Projeto de Lei Orçamentária de 2012, observadas as disposições desta Lei.
§ 1º As propostas orçamentárias dos órgãos do Poder Judiciário e do MPU,
encaminhadas nos termos do caput deste artigo, deverão ser objeto de parecer do
Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público,
de que tratam os arts. 103-B e 130-A da Constituição, respectivamente, a ser
encaminhado à Comissão Mista a que se refere o art. 166, § 1º, da Constituição
– CMO, até 30 de setembro de 2011, com cópia para a SOF/MP (Secretaria
de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão).
§ 2º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo ao Supremo Tribunal
Federal, ao Conselho Nacional de Justiça, ao Ministério Público Federal e ao
Conselho Nacional do Ministério Público.
Destaque-se que ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional
do Ministério Público, aos quais foi conferida a atribuição para exarar pareceres, nos termos do transcrito §1°, com a ressalva determinada no §2°, compete o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do
Ministério Público, nos termos do artigo 103-B, § 4°, caput, e artigo 130-A,
§ 2°, caput, da CR-88, respectivamente.
O Poder Executivo152 procederá aos ajustes necessários, para fins de consolidação da proposta da LOA, na hipótese em que as propostas do Poder Judiciário e do Ministério Público sejam encaminhadas em desacordo com os
limites estipulados na LDO. Em sentido análogo, se o Poder Judiciário e o
Ministério Público não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias
anuais dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder
Executivo153 considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária
anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo
com os limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na LDO.
149
ADI 882, Rel. Min. Maurício Corrêa,
julgamento em 19-2-04, DJ de 23-404: “Orçamento anual. Competência
privativa. Por força de vinculação administrativo-constitucional, a competência para propor orçamento anual é
privativa do Chefe do Poder Executivo”.
150
HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 58.
151
Dispõe o artigo 12, § 3º, da LRF, que
“O Poder Executivo de cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e
do Ministério Público, no mínimo trinta
dias antes do prazo final para encaminhamento de suas propostas orçamentárias, os estudos e as estimativas das
receitas para o exercício subseqüente,
inclusive da corrente líquida, e as respectivas memórias de cálculo.”
152
Artigos 99, § 4º, e 127, § 5º, da CR88, dispositivos incluído pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004.
153
Artigos 99, § 3º, e 127, § 4º, da CR88, dispositivos incluído pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004.
FGV DIREITO RIO
60
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
No âmbito do Poder Judiciário a competência para o encaminhamento da
proposta orçamentária154, a ser consolidada pelo Poder Executivo, é: (1) na
esfera federal, dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais; e (2) no âmbito dos
Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais
de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais.
Importante mencionar que a Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu
§2º ao artigo 133 da CR-88, para estender também às Defensorias Públicas
Estaduais a “autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º”.
Cabe ressaltar, ainda, – quanto ao encaminhamento dos projetos de leis
orçamentárias, o qual consubstancia competência vinculada e indelegável –
que a não apresentação tempestiva das propostas155 do PPA, da LDO e da
LOA ao Poder Legislativo constitui crime de responsabilidade política praticado pelo Presidente da República tendo em vista que a hipótese se enquadra
como ato atentatório às leis orçamentárias156, consoante o disposto no artigo
10, 1, da Lei n° 1.079/1950157, norma que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.158
O artigo 32 da Lei n° 4.320/1964, por sua vez, disciplina apenas as conseqüências do não recebimento da proposta de LOA pelo parlamento, isto é,
“se não receber a proposta orçamentária no prazo fixado nas Constituições
ou nas Leis Orgânicas dos Municípios, o Poder Legislativo considerará como
proposta a Lei de Orçamento vigente”.
Por sua vez, o artigo 165, §§§ 5º, 6º, e 7º da CR-88, estabelece o escopo
da lei orçamentária anual nos seguintes termos:
154
Artigo 99, § 2º, da CR-88.
155
Salienta Valcedir Pascoal que as leis
que envolvam matéria orçamentária
são de iniciativa privativa e indelegável do Chefe do Poder Executivo a sua
omissão “constituirá crime de responsabilidade conforme a legislação: Lei
n° 1.079 – Presidente e Governador,
e Decreto-Lei n° 201/67 – Prefeito.”
v. PASCOAL, Valdecir. Direito Financeiro e Controle Externo. 4ª ed. revista,
ampliada e atualizada. Rio de Janeiro.
Impetus, 2004. p.41.
156
Artigo 85, VI, da CR-88.
157
§ 5º – A lei orçamentária anual compreenderá:
I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos
e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público;
II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou
indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;
III – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos
e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.
§ 6º – O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias,
remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.
§ 7º – Os orçamentos previstos no § 5º, I e II, deste artigo, compatibilizados
com o plano plurianual, terão entre suas funções a de reduzir desigualdades
inter-regionais, segundo critério populacional.
Saliente-se que o prazo para o envio
da proposta determinado na lei foi alterado pela Constituição, conforme será
apresentado a seguir, nos termos do
artigo 165, §9°, I, da CR-88 combinado
com o artigo 35, §2°, do ADCT.
158
A acusação deve ser admitida por
dois terços da Câmara dos Deputados
(artigo 86) e será julgada pelo Senado
Federal, tendo em vista tratar-se de crime de responsabilidade (artigo 52, I,).
Se instaurado o processo, o Presidente
fica suspenso de suas funções (artigo 86, §1°) por cento e oitenta dias,
prazo dentro do qual se não estiver
concluído o julgamento cessará o seu
afastamento, prosseguindo o processo
normalmente No julgamento perante
o Senado funcionará como Presidente o
do Supremo Tribunal Federal, “limitando-se a condenação, que somente será
proferida por dois terços dos votos do
Senado Federal, à perda do cargo, com
inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo
das demais sanções judiciais cabíveis”
(parágrafo único do artigo 52).
FGV DIREITO RIO
61
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O artigo 5° da LRF complementa o dispositivo constitucional ao prever
que a LOA conterá também: (1) a explicitação das medidas de compensação
a renúncias de receita e ao aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado; (2) demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e metas constantes do Anexo de Metas Fiscais da LDO;
(3) conterá reserva de contingência, cuja forma de utilização e montante,
definido com base na receita corrente líquida, serão estabelecidos na lei de
diretrizes orçamentárias, destinadas ao atendimento de passivos contingentes
e outros riscos e eventos fiscais imprevistos; (4) as despesas relativas à dívida
pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que as atenderão; (5) o refinanciamento da dívida pública constará separadamente na lei orçamentária
e nas de crédito adicional. Destaque-se, ainda, que o artigo 22 da Lei n°
4.320/1964 define a estrutura e composição da proposta orçamentária.
Uma vez apresentados os projetos das leis orçamentárias (PPA, LDO
e LOA) pelo Poder Executivo, consoante os termos dos citados artigo 84,
XXIII, caput do artigo 165 e artigo 166, §6°, todos da CR-88, serão os mesmos apreciados, no âmbito da União, pelas duas Casas do Congresso, na
forma do regimento comum.159
A Constituição de 1967/69 estabelecia de forma expressa em seu artigo 66,
que a lei orçamentária anual seria objeto de “votação conjunta das duas Casas”, menção que não consta da atual Carta Constitucional. De fato, o artigo
166 da CR-88 que disciplina a matéria não o faz expressamente, apenas se referindo à apreciação do projeto. O artigo 48 da CR-88 também não disciplina
expressamente a questão ao estatuir caber somente ao Congresso Nacional,
com a sanção do Presidente da República, dispor “sobre plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública
e emissões de curso forçado”. Assim, é importante destacar o artigo 1º, V, do
regimento comum do Parlamento Nacional, nos termos do Ato da Mesa do
Congresso Nacional, nº 63 de 2006160, que disciplina a matéria:
Art. 1º A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, sob a direção da Mesa
deste, reunir-se-ão em sessão conjunta para:
.................
V – discutir e votar o Orçamento (arts. 48, II, e 166 da Constituição);
...............
O artigo 103 do regimento dispõe que à “tramitação de projetos de orçamento plurianual de investimentos aplicar-se-ão, no que couber”, as normas
ali disciplinadas quanto ao orçamento anual, cabendo no que for aplicável à
apreciação da lei de diretrizes.
159
Artigo 166, caput, da CR-88.
160
Disponível em: <http://www.senado.
gov.br/sf/legislacao/regsf/RegCN.rtf>
FGV DIREITO RIO
62
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A Resolução nº1 de 2006-CN, do Congresso Nacional, por sua vez, dispõe sobre a Comissão Mista Permanente a que se refere o § 1º do art. 166
da Constituição, denominando-a de Comissão Mista de Planos, Orçamentos
Públicos e Fiscalização – CMO. À Comissão mista permanente de Senadores e Deputados, compete examinar e emitir parecer sobre os projetos do
PPA, LDO e LOA e aos créditos adicionais, os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição, assim como a análise das
emendas161 aos projetos de leis orçamentárias, que podem ser individuais,
de Comissão Permanente do Senado Federal e da Câmara dos Deputados,
ou de bancada estadual, nos termos do artigo 43 a 50 da Resolução nº1 de
2006-CN. As emendas devem ser apresentadas à Comissão mista, consoante
o disposto no § 2º do artigo 166, a qual deve examinar as condições e restrições impostas pelos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo, e são apreciadas, em
sessão conjunta e nos termos do regimento interno, pelo Plenário das duas
Casas do Congresso Nacional.
As emendas ao projeto da LDO devem ser compatíveis com o PPA. No
mesmo sentido, a emendas ao projeto da LOA têm de ser compatíveis com o
PPA e com a LDO, além de indicar os recursos necessários para viabilizar a
alteração, admitindo-se, entretanto, apenas os recursos provenientes de anulação de despesas, sendo vedada esta indicação sobre as dotações para pessoal
e seus encargos; serviços da dívida; transferências tributárias constitucionais
para Estados, Municípios e Distrito Federal. Também é possível apresentar
emendas para corrigir questões redacionais, erros ou omissões162.
Também é atribuição da Comissão Mista desempenhar inúmeras funções
na seara do controle orçamentário, incluindo o exame e parecer sobre as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República e também exercer
o acompanhamento e a fiscalização orçamentária sem prejuízo da atuação das
demais comissões temporárias ou permanentes.
Sem dúvida, a Constituição conferiu amplos poderes à citada Comissão
Mista, o que tem sido objeto de muitas críticas por parte de especialistas
na matéria, como o professor Ricardo Lobo Torres163, que assevera de forma contundente:
O relevo atribuído à Comissão Mista do Congresso foi um dos grandes equívocos da Constituição Orçamentária de 1988. (...) A Comissão Mista do Congresso Nacional, com superpoderes, foi causa direta dos escândalos apurados
em 1993, com a dilapidação de recursos públicos promovida principalmente
pelos deputados e senadores que a compunham. No relatório final da CPI o
seu Presidente, Deputado Roberto Magalhães, disse que a Comissão Mista do
Orçamento, ao longo dos anos, “granjeou a desestima e a indignada rejeição
da sociedade” e denunciou três esquemas de manipulação do orçamento: o das
emendas, o das empreiteiras e o das subvenções sociais. Nenhuma conseqüência
161
O §5º do artigo 166 da CR-88 autoriza o Presidente da República enviar
mensagem ao Congresso Nacional para
propor modificação nos projetos a que
se refere o artigo “enquanto não iniciada a votação, na Comissão mista, da
parte cuja alteração é proposta”.
162
(artigo 166, §3º, I, II e III da CR-88).
163
TORRES. Op.cit. p.437-438.
FGV DIREITO RIO
63
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
teve aquele relatório, pois no ano de 2006 surgiram novos escândalos fundados
no poder de emendar orçamento, que ficaram conhecidos como “vampiros” e
“sanguessugas”. (grifo nosso)
A raiz do problema, conforme identificado pelo ilustre jurista164, é de natureza jurídico-política e reflete a distorção do nosso sistema, que adotou “o
modelo de orçamento próprio do parlamentarismo praticado na França e na
Alemanha dentro de uma estrutura política presidencialista! A Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Comissão Mista do Congresso Nacional, por exemplo,
são figuras típicas do regime parlamentarista, que nem a martelo se adaptam
ao presidencialismo!”.
Em linha de pensamento diversa, sem identificar a apontada desconexão
estrutural do sistema de governo adotado e de distribuição de funções entre
os Poderes, Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi165 sustentam
que, a partir da Resolução nº 2 de 1995, o Congresso se auto-limitou, não
havendo razões para suprimir a interferência parlamentar no processo orçamentário:
As alterações no processo de apreciação e votação do orçamento adotada a
partir de 1995 tornaram-no mais transparente, mais facilmente controlado pelos
partidos, mais dependente de decisões coletivas e, principalmente, impuseram
limites claros e significativos à atuação individual dos parlamentares. As emendas individuais não são privilegiadas pelo próprio legislativo e representam uma
pequena parcela da intervenção legislativa no orçamento aprovado. As emendas
coletivas e de relatorias apropriaram-se da maior parcela dos recursos alocados
e são aprovadas segundo preceitos estritos. Em poucas palavras, para salvaguardar sua prerrogativa de participar do processo orçamentário, o Congresso se viu
forçado a atar as próprias mãos. As decisões que realmente afetam – ou podem
afetar – o perfil do orçamento são tomadas pelo relator-geral e pelos relatores
adjuntos, selecionados entre os membros dos partidos da base do governo. Isto
é, a apreciação congressual do orçamento é altamente centralizada e segue linhas
partidárias. Por todas as razões expostas, a nosso ver, os direitos parlamentares de
alteração da proposta orçamentária do Executivo não devem ser restringidos, ou
praticamente anulados, como alguns pregam, acreditamos inadvertidamente. A
corrupção e o desvio de verbas públicas não ocorrem porque o Congresso participa do processo orçamentário. Tampouco dependem da forma pela qual essa
participação se dá desde 1995. A raiz do problema não está no Congresso, mas
evidente que sua participação na elaboração do orçamento pode ser aperfeiçoada
e que esse aperfeiçoamento pode contribuir para reduzir a corrupção. Mas, se
isso vier a ocorrer, com certeza não será via restrição da participação congressual
no processo. Pelo contrário, parece-nos líquido e certo que a corrupção só terá a
ganhar se a participação do Congresso for limitada.
164
TORRES. Op.cit. p.49.
165
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub e LIMONGI, Fernando. Política Orçamentária no Presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Ed. FVG, 2008. p.19.
FGV DIREITO RIO
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
As divergentes perspectivas da matéria revelam a complexidade da questão, podendo-se advogar e sustentar diferentes pesos e ponderações na participação de cada Poder. O núcleo central do problema, entretanto, é realmente de natureza jurídico-política, na medida em que se refere à definição dos
modelos e interconexões entre: (1) o sistema de governo parlamentarismopresidencialismo de um lado e, de outro, (2) o sistema de distribuição de
funções entre os Poderes no que se refere à matéria orçamentária. O desafio
central, entretanto, não diz respeito apenas à difícil escolha e implementação
de um modelo de distribuição de funções e orçamento (impositivo-autorizativo) que aumente a estabilidade política, impõe-se, no mundo atual, que
seja contemplada, ao mesmo tempo, a ampla e transparente participação da
sociedade no processo e que se reduza ao máximo a possibilidade de desvios.
Importante destacar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, expressa na ADI 1.050-MC166, quanto ao poder de emenda parlamentar – no
contexto do modelo constitucional híbrido atual, de natureza presidencialista, compreendendo a possibilidade de o parlamento apresentar emendas aos
projetos das leis orçamentárias, ao lado da natureza meramente autorizadora
do orçamento anual relativamente às despesas-:
O poder de emendar projetos de lei – que se reveste de natureza eminentemente constitucional – qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica
inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação
das leis (RTJ 36/382, 385 – RTJ 37/113 – RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições
constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA,
Rel. Min. Celso de Mello), desde que – respeitadas as limitações estabelecidas
na Constituição da República – as emendas parlamentares (a) não importem
em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica
(relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos
orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art.
166, §§ 3º e 4º da Carta Política.” (ADI 1.050-MC, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 21-9-94, DJ de 23-4-04)
Fixados esses conceitos fundamentais, quanto à iniciativa, elaboração,
emendas e votação das três leis orçamentárias, cumpre agora analisar os prazos de apresentação e de vigência das mesmas, o que auxiliará a compreensão
das funções e dos objetivos de cada qual.
166
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 1.050-MC. Julgamento em 21.09.2004. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em 26.05.2008.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
4.3 PRAZOS DE APRESENTAÇÃO E A VIGÊNCIA DAS LEIS ORÇAMENTÁRIAS
Estabelece o artigo 165, §9°, I da CR-88, que cabe à lei complementar –
norma até hoje não editada – “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência,
os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual”. Tendo em vista a inexistência
do referido diploma complementar para disciplinar a questão, aplica-se a
regra prevista no artigo 35, §2°, do ADCT, que dispõe:
§ 2º – Até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165,
§ 9º, I e II, serão obedecidas as seguintes normas:
I – o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, será encaminhado até
quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa;
II – o projeto de lei de diretrizes orçamentárias será encaminhado até oito
meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para
sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa;
III – o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até quatro
meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até
o encerramento da sessão legislativa.
4.3.1 O plano plurianual (PPA)
Relativamente ao PPA, disciplinado no inciso I do transcrito §2° artigo 35
do ADCT, dois aspectos devem ser salientados para a definição do prazo de
vigência da lei e do encaminhamento do Projeto do PPA pelo Executivo: (1)
o mandato presidencial; e (2) o encerramento da sessão legislativa.
O artigo 82 da CR-88, com a sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 16, de 1997, estabelece que “o mandato do Presidente da República
é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da
sua eleição”. Assim, o mandato presidencial coincide com o exercício financeiro.167
Já a sessão legislativa, nos termos do artigo 57 da CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº50 de 2006, se encerra em 22
de dezembro.
Desta forma, visando à continuidade das ações estatais no médio prazo
(período de quatro anos), a lei do plano plurianual possui vigência por quatro
anos, os quais englobam os três últimos do governo de determinado Chefe do
Poder Executivo e o primeiro exercício financeiro do mandato presidencial
subseqüente, período dentro do qual, até 31 de agosto, deve o presidente
seguinte encaminhar o seu projeto de PPA para ter vigência nos três anos
167
De acordo com o artigo 34 da Lei
n° 4320/1964: “O exercício financeiro
coincidirá com o ano civil”. Período distinto é a sessão legislativa, de que trata
o artigo o artigo 57 da CR-88, dispositivo que estabelece que “o Congresso
Nacional reunir-se-á, anualmente, na
Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17
de julho e de 1 de agosto a 22 de dezembro”. Assim, a legislatura de cada
parlamentar do Congresso Nacional
é composta de sessões legislativas quatro sessões para os deputados e
oito para os senadores - que se decompõem cada qual em dois períodos de
trabalhos ordinários: até 17 de julho o
primeiro período e até 22 de dezembro
o segundo período, respectivamente,
não coincidindo, dessa forma, como o
exercício financeiro de que trata a Lei
n° 4.320/1964.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
restantes de seu governo e no primeiro ano do mandato presidencial subseqüente e assim sucessivamente.
A ilustração a seguir apresentada auxilia a compreensão da questão:
No dia 20.12.2011 o Plenário do Congresso Nacional aprovou o projeto
de lei (PLN 29/11), que contém o Plano Plurianual para o período de 2012
a 2015, não tendo sido sancionado ou publicado até o dia 03/01/2012.
Saliente-se que a data da sanção presidencial à Lei n° 10.933 e à Lei nº
11.653 –as quais aprovaram o PPA para o quadriênio 2004-2007 e 20082011, dia 11 de agosto e dia 07 de abril, respectivamente – revelam que,
na prática, nenhum dos projetos retornou ao Chefe do Executivo antes de
encerrada a sessão legislativa (22 de dezembro), consoante requisito fixado
na parte final do transcrito inciso I do §2° do artigo 35 do ADCT, tendo em
vista o prazo constitucional de quinze dias que o Presidente da República
possui para sancionar ou vetar projeto de lei, a teor do artigo 66 da CR88 combinado com o artigo 166, §7° da CR-88. Em face da complexidade
que envolve o PPA, e tendo em vista as peculiaridades quanto à sua eficácia,
conforme será visto a seguir, a Constituição não estabeleceu conseqüências
práticas à sua não aprovação e devolução ao Poder Executivo fora do prazo
determinado, ao contrário do que ocorre com a LDO, consoante o disposto
no artigo 57, §2° da CR-88, o qual dispõe que a “sessão legislativa não será
interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias.”
No que se refere à aplicabilidade da regra do transcrito artigo 35, §2° do
ADCT aos Estados, Distrito Federal e Municípios, é importante destacar
que, por meio da Mensagem nº 627/2000, o Poder Executivo da União vetou a integralidade do artigo 3º e o §7° do artigo 5º da Lei Complementar
nº 101/2000, nos termos aprovados pelo Congresso Nacional, os quais dispunham sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a
organização do plano plurianual e da lei orçamentária anual, regras que vinculariam todos os entes da Federação. O exame das razões de veto permite o
entendimento das especificidades e complexidade da vinculação absoluta dos
Estados, Distrito Federal e Municípios às regras adotas em âmbito federal:
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Razões do veto
“Art. 3o
Art. 3o O projeto de lei do plano plurianual de cada ente abrangerá os respectivos Poderes e será devolvido para sanção até o encerramento do primeiro
período da sessão legislativa.
§ 1o Integrará o projeto Anexo de Política Fiscal, em que serão estabelecidos
os objetivos e metas plurianuais de política fiscal a serem alcançados durante o
período de vigência do plano, demonstrando a compatibilidade deles com as premissas e objetivos das políticas econômica nacional e de desenvolvimento social.
§ 2o O projeto de que trata o caput será encaminhado ao Poder Legislativo até
o dia trinta de abril do primeiro ano do mandato do Chefe do Poder Executivo.
Razões do veto
O caput deste artigo estabelece que o projeto de lei do plano plurianual deverá ser devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão
legislativa, enquanto o § 2º obriga o seu envio, ao Poder Legislativo, até o dia
30 de abril do primeiro ano do mandato do Chefe do Poder Executivo. Isso
representará não só um reduzido período para a elaboração dessa peça, por parte
do Poder Executivo, como também para a sua apreciação pelo Poder Legislativo,
inviabilizando o aperfeiçoamento metodológico e a seleção criteriosa de programas e ações prioritárias de governo.
Ressalte-se que a elaboração do plano plurianual é uma tarefa que se estende
muito além dos limites do órgão de planejamento do governo, visto que mobiliza
todos os órgãos e unidades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Além
disso, o novo modelo de planejamento e gestão das ações, pelo qual se busca a
melhoria de qualidade dos serviços públicos, exige uma estreita integração do plano plurianual com o Orçamento da União e os planos das unidades da Federação.
Acrescente-se, ainda, que todo esse trabalho deve ser executado justamente
no primeiro ano de mandato do Presidente da República, quando a Administração Pública sofre as naturais dificuldades decorrentes da mudança de governo
e a necessidade de formação de equipes com pessoal nem sempre familiarizado
com os serviços e sistemas que devem fornecer os elementos essenciais para a
elaboração do plano.
Ademais, a fixação de mesma data para que a União, os Estados e os Municípios encaminhem, ao Poder Legislativo, o referido projeto de lei complementar
não leva em consideração a complexidade, as peculiaridades e as necessidades de
cada ente da Federação, inclusive os pequenos municípios.
Por outro lado, o veto dos prazos constantes do dispositivo traz consigo a
supressão do Anexo de Política Fiscal, a qual não ocasiona prejuízo aos objetivos
da Lei Complementar, considerando-se que a lei de diretrizes orçamentárias já
prevê a apresentação de Anexo de Metas Fiscais, contendo, de forma mais precisa, metas para cinco variáveis – receitas, despesas, resultados nominal e primário
e dívida pública –, para três anos, especificadas em valores correntes e constantes.
FGV DIREITO RIO
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Diante do exposto, propõe-se veto ao art. 3o, e respectivos parágrafos, por
contrariar o interesse público.
§ 7o do art. 5o
§ 7o O projeto de lei orçamentária anual será encaminhado ao Poder Legislativo até o dia quinze de agosto de cada ano.
Razões do veto
A Constituição Federal, no § 2º do art. 35 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determina que, até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º, I e II, o projeto de lei orçamentária da
União seja encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício
financeiro. Estados e Municípios possuem prazos de encaminhamento que são
determinados, respectivamente, pelas Constituições Estaduais e pelas Leis Orgânicas Municipais.
A fixação de uma mesma data para que a União, os Estados e os Municípios encaminhem, ao Poder Legislativo, o projeto de lei orçamentária anual
contraria o interesse público, na medida em que não leva em consideração a
complexidade, as particularidades e as necessidades de cada ente da Federação,
inclusive os pequenos municípios.
Além disso, a fixação de uma mesma data não considera a dependência de
informações entre esses entes, principalmente quanto à estimativa de receita, que
historicamente tem sido responsável pela precedência da União na elaboração do
projeto de lei orçamentária.
Por esse motivo, sugere-se oposição de veto ao referido parágrafo.”
Nesse contexto, pode-se concluir que os entes federados subnacionais
podem estabelecer sistemáticas distintas quanto ao prazo de apresentação
dos projetos de leis orçamentárias.
No que se refere aos Municípios é importante destacar, ainda, com base
no artigo 44 da Lei nº 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, a existência da gestão orçamentária participativa, instrumento de planejamento
municipal, o qual inclui:168
a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do
plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como
condição obrigatória para a sua aprovação pela Câmara Municipal. (grifo nosso)
Já no âmbito federal e estadual não é obrigatória a adoção do princípio
da gestão orçamentária participativa, especialmente em razão “da notória dificuldade de os membros da comunidade dirigirem-se às Casas Legislativas
estaduais e ao Parlamento Nacional”, conforme pontua Harada.169
168
artigo 4 º, III, f, da Lei nº 10.257/2001.
169
HARADA. Op.cit. p.59.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
4.3.2 A lei de diretrizes orçamentárias (LDO)
De volta à análise dos prazos para a apresentação, aprovação e devolução
da lei de diretrizes orçamentárias, disciplinada no supratranscrito inciso II
do §2° do artigo 35 do ADCT, constata-se que o projeto da lei de diretrizes
orçamentárias (LDO) deve ser encaminhado até 15 de abril de cada ano (oito
meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro) e devolvido
para a sanção do Chefe do Poder Executivo até o dia 17 de julho, termo de
encerramento do primeiro período da sessão legislativa, consoante o disposto no citado artigo 57 da CR-88.
Nos termos já destacados, em sentido diverso da inexistência de disciplina quanto à hipótese de não aprovação e devolução do PPA no prazo
fixado, conforme ensina Alexandre de Moraes170, “não há possibilidade de o
Congresso Nacional rejeitar o projeto de lei de diretrizes orçamentárias, uma
vez que a Constituição Federal determina em seu art. 57, §2°, que “a sessão
legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias”.
A ilustração abaixo facilita o entendimento da questão:
Importante frisar que a vigência da LDO é matéria controvertida, podendo-se sustentar que a sua vigência é de um ano, pois se trata de mera
“orientação ou sinalização, de caráter anual, para a feitura do orçamento”,
conforme entende Ricardo Lobo Torres.171 Em sentido diverso, assevera Valdecir Pascoal172 que:
170
MORAES, Alexandre de. Direito
Constitucional. 17ª ed. São Paulo. Atlas,
2005.p.623.
171
TORRES. . Op.cit. p.85.
172
PASCOAL. Op.cit.p.41.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Mesmo que alguns autores falem de vigência anual da LDO, isso, a rigor,
não é correto. Valendo-nos do conceito jurídico de vigência, há que se concluir
que a LDO vigora por mais de um ano. Normalmente é aprovada em meados
do exercício financeiro, orientando a elaboração da LOA no segundo semestre e
continuando em vigor até o final do exercício financeiro subseqüente. Diga-se,
contudo, que, embora a vigência formal seja maior que um ano, a LDO traça
as metas e as prioridades da Administração apenas para o exercício subseqüente.
4.3.3 Oprojeto de lei orçamentária anual (LOA)
O projeto da lei orçamentária anual (LOA) da União, por sua vez, nos
termos do inciso III do artigo 35, §2° do ADCT, deve ser encaminhado até
o dia 31 de agosto (até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro) e devolvido para sanção até 22 de dezembro, data do encerramento
da sessão legislativa. Assim, o prazo para o envio do projeto da LOA pelo
Chefe do Poder Executivo e de devolução pelo Poder Legislativo para o Poder
Executivo são iguais àqueles determinados para o PPA, com a diferença de
que o prazo de vigência deste é quadrienal, ou seja, até o final do primeiro
exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, enquanto a lei do
orçamento tem vigência anual.
O que ocorre se o projeto da LOA não for votado pelo Poder Legislativo
no prazo consignado ou o mesmo for rejeitado?
A possibilidade de (1) rejeição do projeto de lei orçamentária, bem como a
possibilidade de (2) não devolução do projeto de LOA pelo Poder Legislativo
serão analisadas a seguir.
A interpretação do artigo 166, §8° da CR-88, consoante sustenta Alexandre de Moraes, “permite concluir pela possibilidade de rejeição total ou
parcial do projeto” de lei do orçamento anual, tendo em vista a literalidade
do dispositivo, o qual declara que:
§ 8º – Os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser
utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com
prévia e específica autorização legislativa. (grifo nosso)
Em sentido diverso, adverte Adilson Abreu Dallari173, sob pena de paralisação da máquina estatal, não ser possível rejeição total do projeto da lei
orçamentária anual, pois:
se a Constituição restringe o poder de emenda, que somente pode ser exercido
dentro de certos limites, evidentemente proíbe, implicitamente, a emenda total,
radical modificadora absoluta do texto inicialmente proposto. (...) Em resumo,
173
DALLARI, Adilson Abreu. Lei Orçamentária: processo legislativo. Revista
de informação legislativa. Brasília:
Senado, nº 129. p. 159.
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71
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ao dever imposto pela Constituição ao Chefe do Poder Executivo de elaborar e
enviar o projeto de lei orçamentária corresponde o dever imposto ao Legislativo
de examiná-lo, alterá-lo (se for o caso) e aprová-lo, sem possibilidade de rejeição total.
Valdecir Pascoal174, por outro lado, esclarece que:
Há quase um consenso na doutrina acerca da impossibilidade jurídica de o
Poder Legislativo rejeitar o PPA e a LDO. Primeiro, porque a CF não previu
essa possibilidade, uma vez que estabeleceu, no artigo 35 do ADCT, que ambas
as leis devem ser devolvidas ao Poder Executivo para SANÇÃO. Se o legislador
mencionou apenas a possibilidade de sanção fica afastada a possibilidade de rejeição, uma vez que não cabe sancionar o que foi rejeitado. O segundo argumento toma por base o disposto no artigo 57, § 2º segundo o qual a sessão legislativa
não será interrompida sem a aprovação da LDO. Não obstante, o mesmo raciocínio – no sentido de impossibilidade de rejeição – não pode ser empregado
em relação ao projeto de LOA. É que neste caso, a própria CF/88 previu tal
possibilidade ao assinalar em seu artigo 166, §8°, que: (...) (grifo nosso)
Importante destacar que o artigo 66 da Constituição de 1967/69 disciplinava, expressamente, a hipótese da não devolução do projeto de lei do
orçamento anual pelo Congresso Nacional, para a sanção do Presidente da
República, determinando que “se, até trinta dias antes do encerramento do
exercício financeiro, o Poder Legislativo não o devolver para sanção, será promulgado como lei”. Conforme ensina Regis Fernandes de Oliveira175, à época “entendia-se que a disposição valia tanto para a hipótese de não devolução,
como para a de rejeição”. Aduz ainda Regis Fernandes sobre o tema que:
a Constituição do Estado de São Paulo de 1969 dispôs que ‘rejeitado o projeto
subsistirá a lei orçamentária anterior’. Houve julgamento que assim determinou
(RF 207/211). O problema foi levado ao Supremo Tribunal Federal que entendeu inconstitucional o dispositivo (RDA 112/263). Afirmou-se que a solução
seria a de se entender não devolvido o projeto enviado ao Congresso Nacional.
José Afonso da Silva176 apresenta a solução que entende determinada na
própria Carta Magna atual para o problema:
A conseqüência mais séria da rejeição do projeto de lei orçamentária anual é
que a Administração fica sem orçamento, pois não pode ser aprovado outro. Não
é possível elaborar orçamento para o mesmo exercício financeiro. A Constituição dá solução possível e plausível dentro da técnica do direito orçamentário: as
despesas, que não podem efetivar-se senão devidamente autorizadas pelo Legis-
174
PASCOAL. Op.cit.p.52-53.
175
DE OLIVEIRA. Op.cit.p.83.
176
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed.
São Paulo. Malheiros, 2000. p.722.
FGV DIREITO RIO
72
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
lativo, terão que ser autorizadas prévia e especificamente, caso a caso, mediante
leis de abertura de créditos especiais.
Assim, na hipótese de rejeitada a LOA pelo Poder Legislativo, a aplicação dos
recursos públicos e a realização de despesas somente será possível por meio de
créditos adicionais, nos termos disciplinados pela própria Constituição (artigo
167, V), isto é: créditos suplementares, caso a rejeição parlamentar seja parcial,
ou créditos especiais, na hipótese de rejeição parcial ou total, toda elas, entretanto, a exigir autorização legislativa, conforme será estudado na próxima aula.
Por fim, impõe-se destacar que não é disciplinada177 pela atual Constituição178, ao contrário da Constituição de 1967/69, a hipótese de o Poder
Legislativo não devolver o projeto de lei orçamentária anual para a apreciação pelo Poder Executivo – sanção ou veto – no prazo determinado, até 22
de dezembro, conforme estatuído no citado inciso III do artigo 35, §2° do
ADCT, nos termos já salientados. É possível, portanto, a anomia orçamentária, isto é, o início do exercício financeiro sem a aprovação formal da lei
orçamentária anual pelo Congresso Nacional, tendo em vista não haver regra
aplicável à LOA análoga àquela disciplinadora da hipótese para a LDO – caso
no qual a sessão legislativa não é interrompida sem a aprovação do projeto de
lei de diretrizes – conforme já salientado. A questão chegou a ser disciplinada
no artigo 6° da Lei Complementar n° 101/2000, no entanto, o dispositivo
foi vetado, como se constata pelas esclarecedoras razões a seguir aduzidas por
meio da Mensagem nº 627/2000:
Art. 6o Se o orçamento não for sancionado até o final do exercício de seu
encaminhamento ao Poder Legislativo, sua programação poderá ser executada,
até o limite de dois doze avos do total de cada dotação, observadas as condições
constantes da lei de diretrizes orçamentárias.
Razões do veto
Parcela significativa da despesa orçamentária não tem sua execução sob a
forma de duodécimos ao longo do exercício financeiro. Assim, a autorização
para a execução, sem exceção, de apenas dois doze avos do total de cada dotação,
constante do projeto de lei orçamentária, caso não seja ele sancionado até o final
do exercício de seu encaminhamento ao Poder Legislativo, poderá trazer sérios
transtornos à Administração Pública, principalmente no que tange ao pagamento de salários, aposentadorias, ao serviço da dívida e as transferências constitucionais a Estados e Municípios.
Por outro lado, tal comando tem sido regulamentado pela lei de diretrizes orçamentárias, que proporciona maior dinamismo e flexibilidade em suas disposições.
Na ausência de excepcionalidade, o dispositivo é contrário ao interesse público, razão pela qual sugere-se oposição de veto, no propósito de que o assunto
possa ser tratado de forma adequada na lei de diretrizes orçamentárias.
177
Considerando a inexistência de
regramento expresso, qual seria a
solução para a cobrança dos tributos
caso vigente no sistema constitucional
brasileiro o princípio da anualidade
tributária?
178
Dois modelos são possíveis para resolver a questão: (1) a prorrogação do
orçamento em vigor, solução adotada
no Brasil nas Constituições de 1934
(artigo 50, § 5°) e 1946 (artigo 74); ou
(2) considerar aprovado o projeto de
orçamento, hipótese agasalhada pelas
Constituições de 1937 (artigo 72, d) e
1967/69 (artigo 66).
FGV DIREITO RIO
73
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Realmente, a matéria tem sido disciplinada, ano após ano, nas leis de diretrizes orçamentárias – LDO, conforme destacado nas razões de veto em face
da constante omissão do próprio Poder Legislativo, relativamente à devolução do projeto da LOA até 22 de dezembro nos termos constitucionalmente
determinados. Nesse sentido, tendo em vista que a LOA para o exercício de
2008 somente foi aprovada em 24 de março do exercício já em curso (Lei
n° 11.647, de 24.03.2008), ou seja, já realizada a execução de quase 3/12
(três doze avos) do orçamento, aplicou-se o disposto no artigo 72 da Lei n°
11.514/2007, o qual estabelecia as diretrizes para a elaboração e execução da
Lei Orçamentária de 2008 e disciplinava, in verbis:
Art. 72. Se o Projeto de Lei Orçamentária de 2008 não for sancionado pelo
Presidente da República até 31 de dezembro de 2007, a programação dele constante poderá ser executada para o atendimento de:
I – despesas que constituem obrigações constitucionais ou legais da União,
relacionadas na Seção I do Anexo IV desta Lei;
II – bolsas de estudo, no âmbito do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq e da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, de residência médica e do Programa de Educação Tutorial – PET;
III – despesas com a realização das eleições municipais de 2008, constantes
de programações específicas;
IV – pagamento de estagiários e de contratações temporárias por excepcional interesse público na forma da Lei no 8.745, de 9 de dezembro de 1993; e
V – outras despesas correntes de caráter inadiável.
§ 1o As despesas descritas no inciso V deste artigo estão limitadas à 1/12
(um doze avos) do total de cada ação prevista no Projeto de Lei Orçamentária
de 2008, multiplicado pelo número de meses decorridos até a sanção da respectiva lei.
§ 2o Aplica-se, no que couber, o disposto no art. 60 desta Lei aos recursos
liberados na forma deste artigo.
§ 3o Na execução de outras despesas correntes de caráter inadiável, a que se
refere o inciso V do caput, o ordenador de despesa poderá considerar os valores
constantes do Projeto de Lei Orçamentária de 2008 para fins do cumprimento
do disposto no art. 16 da Lei Complementar no 101, de 2000.
A LDO para o exercício de 2012, Lei nº 12.465/2011, fixa regra semelhante em seu artigo 65, da mesma forma que os artigo 68 da LDO de 2011,
Lei nº 12.309/2010, e do artigo 69 da LDO de 2009, Lei n° 11.768/08.
Destaque-se que, diferentemente do orçamento do exercício de 2008,
2010, 2011 e 2012, a LOA do exercício de 2009 foi aprovada, sancionada
FGV DIREITO RIO
74
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
e publicada ainda no exercício de 2008 (Lei nº 11.897, de 30 de dezembro
de 2008).
O quadro abaixo apresenta resumo do que foi até aqui exposto quanto aos
prazos de envio das leis orçamentárias pelo Poder Executivo e devolução pelo
Poder Legislativo:
Projeto
de lei
(1)
Prazo de envio pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo
(1.1)
Termo final
PPA
31 de
Agosto
“encaminhado até
quatro meses antes do
encerramento do primeiro exercício
financeiro”
LDO
15 de
Abril
“encaminhado até oito
meses e meio
antes do encerramento
do exercício
financeiro”
LOA
31 de
Agosto
“encaminhado até quatro
meses antes
do encerramento do
exercício
financeiro”
(2)
Prazo de devolução pelo
Poder Legislativo ao Poder
Executivo
(1.2) Se não
cumprido o
prazo
(2.1)
Termo final
Crime de responsabilidade
22 de
Dezembro
“devolvido
para sanção
até o encerramento da
sessão legislativa”
Crime de responsabilidade
17 de
Julho
“devolvido
para sanção
até o encerramento do
primeiro período da sessão
legislativa”
Crime de responsabilidade
e será considerada como
“proposta a Lei
de Orçamento
vigente”
22 de dezembro
“devolvido
para sanção
até o encerramento da
sessão legislativa”
Fundamento normativo
(2.2) Se não
cumprido o
prazo
Sem previsão
(1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, I,
do ADCT
(1.2) artigo 84, XXIII, caput
do artigo 165 e artigo
166, §6°, c/c art. 85, VI da
CR-88, art. 10, 1, da Lei
1.079/50 ou Decreto-lei
201/67
Sessão legislativa não se
interrompe
(1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, II,
do ADCT
(1.2) artigo 84, XXIII, caput
do artigo 165 e artigo
166, §6°, c/c art. 85, VI da
CR-88, art. 10, 1, da Lei
1.079/50
(2.2) artigo 57, §2°, da
CR-88,
Sem previsão expressa.
Na prática a
matéria vem
sendo disciplinada na
LDO, todos
os anos.
(1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, II,
do ADCT
(1.2) artigo 84, XXIII, caput
do artigo 165 e artigo
166, §6°, c/c art. 85, VI da
CR-88, art. 10, 1, da Lei
1.079/50 ou Decreto-lei
201/67 c/c Art. 32 da Lei
4.320/64
(2.2) artigo 72 da Lei
11.514/2007 (LDO para
2008)
FGV DIREITO RIO
75
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
4.4 OS PRINCÍPIOS ORÇAMENTÁRIOS
Os princípios, ao lado das regras, consubstanciam normas jurídicas, os
quais, a despeito de seu alto grau de abstração e generalidade, direcionam
os diversos sistemas normativos (Constitucional, Civil, Penal, Tributário,
Financeiro etc.). O Direito Financeiro, como ramo autônomo do Direito,
também é regido por um conjunto de princípios e regras. A Constituição da
República de 1988 em conjunto com a Lei n° 4.320/64179 estabelecem vários
princípios, os quais se vinculam e formam também um conjunto. Apenas a
título de exemplo estudaremos alguns, vez que o rol não é taxativo, sendo,
pois, numerus apertus:
1. Princípio da Unidade: consiste na proibição de mais de uma lei
orçamentária em cada ente da Federação em dado exercício financeiro, haja vista a unicidade finalística do orçamento. Nesse sentido,
ainda que a CR/88 em seu art. 165,§5º, conforme já destacado,
disponha que a lei orçamentária compreenderá o orçamento fiscal,
o orçamento de investimento e o orçamento da Seguridade Social,
todas as receitas e despesas, ainda que constantes de três peças orçamentárias distintas, devem constar de uma única (unidade) lei
orçamentária, sendo possível, dessa forma, uma visão global e consolidada do desempenho das finanças públicas do ente federado
como um todo, o que facilita a sua fiscalização e controle. Portanto,
pressupõe e introduz o princípio geral da unidade de caixa ou de
tesouraria, previsto no artigo 56 da Lei n° 4.320/64180, o qual será
objeto de estudo na aula pertinente às receitas públicas.
2. Princípio da Universalidade: O princípio da universalidade prescreve que a Lei orçamentária única (princípio da unidade) deve incorporar todas as receitas e despesas, ou seja, nenhuma instituição
pública do ente federado, compreendendo todas as entradas e saídas
de recursos financeiros, deve ficar de fora do orçamento da unidade
política respectiva (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
Nesse sentido os artigos 3° e 4° da Lei n° 4.320/64 estabelecem que:
“A Lei do Orçamento compreenderá todas as receitas, inclusive as
operações de crédito autorizadas em lei” e “A Lei do Orçamento
compreenderá todas as despesas próprias dos órgãos do Governo
(...)”
3. Princípio do Orçamento bruto: Segundo essa norma-princípio, todas (princípio da universalidade) as receitas e despesas constantes
da lei orçamentária única (princípio da unidade) devem ser consignadas pelos seus valores brutos, qualquer que seja sua natureza ou
o seu destino, isto é, independentemente de sua origem e de qual
será a sua aplicação efetiva. Esse princípio encontra positivado no
179
O artigo 2º consagra expressamente
os princípios orçamentários da “unidade, universalidade e anualidade”
180
Dispões o art. 56, verbis: “O recolhimento de todas as receitas far-se-á
em estrita observância ao princípio
da unidade de tesouraria, vedada
qualquer fragmentação para criação de
caixas especiais.”
FGV DIREITO RIO
76
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
4.
5.
6.
7.
art. 6º, da Lei n° 4.320/64, o qual estabelece: “todas as receitas e
despesas devem constar de lei orçamentária e de créditos adicionais
pelos valores brutos, vedadas as deduções”.
Princípio da Exclusividade: está contemplado no art. 165, §8º, da
Carta de 1988, e prescreve que a lei orçamentária deve conter apenas matéria de direito financeiro e orçametária, permitindo, a título
de exceção, a abertura de créditos suplementares, a serem estudados
na próxima aula, e a contratação de operações de crédito, ainda que
por antecipação de receitas, matérias a serem apresentadas na Aula
6. Não cabe, portanto, as denominadas caudas orçamentárias, assim
intituladas pelas inúmeras tentativas de se incluir nos orçamentos
matérias não relacionadas às questões exclusivamente orçamentárias
(art. 165, §8º).
Princípio da Especificação (discriminação, especialização): consiste na proibição de dotações globais e genéricas, impondo, com isso,
que a lei orçamentária discrimine a despesa por elementos. Tal princípio encontra-se positivado nos artigos 5º e 15 da Lei n° 4.320/64.
Dessa forma, é possível saber, pormenorizadamente as origens e as
aplicações dos recursos, o que facilita o controle e a gestão dos recursos públicos e limita a flexibilidade e arbítrio dos executores do
orçamento, em especial o Poder Executivo, responsável pela execução da maior parcela, o que confe maior segurança à sociedade e ao
Poder Legislativo. Há, no entanto, algumas exceções, como, por
exemplo, as reservas de contingência (disciplinada nos termos do
artigo 5º, III, da LRF e nas respectivas leis de diretrizes orçamentárias) e programas especiais de trabalho (art. 20, parágrafo único c/c
art. 22, IV, da Lei n° 4.320/64).
Princípio da Programação: é um enunciado normativo decorrente do processo natural de planejamento das ações e dos planos de
governo, segundo o qual, a elaboração e a aprovação do orçamento
devem observar o PPA e a LDO.
Princípio do Equilíbrio Orçamentário: Vincula-se ao fato de que
a fixação de despesas deve observar as receitas estimadas, visando
evitar déficit público estrutural181 (despesas maiores do que as receitas). Preceitua Ricardo Lobo Torres182:
Equilíbrio orçamentário é a equalização de receitas e gastos,
harmonia entre capacidade contributiva e legalidade e entre
distribuição de rendas e desenvolvimento econômico (...). O
orçamento não se desequilibra pela falta de dinheiro, mas pelo
desencontro entre valores e princípios jurídicos.
181
Veja em nota de rodapé da Aula 2
quanto à possibilidade de utilização
da déficits públicos eventuais, como
política anticíclica em função de conjunturas econômicas recessivas ou de
crise sistêmica.
182
TORRES, Ricado Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário: o orçamento da Constituição. Vol. V. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2007. p. 173-174.
FGV DIREITO RIO
77
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Embora a CR/88 não contemple expressamente o referido princípio, algumas normas determinam a indispensabilidade do controle de gastos, conforme abaixo explicitado. Quanto à falta de expressa previsão constitucional,
Ricardo Lobo Torres183 entende que o princípio do equilíbrio orçamentário:
ainda quando inscrito no texto constitucional, é meramente formal, aberto e
destituído de eficácia vinculante: será respeitado pelo legislador se enquanto o
permitir a conjuntura econômica, mas não está sujeito ao controle jurisdicional.
Não pode a Constituição determinar obrigatoriamente o equilíbrio orçamentário, eis que este depende de circunstâncias econômicas aleatórias.
O §1º do artigo 7º da Lei n° 4.320/64 determina que “em casos de déficit,
a Lei do Orçamento indicará as fontes de recursos que o Poder Executivo
fica autorizado a utilizar para atender à sua cobertura”. Em complemento,
o artigo 98 do mesmo diploma legal preceitua que “a dívida fundada compreende os compromissos de exigibilidade superior a doze meses, contraídos
para atender”: (1) “a desequilíbrio orçamentário”; “ou” (2) “a financiamento
de obras e serviços públicos”. Assim, pela lei, o déficit apurado, pela diferença
entre as despesas e receitas, exclui as operações de crédito, pois estas constituem os meios aptos para financiar os déficits orçamentários, consoante o
disposto no artigo 98. No entanto, conforme lecionam José Teixeira Machado184 e Heraldo Costa Reis:
é bom que se diga que, por princípio, as leis orçamentárias não devem aprovar
orçamentos deficitários. Vale a pena lembrar que um dos meios de se evitar
os déficits é atualizar anualmente as bases de cálculo das receitas e estabelecer
prioridades para os gastos com base em uma programação trimestral, conforme
dispõem os art. 47 e 50 desta Lei.
Na prática, as leis orçamentárias, que tratam apenas das estimativas de receitas e da fixação de despesas, têm respeitado aludido princípio, ao prever o
total da receita estimada em montante equivalente à despesa fixada, como é o
caso, por exemplo, do artigo 1º da Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010,
(LOA 2010) que dispõe:
Art. 1º Esta Lei estima a receita da União para o exercício financeiro de 2010
no montante de R$ 1.860.428.516.577,00 (um trilhão, oitocentos e sessenta
bilhões, quatrocentos e vinte e oito milhões, quinhentos e dezesseis mil e quinhentos e setenta e sete reais) e fixa a despesa em igual valor, compreendendo,
nos termos do art. 165, § 5o, da Constituição, e dos arts. 6o, 7o e 54 da Lei no
12.017, de 12 de agosto de 2009, Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2010:
183
Idem. Ibidem. p. 175-176.
184
MACHADO Jr., Jose Teixeira e
REIS,Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade
Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM,
2002/2003. p.21.
FGV DIREITO RIO
78
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
I – o Orçamento Fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos
e entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;
II – o Orçamento da Seguridade Social, abrangendo todas as entidades e
órgãos a ela vinculados, da Administração Pública Federal direta e indireta, bem
como os fundos e fundações, instituídos e mantidos pelo Poder Público; e
III – o Orçamento de Investimento das empresas em que a União, direta ou
indiretamente, detém a maioria do capital social com direito a voto.
Entretanto, embutido nesses valores encontra-se uma substancial necessidade de financiamento por meio das denominadas operações de crédito,
compreendendo tanto os financiamentos de longo prazo contratados para
obras e investimentos como para a rolagem da dívida pública mobiliária (dívida pré-existente – o estoque da dívida) etc., assim como as operações de
curto prazo visando recomposição de caixa, e que podem eventualmente se
transformar em passivos de longo prazo, ante a possível carência de outras
fontes de receitas permanentes, o que suscita a constante colocação de títulos
e obrigações emitidas pelo Tesouro no mercado para captação de recursos.
No mesmo sentido do equilíbrio do orçamento, o artigo 4, I, a, da Lei de
Responsabilidade Fiscal, estabelece que a lei de diretrizes orçamentárias, além
de atender ao disposto no § 2o do art. 165 da Constituição e outras condições
de boa gestão da coisa pública prescritos em outros dispositivos da LRF, disporá também sobre “equilíbrio entre receitas e despesas”. O já citado artigo
9º da LRF complementa o objetivo, ao estender e prever a operacionalização
do princípio do equilíbrio à execução orçamentária, e não apenas quando do
estabelecimento das estimativas, haja vista que:
se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não
comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes,
limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados
pela lei de diretrizes orçamentárias.
Assim, a Lei Complementar 101/2000 estabelece o equilíbrio entre receitas
e despesas públicas como princípio fundamental a ser perseguido também na
execução do orçamento, podendo, ainda, ser fixada uma meta de superávit
(receitas superiores às despesas), conceito que pode ser adotado levando-se em
consideração ou não os pagamentos com juros (superávit primário exclui os
juros e o superávit nominal inclui o pagamento de juros da dívida). A redação
original185 do artigo 2º da Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009, definia
a meta de superávit primário para o exercício de 2010 nos seguintes termos:
185
O superávit primário consiste na diferença entre as receitas e as despesas
do governo, excluídos os encargos da
dívida, isto é, dinheiro que o governo
economiza para pagar juros da dívida
pública.
FGV DIREITO RIO
79
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Art. 2o A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2010,
bem como a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a obtenção
da meta de superávit primário, para o setor público consolidado, equivalente
a 3,30%186 (três inteiros e trinta centésimos por cento) do Produto Interno
Bruto – PIB, sendo 2,15% (dois inteiros e quinze centésimos por cento) para
os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e 0,20% (vinte centésimos por
cento) para o Programa de Dispêndios Globais, conforme demonstrado no
Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV desta Lei.
De forma diversa, a LDO para o exercício de 2011, Lei nº 12.309, de 09
de agosto de 2010, estabelece no art. 2º um superávit primário em valores
nominais e não em percentual do Produto Interno Bruto (PIB), da seguinte forma:
Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2011,
bem como a execução da respectiva Lei, deverão ser compatíveis com a obtenção da meta de superávit primário, para o setor público consolidado de R$
117.890.000.000,00 (cento e dezessete bilhões, oitocentos e noventa milhões de
reais), sendo R$ 81.760.000.000,00 (oitenta e um bilhões, setecentos e sessenta
milhões de reais) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e R$ 0,00
(zero reais) para o Programa de Dispêndios Globais, conforme demonstrado no
Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo III desta Lei. (Redação dada pela
Lei nº 12.377, de 2010)
Embora a meta para este ano, estabelecida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), seja de um superávit primário em valores nominais – de
R$ 117,89 bilhões –, a intenção do governo é restabelecer o compromisso
com um superávit pleno de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Para isso
estima-se que será preciso cortar entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões dos
gastos federais projetados para 2011. O controle do gasto público será peça
chave da política de combate à inflação da nova administração
8. Princípio da Igualdade: deve o orçamento contemplar a redistribuição de rendas, a economicidade, o desenvolvimento econômico
sustentável, a legalidade e a impessoalidade. No dizer de Ricardo
Lobo Torres187: “o princípio da igualdade tem aspectos de rara dificuldade no plano orçamentário: conduz às ‘escolhas trágicas’, pois
as opções de despesa se fundam sobretudo no desigual tratamento
dos desiguais”.
9. Princípio da Publicidade: princípio basilar da Administração Pública que impõe ao administrador o dever de tornar público a lei
186
A Lei nº 12.377, de 30 de dezembro
de 2010, alterou a redação deste artigo
2º dispositivo para reduzir a meta para
3,1% do PIB. Ou seja, constatado no
final do exercício de 2010 que não seria
cumprida a meta, a saída foi a alteração
da LDO.
187
Idem. Ibidem. p. 186-187.
FGV DIREITO RIO
80
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
10.
11.
12.
13.
14.
15.
orçamentária, o que ocorre por meio de sua publicação em órgão de
imprensa oficial (art. 37 caput da CR-88).
Princípio da Clareza: estabelece que o orçamento deve ser expresso
de forma clara e objetiva a fim de que todos possam entender o
seu conteúdo.
Princípio da Uniformidade (da consistência): significa que orçamento, em razão de seu caráter formal, deve conservar uma estrutura uniforme.
Princípio da Não-afetação das Receitas (não-vinculação de receitas): As vinculações, em regra, reduzem o grau de liberdade do gestor e engessa o planejamento. O princípio está positivado no art.
167, inciso IV, da CR/88 e aplica-se somente aos impostos, espécie
do gênero tributo, o qual compreende, ainda, as taxas, as contribuições, especiais, de melhoria, de iluminação pública e os empréstimos compulsórios, exações afetadas aos fins que lhe deram fundamento. A regra-princípio veda a vinculação da receita de impostos
órgão, fundo ou despesa da Administração Pública, havendo, no
entanto, diversas exceções a serem examinadas na aula pertinente às
receitas públicas.
Princípio Participativo: aplicado, em regra, no âmbito dos Entes
municipais, sendo condição sine qua non para legitimar as leis orçamentárias, a realização de debates, audiências e consultas públicas
sobre as suas propostas, conforme de depreende do art. 44, da Lei
10.257/2001 (Estatuto das Cidades).
Legalidade: Princípio fundamental do Estado de Direito, em que o
Poder Público se subordina e vincula às regras que somente o Parlamento expede e que informa toda a atividade da Administração
Pública. Quanto aos orçamentos, o artigo 166 suscita a aprovação
parlamentar e, em relação ao orçamento anual, conforme já destacado, preceitua que toda e qualquer despesa pública deve estar
qualitativa e quantitativamente especificada em lei formal, sob pena
de absoluta nulidade, nos termos do artigo 167, I e II, da CR-88.
Princípio da Anualidade Orçamentária ou Periodicidade: Segundo este princípio, ainda hoje vigente, a teor do artigo 165, III, e
§5º, da CR-88, conforme já apresentado na Aula 2, o Orçamento
deve ser elaborado para ser realizado no período de um ano188, o
qual, no Brasil, coincide com o ano civil, conforme já salientado189.
Dessa forma, é princípio que expressa o controle do Parlamento
sobre os demais Poderes relativamente ao Orçamento, ao prever a
necessidade de renovação da autorização legislativa anualmente. A
periodicidade pode coincidir ou não com o ano civil, como é o caso
brasileiro. Na Itália e na Suécia, por exemplo, o exercício financeiro
188
São exceções a essa regra, nos termos a serem estudados na próxima
aula, os créditos especiais e extraordinários autorizados nos últimos quatro
meses do exercício, os quais, reabertos
nos limites de seus saldos, serão incorporados ao orçamento do exercício
subsequente.
189
O artigo 34 da Lei n° 4320/1964
prevê: “O exercício financeiro coincidirá
com o ano civil”.
FGV DIREITO RIO
81
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
começa em 01/07 e termina em 30/06. Na Inglaterra, no Japão
e na Alemanha o exercício financeiro vai de 01/4 a 31/03.
Nos Estados Unidos começa em 01/10, prolongando-se até 30/09.
16. Anterioridade Orçamentária190: prevê que o orçamento deve ser
aprovado antes do início do exercício financeiro ao qual se aplica.
Nos termos já salientados, a LDO tem disciplinado a hipótese de
não aprovação antes do início do exercício financeiro, como é o
caso da LDO para o exercício de 2010, Lei n° 12.017/2009, que
fixa disciplina em seu artigo 68.
17. Princípio da Transparência: Segundo o professor Ricardo
Lobo Torres191:
“A transparência fiscal é um princípio constitucional implícito. Sinaliza no sentido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo
os ditames da clareza, abertura e simplicidade. Dirige-se assim ao Estado
como à Sociedade, tanto aos organismos financeiros supranacionais quanto às entidades não-governamentais. Baliza e modula a problemática da
elaboração do orçamento e da sua gestão responsável, da criação de normas
antielisivas, da abertura do sigilo bancário e do combate à corrupção.”
18 Princípio da Melhor Estimativa ou da Exatidão possível: As estimativas devem ser tão exatas quanto possíveis, de forma a garantir
à peça orçamentária razoável grau de consistência e utilidade, isto
é, a fim de que possa ser utilizada como instrumento de programação, gestão e fiscalização. Têm sido apontados os artigos 7º e 16 do
Decreto-lei nº 200/67 como fundamento.
19. Economicidade: Segundo o princípio estampado no caput do artigo 70 da CR-88, o orçamento deve prever a máxima satisfação
das necessidades públicas com a aplicação do menor montante de
receita possível, isto é, refere-se à otimização na utilização dos recursos públicos.
190
O princípio Anualidade Tributária
não mais se aplica no Brasil, conforme
já estudado, e o princípio da Anterioridade Tributária (clássica e nonagesimal) por sua vez, por se consubstanciar
mais uma importante limitação constitucional ao Poder de Tributar será
estudado de forma detalhada quando
do exame dessas limitações.
191
FGV DIREITO RIO
82
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 5 – OS CRÉDITOS ORÇAMENTÁRIOS E ADICIONAIS
Após a apresentação das principais questões relacionadas à vigência das leis
orçamentárias, bem como da elaboração, iniciativa, apreciação, votação e sanção
dos seus projetos, cumpre agora examinar os denominados Créditos Orçamentários e Adicionais em sua interação com a Despesa e o Orçamento público,
elementos necessários para o estudo da Execução Orçamentária que, ao lado do
Controle, formam os grandes tópicos do já referido Ciclo Orçamentário.
Conforme já enfatizado na Aula 4, são vedados192 o início de programas
ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual bem como a realização de
despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais. Nessa mesma linha, complementa o artigo 165, §8° da
CR-88, no sentido de que a “lei orçamentária anual não conterá dispositivo
estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de
operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.”
Preliminarmente, entretanto, cumpre explicitar a inter-relação entre esses
créditos e as despesas, bem como definir alguns conceitos que permitam traçar as diferenças entre os denominados: (1) créditos orçamentários; (2) créditos
adicionais, que podem ser suplementares, especiais ou extraordinários; e (3)
as operações de crédito – tendo em vista que todos possuem a palavra crédito
inserida nas respectivas expressões, o que pode ocasionar dúvidas quanto ao
âmbito de aplicação de cada qual.
As chamadas operações de crédito, as quais podem, também, ser realizadas
por antecipação de receita, serão examinadas nas aulas referentes ao Financiamento dos Gastos, à Dívida Pública e às Operações de Crédito, e bem assim
das Receitas Públicas, especificamente quando analisadas aquelas de Capital,
haja vista que, pela classificação legal193, as operações de crédito correspondem
a ingressos públicos e, ao mesmo tempo, à constituição da dívida pública.
Nesse sentido, a operação de crédito se vincula à Receita Pública, por ser uma
das formas de financiar o gasto público, assim como ao denominado Crédito
Público, o qual, por sua vez, constitui a Dívida Pública.
Em sentido diverso, os créditos orçamentários e adicionais dizem respeito
às autorizações parlamentares que visam à realização de despesas, o que revela
a equivocidade da palavra utilizada nas supra mencionadas expressões. De
fato, conforme apontado no Dicionário De Plácido e Silva 194, crédito é derivado do latim creditum e possui uma “ampla significação econômica e um
estreito sentido jurídico”, a saber:
Crédito. Em sua acepção econômica significa confiança que uma pessoa deposita em outra, a quem entrega coisa sua, para que, em futuro, receba dela coisa
equivalente. (...)
192
Art. 167 da CR-88. Nesse sentido, é
crime ordenar despesa não autorizada
por lei a teor do artigo 359-D do Código
Penal.
193
Apesar das controvérsias doutrinárias, que serão explicitadas no momento próprio, dispõe o artigo 3º da Lei n°
4320/64 que: “A Lei de Orçamentos
compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito
autorizadas em lei”. Nesse passo complementa o artigo 11, §2°, que: “São
Receitas de Capital as provenientes
da realização de recursos financeiros
oriundos da constituição de dívidas;
(...).” Na mesma linha, define o artigo
29, III, da LRF: “operação de crédito:
compromisso financeiro assumido em
razão de mútuo, abertura de crédito,
emissão e aceite de título, aquisição
financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da
venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso
de derivativos financeiros”. O artigo 12,
§2°, da LRF, dispositivo inserido no Capítulo III – Da Receita Pública, estabelece que “§ 2o O montante previsto para
as receitas de operações de crédito não
poderá ser superior ao das despesas de
capital constantes do projeto de lei orçamentária.” Este último dispositivo foi
impugnado pela ADI 2238.
194
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002. Forense. Rio
de Janeiro, 2002. p. 230.
FGV DIREITO RIO
83
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Crédito. Juridicamente, significa o direito que tem a pessoa de exigir de
outra o cumprimento da obrigação contraída. Neste sentido, no entanto, tem-se
o vocábulo em acepção mais ampliada, pois que abrange as obrigações de dar,
fazer ou não fazer. Mas, em Direito ainda possui sentido mais restrito, desde
que pode indicar o direito de cobrar uma dívida ativa, como pode significar o
próprio título dessa dívida. (...)
Crédito. Na técnica da escrituração mercantil, compreende o lançamento
de haver feito em qualquer conta de uma escrita comercial ou a soma líquida
(resultado balanceado) anotada no haver da mesma conta. Nesse último sentido
crédito significa o montante da própria dívida ou de haver registrado. (...)
Crédito. Na terminologia do Direito Administrativo, assim se diz para as
somas consignadas nos orçamentos (verbas orçamentárias), destinadas a fazerem
face às despesas públicas. Por essa forma, crédito, no sentido do Direito Administrativo, é indicado pela verba regularmente autorizada, dentro da qual, e sob
títulos ou consignações próprias, se pagam as despesas empenhadas. (grifo nosso)
Destaque-se que a nomenclatura verba, utilizada no Dicionário para definir o conceito de crédito no âmbito Administrativo, expressão, foi abolida
da Lei n° 4.320/64, que passou a adotar, conforme pontuam José Teixeira
Machado195 e Heraldo Costa Reis:
mais apropriadamente, dotação e créditos orçamentários (art. 90). Na verdade,
podemos notar uma vacilação de conceito entre os termos: dotação, crédito orçamentário e verba. Como a última está sendo eliminada, ou já o foi, da terminologia orçamentária brasileira, fixemo-nos das duas primeiras.
Dotação deve ser a medida, ou quantificação monetária do recurso aportado
a um programa, atividade, projeto, categoria econômica ou objeto de despesa.
Este é o seu sentido. Apenas a prática, com sua capacidade de simplificação,
toma o conteúdo (dotação igual a quantidade de recurso financeiro) pelo continente: programa, atividade, projeto, categoria econômica ou objeto de despesa.
O crédito orçamentário seria, então, a autorização através da lei de orçamento ou de créditos, adicionais, para a execução de programa, projeto ou atividade
ou para o desembolso de quantia aportada a objeto de despesa, vinculado a uma
categoria econômica, e, pois, a um programa. Assim, o crédito orçamentário seria
portador de uma dotação e esta o limite autorizado, quantificado monetariamente.
Nessa linha de pensamento, em que pese o §5º do artigo 100 da CR-88
continuar a utilizar a expressão verba ao disciplinar os precatórios, a dotação é
o limite do crédito conferido em lei para que os executores do orçamento realizem as despesas previamente especificadas e quantificadas monetariamente.
O crédito pode ser previsto: (1) na lei do orçamento, hipótese em que se
qualifica como crédito orçamentário196, já que consignado desde o início na
195
MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS,
Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade
Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM,
2002/2003. p.21.
196
O Manual de Despesa Nacional,
aprovado pela Portaria Conjunta n° 3,
de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da
Fazenda e da Secretária de Orçamento
Federal do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, disponibilizado
no endereço eletrônico http://www.
tesouro.fazenda.gov.br, qualifica como
crédito orçamentário inicial “aquele
aprovado pela lei orçamentária anual,
constante dos orçamentos fiscal, da seguridade social e de investimentos das
empresas estatais”.
FGV DIREITO RIO
84
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
própria LOA; ou, ainda, (2) na norma que autoriza o crédito adicional (suplementar, especial ou extraordinário) durante a execução do orçamento, nos
casos em que os gastos a que se vinculam não tenham sido previstos ou foram
insuficientemente dotados na lei orçamentária, considerando, ainda, a possibilidade de haver recursos disponíveis sem vinculação à dotação específica.
A última hipótese – recursos disponíveis sem vinculação à dotação específica – pode ocorrer: (2.1) em razão de imprecisões ou erros de planejamento, ou
(2.2) em função da ocorrência de fatos supervenientes imprevisíveis e urgentes
ou de desempenho da arrecadação acima do esperado. Os créditos especiais e
suplementares podem, também, com prévia e específica autorização legislativa, nos termos do artigo 166, §8° da CR-88, ser os instrumentos utilizados
para alocar os recursos que ficaram sem despesas correspondentes em decorrência de veto, emenda ou rejeição parcial do projeto de lei orçamentária
anual, isto é, se a despesa inicialmente prevista no projeto sofreu redução ou
supressão. Essa hipótese pode ocorrer se, após a aprovação da LOA, ocorreram sobras em relação à dotação inicialmente consignada, por força de veto
do Chefe do Poder Executivo, por emenda parlamentar ou rejeição parcial
do projeto de lei que atribuía determinada dotação para despesa específica.
Esse montante, agora sem destino, pode ser utilizado por meio de créditos
suplementares e especiais.
O crédito suplementar, como o próprio nome revela, reforça e supre a dotação de despesas já previstas no orçamento, as quais, entretanto, ao longo do
exercício financeiro, revelam-se insuficientemente dotadas financeiramente.
Já os créditos especiais visam atender as despesas não previstas na LOA, mas
que durante a execução do orçamento, mostram-se necessárias, razão pela
qual se impõe a abertura de crédito novo, especial, com dotação específica a
autorizar a despesa que surge. Os créditos suplementares e especiais, consoante
o disposto no artigo 42 da Lei n° 4.320/64, “serão autorizados por lei e abertos por decreto executivo”, ou seja, o dispositivo diferencia o ato legislativo
de autorização do ato administrativo que o integra para a produção de efeitos
concretos. Por fim, os extraordinários visam a suprir as despesas imprevisíveis
e urgentes que ocorram durante o exercício financeiro. Relativamente à abertura do crédito extraordinário, duas observações devem ser feitas: a primeira,
conforme será analisado detidamente a seguir: (1) que a Constituição faculta
a abertura de crédito extraordinário por meio de Medida Provisória; e, (2) a
segunda, que nos interessa no momento, refere-se ao fato de que o Supremo
Tribunal Federal tem jurisprudência firme no sentido de que as regras básicas
de processo legislativo previstas na Constituição Federal servem de modelo
obrigatório a ser seguido pelas Constituições Estaduais, conforme se infere
do seguinte trecho da ADI 822.197
197
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 822. Julgamento
em 05.04.1996. Disponível em: <http://
www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em
26.05.2008.
FGV DIREITO RIO
85
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Assim, se a Constituição faculta a autorização de crédito extraordinário
por meio de Medida Provisória (artigo 167, §3°), mas o Estado ou o Município não possui aludida espécie normativa198, é permitida a sua criação e
abertura por Decreto. Essa hipótese, no entanto, nos parece estar condicionada a ulterior ratificação legislativa pelas Assembléia Legislativa Estaduais,
em cumprimento ao princípio da simetria. Nesses termos, dispõe o artigo 44
da Lei n° 4.320/64 que “os créditos extraordinários serão abertos por decreto
do Poder Executivo, que deles dará imediato conhecimento ao Poder Legislativo”. Saliente-se que o termo conhecimento utilizado no dispositivo deve ser
interpretado não apenas como simples anuência, mas sim como pedido formal de autorização ratificadora superveniente e vinculativa.199 Nessa direção
aponta Afonso Gomes Aguiar:200
Ocorre porém, que os Créditos Extraordinários, por serem créditos adicionais, alteram o Orçamento Anual que, sendo uma lei, só pode sofrer alterações
por força de autorização legislativa, isto é, por força de outra lei. Para pôr em
harmonia a urgência no atendimento das despesas que devem ser socorridas
por essa espécie de crédito adicional e a exigência do art. 2°, do Decreto-Lei n°
4.657/42 – Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro o legislador encontrou
a saída disposta na verba da lei em questão. Destarte, o Chefe do Poder Executivo, ao abrir um crédito Extraordinário, através de Decreto, deverá encaminhar,
de imediato, o texto do seu ato ao Poder Legislativo que, após examiná-lo, se for
o caso, o aprovará, acontecendo, assim, posteriormente, a necessária autorização
legislativa que, na espécie, o Poder Legislativo se externa através de Resolução,
com força de lei.” (grifo nosso)
O elemento comum às aludidas modalidades de crédito é o objetivo de
possibilitar a geração201 e realização de despesas, o que pressupõe autorização
legislativa em qualquer caso, ou seja, os créditos orçamentários e os adicionais
corporificam, na norma que os autoriza, especifica e limita em termos monetários, por meio da dotação, a permissão do povo202 para que o governante
possa gastar os recursos públicos, ainda que sejam distintas: (1) a forma como
a abertura do crédito é autorizada e realizada, e bem assim, (2) o momen-
198
O Supremo Tribunal Federal já
firmou jurisprudência no sentido da
possibilidade e facultatividade de os
Estados-membros adotarem medidas
provisórias, assim como os Municípios.
Nesse sentido, ADI 425, cuja parte relevante da ementa estabelece: “1. Podem
os Estados-membros editar medidas
provisórias em face do princípio da
simetria, obedecidas as regras básicas
do processo legislativo no âmbito da
União (CF, artigo 62). 2. Constitui forma
de restrição não prevista no vigente sistema constitucional pátrio (CF, § 1º do
artigo 25) qualquer limitação imposta
às unidades federadas para a edição
de medidas provisórias. Legitimidade
e facultatividade de sua adoção pelos
Estados-membros, a exemplo da União
Federal. (...)”. BRASIL. Poder Judiciário.
Supremo Tribunal Federal. ADI 425.
Julgamento em 04.09.2002. Disponível
em: <http://www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 27.05.2008.
199
Problemas de ordem prática podem surgir se a realização da despesa
já foi efetivada quando ocorrer a não
aprovação legislativa ou, ainda, se o
Poder Judiciário suspender ou declarar
inconstitucional o ato que permitiu
a abertura do crédito extraordinário.
Cabe, então, a indagação sobre o que
ocorrerá com os créditos já repassados e empenhados pelos respectivos
órgãos se o Poder Legislativo rejeitar a
autorização para abertura do crédito ou
o Judiciário considerá-lo incompatível
com a ordem jurídica? No julgamento
da medida cautelar na ADI 4048, a qual
será adiante analisada, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia da
Medida Provisória 405/07, convertida
na Lei n 11.658/08, mas, conforme informado nas “Notícias STF”, de quarta
feira, 14 de maio de 2008, “A decisão
vale a partir de hoje, não atingindo os
créditos já repassados e empenhados
pelos órgãos”. BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI
4048. Julgamento da cautelar em
14.05.2008. Disponível em: <http://
www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada
em 16.05.2008.
200
AGUIAR, Afonso Gomes. Direito
Financeiro. Lei 4.230. Comentada ao
Alcance de todos. 3a edição. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2005. p. 307.
201
A Seção I, do Capítulo IV - Da Despesa Pública, da Lei Complementar
n° 101/2000 (LRF), é intitulado “Da
Geração de Despesa” e compreende os
artigos 15 a 24 da LRF.
202
Dispõe o artigo 1°, III, da CR-88 “Todo
o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
FGV DIREITO RIO
86
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
to em que essas autorizações legislativas são efetivadas, podendo ser prévia
ou não.
Em suma, a LOA fixa os gastos203, determinando as despesas qualitativa
e quantitativamente, por meio de dotações específicas, consignadas nas respectivas rubricas orçamentárias a serem detalhadas no quadro de detalhamento das despesas204 de cada unidade orçamentária, sendo classificadas sob
diversos critérios, mas sempre visando à realização dos projetos e programas
previamente determinados pelo legislador, compatibilizados com as diretrizes, objetivos, metas e prioridades expressos na lei de diretrizes e no plano
plurianual, os quais norteiam a ação governamental. Na hipótese de não estar
prevista na LOA ou, se prevista, não for dotada suficientemente para atender
determinado gasto a ser realizado durante o exercício financeiro, somente por
meio dos créditos adicionais será possível a sua realização. Um outro exemplo
pode facilitar a compreensão da questão: imaginemos, hipoteticamente, que
em relação à estimativa do orçamento ocorra excesso de arrecadação durante
a execução orçamentária de determinado exercício financeiro. Enquanto não
houver a abertura de crédito adicional, suplementar ou especial, os recursos
arrecadados acima do previsto, ainda não utilizados para dotar determinada
despesa específica, por meio do ato próprio, não poderão ser gastos! Nesses
termos, sob o ponto de vista da autorização, os créditos dizem-se orçamentários ou adicionais, a requerer, nas duas hipóteses, autorização parlamentar, a
qual, como visto, pode ser prévia ou não.
Os créditos orçamentários são disciplinados nos §§ 4° e 5° do artigo 5° da
LRF, dispositivos que determinam ser vedado consignar, na lei orçamentária,
crédito com finalidade imprecisa205 ou com dotação ilimitada, em sintonia
com o disposto no artigo 167, VII, da CR-88, bem como dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja
previsto no plano plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão, sob pena
crime de responsabilidade, conforme disposto no § 1° do art. 167 da Constituição. Nesse sentido, o artigo 10, IX, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de
1992, estabelece que constitui ato de improbidade administrativa ordenar
ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento.
A menção deste (o regulamento) se restringe às hipóteses em que há delegação legislativa constitucionalmente autorizada, como é o caso do crédito
suplementar, que será analisado a seguir. Destaque-se ainda que o artigo 359D, do Código Penal, dispositivo incluído pela Lei nº 10.028/2000, tipifica
como crime “Ordenar despesa não autorizada por lei”, submetendo o ordenador da despesa que comete o ilícito à pena de reclusão de 1(um) a 4(quatro) anos. Cabe mencionar, ainda, que o artigo 42 da LRF veda, ao titular de
Poder, assim qualificado pelo artigo 20 da Lei Complementar, como aquele
do Executivo, Legislativo, neste incluído os Tribunais de Contas, Judiciário
e do Ministério Público, “nos últimos dois quadrimestres do seu mandato,
203
Nos termos do artigo 38 da Lei n°
4320/64: “Reverte à dotação a importância de despesa anulada no exercício,
quando a anulação ocorrer após o encerramento do mesmo considerar-se-á
receita do ano em que se efetivar.”
204
O chamado QDD (quadro de detalhamento de despesas) especifica os
projetos e atividades por elementos de
despesa a cargo da unidade orçamentária, conforme previsto no artigo 17 do
Decreto n° 93.872/1986. A abertura ou
reabertura de crédito adicional importa
automática modificação do QDD.
205
Saliente-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal considera “adequada com
a lei orçamentária anual” (1) “a despesa
objeto de dotação específica e suficiente”, “ou” (2) que esteja abrangida por
crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no
programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para
o exercício”. Nesse termos, a LRF veda
o crédito com “finalidade imprecisa” ou
“com dotação ilimitada”, mas permite o
denominado “crédito genérico”.
FGV DIREITO RIO
87
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que
haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.” O descumprimento
desta determinação é tipificado como crime pelo artigo 359-C do Código
Penal, dispositivo incluído pela Lei nº 10.028/2000.
Nos termos já enfatizados, a abertura de crédito suplementar e especial somente são compatíveis com a Carta Magna, consoante o disposto no artigo
167, inciso V, e 62, §1º, I, d, da CR-88, caso haja autorização legislativa anterior206 e com a “indicação dos recursos correspondentes”, isto é, se ocorreu
erro, descuido ou imprecisão no planejamento (o que ocasiona a existência
de dotação inferior ao necessário) a ensejar crédito suplementar, ou omissão
quanto à despesa que se revele necessária durante a execução orçamentária,
a suscitar crédito especial, ou, ainda, na hipótese de existirem recursos em
excesso, acima do previsto, tendo em vista o desempenho positivo da arrecadação relativamente ao previsto no orçamento, em qualquer dos casos, é
constitucionalmente vedada a abertura de crédito (1)“sem prévia autorização
legislativa” e (2) “sem indicação dos recursos correspondentes”. Repise-se,
entretanto, que a autorização parlamentar ao crédito suplementar, mas não
ao especial, pode ser efetivada diretamente na lei orçamentária anual – consubstanciando-se, assim, em delegação legislativa a priori, a teor do já citado
artigo 165, §8° da CR-88-. Com efeito, tal dispositivo consagra o princípio
geral da exclusividade207, assim como as suas exceções. Relativamente à indicação dos recursos disponíveis, cumpre destacar que são seis os recursos
possíveis para cobrir a abertura de crédito suplementar e especial, desde que
já não estejam comprometidos, sendo os mesmos disciplinados no artigo 43,
§1°, I, II e III, da Lei n° 4.320/64, artigo 91 do Decreto-lei n 200/67 e no
artigo 166, §8° da CR-88, nos seguintes termos:
1) o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício
anterior, assim entendido como a diferença positiva entre o ativo e
o passivo financeiro, conjugando-se, ainda, os saldos dos créditos
adicionais transferidos e as operações de credito a eles vinculadas,
conforme apurado no balanço patrimonial (artigo 43, §1°, I, da Lei
n° 4.320/64);
2) os provenientes de excesso de arrecadação, assim entendida para esse
fim o saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês entre a arrecadação prevista e a realizada, considerando-se, ainda, a tendência
do exercício, observada a necessidade de deduzir a importância dos
créditos extraordinários abertos no exercício para o fim de apurar os
recursos utilizáveis provenientes de excesso de arrecadação; (artigo
43, §1°, II, da Lei n° 4.320/64);
206
Por esse motivo, exigência de autorização parlamentar prévia, os Partidos
de oposição ajuizaram no Supremo
Tribunal Federal (STF), conforme noticiado no site da Suprema Corte, “uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI 4179) contra os artigos 1º e 4º da
Medida Provisória 452/08. A intenção
dos autores – o Democratas, o Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB)
e o Partido Popular Socialista (PPS) – é
impedir o Tesouro de emitir títulos da
dívida pública mobiliária federal a serem empregados no Fundo Soberano
do Brasil (FSB). Os três partidos argumentam, na ADI, que a Constituição
Federal proíbe o presidente da República de editar MP sobre créditos suplementares ou especiais (artigo 167, V) e
restringe os extraordinários aos casos
urgentes. Além disso, defendem que o
repasse ao Fundo deve ser previsto na
Lei de Diretrizes Orçamentárias e feito
por meio do Orçamento federal, e não
por MP, uma vez que o artigo 62 veda
edição de MPs para créditos suplementares. De fato, a lei de criação do Fundo
(11.887/08), aprovada pelo Congresso
e sancionada pelo presidente da República, prevê que os recursos do Tesouro
serão repassados caso sejam “consignados no orçamento anual, inclusive
aqueles decorrentes da emissão de
títulos da dívida pública” (artigo 4º).
Ela, inclusive, prevê que as fontes e recursos que o formarão serão provenientes das dotações do orçamento anual
(aprovado pelo Congresso), ações de
sociedades de economia mista federais
e resultados de aplicações financeiras.”
207
O princípio da exclusividade, estampado no artigo 165, §8° da CR-88, prescreve que a lei orçamentária deve conter
apenas a previsão da receita e a fixação
da despesa. Tendo em vista não se tratar
de matéria estranha à lei orçamentária,
ele permite a abertura de créditos suplementares e contratação de operações
de crédito, ainda que por antecipação de
receitas. A autorização legislativa na LOA
é usualmente fixada em percentuais da
dotação, podendo haver outros limites e
parâmetro, como é o caso da delegação
legislativa constante no artigo 4° da Lei
n° 11.647/2008, a LOA da União para o
exercício de 2008, conforme já salientado, dispositivo cujo caput estabelece:
“Art. 4o Fica autorizada a abertura de
créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, observado o
disposto no parágrafo único do art. 8o da
Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei
de Diretrizes Orçamentárias para 2008,
desde que as alterações promovidas
na programação orçamentária sejam
compatíveis com a obtenção da meta de
resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes
Orçamentárias para 2008, respeitados
os limites e condições estabelecidos
neste artigo, para suplementação de
dotações consignadas:”
FGV DIREITO RIO
88
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
3) os resultantes de anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizados em Lei (artigo 43, §1°,
III, da Lei n° 4.320/64);
4) o produto de operações de crédito autorizadas, em forma que juridicamente possibilite ao poder executivo realizá-las (artigo 43, §1°,
IV, da Lei n° 4.320/64);
5) da reserva de contingência, prevista no artigo 91, do Decreto-lei
n° 200/67, regra que determina que o orçamento incluirá verba
global para constituição de um Fundo de Reserva Orçamentária,
destinando-se os recursos a despesas correntes quando se evidenciar
deficiências nas respectivas dotações e se fizer indispensável atender
a encargo legal ou a necessidade imperiosa do serviço;
6) os já citados recursos que em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas
correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante
créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa (artigo 166, §8°, da CR-88).
Por sua vez, a abertura de crédito extraordinário, consoante o disposto no
artigo 167, §3° da CR-88, somente será admitida para atender às despesas
imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou
calamidade pública, observado o disposto no art. 62. Ou seja, o parâmetro
constitucional, que permite a abertura do crédito extraordinário, espécie de
crédito adicional, por meio de Medida Provisória (MP), conforme já salientado, restringe-se aos casos em que há relevância e urgência. Assim, a criação
de crédito extraordinário por MP possui três requisitos necessários e cumulativos, haja vista que a causa de sua abertura, o fato subjacente a ensejar a
medida temporária, tem que ser (1) urgente, (2) relevante e (3) imprevisível,
configurando-se essa imprevisibilidade à época da elaboração do orçamento. De fato, o artigo 62, § 1º, I, d, da CR-88, dispositivo incluído pela Emenda Constitucional nº32, de 2001, estatui ser vedada a edição de medida provisória sobre matéria relativa a “planos plurianuais, diretrizes orçamentárias,
orçamento e créditos adicionais e suplementares,” excepcionada a hipótese
do crédito extraordinário, nos termos do citado art. 167, § 3º. Saliente-se
que, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 do artigo 62, as medidas provisórias, ainda que relevantes e urgentes, “perderão eficácia, desde a edição, se não
forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos
do §7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes”. Nesses
termos, repise-se que a requerida autorização legislativa para a abertura de
crédito extraordinário ocorre posteriormente e não previamente, como é a
regra geral dos demais créditos adicionais – o suplementar e o especial.208 Cabe
208
Destaque-se que, em 16/4/2008, a
Comissão Especial, destinada a proferir
parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 511-A, de 2006, do Senado
Federal, que “altera o art. 62 da Constituição Federal para disciplinar a edição
de medidas provisórias”, estabelecendo
que a Medida Provisória só terá força de
lei depois de aprovada a sua admissibilidade pelo Congresso Nacional, sendo
o início da apreciação alternado entre
a Câmara e o Senado (PEC51106)”,
aprovou o Parecer do relator, por unanimidade. A PEC modifica a redação dos
artigos 62 e 167 da CR-88, o que afeta
diretamente a matéria orçamentária
ora sob exame. Os dispositivos, com a
redação proposta na PEC, estão assim
redigido: “Art. 62.(...) § 1º (...), I – (...)
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais, ressalvado o previsto no art. 167,
§§ 3º e 5º”; e “Art. 167. São vedados (...)
§ 3º - A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes
decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública,observado o
disposto no art. 62. (...) § 5º O projeto
de lei de crédito suplementar e especial
que, após decorrido o prazo de setenta
e cinco dias de seu envio pelo Poder
Executivo, não tenha sua votação concluída no Congresso Nacional, poderá
ser objeto de medida provisória, observado o art. 62, com o mesmo conteúdo
do projeto original, cuja tramitação
permanecerá suspensa até deliberação
final da medida provisória. § 6º O prazo
a que se refere o § 5º suspender-se-á
durante os períodos de recesso do Congresso Nacional.” Assim, nos termos da
redação proposta para o § 3º o elenco
apresentado pela Constituição passa
de exemplificativo para taxativo, o que
restringirá a possibilidade de aplicação
do crédito extraordinário. Por outro
lado, o novel § 5º combinado com o
disposto no artigo 62, § 1º, I, d, estabelece a possibilidade de abertura de
créditos suplementares e especiais por
intermédio de Medida Provisória, caso
“decorrido o prazo de setenta e cinco
dias de seu envio pelo Poder Executivo, não tenha sua votação concluída
no Congresso Nacional”. BRASIL. Poder
Legislativo. Câmara dos Deputados.
PEC nº 511-A, de 2006. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br>. Pesquisa realizada em 27.05.2008.
FGV DIREITO RIO
89
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ressaltar, entretanto, que se a causa a ensejar a edição da Medida Provisória
não for, realmente, (1) urgente, (2) relevante e (3) imprevisível pode o Poder
Judiciário considerar inválida a autorização, como foi o caso da decisão em
medida cautelar na ADI 4048, ainda na hipótese em que já tenha havido a
conversão da MP quando do julgamento, haja vista que “lei de conversão não
convalida os vícios formais porventura existentes na medida provisória, que
poderão ser objeto de análise do Tribunal, no âmbito do controle de constitucionalidade”, conforme jurisprudência firmada no STF nas ADIs n°s 3.090
e 3.100. A leitura da parte inicial e da parte final do voto do relator na ADI
4048 é esclarecedora em relação à matéria:
“MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.048-1 DISTRITO FEDERAL
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator): No ato de distribuição do Relatório e apresentação em mesa para o julgamento desta Ação
Direta de Inconstitucionalidade n° 4.048/DF, em 31 de março de 2008, estava
em tramitação a Medida Provisória n° 405/2007, a qual teve sua vigência prorrogada por sessenta dias, a partir de 30 de março, tendo em vista que sua votação
não havia sido encerrada no Congresso Nacional (Ato do presidente da Mesa do
Congresso Nacional n° 7, de 2008). No dia 16 de abril, o Congresso Nacional
aprovou a conversão em lei da referida medida provisória. A promulgação da
Lei n° 11.658, lei de conversão da MP n° 405/2007, ocorreu no dia 18 de abril
de 2008, e sua publicação no dia 22 de abril do mesmo ano. É preciso esclarecer, portanto, que no dia 17 de abril, quando o Tribunal iniciou o julgamento
da medida cautelar nesta ADI n° 4.048/DF, ainda não existia formalmente a
lei de conversão (não havia sido promulgada nem publicada), mas apenas sua
aprovação pelo Congresso Nacional, fato que não foi comunicado oficialmente
nos autos, tendo sido objeto de considerações tecidas pelo Advogado-Geral da
União em sua sustentação oral. Após os votos dos Ministros Eros Grau, Cármen
Lúcia, Carlos Britto e Marco Aurélio, além do voto por mim proferido na qualidade de Relator, no sentido da concessão da medida cautelar, o julgamento foi
suspenso para esperar os votos dos Ministros Menezes Direito, Ellen Gracie e
Celso de Mello, ausentes na ocasião, justificadamente. No dia 22 de abril, data
da publicação da lei de conversão (Lei n° 11.658/2008), o requerente, Partido
da Social Democracia Brasileira – PSDB, aditou o pedido inicial para incluir no
objeto desta ação a referida lei. Argumentou o partido político que não houve
qualquer alteração no texto original da MP n° 405/2007. Eis o teor da Lei n°
11.658/2008:
“Art. 1o Fica aberto crédito extraordinário, em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$
5.455.677.660,00 (cinco bilhões, quatrocentos e cinqüenta e cinco milhões, seiscentos e setenta e sete mil, seiscentos e sessenta reais), para aten-
FGV DIREITO RIO
90
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
der à programação constante dos Anexos I e III desta Lei. Art. 2o Os recursos necessários à abertura do crédito de que trata o art. 1o decorrem de:
I – superávit financeiro apurado no Balanço Patrimonial da União do
exercício de 2006, no valor de R$ 3.995.542.240,00 (três bilhões, novecentos e noventa e cinco milhões, quinhentos e quarenta e dois mil,
duzentos e quarenta reais);
II – excesso de arrecadação no valor de R$ 670.252.213,00 (seiscentos
e setenta milhões, duzentos e cinqüenta e dois mil, duzentos e treze reais);
III – anulação parcial de dotações orçamentárias, no valor de R$
370.837.862,00 (trezentos e setenta milhões, oitocentos e trinta e sete mil,
oitocentos e sessenta e dois reais), conforme indicado no Anexo II desta Lei;
IV – ingresso de operação de crédito relativa ao lançamento de Títulos
da Dívida Agrária, no valor de R$ 417.115.345,00 (quatrocentos e dezessete milhões, cento e quinze mil, trezentos e quarenta e cinco reais); e
V – repasse da União sob a forma de participação no capital de empresas estatais, no valor de R$ 1.930.000,00 (um milhão, novecentos e trinta
mil reais).
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Tendo em vista que não houve qualquer alteração substancial no texto original da MP n° 405/2008, não vejo qualquer obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. O Tribunal tem entendido que a lei de conversão não
convalida os vícios existentes na medida provisória, como se pode observar nos
precedentes das ADI n°s 3.090 e 3.100, cujo acórdão está assim ementado:
“EMENTA: Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003, que dispõe
sobre a comercialização de energia elétrica, altera as Leis nºs 5.655, de
1971, 8.631, de 1993, 9.074, de 1995, 9.427, de 1996, 9.478, de 1997,
9.648, de 1998, 9.991, de 2000, 10.438, de 2002, e dá outras providências. 2. Medida Provisória convertida na Lei n° 10.848, de 2004. Questão
de ordem quanto à possibilidade de se analisar o alegado vício formal da
medida provisória após a sua conversão em lei. A lei de conversão não
convalida os vícios formais porventura existentes na medida provisória,
que poderão ser objeto de análise do Tribunal, no âmbito do controle de
constitucionalidade. Questão de ordem rejeitada, por maioria de votos.
Vencida a tese de que a promulgação da lei de conversão prejudica a análise dos eventuais vícios formais da medida provisória. 3. Prosseguimento
do julgamento quanto à análise das alegações de vícios formais presentes
na Medida Provisória n° 144/2003, por violação ao art. 246 da Constituição: “É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo
da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”.
FGV DIREITO RIO
91
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Em princípio, a medida provisória impugnada não viola o art. 246 da
Constituição, tendo em vista que a Emenda Constitucional n° 6/95 não
promoveu alteração substancial na disciplina constitucional do setor elétrico, mas restringiu-se, em razão da revogação do art. 171 da Constituição, a
substituir a expressão “empresa brasileira de capital nacional” pela expressão
“empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração
no país”, incluída no § 1º do art. 176 da Constituição. Em verdade, a Medida Provisória n° 144/2003 não está destinada a dar eficácia às modificações introduzidas pela EC n° 6/95, eis que versa sobre a matéria tratada no
art. 175 da Constituição, ou seja, sobre o regime de prestação de serviços
públicos no setor elétrico. Vencida a tese que vislumbrava a afronta ao art.
246 da Constituição, propugnando pela interpretação conforme a Constituição para afastar a aplicação da medida provisória, assim como da lei
de conversão, a qualquer atividade relacionada à exploração do potencial
hidráulico para fins de produção de energia. 4. Medida cautelar indeferida,
por maioria de votos.”
Assim, recebido o pedido de aditamento formulado pelo partido requerente, reformulo a parte dispositiva do voto para, deferindo o pedido de medida
cautelar, suspender a vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação,
ocorrida em 22 de abril de 2008.
(...)
Como se pode constatar, pela leitura atenta da exposição de motivos da MP
n° 405/2007, os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que
não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. É bem verdade
que, em alguns casos, é possível identificar situações específicas caracterizadas
pela relevância dos temas. São os casos, por exemplo, dos créditos destinados à
redução dos riscos de introdução da gripe aviária e de outras doenças exóticas
na cadeia avícola brasileira; aqueles destinados às operações de policiamento nas
rodovias federais e de investigação, repressão e combate ao crime organizado e
para evitar a invasão de terras indígenas, assim como para solver a grave situação
dos sistemas penitenciários com superpopulação carcerária; os créditos destinados ao aporte imediato de recursos extras para o pagamento de benefícios
aos agricultores familiares do semi-árido que tiveram perdas na última safra; e,
enfim, os créditos destinados a evitar a ocorrência de crise aérea, para impedir o
risco de acidentes com as aeronaves da Força Aérea Brasileira, assim como para
evitar a suspensão dos serviços de vigilância territorial. Não é possível negar
que, nesses casos, existem fatos relevantes que necessitam, impreterivelmente,
de recursos suficientes para evitar o desencadeamento de uma situação de crise.
É preciso bem observar, porém, que são aportes financeiros destinados à adoção
de mecanismos de prevenção em relação a situações de risco previsíveis. A situação de crise ainda não está configurada, de modo que faltam os elementos da
imprevisibilidade e da urgência para caracterizar a necessidade da abertura do
FGV DIREITO RIO
92
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
crédito extraordinário. Assim, por exemplo, se, por um lado, não se pode negar
a relevância da abertura de créditos para a prevenção contra a denominada gripe
aviária, por outro lado pode-se constatar que, nessa hipótese, os recursos são
destinados à prevenção de uma possível calamidade pública ainda não ocorrida.
Não há calamidade pública configurada e oficialmente decretada, mas apenas
uma situação de risco previamente conhecida. Também as áreas de segurança,
agricultura e aviação civil apresentam problemas que indubitavelmente carecem
do aporte de recursos financeiros com certa urgência, mas todos são decorrentes
de fatos plenamente previsíveis. Nenhuma das hipóteses previstas pela medida
provisória configuram situações de crise imprevisíveis e urgentes, suficientes para
a abertura de créditos extraordinários. Há, aqui, um patente desvirtuamento
dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias
para a abertura de créditos extraordinários. E esse não é um caso raro. Impressiona a quantidade elevada de medidas provisórias editadas, no último ano, pelo
Presidente da República, para abertura de créditos suplementares ou especiais
travestidos de créditos extraordinários. Desde o início do ano de 2007, já se podem contar mais de 20 medidas provisórias destinadas à abertura de créditos de
duvidosa natureza extraordinária (MP n°s 343, 344, 346, 354, 356, 364, 365,
367, 370, 376, 381, 383, 395, 399, 400, 402, 405, 406, 408, 409, 420 e 423).
É papel desta Corte assegurar a força normativa da Constituição e estabelecer
limites aos eventuais excessos legislativos dos demais Poderes. Com essas considerações, voto pela concessão da medida cautelar, para suspender a vigência da
Medida Provisória n° 405, de 18.12.2007.”
O Tribunal209, por maioria (6 votos contra 5), concedeu a liminar, nos
termos do voto do relator, Ministro Gilmar Mendes (Presidente), vencidos
os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen
Gracie e Menezes Direito.
Essa decisão, além de sua importância em função das razões de decidir –
primeiramente, no que se refere à eficácia do controle concentrado sobre as
leis de conversão, confirmando a jurisprudência das citadas ADI n°s 3.090
e 3.100, e bem assim por ser paradigmática no delineamento dos requisitos
necessários à abertura de créditos extraordinários210, os quais pressupõem,
cumulativamente (1) urgência, (2) relevância e (3) imprevisibilidade – também
é emblemática por consolidar a mudança de posição do STF relativamente
ao cabimento do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias pela
via da ação direta. De fato, conforme já apontado anteriormente, a jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal era no sentido de considerar
a lei de efeito concreto como inidônea para o controle abstrato de normas,
razão pela qual considerava, majoritariamente, inadmissível a ação direta de
inconstitucionalidade contra lei orçamentária que destinasse determinada
soma pecuniária ou percentagem de receita fixada para finalidade/despesa
209
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 4048-MC. Julgamento em 14.05.2008. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br>. Pesquisa
realizada em 26.05.2008. Nas “Notícias
do STF”, disponíveis no mesmo sítio, do
dia 14 de Maio de 2008, é apresentado
o seguinte informe: “Supremo suspende lei que abriu créditos extraordinários no orçamento “O chefe do poder
Executivo da União transformou-se em
verdadeiro legislador solitário da República”, disse o ministro Celso de Mello,
ao salientar que, na edição de medidas
provisórias, o presidente da República
deve observar os requisitos constitucionais da urgência e da relevância.” Em
que pese a decisão, no mesmo dia em
que o STF concedeu a liminar na ADI,
o Poder Executivo publicou em Diário
Oficial de edição extra, a Medida Provisória nº 430, de 14 de maio de 2008,
cujos artigo 1° e 2° estabelecem: “Art.
1° Fica aberto, em favor do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão,
crédito extraordinário no valor de R$
7.560.000.000,00 (sete bilhões, quinhentos e sessenta milhões de reais),
para atender à programação constante
do Anexo desta Medida Provisória. Art.
2° Os recursos necessários à abertura
do crédito de que trata o art. 1o decorrem de superávit financeiro apurado
no Balanço Patrimonial da União do
exercício de 2007, relativo a Recursos
Ordinários.”
210
Em novembro de 2008, seguindo a
mesma linha de entendimento, conforme noticiado no site do STF, “O Supremo Tribunal Federal declarou, em
caráter liminar, a inconstitucionalidade
da Medida Provisória 402 (convertida
na Lei 11.656/08), que abriu crédito
extraordinário de R$ 1,65 bilhão no
orçamento federal para uso em obras,
rodoviárias ou transposição de rios,
entre outros. O argumento da maioria
– seis ministros – é de que os eventos
que justificariam esses gastos não podem ser considerados imprevisíveis, de
calamidade pública e comoção interna”
(ADI 4049).
FGV DIREITO RIO
93
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
específica, posto não serem as normas dotadas de abstração e generalidade.
Nesse sentido, entre outras, deve-se mencionar a ADI 1640, ADI 2057 e
ADI 2484. Essa jurisprudência, conforme acima ressaltado, tem sido mitigada nos últimos anos, em especial no julgamento da ADI 2.925, que marcou
uma nova etapa na posição do Tribunal, que já havia, é verdade, decidido
pela possibilidade do exame do mérito do controle em outras ocasiões, como
na ADI 2108 e ADPF 63. Assim, o juízo de admissibilidade da ADI-MC
4048 reafirma a posição do Tribunal no mesmo sentido da ADI 2.925, a qual
possui a seguinte ementa:
No que se refere à vigência dos créditos adicionais, duas regras são aplicáveis: (1) a primeira, no sentido de que os créditos suplementares somente são
vigentes no exercício financeiro em que forem abertos, vedada a sua prorrogação, nos termos do artigo 45 da Lei n º 4.320/64 (“Art. 45. Os créditos adicionais terão vigência adstrita ao exercício financeiro em que forem abertos,
salvo expressa disposição legal em contrário, quanto aos especiais e extraordinários.”); e (2) aos créditos especiais e extraordinários, exceções ao princípio da Anualidade Orçamentária, conforme já mencionado na aula passada,
aplica-se o disposto no artigo 167, § 2º, da CR-88 que dispõe, in verbis:
§ 2º – Os créditos especiais e extraordinários terão vigência no exercício
financeiro em que forem autorizados, salvo se o ato de autorização for promulgado nos últimos quatro meses daquele exercício, caso em que, reabertos nos
FGV DIREITO RIO
94
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
limites de seus saldos, serão incorporados ao orçamento do exercício financeiro subseqüente.
A aplicabilidade desses dispositivos pode ser melhor explicitada por meio
do gráfico a seguir:
O quadro abaixo consolida o que foi até aqui exposto relativamente às
características e especificidades das três espécies de Créditos Adicionais:
FGV DIREITO RIO
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Créditos Suplementares
Créditos Especiais
Créditos Extraordinários
Objetivo
Reforça e supre a
dotação de despesa já
prevista no orçamento, a
qual, entretanto, ao longo do exercício financeiro, revela-se insuficientemente dotada
Permitir a realização de programa e despesa não contemplada
no orçamento.
Atendimento das despesas urgentes e imprevisíveis.
Autorização
Legislativa
Prévia, em lei especial,
ou na própria LOA que
pode delegar competência ao Poder Executivo (art. 165, § 8º, e 167,
V, da CR-88)
Prévia, somente por meio de
lei específica.
(art. 167, V, da CR-88)
Posterior, tendo em
vista a possibilidade de
abertura do crédito por
Medida Provisória ou
Decreto Estadual.
(art. 167, §3º, CR-88)
Forma de
Abertura
Decreto do Poder Executivo
Decreto do Poder Executivo
Medida Provisória ou
Decreto do Executivo
Indicação de
Recurso
Obrigatória, devendo
estar expressa na lei autorizadora e no Decreto
que efetiva a abertura
do crédito.
Obrigatória, devendo estar expressa na lei autorizadora e no
Decreto que efetiva a abertura
do crédito.
Independe de Indicação
Indicação de
limite
Obrigatória, devendo
estar expressa na lei autorizadora e no Decreto
que efetiva a abertura
do crédito.
Obrigatória, devendo estar expresso na lei autorizadora e no
Decreto que efetiva a abertura
do crédito.
Obrigatória, devendo
estar expresso no ato
que efetiva a abertura do
crédito (MP ou Decreto
do Executivo).
Em regra no exercício financeiro
em que foi aberto, mas permitida para o exercício seguinte.
na hipótese de previsão na lei
autorizadora e, também, ter sido
autorizado durante os últimos
quatro meses do exercício
financeiro.
Em regra no exercício
financeiro em que foi
aberto, mas permitida
para o exercício seguinte.
na hipótese de previsão
no ato autorizador e,
ainda, ter sido autorizado
durante os últimos quatro meses do exercício
financeiro.
Vigência e
possibilidade
de prorrogação
Restrita ao exercício
financeiro em que foi
aberto, sem possibilidade de prorrogação.
Por fim, cumpre destacar que, visando garantir a autonomia e independência dos Poderes, o artigo 168 da CR-88 estabelecia em sua redação original que os “recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o
dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art.
165, § 9º”. No mesmo sentido, a Emenda Constitucional nº 45/2004211 al-
211
Dispõe a atual redação da CR-88 que
“recursos correspondentes às dotações
orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público
e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão
entregues até o dia 20 de cada mês, em
duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º”.
FGV DIREITO RIO
96
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
terou a redação do dispositivo, para incluir a Defensoria Pública212 no rol dos
destinatários, bem como para determinar que a entrega será efetivada “em
duodécimos”. Destaque-se que, para os fins dessa entrega de recursos financeiros, fixada constitucionalmente, relativamente à despesa total com pessoal,
o Poder Executivo considerará, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal,
a resultante da aplicação dos percentuais limites definidos na lei, ou aqueles
fixados na lei de diretrizes orçamentárias por Poder e órgão. Conforme será
salientado na próxima aula, a LRF, disciplinando o disposto no artigo 169
da Constituição, estabeleceu limites de despesa total com pessoal, em cada
período de apuração e em cada ente da Federação, em relação aos percentuais
da receita corrente líquida. Assim, quando do repasse dos recursos mensais
aos demais Poderes e à Defensoria Pública, o Poder Executivo deve observar
os limites de despesa com pessoal de que tratam os artigos 169 da CR-88
combinado com os artigos 18 a 20 da LRF.
212
Nos termos do § 2º do artigo 134
da CR-88, com as sua redação conferida pela Emenda Constitucional
nº 45/2004, “Às Defensorias Públicas
Estaduais são asseguradas autonomia
funcional e administrativa e a iniciativa
de sua proposta orçamentária dentro
dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao
disposto no art. 99, § 2º”.
FGV DIREITO RIO
97
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 6 – A DESPESA PÚBLICA, A EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO E A
RESPONSABILIDADE FISCAL.
Após o estudo dos aspectos mais relevantes dos orçamentos e dos créditos
orçamentários iniciais e adicionais, requisitos essenciais à realização das despesas públicas, impõe-se agora examinar este componente da atividade financeira do Estado de forma individualizada, assim como alguns mecanismos
para o seu controle. Antes, porém, importante salientar que a interação da
Despesa com a Receita Pública pode ser analisada em dois planos distintos:
o primeiro, no momento da elaboração do orçamento anual, e, o segundo,
quando da execução orçamentária. Nos termos já exaustivamente enfatizados, desde a edição da Emenda Constitucional nº 1/69, as Receitas Públicas
cogentes ou não, ao contrário da Despesas, não têm como requisito necessário prévia autorização orçamentária para a sua realização, isto é, o exercício
da competência tributária e a arrecadação das demais receitas não dependem
de autorização legislativa anual. A Despesa, em sentido oposto, conforme já
repetidamente salientado nas aulas anteriores, pressupõe autorização legislativa213 (prévia214 ou não), renovada anualmente, a qual fixe, monetariamente, o limite de crédito conferido aos executores do orçamento, por meio da
denominada dotação orçamentária. A definição da despesa e do montante
de gastos, portanto, decorrem de uma decisão política, a qual, considerando
diversos fatores de natureza econômica, social, cultural e histórica, delineia as
funções e determina o modelo de atuação estatal. De fato, a despesa pública
é o instrumento de que se vale o Poder Público moderno para realizar os
serviços públicos tendentes a satisfazer as necessidades coletivas, fixadas pelo
processo político como finalidades do Estado (ex: saúde, segurança, educação etc). Corresponde à aplicação de certa quantia em dinheiro por parte da
autoridade ou agente público competente215.
Salienta Kiyoshi Harada216, entretanto, que:
ainda sobrevivem alguns processos de funcionamento de serviços públicos,
sem despesa pública, na área de prestação de serviços esporádicos: presidentes e
membros de mesas receptoras e apuradoras de eleições; membros do Conselho
Penitenciário; júri; outras funções gratuitas existem, compensadas com as honrarias mediante atribuição, por lei, de nota de ‘relevante serviço público prestado’.
É certo, porém, que a gratuidade da função é exceção, restrita a algumas esferas
onde não se exigem a assiduidade, a regularidade e a continuidade do serviço
público (para quem presta o serviço), dado o seu caráter temporário.
Ressalvadas essas exceções, importante frisar que a realização da despesa
requer, em regra, a adoção de diversos outros procedimentos, além da aquiescência parlamentar, tais como a licitação, o empenho, a liquidação até que
213
O artigo 167 da CR-88 estabelece
que: “São vedados: I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei
orçamentária anual; II – a realização
de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos
orçamentários ou adicionais; (...)”, ao
passo que o §8°, do art. 165, determina
que a lei orçamentária anual (LOA) fixa
as despesas.
214
A antecedência, conforme já estudado, é dispensada na hipótese de edição
de Medida Provisória ou de Decreto
para a abertura de créditos extraordinários.
215
BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução
à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. p. 73.
216
HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p.20.
FGV DIREITO RIO
98
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ocorra o efetivo pagamento. Ainda, nos mesmos termos da receita, a despesa
comporta variadas classificações, dependendo do interesse envolvido. Destaca-se entre elas a classificação legal com base em fundamento econômico
que as subdivide em despesas correntes e de capital. O Manual de Despesa
Nacional, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008,
do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária
de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov.
br, fixa importante classificação da despesa quanto à dependência da execução orçamentária (Despesa resultante da execução orçamentária – aquela que
depende de autorização orçamentária para acontecer. Exemplo: despesa com
salário, despesa com serviço, etc.e Despesa independente da execução orçamentária – aquela que independe de autorização orçamentária para acontecer.
Exemplo: constituição de provisão, despesa com depreciação, etc.), conforme
será examinado adiante. Importante mencionar, ainda, a relevância da já citada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a qual, ao lado da lei de licitações
públicas, visa o controle e a transparência dos gastos públicos.
Preliminarmente, entretanto, cumpre salientar que Fabio Giambiagi e
Ana Cláudia Além217, analisando os dados indicativos das despesas desde o
final do século XIX, em uma perspectiva de longo prazo concluem que:
(...) a crescente complexidade dos sistemas econômicos no mundo como um
todo tem levado a um aumento da atuação do governo, que tem se refletido
no aumento da participação dos gastos do setor público ao longo do tempo. A
percentagem dos gastos públicos sobre o PIB passou de uma média internacional, no grupo de países mais desenvolvidos do mundo, de cerca de 11% no final
do século XIX, para algo em torno de 46% em 1996. (grifo nosso)
Os economistas apontam em geral razões de ordens distintas para a atuação estatal, as denominadas “determinantes das despesas públicas”:218 as falhas de mercado, envolvendo a existência de bens públicos, caracterizados
pela impossibilidade de exclusão do seu consumo e por ser “não-rival”, isto é,
“o consumo por parte de um indivíduo ou de um grupo social não prejudica
o consumo do mesmo bem pelos demais integrantes da sociedade”219, bem
como as externalidades, o poder de mercado, e as informações assimétricas.
Independentemente da teoria econômica que lhe dê sustentação, o que se
verifica no Brasil, bem como nos países mais ricos do mundo ocidental, é o
crescimento ou o elevado volume de despesas governamentais em relação ao
Produto Interno Bruto (PIB), conforme os dados a seguir apresentados.
O resultado das despesas da União, em relação ao PIB, foi produzido a
partir dos dados da Secretaria do Tesouro Nacional relativamente à execução
217
GIAMBIAGI e ALÉM. Op. Cit. p. 10.
218
REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006.
p.27-41.
219
GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática
no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2008. p. 4.
FGV DIREITO RIO
99
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
financeira do Tesouro Nacional, disponível no sítio http://www.tesouro.fazenda.gov.br
União (R$ milhões)
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Despesas realizadas
252.632
283.751
338.010
367.665
417.310
504.208
589.002
645.843
% do PIB
21,42%
21,79%
22,87%
21,63%
21,49%
23,48%
25,25%
25,24%
% crescimento–ano
anterior
11,88%
12,32%
19,12%
8,77%
13,50%
20,82%
16,82%
9,65%
A elevada participação da despesa pública no “GDP” nominal (Gross Domestic Product) também é verificada no âmbito da OCDE, conforme dados
do OECD Economic Outlook, que pode ser anals (http://www.oecd.org/eco/
sources-and-methods).
FGV DIREITO RIO
100
43,6
44,9
41,5
42,9
52,9
31,8
20,0
37,7
54,9
53,2
53,3
Germany
Greece
Hungary
Iceland
Ireland
Italy
Japan
Korea
Luxembourg
Netherlands
New Zealand
Norway
42,8
61,3
29,7
41,9
37,1
50,4
United States1
Euro area
49,3
37,8
62,7
31,5
43,6
..
43,2
..
44,3
38,4
54,9
50,3
54,5
44,5
54,0
31,6
20,9
46,1
41,8
55,8
42,9
50,6
..
56,5
56,7
37,7
52,4
53,3
52,3
50,5
38,5
71,1
33,6
45,6
..
44,3
..
45,4
40,0
55,7
49,4
55,7
44,9
55,4
32,6
22,0
47,3
44,3
59,7
43,8
52,0
..
57,5
62,2
38,3
53,1
53,6
53,3
52,2
38,0
72,4
34,5
45,7
..
45,8
..
49,0
39,8
55,7
45,7
54,6
44,7
56,4
34,3
21,6
48,3
46,6
59,3
43,6
54,9
..
60,6
64,8
37,8
55,9
54,6
52,2
51,0
37,0
70,3
34,6
45,0
..
44,0
54,5
46,7
38,9
53,5
42,9
53,7
44,0
53,5
35,6
21,0
47,9
44,8
62,8
43,4
54,2
..
60,4
63,9
38,2
55,5
52,4
49,7
50,6
37,0
67,1
34,4
44,5
47,7
43,1
48,0
44,4
39,7
51,6
42,0
50,9
41,2
52,5
36,5
20,8
48,3
45,8
55,3
42,7
54,4
54,0
59,5
61,5
38,2
56,0
51,9
48,5
50,7
36,5
64,9
35,0
42,7
51,0
44,0
52,9
43,2
41,1
49,4
41,0
48,5
39,2
52,5
36,8
21,7
49,3
44,1
52,1
42,2
54,5
42,4
59,1
60,1
37,2
55,5
52,2
46,6
49,4
35,4
62,6
35,2
41,2
46,4
42,9
48,3
41,6
40,6
47,5
41,7
46,9
36,7
50,2
35,7
22,4
48,3
45,0
50,0
40,7
54,1
43,2
57,1
56,2
36,3
53,0
51,0
44,3
48,5
34,7
60,4
35,6
40,0
44,3
42,2
45,5
41,1
41,0
46,7
41,4
49,2
34,5
49,3
37,1
24,7
48,1
44,4
51,5
41,3
52,7
43,1
56,8
52,6
35,2
53,5
50,2
44,8
48,1
34,3
60,0
34,2
39,4
42,7
43,2
47,3
39,9
39,2
46,0
41,0
47,7
34,1
48,2
38,6
23,9
48,2
44,4
48,6
42,0
52,6
42,2
55,8
51,5
34,8
53,1
50,1
42,7
46,2
34,2
57,1
33,4
37,1
41,1
43,1
50,5
39,1
37,6
44,2
39,6
42,3
31,5
46,1
39,1
23,9
45,1
46,7
46,5
41,9
51,6
41,7
53,9
48,3
35,2
51,5
49,0
41,1
Annex Table 25. General government total outlays- Per cent of nominal GDP
1991
1992
1993
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
47,3
35,3
56,7
34,1
40,4
43,8
44,4
44,3
38,6
38,1
45,4
38,5
44,2
33,3
48,0
38,5
25,0
47,5
45,3
47,2
42,6
51,6
44,2
54,5
47,8
36,0
50,8
49,1
42,0
2001
47,6
36,3
58,1
35,4
41,4
44,2
44,3
44,8
38,9
41,5
46,2
38,4
47,1
33,6
47,4
38,8
24,8
48,0
44,8
51,2
44,3
52,6
46,2
54,9
48,8
35,4
50,7
49,9
41,2
2002
48,1
36,8
58,3
36,4
42,8
44,6
45,5
40,5
38,4
41,9
47,1
38,8
48,3
33,4
48,3
38,4
30,9
48,4
45,0
49,1
45,6
53,3
47,1
55,3
50,0
34,6
51,1
51,2
41,1
2003
47,6
36,4
56,9
35,9
43,2
42,6
46,5
38,0
38,9
42,5
46,1
38,9
45,6
33,8
47,8
37,0
28,1
47,3
45,4
48,8
44,0
53,3
44,7
55,1
50,3
35,2
50,3
49,3
39,9
2004
47,5
36,7
56,6
34,9
44,6
43,3
47,7
38,4
38,5
41,8
45,2
40,5
42,3
34,2
48,3
38,2
28,9
47,0
43,2
49,9
42,3
53,7
44,5
52,8
50,5
34,8
49,9
49,3
39,2
2005
47,1
36,7
55,6
34,3
44,7
43,8
46,4
37,7
38,6
39,0
46,1
41,4
40,8
34,1
50,1
36,6
30,5
45,4
42,3
51,9
41,8
53,3
43,1
51,2
48,7
34,0
49,3
48,4
39,3
2006
46,4
37,4
53,8
34,0
44,6
43,2
45,9
36,5
38,8
37,8
45,7
42,3
41,0
34,7
48,4
36,5
31,7
44,3
43,2
51,0
43,1
53,0
43,3
50,7
48,1
34,0
48,2
48,3
38,6
2007
Total OECD
40,9
41,3
42,4
42,9
42,2
42,2
41,8
40,6
40,2
39,9
39,1
40,1
40,7
41,2
40,6
40,8
40,6
40,6
Note: Data refer to the general government sector, which is a consolidation of accounts for the central, state and local governments plus social security. Total outlays are defined as current outlays plus capital
outlays. One-off revenues from the sale of mobile telephone licenses are recorded as negative capital outlays for countries listed in the note to Annex Table 27. Some other important one-offs have been
accounted for prior to 2000 and are reported in OECD Economic Outlook Sources and Methods (http://www.oecd.org/eco/sources-and-methods).
These data include outlays net of operating surpluses of public enterprises.
..
Sweden
Switzerland
United Kingdom
..
Poland
Portugal
Slovak Republic
Spain
40,3
49,4
France
..
55,9
48,0
Czech Republic
Denmark
Finland
..
35,7
51,5
52,2
48,8
1990
Austrália
Austria
Belgium
Canada
Source: OECD Economic Outlook 82 database.
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
FGV DIREITO RIO
101
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Antes da apresentação das diversas classificações da despesa pública orçamentária, proceder-se-á a explicitação das diversas etapas necessárias à
sua efetivação.
6.1 AS DIVERSAS ETAPAS PARA A REALIZAÇÃO DA DESPESA ORÇAMENTÁRIA
A realização da despesa orçamentária perpassa e se estende, em termos
gerais, pelas seguintes fases: (1) planejamento da despesa e a previsão no orçamento ou em créditos adicionais, consignado dotação orçamentária própria;
(2) a realização do procedimento licitatório220 nas hipóteses determinadas em
lei, ressalvados os casos de sua inexigibilidade, dispensa ou inaplicabilidade
(matéria pertinente ao estudo da disciplina dos atos administrativos); (3) o
empenho; (4) a liquidação; (5) o pagamento e o (6) controle e a avaliação.
Assim, considerando o escopo desta disciplina e tendo em vista que a fixação dos créditos orçamentários e adicionais já foi objeto de exame na aula
anterior e o controle e a avaliação das despesas será estudado na Aula 10, serão analisados, no momento, apenas os três estágios da despesa referidos nos
artigo 58 a 70 da Lei n° 4.320/64, na ordem em que os mesmos ocorrem no
mundo real: (1) o empenho; (2) a liquidação e (3) o pagamento.
6.1.1 O empenho da despesa
O empenho consiste na reserva de dotação221 orçamentária para um fim
específico, ou seja, é o “ato emanado de autoridade competente que cria para
o Estado a obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição” (artigo 58 da Lei n° 4.320/64).
Consoante o disposto no artigo 60 da Lei n° 4.320/64, é vedada a realização de despesa sem prévio empenho, o qual não pode exceder o limite dos
créditos concedidos e as dotações disponíveis.222 Ressalte-se, entretanto, a
possibilidade do empenho ser contemporâneo à realização de despesa, e não
prévio, na hipótese de urgência, conforme previsto no parágrafo único do
artigo 24 do Decreto Federal n° 93.872/86.
Do empenho extrai-se a denominada Nota de Empenho223, a qual indicará o nome do credor, a representação e a importância da despesa, simbolizando, também, o ato que formaliza a dedução do gasto do saldo existente da
respectiva dotação. Ou seja, ao realizar o empenho já é abatido o montante
da despesa da dotação orçamentária própria (prevista no orçamento), tornando-o indisponível à nova utilização. Saliente-se, entretanto, ser possível
o reforço de empenho já realizado, em face de sua eventual insuficiência. Ele
pode ainda ser anulado, total ou parcialmente, hipótese em que o montante
respectivo é revertido à dotação disponível.224 Conforme será analisado abai-
220
O artigo 37, XXI, da CR-88 prevê que:
“ressalvados os casos especificados na
legislação, as obras, serviços, compras
e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública
que assegure igualdade de condições
a todos os concorrentes, com cláusulas
que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas
da proposta, nos termos da lei, o qual
somente permitirá as exigências de
qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento
das obrigações.
A
Lei n° 8.666/93, por sua vez, com fundamento no disposto no citado artigo
37, XXI, da CR-88, no seu artigo 7°, § 2°,
e 14, aplicáveis subsidiariamente também à modalidade de pregão, disciplinada pela Lei n° 10.520/02, estabelece
que as compras, as obras e os serviços
somente poderão ser licitados quando
houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das
obrigações decorrentes, a serem executadas no exercício financeiro, sob pena
de nulidade do ato ou do contrato e
de responsabilidade de quem lhe tiver
dado causa. Assim, ressalvadas as hipóteses de inexigibilidade, de dispensa
ou de sua inaplicabilidade, em face da
natureza do desembolso, tal como as
diárias para atender as despesas de
viagens pagas aos seus servidores, a realização da despesa pressupõe o procedimento licitatório. Estabelece, ainda, a
lei das licitações e contratos, em seu artigo 5°, §§ 1° e 2°, que o pagamento de
correção, sobre os valores contratados,
por critérios previstos no próprio ato
convocatório, visando à preservação do
respectivo valor, será feito junto com o
principal e será efetivado à conta das
mesmas dotações orçamentárias
que atenderam aos créditos a que
se referem. A lei determina ainda, no
parágrafo único do artigo 8° que: “É
proibido o retardamento imotivado da
execução de obra ou serviço, ou de suas
parcelas, se existente previsão orçamentária para sua execução total, salvo
insuficiência financeira ou comprovado
motivo de ordem técnica, justificados
em despacho circunstanciado da autoridade a que se refere o art. 26 desta
Lei”. Devem ser observados, ainda, os
artigos 57 e 65, § 8°.
221
Conforme foi examinado na aula
passada, a dotação orçamentária é a
medida, valor ou quantificação monetária do recurso aportado no orçamento a determinado programa, atividade,
projeto, categoria econômica ou objeto
de despesa pública, conforme decidido
pelo parlamento.
222
As dotações correspondentes a créditos
contingenciados não podem ser objeto de
empenho, já que não são disponíveis.
223
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
FGV DIREITO RIO
102
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
xo, a despesa pode ser ou não liquidada e paga no mesmo exercício financeiro
no qual ocorre o empenho a ela relacionado.
A legislação, em casos especiais, pode dispensar a emissão da nota de empenho225 – mas não o empenho em si –, como no caso das despesas de caráter
continuado, o que ocorre com as despesas de pessoal, encargos sociais e, ainda, de sentenças judiciais, juros e encargos da dívida, etc.
Esse estágio da despesa pode ser subdividido em três etapas: (1) a autorização, na qual o ordenador226 manifesta a aquiescência com a despesa, ou
seja, é o ato formal da autoridade competente que permite a realização do
gasto, em função do reconhecimento de dívida, do suprimento de fundo ou
da autorização de pagamento; (2) a indicação da modalidade de licitação,
sua inaplicabilidade, dispensa ou inexigibilidade; e (3) a emissão da nota
de empenho, ato pelo qual é formalizada a sua realização e comprovada a
dedução do valor da despesa do saldo disponível na dotação orçamentária
respectiva, nos termos já salientados. Considerando, ainda, a adoção do sistema informatizado de administração financeira pela União e diversas unidades
federadas (SIAFI e o SIAFEM), pode-se apontar em algumas circunstâncias,
também, uma fase antecedente ao próprio empenho, momento no qual é extraído um documento designado de pré-empenho, por meio do qual o gestor
público reserva determinada dotação e registra o compromisso assumido227.
Diversos dispositivos da citada Lei de Responsabilidade Fiscal tratam do
empenho e da sua limitação, tais como: (a) o artigo 4°, o qual estabelece que
lei de diretrizes orçamentárias deve dispor, também, sobre critérios e forma
de limitação de empenho; (b) o já citado artigo 9°, que trata da hipótese da
realização da receita não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, caso em
que os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos
montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho
e movimentação financeira; (c) o artigo 42, que veda ao titular de Poder ou
órgão referidos na lei, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro
dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja
suficiente disponibilidade de caixa para este efeito; (d) o artigo 65, que estabelece a dispensa de limitação de empenho e do atingimento dos resultados
fiscais, no caso de ocorrência de calamidade pública, enquanto perdurar a
situação, assim reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou
pelas Casas Legislativas, na hipótese dos Estados (Assembléias Legislativas) e
Municípios (Câmaras Municipais). Saliente-se, ainda, que o empenho e a licitação de serviços, o fornecimento de bens ou a execução de obras têm como
requisito necessário, na hipótese da criação, expansão ou aperfeiçoamento
de ação governamental, que acarrete aumento da despesa: (1) a apresentação
da estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva
2008. p.93. “Segundo a Súmula 279
do STJ, ‘é cabível execução por título
extrajudicial contra a Fazenda Pública’.
Assim, embora se processe sob procedimento específico (arts. 730 e 731
do CPC, e art. 100 da CF), admite-se a
execução contra a Fazenda Pública não
só quando fundada em título judicial,
mas, também, em título extrajudicial.
Dentre outros, tem sido considerados
títulos hábeis à execução contra a Fazenda Pública a nota de empenho e
a autorização de despesas, pois tais
declarações constituem documentos
públicos, que são títulos executivos ex
vi do art. 585, II, do CPC” (grifo nosso).
Em nota de rodapé o autor esclarece:
“Assim, considera-se documento público o ‘produzido por autoridade, ou em
sua presença, com a respectiva chancela, desde que tenha competência
para tanto’ (STJ, 5.ª T., REsp 599.634/
MA, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j.
07.11.2006, DJ 27.11.2006, p. 310), tal
como ocorre, por exemplo, com a Câmara Municipal, que ‘tem competência
para emitir título executivo extrajudicial em relação aos pagamentos de seus
membros e de seus funcionários’ (STJ,
2.ª T., REsp 594.874/MA, rel. Min. Castro
Meira, j. 06.12.2005, DJ 19.12.2005, p.
322), contrato de prestação de serviço
firmado com a administração pública (STJ, 1.ª T., REsp 487.913/MG, rel.
Min. José Delgado, j. 08.04.2003, DJ
09.06.2003, p. 188). Não foi considerado documento público, no entanto, ‘o
contrato firmado entre empresa privada e entidade da administração pública
indireta, dotada de personalidade jurídica de direito privado – sociedade de
economia mista’”.
224
O artigo 28 do Decreto Federal n°
93.872/86 disciplina a hipótese da
anulação do empenho em função da
redução ou do cancelamento no exercício financeiro do compromisso que
o ensejou. Já o artigo 35 do mesmo
diploma normativo trata do caso em
que a anulação do empenho decorre da
não liquidação da despesa até o final do
exercício, salvo as exceções que aponta.
225
O Manual de Despesa Nacional (item
6.2.1) reconhece que: “Embora o artigo
61 da Lei nº 4.320/1964 estabeleça a
obrigatoriedade do nome do credor
no documento Nota de Empenho, em
alguns casos, como na Folha de Pagamento, torna-se impraticável a emissão
de um empenho para cada credor,
tendo em vista o número excessivo de
credores (servidores). Caso não seja
necessária a impressão do documento
“Nota de Empenho”, o empenho ficará
arquivado em banco de dados, em
tela com formatação própria e modelo oficial, a ser elaborado por cada
ente da federação em atendimento às
suas peculiaridades. Ressalta-se que o
artigo 60 da Lei nº 4.320/1964 veda a
realização da despesa sem prévio em-
FGV DIREITO RIO
103
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
entrar em vigor e nos dois subseqüentes; e (2) de declaração do ordenador da
despesa no sentido de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual
e com a lei de diretrizes orçamentárias (artigo da 16 LRF). Também se submete à limitação de empenho o ente da Federação que possuir dívida consolidada maior do que o respectivo limite nos termos fixados na Resolução n°
40/2001 do Senado Federal e no artigo 31 da LRF, matéria que será estudada
na aula pertinente ao Crédito e a Dívida Pública.
Em suma, efetivado o empenho da despesa, por meio do qual é reservado
e deduzido o montante necessário da dotação orçamentária, é assumida a
obrigação por parte do Estado.
6.1.2 A liquidação
Realizada a entrega do bem, ou prestado o serviço pelo contratado, processa-se a denominada liquidação, aqui qualificada como a segunda etapa da
realização da despesa, a qual consiste na verificação do direito adquirido, ou
não, pelo credor junto ao Estado, tendo por base os títulos e os documentos
comprobatórios do respectivo crédito. Ou seja, é a etapa em que a autoridade
pública deve comparar o que foi contratado e o que foi efetivamente entregue ou realizado, o que pode tornar líquido e certo o direito do credor em
face da Fazenda Pública. A regular liquidação é fase necessária à realização do
pagamento da despesa, nos termos artigo 62 da Lei n° 4.320/64, e que possui
diversos elementos de aferição, tais como: o contrato, o ajuste ou acordo respectivo, a nota de empenho, os comprovantes da entrega de material ou da
prestação efetiva do serviço, isto é, os títulos e documentos comprobatórios
dos respectivos créditos. Cabe mencionar, entretanto, que o cumprimento
dos requisitos de natureza formal não é suficiente à comprovação do direito
do credor, vez que os princípios da economicidade e da legitimidade, estampados no artigo 70 da CR-88, exigem mais do que a simples verificação
do atendimento formal por parte do contratado. De fato, impõe-se que a
autoridade responsável pela liquidação ateste que o objeto do contrato foi
realizado nos termos da especificação acordada, podendo fazer, se necessário,
a verificação in loco de obra, de prestação de serviço ou mesmo fornecimento
de bens, ou seja, é dever daquele que realiza e afere a liquidação identificar se
houve, ou não, o implemento das condições previamente fixadas, o que determina se o credor realmente faz jus ao pagamento. Nesse sentido apontam
José Teixeira Machado e Heraldo Costa Reis228 sobre a matéria:
Trata-se de verificar o direito do credor ao pagamento, isto é, verificar se o
implemento de condição foi cumprido. Isto se faz com base em títulos e documentos. Muito bem, mas há um ponto central a considerar: é a verificação
penho. Entretanto, o § 1º do referido
artigo estabelece que, em casos especiais, pode ser dispensada a emissão
do documento “nota de empenho”. Ou
seja, o empenho, propriamente dito, é
indispensável.”
226
Em geral, são competentes para
autorizar as despesas nas respectivas
esferas de governo: o Presidente, o
Governador e o Prefeito, as autoridades
do Poder Judiciário, conforme determinado em lei ou no regimento interno, as
autoridades do Poder Legislativo, nos
termos do regimento interno, o Presidente dos Tribunais e Cortes de Contas;
os Ministros de Estado, os Secretários
Estaduais e Municipais, bem como
aqueles que exercem os cargos de direção e gestão das autarquias, empresas
públicas, de sociedades de economia
mista e de fundações, nos termos da
lei, decreto ou estatuto da sociedade.
227
O Manual de Despesa Nacional (item
6.2.1) recomenda: “constar no instrumento contratual o número da nota
de empenho, visto que representa a
garantia ao credor de que existe crédito
orçamentário disponível e suficiente
para atender a despesa objeto do contrato. Nos casos em que o instrumento de contrato é facultativo, a Lei nº
8.666/1993 admite a possibilidade de
substituí-lo pela nota de empenho de
despesa, hipótese em que o empenho
representa o próprio contrato.
228
MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS,
Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade
Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM,
2002/2003. p.149.
FGV DIREITO RIO
104
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
objetiva do cumprimento contratual. O documento é apenas o aspecto formal
da processualística. A fase de liquidação deve comportar a verificação in loco do
cumprimento da obrigação por parte do contratante. Foi a obra, por exemplo,
construída dentro das especificações contratadas? Foi o material entregue dentro
das especificações estabelecidas no edital de concorrência ou de outra forma de
licitação? Foi o serviço executado dentro das especificações? O móvel entregue
corresponde ao pedido? E assim por diante. Trata-se de uma espécie de auditoria
de obras e serviços, a fim de evitar obras e serviços fantasmas. Este aspecto da
liquidação é da mais transcendente importância no caso das subvenções, exatamente para evitar o pagamento de subvenções e auxílios a entidades inexistentes.
O documento de liquidação, portanto, deve refletir uma realidade objetiva.
De fato, seriam reduzidas as chances de desperdício de recursos público,
em função desta fase da realização da despesa, caso fossem sempre atendidos
os requisitos apontados.
6.1.3 O pagamento
Nesse passo chega-se ao pagamento, que é o terceiro estágio da despesa e
consiste na entrega dos valores referentes à dívida líquida e certa ao credor,
mediante a devida quitação, podendo ser efetuado por tesouraria ou pagadoria regularmente instituídos por estabelecimentos bancários credenciados
e, em casos excepcionais, por meio de adiantamento.229 No mesmo sentido
estabelece o Manual de Despesa Nacional que o “pagamento consiste na entrega de numerário ao credor por meio de cheque nominativo, ordens de
pagamentos ou crédito em conta, e só pode ser efetuado após a regular liquidação da despesa”.
A ordem de pagamento, que pode ser efetivada por meio de ordem bancária230, cheque nominativo ou pelo regime de adiantamento, também denominado de suprimento de fundos ou suprimento individual, é o despacho
exarado pelo ordenador determinando que a despesa seja paga, ato sempre
realizado por meio de documentos processados pela contabilidade.
O pagamento aos credores pode ser efetivado durante a execução orçamentária na qual a despesa foi prevista231 e realizada, mas também pode ocorrer o
encerramento do exercício financeiro com despesas já empenhadas, porém
ainda não pagas.
As despesas empenhadas e não pagas no exercício, intituladas de Restos a
Pagar232, consubstanciam parte da denominada dívida flutuante233 e podem
ser segmentadas em dois grupos, consoante o disposto no artigo 36 da Lei n°
4.320/64:
229
O artigo 74, caput, do Decreto-lei
200/67 prevê que na realização da
receita e da despesa pública, será utilizada a via bancária. O §2º estabelece
que “o pagamento de despesa, obedecidas as normas que regem a execução
orçamentária (lei nº 4.320, de 17 de
março de 1964), far-se-á mediante ordem bancária ou cheque nominativo,
contabilizado pelo órgão competente e
obrigatòriamente assinado pelo ordenador da despesa e pelo encarregado
do setor financeiro”. O §4°, do mesmo
dispositivo, entretanto, ressalva que
“em casos excepcionais, quando houver
despesa não atendível pela via bancária, as autoridades ordenadoras poderão autorizar suprimentos de fundos,
de preferência a agentes afiançados,
fazendo-se os lançamentos contábeis
necessários e fixando-se prazo para
comprovação dos gastos”. Nesse sentido, estabelece o artigo 45 do Decreto
Federal n° 93.872/86 que, “excepcionalmente, a critério do ordenador de
despesa e sob sua inteira responsabilidade, poderá ser concedido suprimento de fundos a servidor, sempre
precedido do empenho na dotação
própria às despesas a realizar, e que não
possam subordinar-se ao processo normal de aplicação”: “para atender despesas eventuais, inclusive em viagens
e com serviços especiais, que exijam
pronto pagamento”; “quando a despesa
deva ser feita em caráter sigiloso, conforme se classificar em regulamento”;
e “para atender despesas de pequeno
vulto, assim entendidas aquelas cujo
valor, em cada caso, não ultrapassar
limite estabelecido em Portaria do
Ministro da Fazenda”. De acordo com o
§ 5º, ressalvadas as limitações fixadas
do § 6º, do mesmo artigo 45, incluído
pelo Decreto 6.370/2008, “as despesas
com suprimento de fundos serão
efetivadas por meio do Cartão de Pagamento do Governo Federal - CPGF” – o
denominado Cartão Corporativo, por
meio do qual é permitido hoje o saque,
em dinheiro, até o limite do cartão. De
acordo com o Portal da Transparência
(www.portaldatransparencia.gov.br),
criado pela Presidência da República, as
despesas com cartões corporativos em
2007 totalizaram cerca de R$ 75,8 milhões, mais que o dobro do montante
gasto em 2006. O relator da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) dos
cartões corporativos, em seu relatório
final, apresentado em 03.06.2008,
conforme noticiado no sítio do câmara
(www.camara.gov.br), recomendou ao
Poder Executivo “que seja estabelecido
um limite de saque, com percentual
máximo de 30% do limite do cartão.
Também defende que os ministros de
Estado voltem a receber diárias em
viagens, em vez de receberem cartões
corporativos, cujo uso passaria a ser
vedado aos ministros. De acordo com
dados do relatório, os saques representaram 75% do gasto total dos cartões
FGV DIREITO RIO
105
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(1) aquelas não liquidadas, assim denominadas de “não-processadas”,
as quais darão ensejo aos denominados “Restos a Pagar não-processados”, caracterizados pelo não adimplemento da obrigação assumida pelo credor e/ou o não reconhecimento pelo poder público
do cumprimento das condições acordadas (a prestação do serviço, a
entrega da coisa, etc.) e
(2) as despesas empenhadas e liquidadas, qualificadas como “processadas”, ou seja, aquelas em que se verifica o cumprimento da obrigação por parte do credor, as quais serão inscritas ao final do exercício
como “Restos a Pagar processados”.
A relevância desta subdivisão está relacionada à necessidade de a Administração realizar a previsão dos recursos a serem destinados ao pagamento durante o exercício, a já mencionada programação financeira de desembolso.234
De fato, considerando que os Restos a Pagar processados passaram por todo
o rito da liquidação devem ter prioridade quando da realização da programação de desembolso, posto já estar configurado o direito do credor. Cabe
salientar, ainda, que existe a possibilidade de determinada despesa de um
exercício somente ser reconhecida posteriormente, quando já encerrado o
ano, não tendo havido o empenho na época própria. Neste caso, ao contrário dos Restos a Pagar, processados ou não processados, não há empenho no
exercício financeiro pertinente, razão pela qual será, no futuro, denominada
de “despesa de exercícios anteriores”235.
Cabe agora fazer uma breve recapitulação do que foi apresentado até esse
momento, a fim de que se possa avançar na análise dos Restos a Pagar.
Fixada a despesa no orçamento, esta pode ser empenhada até o limite
da dotação orçamentária correspondente ou dos créditos adicionais, salvo as
limitações de empenho já mencionadas.236 Uma vez realizado o empenho,
pode ocorrer: (1) o reforço de sua dotação, caso demonstre-se insuficiente à
realização da despesa; (2) a anulação237 do empenho durante o exercício, na
hipótese de configurada a desnecessidade do gasto (total) ou o seu excesso
(parcial), ou, ainda, caso a despesa não seja liquidada até o final do exercício,
salvo as exceções previstas no artigo 35 do Decreto Federal n° 93.872/86;
(3) a liquidação da despesa, caso verificado o implemento de todas as
condições previamente fixadas no ato que estabelece o vínculo jurídico e a
obrigação do credor, podendo ocorrer ainda durante o transcurso do mesmo
exercício financeiro o pagamento, ou não; (4) o encerramento do exercício
sem que a despesa empenhada tenha sido liquidada. Na hipótese de ser efetuado o pagamento no próprio exercício financeiro do empenho e da liquidação não há qualquer impacto para o exercício financeiro subseqüente. Em
sentido diverso, a despesa empenhada e não paga no exercício financeiro,
liquidada ou não, será inscrita em Restos a Pagar para o período seguinte,
em 2007. O texto prevê, ainda, que os
extratos dos gastos sigilosos da Presidência da República sejam divulgados
um ano depois do fim do mandato do
Presidente”. A oposição, por sua vez,
quer proibir os saques em dinheiro com
o cartão corporativo.
230
A Instrução Normativa da Secretaria
do Tesouro Nacional nº 4/98, que dispõe sobre a consolidação das instruções
para movimentação dos recursos financeiros da Conta Única do Tesouro Nacional, estabelece que a movimentação de
recursos da Conta Única será efetuada
através de Ordem Bancária - OB, DARFEletrônico - DF, GRPS – Eletrônica, Nota
de Sistema - NS ou Nota de Lançamento - NL, de acordo com as respectivas
finalidades.
231
Na LOA ou em créditos adicionais. De
fato, a execução orçamentária coincide
com o exercício financeiro e com o ano
civil, nos termos do já citado artigo 63
da Lei nº 4.320/64.
232
“Art. 36. Consideram-se Restos a
Pagar as despesas empenhadas mas
não pagas até o dia 31 de dezembro
distinguindo-se as processadas das
não processadas. Parágrafo único. Os
empenhos que sorvem a conta de créditos com vigência plurienal, que não
tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a Pagar no último
ano de vigência do crédito.”
233
Dispõe a alínea a do § 1º do artigo
115 do Decreto nº 93.872/86 que a dívida flutuante, a qual, ao lado da dívida
fundada, forma a dívida pública, compreende os compromissos exigíveis,
cujo pagamento independe de autorização orçamentária, assim compreendidos: “a) os restos a pagar, excluídos
os serviços da dívida; b) os serviços da
dívida; c) os depósitos, inclusive consignações em folha; d) as operações de
crédito por antecipação de receita; e) o
papel-moeda ou moeda fiduciária.”
234
Dispõe o artigo 9º, § 2º, do Decreto
nº 93.872/86, que “Serão considerados,
na execução da programação financeira de que trata este artigo, os créditos
adicionais, as restituições de receitas e
o ressarcimento em espécie a título de
incentivo ou benefício fiscal e os Restos
a Pagar, além das despesas autorizadas
na Lei de Orçamento anual.” Nesse sentido os restos a pagar constituem item
específico da programação financeira,
devendo o seu pagamento efetuar-se
dentro do limite de saques fixado.
235
Art. 37 da Lei 4.320/64.
236
Limita-se o empenho, por exemplo,
no caso de a receita não comportar o
cumprimento das metas de resultado
primário ou nominal ou se a dívida
consolidada do ente for maior do que o
respectivo limite.
FGV DIREITO RIO
106
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
sendo designada como “processada” caso já liquidada e “não processada” na
hipótese contrária.
A ilustração abaixo sumariza e auxilia a compreensão do que foi até
aqui exposto:
Importante salientar que ordenar ou autorizar a inscrição de despesas não
empenhadas em Restos a Pagar consubstancia crime, tipificado no artigo
359-B do Código Penal, submetendo o infrator à pena de detenção de seis
meses a dois anos. Conforme ensina Marcelo Leonardo:238
Neste tipo penal, o objetivo do legislador era transformar em crime o desrespeito ao art. 41 do projeto da LRF que pretendia dar nova disciplina à inscrição
em “Restos a Pagar”. Ocorre que este artigo 41 foi vetado pelo Presidente da
República. Entretanto, o crime subsiste, pois as normas de contabilidade pública
disciplinadoras dos “Restos a Pagar” contidas no artigo 36 da Lei n 4.320/64
continuam em vigor. Restos a Pagar são despesas empenhadas mas não pagas até
31 de dezembro.
237
Nos termo do Manual de Despesas
(item 9.2): “A inscrição de despesa em
Restos a Pagar não-processados é procedida após a depuração das despesas
pela anulação de empenhos, no exercício financeiro de sua emissão, ou seja,
verificam-se quais despesas devem ser
inscritas em Restos a Pagar, anulam-se
as demais e inscrevem-se os Restos a
Pagar não-processados do exercício.”
238
LEONARDO, Marcelo. Crimes de
responsabilidade fiscal: crimes contra as finanças públicas; crimes nas
licitações; crimes de responsabilidade
dos prefeitos. Belo Horizonte: Del Rey,
2001. p. 26.
FGV DIREITO RIO
107
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Ainda, importante destacar que “deixar de ordenar, de autorizar ou de
promover o cancelamento do montante de Restos a Pagar inscrito em valor
superior ao permitido em lei” é enquadrado como crime pelo artigo 359-F
do Código Penal.
No que se refere à possibilidade de cancelamento dos Restos a Pagar não
liquidados no exercício (Exercício financeiro X2), merece destaque a posição
definida no já citado Manual de Despesas Públicas – Minuta para discussão
pública239, quanto:
Para os Restos a Pagar processados, ou seja, aqueles que já passaram pela fase
da liquidação, quando já foi entregue o bem ou mercadoria pelo fornecedor, não
há que se falar em cancelamento do resto a pagar, pois já houve a verificação do
direito adquirido pelo credor, podendo ocorrer somente a baixa da obrigação
pelo pagamento ou prescrição do direito do credor.
Assim, somente o Resto a Pagar não processado no exercício, assim definido como aquele não liquidado, pode ser objeto de cancelamento.
Até 2011, se o Resto a Pagar (não processado) não fosse liquidado até 31
de dezembro do ano subsequente ao da sua inscrição (o final do Exercício
Financeiro 2), como regra geral, o mesmo deveria ser cancelado240 automaticamente241. Em dezembro de 2011, o Decreto nº 7.654 alterou a redação do
artigo 68 do Decreto nº 93.872/1986, para determinar novas regras quanto
aos restos a pagar não processados. A partir de 2012, a inscrição prevista
como restos a pagar não processados é condicionada à indicação pelo ordenador de despesas242 e, se não liquidados posteriormente, terão validade, como
regra geral, até 30 de junho do segundo ano subsequente ao de sua inscrição. Entretanto, há exceções a essa regra, pois, de acordo com a nova sistemática, não perdem a validade em 30 de junho os restos a pagar não processados
que referentes às despesas executadas diretamente pelos órgãos e entidades da
União ou mediante transferência ou descentralização aos Estados, Distrito
Federal e Municípios, com execução iniciada até aquela data (30 de junho)
ou sejam relativos às despesas do Programa de Aceleração do Crescimento –
PAC, do Ministério da Saúde ou do Ministério da Educação financiadas com
recursos da Manutenção e Desenvolvimento do Ensino. Procurou-se, dessa
forma, fixar parâmetros objetivos para a validade dos restos a pagar não processados. Segundo notícia publicada no Jornal Valor de 27.12.2011 (p. A5),
em matéria intitulada “Portaria compartilha responsabilidade com ministros
para livrar Planalto das pressões parlamentares” a partir de agora:
(...) caberá aos ministros indicar quais serão os restos a pagar não processados a
serem inscritos para o Orçamento no ano seguinte (...) Quando a inscrição era
239
Disponível no sítio http://www.
tesouro.fazenda.gov.br. Acesso em
09/06/2008.
240
Nesse sentido dispunha a redação
do artigo 68 do Decreto 95872/1986,
vigente até dezembro de 2011.
241
Ao longo dos anos houve diversas
exceções a essa regra geral, o que era
objeto de barganha política e ensejava
a edição de ato específico por parte do
Poder Executivo.
242
O §7º do artigo 68, também introduzido em dezembro de 2011, estabelece:
“Os Ministros de Estado, os titulares de
órgãos da Presidência da República,
os dirigentes de órgãos setoriais dos
Sistemas Federais de Planejamento, de
Orçamento e de Administração Financeira e os ordenadores de despesas são
responsáveis, no que lhes couber, pelo
cumprimento do disposto neste artigo”
FGV DIREITO RIO
108
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
feita automaticamente, não havia uma seleção prévia por parte dos ministérios.
Tudo que tinha sido empenhado passava para ser pago no exercício seguinte.
Isso gerava uma forte pressão política no decorrer do ano para que as despesas
fossem executadas e pagas, tendo em vista que boa parte é oriunda de emendas
parlamentares. Dilma, desse modo, mais uma vez atua para compartilhar responsabilidades com seus ministros.
6.2 AS DIVERSAS CLASSIFICAÇÕES DA DESPESA PÚBLICA
A despesa pública também pode ser examinada sob diversas perspectivas
e classificada por critérios diversos. A execução da despesa orçamentária nem
sempre causa um impacto patrimonial simultâneo, razão pela qual também
se pode falar em enfoque patrimonial distinto do ponto de vista orçamentário da despesa. O Manual de Despesa Nacional estabelece a codificação
das despesas sob variados critérios e contempla, ainda, os conceitos a serem
observados em sua contabilização bem como a correlação da destinação da
receita com a fonte de financiamento da despesa.
No mesmo sentido, serão examinadas neste tópico apenas aquelas mais
relevantes e que sejam importantes para o que será estudado a seguir.
Entre outras, as despesas podem ser classificadas quanto: (1) à sua natureza
em face do orçamento; (2) à sua categorização sob o ponto de vista econômico-orçamentário, geralmente denominada de classificação “por natureza”;
(3) à sua vinculação aos programas e ações governamentais, designada como
“programática”; (4) às funções de governo, denominada de funcional; (5) aos
efeitos sobre o patrimônio líquido do ente público; (6) ao ente federado que
efetiva a despesa ou ao qual a entidade responsável pelo dispêndio está vinculada; e (7) à instituição que a realiza. Repise-se, que a execução dos gastos
nem sempre tem repercussão patrimonial concomitante, motivo pelo qual é
possível examinar as despesas tanto sob o ponto de vista orçamentário como
pela perspectiva patrimonial, conforme disciplina o Manual de Despesa Nacional, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008,
do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária
de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov.
br. O Manual, que deve ser observados por todos os entes políticos (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios) estabelece a codificação das despesas
sob variados critérios e contempla, ainda, os conceitos a serem observados
em sua contabilização bem como a correlação da destinação da receita com a
fonte de financiamento da despesa.
Impõe-se, nesses termos, o exame individualizado de algumas classificações, ainda que de forma breve:
FGV DIREITO RIO
109
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(1) A despesa quanto à sua natureza em face do orçamento subdivide-se
em: (1.1) despesas orçamentárias e (1.2) despesas de caráter extraorçamentário.
(1.1) As despesas orçamentárias são aquelas previstas expressamente
na LOA ou em créditos adicionais e se referem, em regra, àqueles gastos incorridos243 no exercício;
(1.2) As despesas de caráter extra-orçamentário do exercício financeiro são aquelas que não constam expressamente no orçamento inicial e podem ser subdivididas em três grupos244:
(a) as saídas de recursos que ingressaram transitoriamente nos
cofres públicos sem que o desembolso suscite a necessidade de autorização orçamentária, como as devoluções dos
designados ingressos extra-orçamentários, assim denominados posto não pertencerem ao órgão público, como é o
caso dos depósitos e cauções – matéria a ser examinada na
aula sobre as receitas públicas;
(b) pagamentos que não necessitam de autorização orçamentária para serem realizados, como aqueles autorizados de
forma genérica na lei orçamentária, na lei de crédito adicional ou lei específica, mas sem a previsão do montante ou mesmo de sua efetiva realização, como o resgate de
operações de crédito por antecipação de receita245 (ARO),
questão a ser estudada na aula pertinente ao Crédito e a
Dívida Pública;
(b) os denominados Restos a Pagar, já analisados no tópico anterior desta aula e correspondem às despesas incorridas em
determinado exercício e somente paga, em geral, no ano
subseqüente, isto é, são aquelas empenhadas mas não pagas
no próprio exercício em que se realiza o empenho da despesa, constituindo-se em dívida flutuante a ser objeto de
desembolso, em regra, no exercício seguinte.
(2) A despesa orçamentária quanto à sua categorização sob o ponto
de vista econômico246, denominada de classificação “por natureza”,
segmenta o gasto em despesa (2.1) corrente e (2.2) de capital:
(2.1) despesas correntes247, que se referem àquelas despesas orçamentárias destinadas ao funcionamento e manutenção dos serviços públicos, prestados direta ou indiretamente pela Administração, e que não geram qualquer aumento do patrimônio
público posto estarem vinculadas às:
2a) despesas de custeio da máquina administrativa248, assim
qualificadas as dotações para manutenção de serviços anteriormente criados, inclusive as destinadas a atender a obras
243
Segundo o Manual de Despesa
Nacional, as Despesas Orçamentárias:
“são aqueles que dependem de autorização legislativa para sua efetivação.
As despesas de caráter orçamentário
necessitam de recurso público para sua
realização e constituem instrumento
para alcançar os fins dos programas
governamentais. È exemplo de despesa
de natureza orçamentária a contratação de serviços de terceiros, pois se faz
necessária a emissão de empenho para
suportar os contratos com prestação de
serviços de terceiros”.
244
O Manual de Despesa apresenta dois
outros grupos, a saber: (1) Recolhimento de Consignações/Retenções – são
recolhimentos de valores anteriormente retidos na folha de salários de
pessoal ou nos pagamentos de serviços
de terceiros; e (2) dos Pagamentos de
Salário-Família, Salário-Maternidade e
Auxílio-Natalidade – os benefícios da
Previdência Social adiantados pelo empregador, por força de lei, têm natureza
extra-orçamentária e, posteriormente,
serão objeto de compensação ou restituição.
245
A ARO visa a suprir insuficiências de
caixa que ocorram durante a execução
orçamentária e devem ser liquidadas
com juros, até o dia dez de dezembro
de cada ano, nos termos do artigo 38
da LRF, razão pela qual a sua efetivação
requer apenas a sua autorização prévia,
sem haver, contudo, a determinação
de sua efetiva realização ou do seu
montante, devendo ser observados,
entretanto, os limites e as condições
estabelecidas na Resolução 43/01 do
Senado, bem como aquelas fixadas na
própria LRF, conforme será examinado
na próxima aula.
246
A Portaria Interministerial n
163/2001 estabelece que na lei orçamentária a discriminação da despesa,
quanto à sua natureza, será, “(...) no
mínimo, por categoria econômica, grupo de natureza de despesa e modalidade de aplicação”.
247
O artigo 12 da Lei n° 4.320/64
prevê que as despesas correntes se
desdobram em despesas de custeio e
transferências correntes. Elas não enriquecem o patrimônio público, mas são
necessárias à execução dos serviços públicos e à vida do Estado, sendo, assim,
despesas operacionais. Sob o ponto
de vista econômico, não aumentam a
capacidade do Estado prestar serviços
públicos, posto não incrementar o seu
patrimônio.
248
Artigo 12, § 1º, da Lei n° 4.320/64.
FGV DIREITO RIO
110
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
de conservação e adaptação de bens imóveis, nelas se incluem despesas com pessoal, material etc; ou
(b) transferências correntes, que equivalem às dotações para
despesas, as quais não correspondam contraprestação direta
em bens ou serviços, inclusive para contribuições e subvenções destinadas a atender à manifestação de outras entidades de direito público ou privado; Nelas se incluem as
subvenções (transferências destinadas a cobrir despesas de
custeio de outras entidades) sociais e econômicas, despesas
com inativos, pensões, transferências intergovernamentais
e os juros da dívida contratada.
(2.2) despesas de capital, que se conecta ao conceito de investimento do setor público, uma vez que constituem gastos para
aquisição ou constituição de bens de capital, que contribuirão
para a produção de novos bens e serviços, gerando apenas uma
mutação patrimonial, pois essa despesa não reduz a situação
líquida do patrimônio. São divididas em (I) Investimentos, (II)
Inversões Financeiras e (III) Transferências de capital de acordo
com o artigo 12, § 4º, § 5º e § 6º, da Lei n° 4.320/64.
(I) Os investimentos são as dotações para o planejamento e a
execução de obras, inclusive aquelas s destinadas à aquisição
de imóveis necessários à sua realização, como, por exemplo,
as obras públicas, serviços em regime de programação especial, equipamentos e instalações, material permanente
e participação em constituição ou aumento de capital de
empresas que não seja de caráter comercial ou financeiro.
(II) As inversões financeiras são despesas de capital capazes de
produzir renda para o Estado. São subdivididas em: (a)
aquisições de imóveis ou bens de capital já em utilização;
(b) aquisições de títulos representativos do capital de empresas ou entidades de qualquer espécie; e (c) constituição
ou aumento do capital de empresas que visem objetivos
comerciais ou financeiros.
(III) As transferências de capital são as dotações orçamentárias para investimentos ou inversões financeiras que outras
pessoas de direito público ou privado realizarão, independentemente de contraprestação direta em bens ou
serviços. Essas transferências constituem auxílios ou contribuições, caso derivem diretamente da lei do orçamento
ou de lei específica anterior, assim como as dotações para
amortização da dívida pública.
FGV DIREITO RIO
111
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
No anexo a esta aula podem ser examinadas as demais classificações apresentadas no Manual de Despesas, tais como a despesa:
a) orçamentária segundo a estrutura de programa, ação (projeto, atividade ou operação especial) e subtítulo (localizador do gasto);
b) orçamentária, segundo a estrutura de funções e subfunções, objetiva indicar as áreas de atuação do governo a que o gasto se vincula,
como saúde, educação, transporte, entre outras;
c) quanto aos efeitos sobre o patrimônio líquido do ente público;
d) segundo a competência do ente federado que a realiza ou ao qual a
entidade está vinculada (federal, estadual, distrital ou municipal); e
e) sob o ponto de vista da instituição que a realiza, também denominada de “classificação institucional”, reflete a estrutura organizacional, administrativa e governamental, estando estruturada em dois
níveis hierárquicos: órgão orçamentário e unidade orçamentária
6.3 AS DESPESA PÚBLICA E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
A já mencionada Lei Complementar 101/2000, normalmente designada
como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com o objetivo de garantir o
controle das receitas e dos gastos públicos pela sociedade, dedica um capítulo inteiro (artigo 48 a 59) sobre a transparência, controle e fiscalização da
atividade financeira da Administração Pública. Ainda, no que se refere especificamente às despesas públicas, estabelece, no Capítulo IV (art. 15 a 24),
importantes limitações à sua realização e reconhece a nulidade daquelas que
não prestarem observância às suas disposições (art. 15). Destacam-se, além
daquelas já especificadas no que se refere à limitação do empenho (art. 9º,
por exemplo), as suas disposições sobre a Lei Orçamentária Anual (LOA): (1)
que exigem um planejamento prévio de todas as receitas e as despesas referentes ao ano seguinte (artigo 5º); (2) a exigência de uma estimativa de impacto
financeiro para os três primeiros anos da implementação de atividades governamentais que acarretem o aumento de despesa (artigo 16, I); (3) a proibição
que o titular de Poder ou órgão referido no art. 20 da lei, nos últimos dois
quadrimestres do seu mandato, venha a contrair obrigação de despesa que
não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a
serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de
caixa para este efeito (artigo 42), (4) os limites da dívida pública (artigos 30 e
31), a serem estudados na próxima aula e, ainda, (5) as limitações das despesas com pessoal (artigo 19), matéria a ser estudada a seguir.
As despesas com pessoal e encargos sociais são disciplinadas pela Constituição e legislação complementar, normas que prevêem como regra geral a es-
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112
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tabilidade dos servidores públicos, regime de vinculação estatutário que visa à
proteção da própria sociedade. Apesar de justificativas poderáveis no sentido
da existência desse regime jurídico diferenciado, essa característica estabelece
baixíssimo grau de discricionariedade dessa despesa, como ocorre também
com os encargos da dívida249. A contenção dos gastos públicos nesta área tem
sido uma das grandes preocupações nacionais. Nesse sentido, o artigo 169 da
CR-88 dispõe sobre a despesa com pessoal ativo e inativo dos entes públicos,
prevendo que lei complementar determinará limites para os gastos da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios.
A Lei Complementar nº 101/00 disciplina a matéria, definindo o conceito de despesa de pessoal, estabelecendo como parâmetro dos limites dos
gastos a denominada receita corrente líquida, fixando, no seu artigo 19, os
percentuais por ente federado, e, no artigo 20, determinando a discriminação
do limite entre o Poder Executivo, Legislativo, (neste incluído o Tribunal de
Contas), Judiciário e o Ministério Público. No artigo 2º, IV e §§ § 1º 2º e
3º a LRF estabelece o conceito da receita corrente líquida, para os efeitos da
lei, nos seguinte termos:
IV – receita corrente líquida: somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidos:
a) na União, os valores transferidos aos Estados e Municípios por determinação constitucional ou legal, e as contribuições mencionadas na alínea a do inciso
I e no inciso II do art. 195, e no art. 239 da Constituição;
b) nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional;
c) na União, nos Estados e nos Municípios, a contribuição dos servidores
para o custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira citada no § 9o do art. 201 da Constituição.
§ 1o Serão computados no cálculo da receita corrente líquida os valores pagos
e recebidos em decorrência da Lei Complementar no 87, de 13 de setembro de
1996, e do fundo previsto pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
§ 2o Não serão considerados na receita corrente líquida do Distrito Federal e
dos Estados do Amapá e de Roraima os recursos recebidos da União para atendimento das despesas de que trata o inciso V do § 1o do art. 19.
§ 3o A receita corrente líquida será apurada somando-se as receitas arrecadadas no mês em referência e nos onze anteriores, excluídas as duplicidades.
Cabe salientar que o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por
unanimidade (342 votos favoráveis), em 28/05/2008, o Projeto de Lei Complementar nº 132/07, do Poder Executivo, que altera a LRF, para evitar que
249
Somente dois componentes - despesas com amortização e juros da dívida pública, assim como as outras despesas correntes-, no exercício de 2001,
por exemplo, representam 83,4% do
total das despesas do exercício. Se adicionarmos a esse conjunto as despesas
com pessoal e encargos sociais - isto é,
a soma das despesas com amortização
e juros da dívida pública mais as denominadas “outras despesas correntes” e
os gastos de pessoal, no ano de 2001- é
alcançado o percentual de 94,2% das
despesas.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
um ente federado seja penalizado pelo descumprimento dos limites de despesas de pessoal por parte de algum órgão ou Poder de sua estrutura política. Hoje, a LRF determina que, caso o limite seja excedido, isso deverá ser
corrigido em dois quadrimestres.250 Não alcançada a redução, o ente federativo não poderá receber transferências voluntárias e obter garantia, direta
ou indireta, de outro ente ou contratar operações de crédito, ressalvadas as
destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução
das despesas com pessoal. De acordo com a justificativa do governo, a atual
redação da lei estende essas restrições a todos os poderes e órgãos de determinado ente da Federação, ainda que somente um único órgão ou Poder não
esteja observando os limites máximos de despesa de pessoal. Assim, os impedimentos são aplicados mesmo que, no conjunto, o limite total da despesa
com pessoal esteja sendo observado. De fato, as sanções do art. 23, § 3º, da
Lei Complementar nº 101 de 2000 são aplicadas ao ente federativo251, ainda
que, agregadamente, o limite de despesa com pessoal esteja sendo observado.
A matéria agora está sob o crivo do Senado Federal. Saliente-se, ainda quanto
à matéria, que o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 13/11/2008,
conforme noticiado no Informativo n°528:
referendou decisão proferida pelo Min. Celso de Mello, que deferira medida liminar, em ação cautelar, da qual era relator, para suspender as limitações impostas
ao Distrito Federal, em especial ao seu Poder Executivo, quanto à obtenção de
garantias diretas, indiretas e aval de outros entes e à contratação de operações
de crédito em geral (Lei Complementar 101/2000, art. 23, § 3º, I, II e III). Na
espécie, o Distrito Federal solicitara à Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda autorização para realizar operação de crédito com organizações
internacionais e bancárias, a qual fora indeferida ao fundamento de ter sido descumprida a Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere ao limite percentual
de gastos do Poder Legislativo local. Entendeu-se que estariam presentes os requisitos autorizadores da concessão da medida liminar pleiteada. Considerou-se que
a plausibilidade jurídica da pretensão encontraria fundamento em precedentes do
Supremo, nos quais fixada a orientação de que o postulado da intranscendência
impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Por sua vez, o periculum in mora estaria configurado
porque a negativa da autorização inviabilizaria a iminente obtenção do crédito
internacional que vem sendo negociado entre o BIRD e o Distrito Federal, que
não disporia, em razão disso, dos necessários recursos para implementação dos
programas pretendidos, o que se daria em prejuízo manifesto a sua população.
Observou-se, ademais, que, no caso, o Distrito Federal teria se adstrito aos limites
global e individuais estabelecidos nos artigos 19 e 20 da LC 101/2000, dispositivos declarados constitucionais pela Corte, e que, na verdade, haveria um conflito
interno entre a Câmara Legislativa e o Tribunal de Contas do Distrito Federal.
250
A previsão está contida no caput do
artigo 23. O artigo 22 da LRF, por sua
vez, estabelece limitações ao Poder ou
ao órgão que exceder a 95% do limite
de gastos com pessoal. Nesse caso a
restrição é aplicada ao próprio Poder ou
órgão que ultrapassou o teto fixado na
lei, ao contrário do que ocorre na hipótese do artigo 23,§ 3º, que fixa restrição ao ente como um todo, ainda que o
excesso seja de apenas um órgão ou de
um Poder do ente federado.
251
Em questão relativamente análoga,
alguns entes federativos recorreram ao
Supremo Tribunal Federal em função de
suas inscrições no Cadastro Único de
Convênios (CAUC), o que limita a recepção de transferências voluntárias pelo
ente político, por força da aplicação da
Instrução Normativa nº 1 da Secretaria
do Tesouro Nacional. O STF, julgando
a Ação Cautelar nº 1.033, entendeu,
com fulcro no postulado da intranscendência, que sanções e restrições
de ordem jurídica não podem superar
a dimensão estritamente pessoal do
infrator. Considerando essa decisão, o
STF (Secretaria do Tesouro Nacional)
expediu a Instrução Normativa nº 2,
de 24 de abril de 2007, regulando as
transferências voluntárias, a fim de que
a adimplência do ente seja observada
exclusivamente por meio do CNPJ
do tomador principal e o órgão beneficiário da transferência, junto ao
Cadastro Único de Convênio.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
No mesmo sentido se posicionou o relator da Ação Cautelar 2650, conforme revela a notícia apresentada no sítio do STF:
Terça-feira, 06 de julho de 2010
STF livra Executivo gaúcho de sanção por suposto descumprimento de limite de gastos com pessoal do Judiciário
Liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski na Ação Cautelar (AC) 2650 suspendeu restrição imposta
pela União ao estado do Rio Grande do Sul por suposto descumprimento da Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF), abrindo espaço para o estado contratar dois
empréstimos no valor de, respectivamente, US$ 60 milhões e R$ 15 milhões.
A restrição foi aplicada pela União por alegada extrapolação dos limites legais
para despesa com pessoal do Poder Judiciário e do Ministério Público estaduais
nos quatro últimos quadrimestres (exercícios de 2008, 2009 e primeiro quadrimestre de 2010).
Na AC, o governo gaúcho alega que o Poder Executivo vem atendendo aos
limites previstos na LRF para as despesas com pessoal. Por outro lado, alega que
a restrição imposta atinge diretamente o Poder Executivo e seus cidadãos, vez que
o estado fica impossibilitado de implementar programas e projetos destinados ao
aprimoramento da gestão administrativa e tributária, bem como do contencioso fiscal e da administração financeira, fundamentais para o desenvolvimento do estado.
Alega, também, perigo na demora da decisão, pois o prazo para contratar o
primeiro empréstimo mencionado estaria quase esgotado.
Decisão
Em sua decisão, o ministro Ricardo Lewandowski observou que o caso é
semelhante ao contido na Ação Civil Ordinária (ACO) 1431, que envolvia a
suspensão de empréstimos em vias de contratação pelo estado do Maranhão,
pela extrapolação do limite de gastos pelo Ministério Público e pelo Poder Legislativo daquele estado.
Naquele caso, o Plenário do STF entendeu que havia potencialidade de ofensa ao pacto federativo, ressaltando que o governo estadual não tem competência
para intervir nas esferas do Poder Legislativo e do Ministério Público, por se
tratarem de órgãos com autonomia institucional por determinação expressa da
Constituição Federal (CF).
“Assim, parece-me também que não pode o Poder Executivo sofrer sanções
em decorrência de descumprimento dos limites de gastos com pessoal pelo Poder
Judiciário e pelo Ministério Público”, afirmou o ministro Ricardo Lewandowski.
Assim, ele concedeu o pedido de liminar, determinando à União que “se
abstenha de impedir a contratação de operações de crédito por parte do estado
do Rio Grande do Sul, no que se refere tão somente à restrição de extrapolação
dos limites legais fixados na LRF para despesas de pessoal por parte do Poder
Judiciário e do Ministério Público”.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 7 – O FINANCIAMENTO DOS GASTOS, AS OPERAÇÕES DE
CRÉDITO E A DÍVIDA PÚBLICA EM FACE DO EQUILÍBRIO FISCAL.
A atividade financeira do Estado é desenvolvida para satisfazer as necessidades públicas, o que se efetiva, predominantemente, conforme já examinado, por meio das despesas, tendo em vista que as outras modalidades de
realização dos serviços públicos são esporádicas e excepcionais, conforme destacado no item 1.2 da Aula 1.
Por sua vez, os gastos público realizados para implementar as diversas ações
estatais pressupõem o seu financiamento252, o que pode ocorrer de diversas
formas. O Estado pode arcar com as despesas por meio: (1) da emissão de
moeda, hipótese em que não assume qualquer ônus ou comprometimento de
pagar qualquer encargo (ex: juros), (2) da exploração do próprio patrimônio
estatal para auferir renda, como, por exemplo, locando ou cedendo a título
oneroso as suas propriedades ou explorando a atividade econômica por intermédio de empresas por ele controladas, (3) contraindo empréstimos, voluntários ou não, (4) exigindo o pagamento de tributos, (5) cobrando multas,
e etc.
Se o único objetivo do Estado nessa vertente – de cobrir os gastos – fosse,
exclusivamente, a obtenção de recursos para financiar as despesas públicas,
bastaria imprimir moeda253 de forma gratuita, sem a necessidade de organizar
o dispendioso e complexo aparato burocrático para administrar a arrecadação
de tributos ou de suas receitas patrimoniais. No entanto, o estudo dos efeitos líquidos254 decorrentes da simples emissão do papel moeda, matéria cujo
exame detalhado foge ao escopo desta aula, indicam no sentido de que as pessoas com menor nível de renda tenderiam a sofrer mais pesadamente com o
denominado imposto inflacionário, haja vista a dificuldade de se protegerem
contra a desvalorização dos ativos monetários não indexados. Nesse sentido,
aponta Gustavo Miguez de Mello255 que:
Habitualmente entende-se que os tributos são cobrados para arrecadação pelo
Estado de recursos financeiros. Este entendimento é, entretanto, equivocado. Para
obter recursos financeiros seria muito mais barato imprimi-los, emitir moeda, do
que arcar com complexos e sofisticados departamentos de administração de tributos. A emissão de moeda expandiria a demanda doméstica, criando a inflação que
funcionaria como um encargo econômico gravemente injusto que tenderia a ser
relativamente mais suportável pelos contribuintes de renda mais baixa. Podemos
assim antecipar uma conclusão de que os tributos são cobrados para restringir a
demanda doméstica contrapondo-se à expansão dela decorrente de gastos governamentais, evitando a inflação e, principalmente para realizar a equidade ou justiça
fiscal, impedindo que o contribuintes de renda mais baixa suportem encargos tributários relativamente mais elevados do que os de renda mais alta.
252
A expressão está neste momento
sendo utilizada em seu sentido lato,
isto é, refere-se à necessidade de
obtenção e criação dos recursos financeiros como um todo para fazer face às
despesas. Diferencia-se, dessa forma,
conforme será examinado a seguir,
do denominado public sector borrowing requirements, o qual expressa o
resultado da diferença entre despesas
e receitas sem considerar os ingressos
decorrentes chamadas operações de
crédito. Na Aula 9 serão aprofundados
e detalhados os diversos conceitos das
receitas públicas.
253
GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática
no Brasil. 3ª Rio de Janeiro: Elsevier,
2008. p. 16. Apontam os autores que
“o governo pode se financiar ‘de graça’ – sem assumir o ônus associado ao
pagamento de juros de sua dívida -,
de duas formas. A primeira é emitindo moeda para acompanhar a maior
demanda por esta, em termos reais. A
segunda é através da corrosão do valor
real da base monetária existente, o que
lhe permite imprimir moeda, apenas
para conservar o valor real da moeda
previamente impressa.”
254
A “senhoriagem” é definida pelos
economistas como a possível receita
decorrente do “fluxo nominal da base
monetária”, pois, em uma economia
com o Produto Interno Bruto constante,
se de um lado a demanda por moeda
cai quando a inflação aumenta – é um
ativo financeiro não indexado que perde valor com o aumento dos preços dos
ativos reais -, reduzindo a demanda por
base monetária, por outro, aumenta
o denominado imposto inflacionário.
Assim, conforme destacam Giambiagi e
Ana Cláudia, “a receita de senhoriagem
vai variar para mais ou para menos em
função da importância relativa de cada
um desses dois fenômenos”. GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Op. Cit.
p.16-17.
255
MELLO, Gustavo Miguez de. O Tributo: Finalidades Econômica, Jurídica,
Política e Administrativa. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo.
Reflexão Multidisciplinar sobre a sua
natureza. São Paulo: Editora Forense,
2007. p. 425.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Ainda que seja complexa e controvertida correlação objetiva entre a emissão de moeda e a inflação independentemente das circunstâncias, bem como
intrincada a definição quanto às reais funções dos tributos, matéria a ser abordada ao longo do curso, uma conclusão parece inequívoca: a obtenção do
maior volume de recursos ou disponibilidades com o menor custo possível
– eficiência econômica em sentido estrito – não parece ser o único parâmetro norteador da escolha entre as possíveis fontes de financiamento a serem
utilizadas pelo Poder Público, isto é, o valor justiça distributiva é inerente e
faz parte do próprio processo de determinação de como as despesas públicas
devem ser financiadas e não apenas da estruturação e opção do dispêndio em
si. Assim, pode-se constatar que a eficiência econômica, de um lado, e a justiça como igualdade material, por outro, são valores que devem ser sopesados
não apenas quando da efetivação dos gastos públicos, mas também durante
todo o processo de escolha entre as diversas formas possíveis de obtenção de
recursos financeiros, o que se reflete e influência, também, na interpretação e
aplicação da legislação tributária, conforme será examinado ao final deste semestre. No mesmo sentido, importante destacar que as diferentes formas de
arcar com o ônus das despesas em determinado momento impactam de maneiras distintas não apenas as pessoas que vivem em uma mesma época, pois
o endividamento de longo prazo, por exemplo, tem como característica marcante o fato de que os benefícios e sacrifícios não são usualmente suportados
e usufruídos pela mesma geração, o que pode ocasionar distorções acentuadas
no processo de repartição de encargos governamentais ao longo do tempo.
De fato, enquanto a tributação onera os contribuintes no momento da exação os empréstimos públicos de longo prazo256 oneram gerações futuras, por
despesas ocorridas antes do seu tempo, daí a relevância de se perquirir o tipo
de gasto a ser realizado com recursos obtidos em determinada época a serem
suportados no futuro.
As inevitáveis desconexões em determinado momento histórico entre o
volume de recursos para satisfazer as necessidades públicas, de um lado, e
aqueles disponíveis para a realização da atividade financeira do Estado, do
outro, ensejam escolhas dramáticas. De fato, se as receitas tributárias e patrimoniais próprias, adicionadas daquelas recebidas de terceiros em transferência, não são suficientes para fazer face às despesas fixadas em certo período,
consubstancia-se o denominado public sector borrowing requirements, correspondente em português às necessidades de financiamento do setor público257, aqui sendo utilizada a expressão em seu sentido estrito, isto é, circunscrevendo-se aos ingressos decorrentes das operações de crédito. Na realidade,
três soluções plausíveis se apresentariam para fazer face à divergência entre as
demandas sociais e as disponibilidades: (1) diminuir os gastos para alcançar
o desejável equilíbrio, reduzindo, inevitavelmente, o escopo das necessidades
256
Essa parece ser a ratio da CR-88 ao
apontar no sentido do equilíbrio entre
as operações de crédito e as despesas
de capital. O artigo 167, III, veda “a
realização de operações de créditos
que excedam o montante das despesas
de capital (...)”. A mensagem evidente
desse dispositivo é que o endividamento somente pode ser admitido para a
realização de investimento ou abatimento da dívida, ou seja, não deveria
ser possível contrair empréstimos para
gastar os recursos obtidos com despesas correntes, salvo exceções tratadas
em créditos suplementares e especiais
de finalidade precisa e aprovados por
maioria absoluta (vide art. 167 II c/c
art. 27 do ADCT). Portanto, o Poder
Público pode cobrir despesa de capital
por meio de operações de crédito. Essa
regra, denominada de regra de ouro, é
reforçada pela Lei de Responsabilidade
Fiscal, que em seu artigo 12, §2º, estabelece que o “montante previsto para
as receitas de operações de crédito não
poderá ser superior ao das despesas
de capital constantes do projeto de lei
orçamentária.” No mesmo sentido, significa que a receita corrente deve cobrir
as despesas correntes, não devendo
haver déficit corrente. Essa correlação
será examinada na aula pertinente às
receitas públicas.
257
GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Op. Cit. p.16-17. p. 46. Apontam os
autores que “o resultado fiscal por excelência – ou seja, o que todos os analistas
interpretam como sendo o resultado
fiscal – é apurado pelo BC e corresponde às denominadas ‘necessidades de
financiamento do setor público’ (NFSP),
versão em português de ‘public sector
borrowing requiremennts’ (PSBR) (...) A
NFSP representam apenas o resultado
da diferença entre despesas e receitas, sem que o dado divulgado pelo BC
permita saber o que está causando o desequilíbrio entre essas variáveis.(...) “No
Brasil, as necessidades de financiamento
são apuradas pelo conceito de caixa, exceto pela despesa de juros, apuradas pelo
conceito de competência contábil. De um
lado, isso visa evitar que, se o governo
emite títulos de prazo mais longo, com
pagamentos concentrados no tempo, o
déficit seja artificialmente baixo durante
algum tempo e depois estoure” no momento do vencimento. Ao apropriar os
juros pelo conceito de competência, o
BC torna a despesa de juros mais regular
ao longo do tempo a não ser que a taxa
de juros mude muito de um mês para o
outro. De outro, o critério de competência
para o cálculo dos juros é consistente com
a apuração da dívida do setor público junto ao sistema financeiro”.
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117
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
coletivas qualificadas como públicas; (2) aumentar tributos, efetivar esforços
no sentido de elevar as receitas patrimoniais ou incrementar as transferências recebidas de terceiros; ou, ainda, (3) realizar as chamadas operações de
crédito258 e obter financiamento junto ao mercado interno ou internacional
por meio da emissão de títulos da dívida pública, de empréstimos de longo
prazo etc. Assim, o crédito público é uma das formas pelas quais o Estado
obtém recursos259 e, como conseqüência, surge a dívida pública260 haja vista
a criação de obrigações para o Estado, conforme será explicitado no decorrer
desta aula.
Kiyoshi Harada261 aponta que parte da doutrina tem uma concepção mais
ampla de crédito público, o qual abarcaria dúplice perspectiva, “envolvendo
tanto as operações em que o Estado toma dinheiro como aquelas em que
fornece pecúnia”, o que será tratado aqui de forma apenas tangencial.
A natureza jurídica do crédito público é tema de difícil consenso entre os
doutrinadores. Apenas à guisa de exemplo cabe trazer três correntes sobre o
assunto: 1. considera o crédito público um ato legislativo, ou seja, as regras já
estariam estabelecidas; 2. ato de soberania por meio do qual o Estado contrai
empréstimo público como resultado natural de seu “poder de autodeterminação e de auto-obrigação” (...); 3. o crédito público seria um contrato (corrente majoritária) “que objetiva a transferência de certo valor em dinheiro
de uma pessoa, física ou jurídica, a uma entidade pública para ser restituído,
acrescido de juros, dentro de determinado prazo ajustado”, ensina, ainda,
Kiyoshi Harada.262
Ao se debruçar sobre o tema em tela, Ricardo Lobo Torres263 apresenta
duas teorias contratuais acerca da natureza jurídica dos empréstimos públicos
(crédito público); a primeira defende a posição de que o empréstimo público
tem natureza de contrato de direito privado, seguindo, portanto, as regras do
contrato de mútuo, e a segunda corrente segue a linha de pensamento de que
o crédito público assenta-se como contrato de direito administrativo, uma
vez que o Estado não pode, por razões óbvias de interesse público, se igualar
de forma absoluta ao particular. Na opinião do mencionado jurista, esta é a
melhor teoria.
A doutrina264 e o sistema normativo apresentam variadas classificações de
crédito público, em especial quanto à sua forma (voluntária ou compulsória),
prazo (flutuante/de curto prazo ou fundada/consolidada), origem (interna ou
internacional) e de sua competência no regime federativo (federal, estadual,
distrital ou municipal). No decorrer da aula buscar-se-á analisar aspectos daquelas mais citadas no plano normativo.
Para Aliomar Baleeiro265:
a caracterização jurídica do empréstimo público exige a prévia discriminação dos
vários tipos de operações de crédito estatal, pois há profundas diferenças entre
258
A doutrina utiliza indistintamente
das expressões crédito público, empréstimo público e dívida pública para
designar o instituto.
259
Na aula pertinente às receitas públicas será examinado se os ingressos
decorrentes de operações de crédito
subsumem-se - ou não - no conceito de
receita pública.
260
No Direito Financeiro o conceito de
Dívida Pública vincula-se às obrigações
cujo pagamento decorra de empréstimos assumidos pelo Estado, mas não
aquelas obrigações da Administração
decorrentes, por exemplo, de aluguéis
a serem pagos, da aquisição de bens, da
prestação de serviços, de condenações
judiciais etc, salvo se forem inscritas as
despesas como restos a pagar, hipótese em que serão consideradas dívidas
flutuante.
261
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 17ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 99-134.
262
Idem. Ibidem. p. 100-101. Traçando
uma analogia com a teoria geral dos
contratos, o empréstimo público se
equivaleria ao mútuo, embora com este
não se confunda, posto existirem peculiaridades nos empréstimos públicos
que os diferenciam dos empréstimos
privados, a começar pelo interesse
público, princípio norteador da Administração.
263
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed.
atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
2004. p. 216-225.
264
Empréstimo perpétuo e empréstimo temporário: quanto a esta
classificação, ensina Kiyoshi Harada:
“o perpétuo será remível ou irremível,
conforme haja ou não a faculdade de
o Estado efetuar a restituição do capital
quando quiser. Na realidade, empréstimo público sem a possibilidade de
exigir a restituição do capital perde
a característica de receita creditícia”;
Dívida Voluntária e Dívida Forçada (
involuntária ): Segundo a doutrina de
Ricardo Lobo Torres a dívida forçada “é
a assumida em razão de ato de império
do Estado. Pode ter diversas formas: a)
empréstimos compulsórios, que hoje
se classificam melhor como tributo
( art. 148 CF ); Pode ter diversas formas: b) depósitos compulsórios feitos
pelos bancos junto ao Banco Central;
c) títulos de curso forçado emitidos
pelo Governo, como os Certificados de
Privatização” (...). A dívida voluntária,
a seu turno, complementa o autor, “é
a assumida espontaneamente pelos
investidores e instituições financeiras.
Dela diz-se que é: a) flutuante, quando,
sendo dívida de curto prazo, deva ser
paga no mesmo exercício financeiro;
b) fundada ou consolidada, quando
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118
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
o empréstimo voluntário e o forçado, ou entre uma dívida assumida para com
um indivíduo e os negócios típicos do Tesouro, à base de subscrição oferecida
aos prestamistas.(...) Os autores, em geral, assinalam que o empréstimo forçado
participa da natureza do tributo. Jèze, reconhecendo que ele não é contrato,
considera-o requisição de dinheiro. Amilcar Falcão, em exaustiva monografia
demonstrou o caráter tributário dos empréstimos compulsórios, hoje consagrados pelo266 art. 18, §3º, da Constituição de 1969, como medida excepcional
da União.
Os empréstimos compulsórios, previstos no artigo 148 da CR-88, são
usualmente qualificados como dívidas forçadas no âmbito do estudo das
Finanças Públicas, em contraposição às dívidas voluntárias contraídas pelo
Poder Público, já que decorrem de obrigação legal. Não são receitas definitivas tendo em vista que seus valores devem ser restituídos. Por outro lado,
na seara tributária, isto é, para os efeitos do Direito Tributário, os mesmos
empréstimos compulsórios também são classificados como tributos pelo Supremo Tribunal Federal (RE 138.284), matéria que será objeto de análise
nas Aulas 10 e 11 e de exame detalhado no curso de Direito Tributário e
Finanças Públicas II.
A Lei Complementar n° 101/00 (LRF), em seu art. 29, traz algumas classificações de dívida pública267, como a dívida consolidada ou fundada, a qual
representa o montante total das obrigações financeiras do ente político, assumidas em razão de preceito legal, contratos, convênios, tratados e da realização de operação de crédito, para amortização em prazo superior a 12
meses. Tal quantitativo é apurado sem duplicidade, ou seja, são excluídas do
cômputo geral as obrigações entre o ente político e seus fundos, autarquias,
fundações e empresas estatais dependentes ou entre estes.268 Ainda, conceitua
o mencionado diploma legal, a dívida mobiliária, isto é, aquela decorrente da
emissão de títulos da União, dos Estados (inclui-se o DF), dos Municípios,
bem como do Banco Central do Brasil; e as operações de créditos, estas abarcam os compromissos financeiros do Estado assumidos “em razão de mútuo,
abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens,
recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e
serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive
com o uso de derivativos financeiros”, nos termos do inciso III do art. 29
da LC 101/00. Com feito, equipara à operação de crédito, ainda, o referido
diploma legal, “a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo
ente da Federação”, nos termos do art. 29, § 1°.
Sobre o tema operações de crédito, preciosa é a contribuição do financista
José Maurício Conti269, que ao analisar a normas insertas nos artigos 32 a 39
da Lei de responsabilidade fiscal (LC 101/00) aponta três critérios básicos
utilizados para a fixação de limites às operações de crédito:
seja inscrita nos livros da Fazenda
Pública para pagamento em data previamente determinada (empréstimo
amortizável) ou sem prazo fixado para
amortização (empréstimo perpétuo)”;
Empréstimos internos e empréstimos externos: Kiyoshi Harada aponta
que o “crédito interno como aquele
que o Estado obtém no âmbito de seu
espaço territorial. Caracteriza-se o crédito externo quando o Estado celebra o
contrato de mútuo, em moeda estrangeira, com uma pessoa não nacional”.
Nesse contexto, ensina Regis Fernandes
de Oliveira que o crédito externo “não
tem caracterização pela moeda de
pagamento, mas pela transferência de
divisas ao exterior e, pois, o que importa é o local ou a praça em que o pagamento deva ser feito”. Ver HARADA, op.
cit.; TORRES, op. cit. e OLIVEIRA, op. cit.
265
BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução
à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. p. 488-490.
Segundo o autor “receita pública é a
entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas,
condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”. Assim, estariam
excluídos do conceito de receita para o
eminente autor os simples movimentos
de fundos ou de caixa, assim compreendidos os ingressos que refletissem,
ao mesmo tempo, criação de uma obrigação ou passivo correspondente.
266
Vide artigo 148 da atual CR-88.
267
Ver também o Decreto Federal n°
93.872/86, que trata dos recursos de
caixa do Tesouro Nacional, o qual, no
capítulo IV, traz regras disciplinadoras
da dívida pública. Nesse sentido cabe
transcrever o dispositivo que traz o
conceito de dívida pública: “Art. 115. A
dívida pública abrange a dívida flutuante e a dívida fundada ou consolidada.
§1o. A dívida flutuante compreende
os compromissos exigíveis, cujo pagamento independe de autorização
orçamentária, assim entendidos: a) os
restos a pagar, excluídos os serviços da
dívida; b) os serviços da dívida; c) os
depósitos,inclusive consignações em
folha; d) as operações de crédito por
antecipação de receita; e) o papel moeda ou moeda fiduciária. §2o. A dívida
fundada ou consolidada compreende
os compromissos de exigibilidade superior a 12 meses contraídos mediante
emissão de títulos ou celebração de
contratos para atender a desequilíbrio
orçamentário, ou a financiamento
de obras e serviços públicos, e que
dependam de autorização legislativa
para amortização ou resgate”. Frise-se
que a LRF, conforme se extrai do dispositivo transcrito, ampliou o escopo
tanto da dívida consolidada como da
dívida flutuante ( ver arts. 92 e 98 da
Lei 4.320/64 ).
FGV DIREITO RIO
119
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O primeiro método é o estabelecimento de limites por meio de um processo
de negociação entre o governo central e os governos subnacionais (cooperative
approach), que pode ser observado em alguns países europeus (...). Outro método é a fixação por meio de normas jurídicas preestabelecidas na Constituição ou
na legislação infraconstitucional (ruled-based approaches). E o terceiro método é
o controle feito diretamente pelo governo central, que fixa os limites do endividamento das entidades subnacionais (direct control of the Central Government).
Este último método é mais usual nos Estados unitários e pode ser observado no
Reino Unido e no Japão.
No Brasil, conforme preleciona o mencionado autor, o sistema adotado
para fixar os limites de endividamento segue o método ruled-based approaches, visto que a Constituição de 1988 e a normativa infraconstitucional
tratam minuciosamente da matéria.
Sobre o tema apontam José Roberto Afonso e Rafael Barroso270:
A questão da dívida pública federal e da fixação de metas para esta e para o
resultado nominal constitui também uma debilidade. A dívida pública seria a
priori aspecto de maior sucesso da LRF, mas, de fato, e de direito, é em que mais
falhou sua regulamentação posterior. A LRF, seguindo a Constituição Federal,
prevê limites para o endividamento público: consolidado e mobiliário271. No
primeiro caso, deveriam ser fixados pelo Senado272 para cada uma das três esferas
de governo. Ao final de 2001, o Senado aprovou a nova resolução273 para regular
o endividamento estadual e municipal, disciplinando tanto os fluxos, quanto
limitando os estoques, mas até hoje sequer iniciou a tramitação do mesmo projeto aplicado à União. Nada justifica que o ente mais importante da Federação,
o que sempre teve a maior dívida, não esteja sujeito a nenhum limite. De início,
havia o temor de questionarem a fixação de um limite para o governo federal
acima do limite aplicado aos governos subnacionais, mas ninguém questiona
essa diferença, que é facilmente explicada pelo fato de aquele governo ter estoque de dívida superior ao dos demais entes e também por ser o responsável pela
política monetária.
Nessa toada, a LC 101/00, em seu art. 32, estabelece a competência do
Ministério da Fazenda para verificar o cumprimento dos limites e condições
referentes à realização de operação de crédito pelos entes da federação. Consoante dispõe o referido dispositivo legal, a realização de operação de crédito
pressupõe o preenchimento de alguns requisitos por parte do ente contratante. Sobre eles debruçou-se José Maurício Conti:274
268
NASCIMENTO, Leonardo do. E CHERMAN, Bernardo. Contabilidade Pública. Rio de Janeiro: Editora Ferreira,
2007. p. 438-439.
269
CONTI, José Maurício Conti. Comentários aos artigos 32 a 39. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO,
Carlos Valder do. Comentários à Lei
de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed.
rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
p. 229-231.
270
AFONSO, José Roberto e BARROSO, Rafael. Uma Reforma Esquecida.
In:Boletim de Desenvolvimento Fiscal.
5. IPEA. Junho, 2007. p.11.
271
Vide LRF art. 30: “Art. 30. No prazo de
noventa dias após a publicação desta
Lei Complementar, o Presidente da
República submeterá ao: I - Senado Federal: proposta de limites globais para
o montante da dívida consolidada da
União, Estados e Municípios, cumprindo
o que estabelece o inciso VI do art. 52
da Constituição, bem como de limites
e condições relativos aos incisos VII, VIII
e IX do mesmo artigo; II - Congresso
Nacional: projeto de lei que estabeleça
limites para o montante da dívida mobiliária federal a que se refere o inciso XIV
do art. 48 da Constituição, acompanhado da demonstração de sua adequação
aos limites fixados para a dívida consolidada da União, atendido o disposto no
inciso I do § 1o deste artigo.”
272
a. adequada relação custo-benefício da operação: o interessado em contratar uma operação de crédito deverá instruir o seu pedido com os argumentos e
Artigo 52, VI, da CR-88.
273
Vide Resolução nº 1 de 2001 do Congresso Nacional.
274
Idem. Ibidem. p. 230-236.
FGV DIREITO RIO
120
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
provas que demonstrem a necessidade da operação e a compatibilidade entre
recursos pleiteados e o benefício as ser obtido pela aplicação na finalidade proposta (é possível extrair dessa premissa os princípios da proporcionalidade e o
da economicidade).
b. o interesse econômico e social da operação: (...) as operações de crédito
somente poderão ser aceitas caso sejam destinadas a atender o interesse público,
ou seja, tenham por objetivo atingir uma finalidade socialmente relevante.
c. existência de prévia e expressa autorização para a contratação com a inclusão no orçamento ou em créditos adicionais dos recursos provenientes da
operação: A contratação de operação de crédito precisa estar previamente autorizada por lei da entidade que pleiteia realizá-la. Um município, por exemplo,
antes de contratar a operação de crédito, deve ter previsão desse ato na legislação pertinente.
d. a observância dos limites e condições fixados pelo Senado Federal: O
Ministério da Fazenda deve analisar a observância, pelo ente da federação que
pretende consumar a operação, dos limites a que fica sujeito (...)275.
e. a existência de autorização específica do Senado Federal quando se tratar de operação de crédito externo: (...) toda vez que o ente necessitar realizar
operação de crédito externo deverá submeter o pedido à apreciação do Senado
Federal276, ex vi do art. 52, inciso V, da CR/88, a quem caberá expedir resolução
autorizando o negócio.
f. o atendimento do disposto no inciso III do art. 167 da Constituição: essa
é uma das mais importantes disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, por
regulamentar a chamada ‘regra de ouro’, ao estabelecer o principal limite para
o endividamento do setor público, qual seja, impedir que a dívida ultrapasse o
montante das despesas de capital277. O objetivo desse princípio de gestão fiscal
responsável é a proibição de se financiarem despesas correntes278, indício claro de
descontrole das contas públicas.
g. a observância das demais restrições estabelecidas na LRF: (...) 1. vedação
às operações de crédito entre entes da Federação, ainda que por meio da respectiva Administração indireta (art. 35); 2) vedação às operações de crédito entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação destinadas a financiar despesas correntes ou a refinanciar dívidas não contraídas junto à própria instituição
concedente (art. 35, § 1o); 3. vedação às operações de crédito entre instituição
financeira estatal e o ente que a controle (art. 36 c/c art. 2o, II); e 4. vedação às
operações de crédito com o Banco Central do Brasil (art. 39).” (grifo nosso).
Cumpre, ainda, mencionar outros requisitos previstos na Resolução do
Senado Federal n° 43/2001, art. 21, como, por exemplo, a competência dos
Tribunais de Contas, nos termos do inciso IV, para expedir certidão atestando a regularidade das contas do último exercício do ente interessado, bem
como o cumprimento das normas esculpidas na LRF.
275
Faz-se mister salientar que os referidos limites estão delineados na Resolução do Senado Federal n° 43/2001,
como forma de regulamentar o disposto no art. 52, inciso VII, da CR/88.
276
Vale ressaltar que a Constituição do
Estado do Rio de Janeiro, em seu art.
99, inciso XXXII, contempla a competência da Assembléia Legislativa para
autorizar previamente, por maioria
absoluta de seus membros, proposta
de empréstimo externo a ser encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo
ao Senado Federal.
277
Cumpre fazer menção à exceção
prevista no art. 167, inciso III, da CR/88,
que dispõe, in verbis: “art. 167. são vedados: III- a realização de operações de
crédito que excedam o montante das
despesas de capital, ressalvadas as
autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade
precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
278
Conforme determina o inciso X, do
art. 167, CR/88, in verbis: “Art. 167.
São vedados. (...)X – a transferência
voluntária de recursos e a concessão de
empréstimos, inclusive por antecipação
de receita, pelos Governos federal e
Estadual e suas instituições financeiras, para pagamento de despesas com
pessoal ativo, inativo e pensionista,
dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios”.
FGV DIREITO RIO
121
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Não há como refutar a importância da LRF em sede de controle fiscal das
finanças públicas, o que, de fato, precisa ocorrer é a sua plena eficácia tanto
no plano jurídico como na esfera social.
A Lei de Responsabilidade Fiscal exige comprometimento com a coisa
pública não apenas dos administradores públicos, mas também das entidades
privadas. Nesse sentido, oportuno trazer à luz a regra inserta no art. 33 do
mencionado diploma normativo, a qual dispõe, in verbis: “Art. 33. A instituição financeira que contratar operação de crédito com ente da Federação,
exceto quando relativa à dívida mobiliária ou à externa, deverá exigir comprovação de que a condição atende às condições e limites estabelecidos”.
Dispõe, ainda, em seu § 1o, que, se houver violação às normas da LRF, a
operação de crédito realizada será considerada nula, devendo o negócio ser
cancelado, com a devolução da quantia recebida, sem o pagamento de juros
ou de qualquer outro encargo.
A LRF atribui às instituições financeiras a tarefa de verificar se os entes
contratantes estão observando os limites e as condições impostas pela legislação para a contratação de operações de crédito. Conforme aponta José Maurício Conti:279 “estabeleceu-se a co-responsabilidade do setor privado pela
fiscalização no cumprimento das disposições da LRF”. É, sem, dúvida, mais
um exemplo concreto da interpenetração das finanças públicas nas finanças
privadas (corporativas).
Algumas sanções imputadas em razão do descumprimento dos preceitos
normativos para a realização de operações de crédito merecem ser destacadas:
no âmbito da Administração Pública, os arts. 23, § 3o, e o 33, §§ 1o e 2o da
LRF, apresentam um elenco delas, apenas a título de exemplo: 1. fica o ente
proibido de receber transferências voluntárias; 2. obter garantia, direta ou indireta, de outro ente; 3. contratar operações de crédito, com exceção daquelas
destinadas a refinanciar a dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal; 4. nulidade do contrato; 5. devolução do valor recebido;
sem prejuízo de outras sanções de natureza política, civil e penal, nos termos
do art. 73 da LRF.
I. Operações de crédito por antecipação de receita (ARO).280
Este tipo de operação tem natureza extra orçamentária, posto tratar-se de
operação de crédito não prevista a priori na lei orçamentária. Ela visa a atender insuficiência de caixa durante o exercício financeiro, podendo ser utilizada, inclusive, para suprir despesas com o custeio da máquina pública. O art.
38 da LRF disciplina algumas condições que, somadas àquelas já mencionadas do art. 32 para operação de crédito em geral, devem ser observadas para a
realização desta operação. Assim dispõe o caput do referido dispositivo: “Art.
38. A operação de crédito por antecipação de receita destina-se a atender
279
CONTI. Op. Cit. p. 237.
280
Cf. determina o art. 38, § 2o, da LC
101/OO, “as operações de crédito por
antecipação de receitas realizadas por
Estados ou Municípios serão efetuadas
mediante abertura de crédito junto à
instituição financeira vencedora em
processo competitivo eletrônico promovido pelo Banco Central do Brasil”.
FGV DIREITO RIO
122
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
insuficiência de caixa durante o exercício financeiro e cumprirá as exigências
mencionadas no art. 32 e mais as seguintes (...)”.
Importante ter em mente que a ratio da imposição das condições, de que
trata o artigo supra transcrito, está diretamente relacionada ao princípio da
não afetação da receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas, positivado
no art. 167, inciso IV, da CR/88, cujas exceções, entre elas a operação de
crédito por antecipação de receita, estão ali elencadas.
As exigências de que trata o art. 38 da LRF podem ser detalhadas da seguinte maneira:
“a. o caput do artigo prevê o cumprimento das condições estabelecidas
pelo art. 32 da LRF, dentre elas estão, conforme já visto alhures: a existência de prévia e expressa autorização para a contratação; a sujeição aos
limites fixados pelo Senado Federal etc.;
b. o inciso I determina o dies a quo para contrair obrigação decorrente
de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, que é 10
de janeiro;
c. o termo final da operação deverá ser dia 10 de dezembro do mesmo
ano em que foi contraída a obrigação. Com efeito, essa exigência está diretamente relacionada ao princípio do equilíbrio orçamentário, que traz
subjacente a finalidade de conter o endividamento público281;
d. a previsão e pagamento de juros com observância dos limites legais.
Sobre tal regra, preleciona José Maurício Conti282 “que esses acréscimos
restringem-se apenas à taxa de juros, que deverá ser obrigatoriamente prefixada ou indexada a TBF (taxa básica financeira283)”;
e. vedação à realização de operação enquanto existir operação da mesma natureza ainda não adimplida;
f. impossibilidade de realização de ARO no último ano de mandato do
Chefe do Poder Executivo. Tal regra tem como ratio subjacente evitar que
o governante deixe excessivo encargo financeiro decorrente de operação de
crédito por antecipação de receita para o que lhe suceder284;
g. dispõe o § 2o do artigo em tela acerca da competência do Banco
Central do Brasil para organizar e promover o processo licitatório, denominado de “ processo competitivo eletrônico”, para escolher a instituição
financeira que irá negociar com os Estados, DF e Municípios, com fulcro
no art. 36 da Resolução do Senado n° 43/2001. As propostas oriundas das
instituições licitantes só poderão prever cobrança de juros da operação,
sendo vedado qualquer outro encargo, conforme determina o art. 38, inciso III, da LRF e o art. 37, § 3o da Resolução do Senado n° 43/2001. Tal
restrição está expressa na exigência de entrega de declaração ao Ministério
da Fazenda por parte da Instituição vencedora de que não há qualquer
custo adicional à operação além da taxa de juros. Tal documento deve
281
Ensina Ricardo Lobo Torres que o art.
167, inciso III, da CR/88, - que estabelece a denominada “regra de ouro”, isto
é, a regra segunda a qual as operações
de crédito não podem exceder o montante das despesas de capital, salvo
aquelas autorizadas mediante créditos
suplementares e especiais para fins
específicos - teve como fundamento a
Constituição Alemã ( art. 115 ), a qual
também veda a existência de créditos
superiores aos gastos de investimentos. In: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro
e Tributário. Vol. V. O Orçamento na
Constituição. 3ª ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008. p. 183.
282
CONTI. Op. Cit. p. 252.
283
A Taxa Básica Financeira foi instituída pela Medida Provisória n° 1.875
(art. 5o), sendo, depois de sucessiva reedições, convertida na Lei 10.192 de 14
de fevereiro de 2001, cujo art. 5o assim
dispõe, in verbis: “Art. 5o Fica instituída
Taxa Básica Financeira - TBF, para ser
utilizada exclusivamente como base de
remuneração de operações realizadas
no mercado financeiro, de prazo de duração igual ou superior a sessenta dias.
Parágrafo único. O Conselho Monetário
Nacional expedirá as instruções necessárias ao cumprimento do disposto
neste artigo, podendo, inclusive, ampliar o prazo mínimo previsto no caput”.
284
O art. 21, § único, da LRF veda qualquer operação que resulte em aumento
de despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato. Ainda dispõe o art. 42 da LRF acerca da proibição
de contratação de despesas nos últimos
dois quadrimestres que não possam ser
integralmente pagas no período.
FGV DIREITO RIO
123
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ser assinado pelo contratante (Chefe do poder Executivo) e pela contratada (Instituição Financeira). O resultado do concurso será divulgado pelo
Banco Central do Brasil a todas a instituições financeiras, ao Senado, ao
Tribunal de Contas e ao Poder Legislativo respectivos, ex vi do art. 39 da
referida Resolução”.
Compete, ainda, ao Banco Central a função fiscalizadora do saldo do crédito
aberto, nos termos do art. 38, § 3o da LRF. O eventual descumprimento dos
limites impostos, responderá a contratada instituição financeira, nos termos da
legislação pertinente, conforme expressa o art. 73 da LRF.
III. Da Garantia e da Contra-Garantia.
Outro tema relevante para o objeto deste curso diz respeito às garantias e
contra-garantias que os Entes Políticos podem lançar mão ao realizarem operações de crédito internas ou externas.
A garantia, conforme ensina a doutrina civilista, é uma espécie do gênero
caução e vincula-se à tutela do patrimônio, posto servir de instrumento para preservação deste face às obrigações assumidas pelo devedor. No sistema normativo
pátrio as garantias se subdividem em reais e pessoais (fidejussórias). A garantia
decorre da necessidade de o credor sentir-se seguro de que vai receber o pagamento da obrigação assumida pelo devedor. Nesse contexto, ensina o civilista
Caio Mário da Silva Pereira285 que a garantia ou caução estrito senso:
“(...) pode efetivar-se mediante a separação de um bem determinado,
móvel ou imóvel, com o encargo de responder o bem gravado ou seu rendimento pela solução da obrigação (penhor, hipoteca, anticrese), casos em
que fica estabelecido um ônus sobre a própria coisa, constituindo espécie
de garantia real (...). Mas pode realizar-se, também, mediante a segurança
de pagamento oferecida por um terceiro estranho à relação obrigatória,
o qual se compromete a solver pro debitore, e desta sorte nasce a garantia
pessoal ou fidejussória.”
A despeito de serem aplicáveis as referidas formas de garantia na seara
pública, é preciso ressaltar certas peculiaridades que as distanciam da sua
aplicação nas relações privadas, visto que o administrador público tem como
vetor axiológico de sua conduta o interesse público, valor indisponível. Desta
sorte, deve o ente político, ao utilizar instrumentos de garantia ou contra-garantia, observar os ditames constitucionais e a legislação infraconstitucional.
O art. 40 da LRF disciplina a concessão de garantia em operações de crédito
internas e externas pelos entes federados, e subordina a sua realização ao oferecimento de contragarantia, em valor igual ou superior ao da garantia a ser
concedida, e à adimplência da entidade que a pleitear relativamente a suas
obrigações junto ao garantidor e às entidades por este controladas.286 Nesse
285
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10ª ed.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
p.327-335.
286
Também cuida da matéria a Resolução do Senado Federal n° 43/2001. Deve-se destacar que nos termos do §1º
do art. 40 da LRF não se exige contragarantia de órgãos e entidades do próprio
ente e a contragarantia exigida pela
União a Estado ou Município, ou pelos
Estados aos Municípios, pode consistir
na vinculação de receitas tributárias diretamente arrecadadas e provenientes
de transferências constitucionais, com
outorga de poderes ao garantidor para
retê-las e empregar o respectivo valor
na liquidação da dívida vencida.
FGV DIREITO RIO
124
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
passo, merece relevo a contribuição de Misabel de Abreu Machado Derzi287
que, ao comentar o referido artigo 40, fez a seguinte análise:
“As garantias e contra-garantias podem ser reais ou pessoais. Mediante autorização legal, o ente federativo pode oferecer em garantia bens dominicais, móveis
ou imóveis, disponíveis. Não se pode impedir, embora a regra seja a inalienabilidade dos bens públicos, que certos bens de propriedade do Estado sejam vendidos
ou doados para fins de interesse coletivo, mediante lei. Se puderem ser objeto de
alienação, poderão ser onerados com garantia real. Entretanto, essa relatividade
inexiste em relação à receita pública ou à renda pública. Em se tratando, pois, de
garantia ou contra-garantia prestada mediante vinculação de receita de impostos,
estar-se-á diante de caução fidejussória, jamais real, pois a receita arrecadada,
existente nos cofres públicos, é absolutamente inalienável, imprescritível e impenhorável.” (grifo da autora).
Embora seja pertinente a visão da mencionada estudiosa, há que se reconhecer que a Constituição de 1988, em seu art. 167, IV, no qual está
positivado o princípio da não-afetação da receita, contempla a possibilidade
de vinculação de recursos oriundos de receitas de impostos para a concessão
de garantias às operações de crédito por antecipação de receita.288 É possível
inferir da referida exceção ao princípio da vedação à vinculação da receita de
impostos a órgãos e fundos, que o objetivo do Constituinte de 1988 é o de
garantir o equilíbrio financeiro-orçamentário do Estado e, como conseqüência, a concretização dos direitos humanos fundamentais, os quais dependem
dos serviços públicos, como assistência à saúde e melhor estrutura da educação básica e do ensino médio.
EQUILÍBRIO FISCAL
Por fim, cumpre destacar que, no caso brasileiro, além do aumento da
despesa como proporção do PIB ao longo dos anos, nos termos já apresentados na aula passada, o resultado primário do Governo Central (total das
Receitas menos total das Despesas antes do pagamento dos Juros) vem sendo
positivo e crescente ao longo dos últimos anos, o que confirma o aumento da arrecadação da União em ritmo mais forte do que o crescimento dos
gastos e do PIB, sem considerar os encargos da dívida. No acumulado de
janeiro a novembro de 2008, conforme Relatório da Secretaria do Tesouro
Nacional289, o resultado do Governo Central é 38,9% superior ao obtido em
igual período de 2007 (R$ 91,5 bilhões contra R$ 65,9 bilhões). Com isso,
o resultado primário passou de 2,78% para 3,45% do PIB estimado para o
período. As receitas do Governo Central, líquidas de transferências aos esta-
287
DERZI, Misabel de Abreu Machado.
Comentários aos arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei
de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed.
rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
p. 258-344.
288
Cabe salientar que, para Misabel de
Abreu Machado Derzi, a vinculação de
receitas tributárias de que trata o art.
40 da LRF amplia a regra inserta no
art. 167, § 4o da CR/88, que prevê a
utilização dos referidos recursos à prestação de garantia ou contra-garantia à
União. Segundo a mencionada estudiosa, o texto do referido art. 40 amplia o
escopo da norma constitucional, uma
vez que estabelece a retenção e expropriação da receita do ente devedor
pelo garantidor, o que enseja vício de
constitucionalidade. In: DERZI, Misabel
de Abreu Machado. Comentários aos
arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra
da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder
do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed. rev. São Paulo:
Editora Saraiva, 2008. p. 258-344.
289
Relatório disponível no sitio http://
www.stn.fazenda.gov.br/. Merece destaque o fato de que, no mês de novembro de 2008, o resultado primário do
Governo Central passou a ser deficitário
em R$ 4,3 bilhões pela primeira vez em
quatro anos. No mês de outubro o superávit primário havia sido de R$ 14,9
bilhões e no mesmo mês do ano anterior, novembro de 2007, o superávit
primário havia sido de R$ 4,5 bilhões.
FGV DIREITO RIO
125
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
dos e municípios, cresceram 3,2% acima do crescimento nominal do PIB no
período (11,97%), enquanto as despesas do Governo Central apresentaram
decréscimo de 0,3%. No entanto, deve-se ressaltar que o resultado nominal,
ou seja, se considerados o pagamento de juros da dívida, é deficitário.
Em sentido análogo ao que vem ocorrendo com a União, tem sido constatados resultados primários positivos e déficits nominais dos três níveis de
Governo de forma agregada (União, Estados, Distrito Federal e Municípios),
informações compiladas também a partir dos dados disponibilizados pela
Secretaria do Tesouro Nacional:
(Valores em R$ mil)
Resultado Geral do
Governo
2002
2003
2004
2005
2006
2007
I. Total das Receitas
511.748.237
586.924.326
685.020.631
786.204.210
874.786.441
991.471.083
II. Total das Despesas
478.018.839
529.830.707
610.970.826
702.155.690
801.510.676
907.142.788
III. Resultado Primário
(I-II)
33.729.398
57.093.619
74.049.805
84.048.520
73.275.764
84.328.294
IV. Juros Nominais
111.724.137
153.848.962
137.158.265
156.898.636
153.604.636
150.720.186
V. Resultado Nominal
(III-IV)
(77.994.738)
(96.755.342)
(63.108.460)
(72.850.116)
(80.328.872)
(66.391.892)
União, Estados e
Municípios
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 8 – AS TRANSFERÊNCIAS CONSTITUCIONAIS E A PARTILHA
DE RECEITA TRIBUTÁRIA NO FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO
Conforme já explicitado na Aula 2, os recursos disponíveis para cada ente
político realizar as suas funções em uma federação como a brasileira não correspondem apenas às receitas auferidas individualmente, patrimoniais e extrapatrimoniais, isto é, as fontes de financiamento orçamentárias dos gastos
em sentido lato, de cada ente federado, correspondem ao conjunto:
(A) das receitas próprias de cada unidade política, obtidas, principalmente, por meio do exercício de suas competências tributárias290,
de suas receitas patrimoniais, da atividade econômica exercida por
suas empresas, bem como das operações de crédito; e
(B) da parcela decorrente do sistema de repartição de receitas tributárias
e de transferências intergovernamentais, que podem ser voluntárias
ou obrigatórias, correntes ou de capital
Preliminarmente, entretanto, cumpre destacar a distinção entre transferências intergovernamentais e intragovernamentais.
As despesas realizadas para transferir recursos financeiros a entidades pertencentes à Administração Pública, dentro da mesma esfera de governo, denomina-se transferências intragovernamentais. Em sentido diverso, as transferências entre os diversos entes federados, qualificam-se como transferências
intergovernamentais, as quais podem ter por fundamento:
(1) determinação constitucional ou legal, o que a caracteriza como participação obrigatória e
(2) o processo de descentralização orçamentário voluntário, que se efetiva pelas transferências discricionárias.
Acerca das transferências voluntárias, estabelece o artigo 25 da Lei Complementar nº 101/2000 (LRF) que:
Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência
voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de
determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
(grifo nosso)
Saliente-se, ainda, que, consoante o disposto no artigo 167, X, da CR88 – inciso incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98 – é
vedada “a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos,
inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estadual e suas
290
Matéria a ser examinada nas próximas aulas.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Os instrumentos de repasse das transferências discricionárias são múltiplos,
destacando-se entre eles os convênios, os contratos de repasse, ajustes, a transferência automática e a transferência fundo a fundo. Os fundamentos para as
transferências voluntárias291 também são vários, podendo ser, por exemplo,
a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, conforme estatui o
citado artigo 25 da LRF, visando, especialmente, à realização de obras e/ou
serviços de interesse comum e coincidente às três esferas de Governo.
As transferências voluntárias, por se tratarem de despesa para o ente governamental transferidor, devem ter previsão na lei do orçamento anual, nos termos do artigo 167, II da CR-88, bem como obedecer às condições fixadas no
já citado inciso X do mesmo dispositivo constitucional, na Lei de Diretrizes
Orçamentárias292, do ente federado concedente, e na Lei de Responsabilidade
Fiscal, a qual estabelece diversas condições293 e requisitos para que a União
realize transferências a título voluntário, destacando-se entre eles os fixados
nos artigos 11, 23, 25, 51, 52, 54 e 55. Se o Município, por exemplo, não
encaminhar o balanço do exercício anterior à Secretaria do Tesouro Nacional
no prazo determinado, fica impedido de receber transferências voluntárias.
O Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, regulamenta os convênios,
contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com órgãos ou entidades públicas ou
privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos
do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União.
As informações sobre transferências voluntárias obtidas no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) podem ser
consultadas no sítio da Secretaria do Tesouro Nacional no seguinte endereço
eletrônico: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/transferencias_voluntarias.asp.
A propósito, a participação das transferências voluntárias para o Estado
do Rio de Janeiro e os seus Municípios, de 1997 a Março de 2008, pode ser
sumarizada da seguinte forma:
291
Saliente-se, ainda, a existência
das subvenções sociais e econômicas,
disciplinadas, respectivamente, nos
artigos 16 e 18 da Lei n º 4.320/64.
As subvenções sociais são destinadas
às instituições públicas ou privadas de
caráter assistencial ou cultural, sem
finalidade lucrativa, que visam suplementar as ações da iniciativa privada
na área social. Já as subvenções econômicas destinam-se a cobrir os déficits
de manutenção das empresas públicas,
compreendendo aqueles decorrentes
do montante em que as despesas de
custeio superam as receitas correntes.
Destaque-se que a artigo 32, da Lei
nº12.017, de 12 de agosto de 2009,
que dispõe sobre as diretrizes para a
elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2010,da União, estabelece que
“A transferência de recursos a título de
subvenções sociais, nos termos do art.
16 da Lei no 4.320, de 1964, atenderá as
entidades privadas sem fins lucrativos
que exerçam atividades de natureza
continuada nas áreas de cultura, assistência social, saúde e educação e
preencham” as condições fixadas no
dispositivo.
292
A citada Lei nº 12.017/2009, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de
2010, da União, estabelece, no artigo
39, que: “As transferências voluntárias,
conforme definidas no caput do art.
25 da Lei Complementar no 101/2000,
dependerão da comprovação, por parte
do conveniente, até o ato da assinatura
do instrumento de transferência, de
que existe previsão de contrapartida
na lei orçamentária do Estado, Distrito
Federal ou Município.” A contrapartida
será estabelecida em termos percentuais do valor previsto no instrumento de
transferência voluntária, considerandose a capacidade financeira da respectiva unidade beneficiada e seu Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH).
293
Os artigos 8º a 11 da Lei 11.945/2009
estabelecem quais são as ações a serem
realizadas pelos órgãos e entidades da
administração pública federal responsáveis pela inscrição de pendências
relativas a obrigações fiscais, legais ou
de natureza financeira ou contratual
devidas por Estados, Distrito Federal
ou Municípios e que compõem a base
de informações para fins de verificação
das condições para transferência voluntária da União.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Percentual de Transferências Voluntárias em relação ao total
Brasil
(1)
(2)
(3)
Estado e Municípios
do RJ*
Estado do RJ**
Municípios do
RJ***
1997
3,55%
3,13%
4,58%
1998
2,98%
2,59%
3,70%
1999
8,96%
3,29%
11,38%
2000
3,99%
3,76%
4,30%
2001
3,95%
3,18%
5,36%
2002
3,72%
2,68%
4,91%
2003
4,43%
4,01%
4,83%
2004
3,62%
2,94%
4,24%
2005
4,57%
3,15%
5,80%
2006
4,81%
3,65%
5,73%
2007
6,74%
6,82%
6,66%
Jan-Mar 2008
6,07%
6,96%
5,83%
* Soma das transferências recebidas pelos Municípios e pelo Estado dividido pela
soma do total das transferências para Estados e Municípios
** Soma das transferências recebidas pelo Estado dividido pela soma do total
para todos os Estados do Brasil
*** Soma das transferências recebidas por todos os Municípios do Estado dividido pela soma do total de todos os Municípios do Brasil
Fonte dos dados: Secretaria do Tesouro Nacional–http://www.tesouro.fazenda.
gov.br/estados_municipios/transferencias_voluntarias.asp
Elaboração própria
Segundo informação do Jornal Valor de 02.09.2008 (página A4), entrou
em funcionamento no dia anterior à publicação da notícia “o Siconv, sistema
desenvolvido pelo governo federal especialmente para controlar os repasses
de recursos voluntários da União. Com isso, só conseguirão receber transferências não-obrigatórias do Tesouro Nacional entes públicos e entidades
privadas que se credenciarem e firmarem contrato por intermédio do Portal
de Convênios do governo federal.”
As transferências obrigatórias, por sua vez, podem ter fundamento constitucional ou legal. Destaque-se, inicialmente, conforme será examinado na
Aula 9, que o princípio geral, consoante o disposto no artigo 167, IV, da
CR-88, é o da impossibilidade de vinculação de receita de impostos a órgão,
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
fundo ou despesa. Entretanto, o mesmo dispositivo estabelece diversas exceções, entre as quais aquelas determinadas nos artigos 157 e 159, 198, §2º,
212 e artigo 37, XXII, a serem apresentadas a seguir, bem como a prestação
de garantias previstas no artigo 165, §8º, e no §4º do próprio artigo 167,
hipóteses já analisadas na aula passada.
As transferências determinadas na Constituição, de caráter obrigatório,
podem ser segmentadas em seis grandes grupos, possuindo, cada qual, finalidade e natureza distinta, destacando-se:
(1) aquelas determinadas pela Carta Magna visando a realização de
ações governamentais descentralizadas em que há participação de
múltiplos entes federados, como é o caso dos recursos financeiros destinados:
i. ao Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pelo artigo 198
da CR-88, disciplinado pela Lei n° 8.080/90 e Lei n° 8.142/90,
e financiado, nos termos do artigo 195 da CR-88, com recursos
do orçamento da seguridade social, da União294, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, além de outros recursos
(§1°do artigo 198);
ii. ao Fundo de Assistência Social (FNAS), que são transferidos295
de acordo com os critérios aprovados pelo Conselho Nacional
de Assistência Social, o qual deve considerar “para tanto, indicadores que informem sua regionalização mais eqüitativa, tais
como: população, renda per capita, mortalidade infantil e concentração de renda, além de disciplinar os procedimentos de
repasse de recursos para as entidades e organizações de assistência social, sem prejuízo das disposições da Lei de Diretrizes Orçamentárias”, nos termos do art. 18, IX da Lei nº 8.742/1993,
que dispõe sobre a organização da Assistência Social, prevista
nos artigos 203 e 204 da CR-88;
iii. ao Fundo de manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico
e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB),
de que trata o artigo 60 do ADCT da CR-88, com a redação
dada pela Emenda Constitucional n° 53, de 19 de dezembro de
2006 e regulamentado pela Lei n° 11.494/2007296;
(2) a quota dos Estados e dos Municípios, correspondente a dois terços
dos recursos arrecadados pela União com a contribuição social do
salário-educação de que trata o §6°do artigo 212 da CR-88, as quais
serão creditadas mensal e automaticamente em favor das Secretarias
de Educação dos Estados, do Distrito Federal e em favor dos Municípios, para financiamento de programas, projetos e ações voltadas
para a educação básica, nos termos do Decreto Federal nº 6.003 de
28 de dezembro de 2006;
294
O artigo 198, §3º, inciso II, da CR-88,
prevê que Lei Complementar, até hoje
não editada, estabelecerá: “os critérios
de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus
respectivos Municípios, objetivando a
progressiva redução das disparidades
regionais” (inciso incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000).
295
A Lei nº 9.604/1998, que dispõe
sobre a prestação de contas de aplicação de recursos a que se refere a Lei nº
8.742/1993, estabelece que os recursos
recebidos pelos fundos dos Estados,
do Distrito Federal ou dos Municípios
devem ser aplicados de acordo com
as prioridades fixadas nos planos de
assistência social, aprovados pelos
respectivos conselhos, devendo ser observada a necessária compatibilidade
com o plano estadual na hipótese de
transferência aos fundos municipais
(parágrafo único do artigo 2º).
296
O FUNDEB é um fundo de natureza
contábil criado no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal (art. 60, I do
ADCT), sendo o mesmo financiado com
recursos desses entes federados e, também, com recursos dos Municípios (art.
60, II do ADCT). A União apenas complementa os recursos dos Fundos sempre que, no Distrito Federal e em cada
Estado, o valor por aluno não alcançar
o mínimo fixado nacionalmente (art.
60, V do ADCT). Segundo o artigo 212
da CR-88 a União aplicará, anualmente,
no mínimo 18% e os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios 25%, da receita resultante de impostos, incluindo
a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do
ensino. A Lei nº 11.738/2008, por sua
vez, entre outras medidas, fixou piso
nacional de remuneração para os professores em R$ 950,00. A lei foi objeto
de Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI 4167) no Supremo Tribunal Federal (STF), proposta por Governadores de
cinco estados. Para os governadores, a
lei extrapolou a idéia inicial de uma fixação do piso da carreira e criou “regras
desproporcionais” ao regular o vencimento básico (não o piso) e dar jornada
menor de trabalho dos professores
dentro das salas de aula. Segundo eles,
a lei federal causará despesas exageradas e sem amparo orçamentário nos
estados. O Plenário do STF concluiu,
no dia 17.12.2008, no julgamento da
liminar, que: (1) o termo “piso” a que
se refere a norma em seu artigo 2º deve
ser entendido como a remuneração
mínima a ser recebida pelos professores. Assim, até que o Supremo analise
a constitucionalidade da norma, na
decisão de mérito, os professores das
escolas públicas terão a garantia de não
ganhar abaixo de R$ 950,00, somados
aí o vencimento básico (salário) e as
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(3) os recursos financeiros transferidos à título de compensação e participação no resultado da exploração de petróleo e gás natural, de
recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros
recursos minerais no território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios, nos termos do §1º do artigo 20 da CR-88297;
(4) a transferência da arrecadação do imposto sobre as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF),
incidente sobre o ouro, quando definido em lei como ativo financeiro
ou instrumento cambial, cabendo, de acordo com a sua origem, trinta
por cento para o Estado, o Distrito Federal ou o Território, e setenta por
cento para o Município, nos termos do artigo 153, V, e § 5º da CR-88;
(5) os valores entregues pela União aos Estados e ao Distrito Federal,
de acordo com critérios, prazos e condições a serem definidos em
lei complementar, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as
exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições
destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, § 2º, X,
a, nos termos do artigo 91298 do ADCT da CR-88, com a redação
dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19/12/2003 e
(6) as transferências decorrentes da denominada “Repartição das Receitas Tributárias”, disciplinadas nos artigos 157 a 162 da CR-88,
Seção VI do Capítulo I – Do Sistema Tributário Nacional, o qual
está inserido no Título VI – Da Tributação e do Orçamento.
Relativamente a este último grupo (número 6), disciplinado nos artigos 157
a 162 da CR-88, cumpre apontar a sua estreita conexão com o disposto no já
citado artigo 3º, III, da mesma Carta, que estabelece como um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (grifo nosso). Dessa
forma, pode-se concluir que a Constituição elegeu e consagrou o sistema de repartição de receitas tributárias e de transferências entre os entes federados como
o principal299 instrumento financeiro para alcançar o objetivo fundamental de
reduzir as denominadas desigualdades regionais e promover o equilíbrio econômico entre Estados e Municípios (artigo 161, II, da CR-88). Visando garantir
a efetividade desses repasses, o artigo 160 da CR-88 estabelece a vedação da retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sendo ressalvada, entretanto, a
possibilidade de condicionamento do repasse das receitas “ao pagamento de seus
créditos, inclusive de suas autarquias” e “ao cumprimento” das “ações e serviços
públicos de saúde”, nos termos do artigo 198 da CR-88.
gratificações e vantagens; e (2) pela
suspensão do parágrafo 4º do artigo
2º da lei, que determina o cumprimento de, no máximo, 2/3 da carga
dos professores para desempenho de
atividades em sala de aula. No entanto,
continua valendo a jornada de 40 horas
semanais de trabalho, prevista no parágrafo 1º do mesmo artigo. A suspensão
vale, também, até o julgamento final
da ação pelo STF. Ao decidir a ADI 4102
o STF referendou liminar concedida em
ação direta de inconstitucionalidade
proposta pelo Governador do Estado
do Rio de Janeiro para suspender a vigência do § 1º do art. 309 e do art. 314,
caput, e § 5º, bem como da expressão
“e garantirá um percentual mínimo de
10% (dez por cento) para a educação
especial” contida na parte final do § 2º
do art. 314, todos da Constituição do
Estado do Rio de Janeiro. Entendeu-se
que as normas impugnadas elidem a
competência do Executivo na elaboração da lei orçamentária, retirando-lhe
a iniciativa dessa lei, obrigando-o a
destinar dotações orçamentárias a fins
pré-estabelecidos e a entidades prédeterminadas. Alguns precedentes citados: ADI 780 MC/RJ (DJU de 16.4.93);
ADI 1689/PE (DJU de 19.3.2003); ADI
820/RS (DJE de 29.2.2008).
297
Esse terceiro grupo, relativo às compensações e participações especiais,
pode, em sentido diverso ao aqui enquadrado, não ser classificado como
transferência obrigatória, tendo em
vista a possibilidade de se sustentar a
tese de que esses recursos deveriam ser
pagos diretamente aos Estados, Distrito
Federal e Municípios titulares destes,
nos termos do artigo 20, §1º, da CR88, não sendo submetidos, portanto,
ao regime jurídico das transferências
obrigatórias. Sobre o assunto ver MS
24.312-1/DF, Tribunal Pleno do STF, a
ser estudado na Aula 9.
298
Esse dispositivo do ADCT, cujo objetivo é substituir o sistema de compensação e transferência de recursos definidos no artigo 33, da Lei Complementar
nº 87/1996, que disciplina o imposto
dos Estados e do Distrito Federal sobre
operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços
de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), não
foi até hoje regulamentado, razão pela
qual, tendo em vista o disposto no § 3º
do mesmo artigo 91 do ADCT (“Enquanto não for editada a lei complementar
de que trata o caput, em substituição
ao sistema de entrega de recursos nele
previsto, permanecerá vigente o sistema de entrega de recursos previsto no
artigo 31 e Anexo da Lei Complementar
nº 87/96, de 13 de setembro de 1996,
com a redação dada pela Lei Complementar nº 115/02, de 26 de dezembro
de 2002) continua, portanto, em pleno
vigor a sistemática disciplinada no cita-
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Apesar da CR-88 ter conferido a prerrogativa a cada um dos entes da
federação para instituir e exigir os seus próprios tributos, o que pode ensejar
o nascimento da relação jurídica-tributária entre o sujeito ativo credor e o
sujeito passivo devedor, conforme será estudado na próxima aula, os recursos
financeiros decorrentes dessa competência não se afiguram suficientes para
garantir a autonomia financeira de todos os Estados e Municípios do país.
De fato, a grande maioria dos Municípios e muitos Estados brasileiros são
dependentes da relação jurídica-financeira criada pela Constituição entre os
entes políticos visando o equilíbrio federativo, prevendo as citadas repartições das receitas tributárias a que alude.
Destaque-se que a doutrina estabelece diversas classificações no que concerne ao sistema de repartição das receitas tributárias, objetivando auxiliar a
diferenciação entre as diversas espécies e formas de alocação de recursos disciplinadas nos artigos 157 a 162 da CR-88.
Segundo Kiyoshi Harada300, a Constituição de 1988 estabeleceu “três modalidades diferentes de participação dos Estados, DF e Municípios na receita
tributária da União e dos Estados: (a) participação direta dos Estados, DF e
Municípios no produto de arrecadação de imposto de competência impositiva
da União; (b) participação no produto de impostos de receita partilhada; (c)
participação em fundos”. Outros autores301 qualificam-nas, quanto à forma, em
transferências “diretas, ou seja, sem qualquer intermediação, e indiretas, efetuadas por meio de fundos”. José Maurício Conti302 aponta que as transferências
obrigatórias podem ser qualificadas como automáticas, “quando estejam previstas no ordenamento jurídico de determinado Estado de forma que devam ser
operacionalizadas por ocasião do recebimento dos recursos, independentemente de decisão de autoridades”, ou realizadas por um sistema misto, quando a
“transferência se opera em duas etapas, com critérios diversos: há a transferência
automática e obrigatória do recurso da unidade a um determinado fundo, que,
por sua vez, discricionariamente, repassa os valores recebidos para as outras unidades, seguindo determinações que podem variar conforme circunstâncias”.
A transferência e a apropriação dos recursos tributários partilhados podem
ocorrer por meio de Fundo ou sem a utilização desse instrumento, o qual tem
como requisito necessário a autorização legislativa, consoante o disposto no
artigo 167, IX, da CR-88.303
A Constituição, em duas hipóteses, determina a retenção dos valores pelos
próprios beneficiários da receita partilhada, consoante se extrai do disposto
no inciso I do artigo 157 e do inciso I do artigo 158. Tais dispositivos prevêem que pertencem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título,
por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem.
do artigo 31 da LC nº 87/1996, apesar
deste dispositivo fixar o ano de 2006
como termo final para aplicabilidade
da sistemática ali determinada. Este
é o denominado “seguro receita”, pois
visa garantir recursos financeiros aos
Estados e Distrito Federal em compensação à desoneração dos produtos semi
manufaturados e às aquisições de bens
do ativo permanente introduzidos pela
LC nº 87/1996, daí sua natureza compensatória. Tanto no sistema previsto
no ADCT (§ 1º do artigo 91) como no
regime da lei complementar (§ 1º do
artigo 31) é estabelecido que 25% da
compensação será repassada aos Municípios e 75% aos Estados.
299
Outros instrumentos podem ser
identificados no próprio sistema tributário, como, por exemplo, aquele previsto no artigo 151, I da CR-88, o qual
estabelece ser possível à União, em
atendimento ao princípio da igualdade
material, instituir tributo não uniforme em todo o território nacional, que
implique distinção ou preferência em
relação ao Estado, DF ou ao Município,
em detrimento de outro, na hipótese
de “incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento
sócio-econômico entre as diferentes
regiões do país”.
300
HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 45.
301
DI PIETRO, Juliano. Repartição de Receitas Tributárias: A repartição do produto da arrecadação. As Transferências
Intergovernamentais. In: CONTI, José
Maurício (Organizador). Federalismo
Fiscal. Barueri: Manole, 2004. p. 71.
302
CONTI, José Mauricio. Federalismo
fiscal e fundos de participação. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 39.
303
Dispõe ainda a Constituição, no artigo 165, §9º, II, que cabe à lei complementar “estabelecer normas de gestão
financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento
de fundos.”
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Nesses termos, quando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
realizam pagamentos (ex: pagamento aos seus servidores etc.), os quais consubstanciem renda para o destinatário, devem executar, por mandamento
constitucional, a retenção do imposto de renda (IR), na hipótese incidente na
própria fonte pagadora. Portanto, o ente federado substitui aquele que aufere
a renda no que se refere à obrigação de pagar o imposto devido, isto é, os
entes públicos subnacionais passam a ser substitutos tributários e, ao mesmo
tempo, titulares da arrecadação do IR retido, imposto cuja competência privativa para instituição é da União, nos termos do artigo 153, III, da CR-88.
Portanto, não há, conforme já salientado, qualquer sistema ou mecanismo
para repassar esses recursos aos entes beneficiários (Estados, Distrito Federal
e Municípios) nem desembolso de caixa no montante partilhado por parte
da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Dessa forma,
a receita tributária é repartida sem que haja o efetivo repasse financeiro dos
recursos pelo Tesouro Nacional por intermédio do Banco do Brasil.
Assim, quando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios efetivam
o pagamento mensal aos seus servidores, por exemplo, desembolsam apenas
o montante líquido a ser recebido a título de remuneração ou de subsídio,
sendo o ente público subnacional responsável, no entanto, pela denominada
retenção na fonte. No Estado do Rio de Janeiro, a matéria está disciplinada
no Decreto n.º 12.716, de 28 de fevereiro de 1989, no que se refere aos pagamentos realizados fora do âmbito do Poder Executivo, hipótese em que o
“produto da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer
natureza retido na fonte sobre os rendimentos pagos, a qualquer título, pelos
órgãos componentes do Poderes Legislativo e Judiciário, bem como pelas autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro, será
recolhido em DARJ, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, na forma a ser
indicada pelo Secretário de Estado de Fazenda”. Apesar de não mencionado
o Ministério Público estadual, a mesma regra deveria ser aplicada, haja vista a
autonomia orçamentária e financeira assegurada pela Constituição ao parquet.
Por sua vez, a União, titular da competência tributária para instituir o IR,
certamente acompanha e controla os valores envolvidos, tendo em vista a necessidade de contabilização dos montantes pertinentes: (1) em sua execução
orçamentária; (2) para a fiscalização das declarações anuais de imposto de
renda daqueles destinatários dos pagamentos a ensejar a retenção, efetuados
pelos Estados, Distrito Federal e Municípios; e bem assim, (3) para a efetivação da exclusão dessa parcela do IR retido na fonte dos montantes a serem
transferidos a título de Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM) aos programas
de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte (FNO), Nordeste
(FNE) e Centro-Oeste (FCO), nos termos do artigo 159, §1º da CR-88.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Também pertencem aos Estados e Municípios vinte por cento do produto
da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que
lhe é atribuída pelo art. 154, I, a denominada competência residual da União,
a ser examinada na Aula 11.
Existe ainda a previsão da repartição das receitas de dois impostos de competência dos Estados: (a) do imposto incidente sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios (IPVA); e (b) do imposto
incidente sobre a circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), disciplinados, respectivamente, nos incisos III e IV do artigo 158 da CR-88.
Aludida sistemática, relativamente ao ICMS, está prevista nos artigos 4º e
5 º da Lei Complementar nº 63/1990, que dispõe:
“Art. 4º Do produto da arrecadação do imposto de que trata o artigo anterior, 25% (vinte e cinco por cento) serão depositados ou remetidos no momento
em que a arrecadação estiver sendo realizada à “conta de participação dos Municípios no Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e
sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicações”, aberta em estabelecimento oficial de crédito e de que são titulares, conjuntos, todos os Municípios do Estado.
§ 1º............................
§ 2º Os agentes arrecadadores farão os depósitos e remessas a que alude este
artigo independentemente de ordem das autoridades superiores, sob pena de
responsabilidade pessoal.
Art. 5º Até o segundo dia útil de cada semana, o estabelecimento oficial de
crédito entregará, a cada Município, mediante crédito em conta individual ou
pagamento em dinheiro, à conveniência do beneficiário, a parcela que a este
pertencer, do valor dos depósitos ou remessas feitos, na semana imediatamente
anterior, na conta a que se refere o artigo anterior.”
Dessa forma, o recurso não transita, de fato, pelo caixa do Estado, ente
competente para instituir o IPVA e o ICMS.
Saliente-se, entretanto, que sob a perspectiva da execução do orçamento,
as receitas do ICMS e do IPVA são registradas e contabilizadas de forma integral nos demonstrativos financeiros do Estado, como decorrência e reflexo
do já apresentado princípio do orçamento bruto304, ainda que as parcelas
pertencentes aos municípios sejam direcionadas pelo agente arrecadador diretamente para a conta dos Municípios.
No mesmo sentido, quando da elaboração do orçamento e da estimativa
de receita, os montantes relativos ao IPVA e ao ICMS devem constar do orçamento do Estado como receita corrente305 pelo seu valor estimado bruto,
sem abatimento da participação dos Municípios. Esses valores, constitucio-
304
O princípio do orçamento bruto está
positivado no art. 6º, da Lei 4.320/64, e
estabelece que todas as receitas e despesas devem constar de lei orçamentária e de créditos adicionais pelos valores
totais, vedadas quaisquer deduções.
No entanto, conforme será estudado na
Aula 9, Manual de Receita Nacional,
de utilização obrigatória pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios,
aprovado pela Portaria Conjunta n° 3,
de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da
Fazenda e da Secretária de Orçamento
Federal do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, disponibilizada no
endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov.br, estabelece dois
procedimentos possíveis: 1) “No caso
em que se configure em orçamento
apenas o valor pertencente ao ente
arrecadador, deverá ser registrado
o valor total arrecadado, incluindo os
recursos de terceiros. Após isso, estes
últimos serão registrados como dedução da receita e será reconhecida uma
obrigação para com o “beneficiário”
desses valores. A adoção desse procedimento está fundamentada no fato de
que não há necessidade de aprovação
parlamentar para transferência de recursos de acordo com o que determina
a legislação. As transferências constitucionais ou legais constituem valores
que não são passíveis de alocação
em despesas pelo ente público, desse
modo, não há desobediência ao Princípio do Orçamento Bruto, segundo
o qual receitas e despesas devem
ser incluídas no orçamento em sua
totalidade, sem deduções”; e 2) “No
caso em que se consigne em orçamento
o valor total a ser arrecadado, incluindo
os recursos de terceiros, em que o ente
seja apenas arrecadador, o recebimento
será integralmente computado como
receita, sendo efetuada uma despesa
quando da entrega ao beneficiário.
Exemplo: FPM – Fundo de Participação
dos Municípios. Tais observações são
aplicadas apenas para recursos que
não pertençam ao ente, ou seja, cuja
transferência seja intergovernamental,
de acordo com a legislação em vigor.”
305
Conforme já salientado, as diversas
classificações das receitas e despesas
serão apresentadas na aula 10.
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nalmente atribuídos, devem ser contabilizados como despesa para o Estado,
enquadrada a hipótese como transferência corrente, nos termos do artigo 12
da Lei nº 4.320/1964. Por outro lado, no orçamento municipal devem ser registrados os montantes que, por estimativa, serão repassados pelo Estado no
exercício como receita corrente, sendo categorizada economicamente como
receita de transferência corrente.
Apresentados esses exemplos do Imposto de Renda retido na fonte pelos
Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como do IPVA e ICMS, hipóteses em que não há efetivo envio ou fluxo financeiro entre os entes federados,
cumpre agora analisar as outras hipóteses de que tratam a citada Seção VI,
relativamente à repartição de receitas tributárias.
No que se refere ao imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR),
malgrado tratar-se de imposto da competência privativa da União (art. 153,
inciso VI), a Constituição permite a sua fiscalização e cobrança pelos Municípios, que assim optarem, nos termos da lei, desde que não ocorra redução
do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.306 O artigo 158, II,
com a sua redação dada pela Emenda Constitucional 42/2003, por sua vez,
estabelece pertencer aos Municípios cinqüenta por cento do produto da arrecadação do ITR, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo, no entanto, a totalidade do imposto na hipótese de o Município exercer a opção de
que trata o citado art. 153, §4°, inciso III, isto é, passarem a fiscalizar e cobrar
o ITR. A Lei nº 11.250, de 27 de dezembro de 2005, disciplina essa opção
e dispõe que a União, por meio da Secretaria da Receita Federal, “poderá celebrar convênios com o Distrito Federal e os Municípios que assim optarem,
visando a delegar as atribuições de fiscalização, inclusive a de lançamento dos
créditos tributários, e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, de que trata o inciso VI do art. 153 da Constituição Federal, sem
prejuízo da competência supletiva da Secretaria da Receita Federal”. Tendo em vista as dificuldades práticas para operacionalizar o aludido sistema,
foi editado o Decreto nº 6.433, de 15 de abril de 2008, por meio do qual
foi “instituído o Comitê Gestor do Imposto sobre a Propriedade Territorial
Rural –CGITR com a atribuição de dispor sobre matérias relativas à opção
pelos Municípios e pelo Distrito Federal para fins de fiscalização, inclusive
a de lançamento de créditos tributários, e de cobrança do Imposto sobre a
Propriedade Territorial Rural – ITR, de que trata o inciso III do § 4o do art.
153 da Constituição, bem assim com competência para administrar a operacionalização da opção”. O artigo 13 do Decreto estabelece que “o CGITR
definirá o sistema de repasse do total arrecadado, inclusive encargos legais,
para o Município optante”, e prevê, ainda, que “enquanto o CGITR não
regulamentar o prazo para o repasse” o mesmo “será efetuado nas mesmas
condições e datas em que são transferidos decendialmente os recursos do
Fundo de Participação dos Municípios, vedada qualquer forma de retenção
306
art. 153, §4°, inciso III, da CR-88,
com a sua redação conferida pela
Emenda Constitucional 42/2003.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ou condição suspensiva da transferência”. Em 15.04.2008 foi publicada no
Diário Oficial da União a Resolução nº 1, de 13.05.2008 do CGITR, que
aprova o Regimento Interno do Comitê Gestor do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural.
Portanto, independentemente da opção a que alude o artigo 153, §4°,
inciso III, a União deve repassar o montante próprio do produto da arrecadação do ITR, cem por cento no caso de Município optante e cinqüenta por
cento na hipótese de ser mantida a fiscalização pela União.
Existem, ainda, duas outras hipóteses de repartição de receita nas quais
há transferência de recursos financeiros dos cofres da União aos Estados e ao
Distrito Federal sem que a Constituição suscite a realização do repasse por
meio de Fundos. São aquelas disciplinadas nos incisos II e III do artigo 159
da CR-88.
O artigo 159, II, da CR-88, dispõe que a União entregará aos Estados e ao
Distrito Federal 10% (dez por cento) do produto da arrecadação do Imposto
sobre Produtos Industrializados, proporcionalmente ao valor das respectivas
exportações de produtos industrializados, sem mencionar a instituição de
Fundo para tanto. A parcela individual de cada unidade federada não poderá,
nos termos do § 2° do artigo 159, ser superior a vinte por cento do montante total a ser repassado pela União a este título. A Lei Complementar n°
61/1989 regulamenta a matéria307 e estabelece que os coeficientes individuais
de participação de cada Estado e do Distrito Federal “deverão ser apurados
e publicados no Diário Oficial da União pelo Tribunal de Contas da União
até o último dia útil do mês de julho de cada ano”, sem mencionar também
a constituição de Fundo. A Lei n° 8.016/1990, por sua vez, disciplina que as
quotas de participação dos Estados e do Distrito Federal no produto da arrecadação do IPI: “serão creditadas em contas especiais abertas pelas Unidades
da Federação, em seus respectivos bancos oficiais ou, na falta destes, em estabelecimentos por elas indicados, nos mesmos prazos de repasse das quotas
do Fundo de Participação dos Estados e Municípios”. Não há menção, repise-se, à necessidade de constituição de Fundo para a sua operacionalização.
Ressalte-se, ainda, que, analogamente ao que ocorre com o citado sistema de
natureza compensatória de que trata o artigo 31, da Lei Complementar n°
87/1996, relacionado ao ICMS, vinte e cinco por cento do que cabe a cada
Estado, a título de transferência de IPI-exportação, são destinados aos seus
Municípios, observando-se o mesmo critério de rateio adotado para a distribuição da cota parte do ICMS que cabe aos Municípios (25%), consoante os
termos do § 3° do artigo 159 combinado com o artigo 158, parágrafo único,
incisos I e II da CR-88. Nesse sentido, o artigo 5° da Lei Complementar
61/1989 estabelece que devem ser observados “os mesmos critérios, forma e
prazos estabelecidos para o repasse da parcela do ICMS que a Constituição
307
O artigo 4°, da Lei Complementar
n° 65/1991, determina que, para o
cálculo da participação de cada Estado
ou do Distrito Federal nesta repartição da receita tributária: “somente
será considerado o valor dos produtos
industrializados exportados para o
exterior na proporção do ICMS que
deixou de ser exigido em razão da nãoincidência prevista no item a do inciso X
e da desoneração prevista no item f do
inciso XII, ambos do § 2° do art. 155 da
Constituição”.
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Federal assegura às municipalidades”. Complementa a disciplina dessa matéria o artigo 7° da Lei Complementar n° 63/1990, que dispõe in verbis:
Art. 7º Dos recursos recebidos na forma do inciso II do art. 159 da Constituição Federal, os Estados entregarão, imediatamente, 25% (vinte e cinco por
cento) aos respectivos Municípios, observados os critérios e a forma estabelecidos nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar.
Assim sendo, ao realizar o repasse desse recurso aos Estados, o Banco do
Brasil já realiza a separação da cota pertinente aos Municípios (25%) e a credita em sua conta, ou seja, o montante bruto da transferência contabilizado
no orçamento não é integralmente depositado na conta do tesouro dos Estados, razão pela qual não chega a ter a disponibilidade jurídica ou econômica
do recurso, em termos análogos ao que ocorre com a partilha do ICMS e
do IPVA.
Por fim, saliente-se que a citada Lei nº 11.494/2007, que regulamenta o
FUNDEB, estabelece que 20% do que for repassado ao Estado a título de
ressarcimento de IPI-exportação deve ser direcionado ao Fundo de Educação
estadual. Esta parcela também já é segmentada e depositada em contas separadas pelo próprio Banco do Brasil, que realiza o repasse tanto da parcela do
Estado como o percentual do Município no FUNDEB.
A outra hipótese de transferência, sem a previsão constitucional de Fundo para a sua efetivação, está disciplinada no inciso III308 do artigo 159 da
CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda nº 44, de 2004, o qual se
consubstancia no primeiro caso previsto na Constituição de partilha de contribuição. O dispositivo estabelece, in verbis:
do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, 29% (vinte e nove por cento) para os Estados e
o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que se
refere o inciso II, c, do referido parágrafo.
O artigo 177, § 4º, prevê a contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo,
gás natural e seus derivados, assim como de álcool combustível, a denominada CIDE-Petróleo ou Combustíveis-, sendo estabelecido no citado inciso
II, c, do parágrafo, que os recursos arrecadados serão destinados ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. Vale dizer que da
parcela pertinente a cada Estado, vinte e cinco por cento é repassado aos seus
Municípios, conforme determina o§ 4º do artigo 159 da CR-88.
Em observância ao disposto nos artigos 159, III, da CR-88 e 93 do
ADCT, a Lei no 10.866/2004 acrescentou os artigos 1o-A e 1o-B à Lei no
308
O artigo 93 do ADCT, dispositivo inserido pela Emenda Constitucional n°
42/2003, estabeleceu que a vigência do
disposto no artigo 159, III, e § 4º, que
fixa participação dos Estados na arrecadação da CIDE, somente se iniciaria
após a edição de lei a que se refere o
artigo, o que ocorreu com a edição da
Lei no 10.866/2004 .
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
10.336/2001, que institui a Cide-Petróleo. Os dispositivos adicionados regulamentam a partilha da arrecadação da contribuição e estabelecem que:
“os recursos serão distribuídos pela União aos Estados e ao Distrito Federal,
trimestralmente, até o 8o (oitavo) dia útil do mês subseqüente ao do encerramento de cada trimestre, mediante crédito em conta vinculada aberta para
essa finalidade no Banco do Brasil S.A. ou em outra instituição financeira que
venha a ser indicada pelo Poder Executivo federal.” A lei determina ainda que
os percentuais individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal,
para o rateio dos 29%, “serão calculados pelo Tribunal de Contas da União”
de acordo com os critérios fixados no § 2º do artigo 1o-A. Nos mesmos termos do IPI– exportação, ressalvada a inexistência de qualquer vinculação ao
FUNDEB, o Banco do Brasil, agente financeiro repassador dos recursos, já
segmenta o montante transferido em duas parcelas, ou seja, cota Estado e
cota Municípios. Assim, o valor bruto total não é disponibilizado em conta
de titularidade do Estado, havendo, entretanto, nos termos já repisados a sua
contabilização orçamentária pelo seu montante bruto.
Conforme já enfatizado, a característica comum entre essas modalidades
de repartição de receitas tributárias, analisadas até o momento, refere-se ao
fato de que a Constituição não menciona a necessidade de constituição de
Fundo para a respectiva operacionalização, isto é, o artigo 157, I e II; o artigo
158, I, II, III, IV, e o artigo 159, II e III, prevêem a partilha de receitas tributárias e a sua apropriação pelos entes beneficiados sem a necessidade de sua
realização por meio de Fundo.
Em sentido diverso, as hipóteses de repartição dos quarenta e oito por
cento das receitas tributárias do produto da arrecadação dos impostos sobre
(1) renda e proventos de qualquer natureza e (2) sobre produtos industrializados, de que trata o artigo 159, I, da CR-88, pressupõe a operacionalização
da partilha e a transferência dos recursos financeiros por meio de Fundos.
Derivado do latim fundus309 (fundo, base, bens de raiz), possui na terminologia jurídica várias significações. No plural, fundos, ainda segundo De Plácido Silva, é “aplicado como haveres, recursos financeiros, de que se podem
dispor de momento ou postos para determinado fim, feita abstração a outras
espécie de bens. Neste sentido, temos, os fundos disponíveis ou os fundos de
reservas sociais.” A doutrina diverge quanto à natureza jurídica dos fundos,
havendo autores que entendem não possuir personalidade jurídica, no entanto, nos mesmos termos do condomínio possuem capacidade processual. Alguns fundos, como é o caso do FUNDEB, por determinação constitucional,
possuem natureza meramente contábil. No contexto constitucional brasileiro da repartição de receita, sustenta Maurício Conti310 que “não há porque
atribuir personalidade jurídica – ou capacidade postulacional, ou processual
– a parte de uma fórmula matemática de transferência intergovernamental
despida de qualquer grau de autonomia”. O artigo 165, §9°, II, da CR-88
309
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense. Rio
de Janeiro, 2002. p. 374.
310
Conti. Op.Cit.p.78.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
prevê que cabe à lei complementar “estabelecer normas de gestão financeira
e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a
instituição e funcionamento de fundos”. Por sua vez, a Lei 4.320/64, dispõe
no seu artigo 71 que “Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou
serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”.
O artigo 159, I, da CR-88, com a sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007, dispõe que:
“Art. 159. A União entregará:
I – do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de
qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento
na seguinte forma:
a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação
dos Estados e do Distrito Federal;
b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação
dos Municípios;
c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor
produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de
desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos
recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;
d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano;” (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 55, de 2007)
Objetivando delinear as regras essenciais para a operacionalização desses
dispositivos, o parágrafo único do artigo 161 da CR-88 confere competência
ao Tribunal de Contas da União (TCU) para efetuar o cálculo das quotas
referentes aos fundos previstos nas alíneas a, b e c do inciso I do transcrito
artigo 159.
Nesse contexto, visando a promover o equilíbrio sócio-econômico entre
os Estados e entre os Municípios, a Constituição estabelece, ainda, no inciso
II, do mesmo artigo 161, que cabe à lei complementar fixar normas e critérios de rateio entre as diversas unidades federadas subnacionais dos aludidos
fundos: Fundo de Participação dos Municípios – FPM, do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE, do Fundo Constitucional
de Financiamento do Norte – FNO, do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste – FNE e o Fundo Constitucional de Financiamento do
Centro-Oeste – FCO.
Com fundamento nos supracitados dispositivos constitucionais, e com
base no inciso VI, da Lei nº 8.443 de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Tribunal de Contas da União), no art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 7.827
de 27 de setembro de 1989, nos artigos 88 a 92 da Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), com as alterações introduzidas
pelo Ato Complementar nº 35 de 28 de fevereiro de 1967, e pelo Decreto-lei
nº 1.881 de 27 de agosto de 1981; e nas Leis Complementares nºs 62 de 28
de dezembro de 1989 e 91 de 22 de dezembro de 1997, que fixam normas e
critérios de rateio dos Fundos, o Tribunal de Contas da União (TCU) publica todos os anos os coeficientes destinados ao cálculo das quotas referentes ao
FPE311, FPM, FNO, FNE e FCO de cada unidade federada.
Ocorre, entretanto, que o artigo 2º da mencionada Lei Complementar
nº 62, de 28 de dezembro de 1989, o qual especifica os critérios de rateio do
Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), foi declarado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 23/02/2010 (ADI 875,
1987, 2727 e 3243), tendo sido mantida a sua aplicabilidade, no entanto, até
31/12/2012. De acordo com a decisão do STF, partir dessa data deverá entrar
em vigor uma nova lei complementar que discipline a matéria. A questão está
assim noticiada no sítio do STF312:
O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de todo o artigo 2º da Lei Complementar 62/89, que define os critérios de rateio do Fundo de
Participação dos Estados e do DF (FPE). Ele só terá efeitos até 31 de dezembro
de 2012. A partir dessa data, deverá entrar em vigor uma nova norma sobre o
mesmo assunto.
A Lei Complementar 62/89 foi editada em 1989 em obediência ao artigo
159 da Constituição sobre a repartição das receitas tributárias, mas deveria ter
vigorado apenas nos exercícios fiscais de 1990 e 1992. Após esse ano, a previsão
era de que o censo do IBGE reorientaria a distribuição, mas isso nunca foi feito
e a Lei Complementar continua em vigor com os mesmos coeficientes de rateio
vinte anos depois.
A decisão do Supremo foi provocada por quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizadas pelo Rio Grande do Sul (ADI 875), Mato Grosso
e Goiás (ADI 1987), Mato Grosso (ADI 3243) e Mato Grosso do Sul (ADI
2727). O fundamento das ações é o de que a lei complementar, na época da
edição, teve por base o contexto socioeconômico do Brasil daquele tempo, que
não é necessariamente o mesmo hoje. Além disso, os coeficientes teriam sido
estabelecidos de maneira arbitrária por acordos políticos costurados à época.
Os ministros do STF demonstraram preocupação com o tempo que levará
para que o Congresso Nacional criar nova lei de distribuição do Fundo de Participação dos Estados e do DF, uma vez que a atividade legislativa fica prejudicada
por ser este um ano de eleições. Por isso, a Corte estabeleceu o ano fiscal de 2012
como prazo máximo para a vigência do artigo 2º da lei complementar 62/89.
311
Saliente-se, entretanto, conforme
noticiado na Revista do TCU, ANO 35,
NÚMERO 109, MAIO/AGOSTO 2007,
pg. 113. Disponível em: <http://
www2.tcu.gov.br/portal>. Acesso em
18.05.2008, que: “muitos municípios
não se conformam com o cálculo efetivado pelo tribunal e recorrem ao Poder
Judiciário para o incremento de seus
coeficientes. São ajuizadas ações ordinárias com pedido de tutela antecipada
inaudita altera pars com esse objetivo.
O deferimento dessas tutelas antecipatórias acarreta a alteração do coeficiente do município e repercute no valor a
ser percebido por outros municípios do
interior do mesmo Estado. Quando essa
decisão interlocutória do juízo singular
lhes é desfavorável, há a interposição
de agravo de instrumento perante o Tribunal Regional Federal respectivo, com
pedido liminar de efeito suspensivo, o
denominado efeito suspensivo ativo.
Deferida essa liminar, o resultado é
análogo, ou seja, é alterado o coeficiente de FPM do município. Essas decisões,
em sede de cognição sumária, representam transtorno ao TCU e ao Banco
do Brasil, responsável pela entrega do
montante devido a cada município.
Com o intuito de preservar a competência constitucional do TCU de fixar os
coeficientes de FPM, a Consultoria Jurídica do órgão, alegando grave ofensa à
ordem econômica e jurídica (arts. 4º da
Lei 8.437/1992 e 25 da Lei 8.038/1990)
ajuizou, diretamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), suspensão de liminar contra decisão de desembargador
federal da 4ª Região, que, em agravo de
instrumento, deferira o efeito suspensivo ativo. O vice-presidente (STJ), no
exercício da Presidência, ministro Francisco Peçanha Martins, em 11/6/2007,
acolheu a pretensão do TCU, ou seja,
deferiu o pedido de suspensão da liminar. Dessa forma, o coeficiente de FPM
do município interessado retorna ao
valor fixado pela Decisão Normativa/
TCU nº 79/2006.”
312
Disponível no sítio:<www.stf.jus.
br>. Pesquisa realizada em 29/02/2010.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O julgamento foi unânime apenas em relação à ADI 1987, que na verdade
é uma Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão, no tocante à declaração de que há um vácuo de lei complementar a partir do ano de 1992. Nas
demais ações, o ministro Marco Aurélio foi vencido pela maioria, que julgou as
ações de inconstitucionalidade procedentes.
Relator
O relator das ADIs, ministro Gilmar Mendes votou pela procedência das
ações. Segundo ele, tudo indica que a lei complementar foi editada num contexto de circunstâncias muito especiais, “marcado por um consenso político premido pelo princípio da necessidade”.
O ministro lembrou que naquela época era preciso rever os critérios anteriores não se sabendo quais seriam os mais adequados para um prazo médio de
duração. Como haveria o censo de 1990, a lei foi produzida em 1989 tendo sido
estabelecido o prazo de dois anos para sua aplicação. Seria feita, posteriormente,
a revisão do sistema.
Ele ressaltou que os critérios de rateio dos fundos de participação deveriam
promover o equilíbrio socioeconômico entre estados e municípios. “É evidente, portanto, que o FPE tem esse caráter nitidamente redistributivo, ou seja, a
transferência de um recurso pesa, proporcionalmente mais nas regiões e estados
menos desenvolvidos”, afirmou o relator.
De acordo com ele, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes, “de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão
em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política
empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado”.
Histórico
A ADI 2727 foi ajuizada pelo governo de Mato Grosso do Sul contra os parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 2º da Lei Complementar Federal nº 62/98 e parte da
Decisão Normativa nº 44/01 do Tribunal de Contas da União. Os dispositivos
contestados da Lei Complementar definem a forma de distribuição dos recursos
do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE).
O parágrafo 1º define os coeficientes individuais de participação dos estados e
do DF; o 2º diz que os critérios de rateio em vigor a partir de 1992 serão fixados
em lei específica e o 3º prevê que, até que sejam definidos os critérios do parágrafo
anterior, permanecerão em vigor os fixados nesta Lei Complementar. O ato normativo do TCU é contestado na parte em que aprova e fixa os coeficientes a serem
utilizados no cálculo das quotas para distribuição dos recursos do FPE.
Conforme a ação, a aplicação dos coeficientes da Lei impõe perdas financeiras ao estado no repasse dos recursos do FPE. Afirma que há prejuízo na
distribuição da receita aos programas vinculados, ameaça de que o estado fique
“sem argumentos” contra pedidos de Intervenção Federal pelo não pagamento
de precatórios e risco de atraso no pagamento de vencimentos aos servidores.
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Já ADI 3243 foi proposta pelo governo de Mato Grosso contra a mesma lei
complementar, sob alegação de que o fundo não cumpre sua função social de
promover o equilíbrio sócio-econômico entre as unidades da federação.
De acordo com o estado, a lei contraria o artigo 159, inciso II, da Constituição Federal, que determina a distribuição da arrecadação sobre produtos
industrializados aos estados e ao DF, bem como o artigo 161, inciso II. Esse dispositivo atribui à lei complementar o estabelecimento de normas sobre a entrega
dos recursos e o critério de rateio utilizado pela União.
Na ação, os procuradores do estado ressaltam que os índices de participação
foram fixados arbitrariamente para o exercício de 1990 e se repetiram no período
de 1991 a 1995, “em prejuízo de várias unidades da Federação”.
O governo do Rio Grande do Sul, na ADI 875, também questionou o artigo
2º da Lei Complementar Federal 62/89, ao sustentar ofensa ao princípio da
igualdade assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 5º. O estado ressalta
que a ideia de nacionalidade não convive com o fato de que uma ou outra região
seja menos beneficiada que outra. Sustenta, ainda, o desconhecimento do destino a ser dado aos referidos recursos e, em consequência, frustrando o objetivo
dessas transferências.
Por fim, o quarto processo (ADI 1987) refere-se a uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão ajuizada pelos estados de Mato Grosso e de
Goiás contra a Lei Complementar 62/89, por entenderem que tal norma não
proporcionou critérios de rateio justos e objetivos a fim de efetivar a promoção
do equilíbrio sócio-econômico entre os estado da Federação.
Cabe ressaltar, ainda quanto ao FPE e FPM, que nos termos do artigo 4°
da Lei Complementar n° 62/1989, a União deve creditar às “contas individuais dos Estados e Municípios, dos recursos do Fundo de Participação nos
seguintes prazos máximos: I – recursos arrecadados do primeiro ao décimo
dia de cada mês: até o vigésimo dia; II – recursos arrecadados do décimo
primeiro ao vigésimo dia de cada mês: até o trigésimo dia; III – recursos arrecadados do vigésimo primeiro dia ao final de cada mês: até o décimo dia do
mês subseqüente”. Assim, são mensais os repasses do produto da arrecadação
dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos
industrializados, de que tratam as alíneas a e b do inciso I, no montante de
vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos
Estados e do Distrito Federal e de vinte e dois inteiros e cinco décimos por
cento ao Fundo de Participação dos Municípios.
A parcela de um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios,
disciplinada na alínea d, do inciso I, do art. 159, da CR-88, dispositivo acrescentado pela Emenda Constitucional 55/2007, por sua vez, será entregue
uma vez ao ano no primeiro decêndio do mês de dezembro sem que haja
qualquer vinculação constitucional em relação à sua utilização.
FGV DIREITO RIO
142
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
De fato, até o advento da Emenda Constitucional n° 53/2006, que instituiu o já citado FUNDEB, não havia previsão constitucional de qualquer
contrapartida, vinculação, destinação específica ou finalidade pré-determinada para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios relativamente aos
recursos repassados no âmbito do FPE e FPM, razão pela qual Ezequiel Antonio Ribeiro Balthazar313 apontava que: “esses recursos podem ser utilizados
pelas unidades beneficiárias com quaisquer fins de interesse público, servem
para compor suas receitas e não possuem destinação específica”. Entretanto,
com a inclusão do inciso II ao artigo 60 do ADCT, ficam vinculados à composição financeira do FUNDEB Estadual 20% dos recursos do: (1) ICMS,
IPVA e ITD que cabe aos Estados e do Distrito Federal; (2) da participação
do Estado no imposto que a União vier a instituir no exercício da sua competência residual (art. 154, I); (3) da parcela que pertence aos Municípios no
ITR, no IPVA e no ICMS; e (4) os recursos das “alíneas a e b do inciso I e o
inciso II do caput do art. 159”, isto é, a parcela dos Estados e dos Municípios
relativamente ao IPI proporcional ao valor das suas exportações bem como
das respectivas parcelas no FPE e no FPM, entregues mensalmente.
De forma diversa, um por cento do produto da arrecadação dos impostos
sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, que compõe o FPM de que trata a alínea d, dispositivo acrescentado pela
Emenda Constitucional 55/2007 ao inciso I do artigo 159, a ser entregue
no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano, não é destinado à
composição financeira do FUNDEB, diferentemente da parte do FPM de
que trata a alínea b do inciso I.
Por fim, a alínea c do inciso I do art. 159 da CR-88 estabelece que do
produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer
natureza e sobre produtos industrializados três por cento serão aplicados em
programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste
e Centro-Oeste através de suas instituições financeiras de caráter regional,
de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada
ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à ele na forma
que a lei estabelecer. A Lei nº 7.827/1989 cria o Fundo Constitucional de
Financiamento do Norte – FNO, o Fundo Constitucional de Financiamento
do Nordeste – FNE e o Fundo Constitucional de Financiamento do CentroOeste – FCO e regulamenta a aplicação dos citados três por cento. Desse
montante, 0,6% são para o FNO; 1,8% para o FNE e 0,6% para o FCO. A
norma federal disciplina ainda no artigo 7º que a:
“Art. 7o A Secretaria do Tesouro Nacional liberará ao Ministério da Integração Nacional, nas mesmas datas e, no que couber, segundo a mesma sistemática
adotada na transferência dos recursos dos Fundos de Participação dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, os valores destinados aos Fundos Consti-
313
BALTHAZAR, Ezequiel Antonio Ribeiro. Fundos Constitucionais como Instrumentos de Redução das Desigualdades
Regionais na Federação In: CONTI, José
Maurício (Organizador). Federalismo
Fiscal. Barueri: Manole, 2004. p. 118.
FGV DIREITO RIO
143
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tucionais de Financiamento do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, cabendo
ao Ministério da Integração Nacional, observada essa mesma sistemática, repassar os recursos diretamente em favor das instituições federais de caráter regional
e do Banco do Brasil S.A. (Redação dada pela Lei nº 10.177, de 12.1.2001)
Parágrafo único. O Ministério da Fazenda informará, mensalmente, ao Ministério da Integração Nacional, às respectivas superintendências regionais de
desenvolvimento e aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de
Financiamento a soma da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos
de qualquer natureza e do imposto sobre produtos industrializados, o valor das
liberações efetuadas para cada Fundo, bem como a previsão de datas e valores
das 3 (três) liberações imediatamente subseqüentes.” (Redação dada pela Lei
Complementar nº 125, de 2007)
Nesse contexto, é possível constatar a complexidade do sistema brasileiro
de transferências intergovernamentais, o qual visa à redução das denominadas desigualdades regionais e a promoção do equilíbrio econômico entre
Estados e Municípios (artigo 3º III c/c 161, II, da CR-88).
Outrossim, a compreensão das políticas fiscais adotadas desde 1988 e das
relações internas do Sistema Tributário Nacional, no contexto do federalismo
fiscal brasileiro, pressupõe o correto entendimento do sistema de partilha de
receitas tributárias e de transferência. De fato, após a análise do sistema de repartição dos tributos, verifica-se que as contribuições especiais ou parafiscais,
à exceção da citada CIDE – Combustíveis, não são divididas entre os Estados e Municípios, razão pela qual a União passou a utilizar as mesmas como
instrumento de política arrecadatória314, ao contrário do IPI e do IR, que se
constituíram, em algumas circunstâncias, simples instrumentos para amortizar o impacto de renúncia de receita federal das receitas não repartidas.315
No devir dos fatos, iniciou-se forte movimento no sentido do retorno à
centralização do modelo de tributação do país, o que consubstancia grave
contradição do nosso atual regime federativo vis a vi o sistema idealizado e
estabelecido na Carta Magna de 1988. Nesse sentido, a análise dos números da arrecadação e da participação relativa dos diversos entes federados
no “bolo tributário” reflete o substancial aumento da receita disponível nas
mãos da União como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), apesar
do grande esforço do Constituinte originário em descentralizar as finanças
públicas do país.
Fato que ilustra muito bem a complexidade e correlação entre os temas
pode ser constado no final do ano de 2008, quando a União e diversos Estados, considerando o impacto da crise internacional no sentido de reduzir a
atividade econômica e, conseqüentemente, as principais bases de arrecadação
(faturamento, renda, circulação de mercadorias, industrialização, prestação
de serviços etc) anunciaram pacotes de redução de impostos visando fomen-
314
Alterando, dessa forma, o seu critério
de validação constitucional, que é a “finalidade” ensejadora de sua criação. v.
GRECCO, Marco Aurélio. Contribuições
(uma figura “sui generis”). São Paulo:
Ed Dialética, 2000.
315
Exemplo dessa política, que afronta
o pacto federativo estabelecido na CR88, é a concessão de crédito presumido
do IPI para ressarcir PIS, PASEP e COFINS
contidos nos produtos exportados, nos
termos da Lei nº 9.363/96 e da Lei nº
10.276/01, o que reduz a parcela das
transferências constitucionais destinadas ao FPE, FPM, Fundos Regionais de
Desenvolvimento –FNO, FNE e FCO e o
repasse do IPI-Exportação.
FGV DIREITO RIO
144
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tar ou pelo menos suavizar a queda do ritmo de crescimento. Conforme
noticia do Jornal Valor (página A-2 do dia 18.11.2008) “boa notícia para
as empresas, os pacotes de benefícios fiscais anunciados na semana passada
pela União e por alguns Estados, como Minas Gerais, são uma dor de cabeça
para os prefeitos. A prorrogação do prazo para recolhimento do IPI (federal) e do ICMS (estadual) terá impacto negativo sobre o caixa de dezembro
dos municípios, dificultando o pagamento das despesas, alegam os prefeitos.
Em fim de mandato, muitos governantes municipais temem não conseguir
fechar as contas em cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal. (...) Prefeito de Mariana e presidente da Associação Mineira de Municípios (AMM)
Celso Cotta (PMDB), definiu como ‘temerárias’ as medidas anunciadas a
poucos dias do encerramento da gestão dos atuais prefeitos. Cotta informou
que a entidade já encaminhou carta ao Ministério da Fazenda e à Secretaria
Estadual da Fazenda de Minas Gerais pleiteando mudanças nos prazos dos
benefícios concedidos às empresas. A entidade quer que os benefícios valham
a partir de janeiro, de modo a não comprometer o fechamento das contas
municipais em dezembro”. Já o presidente da Confederação Nacional dos
Municípios comentou: “É sempre assim, União e Estados fazem favor com
chapéu alheio”.
A combinação desses elementos enseja e fomenta os conhecidos conflitos
federativos não apenas no plano vertical (União-Estados, União-Municípios
e Estados-Municípios), mas também no plano horizontal (Estado-Estado e
Município-Município), tendo em vista a competição por maior espaço na
busca pelos investimentos privados, da qual decorre,em muitas circunstâncias, uma verdadeira guerra fiscal predatória que repercute nas relações privadas e, especialmente, naquelas de natureza concorrencial.
FGV DIREITO RIO
145
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 9 – A RECEITA PÚBLICA NO ÂMBITO DA TEORIA GERAL DOS
INGRESSOS PÚBLICOS.
ESTUDO DE CASO316
Leia a seguinte notícia veiculada no sítio do Globo Esporte.com
19/03/10 – 19h53 – Atualizado em 19/03/10 – 19h55 – Obina fala sobre
apreensão de seu carro: ‘Eu estava com pressa’– Atacante do Atlético-MG evita
explicação sobre falta de pagamento do IPVA e diz que regularização do veículo
está em andamento. Marcelo Machado Belo Horizonte. O atacante Obina preferiu não entrar em detalhes sobre o episódio da apreensão de sua picape pela
polícia mineira. Em entrevista coletiva nesta sexta-feira, na Cidade do Galo, ele
disse que a regularização do automóvel já está sendo providenciada.
– Eu estava com pressa, mas não tem nenhum problema. Meu amigo já
está olhando isso, e logo, logo o carro estará comigo novamente – limitou-se a
dizer Obina.
A Hilux do atacante foi apreendida na noite de quinta-feira, no Aeroporto de
Confins, no qual a delegação atleticana desembarcou após retornar de ChapecóSC, onde a equipe perdeu na última quarta-feira por 1 a 0 para o Chapecoense,
pela Copa do Brasil.
O veículo de Obina estava parado em fila dupla e em local proibido. Abordado por um policial, o atacante não apresentou os documentos de 2009 e
2010, mostrando apenas o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo
(CRLV) de 2008.
Dentro do procedimento previsto na legislação do trânsito, a polícia apreendeu a picape do atacante, que foi rebocada e levada ao pátio da prefeitura de
Pedro Leopoldo, Grande Belo Horizonte. O carro só poderá ser retirado do local
após o pagamento das multas e a regularização dos documentos. Estacionar em
local proibido gera uma multa de R$ 191,54 e perda de sete pontos na carteira.
Já a documentação atrasada resulta R$ 53,20 de multa, além de três pontos
na carteira.
Suponha, ainda, que ao estacionar o veículo em área pública o proprietário e condutor do carro tenha errado a manobra e destruído a placa de
sinalização de trânsito existente ao lado da vaga administrada pelo Município, razão pela qual teria sido posteriormente acionado por danos materiais
em função da destruição do bem público municipal. Imagine, ainda, que
antes de chegar ao local houvesse ultrapassado um sinal vermelho, motivo
pelo qual tivesse sido multado pelo servidor público municipal responsável
316
Notícia obtida no sítio: http://
globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Times/Atletico_MG, acesso em
19/03/2010.
FGV DIREITO RIO
146
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
pela fiscalização de trânsito no local. Para resolver todos esses problemas o
proprietário resolveu fazer uma retirada no banco e efetuar o pagamento de
todo o montante devido. Essas situações têm algo em comum? Todas elas
representam receitas públicas? De que espécies e de titularidade de que ente
político? Justifique!
9.1 INTRODUÇÃO, OBJETIVOS E OBJETO DA AULA
Nas aulas anteriores foram examinados os aspectos gerais da matéria, especificado o conceito de atividade financeira do Estado, assim como o que
se entende por necessidades públicas, tendo sido, ainda, abordadas as linhas
gerais da evolução histórica dos tributos e das Finanças Públicas, delineado os
contornos essenciais da distribuição de funções entre os Poderes e bem assim
e os fundamentos do Federalismo Fiscal, das Despesas e do seu Controle, do
Financiamento dos Gastos em geral, do Crédito e da Dívida Pública.
A aula de hoje, dando continuidade ao que já foi apresentado na Aula 6,
visa aprofundar os estudos quanto às diferentes formas de financiamento dos
gastos públicos, merecendo destaque aquelas de natureza tributária.
As receitas públicas em geral, sem as quais não seria possível a realização
das despesas e a efetivação da atividade financeira do Estado, podem ser analisadas e classificadas por variados critérios e perspectivas, destacando-se as
formuladas pela doutrina jurídica, as adotadas em função da visão econômica
ou contábil do fenômeno bem como aquelas definidas pela lei e pelos atos administrativos das autoridades gestoras do orçamento e das finanças públicas,
isto é, do ponto de vista normativo.
A relevância dessas diferentes classificações decorre da necessidade de se
identificar e classificar as entradas de recursos nos cofres públicos em suas
múltiplas particularidades, pois somente assim é possível compreender os
variados e diferentes impactos de cada espécie de receita nas contas públicas,
sob o ponto de vista: (1) patrimonial; (2) financeiro e (3) orçamentário. Ainda, as diversas classificações a serem estudadas permitirão identificar o regime
jurídico a ser aplicado a cada tipo de receita, isto é, se uma espécie específica
deve ser disciplinada pelas normas tributárias, de natureza eminentemente
pública, ou pelas normas cíveis, de natureza privada, o que tem relevância
determinante para definir, por exemplo, os prazos para ajuizamento de ações
de cobrança, a natureza do ato317 adequado para aumentar o seu valor etc.
Nesse sentido, importante destacar a clássica diferenciação entre (1) a entrada, o ingresso e a receita pública, bem como as diferentes classificações de
receita pública oferecidas pela doutrina jurídica e econômica, destacando-se
entre elas a distinção entre (2) receita pública ordinária e extraordinária; e
(3) receita pública originária e derivada. Será ainda objeto de análise a clas-
317
Dependendo do regime jurídico aplicável pode ser necessária a edição de
lei em caráter formal, ato com força de
lei ou simplesmente ato administrativo
editado pela autoridade competente da
Administração Pública.
FGV DIREITO RIO
147
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
sificação econômica de receita pública adotada pela Lei nº 4.320/64318, (4)
receita corrente e de capital, bem como as definições do Manual de Receita
Nacional, de utilização obrigatória pela União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de
2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.
gov.br.
Preliminarmente, no entanto, cumpre destacar que a previsão de receita319
exerce papel fundamental na fixação320 das despesas públicas, conforme analisado na aula sobre o orçamento. No mesmo sentido, a realização efetiva da
receita determina o ritmo da realização dos gastos e da execução da programação financeira, razão pela qual a receita pública possui, também, papel central
na consecução dos demais componentes da atividade financeira do Estado
durante a denominada execução orçamentária. De fato, a sua conexão com o
orçamento se dá pela via da despesa, uma vez que o exercício da competência
tributária e a prerrogativa de arrecadar as receitas não tributárias independem
de autorização anual orçamentária, conforme já estudado na Aula 2.
9.2 AS ENTRADAS, OS INGRESSOS E A RECEITA PÚBLICA
A doutrina diverge quanto aos conceitos de entrada, ingresso e receita
pública, conforme aponta Regis Fernandes de Oliveira321:
Todo e qualquer dinheiro que ingressa nos cofres públicos, seja a que título
for, denomina-se entrada. Alguns autores falam de ingresso (entrada provisória),
distinguindo-o da entrada. Utilizaremos as expressões como sinônimas. Nem
todo ingresso, todavia, constitui receita. Há entradas que ingressam provisoriamente nos cofres públicos podendo permanecer ou não. Destinam-se a ser devolvidas. Daí as entradas provisórias.
A relevância do tema é centrada na possibilidade de enquadramento dos
denominados ingressos de caráter devolutivo como receitas públicas, isto é,
se aquelas entradas não definitivas de recursos nos cofres do Tesouro (para
serem posteriormente restituídas, também chamadas de movimentos de fundos ou de caixa) devem ser – ou não – qualificadas como receitas. Neste rol
de entradas provisórias são incluídos, por exemplo, os depósitos322, as cauções323, os empréstimos compulsórios324 e os empréstimos voluntários contraídos pelo Estado em geral.
O professor Ricardo Lobo Torres325, na esteira de Aliomar Baleeiro326, propõe a diferenciação entre o ingresso e a receita pública, nos seguintes termos:
318
Essa lei estatui normas gerais de
direito financeiro para elaboração e
controle dos orçamentos e balanços da
União, dos Estados, dos Municípios e
do Distrito Federal e continua até hoje
em vigor, isto é, foi recepcionada pela
Constituição da República de 1988.
319
Considerando, por exemplo, que a
crise econômica mundial iniciada nos
Estados Unidos já apresentou impacto
sobre a atividade econômica e a arrecadação da União no final do próprio
exercício de 2008, tendo sido constatado que em novembro de 2008, pela
primeira vez após 4 anos, houve queda
da arrecadação da União em relação ao
exercício de 2007, conforme noticiado
pelo Jornal Valor da sexta-feira e fim
de semana, 12, 13 e 14 de dezembro
de 2008, A10, “a Comissão Mista de
Orçamento do Congresso (CMO), aprovou ontem, a revisão do relatório de
arrecadação do projeto de Orçamento
da União para 2009 (...). Fica referendada, assim, a redução de R$ 15,34
bilhões no volume esperado de
receitas primárias brutas no âmbito
do orçamento fiscal e da seguridade
social (que exclui empresas estatais
não-dependentes do Tesouro Nacional). Em conseqüência disso, cerca
de R$ 10 bilhões do volume que iria
para despesa de custeio e investimento dos órgãos federais terão que
ser cortados pelo relator geral (...)”.
320
Nesse sentido, importante destacar,
conforme noticiado no site do STF que o
“Plenário do Supremo Tribunal Federal
(STF) indeferiu a liminar na Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) 3949
proposta pelo partido Democratas
(DEM). Na ADI, foi questionado o artigo 100, da Lei 11.514/07, que dispõe
sobre as diretrizes para a elaboração e
execução da Lei Orçamentária de 2008.
O DEM afirmava que o artigo 100 da
Lei 11.514/07 concede às instâncias
responsáveis pela elaboração da lei
orçamentária o poder de estimar receita que não tem base na legislação
e, sobretudo, na própria Constituição
Federal. De acordo com a ação, o artigo
atacado autoriza o Executivo e o Legislativo, na elaboração do orçamento
de 2008, considerarem “os efeitos das
propostas de alterações na legislação
tributária e das contribuições, inclusive
quando se tratar de desvinculação de
receitas, que sejam objeto de propostas
de emenda constitucional, de projeto
de lei ou de medida provisória que
esteja em tramitação no Congresso Nacional”. Para o partido político, essa autorização, com base em “esperança no
futuro da legislação”, constitui abuso,
pois a Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e o projeto de lei orçamentária
devem observar necessariamente a
ordem constitucional vigente, “e não
pressupor uma Constituição futura,
hipotética e inexistente”. A controvérsia
FGV DIREITO RIO
148
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Assim sendo, o conceito de receita, embora fundamentalmente baseado no
de ingresso, dela se extrema, pois o ingresso corresponde também à entrada de
dinheiro que ulteriormente será restituído, como ocorre no empréstimo e nos
depósitos. (grifo nosso)
Os eminentes autores, portanto, não qualificam as entradas ou ingressos
provisórios como receitas públicas. Ocorre, entretanto, que a Lei n° 4.320/64
não incorporou a conceituação dessa doutrina, ao estabelecer em seus artigos
3º, 11, §2°, e 57 a inclusão de diversas receitas que não ingressam nos cofres
públicos em caráter definitivo:
Art. 3º A Lei de Orçamentos compreenderá todas as receitas, inclusive as de
operações de crédito autorizadas em lei.
...............
Art.11...............
§2° São Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos da constituição de dívidas; (...).
...............
Art. 57. Ressalvado o disposto no parágrafo único do artigo 3° desta lei serão
classificadas como receita orçamentária, sob as rubricas próprias, todas as receitas arrecadadas, inclusive as provenientes de operações de crédito, ainda que não
previstas no Orçamento.
Na mesma linha, define o 12, §2°, da Lei Complementar n° 101/2000,
a Lei de Responsabilidade Fiscal, dispositivo inserido no Capítulo III – Da
Receita Pública, que “o montante previsto para as receitas de operações de
crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.”. Infere-se desses dispositivos que as normas federais
incluem no conceito de receita pública, também os ingressos de recursos
financeiros decorrentes das operações de crédito327, dentre as quais se destacam os empréstimos públicos voluntários. Ou seja, a lei federal que disciplina as normas gerais de Direito Financeiro em âmbito nacional não adotou
a conceituação da doutrina financista supramencionada, na medida em que
não fixou como requisito necessário à configuração da receita pública a entrada de dinheiro sem que houvesse a respectiva contrapartida no passivo ou
o acréscimo patrimonial do ente beneficiado. De fato, conforme assevera o
professor Kioshi Harada328, apesar de não ter definido expressamente o conceito de receita pública, o exame do artigo 11 e os seus parágrafos da Lei n°
4.320/64, “permite identificá-la como tal todo ingresso de recursos financeiros ao tesouro público, com ou sem contrapartida no passivo e independentemente de aumento patrimonial” (grifo nosso). Na mesma linha estabelece
o mencionado Manual de Receita Nacional que:
existia pois a então vigente CPMF possuía prazo de vigência somente até 31
de dezembro de 2007, razão pela qual
a oposição entendia não ser possível
a inclusão da estimativa de receita da
contribuição no projeto da LOA. De fato,
a contribuição não prorrogada.
321
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso
de Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 101. Nos mesmos termos
do eminente autor, ingresso e entrada
serão aqui utilizados como sinônimos.
322
O depósito do montante integral do
crédito tributário, que permite a discussão administrativa ou judicial quanto
à legitimidade da cobrança do tributo,
é uma das hipóteses de suspensão da
exigibilidade do crédito tributário, matéria a ser estudada nos cursos de Direito Tributário e Finanças Públicas II e III.
323
A Lei 8.666/93, que disciplina as
licitações e os contratos públicos, em
atendimento ao disposto no artigo 37,
XXI, da CR-88, prevê a possibilidade de
a autoridade administrativa exigir do
contratado em processo licitatório a
prestação de garantia, como a caução, o
seguro-garantia e a fiança bancária (art.
56). A caução em dinheiro (alternativamente também pode ser prestada por
título da dívida pública) é garantia que
enseja entrada ou ingresso nos cofres
públicos, mas a quantia deve ser “liberada ou restituída após a execução do
contrato”, “atualizada monetariamente”
(art. 56, §4°, da Lei 8.666/93), ou seja,
adimplido o contrato o valor caucionado
é devolvido ao proponente-adjudicatário e registrado como despesa de
caráter extra-orçamentária (Manual
de Despesa Nacional – item 4.4.2).
Em sentido contrário, se forem inadimplidos os termos do contrato pode ser
aplicada sanção com a decretação da
perda do depósito, momento no qual
haverá receita pública definitiva.
324
Os empréstimos compulsórios,
previstos no artigo 148 da CR-88, são
qualificados como dívidas forçadas, em
contraposição às dívidas voluntárias
contraídas pelo Poder Público, já que
decorrem de obrigação legal, e como
tal foram objeto de exame na Aula 6.
Não são receitas definitivas tendo em
vista que seus valores devem ser restituídos. Os empréstimos compulsórios
também são classificados como tributos pelo Supremo Tribunal Federal (RE
138.284), matéria que será objeto de
exame detalhado no curso de Direito
Tributário e Finanças Públicas II.
325
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed.
atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
2004. p. 183.
326
BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução
à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de
FGV DIREITO RIO
149
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A Lei nº 9.703, de 17 de novembro de 1998 estabelece que os depósitos judiciais e extrajudiciais, em dinheiro, de valores referentes a tributos e contribuições
federais, inclusive seus acessórios serão efetuados na Caixa Econômica Federal
e repassados para a Conta Única do Tesouro Nacional, independentemente de
qualquer formalidade, no mesmo prazo fixado para recolhimento dos tributos
e das contribuições federais. Após o encerramento da lide ou do processo litigioso, o valor do depósito será devolvido ao depositante ou transformado em
pagamento definitivo do tributo ou contribuição. De forma análoga, a Lei nº
10.819, de 16 de dezembro de 2003, estabelece, no âmbito dos municípios, que
os depósitos judiciais, em dinheiro, referentes a tributos e seus acessórios, de
competência dos Municípios, inclusive os inscritos em dívida ativa, serão efetuados, a partir da data da publicação dessa Lei, em instituição financeira oficial
da União ou do Estado a que pertença o Município, mediante a utilização de
instrumento que identifique sua natureza tributária. A citada lei também dispõe
que os municípios poderão instituir fundo de reserva, destinado a garantir a
restituição da parcela dos depósitos que lhes seja repassada. Ao município que
instituir o fundo de reserva será repassada pela instituição financeira a parcela
correspondente a setenta por cento do valor dos depósitos de natureza tributária
nela realizados a partir da vigência da lei. Em virtude da legislação acima citada,
a parte dos depósitos judiciais transferidos ao Tesouro do ente serão registrados como receita orçamentária, já que podem ser utilizados para suportar
despesas orçamentárias329. (grifo nosso).
Nesse cenário, a disciplina normativa da matéria é no sentido de incluir
como receita pública parte dos depósitos judiciais (aqueles já transferidos),
além das operações de crédito, conforme preceitua a Lei n° 4.320/64, apesar
de não corresponderem a hipóteses de entrada que, “integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no
passivo, vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”, conforme
condiciona Aliomar Baleeiro.
A compreensão dessa questão bem como dos diversos conceitos de receita
pública pressupõe o entendimento prévio dos três enfoques distintos já mencionados, pelos quais as entradas de recursos nos cofres do Tesouro podem
ser examinadas e operacionalizadas: (1) o enfoque financeiro, acima aludido
por Kioshi Harada; (2) a perspectiva patrimonial e (3) a visão orçamentária.
Sob o ponto de vista financeiro330, o simples ingresso, consoante já explicitado, ainda que corresponda à receita apenas transitória, seria o suficiente
para a sua configuração e o registro da receita. Já pela perspectiva patrimonial, a receita vincula-se à entrada de recursos que implicam variação positiva
da situação patrimonial líquida, em decorrência de aumento de ativos ou de
diminuição do passivo da entidade. Por fim, a visão orçamentária da receita,
Janeiro: Forense, 2006. p. 126. .Segundo o autor “receita pública é a entrada
que, integrando-se no patrimônio
público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo,
vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”. Assim, estariam
excluídos do conceito de receita para o
eminente autor os simples movimentos
de fundos ou de caixa, assim compreendidos os ingressos que refletissem,
ao mesmo tempo, criação de uma obrigação ou passivo correspondente.
327
As operações de crédito também já
foram examinadas na Aula 6.
328
HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p.32.
329
Complementa o Manual acerca dos
registros contábeis da receita: “Porém,
ao classificar a receita orçamentária
deverá haver um registro de uma
obrigação patrimonial correspondente,
em contrapartida com uma variação
passiva, o que manterá a adequação do
resultado contábil. Com a conversão do
depósito judicial em receita orçamentária ele deixa de se caracterizar como
ingresso extra-orçamentário.”
330
Nesse sentido apontava a 4ª edição
do Manual de Procedimentos das Receitas Públicas, aprovado pela Portaria
Conjunta n° 2, de 8 de Agosto de 2007,
do Secretário do Tesouro Nacional do
Ministério da Fazenda e a da Secretária
de Orçamento Federal do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão:
“Na Administração Pública, o fluxo
econômico é compreendido por dois
conceitos distintos, porém integrados.
O primeiro é o conceito financeiro,
fundamentado na tradição cameralista (gestão financeira) do ingresso de
disponibilidade, na qual se baseou o
orçamento e se estabeleceu o regime
de caixa para a Receita Orçamentária. O
segundo é o conceito patrimonial, fundamentado na tradição patrimonialista, que por muito tempo não vem sendo observado tanto pela Administração
Pública quanto pela contabilidade
pública aplicada ao setor público e que,
com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, vem demandando esforços
para que seja cumprido, necessitando
de uma mudança cultural.” Este Manual foi substituído pelo mencionado
Manual de Receita Nacional aprovado
pela Portaria Conjunta n° 3 , de 14 de
Outubro de 2008.
FGV DIREITO RIO
150
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
segundo a sistemática adotada pela Lei n° 4.320/64, engloba todas as receitas
disponíveis para fazer face às despesas públicas, sendo as mesmas (as receitas)
segmentadas em orçamentárias e não orçamentárias331.
Assim, além das denominadas entradas provisórias, qualificadas ou não
como receita, dependendo do enfoque (financeiro, patrimonial ou orçamentário), bem como da doutrina e da disciplina jurídica aplicável, existem, também, os ingressos definitivos. As entradas definitivas, sempre enquadradas
como receita pública, podem ter diversas origens e classificadas por variados critérios.
9.3 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À ENTIDADE QUE SE APROPRIA DA RECEITA
A receita pode ser pública ou privada. A receita pública é aquela auferida
por entidade pública ao passo que a privada corresponde àquela auferida por
entidade privada.
Nem toda receita pública, entretanto, permanece, para ser utilizada pelo
ente político (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) responsável ou
competente para a sua arrecadação, como ocorre nas hipóteses de transferências, matéria examinada, conforme já salientado, na Aula 7. Nesse sentido, as
receitas são consideradas próprias ou de transferências.
9.4 AS RECEITAS SEGUNDO A SUA REGULARIDADE, FREQÜÊNCIA OU
PERIODICIDADE.
Sob a perspectiva da regularidade ou habitualidade, as receitas classificamse como extraordinária ou ordinária.
A receita ordinária decorre de fontes de riqueza previsíveis e contínuas,
caracterizando-se por constar de forma permanente no orçamento do Estado,
como é o caso de diversas auferidas pela exploração do patrimônio do Estado
assim como pela arrecadação de diversas espécies tributárias, tais como: (1) os
impostos (art. 145, I, da CR-88); (2) taxas (art. 145, II, da CR-88); (3) contribuições de melhoria (art. 145, III, da CR-88); (4) contribuições especiais
(149 e 195 da CR-88) e (5) contribuição de iluminação pública (art.149-A).
A receita extraordinária, por sua vez, como o próprio nome revela, decorre
de circunstâncias esporádicas, excepcionais ou de caráter transitório, como
ocorre, por exemplo, com os empréstimos compulsórios decorrentes de calamidades (art. 148, I, da CR-88) e no caso de investimento público de caráter
urgente e de relevante interesse nacional (art. 148, II, da CR-88), o imposto
extraordinário de guerra (art. 154, II, da CR-88), as doações332, os legados333
e as heranças jacentes334 recebidas pelo Estado.
331
O artigo 103, parágrafo único, da
Lei n° 4.320/64 dispõe: “Os Restos a
Pagar do exercício serão computados
na receita extra-orçamentária para
compensar sua inclusão na despesa
orçamentária”. Essa questão foi objeto
de estudo na aula pertinente ao Orçamento.
332
Vide art. 538 a 564 do Código Civil
333
O legado é a coisa certa deixada
pelo testador a título singular em sucessão causa mortis, ou seja, a posição
jurídica do legatário não se confunde
com aquela do herdeiro, legítimo ou
testamentário, os quais recebem a totalidade dos bens do de cujus ou uma
quota-parte ideal deles, isto é, enquanto o legatário adquire cifra em dinheiro
ou bem individualizado e certo, o herdeiro recebe um conjunto de direitos
e obrigações, incluindo os débitos por
ventura existentes, até o limite e forças
da própria herança. (Código Civil “Art.
1.923. Desde a abertura da sucessão,
pertence ao legatário a coisa certa,
existente no acervo, salvo se o legado
estiver sob condição suspensiva”).
334
Vide artigos 1819 e 1882 do Código
Civil, os quais estabelecem, in verbis: (a)
“Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo
notoriamente conhecido, os bens da
herança, depois de arrecadados, ficarão
sob a guarda e administração de um
curador, até a sua entrega ao sucessor
devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância”; e (b) “Art. 1.822.
A declaração de vacância da herança
não prejudicará os herdeiros que legalmente se habilitarem; mas, decorridos
cinco anos da abertura da sucessão, os
bens arrecadados passarão ao domínio
do Município ou do Distrito Federal, se
localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da
União quando situados em território
federal. Parágrafo único. Não se habilitando até a declaração de vacância,
os colaterais ficarão excluídos da sucessão” (grifo nosso). Nesse sentido, a
herança jacente, uma vez declarada a
sua vacância e transcorridos 5 (cinco)
anos sem que herdeiros se habilitem,
enquadra-se como receita pública.
FGV DIREITO RIO
151
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Cumpre salientar que, ao contrário da perspectiva eminentemente financeira em sentido estrito, sob o ponto de vista patrimonial, compõem as receitas públicas as doações, os legados e as heranças jacentes transmitidas ao Estado, em dinheiro ou em bens. Nesse sentido aponta Regis Fernandes335 que “a
doação é receita originária de bens ou valores que ingressam no patrimônio
público”. Essa questão é exemplificada no Manual de Receitas Públicas nos
seguintes termos:
Receita independente da execução orçamentária – são fatos que resultam em
aumento do patrimônio líquido, que ocorrem independentemente da execução
orçamentária. Exemplos: inscrição em dívida ativa, incorporação de bens (doação), etc.
Importante destacar, ainda, que não se deve confundir essas receitas públicas, assim enquadradas sob o enfoque patrimonial, decorrente da incorporação de bens por força de doações, legados e heranças jacentes, com as
receitas provenientes da exploração dos bens dominiais já pertencentes ao
próprio Estado, matéria a ser examinada no tópico subseqüente, intitulado
As Receitas segundo a sua origem patrimonial, as quais podem ser originárias
ou derivadas.
9.5 AS RECEITAS SEGUNDO A SUA ORIGEM PATRIMONIAL.
Aliomar Baleeiro336 designa como “alemã” a classificação por meio da qual
a receita é categorizada de acordo com a origem do patrimônio do qual deriva, que pode ser público ou privado.
Aquela decorrente da exploração do patrimônio (bens e serviços) do próprio Estado é denominada receita originária, haja vista que a perspectiva sob
a qual se analisa a receita pública é a do ente beneficiário dos ingressos. Essa
receita é também designada como receita de economia privada, tendo em
vista que o Estado, nos mesmos termos do particular, explora os seus bens e
as suas empresas para auferir receita, sem se valer de seu poder soberano ou
qualquer meio coercitivo para exigir o pagamento pela utilização dos seus
serviços ou do seu patrimônio. Nesse sentido, é receita (A) voluntária ou não
coativa, pois decorre primariamente da manifestação de vontade do particular; (B) pactuada de forma bilateral337, pois o particular aceita e anui com os
termos em que se efetiva a relação e o pagamento pela utilização dos bens e
serviços estatais, daí ser também denominada de (C) patrimonial. Embora
até hoje importante, essa modalidade de receita perdeu relevância após o advento do denominado Estado Fiscal, época em que passaram a preponderar
as receitas tributárias, de natureza cogente.
335
OLIVEIRA, Op. Cit., p.111.
336
BALEEIRO, Op. Cit., p.127.
337
Regis Fernandes Oliveira ressalta que
nas receitas originárias encontram-se
os “interessados em nível horizontal de
interesses, apenas ocorrendo relação
entre eles caso haja bilateralidadede
intenções. Não falamos em contrato,
porque nem sempre haverá comutatividade de obrigações. Mas em bilateralidade pode-se falar, uma vez que os
comportamentos são confluentes para
a formação de um vínculo” (grifo nosso). Cf. OLIVEIRA, Op. Cit., p.109.
FGV DIREITO RIO
152
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
As receitas originárias ou patrimoniais, caracterizadas por expressar uma
relação de direito privado, compreendem, de acordo com a doutrina de Ricardo Lobo Torres338:
a. os ingressos comerciais, os quais decorrem da exploração da economia pelo Estado, por meio de suas empresas, em regime de monopólio ou não (ex: as sociedades de economia mista em geral, os
correios e telégrafos, as casas lotéricas, etc.);
b. os preços públicos, também denominados de tarifa, que são ingressos não-tributários devidos como contraprestação pelo benefício
recebido, e
c. as compensações financeiras, as quais compreendem os royalties e
as participações especiais (artigo 20, § 1º, da CR-88).
A Receita derivada, por outro lado, representada pelos tributos e pelas
multas aplicadas e exigidas do particular – em função do descumprimento de
norma de natureza tributária ou não: ex: multas de trânsito, multas administrativas em geral e também aquelas aplicadas em função do descumprimento
de obrigação tributária etc,-, tem como características centrais: (A) decorrem
do patrimônio privado e (B) são coercitivamente obtidas. Regis Fernandes339
aponta que se incluem no conjunto das receitas derivadas “a cobrança de
sanções e também o perdimento decorrente de contrabando, apreensão de
armas de criminosos etc.”
Pelo exposto acerca das receitas derivadas, obtidas de forma coercitiva,
conclui-se que os particulares têm que dispor de parcela do seu patrimônio
para fazer face à atividade financeira do Estado. A origem e o fundamento
desse poder, se decorre da soberania do próprio Estado ou se nasce delimitado no espaço aberto pelos direitos humanos fundamentais, serão examinados
na Aula 11 – O Poder de Tributar, a Competência Tributária e a Capacidade
Tributária Ativa.
9.6 AS RECEITAS SOB O ENFOQUE ORÇAMENTÁRIO
O orçamento, conforme já destacado na Aula 1, é um importante instrumento de planejamento de qualquer entidade, seja pública ou privada, e
consubstancia a previsão do conjunto: (1) de receitas orçamentárias; e (2) de
aplicação e gastos de recursos em determinado intervalo de tempo.
Diversas são as classificações dos ingressos e das receitas sob o ponto de
vista orçamentário.
A receita orçamentária quanto às entidades destinatárias do orçamento
pode ser classificada como Receita Orçamentária Pública, na hipótese em que
338
TORRES, Op. Cit, p. 186 a 191.
339
OLIVEIRA, Op. Cit., p.111.
FGV DIREITO RIO
153
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
for executada por entidades públicas, ou Receita Orçamentária Privada, no
caso em que executada por entidades privadas e que consta na previsão orçamentária aprovada por ato de conselho superior ou outros procedimentos
internos necessário à sua consecução.
Na seara pública representa todas as entradas disponíveis para a cobertura
das despesas orçamentárias e de operações que, mesmo não havendo ingresso
de recursos, financiam despesas orçamentárias, isto é, aquelas previstas no
orçamento desde a sua aprovação.
Relativamente ao orçamento a que se vinculam, as receitas podem ser classificadas como do orçamento fiscal340 ou do orçamento da seguridade social341. As receitas que compõem o orçamento fiscal compreendem principalmente as receitas dos impostos, de contribuições de intervenção no domínio
econômico e as outras receitas não vinculadas à seguridade social (que são
fundamentalmente aquelas contribuições securitárias definidas nos incisos
do artigo 195 da CR-88). De fato, o financiamento da segurança social, que
compreende a saúde, a assistência e a previdência (art. 194 da CR-88), é realizado, além das contribuições discriminadas nos incisos do artigo 195, pelos
demais recursos orçamentários disponibilizados pelo ente político. Destaquese que aquelas receitas securitárias previstas no inciso I, alínea “a”, incidente
sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, e no inciso II,
cobrada do trabalhador e demais segurados da previdência social, ambos do
citado artigo 195, não podem ser utilizadas para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência, consoante
determinação do inciso XI do artigo 167 da CR-88. Já no caso dos impostos,
o princípio geral é que não podem ser vinculados a órgão, fundo ou despesa.
De fato, a Carta Magna de 1988, em seu artigo 167, IV, com a sua redação
conferida pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, veda a vinculação de receita dos impostos a órgão, fundo ou despesa, mas prevê exceções,
entre outras, relativamente:
1) à repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os artigos 158 e 159, matéria detalhadamente examinada na
aula sobre as Transferências constitucionais e as repartição de receitas tributárias (Aula 7);
2) à destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde,
para manutenção e desenvolvimento do ensino, consoante o disposto nos artigos 198, § 2º, e 212, matéria também abordada na
Aula 7;
3) para a realização de atividades da administração tributária, como
determinado pelo artigo 37, XXII;
340
Vide art. 165, §5°, I da CR-88.
341
Vide art. 165, §5°, III da CR-88.
FGV DIREITO RIO
154
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
4) à prestação de garantias às operações de crédito por antecipação
de receita, previstas no art. 165, § 8º, matéria já estudada na aula
pertinente ao Crédito e a Dívida Pública (Aula 6);
5) às receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts.
155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I,
a e b, e II, para a prestação de garantia ou contra-garantia à União e
para pagamento de débitos, matéria também já analisada na Aula 6.
Assim, a regra geral é a vedação de vinculação de receita dos impostos, havendo, no entanto, diversas exceções constitucionalmente fixadas, conforme
será detalhado abaixo. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal,
tendo em vista a inexistência de previsão na Constitucional Federal, procedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Governador do
Estado de Santa Catarina, ADI 1759/SC342, para declarar a inconstitucionalidade do inciso V do § 3º do art. 120 da Constituição daquele Estado, com
a redação dada pela Emenda Constitucional 14/97 estadual, que destinava
10% da receita corrente daquela unidade federada, por dotação orçamentária
específica, aos programas de desenvolvimento da agricultura, pecuária e abastecimento.
Segundo o Manual de Receita Nacional o ingresso é gênero, podendo
ser (1) orçamentário ou (2) extra-orçamentário. Apenas os ingressos orçamentários qualificam-se como receita. Já os ingressos extra-orçamentários
são enquadrados como recursos de terceiros, em contrapartida com as obrigações correspondentes. Na medida em que o recurso se desqualifica como
recurso de terceiro convola-se em receita orçamentária. Exemplo concreto
dessa classificação é a hipótese já mencionada em que tenha havido depósito
judicial e o Poder Judiciário decide favoravelmente ao Estado. Nesse caso, o
depósito judicial é convertido em renda e passa a ser qualificado como receita
orçamentária, descaracterizando-se, a partir desse momento, como ingresso
extra-orçamentário.
Já o artigo 11 da Lei nº 4.320/64 classifica a receita orçamentária em duas
categorias econômicas: receitas correntes e receitas de capital. Essa segmentação, conforme ensinam José Teixeira Machado e Heraldo Costa Reis343:
“visa possibilitar uma perfeita identificação da origem dos recursos financeiros,
bem como estabelecer coerência entre as rubricas utilizadas nos orçamentos públicos e nas contas nacionais, permanecendo, no entanto, a dicotomia básica inicial:
operações correntes e operações de capital, como se vê no esquema seguinte:
• Operações Correntes
1.Receitas Correntes
3. Despesas Correntes
• Operações de Capital
2. Receita de Capital
4. Despesa de Capital”
342
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 1.759-MC. Rel.
Min. Gilmar Mendes Julgamento em
14.04.2010. Unanimidade. Brasília.
Disponível em: <http://www.stf.gov.
br>. Acesso em 15.05.2010. Precedentes citados: ADI 103/RO (DJU de 8.9.95);
ADI 1848/RO (DJU de 25.10.2002); ADI
1750 MC/DF (DJU de 14.6.2002).
343
MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS,
Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade
Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM,
2002/2003. p.21.
FGV DIREITO RIO
155
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Nesses termos, as receitas correntes seriam aqueles recursos disponíveis ao
ente político federado: (1) de natureza tributária e (2) provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas, de direito público ou privado,
destinados a atender as denominadas despesas correntes, qualificadas como
aquelas destinadas ao funcionamento e manutenção dos serviços públicos,
prestados direta ou indiretamente pela Administração, e que não geram qualquer aumento do patrimônio público, conforme já examinado na Aula 6. Por
outro lado, as receitas de capital seriam aquelas disponibilidades provenientes
de constituição de dívidas e de recursos financeiros, também recebidos de
outras pessoas de direito público ou privado, destinados a cobrir as despesas
classificáveis como despesa de capital, inclusive as outras receitas de capital.
Saliente-se, entretanto, que não há correspondência absoluta344 entre (1)
as receitas e despesas correntes, de um lado, nem entre (2) as receitas e as despesas de capital, de outro. De fato, o saldo positivo em conta corrente, isto
é, a diferença a maior das receitas em relação às despesas correntes em determinado período, constitui a poupança do governo, e serve para financiar as
denominadas despesas de capital, conforme já examinado. As operações de
crédito (empréstimos contraídos e outras operações de contração de dívidas,
etc.), por outro lado, não se prestam a financiar exclusivamente as despesas
de capital, conforme se extrai da parte final do artigo 167, III, da CR-88,
que prevê exceções mediante créditos suplementares e especiais de finalidade
precisa e aprovados por maioria absoluta.
Já os parágrafos do citado artigo 11 da Lei n° 4.320/64 estabelecem
que são:
• Receitas Correntes:
A) as receitas tributárias;
B) de contribuições345;
C) patrimonial;
D) agropecuária;
E) industrial;
F) de serviços e outras e, ainda,
G) as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender
despesas classificáveis em Despesas Correntes.
• Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos:
A) de constituição de dívidas;
B) da conversão, em espécie, de bens e direitos;
C) os recursos recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, destinados a atender despesas classificáveis em Despesas
de Capital e, ainda,
D) o superávit do Orçamento Corrente.
344
REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006.
p.153. “Note-se que não existe (nem
deve existir) uma associação perfeita
entre receitas e despesas correntes
e despesas de capital. Na verdade, o
saldo em conta corrente, ou seja, a diferença entre receitas e despesas correntes, que constitui a poupança do governo, é uma das fontes de financiamento
das despesas de capital. Por outro lado,
operações de crédito não se restringem,
obrigatoriamente, ao financiamento de
despesas da mesma categoria”.
345
Apesar da separação das receitas
tributárias em relação às contribuições
pela Lei n° 4.320/64 e em que pese a
literalidade do artigo 145 da CR-88,
o Supremo Tribunal Federal, especialmente no RE 138.284-8, RE 146.733 e
ADC-1/DF, adotou a tese qüinqüipartide dos tributos, para definir que são
cinco as espécies tributárias no atual
sistema constitucional brasileiro: (1) os
impostos (artigo 145, I, da CR-88); (2)
as taxas (artigo 145, II, da CR-88); (3) as
contribuições de melhoria (artigo 145,
III, da CR-88); (4) os empréstimos compulsórios (artigo 148 da CR-88) e (5) as
contribuições especiais (artigo 149 da
CR-88), sendo estas últimas subdivididas em três grupos: (5.1) sociais; (5.2)
de intervenção no domínio econômico
e (5.4) de interesse das categorias profissionais e econômicas. As contribuições sociais, por sua vez, desdobram-se
em: (5.1.1) sociais gerais; (5.1.2) de
seguridade social e (5.1.3) outras de
seguridade social. Ressalte-se que após
essas decisões do STF foi introduzido o
artigo 149-A estabelecendo a competência dos Municípios para instituírem
as denominadas Contribuições de Iluminação Pública.
FGV DIREITO RIO
156
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Segundo o Manual de Receita Nacional a receita sob o enfoque orçamentário pode também ser classificada como efetiva ou não efetiva, em função
do seu impacto sobre o patrimônio. Dessa forma, vincula-se a perspectiva
orçamentária e patrimonial da receita. A questão está assim descrita:
“Receita Orçamentária Efetiva – aquela que, no momento do seu reconhecimento, aumenta a situação líquida patrimonial da entidade. Constitui fato
contábil modificativo aumentativo.
Receita Orçamentária Não-Efetiva – aquela que não altera a situação líquida
patrimonial no momento do seu reconhecimento, constituindo fato contábil
permutativo. Neste caso, além da receita orçamentária, registra-se concomitantemente conta de variação passiva para anular o efeito dessa receita sobre o patrimônio líquido da entidade.”
9.7 OUTRAS CLASSIFICAÇÕES DAS RECEITAS PÚBLICAS
Edwin Seligman, economista norte-americano, classificou as espécies de
receita de acordo com a preponderância do interesse envolvido na atividade a
suscitar a cobrança, isto é, se há maior ou menor interesse público ou privado. Dessa forma, a receita pública seria categorizada como:
1) preços quase-privados: quando a atividade financeira do Estado a
ensejar a cobrança seja de interesse exclusivamente privado, havendo interesse público acidental e tão somente pelo fato de a atividade
estar sendo desenvolvida pelo Estado;
2) preços públicos: tem vantagem particular inferior ao do preços quase-privados mas ainda assim predomina o interesse particular, apesar de a exploração da atividade possuir algum interesse público,;
3) taxa: decorre de atividade em que o interesse público é preponderante e o interesse particular é mensurável para cada indivíduo;
4) contribuição de melhoria: algum tipo de vantagem para um indivíduo ou conjunto de pessoas, mas o interesse público também prepondera como na taxa; e
5) impostos: ainda que possa haver eventual ou acidental vantagem para
o particular, o interesse e consideração é exclusivamente público.
Já o italiano Luigi Einaudi, suprimindo as taxas, que inclui entre os preços
públicos e acrescendo a categoria dos “preços políticos”, conforme alerta Luiz
Emygdio346, classifica as receitas públicas de acordo com fixação do valor a
ser exigido, o que tem como parâmetro e referência as diversas possibilidades
por meio das quais se realizam e satisfazem as necessidades públicas. Dessa
346
ROSA Jr., Luiz Emygdio F. da. Manual
de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2001. p.56.
FGV DIREITO RIO
157
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
forma, as receitas seriam categorizadas com base nos valores exigidos, os quais
se alteram em função:
1) das leis de mercado, o que os classificaria como preços quase-privados;
2) da impossibilidade ou inviabilidade de serem prestados pelo particular, o que enseja a cobrança de valor mais baixo do que aqueles de
economia privada,
3) qualificado como preço público;
4) da insuficiência de sua remuneração para o custeio dos serviços que
ensejam a sua cobrança, designados como preços políticos; e
5) da vantagem obtida pelo particular proprietário de bens imóveis em
compensação à execução de obra pública, qualificada com contribuição;
6) de elementos estranhos a qualquer atividade estatal específica, isto
é, não há qualquer contraprestação estatal para servir de parâmetro,
classificados como impostos.
Luiz Emygdio347 aponta as seguintes diferenças entre as classificações de
Seligman e de Einaudi:
“a) enquanto Seligman baseia sua classificação no conflito entre o interesse
público e o interesse privado, que está presente em toda a atividade financeira
desempenhada pelo Estado, Einaudi leva em conta os diversos processos pelos quais se providenciam as satisfações das necessidades públicas; adota, ainda,
como um dos critérios nucleares para a sua classificação o custo do serviço público, que quando é inteiramente coberto pela receita, esta se denominará preço
público, mas quando a receita for insuficiente para cobrir tal custo a mesma
corresponderá a preço político, sendo a diferença coberta pelo imposto;
b) a utilização de vocábulos diferentes – taxa para Seligman e preço político
para Einaudi, para caracterizar a receita pública auferida pelo Estado do exercício
exclusivo de determinada atividade, visando o Estado prestar à coletividade um
serviço público por um preço inferior ao que seria cobrado pela empresa privada.”
Apesar de autores como Regis Fernandes apontarem no sentido do abandono de “qualquer estudo sobre as classificações de E.R Sligman, de Gastón
Jèze e de Einaudi, uma vez que nada acrescentam de útil na apreciação do
fenômeno jurídico financeiro”, Aliomar Baleeiro348 procurou conciliar a denominada classificação “alemã”, que subdivide as receitas em originárias e
derivadas, com aquelas categorizações de Seligman e Einaudi, e construiu o
seguinte quadro, intitulado Classificação dos ingressos públicos:
347
ROSA Jr., Luiz Emygdio F. da. Manual
de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2001. p.56.
348
BALEEIRO, Op. Cit., p.131.
FGV DIREITO RIO
158
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
1º) MOVIMENTOS
de fundos ou de
Caixa
a) Empréstimos ao Tesouro;
b) Restituição de Empréstimo do Tesouro;
c) Cauções, fianças, depósitos, indenizações de direito civil etc.
a) a título gratuito
- doações puras e simples;
- bens vacantes, prescrição
aquisitiva etc.
b) a título oneroso
- doações e legados sob condição;
- preços quase-privados;
- preços públicos;
- preços políticos
a) tributos
- taxas;
- contribuições de melhoria;
- impostos;
- contribuições parafiscais
I. Originárias, ou de Economia Privada, ou de Direito
privado, ou Voluntárias
2º) RECEITAS
II. Derivadas, de Economia
Pública de Direito Público
ou Coativas
b) multas, penalidades e confisco;
c) reparações de guerra
9.8 PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS
A receita tributária, que tem sido a principal fonte de recursos públicos,
pode ser classificada de acordo com múltiplos critérios, destacando-se entre
eles as distinções quanto:
(1) ao ente político competente para instituir o tributo específico, estabelecer a disciplina jurídica, cobrar, fiscalizar e decidir o contencioso administrativo e judicial349;
(2) à tríplice função350 que o tributo pode exercer: (2.1) a função fiscal,
segundo a qual a sua instituição visa à arrecadação para fazer face à
atividade financeira do Estado; (2.2) a função parafiscal, cuja designação, apesar de controvertida no campo doutrinário, denota a
cobrança e a utilização de alguns tributos por entidades paraestatais
de natureza privada ou pública, com personalidade jurídica própria, que, ao exercerem as suas tarefas ao lado da administração direta, ampliam o alcance das múltipas atividades de interesse público
e a efetividade da intervenção do Estado na ordem social; e (2.3) a
função extrafiscal de algumas espécies tributárias, de acordo com a
qual prepondera a sua utilização como instrumento de intervenção
no domínio econômico ou social, direcionando-os à redistribuição
de renda e riqueza ou à indução de comportamento das pessoas (na-
349
Essa questão será examinada na
Aula 11, quando serão apresentadas as
distinções entre o denominado Poder
de Tributar, a Competência Tributária e
a Capacidade Tributária Ativa.
350
A Parafiscalidade e a Extrafiscalidade
serão objeto de duas aulas específicas,
após o exame do sistema constitucional
de discriminação de rendas e de repartição de competências e bem assim dos
três substratos econômicos de incidência de tributos.
FGV DIREITO RIO
159
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
turais ou jurídicas), estimulando ou desestimulando o consumo de
determinados bens e serviços, a poupança ou o investimento e etc;
(3) ao substrato ou base econômica de incidência do tributo, podendo
ser a renda, o patrimônio ou o consumo, matéria a ser examinada
na Aula13;
(4) à possibilidade de transferência do ônus ou do encargo financeiro
do tributo a terceira pessoa, questão que também será analisada na
Aula 13;
(5) ao regime jurídico aplicável ao produto da arrecadação tributária,
podendo assumir três modelos distintos: (a) no primeiro, somente
há liberdade do ente político para determinar o destino do produto
da arrecadação a cada exercício financeiro, no bojo do processo orçamentário, sendo vedada pela Constituição a prévia vinculação da
receita do tributo a uma despesa específica pelo legislador ordinário, o que afastaria a possibilidade de alterações futuras do destino
dos recursos arrecadados de acordo com as mutantes condições econômicas e as decisões políticas durante cada ciclo orçamentário; (b)
no segundo conjunto, ocorre a sua vinculação constitucional, ou
seja, o constituinte determina que a receita deve ser necessariamente utilizada em uma dotação de despesa orçamentária específica,
não havendo qualquer margem para a sua alteração a cada exercício
financeiro durante a elaboração do orçamento; e (c) aqueles tributos em que não há vinculação constitucional obrigatória em relação
ao produto da arrecadação, mas o legislador infraconstitucional, ao
instituir o tributo ou discipliná-lo posteriormente, possui margem
de liberdade para fixar e vincular em lei o destino da receita, o que
deve ser observado durante a elaboração e a execução das peças orçamentárias. Portanto, esta classificação diz respeito à discricionariedade que o ente político possui para decidir o destino dos recursos arrecadados com os tributos. Nessa perspectiva, os tributos são
geralmente subdivididos em dois grupos: (a) aqueles de arrecadação
não vinculada pela Constituição (podendo haver nesse grupo duas
modalidades distintas: (a.1) aqueles que a Constituição veda expressamente a vinculação da arrecadação, não deixando margem ao
legislador ordinário; e (a.2) aqueles em que o constituinte é silente
quanto à possibilidade de o legislador infraconstitucional vincular
ou não a receita tributária a uma despesa específica) e (b) os tributos
cuja receita deve ser necessariamente aplicada, exclusivamente, em
determinada atividade ou finalidade específica, não sendo possível a
sua alteração no plano infraconstitucional. A explicitação de exemplos concretos facilitará a compreensão do exposto. O imposto é o
exemplo típico do chamado tributo de receita não vinculada, em
FGV DIREITO RIO
160
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
que é constitucionalmente vedada, como regra geral, a destinação
de sua receita para órgão, fundo ou despesa. Portanto, o imposto
é espécie de tributo que deve ter a sua utilização ou a destinação de
sua receita livremente determinada no bojo do processo orçamentário. De fato, ressalvadas as exeções fixadas no próprio inciso IV
do artigo 167 da CR-88, conforme já destacado, quando do exame
da receita pública de acordo com o orçamento a que se vincula, a
regra geral é que as receitas dos impostos não podem ser previamente vinculadas. Como regra geral, as receitas arrecadadas com
a exigência das contribuições de melhoria e de taxas351 também
não são vinculadas, inexistindo, entretanto, diferentemente dos impostos, vedação constitucional para que o legislador ordinário, ao
instituir essas duas exações, vincule o produto de suas arrecadações
para serem utilizadas emdespesas específicas. Em sentido diverso,
são constitucionalmente vinculadas as receitas dos empréstimos
compulsórios, tendo em vista o disposto no parágrafo único do
artigo 148 da CR-88 (“A aplicação dos recursos provenientes de
empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição”). Nessa mesma linha, de associação e conexão
entre a instituição e arrecadação do tributo e o gasto relacionado à
causa que justifica aexigência da exação, as receitas das contribuições de seguridade social352 são vinculadas às despesas coma própria seguridade social, podendo ser destinados aos dispêndios com
a saúde, a assistência ou a previdência social. Nos termos já salientados, algumas espécies de exações securitárias possuem grau ainda
mais específico de vinculação, como ocorre, por exemplo, com as
receitas decorrentes das contribuições previstas no inciso I, alínea
“a”, incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do
trabalho, e no inciso II, cobrada do trabalhador e demais segurados
da previdência social, ambos do já citado artigo 195 da CR-88, que
não podem ser utilizadas para a realização de despesas distintas do
pagamento de benefícios do regime geral de previdência, consoante determinação do inciso XI do artigo 167 da CR-88, espécie
do gênero seguridade social. As contribuições sociais gerais, apesar
de não se vincularem ao financiamento da Seguridade Social, têm
os seus recursos arrecadados também vinculados, como é o caso
do salário educação (art. 212, §5º, da CR-88) e etc.. No mesmo
passo, os recursos arrecadados com a contribuição de intervenção
sobre o domínio econômico relativa às atividades de importação
ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus
derivados e álcool combustível de que trata o artigo 177, §4º, da
CR-88 (CIDE petróleo) devem ser necessariamente destinados: (1)
351
Nesse sentido, a lei do ente político
que cria uma taxa, como regra geral,
pode ou não vincular o produto de sua
arrecadação a uma destinação específica. No entanto, conforme será examinado detalhadamente na aula 11, o STF
considera as custas e os emolumentos
judiciais de que trata o §2º do artigo
98 da CR-88 como espécie de taxas.
Dessa forma, considerando que a própria
Constituição determina que “as custas
e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços
afetos às atividades específicas da
Justiça”, trata-se de espécie tributária
na modalidade de taxa cuja receita é
vinculada, ao contrário da regra geral.
352
Algumas contribuições sociais de
caráter geral também possuem vinculação específica do produto de sua
arrecadação, apesar de não servirem
ao financiamento da seguridade social,
como é o caso do fundo de garantia por
tempo de serviço (FGTS), o qual tem
natureza tributária de acordo com o STF.
FGV DIREITO RIO
161
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; (2) ao
financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria
do petróleo e do gás; ou (3) ao financiamento de programas de
infra-estrutura de transportes;
(6) às características da hipótese de incidência353 a ensejar a instituição,
cobrança e arrecadação do tributo, isto é, diz respeito aos elementos
e contornos dos atos, fatos, negócios e situações jurídicas e bem
assim aos eventos e situações de fato eleitas pelo constituinte para
fundamentar a instituição do tributo pelo legislador infraconstitucional. Nessa perspectiva as hipóteses de incidência podem se referir
a duas espécies de tributos: (a) aqueles cujo fato gerador independe
de qualquer atuação estatal específica para fundamentar a exação,
como é o caso dos impostos, que são exigidos sem haver qualquer
ação estatal pressuposta; e (b) os tributos cuja hipótese de incidência vincula-se a uma atividade estatal determinada, isto é, a exação
pressupõe uma atuação contraprestacional do ente político, como é
o caso das taxas, a exigir o exercício do poder de políciaa ou a prestação de serviço público específico e divisível ou a sua colocação à
disposição do contribuinte. Na mesma linha, a cobrança da contribuição melhoria também pressupõe uma atuação estatal específica,
ou seja, depende da realização de obra pública da qual decorra valorização imobiliária. Já as denominadas contribuições especiais de
que trata o art. 149 da CR-88 (sociais, de intervenção no domínio
econômico ou de interesse das categorias profissionais ou econômicas) podem ou não ter as respectivas hipóteses de incidência vinculadas diretamente a uma ação estatal prévia. Por outro lado, essas
contribuições interventivas deveriam ter sempre como pressuposto
subjacente o alcance de determinados fins na ordem econômica ou
social, não havendo justificativa de natureza constitucional para a
sua adoção apenas com objetivos arrecadatórios para fazer face aos
gastos gerais ou para a produção de superávits fiscais;
(7) às espécies tributárias existentes. Apesar da separação das receitas
tributárias em relação às contribuições pela Lei n° 4.320/64 e em
que pese a literalidade do artigo 145 da CR-88 e do artigo 5º do
CTN, o SupremoTribunal Federal, especialmente no RE 138.2848, RE 146.733 e ADC-1/DF, adotou a tese qüinqüipartide dos tributos, para definir que são cinco as espécies tributárias no atual
sistema constitucional brasileiro conforme será examinado ao longo
do curso:
(1) os impostos (artigo 145, I, da CR-88);
(2) as taxas (artigo 145, II, da CR-88);
353
A estrutura jurídica da norma de
incidência tributária será examinada e
detalhada a partir da aula 14.
FGV DIREITO RIO
162
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(3) as contribuições de melhoria (artigo 145, III, da CR-88);
(4) os empréstimos compulsórios (artigo 148 da CR-88) e
(5) as contribuições especiais (artigo 149 da CR-88), sendo essas subdivididas
em três grupos:
(5.1) sociais as quais se desdobram, por sua vez, em: (5.1.1) sociais
gerais; (5.1.2) de seguridade social e (5.1.3) outras de seguridade
social. As contribuições de seguridade social listadas nos incisos
do artigo 195 e aquelas criadas pela União com fundamento no
§4º do mesmo artigo tem por objetivo o financiamento da Saúde, Assistência e Previdência Social. Por outro lado, as denominadas contribuições sociais gerais (5.1.1) são destinadas a custear a atuação do Estado em outras áreas sóciais. São exemplos
de contribuição social geral o salário-educação (art. 212, § 5º,
da CF/88), as contribuições destinadas às entidades privadas de
serviços sociais autônomos e de formação profissional, vinculadas ao sistema sindical (SESC, SENAI, SENAC, SEBRAE),
conforme preconiza o artigo 240 da Constituição, etc.
(5.2) de intervenção no domínio econômico (CIDE), que tem
como exemplo constitucionalmente previsto a denominada
CIDE petróleo e combustíveis de que trata o art. 177, §4º, da
CR-88, além daquelas criadas por meio de lei com fundamento
no art. 149 da CR-88; e
(5.4) de interesse das categorias profissionais e econômicas.
Ressalte-se que após essas decisões do STF foi introduzido o artigo 149-A
à Constituição, estabelecendo a competência dos Municípios para instituírem as denominadas Contribuições de Iluminação Pública, razão pela qual
na atualidade seriam 6 espécies tributárias de acordo com a jurisprudência
do tribunal.
9.9 A RECEITA PÚBLICA E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
A Lei Complementar 101/2000, comumente denominada de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), tendo em vista estabelecer normas de finanças
públicas voltadas para a responsabilidade e transparência na gestão fiscal, prevê que “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal
a instituição, previsão e efetiva arrecadação354 de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação” (art. 11). Dessa forma, não adotar
as medidas necessárias à arrecadação das receitas tributárias cuja competência
tenha sido constitucionalmente conferida ao ente político (União, Estados,
354
Há violação a este dispositivo da LRF
caso a Constituição confira competência tributária a determinado ente político e o mesmo não institua e arrecade
o tributo? Examine o artigo 153, VII, da
CR88! Importante mencionar, entretanto, que a Constituição, conforme será
examinado no momento oportuno,
não cria o tributo, apenas confere competência tributária ao ente federado,
razão pela qual a norma constitucional
tem como destinatário primário o Poder legislativo do ente político!
FGV DIREITO RIO
163
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Distrito Federal e Município) consubstanciaria a primeira vista omissão passível de responsabilização de acordo com a LRF. No mesmo sentido, o artigo
14 da lei complementar estabelece que:
a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da
qual decorra renúncia de receita355 deverá estar acompanhada de estimativa do
impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e
nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo
menos uma das seguintes condições:
I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará
as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de
alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
De fato, é a própria Constituição que estabelece em seu artigo 165, §
6º, que o “projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo
regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções,
anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária
e creditícia”.
Esses dispositivos normativos foram inspirados e adotaram o que o especialista em finanças públicas americano Stanley Surrey356 denominou de
“tax expenditure”, ao equiparar o incentivo fiscal implementado pela via da
receita ao gasto fiscal, isto é, passou a qualificar e registrar os benefícios fiscais
(renúncia de receita) como despesas públicas, o que eleva o grau de transparência da política fiscal realizada com os recursos públicos.
9.10 A CRONOLOGIA DAS ETAPAS DA RECEITA PÚBLICA ORÇAMENTÁRIA
O Manual de Receita Nacional subdivide a gestão da receita orçamentária
em 3 etapas: (1) o planejamento; (2) a execução e (3) o controle e avaliação.
O planejamento engloba a previsão da arrecadação da receita orçamentária constante da Lei Orçamentária Anual – LOA, o que varia de acordo
com a espécie e o tipo de receita. A estimativa é resultante de metodologias
estatísticas e econômicas de projeção usualmente adotadas, considerando, em
geral, as séries históricas de arrecadação, as possíveis mudanças da legislação
tributária e o provável cenário econômico futuro (inflação projetada, taxa de
câmbio, crescimento do produto interno bruto esperado etc.) observadas,
355
O §1º do artigo 14 estabelece o
conceito de renúncia de receita para os
efeitos da LRF nos seguintes termos: “A
renúncia compreende anistia, remissão,
subsídio, crédito presumido, concessão
de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base
de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e
outros benefícios que correspondam a
tratamento diferenciado”.
356
SURREY, Stanley. Tax Expenditures. Cambridge: Harvard University
Press, 1985.
FGV DIREITO RIO
164
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ainda, as limitações e condições normativas fixadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF357, o que será examinado no tópico seguinte. Conforme já
salientado na Aula 3, a projeção das receitas é essencial para a determinação
das despesas, pois é com base na arrecadação estimada que as despesas são
fixadas na Lei Orçamentária Anual. Ademais, a estimativa de receita também
é fundamental para a execução do orçamento, nos termos já estudados na
Aula 3. De fato, pode haver impacto sobre a determinação das necessidades
de financiamento do Governo de outras fontes, como a emissão de títulos
públicos ou contração de empréstimos etc., de acordo com o desempenho
da receita efetivamente arrecadada vis a vis o que fora projetado. No mesmo
sentido, a estimativa de receita contraposta ao que for de fato arrecadado
impacta diretamente a possibilidade de concessão de créditos suplementares
e especiais por excesso de arrecadação, matéria também abordada nas aulas
sobre o Orçamento (Aulas 3 e 4).
A execução da receita orçamentária, por sua vez, consoante a Lei nº
4.320/1964 e o Manual de Receita Nacional, compreende três estágios: (1) o
lançamento, (2) a arrecadação e (3) o recolhimento.
O lançamento para constituir o crédito tributário, no entanto, se encontra disciplinado no Código Tributário Nacional (artigos 142 seguintes da Lei
nº 5.172/66), e compreende a realização de todos os atos preparatórios ao
pagamento do tributo, tais como a verificação da ocorrência do fato gerador
da obrigação tributária, a determinação da matéria tributável, o cálculo do
montante devido, podendo englobar, também, a necessidade de identificação
do sujeito passivo quando o lançamento, em função das características do
tributo, for realizado pela própria administração tributária ou, ainda, quando
for o caso, a aplicação da penalidade cabível (o denominado lançamento de
ofício). Os aspectos gerais desse tema – o lançamento e as diferentes fases do
crédito tributário – serão examinados na segunda parte da Aula 15 e o seu
estudo detalhado efetivar-se-á nos próximos semestres (Direito Tributário e
Finanças Públicas II e III). Por outro lado, a constituição do crédito das outras receitas orçamentárias não tributárias, de natureza contratual e que possuem regime jurídico próprio e tratamento operacional específico, dependem
tanto da espécie como do que consta nos pactos firmados pelos particulares
com o Poder Público. Assim, por exemplo, a receita auferida pelo Estado
em contrato de locação com o particular ou, ainda, as participações e compensações financeiras de tratam o artigo 20, § 1º, da CR-88, em função do
resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para
fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais, são regidas
e disciplinadas nos termos dos atos, contratos e demais princípios de direito
privado bem como da Administração, tendo em vista o inafastável interesse
público envolvido.
357
O artigo 12 da Lei Complementar
101/2000 estabelece que: “As previsões
de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das
alterações na legislação, da variação
do índice de preços, do crescimento
econômico ou de qualquer outro fator
relevante e serão acompanhadas de
demonstrativo de sua evolução nos
últimos três anos, da projeção para os
dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e
premissas utilizadas”.
FGV DIREITO RIO
165
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Já a arrecadação, que também abrange as receitas tributárias e não tributárias, sob o ponto de vista das Finanças Públicas do Estado, representa,
conforme disciplina o Manual da Receita Nacional, a “entrega realizada pelos
contribuintes ou devedores, aos agentes arrecadadores ou bancos autorizados
pelo ente, dos recursos devidos ao Tesouro”. Cumpre destacar, no entanto,
que sob a perspectiva tributária, tecnicamente, o pagamento é uma das formas de extinção do crédito, nos termos do artigo 156, I, do CTN, e deve
ser efetivado juridicamente358 pelo sujeito passivo da obrigação tributária,
conceito que compreende, de acordo como o parágrafo único do artigo 121
do CTN, tanto o contribuinte como o responsável, matéria a ser examinada
ao longo do curso.
O recolhimento, por sua vez, definido pelo Manual como o terceiro estágio da execução da receita, é “a transferência dos valores arrecadados à conta
específica do Tesouro, responsável pela administração e controle da arrecadação e programação financeira, observando-se o Princípio da Unidade de Caixa, representado pelo controle centralizado dos recursos arrecadados em cada
ente”. A unidade de tesouraria, isto é, o recolhimento de todas as receitas públicas de forma centralizada está prevista no artigo 56 da Lei n° 4.320/64359 e
é usualmente denominado de Caixa Único.
Por fim, a última etapa da gestão da receita orçamentária é o controle e
avaliação, a qual, segundo o Manual de Receita Nacional:
“compreende a fiscalização realizada pela própria administração, pelos órgãos
de controle e pela sociedade. O controle do desempenho da arrecadação deve ser
realizado em consonância com a previsão da receita, destacando as providências
adotadas no âmbito da fiscalização das receitas e combate à sonegação, as ações
de recuperação de créditos nas instâncias administrativa e judicial, bem como
as demais medidas para incremento das receitas tributárias e de contribuições.”
O Manual apresenta esquema didático sobre as diversas etapas da receita
nos seguintes termos:
358
O sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa que possui vínculo jurídico com o sujeito ativo da relação (o
Estado lato sensu), e pode ser - ou não
- a mesma pessoa que arca ou suporta
com o encargo financeiro do tributo,
matéria que será examinada na aula
pertinente à capacidade contributiva,
momento em que serão apresentados, também, os diferentes substratos
econômicos de incidência de tributos,
bem como examinado o fenômeno da
repercussão, por meio do qual o sujeito
passivo da relação jurídica pode- ou
não - transferir o ônus do tributo para
outra pessoa, que possua - ou não - relação jurídico-tributária com a Fazenda
Pública.
359
Dispões o art. 56, verbis: “ O recolhimento de todas as receitas far-se-á em
estrita observância ao princípio da unidade de tesouraria, vedada qualquer
fragmentação para criação de caixas
especiais.”
FGV DIREITO RIO
166
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 10 – O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE DA EXECUÇÃO
ORÇAMENTÁRIA.
ESTUDO DE CASO (MANDADO DE SEGURANÇA Nº 24.312-1/DF – STF)
Irresignado com o ato praticado pelo Tribunal de Contas da União Federal
(TCU), o qual havia determinado ser de sua competência a fiscalização da
aplicação dos recursos recebidos a título de royalties e participações especiais
decorrentes da extração de petróleo e gás natural pelos Estados e Municípios, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) impetrou
Mandado de Segurança para afastar a aplicabilidade da norma federal e evitar
a usurpação do que alega ser de sua competência. Considerando o disposto
no artigo 20, § 1º e artigo 71, VI, da CRFB-88, você como juiz concederia
a segurança? Justifique (Mandado de Segurança nº 24.312-1/DF, Tribunal
Pleno do STF).
OS CONTROLES
A Administração Pública, compreendida em sua dúplice face, direta e indireta, está sujeita ao controle interno e externo. O interno, “é o controle
exercido por órgãos da própria Administração, isto é, integrantes do aparelho do Poder Executivo”, preleciona Celso Antonio Bandeira de Mello.360
Na realidade, o controle interno é inerente à gestão da coisa pública, sendo,
portanto, poder-dever de todos os órgãos da Administração Publica, sejam
do Executivo, Legislativo ou do Judiciário, no tocante à sua própria estrutura
funcional e operacional.
O controle externo, a seu turno, é realizado por órgãos exógenos, ou seja,
aqueles que atuam fora da esfera controlada.
A expressão controle encontra sua origem remota no latim fiscal medieval,
como ensina Eduardo Lobo Botelho Gualazzi361, e “indica o exemplar do catálogo (dos contribuintes, dos censos, dos foros anuais) com base em que se
verifica a operação do exator”. O dicionário Houaiss362 da língua portuguesa,
por exemplo, discrimina uma série de significados para o termo controle, o
qual pode representar: “monitoração; fiscalização ou exame minucioso de
normas, fatos, ou situações; dispositivo ou mecanismo interno destinado a
comandar; painel; domínio da própria vontade; função que estabelece o curso de operações e sistemas, etc.”
De fato, a denominação controle tem significado multívoco, ou seja, evoca
mais de um sentido semântico. No Direito Administrativo, o termo controle
adquire um conceito jurídico, conforme propõe o administrativista clássico
360
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito Administrativo. 17ª
ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 827.
361
GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho.
Regime Jurídico dos Tribunais de
Contas. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1992. p. 20-23.
FGV DIREITO RIO
167
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Hely Lopes Meirelles:363 “controle, em tema de Administração Pública, é a
faculdade de vigilância, orientação e correção de um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro”.
O controle dos atos da Administração Pública pode se dar em quatro âmbitos: político-legislativo, administrativo, jurisdicional e social.
Na presente aula buscar-se-á delinear os aspectos que norteiam o controle
político-legislativo, sem descuidar, obviamente, de mencionar, ainda que de
forma sucinta, a relevância dos controles administrativo, judicial e social.
Com relação ao controle social, cabe, de pronto, ressaltar que a Constituição de 1988 e alguns diplomas normativos infraconstitucionais consagram
instrumentos que viabilizam a participação da sociedade no desenvolvimento
do processo democrático de gestão da coisa pública: é a concretização no
“mundo da vida”364 dos fundamentos da forma republicana de governo (art.
2º do ADCT) e da democracia participativa.365
Nesse sentido, observa-se que os cidadãos e as associações também podem
provocar o controle do Poder Público quando se depararem com situações
caracterizadoras de abuso de autoridade, por força do art. 5º, inciso XXXIV,
da Carta Magna, e da Lei 4.898/65, que disciplina o direito de representação
e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nas hipóteses
de abuso de autoridade. O indivíduo ainda pode fazer uso da ação popular
com vistas a tutelar qualquer ato lesivo ao patrimônio e a moralidade pública, com base no art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição, e na Lei 4.717/65,
bem como denunciar irregularidades ao Tribunal de Contas, amparado na
norma constitucional insculpida no art. 74, § 2º.366 No tocante ao acesso à
Corte de Contas, as associações, igualmente, podem denunciar ilegalidades,
assim como ajuizar ação civil pública, com o objetivo de defender, dentre
outras causas, o meio ambiente, a ordem econômica e a economia popular,
nos termos do art. 1º c/c art. 5º da Lei 7.347/85. Cumpre lembrar também
a possibilidade de qualquer pessoa, natural ou jurídica, comunicar à autoridade competente fato caracterizador de improbidade, consoante disciplina o
art. 14 da Lei 8.429/92.
Na opinião de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes367, o controle social talvez
seja o mais importante dos sistemas, uma vez que permite a participação de
todo o corpo social na manutenção e reconstrução contínua do Estado, aliás,
nada mais natural se entendermos, assim como John Locke368, que a razão
precípua da existência deste Ente é a de estruturar e proteger a esfera dos direitos humanos fundamentais.
Objetivando alcançar esses objetivos, foi editada a Lei Complementar
nº 131/2009, a qual alterou diversos dispositivos da Lei Complementar nº
101/2000 e incluiu, entre outros, o art. 73-A, para dispor expressamente que
“qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente
362
DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS
2.O.
363
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo,
Destro Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Editora
Malheiros, 2001. p. 624.
364
A expressão “mundo da vida” empregada no texto, com inspiração em Jürgen Habermas, tem o sentido de “fatos
reais da vida”. Ver HABERMAS, Jürgen.
Pensamento Pós-Metafísico: Estudos
Filosóficos. 2. ed. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora
Tempo Brasileiro, 2002. p. 88- 100.
365
Hely Lopes Meirelles menciona como
manifestação do controle social, que
ele denomina de “controle externo popular”, a disposição prevista no art. 31,
§ 3o, da CR/88, segundo a qual poderão
os contribuintes examinar as contas do
município em que são domiciliados, no
período de 60 dias, podendo questionar
a legalidade e a legitimidade das mesmas. In: MEIRELLES. Op. Cit. p. 626.
366
Cabe destacar, ainda, a contribuição
do indivíduo no processo de elaboração
e de discussão das leis orçamentárias,
tendo por fundamento o princípio
da transparência, consagrado no art.
48, par. único, da Lei Complementar
101/2000 ( LRF ).
367
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby.
Tribunais de Contas do Brasil. Jurisdição e Competência. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005. p. 50-52.
Aponta o autor que o sistema social
se subdivide em interno e externo. “o
interno, constituído pelo conjunto de
ações adotadas pela sociedade para
mentalizar nos indivíduos as normas,
os valores e os objetivos da ordem
social, é enfatizado pela comunidade
durante a fase da socialização primária (...). (...), no externo, os meios (
sanções, punições e ações reativas)
são empregados contra os indivíduos,
cujo comportamento não guarda uniformidade com as norma dos sistema
dominante”.
368
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos.
Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo
da Costa. 3ªed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2001. p. 156 et seq. Para Locke,
os homens necessitavam de leis para
disciplinar suas condutas e de juizes imparciais para dirimir possíveis conflitos.
FGV DIREITO RIO
168
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas” na
LRF. A mesma lei complementar também incluiu incisos ao parágrafo único
do artigo 48 e acrescentou o artigo 48-A, com o fulcro de reforçar a concretização do ideal de transparência fiscal, entre outras formas, por meio da liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real,
de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira,
em meios eletrônicos de acesso público. Foi conferido, para tanto, o prazo de
um ano para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
com mais de 100.000 (cem mil) habitantes disponibilizassem por meio da
internet acesso a informações referentes às despesa e receitas públicas. Nesse
sentido, deve a população ser cientificada de todos os atos praticados pelas
unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua
realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado,
à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso,
ao procedimento licitatório realizado. Por outro, lado, no que se refere às
receitas públicas, também deve ser dada ampla divulgação ao lançamento e
o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a
recursos extraordinários. Para garantir o cumprimento dessa determinação a
Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro – SEFAZ-RJ, por exemplo, consolidou em um site as informações exigidas, tornando-a acessível no
endereço http://www.fazenda.rj.gov.br/portal/instituicao/tesouro.portal.
I. Controle Político lato sensu
Segundo o administrativista José dos Santos Carvalho Filho369, o controle
político tem como ratio subjacente a harmonia entre os “Poderes estruturais
da República”, consubstanciando o princípio de freios e contrapesos (checks and balances), aplicado nos Estados Unidos e ínsito a visão de Montesquieu370, que já no século XVIII defendia a tese da existência de mecanismos
hábeis a controlar as ações de um Poder sobre o outro, a fim de se evitar
qualquer intervenção abusiva.
O poder político no Brasil é exercido, conforme a normativa constitucional
de 1988, pelos três poderes371 do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Desta forma, à guisa de exemplo, constata-se o controle do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, quando aquele exerce seu poder de veto sobre os
projetos de lei oriundos deste, nos termos do art. 66, § 1o, da CR/88. Quanto
ao Poder Judiciário, é possível visualizar a ingerência do Poder Executivo nas
nomeações dos integrantes dos Tribunais Superiores, como ocorre com a nomeação dos Ministros do STF.
O Poder Legislativo, a seu turno, controla o Poder Executivo quando, por
exemplo, com base no art. 167, V e VI, da CR/88, exerce a competência de autori-
369
CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de Direito Administrativo.
17ª ed. rev. e ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. p.
807-961.
370
MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois, I.
Éditions. Gallimard, 1995. p. 328-329.
371
Cabe realçar a doutrina de Vitor Rolf
Laubé, para quem o “poder” é uno e
inerente ao Estado, ou seja, o que existe
na realidade é uma distribuição de funções de acordo com a competência de
cada órgão. In: LAUBÉ,Vitor Rolf. Considerações acerca da conformação constitucional do Tribunal de Contas. Revista
de Informação Legislativa. Brasília.
29, 113, jan./mar. 1992, p. 308-309.
FGV DIREITO RIO
169
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
zar a abertura de créditos suplementares ou especiais, bem como o remanejamento
de recursos de um determinado segmento para outro, controlando as finanças e o
orçamento do Poder Judiciário, com fulcro no art. 70 da Carta de 1988.
Por fim, o Poder Judiciário exerce o controle político sobre os outros poderes, por
meio do controle da legalidade, legitimidade e constitucionalidade dos seus atos.
Ressalte-se que, como muito bem pontua José dos Santos Carvalho Filho372, as hipóteses de exercício do Poder de Controle, por parte dos três
poderes mencionados, tem como principal objetivo “a preservação e o equilíbrio das instituições democráticas”.
II. Controle Administrativo
O controle administrativo, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro373,
consubstancia “o poder de fiscalização e correção que a Administração Pública (em sentido amplo) exerce sobre sua própria atuação, sob os aspectos
de legalidade e mérito, por iniciativa própria ou mediante provocação”, e
biparte-se em interno e externo.
O interno, conforme já mencionado alhures, diz respeito ao controle exercido pela Administração sobre os seus próprios órgãos, tendo como corolário
o poder de autotutela.374 Nesse sentido, a Constituição prevê diversos instrumentos à verificação da legalidade e legitimidade dos atos praticados pela
Administração, inclusive, mas não exclusivamente375, por meio dos órgãos de
consultoria e assessoramento jurídico internos, como é o caso, por exemplo,
da Advocacia-Geral da União (art. 131 da CR-88), das Procuradorias das
Casas Legislativas estaduais etc. No que se refere especificamente ao controle
interno da matéria financeira, orçamentária e patrimonial, o artigo 74 da
Constituição prevê:
Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma
integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades
da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;
III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como
dos direitos e haveres da União;
IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
§ 1º – Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de
qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas
da União, sob pena de responsabilidade solidária.”
372
CARVALHO FILHO. Op. Cit. p. 807.
373
Direito Administrativo. 16ª ed. São
Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 600-608.
374
O STF esposa o entendimento segundo o qual a Administração pode anular
seus próprios atos quando eivados de
vícios de ilegalidade, consoante se
constata nas súmulas 346 e 473.
375
O Controle Interno é amplamente
realizado por cada servidor público e,
em especial, pelo sistema de auditoria.
FGV DIREITO RIO
170
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Exemplo de controle interno híbrido ou atípico, criado pela Emenda
Constitucional nº 45/2004, é exercido pelo Conselho Nacional de Justiça. O
CNJ, apesar de ser órgão do Poder Judiciário, a teor do artigo 92 da CR-88,
com a sua redação conferida pela citada emenda, possui alguns integrantes
não vinculados do Poder Judiciário, como é o caso dos dois representantes da
Ordem dos Advogados do Brasil e dos dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro
pelo Senado Federal, sem mencionar os membros do Ministério Público da
União e dos Estados (artigo 103-B, XI, XII e XIII). A Constituição, no §4º
do mesmo artigo 103-B, confere ao CNJ as seguintes atribuições:
Art. 103-B (...)
...............
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes,
cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto
da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua
competência, ou recomendar providências;
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos
do Poder Judiciário, podendo desconstituílos, revê-los ou fixar prazo para que se
adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo
da competência do Tribunal de Contas da União;
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder
Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores
de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou
oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais,
podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo
de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;
V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de
juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças
prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o
qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser
remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
FGV DIREITO RIO
171
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A mesma Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou §2º ao artigo
130-A, o qual estabeleceu, entre outras, competência ao Conselho Nacional
do Ministério Público para realizar “o controle da atuação administrativa e
financeira” do Ministério Público.
Por sua vez, o controle exercido sobre a denominada Administração Indireta, a qual compreende entidades dotadas de personalidade jurídica própria,
distinta do ente político376 a que se vincula, é externo, também denominado
de tutela ou de supervisão ministerial.377 Saliente-se, no entanto, que, malgrado ser comumente denominado de externo, esse controle se dá no âmbito
do próprio Poder Executivo (Controle Administrativo externo), razão pela
qual não deve ser confundido com o controle externo exercido pelo Poder
Legislativo (Controle Legislativo ou Parlamentar), com o auxílio do Tribunal
de Contas, conforme será explicitado adiante.
O controle administrativo pode ser, ainda, qualificado como preventivo
ou repressivo, nesse sentido ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto:378
“o controle administrativo preventivo é o exercitado antes de o ato ser praticado, ou mesmo durante sua prática, para que sejam evitados defeitos de legalidade ou de mérito. (...), por exemplo, em procedimentos preparatórios, como
os licitatórios (...). O controle administrativo repressivo é o que se emprega para
reconduzir a ação administrativa à legalidade e à legitimidade (...).”
Vale, ainda, destacar alguns instrumentos idôneos para realização do
controle administrativo, tais como: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, a,
CR/88); reclamação referente à prestação de serviços públicos (art. 37, § 3º,
I, da CR/88); e os recursos administrativos (art. 5º, LV, da CR/88).
É importante frisar que a relação de cooperação sistêmica entre o controle
interno da Administração e o controle externo exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, é essencial para a eficiência da aplicação dos recursos públicos e da realização das atividades afetas ao interesse
público realizadas pelo Estado.
Do referido sistema de ajuda mútua poderiam exsurgir aspectos positivos,
conforme pontua Adhemar Paladini Ghisi:379
1) redução do escopo de trabalhos do controle externo, como decorrência da verificação de efetividade dos exames levados a termo pelo
controle interno;
2) fornecimento, por parte do controle interno, de informações vitais
para o melhor conhecimento dos setores a serem auditados. Por
esse motivo, uma das funções do controle externo é aferir o grau de
confiabilidade dos trabalhos realizados pelo controle interno;
3) eliminação da duplicidade de esforços, na medida do possível.
376
Vide nota de rodapé inicial da aula 8.
377
No âmbito federal esse tipo de
controle é denominado de supervisão
ministerial, por força do Decreto-Lei
200/67.
378
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.
Curso de Direito Administrativo. 12ª
ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2002. p.556-561.
379
GHISI 1999 apud FERNANDES, 2005.
Op. Cit. p.53.
FGV DIREITO RIO
172
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Parece, no entanto, que, na realidade concreta, o ideal de cooperação entre os sistemas de controle, traçado pelo mencionado autor, ainda requer
um longo caminho de conscientização por parte das próprias instituições
públicas. Nesse sentido, Renato Jorge Brown Ribeiro380, ao analisar estudo
realizado pelo próprio Tribunal de Contas, aponta que, dentre as opiniões colhidas no âmbito do controle interno, está a constatação de que não há efetiva
“troca substancial de informações, nem um trabalho efetivamente sistêmico
entre o Controle Interno e Externo”.
III. Controle Legislativo ou Parlamentar:381
O controle legislativo divide-se em político e financeiro382, sendo exercido
diretamente pelo Poder Legislativo ou com o auxílio do Tribunal de Contas:
trata-se de um controle externo à estrutura do órgão fiscalizado.
A Carta de 1988 aumentou significativamente o rol de atribuições do Poder Legislativo no que concerne ao controle dos atos do Poder Público, aqui
englobadas a Administração Direta (entes da federação) e a Administração
Indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista, etc), nos termos do art. 49, inciso X. Também incumbe ao Parlamento
(Câmara e Senado conjuntamente) o julgamento das contas do Presidente da
República, ex vi do art. 49, inciso IX, e a fiscalização financeira e orçamentária da União, com o auxílio do Tribunal de Contas, consoante o disposto
nos arts. 70 e 71, todos do mencionado diploma constitucional. O artigo 70
dispõe verbis:
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto
à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia
de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo e
pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98:
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros,
bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta,
assuma obrigações de natureza pecuniária. (grifo nosso)
Nesse contexto, Odete Medauar383 professa que esse tipo de controle sobre
a Administração Pública encontra eco em todos os regimes de governo no
ocidente, malgrado “se registra descrença genérica quanto à eficácia e mesmo
operacionalização da fiscalização parlamentar”, ou seja, a despeito de se des-
380
RIBEIRO, Renato Jorge Brown. Controle externo da Administração Pública federal no Brasil: o Tribunal de
Contas da União – uma análise jurídico-administrativa. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2002, p.95-100.
381
MOREIRA NETO. Op. Cit. p.562. O
autor adota tal terminologia e aponta
como a principal característica deste
controle a legitimidade, uma vez que
decorre do poder de fiscalização dos
representantes eleitos pelo povo.
382
GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério
Pacheco. Improbidade Administrativa. 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Editora Lúmen Júris, 2006. p.138-140.
Prelecionam os autores que, enquanto
o controle político “visa à fiscalização
de atos relacionados à função administrativa e à própria organização dos
Poderes Executivo e Judiciário, o controle financeiro, a seu turno, “é exercido
pelo Legislativo sobre todos os Poderes,
inclusive sobre os atos que praticar,
com o necessário auxílio do Tribunal
de Contas, importando na realização
do controle externo da administração
pública”. Conforme se depreende do
art. 70 da CR/88, o controle financeiro,
em sentido lato, abrange “a fiscalização
contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”das entidades da
Administração Direta e Indireta.
383
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8ª ed. rev. e atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 459-464.
FGV DIREITO RIO
173
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tacar a importância da atividade controladora do Poder Legislativo, a mesma
ainda não encontrou seu grau ideal de efetividade.
Como é cediço, cada um dos Poderes do Estado exerce uma função precípua, e no caso do Poder Legislativo384 é a de legislar. Porém, o espectro de sua
atuação é bem mais amplo, uma vez que, por força de imperativos constitucionais, o referido Poder também exerce o controle externo sobre os Poderes
Executivo e Judiciário, o que se apresenta como uma decorrência natural do
regime democrático representativo. Nesse sentido merecem relevo as palavras
de José Roberto de Paiva Martins:385
A missão primitiva dos Parlamentos que, como se sabe, teve início no que
hoje chamamos Inglaterra, não foi legislar. Na Inglaterra, os Parlamentorum
eram porta-vozes das reclamações dos cidadãos junto ao Soberano. Levavamlhe as aspirações do povo sobre as necessidades públicas e, em especial, sobre
os excessos de imposição tributária. Como levavam tais pleitos sob a forma de
projetos, que eram sancionados (ou não) pelo Soberano, a prática foi adquirindo foros de atividade específica, dando origem à atividade parlamentar tal qual,
mutatis mutandis, a conhecemos hoje (...).
Interessante observar, consoante à contribuição do mencionado estudioso,
que o controle social já era, na fase primária do parlamento, o elemento propulsor do controle parlamentar.
No Brasil, o controle parlamentar vem, cuidadosamente, esmiuçado na
Constituição, e, no tocante à fiscalização orçamentária e financeira, podese destacar a sua competência, por meio de comissão mista permanente de
senadores e deputados, para emitir pareceres acerca de programas nacionais,
regionais e setoriais, além de fiscalizar e acompanhar o cumprimento do orçamento, ex vi do art. 166, § 1o, da CR/88.
III. 1. Tribunal de Contas: poder-dever de fiscalizar, controlar e julgar as contas públicas.
A Carta de 1988 incumbe ao Tribunal de Contas a função de auxiliar o
Poder Legislativo, para tanto consagra um rol de atribuições inerentes ao seu
papel no quadro social e político do Estado. Também disciplinam a competência das Cortes de Contas, as Constituições estaduais e a normativa infraconstitucional.386
Cumpre, de pronto, destacar que a natureza jurídica das atribuições da
Corte de Contas bem como a sua posição institucional são questões controvertidas. Pode-se dizer que há, basicamente, duas correntes.
De um lado há aqueles, como os clássicos Pontes de Miranda e Rui Barbosa, que sustentam ser a Corte de Contas um Tribunal sui generis e independente387, ou seja, não vinculado a qualquer um dos Poderes.388 Na con-
384
Ensina Manoel Gonçalves Ferreira
Filho que: “tradicionalmente o Legislativo é o poder financeiro. De fato, às
câmaras, ditas legislativas, por tradição
ou data do medievo, compete autorizar
a cobrança de tributos, consentir nos
gastos públicos, tomar contas dos que
usam do patrimônio geral. Na verdade,
o poder financeiro das câmaras é historicamente anterior ao exercício, por
elas, da função legislativa”. In: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de
Direito Constitucional. 18ª ed., 1980, p.
138, apud MEDAUAR, Odete. Controle
da Administração Pública pelo Tribunal
de Contas. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.27, 108, out./dez.
1990, p. 101.
385
MARTINS 1995 apud FERNANDES,
2005. Op. Cit. p. 100-101.
386
Apenas à guisa de ilustração cabe
destacar: a Lei 9.452/97, que disciplina
a possibilidade de as Câmaras Municipais representarem ao TCU quando não
forem notificadas da liberação de recursos federais; a Lei 11.494/07, a qual
regula o FUNDEB, outorga às Cortes de
Contas o poder-dever de fiscalizar a
aplicação das verbas e o cumprimento
da norma inserta no art. 212 da CR/88;
a Lei 8.666/93, que trata de licitações e
contratos, prevê o direito de representação ao Tribunal de Contas, na hipótese de existência de irregularidades
nos procedimentos nela previstos; a Lei
8.730/93 permite a análise da evolução
patrimonial por parte das Cortes de
Contas; a Lei Complementar 101/00,
denominada lei de responsabilidade
fiscal, atribui ao Tribunal de Contas a
tarefa de fiscalizar a eficiência da gestão fiscal.
387
FERNANDES. Op. Cit. p. 140-153.
388
Nesse sentido, ver MEDAUAR, Odete.
Controle da Administração Pública.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 140-142, e STJ. RO em MS
nº 12.580, relator Min. José Arnaldo da
Fonseca. Brasília, 15.02.2001. Diário de
Justiça, DF, 02.04.2001, seção 1.
FGV DIREITO RIO
174
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
temporaneidade, tem-se, por exemplo, Roberto Rosas e Jorge Ulisses Jacoby
Fernandes que também defendem a independência dos Tribunais de Contas,
cujas funções adotam ora natureza administrativa, ora de jurisdição (anômala), neste último caso quando, em decorrência de imperativo constitucional,
consubstanciado no art. 71, inciso II, devem julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos.
Em linha de pensamento um pouco diversa, a outra corrente, encabeçada
por Maria Sylvia Zanella Di Pietro389 e Hely Lopes Meirelles390, afirma que
as Cortes de Contas não exercem atividade jurisdicional; conforme pontua o
mencionado administrativista, as atividades dos Tribunais de Contas brasileiros compreendem “funções técnicas opinativas, verificadoras, assessoradoras
e jurisdicionais administrativas”.
Consoante se verifica das posições doutrinárias acima referidas, a matéria
é controvertida, o que é compreensível, uma vez que no Brasil cabe ao Poder
Judiciário exercer a função jurisdicional precipuamente, porém, deve-se ressaltar que não o faz de forma exclusiva, na medida em que a própria Constituição prevê exceções ao exercício da jurisdição pelo mencionado poder,
conforme se extrai, por exemplo: 1. do art.52, incisos I e II, nos quais está
prevista a competência do Senado Federal para julgar, por crime de responsabilidade, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Ministros do
Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e
do Conselho Nacional Ministério Público; e 2. do art. 84, inciso XII, que
prevê a concessão de indulto e a comutação de pena pelo Chefe do Poder
Executivo Federal.
Cabe, ainda, realçar que a análise da natureza jurídica da jurisdição é questão complexa sobre a qual não se debruçará nesta aula, visto que o tempo e o
objeto estão delimitados; porém, não é demais traçar algumas linhas para melhor compreensão do que será estudado adiante. Nesse sentido, reconhece-se
que a determinação de quais atividades devem ser consideradas como exercício
da jurisdição depende, particularmente, do conceito que se adota para tal expressão.391 A propósito, De Plácido e Silva392, por exemplo, ao enfrentar o significado semântico da palavra jurisdição, a definiu como “o poder de julgar que,
decorrente do imperium, pertence ao Estado. E este, por delegação, o confere às
autoridades judiciais (magistrados) e às autoridades administrativas”.
Assim como o magistrado, ao proferir uma decisão num dado processo, está aplicando o Direito, também o fazem, por exemplo, os senadores
quando julgam o Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, o
Tribunal de Contas quando julga as contas dos administradores de dinheiro
e bens públicos, por força do art. 71, inciso II, da CR/88, e o Presidente da
República quando concede indulto.
De fato, não se pode refutar que existe diferença no conteúdo da atividade
jurisdicional nos exemplos acima mencionados. Tal atividade desempenhada
389
TEIXEIRA, Flávio Germano de Sena.
O Controle das Aposentadorias pelos
Tribunais de Contas. Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2004. p. 46.
390
MEIRELLES. Op. Cit. p. 662-663.
391
Nesse ponto cabe ver: BERMUDES,
Sérgio. Introdução ao Processo Civil.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002;
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de
Direito Processual Civil. Vol. I. 6ª Ed.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2001, e FERNANDES, Sérgio Ricardo
de Arruda. Questões Importantes
de Processo Civil. Teoria Geral do
Processo. Rio de Janeiro: Editora DP &
A. 1999.
392
SILVA, De Plácido e. Vocabulário
Jurídico. 19ª ed. rev. e atual. Por Nagib
Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
p. 466.
FGV DIREITO RIO
175
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
pelo Poder Legislativo tem escopo de ordem política, decorrência natural
do processo democrático representativo e, quando exercida pelo Tribunal de
Contas, assume feições de ordem técnica e social, na medida em que, ao
examinar e julgar as contas dos administradores do patrimônio público, visa
a Corte de Contas a analisar se foram respeitados os princípios da legalidade, da legitimidade e da economicidade. Já a jurisdição exercida pelo Poder
Judiciário, ao enfrentar as questões trazidas pelos jurisdicionados, vincula-se
ao princípio da legalidade.393 Frise-se, entretanto, que uma característica elas
têm em comum, que é a tutela dos direitos e garantias fundamentais.394
Oportuno pontuar que, a partir da Constituição de 1988, cabe aos Tribunais de Contas, ao fiscalizar os gastos públicos, aferir, além da legalidade, a
legitimidade e a economicidade dos atos da Administração, conforme deixa
claro o texto do art. 70 da Carta Maior. Nessa toada, esclarece Flávio Germano de Sena Teixeira:395 “o poder constituinte de 1988 quis sintonizar o Tribunal de Contas no Brasil com a tendência do controle externo no mundo, que
não é meramente o controle dos atos da Administração, mas da totalidade da
gestão administrativa”.
Nessa linha de idéias, Emerson Garcia396 aponta que a atuação do Tribunal
de Contas abrange basicamente: 1. a função consultiva, quando profere parecer prévio das contas do Chefe do Poder Executivo; 2. a atividade julgadora,
realizada a partir da análise das contas dos administradores de bens e valores
públicos; 3. a competência sancionatória, isto é, aptidão para aplicar multas
e obrigar os responsáveis por danos ao erário a indenizar na justa medida do
prejuízo causado, consoante consagra o art. 71, inciso VIII, da CR/88397;
4. a função fiscalizadora prévia sobre o procedimento licitatório, sendo-lhe
admissível analisar editais e até sustar licitações em que haja alguma irregularidade, ex vi do art. 71, inciso X, da CR/88; e, ainda, 5. exercer o controle
prévio, ao acompanhar o cumprimento das leis orçamentárias, bem como a
eficiência da gestão fiscal, conforme exige a LC 101/00.398
Conforme já dito anteriormente, o Tribunal de Contas, no seu ofício fiscalizador, deve analisar a conduta do gestor da res publica a partir da perquirição dos princípios da legalidade, legitimidade e economicidade.
O princípio da legalidade, como é cediço, é a base fundamental dos atos
da Administração Pública, devendo ser o vetor da fiscalização das contas públicas, além de servir de base para o exame dos atos de execução orçamentária. O princípio da legitimidade, por sua vez, encontra sua ratio essendi no
“equilíbrio e na harmonia entre os valores sociais, éticos e morais do grupamento, ensejando o surgimento de princípios e padrões de conduta de
natureza consensual, o que permite divisar uma área de nítida superposição
entre a moralidade e a legitimidade dos atos dos agentes públicos”, sustenta
Emerson Garcia.399
393
FERNANDES. Op. Cit. p. 148.
394
Cf. Súmula 347 do STF: “o Tribunal de
Contas, no exercício de suas atribuições,
pode apreciar a constitucionalidade
das leis e dos atos do Poder Público”.
Isso não significa dizer que o Tribunal
de Contas pode declarar a inconstitucionalidade de lei, o que ele pode é
deixar de aplicar determinado diploma
normativo que esteja em desarmonia
com a Constituição. Vale ressaltar que,
no tocante às finanças públicas, o controle por parte do Tribunal de Contas é
um poder-dever que ultrapassa o aspecto meramente jurídico, enfeixando,
igualmente, o aspecto social, vez que
inerente a tal controle é a defesa dos
direitos humanos fundamentais e do
próprio processo democrático.
395
TEIXEIRA, Flávio Germano de Sena.
O Controle das Aposentadorias pelos
Tribunais de Contas. Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2004. p. 23.
396
GARCIA. Op. Cit. 141-152.
397
Importante frisar que as decisões
proferidas pelo Tribunal de Contas
com imputação de multas ou débitos
terão eficácia de título executivo extrajudicial, nos termos do art. 71, § 3o,
da CR/88. Tais multas e débitos serão
inscritos na Dívida Pública do respectivo ente.
398
A LC 101/00, em seu art. 59, § 1o,
estabelece a competência para os
Tribunais de Contas alertarem os administradores públicos sobre possíveis
descumprimentos das normas nela
previstas. Segundo entendimento de
Emerson Garcia e Rogério Pacheco
Alves, “a omissão da Corte de Contas
(nesse sentido) permitirá a aferição
prática do ato de improbidade previsto
no art. 11, II, da Lei 8.429/92 (...), o que
exigirá sejam perquiridos os motivos de
tal omissão à luz da estrutura organizacional do órgão”. In: GARCIA. Op. Cit.
p. 148.
399
GARCIA. Op. Cit. p. 147-148.
FGV DIREITO RIO
176
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Por fim, tem-se o princípio da economicidade, corolário do princípio da
eficiência, proclamado no art. 37, da Carta de 1988, do qual se extrai a premissa de que a gestão da coisa pública deve buscar sempre otimizar os recursos de tal forma a atingir o máximo de feitos positivos para a sociedade,
destinatária das atividades estatais.
Conforme expressa o art. 71 da CR/88, dentre as atividades do Tribunal
Contas estão a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial da Administração Direta e Indireta. Cumpre indagar, no âmbito
da Administração Indireta, até que ponto pode a Corte de Contas fiscalizar
as empresas públicas e as sociedades de economia mista? Sobre esta questão,
já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal que, em sede de Mandado de
Segurança n° 23.627, da relatoria do Ministro Ilmar Galvão, definiu que a
fiscalização seria possível se jungida aos bens e valores por elas geridos400; o
que é vedado é a fiscalização da atividade de caráter privado realizada pelas
referidas entidades.
Feitas essas considerações, cabe agora enfrentar o controvertido tema tratado no art. 71, inciso II, que prevê a competência de Cortes de Contas, nos
seguintes termos:
“Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros,
bens e valores públicos da Administração Direta e Indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público Federal, e as contas
daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.” (grifo nosso)
Conforme ensina o especialista em controle externo Eduardo Carone
Costa Júnior401, a competência das Cortes de Contas para julgar402 as contas
dos administradores de bens públicos passou a ter base constitucional com a
Carta de 1934, se mantendo nas Constituições que lhe sucederam até chegar
ao Diploma Constitucional de 1988, que aumentou significativamente o escopo de atuação desses Tribunais.
III. 1.1. Adequada Exegese do termo “julgar” utilizado no inciso II do art. 70 da CR/88
Como quase tudo em Direito é objeto de controvérsia no plano da hermenêutica, a expressão “julgar” empregada pelo Constituinte de 1988 também
é motivo de dissonância entre os estudiosos.
Autores como Régis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath403, exempli
gratia, não aceitam a função jurisdicional como inerente à atividade de julgar
as contas dos administradores de bens públicos pelo Tribunal de Contas e,
para embasar sua posição, utilizam como argumentos:
400
Nesse sentido, cabe, por exemplo, a
fiscalização da Caixa Econômica Federal
pelo Tribunal de Contas, vez que a referida instituição é gestora do FGTS, como
muito bem lembrou Emerson Garcia.
In: GARCIA. Op. Cit. p. 143.
401
COSTA JÚNIOR, Eduardo Carone. As
Funções Jurisdicional e Opinativa
do Tribunal de Contas – Distinção e
Relevância para a Compreensão da
Natureza Jurídica do Parecer Prévio
Sobre as Contas Anuais dos Prefeitos.
Disponível em <www.tce.mg.gov.br/
revista>. Acesso em 26.05.2008. p.
1-25.
402
Cumpre ressaltar que, nos termos do
art. 71, § 3o, da CR/88, “as decisões do
Tribunal de que resulte imputação de
débito ou multa terão eficácia de título
executivo”.
403
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. e
HORVATH, Estevão. Manual de Direito
Financeiro. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999,
p. 111-112.
FGV DIREITO RIO
177
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
“1. o Tribunal de Contas não compõe o Judiciário;
2. de acordo como o inciso XXXV do art. 5o da CF, “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, além do que não haverá “juízo ou tribunal de exceção” (inciso XXXVII). Significa que o legislador
constituinte de 1988 manteve o monopólio da atividade jurisdicional em mãos
do Poder Judiciário.
3. ao falar o inc. II do art. 71 em julgar as contas, “significa que as aprecia
com o significado de avaliá-las, entendê-las, reputá-las bem ou mal, jamais no
sentido de sentenciar, de decidir a respeito delas”. (referência textual de Oswaldo
Bandeira de Mello).” (grifo dos autores).
E concluem os doutrinadores: “(...) afirma-se, categoricamente, que o Tribunal de Contas tem função apenas administrativa.”
Nesse sentido, aponta Eduardo Carone Costa Júnior404 que:
“O pretenso monopólio da atividade jurisdicional nas mãos do Poder Judiciário, conforme o art. 5o, XXXV, da Constituição da República de 1988 é a base do
raciocínio daqueles que negam às Cortes de Contas o poder de dizer o direito em
caráter definitivo. Afirmam que o Brasil aderiu ao sistema inglês de jurisdição única,
ao contrário do existente em França, onde há jurisdições especializadas.”
Na linha de entendimento do mencionado estudioso, a norma inserta
no art, 5o, inciso XXXV, a qual dispõe, in verbis, que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, não afirma a exclusividade daquele Poder para o exercício da atividade jurisdicional, podendo a
própria Constituição prever hipóteses em que tal função é exercida por outro
órgão público, e o fez em várias situações como referido alhures: o Legislativo
quando julga o Presidente e o Vice-presidente da República por crimes de
responsabilidade, o Executivo quando concede indulto, e o Tribunal de Contas quando julga as contas dos gestores de valores e bens públicos.
Em sentido contrário à visão de parte da doutrina que não reconhece o
caráter de jurisdição à função da Corte de Contas de julgar, consoante o
inciso II do art. 71 da CR/88, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes405 assevera
que “as decisões dos Tribunais de Contas, quando adotadas em decorrência
da matéria que o Constituinte estabeleceu na competência de julgar, não
podem ser revistas quanto ao mérito”, uma vez que se isso fosse admissível
estar-se-ía tornando inócua não somente a norma constitucional que atribui
competência à Corte Contas para julgar as contas dos administradores de dinheiro e bens públicos, como também a própria atividade desenvolvida pelos
servidores daquele órgão.
Nessa toada, afirma Eduardo Carone Costa Júnior:406
404
COSTA JÚNIOR. Op. Cit. p. 10
405
FERNANDES. Op. Cit. p.89.
406
COSTA JÚNIOR. Op. Cit. p. 20.
FGV DIREITO RIO
178
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
“A revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais de Contas somente se
dará quando estiverem elas contaminadas pelo abuso de poder, em qualquer de
suas espécies, excesso de poder ou manifesta ilegalidade. A inafastável garantia
do devido processo legal ou a decisão contiver manifesta ilegalidade.”407
Conforme se constata, há bons argumentos em ambos os sentidos, não
havendo, entretanto, pronunciamento definitivo por parte do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria.
407
Idem. Ibidem. Cf. o autor quando o
Tribunal de Contas “imputa débito ao
gestor ou lhe aplica multa, com base
no art. 71, II e VIII, da Carta Política de
1988, ele está proferindo uma decisão
de caráter eminentemente condenatório que terá eficácia de título executivo”,
ex vi do art. 71, § 3o, da CR/88.
FGV DIREITO RIO
179
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 11 – O PODER DE TRIBUTAR, A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E
A CAPACIDADE TRIBUTÁRIA ATIVA
Segundo Norberto Bobbio,408 o poder “é uma relação entre dois sujeitos
onde um impõe ao outro sua vontade e lhe determina, mesmo contra vontade, o comportamento”.
Entretanto, conforme salienta José Casalta Nabais409 “como dever fundamental, o imposto não pode ser encarado nem como um mero poder para o
Estado, nem como um mero sacrifício para os cidadãos, constituindo antes
um contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em Estado fiscal”
Na aula 15 serão examinadas diversas teorias que tentam explicar a essência ou a natureza da relação tributária, desde a sua qualificação como simples relação de poder, destituída de qualquer outra fundamentação, sendo a
norma impositiva do tributo no Estado de Direito simples ordem sem a real
natureza de lei410, até as teses que incorporam estruturas e disciplinas do direito obrigacional privado para o Direito Tributário. No momento objetivase apenas apresentar as diversas modalidades em que se manifesta o poder
do Estado sobre o direto fundamental de propriedade privada e liberdade de
iniciativa, bem como distinguir o denominado Poder de Tributar da Competência Tributária. Ainda, apresentar sob o ponto de vista do federalismo fiscal
brasileiro os diversos tributos atribuídos a cada ente político e bem assim
examinar o conceito de Capacidade Tributária Ativa, matéria que introduz o
estudo da parafiscalidade que será o objeto da próxima aula.
11.1. OS PODERES DO ESTADO E O PODER TRIBUTÁRIO
O poder estatal se manifesta em diversas vertentes, sendo usualmente qualificado e distribuído em: poder judicante; poder legiferante; poder de polícia
(por meio do qual se manifesta o intervencionismo na ordem econômicosocial e na propriedade); o poder de punir e o poder tributário.
O exercício do poder de tributar se realiza sob a constante tensão que é
subjacente a toda e qualquer relação de direito público, isto é, de um lado
o caráter impositivo do poder estatal e de outro as liberdades individuais do
cidadão. Da mesma forma que a autoridade pública tem o poder-dever de
exercer as atividades de sua competência para garantir o atingimento do bem
comum, sem cometer arbitrariedades ou desvios, o contribuinte, cujo patrimônio deve ser protegido contra os possíveis excessos estatais, também tem
que agir de boa-fé e pagar os tributos de acordo com a sua real capacidade
econômica, sem a utilização de planejamentos tributários abusivos. Dito de
outra maneira: a relação jurídica tributária enfeixa múltiplos direitos e de-
408
BOBBIO, Norberto. O significado
clássico e moderno de política. Curso
de Introdução à ciência política. Brasília: Universidade de Brasília, 1982,
v.7. p12.
409
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Editora Almedina, 1978, p. 679.
410
Nesse sentido assevera Oto Mayer,
citado por Ricardo Lobo Torres, que “o
dever geral de o sujeito pagar impostos
é uma fórmula destituída de sentido
e valor jurídico”. In. TORRES. Op. Cit. p.
231.
FGV DIREITO RIO
180
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
veres para todas as partes envolvidas nas diversas fases da tributação, posto
ter como objeto prestações indispensáveis à vida em comunidade sob um
Estado fiscal.
Importante destacar a distinção entre o poder de tributar de um lado e o
confisco e a expropriação de outro, esses últimos previstos no artigo 243 da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR-88), o qual dispõe:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos
alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e
reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e
recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.
Assim, apesar da fundamentalidade do direito à propriedade privada, nos
termos do inciso XXII do artigo 5º da CR-88, direito individual com aplicação imediata, consoante o disposto no §1º do mesmo dispositivo constitucional, atributo que também consubstancia princípio da ordem econômica,
nos termos do inciso II do artigo 170 da CR-88, é possível tanto a expropriação como o confisco nas duas hipóteses específicas acima transcritas, as quais
possuem como pressuposto comum o cometimento de ilícitos.
Também enseja a flexibilização do direito de propriedade a hipótese de
aplicação da denominada pena administrativa de perdimento411 prevista no
Decreto-lei nº 37/66, que disciplina o imposto de importação, e no Decretolei nº 1.455/76, nos termos alterados pela Lei 10.637/2002, o qual dispõe sobre bagagem de passageiro procedente do exterior e estabelece normas sobre
mercadorias estrangeiras apreendidas. Na pena de perdimento o direito de
propriedade privada também é relativizado, podendo estar ou não associada
a sua aplicação ao descumprimento de obrigação tributária. O Decreto-lei
nº 37/66 estabelece como hipótese de perda de mercadoria estrangeira, já
desembaraçada e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em
parte, mediante artifício doloso, ou, ainda quando fracionada em duas ou
mais remessas postais ou encomendas aéreas internacionais visando a elidir,
no todo ou em parte, o pagamento dos tributos aduaneiros ou quaisquer
normas estabelecidas para o controle das importações ou, ainda, a beneficiarse de regime de tributação simplificada. O mesmo Decreto-lei prevê, ainda,
entre outras hipóteses, a possibilidade de aplicação da pena de perdimento
em situações não vinculadas ao pagamento de tributos, como ocorre no caso
411
Existem outras hipóteses de perda
da propriedade de bem no ordenamento jurídico, como é o caso da perda dos
bens ou valores acrescidos ilicitamente
ao patrimônio na hipótese de enriquecimento ilícito de agentes públicos no
exercício de mandato, cargo, emprego
ou função na administração pública
direta, indireta ou fundacional de que
trata a Lei nº 8.429/92.
FGV DIREITO RIO
181
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
de mercadoria estrangeira atentatória à moral, aos bons costumes, à saúde ou
ordem públicas.
A Constituição de 1967, com a Emenda de 1969, possuia dispositivo prevendo expressamente a denominada pena de perdimento:
art. 153.
§ 11 – Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, nem de banimento.
Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação penal aplicável em caso de
guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao
erário ou no caso de enriquecimento no exercício de função pública. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (grifo nosso)
Sob o atual regime constitucional, dois dispositivos podem servir de fundamento para se questionar a possibilidade ou a viabilidade jurídica de aplicação da denominada pena administrativa de perdimento: (1) o art. 5º LIV
(“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”); e (2) o art. 150, IV, que veda a possibilidade de qualquer ente federado “utilizar tributo com efeito de confisco”. No entanto, a Segunda Turma
do STF, por unanimidade, já se pronunciou no sentido de não haver ofensa
à Constituição de 1988 na previsão de pena de perda de bens importados
irregularmente, ou seja, tanto o Decreto-lei nº 37/66 como o Decreto-lei
nº 1.455/76, que disciplinam as perdas de bens para restituição do erário,
foram recepcionados pela nova ordem constitucional. O Agravo Regimental
no Agravo de Instrumento 173689412 possui a seguinte ementa:
AI 173689 AgR / DF – DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Julgamento: 12/03/1996
Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA
Publicação
DJ 26-04-1996 PP-13126 EMENT VOL-01825-05 PP-00918
Parte(s)
AGRAVANTE: ARTUR RIBEIRO DE SOUZA
AGRAVADA: UNIÃO FEDERAL
Ementa
IMPORTAÇÃO – REGULARIZAÇÃO FISCAL – CONFISCO. Longe
fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão
que, a partir de normas estritamente legais, aplicaveis a espécie, resultou na
perda de bem movel importado.
VOTAÇÃO: UNÂNIME.
RESULTADO: IMPROVIDO.
412
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. AI 173689 AgR /
DF, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em
25.05.2010. Decisão unânime.
FGV DIREITO RIO
182
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
No mesmo sentido também se pronunciou a Segunda Turma do STF por
unanimidade, relativamente ao Decreto nº 91.030/85, que havia aprovado
o Regulamento Aduaneiro, disciplina atualmente fixada pelo Decreto nº
6.759, de 2009. Dispõe a ementa do acórdão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 251008413:
RE 251008 AgR / DF – DISTRITO FEDERAL
AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CEZAR PELUSO
Julgamento: 28/03/2006 Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação DJ 16-06-2006
EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Aeronave. Permanência ininterrupta no país, sem guia de importação. Auto de infração administrativa. Pena de perdimento de bem. Art. 514, inc. X, do Decreto nº 91.030/85,
cc. art. 23, caput, IV e § único, do Decreto-Lei nº 1.455/76. Art. 153, § 11,
da Constituição Federal de 1967/69. Aplicação de normas jurídicas incidentes à
época do fato. Inexistência de ofensa à Constituição Federal de 1988. Agravo regimental não provido. Precedentes. Súmula 279. Não pode ser conhecido recurso
extraordinário que, para reapreciar questão sobre perdimento de bem importado
irregularmente, dependeria do reexame de normas subalternas.
Decisão
A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso
extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª. Turma,
28.03.2006.
Dessa forma, os institutos acima referidos, o confisco, a expropriação e a
pena de perdimento, que representam manifestações do poder de punir do
Estado, se afastam radicalmente da tributação, isto é, se diferenciam em sua
essência, tendo em vista que o tributo não pode constituir sanção contra ato
ilícito414, consoante o disposto no artigo 3º do Código Tributário Nacional
(CTN). Por outro lado, deve-se repisar que o poder de tributar atinge, também, inevitavelmente, a propriedade privada, característica comum entre os
tributos e os aludidos institutos de natureza punitiva. Entretanto, apesar de
a tributação reduzir o patrimônio disponível do sujeito passivo, importante
enfatizar que é vedada a utilização do “tributo com efeito de confisco”, conforme previsão do já transcrito artigo 150, IV, da CR-88, matéria que será
objeto de exame após a Aula 16, quando se iniciam os estudos das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar.
Ainda, importante destacar que na disciplina Direito Tributário e Finanças Públicas III será examinada a forma legítima que o Estado possui para cobrar coercitivamente os seus créditos, observado o devido processo legal para
a excussão de bens do contribuinte devedor, disciplinado na Lei nº 6.830, de
413
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. RE 251008 / DF, Primeira Turma, Rel. Min. Cezar Peluso.
Brasília. Disponível em: <http://www.
stf.jus.br>. Acesso em 25.05.2010. Decisão unânime.
414
Isso não quer dizer que o ato ilícito
não possa ter efeitos tributários e gerar
o vínculo jurídico a ensejar o dever de
pagar o tributo por parte do infrator.
Assim, por exemplo, a renda produzida
por atividade ilícita é sujeita à tributação pelo Imposto sobre a Renda, apesar
da vedação do CTN no sentido de que
o legislador ordinário utilize o tributo
como sanção contra o ato ilícito.
FGV DIREITO RIO
183
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
22 de setembro de 1980415 (Lei das Execuções Fiscais-LEF), com aplicação
subsidiária do Código de Processo Civil (CPC). De fato, quando um devedor
não cumpre espontaneamente uma obrigação, seja ela representada por um
título extrajudicial, seja reconhecida por uma sentença judicial condenatória,
é facultado ao sujeito ativo da obrigação obter a satisfação do crédito por
meio da aplicação medidas coativas que, a seu pedido, são aplicadas pelo
Estado no exercício do poder jurisdicional. No entanto, conforme destacado, sob pena de violação aos essenciais direitos individuais à propriedade e
à liberdade para o exercício de atividade econômica, a expropriação de bens
do contribuinte em decorrência do inadimplemento da obrigação tributária
não pode ocorrer senão de acordo com o devido processo legal (art. 5º, LIV,
da CR-88).
Em suma, a mencionada tensão subjacente a todas as fases da tributação
reflete a indissociável correlação entre o poder-dever estatal de tributar para
atender as necessidades públicas de um lado e os direitos humanos fundamentais que protegem o patrimônio e a liberdade do cidadão contribuinte
de outro.
O poder de polícia, por sua vez, manifestação do intervencionismo estatal
na propriedade e na ordem econômico-social, também possui elementos de
aproximação e de distanciamento no que se refere ao poder de punir e ao poder de tributar. De fato, o poder de tributar e o poder de polícia restringem
a margem de liberdade do cidadão e interferem diretamente na propriedade
privada, isto é, tanto a liberdade individual como o direito de propriedade
são exercidos dentro dos contornos fixados conjuntamente pelo poder de
tributar e pelo poder de polícia.
A função social da propriedade416 (art. 5º, inciso XXIII, da CR-88) serve
de fundamento para o Estado intervir na propriedade privada, como, por
exemplo, nas hipóteses de limitações administrativas, servidões, requisições,
ocupações temporárias (art. 5º, inciso XXIII, da CR-88), desapropriações
por necessidade ou utilidade pública, ou, ainda, por interesse social, mediante justa e prévia indenização (art. 5º, inciso XXIV, CR-88). Nessa toada, merecem destaques as hipóteses de despropriação em razão do descumprimento
do plano diretor municipal, de que trata o art. 182, §4º, e bem assim em decorrência de reforma agrária, disciplinado no art. 184, ambos da Constituição de 1988. Em sentido diverso, prover os recursos adequados para atender
as necessidades públicas fundamenta as restrições impostas pela tributação à
propriedade privada dentro dos parâmetros constitucionais, situação caracterizada pela doutrina na seara tributária417 como a fiscalidade, usualmente
qualificada como a imposição dos tributos apenas com fins arrecadatórios.
Por sua vez, o emprego dos tributos para atingir outros objetivos além da
receita tributária, denominado de extrafiscalidade, aproxima o poder de tributar do poder de polícia.
415
A lei disciplina os procedimentos
necessários à cobrança coercitiva de
dívidas de natureza tributária ou não
(artigos 1º e 2º da LEF).
416
Numa visão clássica, porém de efetiva aplicação prática no direito contemporâneo, o jurista francês Lèon Duguit,
influenciado pelas idéias de Augusto
Comte, já em 1850 propugnava a propriedade não como direito, mas como
função social, conforme se depreende
do fragmento textual abaixo transcrito:
“Pero la propriedad no es un derecho;
es una función social. El proprietario, es
decir, el poseedor de una riqueza, tiene,
por el hecho de poseer esta riqueza, una
función social que cumplir; mientras
cumple esta misión sus actos de proprietario están protegidos. Si no la cumple o
la cumple mal, si por ejemplo no cultiva
su tierra o deja arruinarse su casa, la
intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumprir su función
social de proprietario, que consiste en
assegurar el empleo de las riquezas
que posee conforme a su destino”. In:
DUGUIT, Lèon. Las Transformaciones
Generales del Derecho Privado,
desde el Código de Napoleón. 2. ed.
Tradução Carlos G. Posada. Espanha:
Livraria Espanola y Estranjera, 1920. Já
a doutrina mais recente, representada
pelo jurista italiano Pietro Perlingieri,
defende a função social da propriedade
como fundamento para a elaboração
de normas restritivas a seu uso, conforme se extrai de sua doutrina: “em
um sistema inspirado na solidariedade
política, econômica e social e ao pleno
desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume um papel
de tipo promocional, no sentido de que
a disciplina das formas de propriedade
e as suas interpretações deveriam ser
atuadas para garantir e promover os
valores sobre os quais se funda o ordenamento”. In: PERLINGIERI, Pietro.
Perfis do Direito Civil: Introdução ao
Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007. Ainda nesse
universo de considerações, Ana Alice De
Carli, in: CARLI, Ana Alice De. Bem de
Família do Fiador e o Direito Humano Fundamental à Moradia. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009, p.
91, destaca “o princípio da função social
como vetor axiológico do regime patrimonial e, concomitantemente, como
regra direcionadora para os proprietários e para o poder público. Desta feita,
aos titulares do direito de propriedade
cabe o dever de exercê-lo sem abusos
e visando ao bem coletivo. O Estado, a
seu turno, deve utilizar a referida norma-princípio como meio de controle
do espaço urbano e como diretriz para
imposições de limites de seu uso”.
417
Para exame do conceito no contexto das
Finanças Públicas ver item 1.4 da Aula 1.
FGV DIREITO RIO
184
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.418 aponta que a doutrina clássica norteamericana faz distinção entre o poder de tributar e o poder de polícia, podendo
as características definidoras de cada uma ser reconhecida a partir da análise
da finalidade dos tributos. Nesse sentido, de acordo com a referida doutrina
estrangeira tradicional, verifica-se qual é o fim do tributo, qual é sua ratio
essendi. Se o objetivo do tributo fosse meramente carrear recursos para os
cofres públicos, estaríamos perante a manifestação do poder de tributar. Por
outro lado, se a instituição do tributo tivesse como escopo servir de instrumento para o Estado intervir na seara econômica e social, estar-se-ia diante
do poder de polícia. A doutrina nacional majoritária, no entanto, a partir de
Bilac Pinto419 não reconhece a separação entre o poder tributário e o poder
de polícia no que se refere aos efeitos da incidência de tributos, conforme se
constata do seguinte trecho:
Não vemos também vantagem nem possibilidade da revisão da classificação
das rendas públicas, para recompô-la com mais uma categoria: a dos tributos
fundados no poder de polícia.
Nessa linha aponta Ricardo Lobo Torres420, ao afirmar que:
Se é tributo o que se cobra, não desnatura a componente de extrafiscalidade
fundada no poder de polícia que pode informá-lo, desde que não lhe retire totalmente a finalidade de contribuir para a cobertura das necessidades públicas.
Aliomar Baleeiro também aceita a finalidade extrafiscal na cobrança de taxa, que
lhe não conspurca a natureza tributária.
418
A partir dessas divergentes concepções doutrinárias é possível compreender os aspectos iniciais de interconexão entre a fiscalidade e a extrafiscalidade sob o ponto de vista jurídico-tributário, institutos que envolvem tanto
o poder de tributar como o poder de polícia – bem como a relação desses
institutos com a denominada parafiscalidade. Com efeito, a parafiscalidade
será objeto de estudo na próxima aula e a extrafiscalidade na Aula 14, após a
análise dos tributos sob a perspectiva econômica de incidência.
A respeito do poder de polícia, malgrado não estudarmos aqui o direito
administrativo de forma específica, vale trazer à baila as lições de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto421, que descreve o poder de polícia como sendo
aquele “exercido pelo Estado enquanto legislador; pois apenas por lei se pode
limitar e condicionar liberdades e direitos”. Por outro lado, a função de polícia, ensina, ainda, o autor, consiste na aplicação da lei às situações concretas
e é exercida pelo Estado administrador.
Na esteira das lições do mencionado administrativista, a polícia administrativa se diferencia da polícia judiciária, pois, enquanto esta (judiciária) tem como
ROSA JR., Luiz Emydio F. da. Manual
de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15 ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2001, p. 269-270. Cf. preceitua
o autor; “a doutrina clássica nos Estados
Unidos distingue entre poder de tributar e poder de polícia. Assim, ao lado
do poder de tributar, considera como
poder de polícia o poder que o Estado
tem de restringir o direito de cada um
a favor do interesse da coletividade.
Por outro lado, vincula os tributos com
finalidade meramente fiscal ao poder
de tributar, enquanto o poder de polícia corresponde aos tributos com fins
extrafiscais”.
419
BILAC, Pinto. Estudos de Direito
Público. Rio de Janeiro: Forense, 1953.
p.147.
420
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Volume IV. Os Tributos na
Constituição. Rio de Janeiro. Renovar,
2007.p.403.
421
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.
Mutações do Direito Administrativo.
2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
2001, pp. 385-398.
FGV DIREITO RIO
185
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
principal escopo a repressão dos comportamentos humanos ilícitos, a polícia administrativa, a seu turno, relaciona-se ao controle dos “demais valores contidos
nas liberdades e direitos fundamentais”, como, por exemplo “todas as formas de
atuação, preventivas e repressivas, com suas sanções aplicáveis executoriamente
sobre a propriedade e a atividade privadas, atuando, apenas excepcionalmente,
através de um constrangimento sobre as pessoas”, pontua Diogo de Figueiredo422.
Nesse passo423, variado seria o campo de atuação da polícia administrativa: 1) na área de segurança pública, por meio de instrumentos de controle,
fiscalização e manutenção da ordem social; 2) na defesa sanitária; 3) na tutela
do patrimônio estético; 4) no controle do comportamento ético nos meios
de comunicação; 5) na repressão de condutas contrárias aos bons costumes
ou que agridam a sociedade de um modo geral; 6) no controle das atividades comerciais e empresariais; 7) no desenvolvimento humano por meio de
instrumentos de proteção ao meio ambiente saudável e sustentável; 8) no
processo de imigração; 9) na área de urbanismo e construções; e 10) como
regulador das atividades profissionais.
No que toca, especificamente, à função disciplinadora das categorias profissionais, importante destacar as profissões liberais, as quais, em regra, têm
suas normas norteadoras em leis específicas instituídas pela União, nos termos
do art. 22, XVI, da CR-88, que assim dispõe: “art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre. (...)XVI. Organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões”. Nesse contexto, inserem-se
as contribuições das categorias profissionais (art. 149 da CR-88) arrecadadas
pelas entidades de classe (ex., OAB424, CREA, CRM etc) criadas com o propósito de orientar e fiscalizar as atividades inerentes a sua classe de trabalhadores:
matéria que será analisada na próxima aula que trata da parafiscalidade.
11.2. O PODER DE TRIBUTAR
Luiz Emygdio F. da Rosa Jr 425 define o poder de tributar como:
o exercício do poder geral do Estado aplicado no campo da imposição de tributos (...).
O poder de tributar decorre diretamente da Constituição Federal e somente
pode ser exercido pelo Estado através de lei, por delegação do povo, logo este
tributa a si mesmo.
De fato, sob o ponto de vista do constitucionalismo positivado, a Carta de
1988, em seu art.1º, parágrafo único, assim dispõe, in verbis:
Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição.
422
MOREIRA NETO. Op. Cit. pp.387-398.
423
MOREIRA NETO. Op. Cit. pp.391-400.
424
Cf. será enfrentado na aula sobre
a parafiscalidade, as contribuições (
anuidades ) cobradas pela OAB não tem
natureza tributária segundo entendimento jurisprudencial do STJ e do STF.
425
ROSA JR. Op. Cit. p. 269.
FGV DIREITO RIO
186
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
É possível visualizar com mais clareza o poder estatal a partir do denominado Estado Moderno, em que a noção de supremacia do poder do Estado
dentro dos limites de seu território caracteriza “um único poder com autoridade originária”, ensina Celso Ribeiro Bastos426, que identifica a soberania
do Estado como fundamento do poder de tributar.
No período medieval, a ideia de supremacia de uma pessoa ou ente político era praticamente inexistente, porquanto nesta época havia multiplicidade
de entidades com poderes originários, como, por exemplo: “o Papa, o Sacro
Império Romano-Germânico, os reis, a nobreza feudal, as cidades e as corporações de artes e ofícios, todos pretendiam exercer competência não derivadas
de outrem, o que era o mesmo que dizer que não se reconhecia reciprocamente nenhuma soberania,” preleciona ainda Celso Ribeiro Bastos427.
Aliás, foi com Jean Bodin428, em sua obra Les Six Livres de la Republique,
no século XVI, que surgiu a primeira noção de soberania, no bojo da qual o
autor defendia a ideia de supremacia do poder monárquico. No século XVI,
na Europa, os reis passaram a impor seu poder dentro do espaço geográfico
de seus reinados, afastando, desta forma, qualquer ingerência do Papado ou
do Império Romano-Germânico429.
Na realidade, vários são os fundamentos doutrinários a embasar a legitimidade do poder de tributar, bem como a justificar os limites ao exercício
deste poder estatal. A partir de uma visão clássica, por exemplo, a prerrogativa para impor o tributo decorreria da própria soberania do Estado430.
Ao passo que, partindo-se de premissas do constitucionalismo contemporâneo, o poder de tributar surgiria a partir da abertura permitida pelos direitos humanos fundamentais. A esta corrente de pensamento se filia Ricardo
Lobo Torres431, que, ao discorrer sobre o poder de tributar, aponta a liberdade
como elemento delimitador na criação de tributos, e – amparado na ideia de
justiça a partir da teoria dos direitos humanos fundamentais –, preleciona
que “o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por
eles é totalmente limitado”.
Nessa linha, o estudo moderno do Direito Tributário se direciona com
grande ênfase para uma compreensão humanista da tributação, na medida
em que os direitos humanos são, ao mesmo tempo, fundamento e limite ao
poder de tributar.
Essas duas posições, que se projetam também sobre as diferentes concepções acerca das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar,
parecem se correlacionar com as duas maneiras como Bobbio432 descreve a
passagem do denominado estado natural ao estado civil, a primeira designada como hobbesiana, segunda a qual “aqueles que estipulam o contrato
renunciam completamente a todos os direitos do estado natural, e o poder
civil nasce sem limites: qualquer limitação futura será uma autolimitação”;
426
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
Direito Financeiro e de Direito Tributário. 5. ed. atual. São Paulo: Editora
Saraiva, 1997, p, 99.
427
Idem. Ibidem. p. 99.
428
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 16. ed.
atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, pp.65-66. Para Jean Bodin, a
soberania representava o poder absoluto e perpétuo de uma República. Ensina
Dallari, que a expressão “República”
empregada por Jean Bodin “equivale ao
moderno significado de Estado”.
429
BASTOS. Op. Cit. p. 99.
430
MACHADO. Op. Cit. p. 37.
431
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. Os Direitos Humanos e a Tributação – imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
1999, p. 2.
432
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília:
Universidade de Brasília, 1999, p. 43.
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187
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
já a segunda, chamada de lockiana, o poder civil é “fundado com o objetivo
de assegurar melhor gozo dos direitos naturais (como a vida, a propriedade,
a liberdade) e, portanto, nasce originariamente limitado por um direito preexistente.” Nessa linha, no primeiro caso o Direito natural desaparece completamente ao dar vida ao Direito positivo; na segunda, o Direito positivo é
o instrumento para a completa atuação do preexistente Direito natural.
Nesse cenário, torna-se relevante destacar as mutações de conteúdo e alcance pelas quais tem a liberdade, como valor fundamental, experimentado
ao longo das diversas fases em que a doutrina tipifica o desenvolvimento
do Estado.
Assim, ensina Ricardo Lobo Torres433 que, no Estado Patrimonial, a liberdade – em seu conteúdo restrito – era estratificada entre a realeza, os senhores
feudais e a igreja, e consubstanciava “o exercício da fiscalidade, a reserva da
imunidade aos tributos, a obtenção de privilégios, e o consentimento para a
cobrança extraordinária de impostos”.
Por sua vez, no Estado de Polícia, a liberdade – ainda com sua concepção
restrita – se afirmava como a liberdade do príncipe e da burguesia em ascensão.
Nessa fase, “o tributo passa a ser o fiador da conquista da riqueza e da felicidade,
da liberdade do trabalho e do incentivo ao lucro no comércio e no câmbio, assumindo características de preço da liberdade”, assevera o mencionado autor434.
Já no Estado Fiscal de Direito435, “o tributo é o preço da liberdade, pois
serve de instrumentos para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe
desenvolver plenamente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Leviatã”,
complementa Ricardo Lobo Torres.
Conforme será visto a seguir, a atividade tributária compreende desde a
instituição, regulamentação, arrecadação e fiscalização do tributo até o contencioso fiscal que pode se estabelecer entre o sujeito ativo e o sujeito passivo
da obrigação tributária. Enquanto a instituição do tributo é atribuição típica
e indelegável do Estado, posto envolver o poder de legislar, haja vista a exigência de lei em sentido formal e material para a sua exigência, nos termos do
artigo 150, I, da CR-88, por outro lado as atividades de arrecadar, fiscalizar
e executar leis, serviços, atos ou decisões proferidas relativamente a tributos possuem natureza eminentemente administrativa, passíveis, portanto, de
delegação a outras pessoas jurídicas, matéria a ser examinada na parte final
dessa aula e detalhada na próxima aula pertinente à parafiscalidade e na Aula
16 sobre o princípio da legalidade.
11.2.1 A titularidade do Poder de Tributar
A doutrina diverge quanto à titularidade do poder de tributar. Alguns
defendem a tese de que os entes políticos federados o possuem enquanto ou-
433
TORRES ( 1999 ). pp.2-5.
434
TORRES ( 1999 ). p. 2-3- 14.
435
TORRES ( 1999 ). p. 3.
FGV DIREITO RIO
188
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tros, fundamentados na doutrina clássica, entendem ser indivisível o poder
estatal, primariamente titularizado pelo povo e delegável apenas ao poder
constituinte originário. Neste sentido, as pessoas jurídicas de direito público
dotadas de autonomia na Federação somente receberiam competência tributária e não propriamente o poder tributário.
Advogando a última tese, com fundamento nas lições de Rubens Gomes
de Souza436, Edgard Neves437 sustenta:
O Estado atua em determinado território, atendendo aos interesses de seu
povo, do qual emana o poder absoluto, incontrastável, de querer coercitivamente e fixar competências, soberania. No enfoque que mais perto nos interessa, o
Estado apresenta-se como um sistema organizado de serviços públicos, e a maior
parte de suas fontes de renda está vinculada diretamente àquele poder absoluto,
uno, indivisível e incontrastável, representado pelo seu jus imperii, ou seja, o poder de tributar. Materializando sua atuação, o Estado estrutura-se basicamente
no binômio encargos – atendimento das necessidades públicas e recursos – rendas necessárias para aquela satisfação. Diferentemente dos Estados centralizados,
nos descentralizados, federativos, as atribuições e recursos constitucionalmente
esparramam-se pelos entes federados, os quais dentro de seus campos de atuação,
devem perseguir o bem comum, o interesse público. (...)
Assim, as pessoas jurídicas de direito público que formam a Federação recebem da Constituição não mais o poder, inerente à soberania do Estado Federal,
mas, tão-somente, a competência para buscar receitas por meio das fontes nela
previstas. (grifo nosso)
Em linha de pensamento diversa, Sacha Calmon Navarro Coêlho438 ao
analisar o artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 assevera:
Em primeiro lugar, verfica-se que várias são as pessoas políticas exercentes
do poder de tributar e, pois, titulares de competências impositivas: a União, os
Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Entre eles será repartido
o poder de tributar. Todos recebem diretamente da Constituição expressão da
vontade geral, as suas respectivas parcelas de competência e, exercendo-as, obtêm as receitas necessárias à consecução dos fins institucionais em função dos
quais existem (discriminação de rendas tributárias). O poder de tributar originariamente uno por vontade do povo (Estado Democrático de Direito) é
dividido entre as pessoas políticas que formam a federação. (grifo nosso)
Saliente-se que a Seção II, do Capítulo I, do Título VI da CR-88, intitulada “Das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar” é dirigida aos
entes políticos, conforme determina o caput do artigo 150, o que parece indi-
436
Rubens Gomes de Souza, citado por
Edgard Neves, aponta: “O poder tributário, portanto – pertence ao Estado
Federal, como um todo – é repartido
sob a forma de competências tributárias, no Brasil, às pessoas políticas criadas pela Constituição Federal: União,
Estados e Municípios”. In, SOUSA,
Rubens Gomes. Estudos de Direito Tributário. São Paulo, 1950.p.266.
437
SILVA, Edgard Neves da. Imunidade
e Isenção.In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva (Coordenador). Curso de Direito
Tributário. 10. Ed. rev.atual. São Paulo:
Saraiva, 2008, pp. 281-282.
438
COELHO, Sacha Calmon Navarro.
Manual de Direito Tributário. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002,
pp. 4-5.
FGV DIREITO RIO
189
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
car que o poder constituinte originário fundamentou-se na premissa de que
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios realmente possuem
poder de tributar.
11.3. A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO TRIBUTÁRIO E A
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
Preliminarmente, cumpre repisar, nos termos já explicitados na Aula 2,
que compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Financeiro e Tributário, nos termos do artigo 24, inciso
I. O âmbito da competência da União,439 como ente polítco de coordenação,
é limitado às normas gerais, conferindo a Constituição, ao mesmo tempo, a
competência suplementar aos Estados. Corolário da autonomia federativa
estampada nos artigos 1º, 18 e 60, §4º, I, da CR-88, o Município, além de
instituir e arrecadar os seus tributos (art. 30, III, da CR-88), também tem
a atribuição de suplementar a legislação federal e estadual (artigo 30, II,
da CR-88) no que couber. Essa prerrogativa para legislar sobre Direito Tributário conferida aos entes políticos constitui uma competência genérica440
para disciplinar os múltiplos aspectos das relações jurídicas tributárias por
meio de leis dos seus respectivos parlamentos. É a denominada competência
concorrente dos entes políticos para editar normas objetivando disciplinar a
tributação. Conforme será examinado na parte final do semestre, no âmbito
da competência concorrente para legislar sobre Direito Tributário, quando
a União não edita a lei exigida pela Constituição para estabelecer as normas
gerais, o Estado pode exercer a sua competência legislativa de forma plena
(§1º do art. 24 da CR-88)
A competência tributária, de forma diversa, é a atribuição constitucionalmente conferida ao ente político para instituir e disciplinar os tributos específicos de sua competência, também por meio de lei editada por seu Poder
Legislativo. Nesse sentido, a chamada competência tributária comum441, a
qual será examinada abaixo, nomenclatura utilizada no campo tributário para
designar a competência tributária concorrente, ocorre na hipótese em que a
Constituição confere a mais de um ente federado a prerrogativa de instituir
determinado tributo de acordo com a sua competência administrativa, como
ocorre nos casos (1) das taxas (art. 145, II, da CR-88); (2) das contribuições
de melhoria (art. 145, III, da CR-88) e (3) das contribuições previdenciárias
sobre os seus servidores (art. 149 caput e §1º da CR-88).
Portanto, não se deve confundir a competência concorrente para legislar
sobre Direito Tributário (art. 24, I, e 30, I, da CR-88) com a competência
tributária concorrente ou comum (art. 145, II, III e 149 caput e §1º).
439
Esse dispositivo constitucional (art.
24, §1º) parece se dirigir (“limitar-se-á
a estabelecer normas gerais”) exclusivamente à função coordenadora da
União, conforme acima salientado,
tendo em vista que a mesma União,
como pessoa jurídica de direito público
interno, no exercício de suas funções
como ente político autônomo, nos
termos do art. 18 da CR-88, também
expede normas específicas de caráter
exclusivamente federal no bojo da
competência concorrente, dentro dos
limites constitucionais estabelecidos,
inclusive no que pertine à matéria
financeira e tributária. Dessa forma,
conforme já salientado, pode-se distinguir a legislação expedida pela União
em duas modalidades, as leis de caráter
nacional, posto vincularem a atividade
legislativa dos entes políticos, e as leis
de natureza eminentemente federal.
A União pode expedir normas, por
exemplo, de direito financeiro e de
direito tributário concerenentes à sua
atividade financeira específica, independentemente da edição das normas
gerais referidas no citado §1º do artigo
24 da CR-88.
440
O Código Tributário Nacional, por
exemplo, foi editado pela União com
fundamento em sua competência
para editar normas gerais sobre Direito
Tributário o que não se confunde com
as leis instituidoras dos tributos de
competência da União, como é o caso
da lei que insituiu, por exemplo, o imposto sobre a renda ou sobre produtos
industrializados.
441
No âmbito do Direito Constitucional
a competência comum se refere às
atribuições de natureza administrativa
de que trata o art. 23 da CR-88, ao lado
da competência exclusiva (enumerada,
no art. 21, e remanscente, de que trata
o art. 25, §1º), decorrente (que está
implícita na CR-88) e originária (art. 30)
dos Municípios. Por outro lado, as competências legislativas são classificadas
em: privativa (art. 22); concorrente (art.
24), suplementar (art. 24, §§1º a 4º);
delegada (art. 22, parágrafo único, e 23,
parágrafo único) e originária (art. 30).
FGV DIREITO RIO
190
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O estudo específico da competência está subdividido em 5 tópicos a saber:
1. o conceito de “competência tributária”; 2. as suas características; 3. o seu
destinatário; 4. a distribuição ou repartição da competência tributária pela
CR-88; e 5. a correlação entre o poder de tributar, a competência tributária
e a capacidade tributária.
11.3.1. Conceito de Competência Tributária
No dizer de Paulo de Barros Carvalho442, “a competência tributária (...) é
uma das prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas,
consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos”, ou seja, a competência tributária é um atributo conferido pela Constituição à União, Estados, Distrito Federal e os Municípios,
entes federados dotados de Poder Legislativo.
Para Zelmo Denari443, “a competência tributária coloca-se no plano institucional do tributo, mas a outorga é de índole constitucional, pois os entes
políticos (União, Estados e Municípios) só podem instituir os tributos discriminados na Constituição”, enquanto a capacidade tributária, alude o autor,
“coloca-se no plano operacional e significa a aptidão para cobrar tributos
legalmente instituídos”.
Na perspectiva de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.444a competência tributária
“é a parcela do poder conferida pela Constituição a cada Ente Político para
criar tributos”.
Na concepção de Luciano Amaro445 a competência tributária “implica a
competência para legislar, inovando o ordenamento jurídico, criando o tributo ou modificando sua expressão qualitativa ou quantitativa, respeitados,
evidentemente, os balizamentos fixados na Constituição (...)”.
Pelo exposto pode-se concluir que a competência tributária, atribuição
de natureza política que se vincula à função legislativa, representa a prerrogativa constitucionalmente conferida aos entes federados (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios) para instituir e disciplinar os tributos, por
meio de seu Poder Legislativo, no âmbito, limites e contornos de seu poder
de tributar. Cabe, ainda, salientar que a competência, em seu sentido amplo,
abarca também a capacidade tributária ativa, uma vez que o Ente competente
para instituir e disciplinar a exação tem, igualmente, a prerrogativa de executar as leis, serviços, atos ou decisões administrativas relativas aos tributos a ele
atribuídos, inclusive no que se refere à cobrança, arrecadação e fiscalização.
Constata-se, portanto, que a denominada capacidade tributária ativa, ao
contrário da competência tributária, compreende funções de natureza eminentemente administrativa, que não constituem, portanto, ações de caráter
primariamente político, matéria cujo exame será explicitado no final desta
aula e aprofundado na próxima aula sobre a parafiscalidade.
442
CARVALHO. Op. Cit. pp. 707-709.
443
DENARI, Zelmo. Sujeitos Ativo e Passivo da Relação Jurídica Tributária. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva ( coordenador ). Curso de Direito Tributário.
10 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
Saraiva, 2008, pp. 171-190.
444
ROSA JR.Op. Cit. p.255.
445
AMARO. Op. Cit. p. 99
FGV DIREITO RIO
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
11.3.2. Características da Competência Tributária
A competência tributária tem basicamente seis elementos caracterizadores, os quais podem ser delineados da seguinte maneira: a. privatividade;
b.indelegabilidade; c.incaducabilidade; d.inalterabilidade; e. irrenunciabilidade; e f. facultatividade do exercício.
A privatividade, como do termo mesmo se infere, significa a prerrogativa
que determinado Ente da federação possui para exercer a competência tributária dentro de seu espaço territorial, afastando, dessa forma, a possibilidade
de outro Ente extrapolar os limites demarcados pela Constituição.
Nesse sentido, dispõe o art. 8º do Código Tributário Nacional (CTN)
que “o não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica
de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído”,
ou seja, não pode, por exemplo, um estado-membro da Federação instituir
o imposto sobre grandes fortunas (o qual é da competência da União, nos
termos do art. 153, inciso VII, da CRFB/88) pelo simples fato de o Ente
competente, no caso a União, não o fazê-lo.
A indelegabilidade é uma característica e atributo de caráter obstativo,
isto é, veda a possibilidade de transferência da parcela delimitada do poder
de tributar de determinado Ente Político a outro, ainda que parcialmente,
tampouco ao Poder Executivo. A razão da indelegabilidade, certamente, vincula-se ao fato de que a função precípua de legislar não pode ser transferida,
sob pena de relativização do próprio Estado Democrático de Direito ou do
regime federativo adotado.
Esta qualidade tem sentido significativo, visto que a competência tributária, tal como concebida em nosso constitucionalismo, decorre da delimitação
do poder de tributar, afastando, deste modo, a possibilidade de os detentores
de mandato eletivo, em sede dos respectivos Entes Políticos, utilizarem o
tributo como instrumento político-eleitoreiro para outros interesses, até mesmo de caráter público, mas momentâneos.
A incaducabilidade, a seu turno, tem como ratio subjacente a discricionariedade legislativa, isto é, o Poder Legiferante do Ente federativo não está
adstrito a qualquer limitação temporal para criar seus tributos. O que não
se confunde com o princípio da irrenunciabilidade, o qual pressupõe o potencial exercício da competência tributária, a despeito da discricionariedade
temporal legislativa para o exercício da prerrogativa.
A inalterabilidade vincula-se ao fato de que o Poder Público não pode
ampliar o escopo da competência tributária determinada pela Constituição
Federal, sob pena de violar o próprio pacto federativo.
Por fim, a facultatividade do exercício da competência tributária. É preciso ter-se certo cuidado com este princípio, porquanto, ao mesmo tempo
em que o Poder Público possui discricionariedade legislativa para criar seus
FGV DIREITO RIO
192
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tributos, ele deve obediência à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), a qual, em seu artigo 11, dispõe: “constituem requisitos
essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva
arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente federado”. Impõe-se, portanto, uma indagação: A não-instituição de um tributo,
o qual a CRFB/88 atribuiu a determinado Ente Político, viola ou não o art.
11 da Lei Complementar 101/00 (a denominada Lei de Responsabilidade
Fiscal), que dispõe: “Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os
tributos da competência constitucional do ente da Federação”?446.
11.3.3. Os destinatários da Competência Tributária
O destinatário da norma constitucional que confere competência é o
Poder Legislativo do Ente Político respectivo, haja vista que no Estado de
Direito o Poder Público também deve observância às normas jurídicas que
edita, submetendo-se, portanto, ao princípio da legalidade. Dessa forma, a
Administração Pública subsume a sua atuação aos ditames legais, ex vi do art.
37 e art. 150, inciso I, da Carta Constitucional de 1988. Nesse sentido, a
Constituição não cria o tributo, apenas confere ou atribui competência para
que o ente político o institua por meio de lei ordinária, salvo as exceções
constitucionalmente fixadas, como é o caso da citada competência residual
da União, para instituir outros impostos além daqueles listados no artigo
153, mediante lei complementar, observadas as restrições aludidas no artigo
154, I, da CR-88. A competência da União para instituir empréstimos compulsórios também é exercida por meio de lei complementar, nos termos do
artigo 148 da CR-88, assim como a atribuição para criar outras contribuições
para o financiamento da seguridade social, consoante o disposto no §4º do
artigo 195, o qual estabele como requisito ao exercício dessa atribuição a observância do contido no já citado artigo 154, I, da CR-88.
11.3.4 A distribuição ou repartição da Competência Tributária
A doutrina447 aponta, basicamente, três modalidades de competência tributária. Na realidade, a estratificação do instituto da competência em espécies ou modalidades visa, basicamente, a facilitar o entendimento do tema,
pois, na realidade, é sempre possível apontar imperfeições e novas perspectivas. Nessa toada, importante destacar que “as classificações não são certas
ou erradas – são úteis ou inúteis, na medida em que servem para identificar
melhor o objeto de análise”, assevera Genaro A. Carrió448.
Nesse contexto, vejamos as referidas modalidades apresentadas pela doutrina:
446
Como compatibilizar a LRF ( LC
110/00 ) com a norma inserta no art.
153, inciso VII, CR/88?
447
AMARO, Luciano. Direito Tributário
Brasileiro. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p.95.
448
CARRIÓ, Genaro A. Notas sobre
Derecho y Language. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1973, p. 72.
FGV DIREITO RIO
193
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
1) a competência comum, a qual consubstancia a prerrogativa de todos os
Entes Políticos instituirem tributos. Exemplos usualmente apontados quanto
a esta atribuição são as taxas, a contribuição de melhoria e as contribuições
previdenciárias cobradas dos respectivos servidores449; 2) a competência privativa450, por meio da qual apenas o Ente Político específico possui a atribuição para criar determinado tributo: por exemplo, cabe à União criar o
imposto sobre exportação (vide art. 153, II, da CRFB/88); cada Estados tem
a prerrogativa de instituir o ITCMD (cf. art. 155, I, da CRFB/88), aos Municípios incumbe o dever institucional relativo ao IPTU (nos termos do art.
156, I, da CRFB/88); e 3) a competência residual, que é conferida à União
para instituir outros impostos, além daqueles expressamente descriminados
na Constituição.
Ensina Luciano Amaro451, no tocante à competência privativa da União,
em sua vertente extraordinária, “o critério de partilha de situações materiais
para a criação de impostos é afastado em caso de guerra ou sua iminência,
pois, dada a excepcionalidade dessas situações, atribui-se à União competência para criar impostos extraordinários”. Ainda, segundo o autor, a Constituição de 1988, neste caso, permitiu a União instituir impostos, cujas situações
materiais estão fora da moldura de sua competência tributária; ou seja, a
União para criar impostos extraordinários “não fica adstrita às situações materiais a ela normalmente atribuídas (nomeada ou residualmente), podendo,
além dessas, tributar aquelas inseridas, ordinariamente, na competência dos
Estados ou dos Municípios (por exemplo, a circulação de mercadorias ou
serviços de qualquer natureza)”.
Ainda, com relação à competência privativa extraordinária da União, pertinente é a observação feita por Paulo de Barros Carvalho452: “(...) convém
esclarecer, todavia, que por guerra externa haveremos de entender aquela de
que participe o Brasil, diretamente, ou a situação de beligerância internacional que provoque detrimentos ao equilíbrio econômico-social brasileiro”. Na
linha de intelecção do mencionado autor, a União pode lançar mão da competência extraordinária, desde que cumpridos os requisitos esculpidos no art.
154, II, da CRFB/88, ou seja, em casos de guerra ou de sua iminência, nos
quais o Brasil busca a defesa de seus interesses nacionais.
Apenas para fins didáticos, vejamos graficamente as mencionadas classificações:
449
Nesses casos, de competência tributária comum, a definição do ente
político específico que tem a atribuição
para instituir e disciplinar determinado
tributo em particular depende da competência material definida pela Constituição. A competência para instituir
e cobrar determinada taxa ou contribuição de melhoria depende de qual o
ente político com atribuição para a realização da obra pública ou para o exercício do poder de polícia ou da prestação
de serviço público específico e divisível,
ou seja, a unidade federada que realiza
o serviço público e a obra será a titular
da exação. Nesses termos, somente
é possível determinar qual é o ente
competente para tributar nessas três
hipóteses após desvendar-se a quem a
Constituição conferiu a atribuição para
prestar o serviço público específico,
exercer o poder de polícia, realizar a
obra pública ou, ainda, estabelecer a
qual ente político se vincula o servidor
público cuja contribuição previdenciária se exige. Dessa forma, por exemplo,
a taxa de incêndio é de competência
dos Estados enquanto a taxa de lixo é
de titularidade dos Municípios, haja
vista as repectivas atribuições materiais. Em suma, o ente político competente para instituir, cobrar e arrecadar
a taxa, a contribuição de melhoria e
a contribuição previdenciária sobre o
servidor público será aquela unidade
federada a qual se conecta a situação
ensejadora da tributação, podendo ser,
alternativamente, a União, o Estado, o
Distrito Federal ou o Município.
450
A competência privativa se desdobra
em ordinária e extraordinária, sendo
que esta somente a União possui, nos
termos do art. 154, II, da CRFB/88, que
assim dispõe: “Art. 154. A União poderá
instituir: II. na iminência ou no caso de
guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua
competência tributária,os quais serão
suprimidos, gradativamente, cessadas
as causas de sua criação”.
451
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11 ed. rev. e atual. São
Paulo; Editora Saraiva, 2005, pp. 97-98.
452
CARVALHO, Paulo de Barros. Competência Residual e Extraordinária. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva ( coordenador ). Curso de Direito Tributário.
10 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
Saraiva, 2008, pp. 707-709.
FGV DIREITO RIO
194
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O quadro abaixo apresenta de forma esquemática a distribuição de competências em relação aos tributos de acordo com a interpretação do Supremo
Tribunal Federal (STF) das diversas espécies discriminadas na Constituição
de 1988. O posicionamento do STF, relativamente ao agrupamento das diversas espécies tributárias, conforme já destacado, foi fixado especialmente no
RE 138.284-8, RE 146.733 e ADC-1/DF. Nessas decisões foi adotada a tese
qüinqüipartide dos tributos, isto é, seriam 5 (cinco) as espécies tributárias.
Ressalte-se, entretanto, que após essas manifestações judiciais foi introduzido
o artigo 149-A à CR-88, pela Emenda Constitucional 39/2002, dispositivo
que atribuiu competência aos Municípios para instituírem a denominada
contribuição de iluminação pública453.
Portanto, atualmente, seriam considerados tributos: (1) os empréstimos
compulsórios454 (artigo 148 da CR-88); (2) a contribuição de iluminação
pública (art. 149-A); (3) as taxas (artigo 145, II, da CR-88); (4) as contribuições de melhoria (artigo 145, III, da CR-88); (5) os impostos (artigo 145, I,
da CR-88); (6) as contribuições especiais (artigo 149 da CR-88), sendo estas
últimas subdivididas em três grupos: (6.1) contribuições sociais; (6.2) contribuições de intervenção no domínio econômico e (6.3) contribuições de
interesse das categorias profissionais e econômicas. As contribuições sociais
(6.1), por sua vez, desdobram-se em: (6.1.1) sociais gerais; (6.1.2) de seguridade social (art. 195 da CR-88) e (6.1.3) outras de seguridade social (art.
195 §4º da CR-88).
Importante repisar, ainda, que o artigo 149 da CR-88 confere competência privativa à União para criar contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas,
o que não afasta a possibilidade de os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituírem contribuição para a seguridade social de seus servidores,
nos termos do §1º do mesmo dispositivo constitucional. De fato, o artigo
149 da CR-88 é o fundamento de validade constitucional das mencionadas
contribuições especiais e, também, elemento de conexão entre a denominada
Constituição Tributária e aquela que disciplina a Segurança ou Seguridade
453
De acordo com a jurisprudência fixada pelo STF os Municípios não podem
cobrar taxas de iluminação pública.
Vide Súmula nº 670: “O serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa”.
454
Conforme examinado na Aula 6,
para os efeitos do Direito Financeiro,
os empréstimos compulsórios são
qualificados como dívidas forçadas, em
contraposição às dívidas voluntárias
contraídas pelo Poder Público, já que
decorrem de obrigação legal. Não são
receitas definitivas tendo em vista que
seus valores devem ser restituídos.
FGV DIREITO RIO
195
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Social, onde são previstas de forma detalhada e especificada essas espécies
tributárias, tais como, por exemplo, a Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (COFINS) – artigo 195, I, “b” –, a Contribuição Social
sobre o Lucro (CSLL) – artigo 195, I, “c” –, a contribuição para o Programa
de Integração Social (PIS) – artigo 239 –, e etc.
Espécies
tributárias
Distribuição de competência tributária fixada na Constituição de acordo com o federalismo fiscal
brasileiro
União
Estados
Municípios
1. Emprésti- Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos
mos Comcompulsórios:
pulsórios
I–para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade
pública, de guerra externa ou sua
iminência;
II–no caso de investimento público de
caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto
no art. 150, III, “b”.
Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo
compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.
Art. 149-A Os Municípios e o
Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma
das respectivas leis, para o
custeio do serviço de iluminação pública, observado o
disposto no art. 150, I e III.
Parágrafo único. É facultada a
cobrança da contribuição a
que se refere o caput, na fatura de consumo de energia
elétrica.
2. Contribuição de Iluminação
Pública
3. Taxas
Art. 145, II–taxas, em razão do exercício do (1) poder de polícia ou pela
utilização, efetiva ou potencial, de
(2) serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte
ou postos a sua disposição;
Art. 145, II–taxas, em razão do Art. 145, II–taxas, em razão do
exercício do (1) poder de
exercício do (1) poder de
polícia ou pela utilização,
polícia ou pela utilização,
efetiva ou potencial, de (2)
efetiva ou potencial, de (2)
serviços públicos específicos
serviços públicos específicos
e divisíveis, prestados ao
e divisíveis, prestados ao
contribuinte ou postos a sua
contribuinte ou postos a sua
disposição;
disposição;
FGV DIREITO RIO
196
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Art. 145, III–contribuição de melhoria,
4. Contridecorrente de obras públicas.
buição de
Melhoria
5. Impostos
Art. 145, III–contribuição de
melhoria, decorrente de
obras públicas.
Art. 145, III -contribuição de
melhoria, decorrente de
obras públicas.
1) Imposto sobre a Proprieda1) Imposto de Importação de produtos 1) Imposto sobre a Transmisde Territorial Urbana (IPTUestrangeiros (art. 153, I);
são Causa mortis e Doação,
art. 156, I)
2) Imposto de Exportação, para o
de quaisquer bens ou direi2)
Imposto sobre a Transmisexterior, de produtos nacionais ou
tos (ITCMD- art. 155, I)
são de Bens Imóveis (ITBI
nacionalizados (art. 153, II)
2) Imposto sobre operações re–art. 156, II)
3) Imposto de Renda da Pessoa Física
lativas à circulação de mer(IRPF) e Jurídica (IRPJ) incidente sobre
cadorias e sobre prestações 3) ISS–Imposto sobre Serviços
de qualquer natureza, não
o Ganho de Capital apurado na aliede serviços de transporte
compreendidos no art. 155
nação de bens e direitos (art. 153, III)
interestadual e intermuniII, definidos em lei comple4) Imposto sobre produtos industrializacipal e de comunicação,
mentar (art. 156)
dos (IPI- art. 153 IV)
ainda que as operações e
as
prestações
se
iniciem
no
5) Imposto sobre operações de crédito,
exterior (ICMS–art. 155, II)
câmbio e seguro, ou relativas a títulos
e valores mobiliários -IOF (Art 153 V) 3) Imposto sobre a propriedade de Veículos Automotores
6) Imposto sobre a propriedade Territo(IPVA- art. 155, III)
rial Rural (ITR – art. 153, VI)
7) Imposto sobre grandes fortunas (IGF
– art. 153, VII)
FGV DIREITO RIO
197
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
6. Contribuições
especiais
1) Contribuição para a Previ1) Contribuições sociais
dência dos seus servidores
a. Gerais: Fundo de Garantia sobre o Tem(art. 149, §1º e art. 40).
po de Serviço (FGTS – art. 7º, III); Salário
Educação455 (art. 212,§5º) etc.
b. Contribuição para a Seguridade Social
em geral (art. 149 c/c art. 195)
- Contribuição para a Previdência dos seus
servidores (art. 149 caput e art. 40)
Outras contribuições sobre a folha de
salários e demais rendimentos (previdenciárias do empregador), sobre
o trabalhador e demais segurados
(previdenciária dos empregados) sobre
o lucro (CSL), sobre a receita ou faturamento (COFINS), sobre a receita de
concursos prognósticos, do impotador
de bens e serviços.
c. Outras de seguridade social (art. 195 §4º)
Programa de Integração Social (art. 239)
Programa de Formação do Patrimônio do
Servidor Público (art. 239)
2) intervenção no domínio econômico
(art. 149 caput, §2º e art. 177, §4º–CIDE
petróleo) e outras de interventivas
(AFRMM, CODENCINE etc.)
3) de interesse das categorias profissionais
ou econômicas: Contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha
de salários, destinadas às entidades
privadas de serviço social e formação
profissional vinculadas ao sistema sindical (art. 240): chamado sistema S, que
compreende as contribuições para o
serviço nacional de aprendizagem rural
(SENAR), para o serviço nacional de
aprendizagem de transporte (SENAT),
para o serviço social de transporte
(SEST), para o serviço social da Indústria
(SESI), para o serviço nacional de
aprendizagem comercial (SENAC), para
o serviço nacional de aprendizagem
industrial (SENAI), para o serviço social
do comércio (SESC).
Contribuição prevista no artigo 8º IV da
CR-88.
1) Contribuição para a Previdência dos seus servidores
(art. 149, §1º e art. 40).
Conforme será examinado nas Aulas 13 e 14, pertinentes às diferentes
bases econômicas de incidência de tributos e da extrafiscalidade, respectiva-
455
Dispõe a Súmula nº 732 do STF: “É
constitucional a cobrança da contribuição do salário-educação, seja sob a
carta de 1969, seja sob a Constituição
Federal de 1988, e no regime da Lei
9424/1996.”
FGV DIREITO RIO
198
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mente, e bem assim na aula concernente à capacidade contributiva (Aula 17),
todas essas espécies tributárias supracitadas podem ser agrupadas e estudadas,
além da perspectiva jurídica do nosso federalismo fiscal, conforme acima segmentado, também sob o ponto de vista: (1) das diferentes situações de fato
ou situações jurídicas (atos, fatos ou negócio jurídicos) a ensejar a incidência
de tributos, enfoque a ser utilizado na aula pertinente ao estudo da relação
jurídica tributária (Aula 15); e (2) do substrato econômico a que se vinculam,
isto é, o patrimônio, a renda ou o consumo, os quais consubstanciam as três
bases econômicas de incidência dos tributos (Aula 13 e 14).
Antes do início do último tópico desta aula, que serve de introdução ao
conteúdo da próxima, pertinente à parafiscalidade (Aula 12), importante repisar que a competência tributária não se confunde com a capacidade tributária. Esta está compreendida naquela, já que se consubstancia no direito de
arrecadar ou fiscalizar tributos ou a execução de leis, serviços, atos ou decisões
administrativas em matéria tributária, sendo, em regra, atribuição do próprio Poder Executivo do Ente Político competente para instituir o tributo,
podendo, conquanto, ser delegada, nos termos do já citado art. 7º do CTN,
ao contrário do que corre com a competência tributária, que é indelegável,
haja vista ser vincualda à função legislativa de caráter político, conforme já
salientado. De fato, na delegação da capacidade tributária ativa transfere-se o
exercício de determinadas funções administrativas e não propriamente uma
parcela da competência.
11.3.4. A Competência Tributária e a sua correlação com o Poder de Tributar, a Capacidade Tributária e a Sujeição Ativa
É possível a delegação de capacidade tributária ativa para pessoas jurídicas
de direito privado?
A resposta para essa pergunta requer a preliminar determinação se a atribuição da capacidade tributária a outra pessoa altera – ou não – o sujeito
ativo da relação jurídica tributária, questão que se projeta, também, sobre o
processo judicial tributário. Essa análise suscita, também, o exame da equivalência ou não dos dois conceitos, isto é, se capacidade tributária ativa é – ou
não – sinônimo de sujeição ativa.
O artigo 119, do CTN dispõe sobre a sujeição ativa nos seguintes termos:
Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da
competência para exigir seu cumprimento.
A regra geral, conforme já salientado, é que a competência e a capacidade
tributária ativa estejam reunidas, isto é, normalmente o ente político competente para instituir o tributo também exerce as atividades de arrecadação,
FGV DIREITO RIO
199
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
fiscalização e bem assim executa as leis, serviços, atos ou decisões administrativas relacionados ao tributo de sua atribuição.
Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a sujeição
ativa é alterada na hipótese da delegação da capacidade tributária ativa, conforme se infere do seguintes trecho da ementa AgRg no Recurso Especial nº
257.642/SC456, cuja parte relevante da ementa revela:
Ilegitimidade passiva da União e legitimidade do FNDE e do INSS, visto
que este é o agente arrecadador e fiscalizador da contribuição do salário-educação, repassando àquele os valores devidos e arrecadados, sendo, portanto, o
sujeito ativo da obrigação tributária, nos moldes do art. 119 do CTN. (grifo nosso)
Caso a entidade para a qual foi deferida a capacidade tributária ativa seja
extinta, ocorre a sucessão da sujeição ativa (da parte que ocupa um dos pólos
da relação jurídica), que retorna ao ente político competente, conforme se
extrai da seguinte ementa do REsp 655800/AL457, cujo acórdão prescreve:
1. A Contribuição de que trata o art. 64 da Lei 4.870/65 tinha por sujeito
ativo o Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA.
2. A sujeição ativa, fixada por lei, não pode ser alterada por mera deliberação do Conselho do Instituto.
3. Com a extinção do IAA, a União, como sua sucessora, passou a ocupar
o pólo ativo nas relações tributárias anteriormente titularizadas por essa autarquia.
4. De acordo com o art. 131, § 3º, da Constituição Federal, “na execução da
dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”.
5. Ilegitimidade da Cooperativa dos Plantadores de Cana de Alagoas Ltda.
(COPLAN) para promover, em nome próprio, execução de tributo devido
à União.
6. Recurso Especial não provido.
Em segundo lugar, importante destacar que, nos termos do §2º do citado
artigo 7º do CTN, a delegação da capacidade triibutária ativa pode ser revogada expressamente, a qualquer tempo, por ato unilateral da pessoa jurídica
de direito público que tenha conferido à outra pessoa jurídica a função de
arrecadar ou fiscalizar tributos ou a execução de leis, serviços, atos ou decisões
administrativas em matéria tributária.
Um exemplo concreto de revogação de delegação de capacidade tributária ativa pode ser extraído da Lei nº 11.098/2005. Durante muito tempo a
União, ente político competente para instituir as denominadas contribuições
456
BRASIL. Poder Judiciário. Superior
Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
257642/SC, Segunda Turma, Rel.
Min. Franciulli Netto. Julgamento em
15.08.2002. Brasília. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em
16.05.2010. Decisão por unanimidade
de votos.
457
BRASIL. Poder Judiciário. Superior
Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
257642/SC, Segunda Turma, Rel. Min.
Herman Benjamin. Julgamento em
06.12.2007. Brasília. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em
16.05.2010. Decisão por unanimidade
de votos.
FGV DIREITO RIO
200
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
previdenciárias, espécie do gênero contribuição para financiamento da seguridade social (artigo 195 da CR-88), delegou a capacidade tributária ativa de
algumas dessas contribuições previdenciárias para o Instituto Nacional do
Seguro Social – INSS, autarquia federal458 dotada de personalidade jurídica
própria, não se confundido, portanto, com o próprio ente federal. Assim, o
INSS, além de sua atribuição para reconhecer benefícios previdenciários e
realizar os pagamentos a eles vinculados, também possuia a capacidade tributária ativa por delegação da União, visto ser também responsável pelo custeio
da previdência. Nesse sentido aponta Eduardo Tanaka459:
Em 1990, o Sinpas é extinto. A Lei nº 8.029/90 cria o Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS), como autarquia federal, mediante fusão do Instituto de
Administração da Previdência e Assistência Social (Iapas), repsonsável pelo custeio, com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), responsável pelo
benefício. Desta forma, custeio e benefício unem-se em uma única entidade, o
INSS. (grifo nosso)
O Superior Tribunal de Justiça ao examinar a situação vigente à época, que
foi posteriormente alterada conforme será abaxo explicitado, assim se pronunciou por meio do voto do relator José Delgado no AgRg no RESP 440921:460
Em realidade, está a parte autora a confundir a competência tributária com
a capacidade tributária ativa. A União, no caso, detém a competência tributária,
podendo legislar sobre a contribuição previdenciária, mas quem detém a capacidade tributária ativa para gerenciar, exigir e cobrar a contribuição previdenciária
é a autarquia federal INSS.
Confira-se a lição do renomado professor PAULO DE BARROS CARVALHO, in “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, SP, 1996, pág. 146.
“A competência tributária, em síntese, é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada
na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos.
Não se confunde com a capacidade tributária ativa. Uma coisa é poder legislar,
desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando os
expedientes necessários à sua funcionalidade, outra é reunir credenciais
para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. O estudo da competência tributária é um momento anterior à existência mesma do tributo,
situando–se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem
como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado ao
ensejo de desempenho das competências, quando o legislador elege as pessoas
componentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece,
no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa. A distinção justifica-se
458
Nos termos do artigo 4º, II, do Decreto-lei 200/1967, a autarquia compõe a
denominada Administração Indireta e
possui personalidade jurídica própria,
vinculando-se ao Ministério cuja área
de competência estiver enquadradasua
principal atividade.
459
TANAKA, Eduardo. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009.p.7.
460
BRASIL. Poder Judiciário. Superior
Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
440921/PR, Primeira Turma, Rel.
Min. José Delgado. Julgamento em
22.10.2002. Brasília. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em
04.01.2011. Decisão por unanimidade
de votos.
FGV DIREITO RIO
201
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
plenamente. Reiteradas vezes, a pessoa que exercita a competência tributária
se coloca na posição de sujeito ativo, aparecendo como credora da prestação a
ser cumprida pelo devedor. É muito freqüente acumularem-se as funções de
sujeito impositor e de sujeito credor numa pessoa só. Além disso, uma razão de
ordem constitucional nos leva a realçar a diferença: a competência tributária é
intransferível, enquanto a capacidade tributária ativa não o é. Quem recebeu
poderes para legislar pode exercê-los, não estando, porém, compelido a fazê-lo.
Todavia, em caso de não-aproveitamento da faculdade legislativa, a pessoa
competente estará impedida de transferi-la a qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da competência tributária, que arrolamos entre as
diretrizes implícitas e que é uma projeção daquele postulado genérico do art.
2º da Constituição, aplicável, por isso, a todo o campo da atividade legislativa.
A esse regime jurídico não está submetida a capacidade tributária ativa. É
perfeitamente possível que a pessoa habilitada para legislar sobre tributos edite
a lei, nomeando outra entidade para compor o liame, na condição de sujeito
titular de direitos subjetivos, o que nos propicia reconhecer que a capacidade
tributária ativa é transferível. Estamos em crer que esse comentário explica a
distinção que deve ser estabelecida entre competência tributária e capacidade
tributária ativa.”
Resta claro, à luz dos ensinamentos transcritos, que no caso da contribuição
previdenciária, a União não faz parte da relação jurídico-tributária referente à
contribuição para o INSS, a qual existe entre o INSS e a parte requerente. O
mesmo já não acontece em relação a outras contribuições, por exemplo a COFINS, cuja competência é da União e cuja capacidade tributária ativa também
é da União, sendo a sua arrecadação administrada por um Órgão da União, no
caso, a Receita Federal. O INSS não é órgão da União. É autarquia federal com
personalidade jurídica própria.
Posteriormente, a supracitada Lei nº 11.098/2005 autorizou a criação da
Secretaria da Receita Previdenciária, no âmbito do Ministério da Previdência
Social, à qual atribuiu as funções de arrecadação, fiscalização, lançamento e
normatização de receitas previdenciárias, conforme revela a ementa do ato,
atividades antes execidas pelo INSS, nos termos acima aludidos. Nesse sentido, o artigo 8º, inciso II, da mencionada lei, revogadora da capacidade tributária ativa da autarquia, autorizou o Poder Executivo a “transferir da estrutura
do INSS para a estrutura do Ministério da Previdência Social os órgãos e
unidades técnicas e administrativas que, na data de 5 de outubro de 2004,
estejam vinculados à Diretoria da Receita Previdenciária e à CoordenaçãoGeral de Recuperação de Créditos, ou exercendo atividades relacionadas com
a área de competência das referidas Diretoria e Coordenação-Geral, inclusive
no âmbito de suas unidades descentralizadas”. Dessa forma, entre os efeitos
FGV DIREITO RIO
202
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
da Lei 11.098/2005 está a revogação da capacidade tributária ativa anteriormente conferida ao INSS, autarquia dotada personalidade jurídica própria.
As atribuições passaram, então, a ser exercidas pela própria União, por meio
de sua Administração Direta461, isto é, pela citada Secretaria da Receita Previdenciária, órgão vinculado ao Minstério da Previdência, o qual compõe a
Administração Direta do Poder Executivo federal.
Ressalte-se que, posteriormente, já em 2007, a Lei nº 11.457/2007 extinguiu a Secretaria da Receita Previdenciária e criou a Secretaria da Receita
Federal do Brasil, apelidada de “Super Receita”, conforme será analisado na
próxima aula sobre a Parafiscalidade462.
Alguns doutrinadores, a partir da premissa adotada pelo STJ no citado
AgRg no Recurso Especial nº 257.642/SC463, segundo o qual a alteração
da capacidade tributária ativa modifica a sujeição ativa, defendem a tese de
que somente os Entes Políticos detentores de competência tributária para
instituir tributos é que possuem capacidade tributária ativa, por força da literalidade do acima transcrito art. 119, do CTN (“Sujeito ativo da obrigação
é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir seu
cumprimento”). Tal corrente doutrinária é capitaneada por Rubens Gomes
de Souza464, Ricardo Lobo Torres465, e Hugo de Brito Machado466.
Rubens Gomes de Souza467 acentua que “somente as entidades públicas468
dotadas de poder legislativo (...) é que podem ser sujeitos ativos de obrigações tributárias”. Nessa toada, limita a sujeição ativa ao próprio Ente Político
instituidor da exação.
Já Ricardo Lobo Torres469 admite que, além dos Entes Políticos, podem,
também, ocupar o polo ativo da relação tributária as autarquias, “pois se lhe
estende o conceito de Fazenda Pública e se lhes atribui a competência para a
cobrança das contribuições especiais”, posição que se harmoniza com a delegação que ocorria no passado ao INSS, conforme acima descrito.
Hugo de Brito Machado470, a seu turno, pontua que “só as pessoas jurídicas de direito público podem ser sujeitos ativos da obrigação tributária”.
Nesse sentido, o autor amplia o conceito de capacidade tributária ativa e
admite-a para todas as pessoas jurídicas de direito público; donde se infere
que teriam capacidade tributária ativa, além dos Entes Políticos, as autarquias
e as fundações públicas de natureza pública471.
Em sentido diverso das referidas doutrinas, segue a linha de pensamento
de Luciano Amaro472, o qual, apesar de reconhecer que o Ente Público instituidor do tributo é, em regra, o sujeito ativo da relação jurídico-tributária,
que da exação criada emerge, admite exceções que afastam a indigitada norma geral, por força da disciplina constitucional, como ocorre, por exemplo,
com as denominadas contribuições parafiscais ou especiais: isto é, aquelas cobradas e fiscalizadas por entidades fora do núcleo da Administração Pública.
Aponta o mencionado autor: “uma coisa é a competência tributária (aptidão
461
A Administração Direta, nos termos do artigo 4º, I, do Decreto-lei
200/1967, se constitui dos serviços integrados na estrutura administativa da
Presidência da República e dos Ministérios. Portanto, os órgãos integrantes
da Administração Direta não possuem
personalidade jurídica própria, exercendo as atividades de competência do
ente politco por meio de distribuição
interna de funções e atribuições administrativas.
462
Nesses termos, atualmente, todas
as contribuições sociais, inclusive as
previdenciárias e as contribuições arrecadadas pelos denominados “terceiros”
(Sesc, Senai, Senac, Senar e outros)
passaram a ser arrecadadas pela Super
Receita.
463
BRASIL. Poder Judiciário. Superior
Tribunal de Justiça. AgRg no REsp
257642/SC, Segunda Turma, Rel.
Min. Franciulli Netto. Julgamento em
15.08.2002. Brasília. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em
16.05.2010. Decisão por unanimidade
de votos.
464
SOUZA, Rubens Gomes de. Compendio de legislação tributária. Edição
póstuma. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p.89.
465
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11 ed.
Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004,
p. 253.
466
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de
Direito Tributário. 21 ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Malheiros,
2002, pp. 122-123.
467
SOUZA. Op. Cit. p. 89.
468
Ressalte-se aqui o uso da expressão
“entidades públicas”para designar Entes Políticos.
469
TORRES ( 2004 ). p. 253.
470
MACHADO. Op. Cit. pp. 122-123.
471
Sobre este assunto vide DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16 ed. São Paulo: Editora Atlas,
2003, p.365. Segundo a administrativista, a fundação pública pode ter
caráter público ou privado, depende do
que dispõe a lei que a instituir. Sendo
certo que, quando a lei instituidora der
a fundação personalidade jurídica de
direito público, o seu regime jurídico
será igual ao das autarquias, “sendo
chamada de autarquia fundacional”,
pontua a autora.
472
AMARO. Op. Cit. pp. 292-293.
FGV DIREITO RIO
203
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
para instituir o tributo) e a outra é a capacidade tributária (aptidão para ser
titular do pólo ativo da obrigação)”. Afirma, ainda, Luciano Amaro que a
identificação do sujeito ativo da obrigação tributária “deve ser buscada no
liame jurídico em que a obrigação se traduz, e não na titularidade da competência para instituir o tributo”.
O raciocínio de Luciano Amaro, se analisado apenas o aspecto teórico
e material da questão, ou seja, sem levar em consideração o aspecto processual473 que envolve a matéria no momento, parece se coadunar com o
texto constitucional de 1988, o qual prevê em seu art. 8º, IV, a contribuição
sindical cobrada pelos sindicatos (entidades privadas) e, ainda, as contribuições de interesse das categorias profissionais econômicas para manutenção do
denominado sistema “S” (SESI, SENAI, SESC, SEBRAE etc) previstas no
art. 240 da CR-88 e também fundamentadas no art. 149 da CR-88. Essas
entidades que fazem parte do sistema “S”, assim como os sindicatos, são pessoas jurídicas de direito privado, realizando, entretanto, atividades voltadas
ao incremento da formação profissional dos trabalhadores, o que também é
de interesse público.
Nesse cenário, parece possível uma leitura dos artigos 7º e 119 do CTN de
forma a interpretá-los conforme a Constituição de 1988. De fato, a realidade
jurídico-constitucional atual é diversa daquela vigente à época da edição do
CTN, 1967. Cumpre, ainda, frisar que em 1967, quando da elaboração do
CTN, os tributos enfeixavam apenas os impostos, as taxas e a contribuição de
melhoria. As contribuições previdenciárias, sindicais, e o FGTS, não estavam
incluídas no capítulo que tratava dos tributos, as quais foram, por emenda
ao projeto, previstas posteriormente no capítulo das disposições finais e transitórias, nos termos do art. 217 do CTN. Repise-se que essa análise, baseada
na doutrina de Luciano Amaro, não considera os aspectos processuais que
envolvem a matéria nem a realidade prática fixada pela Lei nº 11.457/2007,
conforme salientado na nota de rodapé nº 468 e será reexaminado na próxima aula.
Na opinião de Aliomar Baleeiro474, o referido art. 217, acrescentado ao
CTN, “visa a estancar dúvidas sobre a exigibilidade das contribuições parafiscais ou especiais, que ele indica e que, aliás, estão contempladas na Constituição Federal (na redação da Emenda nº 1/1969, art. 163, parag. Único; 165,
XVI, 166, §1º; e art. 21, §2º, I)”. Com efeito, a referida emenda estabeleceu,
no capítulo do Sistema Tributário, em seu art. 18, §2º, a competência da
União para instituir “contribuições (...), tendo em vista intervenção no domínio econômico ou o interesse de categorias profissionais e para atender diretamente à parte da União no custeio dos encargos da previdência social”475.
Diante desse quadro, a doutrina e a jurisprudência passaram a admitir a
natureza tributária dessas exações. Paisagem que não durou muito tempo,
pois, em 1977, por força da emenda constitucional nº 8, que afastou as con-
473
Essa matéria será examinada na
disciplina Direito Tributário e Finanças
Públicas III e envolve a intrincada possibilidade de pessoa jurídica de direito
privado ajuizar execução fiscal nos
termos da Lei nº 6.830/80. De fato, é
possível sustentar que dever-se-ia aplicar na hipótese a execução por quantia
certa contra devedor solvente, cujas regras procedimentais estão capituladas
no Código de Processo Civil. No entanto,
no caso da Contribuição Sindical Rural,
por exemplo, que é espécie de Contribuição Social prevista no artigo 149 da
Constituição, a jurisprudência é no sentido da possibilidade de pessoa jurídica
de direito privado ocupar o pólo ativo
da relação processual. A Contribuição
Sindical Rural foi instituída pela Consolidação das Leis do Trabalho (arts.
578 e seguintes) e regulamentada pelo
Decreto-Lei 1.166/71. A competência
tributária para instituir essa contribuição é da União, conforme se extrai
do próprio artigo 149 da CR-88. Já a
capacidade tributária ativa (aptidão
de arrecadar e fiscalizar o tributo), era
por força do artigo 4º do Decreto-Lei
1.166/71, do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Com advento da Lei nº 8.022,
de 12/04/90, a competência para o
lançamento e cobrança das receitas
arrecadadas pelo INCRA, passou à Secretaria da Receita Federal (SRF). Posteriormente, em dezembro 1996, a SRF
órgão transferiu a competência da arrecadação da contribuição sindical rural à
Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil - CNA, representante do sistema sindical rural, conforme previsto na
Lei 8.847/94. De acordo com a Súmula
396 do STJ: “A Confederação Nacional
da Agricultura tem legitimidade ativa
para a cobrança da contribuição sindical rural”. Em sentido análogo ocorreu
com Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e
a Contribuição ao Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (Senar). Por sua
vez, a Lei nº 11.457/2007, que criou a
Receita Federal do Brasil estende a sua
aplicabilidade às “contribuições devidas
a terceiros, assim entendidas outras entidades e fundos, na forma da legislação em vigor, aplicando-se em relação
a essas contribuições”. Nessa linha,
dependendo das competências conferidas à Advocacia Geral da União (AGU), é
possível que a União ocupe o polo ativo
de execuções fiscais de “contribuições
devidas a terceiros”, haja vista o disposto nos artigos 2º, 3º e 16, §7º, da norma
que cria a RFB, bem como o contido nos
artigos 578 e 610 da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), no caso das contribuições sindicais. Saliente-se, ainda,
que nesses casos a administração do
tributo ficaria sob responsabilidade
da União devendo o ônus da cobrança
judicial ficar a cargo do destinatário
da arrecadação. Situação semelhante
FGV DIREITO RIO
204
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tribuições sociais do capítulo do sistema tributário, para inseri-las na parte
que trata das demais matérias afetas à competência legislativa da União, os
estudiosos da matéria e o próprio STF passaram a defender a tese de que tais
exações não teriam mais natureza tributária476.
A Constituição de 1988 delineou novo cenário para as contribuições especiais, inserindo-as no capítulo do sistema tributário nacional: cuja regra
matriz está no art. 149. Diante desta realidade, a doutrina em geral e a jurisprudência passaram novamente a admitir a natureza tributária das contribuições. De fato, recentemente, o STF, em decisão plenária, considerou
inconstitucional o prazo prescricional de 10 anos previsto para a cobrança
das contribuições previdenciárias, sendo, inclusive, matéria de súmula vinculante477. Alegou a Suprema Corte que, em razão da natureza tributária dessas
exações, devem as mesmas se submeter aos prazos de prescrição e decadência
previstos no CTN e não aqueles fixados o parágrafo único do artigo 5º do
Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que
são inconstitucionais.
Importante destacar, ainda, que, além das hipóteses supramencionadas,
pertinentes à contribuição cobrada pelos sindicatos (art. 8º da CR-88) e bem
assim das contribuições para manutenção do denominado Sistema S (artigo
240 da CR-88), situações passíveis de caracterização como de delegação da
capacidade tributária ativa à pessoas jurídicas de direito privado, a Constituição também atribui aos cartórios privados478, a teor do artigo 236 da
CR-88, a cobrança de emolumentos extrajudiciais. Essas exigências, além
de caracterizadas como custas extrajudicais, são qualificadas pelo Supremo
Tribunal Federal, de acordo com a jurisprudência fixada na ADI 1444-7, cuja
ementa será adiante transcrita, como taxas, espécie de tributo vinculado, posto ser o produto de sua arrecadação afetado ao custeio de serviços públicos
conexos àqueles cuja remuneração tais valores se destinam especificamente.
Entretanto, antes da transcrição da ementa da ADI 1444-7, deve-se enfatizar
a distinção entre as atividades desenvolvidas (1) pelos cartórios479 e serventias
judiciais, serviços públicos essenciais exercidos diretamente pelo Poder Judiciário e que suscitam a cobrança de custas e emolumentos480 para a realização
dos serviços forenses481, (2) daquelas atividades jurídicas próprias do Estado
delegadas somente a pessoas naturais habilitadas por concurso público para
realizar serviços notariais e de registros482. O art. 5º da Lei nº 8.935/1994483
define quais são os titulares484 de serviços realizados pelos cartórios privados:
tabeliães de notas (art. 6º e 7º), tabeliães de protestos de títulos (art. 11),
tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos (art. 10), oficiais de
registros de imóveis (art. 12 e Lei nº 6.015/1973), oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas (art. 12 e Lei nº 6.015/1973)
e oficiais de registro das pessoas naturais e de interdições e tutelas (art. 12 e
Lei nº 6.015/1973).
pode ocorrer com as contribuições para
as entidades patronais (SESI, SESC, SENAI etc) cuja receita não está incluida
no orçamento da União, mas a fiscalização e cobrança pode ser realizada pela
Receita Federal do Brasil.
474
BALEEIRO. Op. Cit. pp.569-570.
475
BRASIL. Senado Federal. Constituições do Brasil. Brasília: Subsecretaria
de Edições Técnicas, 1986, p.530.
476
Nesse sentido, ver RE 86.595 de
07.06.1978.
477
Vide Súmula Vinculante 8: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e
os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991,
que tratam de prescrição e decadência
de crédito tributário”.
478
Dispõe o artigo 236 da CR-88: “art.
236. Os serviços notariais e de registro
são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
§
1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e
criminal dos notários, dos oficiais de
registro e de seus prepostos, e definirá
a fiscalização de seus atos pelo Poder
Judiciário.
§
2º - Lei federal estabelecerá normas
gerais para fixação de emolumentos
relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§
3º - O ingresso na atividade notarial
e de registro depende de concurso
público de provas e títulos, não se
permitindo que qualquer serventia
fique vaga, sem abertura de concurso
de provimento ou de remoção, por mais
de seis meses.
479
Ver art. 93, II, alínea “e”, da CR-88,
com a redação fixada pela Emenda
Constitucional nº 45/2004.
480
O § 2º do art. 98 da CR-88, com a
redação conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, estabelece: “As
custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos
serviços afetos às atividades específicas
da Justiça”.
481
Compete à União, aos Estados e ao
Distrito Federal legislar concorentemente sobre “custas dos serviços forenses”, nos termos do art. 24, IV, da CR-88.
482
De acordo com o disposto no art. 22,
XXV, da CR-88, é competência privativa
da União legislar sobre “registros públicos”. A Lei nº 6.015/74 disciplina os
Registros Públicos no país.
483
A denominada lei dos cartórios
regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços
notariais e de registro, qualificados
como aqueles “de organização técnica e
administrativa destinados a garantir a
FGV DIREITO RIO
205
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
As custas e os emolumentos, tanto os judiciais como os extrajudiciais,
conforme já salientado, são qualificados como taxas e, portanto, enquadramse como espécies tributárias, nos termos da citada decisão do STF (ADI
1444-7)485:
ADI 1444 / PR – PARANÁ
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 12/02/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação DJ 11-04-2003 PP-00025 EMENT VOL-02106-01 PP-00046
Parte(s)
REQTE.: CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS
DO BRASIL
ADVDO.: FRANCISCO ERNANDO UCHOA LIMA
ADVDO.: MARCELO MELLO MARTINS E OUTRO
REQDO.: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ
Ementa
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CUSTAS
E EMOLUMENTOS: SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO
Nº 7, DE 30 DE JUNHO DE 1995, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DO PARANÁ: ATO NORMATIVO. 1. Já ao tempo da Emenda
Constitucional nº 1/69, julgando a Representação nº 1.094-SP, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que “as custas
e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais”, por não serem preços públicos,
“mas, sim, taxas, não podem ter seus valores fixados por decreto, sujeitos que
estão ao princípio constitucional da legalidade (parágrafo 29 do artigo 153 da
Emenda Constitucional nº 1/69), garantia essa que não pode ser ladeada mediante delegação legislativa” (RTJ 141/430, julgamento ocorrido a 08/08/1984).
2. Orientação que reiterou, a 20/04/1990, no julgamento do RE nº 116.208MG. 3. Esse entendimento persiste, sob a vigência da Constituição atual (de
1988), cujo art. 24 estabelece a competência concorrente da União, dos Estados
e do Distrito Federal, para legislar sobre custas dos serviços forenses (inciso IV)
e cujo art. 150, no inciso I, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
municípios, a exigência ou aumento de tributo, sem lei que o estabeleça. 4. O
art. 145 admite a cobrança de “taxas, em razão do exercício do poder de polícia
ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”. Tal conceito abrange
não só as custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), pois
estas resultam, igualmente, de serviço público, ainda que prestado em caráter
particular (art. 236). Mas sempre fixadas por lei. No caso presente, a majoração
de custas judiciais e extrajudiciais resultou de Resolução – do Tribunal de Justi-
publicidade, autenticidade, segurança
e eficácia dos atos jurídicos”.
484
Notário, ou tabelião, e oficial de
registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a
quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Para análise
da disciplina recomenda-se a leitura
de RIBERIO, Juliana de Oliveira Xavier.
Direito Notarial e Registral. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008.
485
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 1444-7/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches.
Julgamento em 12.02.2003. Brasília.
Disponível em: <http://www.stf.jus.
br>. Acesso em 22.06.2010. Decisão
unânime.
FGV DIREITO RIO
206
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ça – e não de Lei formal, como exigido pela Constituição Federal. 5. Aqui não se
trata de “simples correção monetária dos valores anteriormente fixados”, mas de
aumento do valor de custas judiciais e extrajudiciais, sem lei a respeito. 6. Ação
Direta julgada procedente, para declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
Decisão
– O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na
inicial para declarar a inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho
de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Votou o Presidente, o
Senhor Ministro Marco Aurélio. Ausentes,
justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello, e, neste julgamento, o
Senhor Ministro Ilmar Galvão. Plenário, 12.02.2003.
Portanto, de acordo com a jurisprudência do STF, tanto as custas e os
emolumentos judiciais como os extrajudiciais são qualificados como tributos,
da espécie taxa.
As receitas arrecadadas por meio da cobrança das custas e os emolumentos, conforme determinação constitucional expressa (art. 98, §2º486), devem
ser destinadas exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da justiça.
As exações sobre os serviços notariais e de registro (custas e emolumentos
extrajudiciais), de acordo com a jurisprudência do STF, têm natureza de taxa
de polícia e não de taxa de serviço, haja vista a tríplice atividade exercida pelo
Poder Judiciário, isto é, a vigilância, a orientação e a correição. Dessa forma, por serem remuneradas por taxa de polícia pode a receita ser vinculada
a órgão, fundo ou despesa, da mesma forma que das custas e emolumentos
judiciais, tendo em vista não ser aplicável às duas espécies o disposto no art.
167, IV, da CR-88, que se restringe aos impostos. Essa disciplina pode ser
inferida da leitura da ementa da ADI 3643/RJ,487 que dispõe sobre o Fundo
Especial da Defensoria Pública:
ADI 3643 / RJ – RIO DE JANEIRO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO
Julgamento: 08/11/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISO III DO ART. 4º DA LEI Nº 4.664, DE 14
DE DEZEMBRO DE 2005, DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. TAXA
INSTITUÍDA SOBRE AS ATIVIDADES NOTARIAIS E DE REGISTRO.
PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DESTINADO AO FUNDO ESPECIAL
DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. É
constitucional a destinação do produto da arrecadação da taxa de polícia sobre
486
Dispositivo incluído pela Emenda
Constitucional nº 45/2004.
487
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 3643-RJ, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Carlos Brito. Brasília.
Julgamento em 08.11.2006. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso
em 21.05.2010. O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação, nos
termos do voto do Relator, vencido o
Senhor Ministro Marco Aurélio.
FGV DIREITO RIO
207
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
as atividades notariais e de registro, ora para tonificar a musculatura econômica
desse ou daquele órgão do Poder Judiciário, ora para aportar recursos financeiros
para a jurisdição em si mesma. O inciso IV do art. 167 da Constituição passa ao
largo do instituto da taxa, recaindo, isto sim, sobre qualquer modalidade de imposto. O dispositivo legal impugnado não invade a competência da União para
editar normais gerais sobre a fixação de emolumentos. Isto porque esse tipo de
competência legiferante é para dispor sobre relações jurídicas entre o delegatário
da serventia e o público usuário dos serviços cartorários. Relação que antecede,
logicamente, a que se dá no âmbito tributário da taxa de polícia, tendo por base
de cálculo os emolumentos já legalmente disciplinados e administrativamente
arrecadados. Ação direta improcedente.
O inciso III do artigo 31 da Lei Complementar nº 111 do Estado do Rio
de Janeiro, de 13 de março de 2006, cujo projeto de lei foi apresentado pelo
chefe do Poder Executivo e que alterou a Lei Complementar nº 15 (Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro), estabelece que
5% das custas judiciais e dos emolumentos extrajudiciais recebidos pelos notários e registradores devem ser vinculados como receita do Fundo Especial
da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (Funperj). A Associação
dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3704), com pedido de liminar, contra esta norma
do Estado do Rio de Janeiro. Nos termos da incial da ADI, a competência
para legislar sobre custas e emolumentos judiciais e extrajudiciais é exclusiva
do Poder Judiciário, conforme o parágrafo 2º do artigo 236 e o inciso IV do
artigo 24 da Constituição Federal. Dessa forma, alega flagrante vício de iniciativa na proposição da lei e complementa no sentido de que:
a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro não guarda a mínima relação com
os serviços notariais e de registro. Eles não exercem poder de polícia sobre estes
serviços delegados e não se encontram jungidos aos serviços notariais e de registro em suas atividades cotidianas.
Alega ainda a entidade que o dispositivo questionado fere o caput do artigo 236 da Carta Magna, na medida em que ocorre o desvio na finalidade dos
emolumentos para complementar os recursos financeiros do Funperj, tendo
em vista “ser caracterizada como taxa, o destino da arrecadação não pode
ter outro destino, conforme consta na Constituição Federal, no artigo 236,
caput, que impede a destinação destas taxas para qualquer outra finalidade,
seja pública ou privada”.
Segundo a entidade, o Estado do Rio de Janeiro instituiu, por meio do
dispositivo atacado, um tributo na modalidade de imposto sobre o emolumento. Neste caso, afrontaria o artigo 155 da Carta Magna, que prevê as
FGV DIREITO RIO
208
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
hipóteses nas quais os Estados podem instituir imposto, e ao inciso I do artigo 154, que define que a competência para instituir imposto é exclusiva da
União. Salienta, ainda, que a União já cobra imposto de renda com o mesmo
fato gerador do instituído pela norma impugnada, conforme consta no artigo
8º, parágrafo 1º, da Lei nº 7.713/88. Por fim, sustenta que o dispositivo viola
o inciso IV do artigo 167, da Constituição Federal, que proíbe a vinculação
de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa.
FGV DIREITO RIO
209
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 12 – A PARAFISCALIDADE COMO TÉCNICA ADMINISTRATIVA
PARA DESENVOLVER ATIVIDADES DE INTERESSE PÚBLICO E O
TRIBUTO NA CR-88
Cumpre, de pronto, destacar que não existe consenso na doutrina quanto
ao sentido e o alcance da expressão “parafiscalidade”, conforme será visto
adiante ao debruçarmos sobre o tema.
O termo “parafiscalidade”, segundo apontam alguns estudiosos488, tem
sua origem no campo financeiro, tendo sido empregado pela primeira vez no
Inventário de Schumann, em 1946, na França, conforme preleciona Misabel Derzi489:
“a expressão ‘parafiscalidade’ se consagrou a partir do inventário Schumann
(...), que levantou e classificou os encargos assumidos por entidades autônomas
e depositárias de poder tributário, por delegação do Estado, como parafiscais. O
inventário incluiu, como encargos de natureza parafiscal, não só os encargos sociais, inclusive seguros sociais e acidentes do trabalho, como as taxas arrecadadas
pelas administrações fiscais para certas repartições e estabelecimentos públicos
financeiramente autônomos (Câmara da Agricultura, de Comércio, Fundo Nacional de Habitat etc.), como os profissionais (Associação Francesa de Padronização, Associações Interprofissionais e órgãos de classe)”.
Como se observa no texto acima, a expressão parafiscalidade era utilizada na França para designar algumas contribuições e taxas, cuja arrecadação
era delegada pelo Poder Público a certas entidades privadas autônomas490,
as quais utilizavam o produto arrecadado para fazer face às suas atividades
dotadas de interesse público, bem como a determinados órgãos públicos, que
detinham autonomia financeira.
A partir da Constituição mexicana de 1917 e da alemã Weimar de 1919,
os direitos sociais passaram a ser consagrados pelo ordenamento jurídicoconstitucional, visando a aprimorar as condições de vida dos indivíduos e
promover meios para diminuir as desigualdades provocadas, em grande escala, pela esfera econômica491. Nesse cenário que foi se formando, o Estado
passou a atuar de forma mais significativa no campo econômico e social, o
que se denominou de Estado Social (também chamado de Estado do Bemestar Social, Estado Intervencionista). Essa mudança se deu em razão do reconhecimento de que certas demandas coletivas deveriam ser incorporadas
à atuação de um novo Estado, no qual os problemas sociais passavam a ser
questões de interesse público – configurando necessidades públicas.
Para ajudar na efetividade da atuação social, o Estado passou a delegar a
entidades especiais autônomas – de natureza pública ou privada – a função
de arrecadar determinadas contribuições para fazer face às despesas oriundas
de atividades de interesse público confiadas o seu exercício às referidas pes-
488
Vide DERZI, Misabel Abreu Machado.
A causa final e a regra-matriz das contribuições. In: DE SANTI, Eurico Marcos
Diniz ( coordenador ). Curso de Direito
Tributário e Finanças Públicas- do
fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva,
2008, pp. 626-666; ROSA JR. Luiz
Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed.
Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001;
e BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução
à Ciência das Finanças. 11. ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 1976.
489
DERZI. Op. Cit. p. 632.
490
Entende-se por entidade, toda
pessoa jurídica de natureza pública ou
privada ( p. ex., sociedade, fundação e
associação): na Administração Indireta
tem-se as autarquias, as fundações,
as sociedades de economia mista e as
empresas públicas, consoante o disposto no art. 4º do Decreto-lei 200/67. No
setor privado encontram-se as sociedades em geral, as associações, e as fundações., nos termos do art. 44 do CC/02.
Vale realçar que não se deve confundir
entidade com órgão, porquanto este
não tem personalidade jurídica ( por
ex., os Ministérios, as Casas Legislativas, os Tribunais de Contas etc.)
491
BARROSO, Luis Roberto. O Direito
Constitucional e a Efetividade de
suas Normas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. pp. 100/101.
FGV DIREITO RIO
210
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
soas jurídicas. Isso ocorreu porque o Estado não conseguiria, sem aumentar
demasiadamente a máquina administrativa, concretizar diretamente tais funções, precisando “criar braços” que ultrapassassem seu núcleo administrativo.
Nesse cenário, cabe analisar a parafiscalidade a partir de, pelo menos, três
perspectivas, as quais se interpenetram, conforme a seguir apresentado de
forma sistemática para melhor compreensão:
12.1. O ORÇAMENTO E O FENÔMENO DA PARAFISCALIDADE
Para alguns doutrinadores a parafiscalidade está correlacionada com o
orçamento, isto é, está associada à ideia de que o produto arrecadado por
entidades autônomas, as quais exercem atividade de interesse público, não
integra o orçamento fiscal do Estado, sendo tal receita cobrada diretamente
pelas referidas entidades.
Nessa linha de intelecção, destacam-se Misabel Abreu Machado Derzi492
e Luiz Emygdio F. da Rosa Jr493. Para este autor, “a parafiscalidade significa,
desde a sua origem, uma finança paralela, no sentido de que a receita decorrente das contribuições não se mistura com a receita geral do poder público”.
Já Misabel Derzi, ao se debruçar sobre o tema, professa que:
“semanticamente, pois, a palavra ‘parafiscalidade’ nasceu para designar a arrecadação por órgão ou pessoa paraestatal, entidades autônomas, cujo produto,
por isso mesmo, não figura na peça orçamentária única do Estado, mas é dado
integrante do orçamento do órgão arrecadador, sendo contabilizado, portanto,
em documento paralelo ou ‘paraorçamentário’”.
492
DERZI, Misabel Abreu Machado. A
causa final e a regra-matriz das contribuições. In: DE SANTI, Eurico Marcos
Diniz ( coordenador ). Curso de Direito
Tributário e Finanças Públicas- do
fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva,
2008, pp. 626-666.
493
ROSA JR. Luiz Emygdio F. da. Manual
de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2001.. p. 415.
FGV DIREITO RIO
211
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Tal posicionamento tem relevância e merece ser considerado quando se
analisa o conteúdo e o alcance do instituto da parafiscalidade. De tal sorte
que o estudo dos tributos a partir de suas múltiplas funções se faz necessário, especialmente quando enfeixam tarefas não meramente arrecadatórias
para o cofre do Tesouro, com vistas a custear as despesas gerais da máquina
administrativa, indo além, servindo de instrumento financeiro viabilizador
de atividades delegadas a terceiros pelo Poder Público, bem como de outras
finalidades pré-definidas a ensejar a instituição da exação que visa a financiar
intervenções na ordem social e econômica pelo próprio Estado.
Nesse contexto, “ser parafiscal é apenas não integrar o orçamento fiscal
da União, não ser receita própria dela, podendo não obstante ser tributo”,
assevera Misabel Derzi494 ao discorrer sobre o alcance semântico da palavra
fiscal, que segundo a autora, não se confunde com o termo tributo, uma vez
que, ao observarmos o orçamento fiscal da União, verificaremos que estão
nele incluídas as receitas tributárias e as não-tributárias, como, por exemplo,
as receitas patrimoniais e as industriais do Estado.
12.1.1. A Seguridade Social no Brasil e a parafiscalidade
A partir da Constituição de 1988, a Seguridade Social ganhou novas feições, a começar por dispor de capítulo próprio, ter seu orçamento incluído
na lei orçamentária da União, estando assim sujeita ao controle do Poder Legislativo. Diversamente, na Constituição de 1969, consoante dispunha o art.
62, §1°, o orçamento da Seguridade Social não estava inserido na lei orçamentária da União, era aprovado por simples ato do Poder Executivo, isto é,
escapava do crivo do Poder legiferante, podendo ser alterado ou remanejado
por decreto do Chefe do Executivo495.
De acordo com o artigo 194 da Constituição a Seguridade Social compreende um conjunto de ações destinados a asseguras direitos relacionados à
Saúde, Assistência e Previdência Social, sendo apenas a última de caráter contributivo. Nesse sentido, a proteção pública dos serviços de saúde de acesso
universal e de assistência social independem de contribuição do beneficiário,
ao contrário da previdência social que possui caráter contributivo.
Nesse contexto, Misabel Derzi496 tem defendido a parafiscalidade necessária para todas as contribuições que servem de base econômica para desenvolver as atividades ligadas à Segurança Social, isto é, manter em (1) orçamento
e (2) caixa próprios todos os valores arrecadados com vinculação específica
para a Seguridade, por razões óbvias, entre elas, evitar o uso desses recursos
para outras finalidades que não àquelas que deram origem ao nascimento
das contribuições sociais, quais sejam: fazer face às despesas com o sistema
da Seguridade Social, o qual abarca a saúde, a assistência e a previdência sociais. No dizer da autora “o que a Constituição de 1988 pretendeu fazer e, de
494
DERZI. Op. Cit. p. 633.
495
DERZI. Op. Cit. p. 635.
496
Idem. Ibidem. pp. 635-641.
FGV DIREITO RIO
212
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
fato, fez, foi submeter os orçamentos da Seguridade e de investimentos das
empresas estatais à apreciação do Poder Legislativo, de modo que os desvios
de recursos e o estorno sem prévia anuência legal, ficassem vedados (art. 167,
VI e VIII)”.
Na realidade, as contribuições sociais para a Seguridade Social já se submeteram a diversos regimes. De tal sorte que, as contribuições previdenciárias, por exemplo, antes da Carta de 1988, conforme já examinado, eram
arrecadadas diretamente por uma autarquia com personalidade jurídica própria, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), ou seja, eram contribuições parafiscais ou paraorçamentárias, visto não integrarem nem o orçamento
da União, tampouco o caixa do Tesouro Nacional. Por outro lado, outras
contribuições sociais para a Seguridade Social – não previdenciárias – eram
arrecadadas pela União diretamente (ex. a FINSOCIAL – hoje COFINS –, o
PIS, e a contribuição sobre o lucro), e repassadas para o INSS. Essa situação
jurídica recebeu o aval do STF, conforme se verifica no RE 138284-8/92:
EMENTA: Constitucional. Tributário. Contribuições sociais. Contribuições
incidentes sobre o lucro das pessoas jurídicas. Lei 7.689, de 15.12.88.
IV. Irrelevância do fato de a receita integrar o orçamento fiscal da União.
O que importa é que ela se destina ao financiamento da seguridade social (Lei
7.689/88, art. 1º).
A partir do referido julgado, é possível inferir que o STF refutou a tese
esposada por Misabel Derzi acerca da parafiscalidade necessária em sede de
contribuições sociais para a Seguridade Social497, ou seja, a Suprema Corte
brasileira considerou legítima a cobrança e arrecadação da contribuição sobre o lucro das pessoas jurídicas por parte da União e só depois repassada ao
INSS e destinadas à segurança social.
Ocorre que recente reforma legislativa (Lei nº 11.457/2007) alterou novamente a sistemática das contribuições sociais para Seguridade Social, pelo
menos sob o aspecto da capacidade ativa, no que concerne à legitimidade da
União para cobrar diretamente, por meio da Secretaria da Receita Federal
do Brasil, tais contribuições, as quais serão creditadas ao Fundo do Regime
Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar
101/2000, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei 11.457/2007.
A Lei 11.457, de 16 de março de 2007, criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, antes denominada Secretaria da Receita Federal, órgão da Administração Direta subordinado ao Ministro de Estado da Fazenda, e extinguiu
a Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Previdência Social498.
Isso significa, conforme se depreende do art. 2º, do mencionado diploma
legislativo, que as funções antes desempenhadas pela Secretaria da Receita
497
DERZI, Misabel. A ‘SuperReceita’pode levar à redução da nossa
já combalida Previd
ência
Social. In: I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E
PREVIDÊNCIA SOCIAL. São Paulo: UNAFISCO, jan. 2007, pp.34-40. Aponta
a autora que até a edição da Emenda
Constitucional 42/2003, a desvinculação de receitas de que trata o art. 76
do ADCT não atingia as contribuições
previdenciárias. O ataque a tais contribuições ocorreu com o advento da
mencionada emenda, que colocou no
mesmo cesto todas as contribuições
sociais, inclusive as previdenciárias,
somente excluindo o salário-educação.
Nesse sentido, estão sujeitas ao patamar de 20% de desvinculação todas as
receitas tributárias para a seguridade
social. Acrescenta, ainda, a autora: “(...
) não adianta a lei que criou a fusão das
receitas dizer que a receita será arrecadada pela União e destinada imediatamente ao fundo ‘X’, ao fundo ‘A’ ou ‘B’.
Porque existe uma norma na Constituição que permite a desvinculação. É
uma exceção à regra. Fica desvinculada
de órgão, fundo ou despesa, a importância de 20% da arrecadação da União
de impostos, contribuições sociais e de
intervenção no domínio econômico”.
498
DERZI. Op. Cit. pp. 635-641.
FGV DIREITO RIO
213
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Previdenciária agora estão a cargo da “Super-Receita Federal”, senão vejamos
o dispositivo em tela:
Art. 2º. Além das competências atribuídas pela legislação vigente à Secretaria
da Receita Federal, cabe à Secretaria da Receita Federal do Brasil planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a,
b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, e das
contribuições instituídas a título de substituição499.
Diante desse novo panorama, é possível inferir que a parafiscalidade dentro da estrutura geral da Administração Pública, em especial, no que se refere às contribuições sociais para a Seguridade Social, assumiu feição híbrida,
porquanto mudou a sistemática de arrecadação e fiscalização dessas contribuições, que agora são da competência da Secretaria da Receita Federal do
Brasil, cabendo ao INSS, no entanto, as funções de emissão de guia para pagamento, de certidão relativa a tempo de contribuição, o cálculo dos valores
a serem pagos, gerir o Fundo do Regime Geral da Previdência Social, entre
outras atividades, como, por exemplo pagar os benefícios de que trata a Lei
8212/91, nos termos do art.5º do novo diploma legal, a Lei 11.457/2007.
Saliente-se, também, que, apesar do artigo 56500 da Lei nº 4.320/1964
estabelecer o denominado princípio da unidade de tesouraria, conforme já
destacado alhures, a Lei de Responsabilidade Fiscal criou uma exceção ao
aludido preceito, fixando que a disponibilidade de caixa da previdência, espécie do gênero seguridade social, deve ser separada do sistema de caixa único
no âmbito de todos os entes federados, conforme se infere da literalidade do
artigo 43 da LRF:
Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme estabelece o § 3o do art. 164 da Constituição501.
§ 1o As disponibilidades de caixa dos regimes de previdência social, geral
e próprio dos servidores públicos, ainda que vinculadas a fundos específicos a
que se referem os arts. 249 e 250 da Constituição, ficarão depositadas em conta
separada das demais disponibilidades de cada ente e aplicadas nas condições de
mercado, com observância dos limites e condições de proteção e prudência financeira.
Dessa forma, as outras disponibilidades da seguridade social, salvo aquelas
relacionadas à previdência, tais como as pertinentes à saúde e a assistência
social, seguem a regra geral da unidade de tesouraria.
No que se refere especificamente à contribuições previdenciárias importante mencionar que a Emenda Cnstitucional nº 20/98 inclui o inciso XI ao
499
O art. 3º da mesma lei prevê as atribuições previstas no art. 2º também
para outras contribuições, como, por
exemplo, as contribuições destinadas
ao Fundo Aeroviário, à Diretoria de
Portos e Costas do Comando da Marinha , aquelas destinadas ao INCRA, e o
salário-educação ( vide art. 4º, § 6º ).
500
Artigo 56. O recolhimento de todas
as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio de unidade de tesouraria, vedada qualquer fragentação
para criação de caixas especiais.
501
O dispositivo constitucional se refere
ao Banco Central do Brasil relativamente à União e às instituições financeiras
oficiais no casos dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios.
FGV DIREITO RIO
214
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
artigo 167 da CR-88, o qual veda “a utilização dos recursos provenientes das
contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de
despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência
social de que trata o art. 201”.
Além desse primeiro plano de projeção – vinculado à questão orçamentária e financeira em sentido estrito-, a parafiscalidade também pode ser compreendida a partir da legitimidade de determinadas entidades, que exercem
atividades de interesse público e social, para arrecadar ou receber certas contribuições.
12.2. A PARAFISCALIDADE E AS ENTIDADES PÚBLICAS OU PRIVADAS
QUE FICAM COM OS RECURSOS DE DETERMINADAS CONTRIBUIÇÕES
Cabe, inicialmente, esclarecer que a estrutura administrativa varia de acordo com o modelo de Estado que se estabelece. Nesse ponto, devemos avaliar,
a priori, as características de determinado Estado, para somente depois tentar
entender a sua organização funcional-administrativa.
Nesse contexto, ensina Hely Lopes Meirelles502que a organização administrativa está intimamente vinculada à “estrutura do Estado e a forma de
governo adotadas em cada país”.
Conforme já exaustivamente salientado, no Brasil temos como forma de
Estado a federação, a qual é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos
Municípios e do Distrito Federal, nos termos do art. 1º da CRFB/88: ainda
dispõe o seu art. 18, que “a organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Cumpre ressaltar que a estrutura de Estado que temos, malgrado detenham os Estados-membros, o DF e os Municípios, autonomia, consoante
dispõe o citado art. 18, é significativo o poder centralizador nas “mãos” da
União. Tal fato é visível ao verificarmos no texto constitucional de 1988 a
sua ampla prerrogativa tributária em comparação aos demais entes, além de
sua competência privativa para legislar sobre diversas matérias (art. 22) e,
no tocante à competência concorrente com os Estados-membros, o DF, e os
Município, a União tem a prerrogativa de ditar as normas gerais (vide arts. 24
e 30). Conforme dispõe o Decreto-lei 200/67, a organização administrativa
federal se subdivide em Administração Direta e Administração Indireta (sistema que se irradia para os entes políticos estatais e municipais).
Ainda, segundo lições de Hely Lopes Meirelles503:
a Administração Pública Direta é o conjunto dos órgãos integrados na estrutura
administrativa da União, e a Administração Indireta é o conjunto dos entes
502
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro. 26 ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo,
Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Editora
Malheiros, 2001, pp.692-694.
503
Idem. Ibidem. pp.694-696.
FGV DIREITO RIO
215
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(personalizados) que, vinculados a um Ministério, prestam serviços públicos ou
de interesse público. Sob o aspecto funcional, a Administração Direta é a efetivada imediatamente pela União, através de seus órgãos próprios, e a Indireta é
realizada mediatamente, por meio dos entes [também denominados entidades]
a ela vinculados.
A vinculação das entidades que compreendem a Administração Indireta , ou seja, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as autarquias e as fundações públicas, se dá em razão do sistema de controle interno
da Administração Direta, denominado de tutela, ou como ensina Hely Lopes
Meirelles505, supervisão ministerial, ou seja, tais entidades não estão ligadas
à Administração Direta por meio do regime de subordinação, e sim de vinculação de suas respectivas atividades com os Ministérios (p. ex. o INSS está
vinculado ao Ministério da Previdência Social, a Caixa Econômica está vinculada ao Ministério da Fazenda etc).
Nesse passo, além das pessoas jurídicas criadas ou autorizadas pelo Poder
Público para integrarem a Administração Indireta, e assim desenvolverem
certas atividades de interesse público, o Estado precisou descentralizar ainda
mais suas atividades, de tal sorte que o apoio de outras entidades, fora da
Administração Pública, se fez necessário506. Dessa forma, criou-se a parafiscalidade envolvendo outras pessoas jurídicas – as quais podem ser de direito público ou direito privado, como, por exemplo, os sindicatos (natureza
privada) e as entidades de classe (autarquias especiais de natureza pública).
Aqueles (sindicatos) defendem interesses das classes de trabalhadores e coordenam as negociações e acordos entre empregados, empregadores, e com
o próprio Poder Público, enquanto as entidades de classe ou de categorias
profissionais tem o mister de regular e fiscalizar determinadas profissões (ex.
CREA, CRM). No tocante a estas entidades, cumpre trazer à baila a decisão
plenária, em sede de ADI, proferida pelo STF, no qual se enfrentou a questão
da natureza jurídica das autarquias fiscalizadoras de atividades profissionais
regulamentadas. Na ADI 1717/DF, o STF julgou inconstitucional o art. 58
e parágrafos da Lei 9.649/98, a qual, entre outras regras, consagrava a natureza privada dos conselhos de fiscalização profissionais, tendo como um dos
fundamentos o disposto no art. 119 do CTN, que dispõe no sentido de que
somente pessoas jurídicas de direito público podem ter sujeição tributária
ativa, conforme se extrai de excertos do acórdão:
504
ADI 1717-DF – Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 07/11/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno – Publicação DJ
28-03-2003 – PP-00061 – EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E
ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE
504
Decorrência lógica do processo de
descentralização das atividades de interesse público.
505
Idem. Ibidem. p. 696.
506
Ver, por exemplo, na CRFB/88, a título de ilustração: art. 8º que prevê a
contribuição sindical, o art. 149, o qual
elenca, dentre outras, as contribuições
de categorias profissionais, as contribuições para o custeio do Sistema S (
SESI, SENAI, SENAC, SEBRAE etc ). Na
realidade, o constituinte de 1988 buscou, por meio de entidades privadas,
efetivar determinadas atividades de
interesse público, tais como, a fiscalização e controle de certas atividades
profissionais, a tutela de direitos trabalhistas por meio dos sindicatos e o
fomento ao desenvolvimento tecnológico com o apoio do Sistema S: as quais
se desenvolvidas diretamente pelo
Poder Público contribuiria de forma
significativa para o inchaço da máquina
administrativa.
FGV DIREITO RIO
216
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE
PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto
ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário,
quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos
§ 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação
conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e
175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade,
a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder
de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades
profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados.
3. Decisão unânime. (grifo nosso)
A Ordem dos Advogados do Brasil, por sua vez, apesar de também realizar
a fiscalização de atividade profissional, se diferencia das demais entidades
disciplinadoras de atividades profissionais, pois, segundo entendimento jurisprudencial do STF: “a OAB não está voltada exclusivamente a finalidades
corporativas. Possui finalidade institucional”507. De fato, tal entidade é considerada uma autarquia sui generi, pois, a atividade que disciplina e fiscaliza tem escopo constitucional e é reconhecida como essencial à Justiça, nos
termos do art. 133 da CRFB/88, o que já determina a existência de regime
diferente das demais autarquias que fiscalizam profissões regulamentadas.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também se refere à Ordem
dos Advogados do Brasil como “uma autarquia sui generis”508. Ainda, no tocante à contribuição cobrada de seus membros, tem se manifestado o Tribunal da Cidadania no sentido de que não teria natureza tributária, não se
submetendo, desta forma, a execução aos ditames da Lei 6.830/80 (lei de
execução fiscal). Nesse sentido, vale trazer à luz ementa de acórdão, em sede
de Recurso Especial, prolatado pela Corte Superior de Justiça:
REsp 755595 / RS RECURSO ESPECIAL
2005/0090354-4 – SEGUNDA TURMA – Relator MIN. CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) – Data
do Julgamento: 08/04/2008 – DJe 02/05/2008.
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL.
DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO. NÃO-CONHECIMENTO. OAB. ANUIDADE. NATUREZA JURÍDICA. NÃO-TRIBUTÁRIA. EXECUÇÃO. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 1. Não se conhece,
em recurso especial, de violação a dispositivos constitucionais, vez que se trata
de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo
102 da Constituição.2. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no
sentido de que as contribuições cobradas pela OAB não seguem o rito disposto
507
Vide ADI 3026/DF. Julgamento em
08/06/2008. Relator Min. Eros Grau.
Nesta ação o STF se pronunciou no
sentido de que a OAB compreende
“categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito
brasileiro”.
508
Vide EREsp 462273 / SC – Julgamento em 13/04/2005. Rel.Min. João
Otavio de Noronha.
FGV DIREITO RIO
217
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
pela Lei nº 6.830/80, uma vez que não têm natureza tributária, q.v., verbi gratia,
EREsp 463258/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO,
DJ 29.03.2004 e EREsp 503.252/SC, Rel. Ministro Castro Meira, PRIMEIRA
SEÇÃO, DJ 18.10.2004.3. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte,
provido.
Nessa perspectiva, quanto à legitimidade de entidades públicas ou privadas para cobrar tributos para suprir as demandas decorrentes das atividades
de interesse público a elas incumbidas, cabe destacar, pelo menos, duas correntes doutrinárias:
Corrente 1:
Para alguns autores, como por exemplo, Geraldo Ataliba509 e Luciano
Amaro510, a parafiscalidade está vinculada a entidades delegadas que estão
fora do Estado.
Consoante o pensamento de Geraldo Ataliba511, o conceito de parafiscalidade importa “no fenômeno pelo qual a lei atribui a titularidade de tributo
a pessoas diversas do Estado, que as arrecadam em benefício das próprias finalidades”.
Luciano Amaro512, corroborando com a linha de intelecção do mencionado autor, assevera:
(...).Em verdade, ao lado das prestações coativas arrecadadas pelo Estado,
outros ingressos financeiros, também instituídos por lei e absorvidos pelo conceito genérico de tributo, são coletados por entidades não estatais, de que são
exemplos os sindicatos e os conselhos de fiscalização e disciplina profissional.
Esse campo, dito da parafiscalidade, é paralelo ao da fiscalidade, ocupado pelo
ingressos destinados ao Fisco ou Tesouro Público, esses tributos dizem-se parafiscais (grifo nosso).
Corrente 2:
Para esta corrente doutrinária, a parafiscalidade é decorrência da atribuição do Poder Público a outras entidades, sejam públicas ou privadas, integrantes ou não da Administração Pública513, para arrecadar contribuições a
fim de suprir objetivos de natureza pública. Cabe destacar, nessa linha de
intelecção, entre outros autores, Marco Aurélio Greco514, Aliomar Baleeiro515,
Roque A. Carrazza516, e Hamilton Dias de Souza517. Este último, ao enfrentar
o tema, se refere a órgãos especializados desvinculados da Administração Direta, ou seja, ele incluiu a Administração Indireta. Vale a pena trazer excertos
de seu estudo sobre as contribuições de interesse das categorias profissionais
ou econômicas:
509
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 3 ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 1992, p. 83.
510
AMARO, Luciano. Direito Tributário
Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, pp. 2-3.
511
ATALIBA ( 1993). p.80-82.
512
AMARO. Op. Cit. p. 3.
513
Vale repisar que, nos termos do
Decreto-lei 200/67, a Administração
Pública se subdivide em Administração
Direta e Indireta. Enquanto aquela (
direta ) “se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa do
Poder Executivo e seus ministérios ( em
âmbito federal ), e do Poder Executivo
e secretarias ( em âmbito estadual e
municipal ), a Administração indireta
compreende as seguintes entidades
autônomas, com personalidade jurídica: as autarquias, as empresas públicas,
as sociedades de economia mista e as
fundações públicas.
514
GRECO, Marco Aurelio. Contribuições ( uma figura “sui generis” ). São
Paulo: Editora Dialética, 2000, p.57.
515
BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 11. ed.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976,
pp.569-571. Aponta os Institutos de
Aposentadoria e Pensões e as Caixas
de Aposentadoria e Pensões como as
primeiras entidades a arrecadar as
chamadas contribuições parafiscais.
Hodiernamente “há pulverização de
receitas outras para manutenção de vários órgãos autárquicos e paraestatais,
como a Ordem dos Advogados, o SENAI,
o SENAC, o SESC, o SESI etc”.
516
CARRAZZA, Roque A. O sujeito da
obrigação tributária. São Paulo, Resenha Tributária, 1977, p. 40.
517
SOUZA, Hamilton Dias de. Contribuições Especiais. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva(coordenador). Curso
de Direito Tributário. 10. ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
pp. 667-705.
FGV DIREITO RIO
218
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(...) tendo em vista serem distintos e peculiares os interesses de cada uma das
categorias econômicas e profissionais envolvidas, a atuação do Estado geralmente se faz por intermédio de órgãos especializados e específicos, desvinculados da
Administração Direta (...). É o caso, por exemplo, dos sindicatos e das entidades
de fiscalização de profissões liberais (OAB, CRM, CREA). (grifo nosso).
Marco Aurélio Greco518, ao discorrer sobre a evolução do Estado Fiscal
para o Estado Intervencionista (Bem-estar social), preleciona:
a partir do reconhecimento de determinadas necessidades sociais ou visando a
atingir certos resultados ou objetivos econômicos, o Estado passou a atuar positivamente nestes campos, criando entidades específicas, fora de sua estrutura
básica, que ficariam responsáveis pelo exercício de atividades pertinentes. Por
sua vez, estas estruturas necessitavam de recursos financeiros para sobreviver.
Estas começaram a cobrar da coletividade certas quantias que se justificavam em
função das finalidades buscadas e que eram diretamente arrecadadas por estas
entidades que se encontravam “ao lado”do Estado (as entidades ‘paraestatais’).
(grifo nosso).
Aliomar Baleeiro519 entende que a capacidade tributária ativa pode ser
delegada tanto às entidades públicas como às privadas, cujas funções estão
atreladas a uma finalidade pública. Apresenta o autor quatro elementos que
delineiam a parafiscalidade:
a) delegação do poder fiscal do Estado a um órgão oficial ou semi-oficial
autônomo; b) vinculação especial ou ‘afetação’ dessas receitas aos fins específicos
cometidos ao órgão oficial ou semi-oficial investido daquela delegação; c) em
alguns países exclusão dessas receitas delegadas no orçamento geral (seriam então
‘para-orçamentárias’...); e d) consequentemente, subtração de tais receitas à fiscalização do Tribunal de Contas ou órgão de controle da execução orçamentária.
Roque Carrazza520, a seu turno, apresenta a parafiscalidade como:
a atribuição, pelo titular da competência tributária521, mediante lei, da capacidade
tributária ativa, a pessoas públicas ou privadas (que persigam finalidades públicas
ou interesse público), diversas do ente imposto que, por vontade desta mesma
lei passam a dispor do produto arrecadado, para a consecução de seus objetivos.
Por fim, merece repisar o fato de que a Lei 11.457/07, ao criar a Receita
Federal do Brasil, atribuiu a esta – órgão vinculado ao Ministério da Fazenda
– e não ao INSS – autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência
Social, as funções de fiscalizar e arrecadar as contribuições sociais destinadas
518
GRECO, Marco Aurelio. Contribuições
( uma figura “sui generis” ). São Paulo: Editora Dialética, 2000, p.57. Aponta
o autor que “no campo econômico, a
‘atuação’ da União pode consistir numa
atuação material ou numa atuação de
oneração financeira. Se a atuação for
material a contribuição servirá para
fornecer recursos para o exercício das
atividades pertinentes e para suportar
as despesas respectivas; se a atuação
for no sentido de equilíbrio ou equalização financeira, a contribuição será o
próprio instrumento da intervenção”
(este aspecto será abordado na aula
sobre a extrafiscalidade dos tributos ).
519
BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 11. ed.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976,
pp.569-571. Aponta os Institutos de
Aposentadoria e Pensões e as Caixas
de Aposentadoria e Pensões como as
primeiras entidades a arrecadar as
chamadas contribuições parafiscais.
Hodiernamente “há pulverização de
receitas outras para manutenção de vários órgãos autárquicos e paraestatais,
como a Ordem dos Advogados, o SENAI,
o SENAC, o SESC, o SESI etc”.
520
CARRAZZA ( 1977 ). Op. Cit. p. 40
521
Embora a competência já tenha sido
tratada em outra aula, merece, todavia,
relembrar seu perfil, segundo as lições
de Misabel Derzi: “competência é norma constitucional, atributiva de poder
legislativo a pessoa estatal, para criar,
regular e instituir tributos”. In: DERZI,
Misabel Abreu Machado. A causa final
e a regra-matriz das contribuições. In:
DE SANTI, Eurico Marcos Diniz ( coordenador ). Curso de Direito Tributário e
Finanças Públicas- do fato à norma, da
realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 632.
FGV DIREITO RIO
219
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ao custeio da Seguridade Social. Desta feita, pode-se reconhecer que a parafiscalidade, sob a perspectiva da capacidade ativa de quem arrecada o tributo,
somado à possibilidade de desvinculação de 20% dessas receitas por parte da
União, nos termos do artigo 76 do ADCT da CR-88, teve parte substancial
de seu conteúdo diluído na fiscalidade.
Importante destacar que, apesar das entidades sindicais serem as destinatárias do produto da arrecadação das denominadas contribuições sindicais (artigo 8º da CR-88), é a União que aparece como o sujeito ativo em execuções
fiscais, haja vista o disposto nos artigos 2º, 3º e 16, §7º, da Lei 11.457/2007,
norma que cria a Receita Federal do Brasil, bem como o contido nos artigos
578 e 610 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), matéria a ser estudada em Direito Tributário e Finanças Públicas III. Saliente-se, ainda, que a
administração do tributo fica a cargo da União devendo o ônus da cobrança
judicial ficar a cargo do destinatário da arrecadação. Situação semelhante ocorre com as contribuições para as entidades patronais (SESI, SESC,
SENAI etc) cuja receita não está incluida no orçamento da União, mas a
fiscalização e cobrança é realizada pela Receita Federal do Brasil.
Outra perspectiva que merece relevo, ao se enfrentar o complexo instituto
da parafiscalidade, diz respeito à análise da natureza jurídica522 das contribuições de que trata o art. 149 da CRFB/88.
12.3. A PARAFISCALIDADE E A NATUREZA JURÍDICA DA EXAÇÃO (TRIBUTÁRIA OU NÃO-TRIBUTÁRIA).
Ab initio, no direito comparado, merece destaque a doutrina de E. Morselli523, para quem a teoria da parafiscalidade encontra amparo:
na distinção das necessidades públicas em fundamentais e complementares. As
primeiras correspondem às finalidades do Estado, de natureza essencialmente
política. As segundas correspondem às finalidades sociais e econômicas, as quais,
sobretudo recentemente, assumiram grandes proporções e novas determinações
financeiras. Trata-se principalmente de necessidades de grupos profissionais econômicos e de grupos sociais. Assim, às necessidades fundamentais correspondem
uma finança fundamental (de entes públicos territoriais). A teoria da parafiscalidade explica a finança complementar.
O mencionado jurista italiano, ao enfrentar o tema da natureza jurídica
de certas contribuições (as quais denominou de contribuições parafiscais),
concebeu-as como exações regidas por regime próprio, não tendo natureza
tributária como os tributos em geral, porquanto estes têm origem no poder
522
Oportuno ressaltar que a análise da
natureza jurídica de um instituto diz
respeito ao seu enquadramento dentro
do sistema ( ou sistemas ) a que está
vinculado.
523
MORSELLI, E. Compendio di scienza
delle finanze. Padova: Milani, 1967.
FGV DIREITO RIO
220
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
essencialmente político, ao passo que as “contribuições parafiscais” têm como
fundamento fazer face as necessidades de caráter econômicosociais524.
Para E. Morselli525, a fiscalidade se diferencia da parafiscalidade na sua
essência, uma vez que a fiscalidade – amparada nos tributos em geral – visa
precipuamente a conseguir recursos para suprir as atividades fundamentais
do Estado, tendo como base a capacidade contributiva, enquanto a parafiscalidade encontra sua ratio essendi no princípio da solidariedade526. A receita
parafiscal, na linha de pensamento do referido autor, procura fazer frente
às despesas não essenciais, relacionadas, em regra, com a seguridade social
e outros interesse de grupos específicos, como os de categorias profissionais
e econômicas. Nesse sentido, parte de uma concepção liberal da atividade
do Estado.
Na mesma trilha de E. Morselli parece caminhar Ricardo Lobo Torres527,
para quem as contribuições sociais, interventivas e corporativas, não teriam,
sob o critério científico, natureza tributária, malgrado reconheça que parte
da doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal são no sentido
de que tais exações têm natureza tributária: adota-se, na realidade, o critério
topográfico, uma vez que as mencionadas contribuições foram inseridas dentro do capítulo do Sistema Tributário Nacional (art. 149, CRFB/88) pelo
constituinte originário.
Na visão do referido autor brasileiro, as contribuições em tela teriam conteúdo diferente dos tributos, na medida em que não estão afetadas a serviços
essenciais do Estado Fiscal, e preleciona que a parafiscalidade, com o advento da Carta de 1988, desapareceu no direito brasileiro, amalgamando-se no
conceito de fiscalidade528. Nesse passo, preleciona o autor que:
Enquanto a fiscalidade se caracteriza pela destinação dos ingressos ao Fisco,
a parafiscalidade consiste na sua destinação ao PARAFISCO, isto é, aos órgãos
que, não pertencendo ao núcleo da administração do Estado, são paraestatais,
incumbidos de prestar serviços paralelos e inessenciais por meio de receitas paraorçamentárias. A parafiscalidade, portanto, não deveria se confundir com a
fiscalidade, nem as prestações parafiscais com os tributos, uma vez que constituiria autêntica contradictio in terminis falar em ‘tributos paratributários’ou em
‘fiscalidade parafiscal’: o que é para-tritbutário não pode ser tributário e o que é
fiscal não pode ser ao mesmo tempo parafiscal. (grifo do autor)529.
524
MORSELLI 1960 apud TORRES, 2007,
p. 527.
526
Aponta Ricardo Lobo Torres, in: TORRES ( 2007 ). Op. Cit. p. 554, “a solidariedade, como assinala a doutrina germânica, cria o sinalagma não apenas entre
o Estado e o indivíduo que paga a contribuição, mas entre o Estado e o grupo
social a que o contribuinte pertence”.
527
TORRES, Ricardo Lobo. A política industrial da Era Vargas e a Constituição
de 1988. In: DE SANTI, Eurico Marcos
Diniz ( coordenador ). Curso de Direito
Tributário e Finanças Públicas- do
fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva,
2008, pp.254-271. Ainda, do mesmo
autor, Curso de Direito Financeiro e
Tributário. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004.
528
Argumenta ainda Ricardo Lobo Torres que a diluição da parafiscalidade
na fiscalidade, a partir da normativa constitucional de 1988, fica clara especialmente no tocante às contribuições sociais “que deixaram de ser paraorçamentrárias (para-budgetaires, off budget) para se tansformarem em fontes
orçamentárias”530. Vale ressaltar que a Carta Constitucional de 1988 adotou
o princípio da unidade orçamentária, e o orçamento da Seguridade Social
ROSA JR. Op. Cit. p. 415.
525
Idem. Ibidem. p.270.
529
Idem. Ibidem. p.269. Para o autor,
as despesas para tutelar direitos sociais
que não garantem o mínimo existencial
são consideradas não essenciais e assumidas de forma subsidiária pelo Estado.
530
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro
e Tributário. Vol. IV. Os Tributos na
Constituição. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2007, pp. 526-530.
FGV DIREITO RIO
221
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
passou a integrar a lei orçamentária da União, ex vi do at. 165, § 5º, da
CRFB/88: vale dizer que tal modelo só encontra paralelo no Direito português, aponta Ricardo Lobo Torres.
Nesse passo, cumpre destacar que a parafiscalidade tem como forte referência histórica o período que se segue pós– 2ª Guerra Mundial, cujo principal propósito era carrear recursos para fazer face às despesas com a previdência social e outras atividades de caráter intervencionista do Estado delegadas
a órgãos paralelos ao núcleo central da administração pública531.
No Brasil, assim como na Itália, França, Espanha e Argentina, a concepção de parafiscalidade que emergiu de forma mais acentuada “foi considerada
como fenômeno fiscal e as prestações parafiscais como tributos”, pondera
Ricardo Lobo Torres532. Ainda, importante destacar que a Emenda Constitucional nº 1/69 inseriu no rol dos tributos as contribuições sociais, o que
fez com que parte significativa da doutrina e jurisprudência admitissem a
natureza tributária daquelas exações.
Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 8/77 retirou as contribuições sociais do capítulo dos tributos, o que ensejou novamente a discussão
em torno da natureza jurídicas dessas exações, e passou-se a entender que não
eram tributos.
Nesse quadro de inconstâncias, o constituinte na Carta de 1988, por fim,
decidiu colocar as contribuições em geral no capítulo dedicado ao Sistema
Tributário Nacional, inspirando a doutrina majoritária e a jurisprudência do
STF no sentido de efetivamente considerar tais exações como tributo, ainda
que discutível aludida solução sob o critério científico ou do desenvolvimento histórico de um conceito unitário dos tributos.
Para ilustrar, vale transcrever excertos da decisão do STF, na qual a Corte
enfrentou a questão da natureza jurídica das contribuições. Em sede de Recurso Extraordinário de n° 13884-CE, o Ministro Carlos Velloso classificou
as contribuições sociais da seguinte maneira.533:
As contribuições sociais desdobram-se em: (a.1) contribuições de seguridade
social, disciplinadas no artigo 195, I, II, e III da CF/88, compreendendo as contribuições previdenciárias, as contribuições do FINSOCIAL (hoje COFINS),
as da Lei 7689, o PIS, e o PASEP (art. 239). Não estão sujeitas à anterioridade
(art. 149, art. 195, parágrafo 6°); (a.2) outras de seguridade social (art. 195,
parágrafo 4°): não estão sujeitas à anterioridade (art. 149, art. 195, parag. 6°). A
sua instituição, todavia, está condicionada à observância da técnica da competência residual da União, a começar, para a sua instituição, pela exigência de lei
complementar (art. 195, parág. 4°, art. 154, I); (a.3) contribuições sociais gerais
art. 149: o FGTS, o salário-educação (art. 212, parág. 5°), as contribuições do
SENAI, SESI, SENAC (art. 240). Sujeitam-se ao princípio da anterioridade.
531
TORRES ( 2007 ). p. 529. Segundo
Ricardo Lobo Torres, “a crise mundial
surgida na década de 1970, com reflexos dramáticos no Brasil, fez com que se
reavaliasse o papel do Estado Social de
Direito e se extirpassem, do rol das suas
funções essenciais, aquelas que só lhe
deveriam caber em caráter supletivo e
subsidiário, como sejam a propriedade
de empresas, a intervenção no mercado e a previdência social. Ao mesmo
tempo recuperou-se a consciência de
que a categoria tributo possui entre os
seus elementos característicos a destinação às despesas essenciais do Estado,
inconfundível com a arrecadação a este
ou àquele órgão, que realmente não
tem influência para a elaboração do
conceito”.
532
TORRES ( 2007 ). Op. Cit. pp. 526-527.
533
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. RE n° 13884-CE. Disponível no sítio: <www.STF.jus.br>.
Pesquisa realizada em 12/02/2009.
FGV DIREITO RIO
222
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Depois de longa discussão acerca do elenco das espécies tributárias, o STF
firmou entendimento, com base na Teoria Quinquipartite, de que são modalidades de tributos: os impostos, as taxas, a contribuição de melhoria, elencadas no artigo 145 da CF/88, cuja competência para instituí-las é concorrente;
o empréstimo compulsório, art.148; as contribuições sociais, as contribuições de intervenção no domínio econômico e as contribuições de categorias
profissionais e econômicas, disciplinadas no artigo 149 da CF/88.
Apenas a título de ilustração, cabe mencionar a posição de Sacha Calmon
Navarro Coelho534, para quem todas as contribuições elencadas no art. 149
da CRFB/88 estão inseridas no conceito de exações parafiscais, ou seja, todas
as contribuições sociais (gerais, de seguridade social ou outras de seguridade
social), as de intervenção no domínio econômico, das categorias profissionais
ou econômicas, independentemente de quem as arrecada, se pessoa jurídica
de direito público ou privado, estariam abrangidas na parafiscalidade.
No que se refere especificamente às contribuições sociais, cumpre destacar
trecho do voto do Ministro Cesar Peluzo do Supremo Tribunal Federal na
ADIN 3105-8, o qual esclarece:
(...) Salvas raras vozes hoje dissonantes sobre o caráter tributário das contribuições sociais como gênero e das previdenciárias como espécie, pode dizerse assentada e concorde a postura da doutrina e, sobretudo, desta Corte em
qualificá-las como verdadeiros tributos (RE nº 146.733, rel. Min. MOREIRA
ALVES, RTJ 143/684; RE Nº 158.577, REL. Min. CELSO DE MELLO, RTJ
149/654), sujeitos a regime constitucional específico, assim porque disciplinadas
as contribuições no capítulo concernente ao sistema tributário, sob referência
expressa aos art. 146, III (normas gerais em matéria tributária) e 150, I e III
(princípios da legalidade, irretroatividade e anterioridade), como porque corresponderiam à noção constitucional de tributo construída mediante técnica de
comparação com figuras afins.
Assim sendo, ressalvada a destinação das suas receitas, as quais são vinculadas aos fins para os quais foram criadas, as contribuições sociais tem natureza tributária, submetendo-se, dessa forma, às normas previstas no sistema
tributário nacional, isto é, conformam-se e se subordinam a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, excepcionadas, naturalmente, pelas
as disciplinas particulares especificamente traçadas na própria Constituição,
como é o caso da noventena ou anterioridade nonagesimal535, matéria a ser
apresentada na aula pertinente ao princípio da anterioridade.
No tocante ao princípio da solidariedade, o STF, ao enfrentar a sistemática
das contribuições sociais criadas pela União, desenvolveu o princípio estrutural da solidariedade, o qual se afasta um pouco do princípio da solidariedade
do grupo para se firmar com norma-princípio estruturante das contribuições
534
COELHO, Sacha Calmon Navarro.
Manual de Direito Tributário. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002,
pp. 51-54. Tais contribuições, segundo
o autor, são “impostos afetados a finalidades específicas ( raramente são
taxas )”.
535
Dispõe o artigo 195, § 6º, da CR88, relativamente às contribuições de
seguridade social: “As contribuições
sociais de que trata este artigo
só poderão ser exigidas após decorridos
noventa dias da data da publicação da
lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto
no art. 150, III, “b”. Ou seja, afasta-se
o princípio da anterioridade clássica,
segundo o qual é vedado a cobrança
de tributo instituído ou aumentado
no mesmo exercício financeiro em que
haja sido publicada a lei que o criou ou
incrementou, aplicando-se, tão somente, a noventena.
FGV DIREITO RIO
223
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
sociais. Segundo entendimento da Suprema Corte brasileira, no acórdão proferido em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3105/DF e ADI
3128/DF de 18.08.2004), “o regime previdenciário visa a garantir condições
de subsistência, independência e dignidade pessoais ao servidor idoso por
meio de pagamento de proventos de aposentadoria durante a velhice e, nos
termos do art. 195 da CF, deve ser custeado por toda a sociedade, de forma
direta e indireta, o que se poderia denominar de princípio estrutural da solidariedade”536.
Dito de outra maneira, enquanto a solidariedade de grupo consiste no
binômio, encargo financeiro e benefício de determinado grupo de pessoas, o
princípio estrutural da solidariedade em sede de regime previdenciário tem
como escopo a garantia de um sistema forte em que todos, indistintamente,
colaboram, ou seja, por meio deste princípio social a sociedade se une por
uma causa maior, que é a tutela de vários valores fundamentais, como a vida
digna e a saúde.
Pelo exposto nesse item, pode-se concluir que a parafiscalidade possui pelo
menos duas acepções de acordo com a doutrina: (1) a primeira restringindo
o fenômeno às cobranças realizadas por entidades delegatárias autônomas,
de natureza jurídica pública ou privada, que exerçam atividades de interesse público, como, por exemplo, os sindicatos dos trabalhadores e categorias
profissionais, nos termos do artigo 8º, IV, da CR-88, as entidades privadas
de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical,
o denominado sistema “S”, SESI, SESC SENAI, consoante o disposto no
artigo 240 da CR-88, as entidades que exercem a fiscalização e a regulamentação das categorias profissionais e econômicas, a teor do artigo 149 da CR88, como o CREA e o CRM, à exceção da OAB, pelas razões já expostas,e
etc., e (2) a segunda englobando, também, as exações criadas com o objetivo
de financiar a denominada segurança ou seguridade social, as denominadas
contribuições sociais, vinculadas à saúde, assistência ou previdência social,
disciplinadas nos artigos 149 e 195 da CR-88.
536
TORRES ( 2007 ). Op. Cit. p. 556-557.
FGV DIREITO RIO
224
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 13– ASPECTOS ECONÔMICOS DA TRIBUTAÇÃO E OS
DIFERENTES SUBSTRATOS DE INCIDÊNCIA: O PATRIMÔNIO, A
RENDA E O CONSUMO
ESTUDO DE CASO 1
Suponha dois países distintos: X e Y. No país X há somente um tributo,
o qual incide sobre a Renda (IR) auferida por pessoas físicas e jurídicas, seja
proveniente do trabalho ou do rendimento do capital. No país Y também
existe apenas um imposto, no entanto a exação incide exclusivamente sobre
o Consumo (IC) das pessoas, e não sobre a renda auferida. Marx vive no país
X e Adam Smith vive no país Y.
O IR é retido pela fonte pagadora e o IC é pago pelo comerciante varejista
mensalmente, sendo o ônus ou encargo financeiro do imposto repassado integralmente ao preço cobrado do consumidor final (Smith).
Qual o total de imposto a pagar e o capital acumulado em cada País, por
Marx e Smith, no final do primeiro e do segundo período, considerando os
seguintes cenários e hipóteses: 1) somente IR no país X – alíquota de 10%; e
2) somente IC no país Y, também com alíquota de 10%, e:
I – O rendimento do capital (juro) investido na aplicação financeira é de
10% nos dois países; e
II – A renda do trabalho auferida no período 1 e no período 2 nos dois
países, por Marx e por Smith, é igual a $1000, sendo o total consumido por
cada um nos períodos equivalente a $600 (no período 1) e $900 (no período 2), respectivamente. O montante não consumido e não utilizado para
pagamento de imposto será integralmente investido no mercado financeiro
em renda variável cuja tributação é realizada na fonte pela alíquota de 10%,
exclusivamente no país X, pois no país Y não há IR.
FGV DIREITO RIO
225
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
País X – Marx – Imposto de Renda (IR) 10%
País Y–Smith – Imposto sobre Consumo (IC) 10%
Momento 1
Momento 1
Momento 2
Momento 2
Total de Tributo pago em 1 e 2:
Total de Capital Acumulado ao final:
Total de Tributo pago em 1 e 2:
Total de Capital Acumulado ao final:
ESTUDO DE CASO 2 (RE 589.216)
O Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro encaminhou
mensagem de nº 27/2003 (Projeto de Lei nº 566/2003) à Assembléia Legislativa do Estado, a qual aprovou o texto que foi sancionado, promulgado e
publicado como Lei nº 4135, de 18 de agosto de 2003, com a seguinte redação:
Art. 1º – A alíquota do Imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS incidente sobre operação interna, interestadual destinada a consumidor final não contribuinte, e de importação, tendo
por objeto arma de fogo e munição, suas partes e acessórios, passa a ser de 200%
(duzentos por cento).
Parágrafo único – Não se aplicam as disposições previstas no “caput” quando
as operações, tendo por objeto armas de fogo e munições, suas partes e acessórios, forem destinadas às forças armadas ao sistema penitenciário e às entidades
ligadas ao sistema nacional de desporto, bem como aos órgãos de segurança
pública da União, dos Estados e do Distrito Federal, definidos no art. 144 da
Constituição Federal, permanecendo, para essa finalidade, a alíquota vigente.
Art. 2º – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário, e produzirá efeitos a partir de 01 de janeiro de 2004.
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2003.
FGV DIREITO RIO
226
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A Lei foi objeto da representação de inconstitucionalidade nº 001200028.2003.8.19.0000537, tendo o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro considerado inválida a lei estadual, haja vista que a
norma fixa “alíquota de imposto estadual a caracterizar confisco e a estabelecer
limitações ao tráfego de bens”.
Impugnada a decisão do TJ-RJ junto ao STF, o relator do Recurso Extraordinário 589.216 proferiu decisão monocrática declarando a constitucionalidade da lei, sob fundamento de que a “jurisprudência do Supremo fixou-se
no sentido de ser idôneo o uso do ‘caráter extrafiscal que pode ser conferido
aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os
princípios da igualdade e da isonomia’ [ADI n. 1.276, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 29.8.02]”, razão pela qual a Procuradoria Geral do Estado
do Rio de Janeiro, tendo logrado êxito na defesa do ato impugnado perante o
Supremo Tribunal Federal, determina o cumprimento da decisão.
Calcule o imposto incidente na venda de deteminada arma de fogo se o
custo de uma unidade do produto sem o ICMS é R$ 1.000, 00 (hum mil reais). Considere para tanto que cabe à lei complementar, nos termos da alínea
“i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da Constituição da República Federativa de 1988, dispositivo que disciplina o ICMS, “fixar a base de cálculo, de
modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior
de bem, mercadoria ou serviço” 538.
13.1 ASPECTOS PRELIMINARES DA INCIDÊNCIA ECONÔMICO-JURÍDICA
Preliminarmente, cumpre distinguir a incidência jurídica do tributo de
um lado, o que se exterioriza e é delimitado pelo disposto em lei, dos múltiplos efeitos econômicos da tributação sobre os diversos agentes econômicos
– inclusive as famílias e o Estado – de outro.
Ressalte-se, entretanto, que essa distinção, na verdade, apenas facilita a
compreensão do fenômeno tributário, tendo em vista que a realidade é única
e não comporta segmentações que visam apenas auxiliar a identificação e o
raciocínio acerca da dinâmica do complexo processo impositivo que é intersistêmico. De fato, o fenômeno tributário é subsistema tanto do Direito
como da Economia, sem mencionar os aspectos Políticos, Culturais etc.
Nesse sentido, impõe-se enfatizar que a incidência dos tributos no Estado
de Direito pressupõe a existência de um ato, um fato ou um evento juridicamente qualificado que possua relevância sob o ponto de vista econômico.
Esta é a razão da indissociável imbricação entre a estrutura normativa e econômica da tributação, a partir da qual se exteriorizam e são identificados os
signos de riqueza e a manifestação de capacidade econômica.
537
BRASIL. Poder Judiciário. Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Representação de Inconstitucionalidade 110/2003, Rel. Des. Luiz Eduardo
Rabello. Julgamento em 12.08.2009.
Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.tjrj.jus.br>. Acesso em
17.06.2010. Ementa: “Representação
por inconstitucionalidade de lei estadual frente a Constituição do Estado.
Competência do Tribunal de Justiça.
Art. 161, inc. IV, letra “a” da Carta Estadual. Representação formulada por
Deputado Estadual. Legitimidade. Art.
162 da Constituição Estadual. Lei Estadual que eleva para 200% a alíquota
do ICMS incidente sobre as operações
tendo por objeto armas de fogo, munições, suas partes e acessórios. Elevação
com o evidente objetivo de restringir
comércio legal. Elevação desmedida de
alíquota de imposto estadual a caracterizar confisco e a estabelecer limitações
ao tráfego de bens. Inconstitucionalidade flagrante frente as normas constantes dos incisos IV e V do artigo 196
da Constituição Estadual. Procedência
da representação”.
538
Dispositivo introduzido pela Emenda
Constitucional nº 3/1993. Saliente-se,
entretanto, que antes da alteração
constitucional para introduzir a aludida alínea “i”, a Lei Complementar
nº 87/1996, no §1º do art. 13 - e antes dela o Convênio ICMS 66/89 com
fulcro na autorização constitucional
contida no art. 34, §8º, dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)- já determinava que o
ICMS estaria incluído em sua própria
base de cálculo. O Supremo Tribunal
Federal, no RE 212209, já havia se
pronunciado, antes mesmo da edição
da Emenda Constitucional nº 33/2001,
no sentido da constitucionalidade do
denominado “cálculo por dentro”, isto é,
que a inclusão do ICMS em sua própria
base de cálculo não violava o princípio
da não-cumulatividade. O julgamento
ocorreu em 23/06/1999, e o acórdão
possui a seguinte ementa: “Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS:
inclusão no valor da operação ou da
prestação de serviço somado ao próprio
tributo. Constitucionalidade. Recurso
desprovido.”
FGV DIREITO RIO
227
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O fato de o indivíduo ter barba, ser calvo ou careca, por exemplo, não
pode servir de elemento catalisador a ensejar a possibilidade de tributação,
haja vista não consubstanciarem ou traduzirem aptidão para contribuir em
sentido econômico, pressuposto e limite da tributação, tópico da matéria que
será objeto de estudo específico na Aula 16. Por esse motivo a exigência de
tributos no Estado de Direito é expressão da incidência econômico-jurídica,
união indissociável que se projeta sobre a interpretação jurídico-econômica
da norma impositiva, matéria a ser examinada no próximo semestre. Nesse
sentido, a capacidade econômica, subprincípio da igualdade, conforme será
examinado na próxima aula, que versa sobre a extrafiscalidade, apesar de se
realizar potencialmente de múltiplas formas e medidas, é, ao mesmo tempo,
limite e pressuposto da incidência de tributos, pois não há o que ser tributado
caso não haja prévia e inequívoca manifestação de riqueza, em qualquer das
formas em que possivelmente se exterioriza, ou seja, por meio dos diversos
substratos econômicos539 de incidência de tributos: o consumo de bens e
serviços, o auferimento de renda, a aquisição, posse, propriedade ou transmissão de patrimônio.
Saliente-se, conforme será analisado abaixo, que o tributo formulado
ou desenhado para incidir sobre determinada base econômica de tributação pode, de fato, não atingir aludido substrato, em função de condições de
mercado ou da própria legislação tributária. Destaque-se, também, que nem
sempre a pessoa eleita pela norma de incidência como o sujeito passivo da
obrigação tributária é aquela que arca, na realidade, com o ônus econômico
do tributo, ou seja, existe o chamado contribuinte de fato e o denominado
contribuinte de direito, os quais podem ser ou não a mesma pessoa, também
em função das condições dos mercados de bens e serviços e daqueles dos
fatores de produção (terra, capital, trabalho etc.) assim como das normas
de incidência. Ainda, importante salientar que pessoas jurídicas, criações do
homem, não suportam, em última instância, a carga tributária, pois somente
pessoas naturais arcam com o ônus econômico do tributo, isto é, a incidência
econômica da exação sobre a pessoa jurídica dever ser analisada sob a perspectiva do retorno do capital empregado por aquele responsável por sua constituição ou seu beneficiário, o que requer análise conjunta da norma jurídica
com a realidade econômica sobre a qual ela é aplicada.
13.2 A INCIDÊNCIA ECONÔMICO-JURÍDICA
O ordenamento normativo conforma a denominada incidência jurídica, a
partir de eventos do mundo real que denotem signos de riqueza, sendo que as
consequências econômicas da exigência dos tributos dependem de múltiplas
variáveis, inclusive a interpretação/aplicação da norma impositiva.
539
No anexo a esta aula, ao final desse material didático, é apresentado
quadro que facilitar a visualização da
divisão da competência de impostos e
contribuições especiais sob a perspectiva jurídica constitucional do federalismo fiscal brasileiro já estudado na
aula 11, considerando, agora, as bases
econômicas de incidência.
FGV DIREITO RIO
228
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O tipo de bem540 e serviço objeto de incidência, a estrutura de mercado541
e da remuneração dos fatores de produção542 em que se insere o objeto da
tributação, a espécie de tributo543 adotado bem como o substrato econômico
de incidência escolhido determinam os efeitos econômicos da incidência, os
quais podem ser examinados sob enfoque da microeconomia ou da macroeconomia. Saliente-se, ainda, os inúmeros efeitos em potencial que a tributação pode causar sobre a concorrência entre os diversos agentes do mercado,
na hipótese de regras tributárias não isonômicas.
A pessoa eleita pela norma jurídica como sujeito passivo da obrigação tributária (art. 121 do CTN) e aquela que arca com o encargo financeiro do tributo (art. 166 do CTN) podem coincidir ou não, ou seja, podem ser ou não
a mesma pessoa, tendo em vista que a imposição de tributos pode ocasionar
alterações nos preços dos bens e serviços ou na remuneração dos fatores de
produção. Dito de outra maneira, alterações de preços nos mercados de bens
e serviços e de fatores de produção podem redirecionar o ônus econômico
e financeiro do tributo para pessoa diversa daquela indicada pela lei como
o contribuinte de direito. Considerando o exposto ensina Harvey Rosen544:
The statutory incidence of a tax indicates who is legally responsible for the
tax. (…) But the situations differ drastically with respect to who really bears the
burden. Because prices may change in response to tax, knowledge of statutory
incidence tells us essentially nothing about who is really paying the tax. (…) In
contrast, the economic incidence of a tax is the change in the distribution of
private real income brought by a tax. Complicated taxes may actually be simpler for a politician because no one is sure who actually ends up paying them.
(grifo nosso)
Em sentido análogo apontam Marco Antonio Vasconcellos e Manuel Garcia545:
A proporção do imposto pago por produtores e consumidores é a chamada incidência tributária, que mostra sobre quem recai efetivamente o ônus do
imposto. Há uma diferença entre o conceito jurídico e o conceito econômico
de incidência. Do ponto de vista legal, a incidência refere-se a quem recolhe o
imposto aos cofres públicos; do ponto de vista econômico, diz respeito a quem
arca efeitvamente com o ônus. (grifo nosso)
Ressalte-se ainda que, independentemente da denominação jurídica conferida ou da distribuição constitucional de competências tributárias entre os
diversos entes políticos em uma Federação, conforme examinado na Aula 11,
são três os substratos de incidência tributária sob o ponto de vista econômico:546 o patrimônio, a renda e o consumo.
540
A curva de demanda, assim definida
como a escala que apresenta a relação
entre possíveis preços a determinadas
quantidades, é negativamente inclinada em decorrência da combinação
de dois fatores: o efeito substituição
e o efeito renda. Na hipótese em que
dois bens sejam similares, mantidas as
demais variáveis constantes (coeteris
paribus), caso o preço de um deles aumente, o consumidor passa a consumir
o bem substituto. Por exemplo, no caso
do proprietário do automóvel flex, isto
é, que possa utilizar múltiplos combustíveis, como o álcool etílico hidratado
combustível (AEHC) ou a gasolina, se
um dos dois produtos tem um aumento
abrubpto, que ocasione uma desvantagem muito grande no consumo de um
em relação ao outro, ocorrerá o efeito
substituição. À exceção do denominado
bem de Giffen, que pode ocorrer na improvável hipótese em que a demanda
por um bem cai quando o seu preço é
reduzido, a regra geral é que, mantidas
as demais variáveis correlacionadas
constantes (coeteris paribus), como a
renda do consumidor e os preços dos
outros bens, caso o preço de um bem
aumente o consumidor perde poder
aquisitivo e a demanda pelo produto
será reduzida. A demanda de uma mercadoria é certamente inluenciada por
outros fatores além da variável preço,
como as preferências e renda dos consumidores, pelos preços de outros bens
e serviços (bens complementares, substitutos), etc. A relação entre a renda e a
demanda depende do tipo de bem.
No caso do bem normal o aumento de
renda do consumidor leva ao aumento
da demanda do produto. Em sentido
oposto, na hipótese dos denominados
bens inferiores o aumento da renda
causa uma redução da demanda, como
ocorre, por exemplo, com o consumo da
denominada “carne de segunda”. Já os
denominados bens de consumo “saciado” não são influenciados diretamente
pela renda dos consumidores (e.g. sal,
farinha, arroz etc).
541
Monopólio, oligopólio, concorrência
monopolística ou um mercado mais
próximo da denominada concorrência
pura ou perfeita etc.
542
Os recursos de produção da economia, os denominados fatores de
produção são usualmente subdivididos
em terra, capital, tecnologia e recursos
humanos, trabalho e capacidade empresarial. Cada fator de produção possui uma remuneração: o aluguel (terra),
juro (capital), royaltiy (tecnologia),
salário (trabalho) e lucro (capacidade
empresarial).
543
Existem múltiplas espécies de tributos sob o ponto de vista econômico,
podendo-se segmentar a análise sob
a perspectiva macroeconômica ou microeconômica. Os impostos incidentes
FGV DIREITO RIO
229
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A análise individualizada de cada uma dessas bases de tributação, bem
como a relação entre elas, ajuda a compreensão da dinâmica do sistema tributário em sua interface com a política econômica. De fato, apesar da maioria
esmagadora dos países adotarem todos os supracitados substratos econômicos,
ao mesmo tempo (patrimônio, renda e consumo), a relevância relativa ou o
peso conferido a cada uma dessas bases de incidência revela em grande medida
o perfil, os propósitos e os possíveis reflexos das diferentes políticas tributárias
adotadas pelos governos nacionais. A preponderância de determinado substrato econômico de tributação indica, por exemplo, a ênfase da intenção de
se utilizar o sistema tributário para redistribuir riqueza ou estimular os investimentos e a atividade econômica privada. Os impostos que recaem sobre o
patrimônio e a renda, por exemplo, se adéquam com facilidade à política fiscal
orientada para onerar mais pesadamente as pessoas que demonstrem maior
capacidade econômica, seja por meio da utilização de alíquotas proporcionais
ou progressivas. A incidência sobre o consumo, por outro lado, exclui a renda
poupada da tributação, o que estimula o investimento e a geração de riqueza,
apesar de ser considerado um tributo regressivo, tendo em vista não levar em
consideração, em regra, a capacidade econômica do contribuinte, conforme
será estudado na próxima aula pertinente à extrafiscalidade.
Destaque-se, entretanto, que, idealmente, a medida do ônus global da
incidência bem como das consequências distributivas da imposição tributária
deveria combinar a análise do impacto da instituição e cobrança do tributo
com o exame dos efeitos dos gastos que foram financiados pelas receitas cogentes. De fato, a introdução do imposto pode afetar a economia individual
e coletiva em dois aspectos: (1) em relação à fonte dos recursos disponíveis
(“source side”); e (2) no que se refere aos efeitos sobre os preços dos bens e
serviços passíveis de serem adquiridos (“uses side”).
De qualquer forma, importante repisar que nem sempre a pessoa eleita
pela norma jurídica como o sujeito passivo da obrigação tributária, usualmente denominado de contribuinte de direito, é aquele que arca, na realidade,
com o ônus econômico do tributo, enquadramento que depende das forças
do mercado de fatores de produção e de bens e serviços. Em outras palavras,
independentemente do substrato econômico de tributação utilizado (patrimônio, renda ou consumo), o contribuinte de fato, assim qualificado por suportar o encargo financeiro da incidência, pode ser ou não a mesma pessoa
que o contribuinte de direito, que tem o dever jurídico de pagar o tributo, por
determinação legal (o sujeito passivo da obrigação tributária). Essa possível
dissociação decorre dos múltiplos efeitos dos tributos sobre os preços e condições dos mercados de bens e serviços e dos fatores de produção (terra, capital,
trabalho, tecnologia etc.), do tipo de exação assim como da própria aplicação
da norma jurídica de incidência, conforme acima salientado. Nesse sentido
ensinam Marco Antonio Vasconcellos e Manuel Garcia547:
no mercado de bens e serviços se diferenciam daqueles aplicáveis sobre a
remuneração do mercado de fatores de
produção. Saliente-se a possibilidade
de exações instituídas sobre transações
específicas não associadas diretamente
ao consumo de bens e serviços ou à
remuneração de fator de produção,
mas que afetam indiretamente essas
variáveis. Os tributos incidentes sobre
as movimentações financeiras, por
exemplo, instituídos como um percentual sobre os depósitos bancários ou
das transações financeira, podem ou
não estar vinculados diretamente ao
consumo de serviços bancários ou à
remuneração de aplicação no mercado.
544
ROSEN, Harvey S. Public Finance
– 4th ed. United States: Irwin, 1995.
Chapter 13, p. 273 a 302.
545
VASCONCELLOS, Marco Antonio;
GARCIA, Manuel E. Fundamentos de
Economia. 2ª Ed. Saraiva, 2006, p.48
(nota 5).
546
ROSEN. Op. Cit. p. 475. Conforme
aponta Harvey S. Rosen: “(…) the
base of an income tax is potential consumption. This chapter discusses two
additional types of taxes: The first is
consumption tax, whose base is the
value (or quantity) of commodities sold
to a person for actual consumption. The
second is a whealth tax, whose base is
accumulated saving, that is the accumulated difference between potential and
actual consumption”
547
VASCONCELLOS, Marco Antonio;
GARCIA, Manuel E. Op. Cit.p.48.
FGV DIREITO RIO
230
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O produtor procurará repassar a totalidade do imposto ao consumidor. Entretanto, a margem de manobra de repassá-lo dependerá do grau de sensibilidade
desse a alterações do preço do bem. E essa sensibilidade (ou elasticidade) dependerá do tipo de mercado. Quanto mais competitivo ou concorrencial o mercado, maior a parcela do imposto paga pelos produtores, pois eles não poderão
aumentar o preço do produto para nele embutir o tributo. O mesmo ocorrerá se
os consumidores dispuserem de vários substitutos para esse bem. Por outro lado,
quanto mais concentrado o mercado – ou seja, com poucas empresas –, maior
grau de transferência do imposto para consumidores finais, que contribuirão com
parcela do imposto.
Em suma, a interação entre tributo e preço estabelece a correlação fundamental para determinação de quem suporta o ônus do tributo, se é o próprio
contribuinte de direito, que é o sujeito passivo da obrigação tributária (artigo
121 do CTN) e tem o dever jurídico de extinguir o crédito tributário pelo pagamento, nos termos do disposto no art. 156 do mesmo CTN ou, em sentido
diverso, se o contribuinte de fato é outra pessoa. O contribuinte de direito é
determinado pela lei em caráter formal e material, em obediência ao princípio
da tipicidade expresso no art. 97 do CTN, conforme será examinado na aula
pertinente ao estudo do princípio da legalidade, e pode ser ou não a mesma
pessoa que se caracteriza como o contribuinte de fato, figura a ser definida pela
dinâmica das diversas forças que formam o denominado mercado.
13.3 AS INTERFACES ENTRE OS DIVERSOS SUBSTRATOS ECONÔMICOS
DE INCIDÊNCIA
A interação entre as mencionadas bases econômicas de incidência (patrimônio, renda e consumo) é inequívoca, pois refletem o resultado da atividade econômica e do comportamento social passado e presente.
Robert M. Haig e Henry C. Simons fixaram o conceito de renda sob o
ponto de vista econômico nos seguinte termos548:
income is the money value of the net increase to an individual’s power to consume during a period. This equals to the amount actually consumed during the
period plus net additions to wealth. Net additions to wealth – saving – must be
included in income because they represent an increase in potential consumption.
Portanto, segundo a definição de Haig-Simons, renda, que representa o
consumo em potencial, é igual ao consumo mais a poupança (net wealth)549,
a qual, por sua vez, em termos agregados representa a capacidade de inves-
548
ROSEN. Op. Cit. pp. 360-361.
549
Renda = Consumo + Poupança
FGV DIREITO RIO
231
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
timento de uma economia, sem levar em consideração a poupança externa.
Por outro lado, o patrimônio, em dado momento do tempo, reflete a renda
passada não consumida e que foi imobilizada. Assim sendo, todos os substratos econômicos de incidência tributária tem como origem primária a renda,
passada ou presente.
13.3.1 A incidência sobre a Renda e o Patrimônio
Duas são as modalidades de tributação do patrimônio: (1) a primeira, em
que se considera a totalidade dos bens e direitos do sujeito passivo550; e (2) a
segunda, a partir de elementos específicos ou parcelas que compõem o patrimônio do contribuinte, em função de (2.1) uma situação jurídica (propriedade, posse etc) ou (2.2) uma a transmissão patrimonial, a título gratuito ou
oneroso. Diversos exemplos dessas últimas hipóteses de incidência já foram
analisadas sob a perspectiva da distribuição de competências de nosso federalismo fiscal, como são os casos dos impostos sobre a propriedade territorial
rural (art. 153, VI), predial e territorial urbana (art. 156, I), de veículos automotores (art. 155, III), de transmissão causa mortis e doação, de quaisquer
bens e direitos (art. 155, I) e da transmissão intervivos, por ato oneroso de
bens imóveis (art. 156, II).
A renda e o patrimônio possuem conexão íntima podendo-se segmentar a
primeira em: auferida, imobilizada ou transferida. Nesse sentido, sobre esses
dois substratos econômicos de incidência, salienta Ricardo Lobo Torres551, na
esteira de Richard Musgrave e Tipke:
De feito, todos eles incidem sobre base muito semelhante, estremando-se em
função da periodicidade ou das características formais do ato jurídico: não há
nenhuma dúvida, por exemplo, que as doações e legados constituem incrementos da renda. Por isso mesmo Tipke engloba, em sua proposta de sistema tributário ideal, os impostos sobre o patrimônio e o capital debaixo da denominação
de imposto de renda (Einkommernsteuer), ao qual se contrapõem os impostos
sobre a renda consumida (Einkommensverwendung).
Nessa linha, deve-se alertar que o tributo desenhado para incidir sobre a
renda pode afetar, na realidade, o patrimônio do sujeito passivo da obrigação tributária, caso, por exemplo, o regime jurídico tributário aplicável às
deduções das despesas e dos custos necessários ao seu auferimento não forem
adequados para restringir a incidência sobre a renda líquida e não sobre a
renda bruta552, afastando, dessa forma, a possibilidade de se atingir o próprio patrimônio.
Um exemplo numérico pode facilitar a compreensão do que se deseja expressar no momento.
550
Pode-se considerar como exemplo
dessa espécie no Brasil o Imposto sobre
as grandes fortunas, de competência
da União, nos termos do art. 153, VII, da
CR-88, tributo até hoje não instituído.
551
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Volume IV. Os Tributos na
Constituição. Rio de Janeiro. Renovar,
2007.p.56-57.
552
O PIS/PASEP e a COFINS são contribuições sociais que financiam a seguridade social e incidem sobre a receita ou
o faturamento, nos termos do art. 195,
I, “b”, da CR-88.
FGV DIREITO RIO
232
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Imagine que a alíquota553 do imposto de renda da pessoa jurídica é 40%
e uma empresa possua faturamento de R$ 1.000,00 (hum mil reais). Para
atingir aludida receita bruta554, incorreu em custos e despesas de R$ 900,00
(novecentos reais) sob o ponto de vista econômico-societário. Nesse total de
R$ 900,00 (novecentos reais) estão incluídos R$ 600,00 (seiscentos reais) de
custos e despesas gerais de produção e venda e R$ 300,00 (trezentos reais) relativos a pagamentos já realizados de multas por descumprimento da legislação
tributária – autuações impostas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Portanto, a renda líquida (lucro) da empresa sob a perspectiva econômico-societária no período, antes do imposto de renda, é tão somente R$ 100,00 (cem
reais), resultado da subtração do faturamento de R$ 1.000,00 (mil reais) pelas
despesas e custos totais de R$ 900,00 (novecentos reais). Suponha, entretanto,
que a legislação tributária restringiu os custos e as despesas dedutíveis555 para
a apuração do imposto de renda, de forma que, para efeitos fiscais, somente
foi possível abater R$ 600,00 (seiscentos reais) do faturamento quando da
apuração do imposto de renda da pessoa jurídica no período, isto é, o Fisco
não admitiu, por força do disposto na legislação tributária, o abatimento dos
R$ 300,00 (trezentos reais) relativos ao pagamento de multas. Dessa forma, ao
invés de pagar R$ 40,00 (quarenta reais) de imposto sobre a renda (40% * R$
100,00), caso fosse possível deduzir os R$ 900,00 (novecentos reais) integralmente, o que redundaria em lucro após o pagamento do imposto no montante de R$ 60,00 (sessenta reais), o contribuinte deve ao fisco R$ 160,00 (cento
e sessenta reais) a título da exação (40% * R$ 400,00). Dessa forma, tendo em
vista que economicamente e societariamente obteve lucro bruto de apenas R$
100,00 (cem reais), mas, por força das restrições impostas pela legislação tributária, tem que pagar R$ 160,00 (cento e sessenta reais) de imposto, parcela
da exação, de fato, incidiria sobre o patrimônio da entidade, e não sobre a renda auferida no período, a qual seria insuficiente para o pagamento do tributo.
Os dois quadros abaixo sintetizam o exposto:
553
A alíquota nominal, conforme será
estudado no momento próprio, é um
dos elementos objetivos da obrigação
tributária, e deve, necessariamente ser
fixada em lei, em função do disposto
no art. 97 do CTN. No caso do imposto
sobre a renda, a alíquota é sempre expressa em percentual que deve ser aplicado sobre uma base de cálculo, que é a
expressão econômica do fato gerador e
se consubstancia, da mesma forma que
a hipótese de incidência e a alíquota,
elemento objetivo do obrigação tributária, que deve ser estabelecido em lei em
carárter formal e material. Nos termos
em que será analisado na próxima aula,
pode haver a aplicação de uma única
alíquota ou múltiplas alíquotas para a
mesma pessoa que aufere a renda , em
função de objetivos de natureza extrafiscal. Já os impostos incidentes sobre
bens podem ser calculados e apurados
pela aplicação da chamada alíquota
específica, também denominada de
“ad rem” ou, ainda pela alíquota “ad valorem”, o que é mais comum. Esta incide
sobre uma base de cálculo expressa em
unidades monetárias (“ad valorem”),
ao passo que a alíquota “ad rem” é
aplicada sobre uma base de cálculo expressa em unidades físicas de medida,
como metros, litros, m³, etc. Assim, por
exemplo, pode ser cobrado R$ 2,00 (dois
reais) por litro de vinho, ou R$ 50,00
(cinquenta reais) por metro de tecido,
ou ainda, R$ 0,50 (cinquenta centavos)
por m³ de combustível. A alíquota “ad
valorem”, por outro lado, incide, em
geral, sobre o preço dos bens e serviços
objeto da tributação. Saliente-se que a
alíquota nominal, isto é, aquela fixada
em lei, seja ela “ad valorem” ou “ad rem”,
pode ser ou não equivalente à alíquota
real, também designada como a carga
tributária efetiva, que expressa a proporção ou peso do tributo em relação
à mercadoria, serviço ou renda, sem
a consideração de inclusão do próprio
tributo, conforme será examinado ainda
nesta aula.
Apuração Societária
[1]
Faturamento/Receita Bruta
[2]
Custo mais Despesas gerais
R$ 600,00
[3]
Despesas com Multas Fiscais
R$ 300,00
[4]=[2]+[3]
Total de Custos e Despesas
R$ 900,00
[5]=[1]-[4]
Lucro antes do Imposto do IR
[6]=[5]*40%
Imposto de Renda (40%)
R$ (40,00)
[7]=[5]-[6]
Lucro Societário
R$ 60,00
R$ 1.000,00
R$ (900,00)
R$ 100,00
FGV DIREITO RIO
233
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Apuração Fiscal
[1]
Faturamento/Receita Bruta
[2]
Custo mais Despesa gerais
R$ 600,00
[3]
Despesas com Multas Fiscais
R$ 300,00
[4]=[2]+[3]
Total de Custos e Despesas Dedutíveis
R$ 600,00
[5]=[1]-[4]
Resultado antes do IR
[6]=[5]*40%
Imposto de Renda (40%)
R$ (160,00)
[7]=[5]-[6]
Resultado após IR pelas regras fiscais
R$ 240,00
[8]=[6]- R$100
R$ 1.000,00
R$ (600,00)
R$ 400,00
Impacto do pagamento das Multas Fiscais no Patrimônio
Pelo exposto, pode-se constatar que o imposto, apesar de formulado para
incidir sobre a renda, considerando as premissas apontadas e bem assim a
aplicação da legislação tributária, repercutiu sobre o patrimônio da pessoa
jurídica reduzindo-o, haja vista que o pagamento de R$ 160,00 (cento e sessenta reais) exigido à título de IR foi além da renda líquida alcançada sob o
pondo de vista societário (lucro societário antes do IR = R$ 100,00). Assim
sendo, o impacto foi negativo em R$ 60 sobre o patrimônio.
Essa é a razão pela qual, por mais variado que seja o conceito possível de
renda, os economistas, financistas e os juristas em geral concordam no sentido de que o imposto deveria incidir sempre sobre um ganho ou acréscimo do
patrimônio556, apesar da grande controvérsia em relação aos fatos e extensão
dos eventos que consubstanciam essa situação sob o ponto de vista jurídico.
De fato, a definição jurídica do conteúdo e alcance da expressão “renda e
proventos de qualquer natureza”, fundamento de incidência do imposto de
competência da União fixada no art. 153, III, da CR-88, é objeto de muita
discussão e desencontros, tanto na doutrina como na jurisprudência nacional.
O inteiro teor do Recurso Extraordinário (RE) 201465557 revela o elevado
grau de dissenso jurisprudencial entre os próprios Ministros do Supremo
Tribunal Federal. O relator do RE, Ministro Marco Aurélio, sustentou no
recurso a tese de que o conceito constitucional de renda vincula-se ao de
“acréscimo patrimonial” (p. 437) indicando, ainda que o Direito Tributário, com fundamento no art. 110 do CTN, não pode “alterar a definição, o
conteúdo e o alcance de institutos e formas de direito privado” utilizado pela
Constituição para definir ou limitar competência tributária (p. 436-437).
Assim, parece indicar no sentido da existência de um conceito ontológico ou
natural de renda. Nessa mesma linha, se posicionou o Ministro Sepúlveda
Pertence, ao ressaltar (p. 433-434):
R$ (60)
554
O conceito de faturamento e receita
bruta no exemplo é o mesmo, apesar
da legislação fixar distinções que não
são relevantes para o caso e serão examinadas no curso Direito Tributário e Finanças Públicas II. Saliente-se, apenas,
o seguinte trecho do voto condutor, do
Ministro Moreira Alves, na ADC nº 1,
quanto ao conceito fixado no art. 2º
da Lei Complementar 70/91: “Note-se
que a Lei Complementar ao considerar
o faturamento como ‘receita bruta das
vendas de mercadorias, de mercadorias
e serviços e de serviços de qualquer
natureza’ nada mais fez do que lhe dar
a conceituação de faturamento para
efeitos fiscais, como bem assinalou o
eminente Ministro Ilmar Galvão, no
voto que proferiu no RE 150.764, ao
acentuar que o conceito de receita
bruta das vendas de mercadorias e de
mercadorias e serviços “coincide com o
de faturamento, que, para efeitos fiscais, foi sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas
das vendas acompanhadas de fatura,
formalidade exigida tão-somente nas
vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei
187/36). ”
555
Ver art. 13 da Lei nº 9249/95, art 14
da Lei nº 9.430/96 e art 11 §2º da Lei
9532/97. São hipóteses de restrições
de aproveitamente ou de despesas que
devem ser adicionadas ao lucro líquido
do período apurado de acordo com as
regras societárias. São despesas controladas na parte B do chamado Livro
de Apuração do Lucro Real (LALUR)
para fins de determinação do lucro
real fiscal.
556
Nesse sentido ver voto proferido pelo
Min. Cunha Peixoto nos autos do RE nº
89.791-RJ.
FGV DIREITO RIO
234
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Lembra-me o voto do velho Ministro Luiz Galloti, dizendo, com elegância
ímpar, o que muitos têm dito: o dia em que for dado chamar de renda o que renda não é, de propriedade imóvel o que não o é, e assim por diante, estará dinamitada toda a rígida discriminação de competências tributárias, que é o próprio
âmago do federalismo tributário brasileiro, o qual, nesse campo, é de discriminação exaustiva de competências exclusivas e, portanto, necessariamente postula
um conceito determinado dos campos de incidência possível da lei instituidora
de cada tributo nele previsto. Não se pode, é claro, reclamar da Constituição
uma exaustão da regulação da incidência de cada tributo, mas há um mínimo
inafastável, sob pena – repito – de dinamitação de todo o sistema constitucional
de discriminação de competências tributárias. (grifo nosso)
Em sentido substancialmente diverso, o Ministro Nelson Jobim, relator
para o acórdão, em seu voto vista, sustentou (p. 393-398) que:
a legislação ordinária, no lugar da expressão constitucional ‘Renda’, passou a utilizar, para uma das modalidades de base de cálculo, a expressão ‘LUCRO REAL’.
Observo que a adjetivação ‘REAL’ é obra da legislação infraconstitucional ordinária. Não está na Constituição, nem na lei complementar – CTN. A definição
de ‘LUCRO REAL’ está no DL 1.598, de 26.12.1977 (...) A técnica legal para
a determinação do LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é a da enumeração taxativa
(a) dos elementos que compõem o LUCRO LÍQUIDO DO EXERCÍCIO e (b)
dos itens que devem ser, a este adicionados e abatidos. (...) Vê-se, desde logo, que
o conceito de LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é puramente legal e decorrente
exclusivamente da lei, que adota a técnica da enumeração exaustiva. Algumas
parcelas que, na contabilidade empresarial, são consideradas despesas, não são
assim consideradas no BALANÇO FISCAL. É o caso já exemplificado dos brindes e das despesas de alimentação dos sócios. Insisto. Isso tudo demonstra que
o conceito de LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é um conceito decorrente da lei.
Não é um conceito ontológico, como se existisse, nos fatos, uma entidade concreta
denominada de ‘LUCRO REAL’. Não tem nada de material ou essencialista. É
um conceito legal. Não há um LUCRO REAL que seja ínsito ao conceito de
RENDA como quer o relator” (em alusão ao voto do Ministro relator Marco
Aurélio). (grifo nosso)
Dessa forma, afasta a existência de um conceito natural ou ínsito ao substrato econômico de incidência tributária (renda). Na mesma toada do voto
vista, que acabou prevalecendo, também indicou o Ministro Moreira Alves:
Por outro lado, com relação à definição de ‘renda’, o próprio conceito de
‘lucro real’ é de natureza legal. A Constituição Federal prevê apenas ‘renda’ e
‘provento’, mas isso não impede a lei, desde que não seja desarrazoada, possa exa-
557
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. RE n° 201.465-MG,
Rel. Min. Marco Aurélio e Rel.p/acórdão Min. Nelson Jobim. Julgamento
em 02.05.2002. Brasília. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso
em 17.06.2010. Decisão por maioria
de votos.
FGV DIREITO RIO
235
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
minar o conceito de ‘renda’. Tanto isso é verdade que, desde o início da cobrança
de imposto de renda e da existência de inflação no País, sempre foi cobrado
imposto de renda, com relação às pessoas físicas, corrigido monetariamente, sem
que jamais se tenha sustentado que isso feria o conceito de “renda”. Não sendo
este conceito legal desarrazoado –, no caso não me parece que o seja, até porque
o próprio Código Tributário, quando trata do fato gerador, alude à aquisição
de disponibilidade econômica ou jurídica –, a correção monetária não deixa de
acarretar a aquisição de uma disponibilidade econômica.
Independentemente da divergência apontada, importante ressaltar que o
imposto sobre a renda subdivide-se em dois grandes grupos: aquele incidente
sobre as pessoas físicas (income tax) e o imposto sobre as pessoas jurídicas
(corporate tax).
O imposto sobre a renda da pessoa física (income tax) é usualmete classificado como um imposto direto, assim qualificado pelo fato de a incidência
econômica recair sobre aquele determinado pela lei como o contribuinte de
direito. Em sentido diverso, o enquadramento do imposto sobre a renda da
pessoa jurídica (corporate tax) como direto ou indireto é objeto de muita dicussão e dissenso. Alguns autores repudiam até mesmo a própria classificação
que segmenta os impostos entre diretos e indiretos, por considerarem-na, a
segmentação, sem relevância sob o ponto de vista jurídico tributário, como
é o caso de Regis Fernandes de Oliveira558, que assevera no seguinte sentido:
A classificação [impostos diretos e indiretos] é financeira, uma vez que para
o direito é irrelevante quem suporta o ônus. (grifo nosso)
Apesar de realmente ser controvertido e impreciso o conceito, distinção
e enquadramento das diversas espécies tributárias em um dos dois grupos –
impostos diretos ou indiretos – a afirmativa transcrita na parte final, no sentido de que a determinação de quem suporta o ônus do tributo é irrelevante
para o direito, é inadequada, ainda que se considere apenas o aspecto normativo da tributação. De fato, o próprio ordenamento jurídico brasileiro prevê,
expressamente, a relevância da análise da repercussão559 ou não do ônus ou
do encargo financeiro do tributo, conforme disciplina expressa no artigo 166
do CTN, o qual prescreve:
Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver
assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por
este expressamente autorizado a recebê-la.
558
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008. p. 140.
559
A complexa discussão se a repercussão é econômica ou não tanscende os
objetivos da presente aula.
FGV DIREITO RIO
236
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Dessa forma, inequívoca a relevância jurídica do exame das espécies tributárias no que se refere à distribuição alocativa do ônus do tributo. Nessa
linha, apesar de criticar a classificação (tributos diretos e indiretos) para efeitos jurídico-tributários, aponta Hugo de Brito Machado560 no sentido da
relevância da determinação de quem suporta o ônus do tributo em nosso
ordenamento jurídico:
A classificação dos tributos em diretos e indiretos não tem, pelo menos do
ponto de vista jurídico, nenhum valor científico. É que não existe critério capaz
de determinar quando um tributo tem ônus transferido a terceiro, e quando é
o mesmo suportado pelo próprio contribuinte. O imposto de renda, por exemplo, é classificado como imposto direto; entretanto, sabe-se que nem sempre o
seu ônus é suportado pelo contribuinte. O mesmo acontece com o IPTU, que
em se tratando de imóvel alugado é quase sempre transferido para o inquilino.
Atribuindo, porém, relevância a tal classificação, o CTN estipulou que ‘a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo
encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido
encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente
autorizado a recebê-la’. A nosso ver, tributos que comportem, por sua natureza,
transferência do respectivo encargo financeiro são somente aqueles tributos em
relação aos quais a própria lei estabeleça dita transferência. Somente em casos
assim aplica-se a regra do art. 166 do CTN, pois a natureza a que se reporta
tal dispositivo legal só pode ser a natureza jurídica, que é determinada pela lei
correspondente, e não por meras circunstâncias econômicas que podem estar, ou
não, presentes, sem que se disponha de um critério seguro para saber se deu, e
quando não se deu, tal transferência. (grifo nosso)
Sobre o mesmo tema esclarece Luciano Amaro561:
A repercussão, fenômeno econômico, é difícil de precisar. Por isso esse dispositivo (art. 166 do CTN) tem gerado inúmeros questionamentos na doutrina.
Ainda que se aceitem os “bons propósitos” do legislador, é um trabalho árduo
identificar quais tributos, em que circunstâncias, têm natureza indireta, quando se sabe que há a tendência de todos os triubtos serem “embutidos” no preço de bens ou bens ou serviços e, portanto, serem financeiramente transferidos
para terceiros. Diante dessa dificuldade, a doutrina tem procurado critérios para
precisar o conteúdo do preceito; Leo Krakoviak, com apoio em Marco Aurélio
Greco, sustenta que o art. 166 do Código “supõe a existência de uma dualidade
de pessoas”, de modo que, “se o fato gerador de um tributo ocorre independentemente da realização de uma operaçao que envolve uma relação jurídica
da qual participem dois contribuintes, em virtude da qual o ônus financeiro
do tributo possa ser transferido diretamente do contribuinte de direito para o
560
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de
Direito Tributário. 21 ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: Editora Malheiros,
2002. p. 176.
561
AMARO, Luciano. Direito Tributário
Brasileiro. 11ª Edição. 2005, pp. 425426.
FGV DIREITO RIO
237
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
contribuinte de fato, não há como falar-se em repercussão do tributo por sua
natureza (...)“...... Gilberto Ulhôa Canto relata a história deste artigo e os precedentes jurisprudenciais e lamenta ter contribuído para sua inclusão no texto
do Código Tributário Nacional, destacando, entre outros argumentos, o fato de
que a relação de indébito se instaura entre o solvens e o accipiens, de modo que
o terceiro é estranho e só poderá, eventualmente, invocar direito contra o solvens
numa relação de direito privado. Ricardo Lobo Torres, por outro lado, sublinha
o principal argumento do Supremo Tribunal Federal (já antes do CTN) para
negar a restituição de triubto indireto, qual seja, o de que é mais justo o Estado
apropriar-se do indébito, em proveito de toda a coletividade, do que o contribuinte de jure locupletar-se, não obstante a generalizada censura da doutrina
à posição pretoriana, agora respaldada, com temperamentos, pelo art. 166 do
Código. Registra, porém, que o direito brasileiro está na contramão do direito
comparado. Marco Aurélio Greco já aplaude o dispositivo. Aliomar Baleeiro
que, no STF, se insurgia contra a Súmula 71 (que proclamara a impossibilidade
de restituição de tributo indireto), registrando “a nocividade, do ponto de vista
ético e pragmático, duma interpretação que encoraja o Estado mantenedor do
Direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades, na
certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus
agentes e órgãos”, considerou racional a solução dada pelo art. 166 do Código.
Ainda sobre o mesmo tema pontua Sacha Calmon562:
Quando afirmamos que os impostos se norteiam pelo princípio da capacidade contributiva, faz-se necessário, absolutamente necessário, operar uma distinção fundamental. É que os impostos indiretos são feitos pelo legislador para
repercutir nos contribuintes de fato, os verdadeiros possuidores de capacidade
econômica (consumidores de bens, mercadorias e serviços). É o ato de consumir
o visado. É a renda gasta no consumo que move o legislador. Os agentes econômicos que atuam no circuito da produção-circulação-consumo apenas adiantam
e repassam o ônus financeiro do tributo para a frente. É o que ocorre com o
ICMS e o IPI. Por isso mesmo o CTN (art. 166) veda aos contribuintes de direito receber de volta o indébito, salvo prova de que não repassaram o ônus do
imposto ou de que estão munidos de autorização para repetir. Em sendo assim,
se um tributo é denominado de contribuição, se é cobrado de agentes econômicos mas acaba sendo incluído nos custos de produção e circulação para ser
transferido aos preços, a sua natureza de imposto indireto sobre o consumo salta
aos olhos. Este é o argumento-base para desmistificar a teoria da contribuição
como quarta espécie [tributária]. Todavia, por serem cumulativas, estruturadas
fora da não-cumulatividade, às contribuições não se aplica o art. 166 do CTN.
O que são COFINS e o PIS senão impostos sobre preços?
562
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio
de Janeiro: Forense, 2009, p. 427.
FGV DIREITO RIO
238
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Por sua vez, a incidência econômica do imposto sobre a renda da pessoa
jurídica (corporate tax) também é matéria controvertida na doutrina econômica nacional e estrangeira. Em que pese o contribuinte de direito – o sujeito
passivo da obrigação tributária – ser a pessoa jurídica que aufere a renda,
pode ocorrer, economicamente, o repasse do encargo ou o ônus do tributo,
razão pela qual pode ser qualificado como imposto indireto, sob o ponto de
vista econômico. Nessa linha salienta Fernando Rezende563:
Como foi visto, o modelo neoclássico supõe que o imposto não afete a curva
de custo marginal e o preço de venda dos produtos, provocando apenas uma
redução no lucro em poder das firmas. Nesse caso, o ônus da tributação recairia
igualmente sobre o produtor. A hipótese de que o ônus de um imposto sobre
o lucro recai integralmente sobre o produtor constitui-se numa das principais
controvérsias dessa modalidade de tributação. Na verdade, a possibilidade de
transferência parcial ou total desse ônus para terceiros é reforçada tanto por
modificações nas hipóteses teóricas sobre o comportamento das firmas quanto por análises empíricas do problema. Em estudo sobre o assunto, Claudio
Roberto Contador aponta quatro casos em que se admite claramente a possibilidade de transferência do ônus para o consumidor final: o modelo mark up, o
modelo Kryzaniak-Musgrave, o modelo neoclásico em condições de risco e uma
versão dinâmica do modelo neoclássico. (grifo nosso)
Na mesma toada indica Case e Fair564:
The tax may affect profits earned by owners of capital, wages earned by
workers, or prices of corporate and noncorporate products. Once again, the key
question is how large these changes are likely to be......The great debate about
whom the corporate tax hurts illustrates the advantage of broad-based direct
taxes over narrow-based indirect taxes. Because it is levied on an institution,
the corporate tax is indirect, and therefore is always shifted. Furthermore, it
taxes only one factor (capital) in only one part of the economy (the corporate
sector). The income tax, in contrast, taxes all forms of income in all sectors of the
economy, and it is virtually impossible to shift. It is difficult to argue that a tax
is good tax if we can’t be sure who ultimately ends up paying it. (grifo nosso)
Ainda, importante repisar que as pessoas jurídicas, criações do homem,
não suportam, em última instância, a carga tributária, pois somente pessoas
naturais arcam com o ônus econômico do tributo, isto é, a incidência econômica da exação sobre a pessoa jurídica dever ser analisada sob a perspectiva
do retorno do capital empregado por aquele responsável por sua constituição
ou seu beneficiário, o que requer a análise conjunta da norma jurídica com a
realidade econômica sobre a qual ela é aplicada.
563
REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª edição, Atlas, 2001 4ª reimpressão 2006, pp. 201-202.
564
CASE, Karl E. e FAIR, Ray C.. Principles of Microeconomics. 4th Ed. New
Jersey – USA: Prentice Hall, p.468.
FGV DIREITO RIO
239
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
13.3.1 A incidência sobre o Consumo
A seu turno, a tributação sobre base econômica do consumo pode ser
efetivada de duas formas: (1) por meio da adoção do chamado Personal Consumption Tax ou do Saving-exempt income tax, hipótese em que os dados
apresentados pelo próprio consumidor configuram instrumento essencial
para apuração do montante devido ou, ainda, o que é mais comum, (2) pelos
impostos incidentes sobre transações (Transaction Consumption Tax), os quais
podem ser monofásicos ou plurifásicos, cumulativos ou não.
No caso dos impostos incidentes sobre a circulação e vendas de bens e
serviços, monofásicos ou plurifásicos, objetiva-se que o imposto recaia sobre
o consumidor final565, podendo essa previsão estar expressa no ordenamento
jurídico ou não. Repise-se, entretanto, que o tributo juridicamente desenhado para incidir sobre determinada base econômica pode, de fato, não atingir
aludido substrato sob o ponto de vista econômico, em função das condições
de mercado, da técnica utilizada em cada tipo de exação ou da própria interpretação/aplicação da legislação tributária, conforme será examinado ao
longo do curso.
Nos impostos plurifásicos, desenhados para incidir sobre o consumo, o
contribuinte de direito é, em regra, o industrial, o atacadista ou o varejista,
ou todos eles, como ocorre no denominado imposto incidente sobre o valor
agregado (IVA), amplamente adotado no exterior, em especial na União Européia. Em relação a esses tipos de incidência, a Constituição estabelece que
devem ser adotadas medidas para que os consumidores sejam esclarecidos
acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços, consoante o
disposto no §5º do art. 150, o qual estabelece:
Art. 150. (...)
§ 5º – A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.
O imposto sobre mercadorias ou serviços pode ser monofásico, isto é,
incidir apenas em uma fase do ciclo econômico, ou plurifásico, assim qualificado por haver tributação em algumas ou todas as etapas de circulação entre a
produção e o consumo. Esses mesmos tributos podem ser cumulativos, assim
qualificados se a base de cálculo de determinada etapa de circulação incluir
tributo da mesma espécie já incidente em etapa anterior, ou não cumulativos,
hipótese em que a incidência limita-se ao valor adicionado em cada fase do
ciclo econômico-tributário do bem ou serviço.
O fenômeno da repercussão ou da translação do ônus do tributo para as
etapas subseqüentes de circulação de imposto incidente sobre mercadorias e
serviços pode ser – ou não – expressamente previsto na norma jurídica, isto
565
Dessa forma, nessa modalidade de
tributação sobre o Consumo, a capacidade econômica é do contribuinte
de fato, apesar da relação jurídicatributária se estabelecer com o sujeito
passivo da obrigação tributária que tem
o vínculo com o Fisco.
FGV DIREITO RIO
240
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
é, a transferência do encargo financeiro do tributo para terceiros pode decorrer da própria estrutura normativa de incidência. Repize-se, no entanto,
que independentemente de sua formatação jurídica pode ocorrer, economicamente, o aludido repasse do ônus financeiro do tributo para as etapas subseqüentes de circulação, dependendo das condições dos mercados de fatores
e de bens e serviços.
O imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior
(ICMS), por exemplo, tributo de competência privativa566 dos Estados e do
Distrito Federal, é constitucionalmente desenhado para que o seu encargo
financeiro seja repassado ao consumidor final, razão pela qual é considerado como imposto incidente sobre o consumo567. Essa característica decorre
da combinação de dois dispositivos constitucionais, a saber: (1) do disposto
no artigo 155, §2º, I, o qual estabelece que o ICMS “será não-cumulativo
compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de
mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores
pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”, o que objetiva, como
regra geral, que o imposto estadual incida somente sobre o valor adicionado
em cada etapa de circulação; e (2) do contido no artigo 155, §2º, XII, “i”,
que dispõe caber à lei complementar “fixar a base de cálculo, de modo que o
montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem,
mercadoria ou serviço” 568, isto é, o preço da mercadoria ou do serviço objeto
de incidência compreende, também, o montante do imposto estadual.
Dessa forma, o ICMS deve estar incluído no próprio preço cobrado nas
diversas fases de circulação, razão pela qual o montante total incidente em
todas as fases será repassado até o consumidor final, o qual arca com o encargo financeiro do imposto estadual569. Outros tributos, em sentido diverso,
não estão incluídos em sua própria base de cálculo, mas ainda assim constam
expressamente da nota fiscal que acoberta a transação e repercutem para as
etapas subsequentes, como é o caso do IPI, conforme será examinado ainda
nesta aula.
No caso do ICMS, portanto, há repercussão constitucional obrigatória,
independentemente da realidade econômica subjacente a influenciar as alterações de preços nas diversas etapas de circulação.
A figura ilustrativa abaixo auxilia a compreensão do que foi até aqui exposto em relação ao ICMS, supondo a alíquota nominal do imposto fixada em
10%, conforme lei do Estado “X”, onde ocorrem todas as transações.
No caso hipotético (1) a Indústria “A” não realizou qualquer aquisição
no período e somente vendeu para o Atacadista “B” mercadorias no valor
total de R$ 100,00 (cem reais), montante que inclui o ICMS destacado na
nota fiscal no valor de R$ 10,00 (dez reais) ; (2) o Atacadista “B” somente
566
Art. 155, II, da CR-88.
567
Conforme será estudado em Direito
Tributário e Finanças Públicas II a arrecadação do imposto nas transações
entre os diversos Estados e o Distrito
Federal pode ser toda do Estado de
origem, integralmente atribuída ao Estado do destino ou um sistema híbrido
de alocação distribuição da arrecadação
na Federação, dependendo onde ocorra
o consumo da mercadoria ou a fruição
do serviço prestado. Em âmbito internacional o princípio geral é o do destino, isto é, as exportações não sofrem
incidência ao passo que as importaçõs
são normalmente tributadas.
568
Dispositivo introduzido pela Emenda
Constitucional nº 3/1993. Saliente-se,
entretanto, que antes da alteração
constitucional para introduzir a aludida alínea “i”, a Lei Complementar
nº 87/1996, no §1º do art. 13 - e antes dela o Convênio ICMS 66/89 com
fulcro na autorização constitucional
contida no art. 34, §8º, dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)- já determinava que o
ICMS estaria incluído em sua própria
base de cálculo. O Supremo Tribunal
Federal, no RE 212209, já havia se
pronunciado, antes mesmo da edição
da Emenda Constitucional nº 33/2001,
no sentido da constitucionalidade do
denominado “cálculo por dentro”, isto é,
que a inclusão do ICMS em sua própria
base de cálculo não violava o princípio
da não-cumulatividade. O julgamento
ocorreu em 23/06/1999, e o acórdão
possui a seguinte ementa: “Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS:
inclusão no valor da operação ou da
prestação de serviço somado ao próprio
tributo. Constitucionalidade. Recurso
desprovido.”
569
Nesse sentido, aplica-se o diposto no
artigo 166 do CTN na hipótese de pedidos de restituição de indébito.
FGV DIREITO RIO
241
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
realizou aquisições da Indústria “A” e vendeu exclusivamente para o Varejista
“C” as mesmas mercadorias adquiridas pelo valor de R$200,00 (duzentos
reais), preço total que contém ICMS correspondente a R$ 20,00 (vinte reais)
consignado na nota fiscal de venda; e (3) o varejista “C” vendeu todo o seu
estoque que era composto apenas pelas mercadorias adquiridas do Atacadista
“B” por R$ 400,00, preço ao consumidor final que contém ICMS destacado
no valor de R$ 40,00 (quarenta reais):
O repasse do tributo para as etapas subseqüentes até o consumidor final ocorre por meio do pagamento do preço, o qual compreende, também,
o ICMS incidente em cada fase, isto é, o imposto está incluído no valor
pago pelo atacadista ao industrial (ICMS de R$ 10,00 incuído no preço
pago, equivalente a R$ 100,00), no montante pago pelo varejista ao atacadista (ICMS de R$20,00, correspondente a R$ 10,00 da primeira etapa e R$
10,00 da segunda fase, montante incluído no preço de R$ 200,00) e, por fim,
no preço pago pelo consumidor final ao varejista, o qual compreende os R$
40,00 de ICMS incidente em todas as etapas, montante incluído no preço
final de R$ 400,00570.
Saliente-se, entretanto, que o repasse encargo financeiro para as etapas subseqüentes pode ocorrer sem que haja previsão constitucional expressa no sentido que
o tributo seja incluído em sua própria base de cálculo. Este é o caso, por exemplo,
do Imposto sobre produtos industrializados (IPI), de competência da União, cujo
imposto não está incluído em sua base de cálculo, razão pela qual opera-se o já
denominado fenômeno da repercussão, o qual, para muitos autores, é princípio
constitucional do qual a não-cumulatividade é subprincípio571. É essa translação
obrigatória que caracteriza tanto o IPI como o ICMS, impostos da espécie incidente sobre o valor acrescido, como tributo sobre o substrato econômico do Consumo.
570
Constata-se, dessa forma, que, considerando um mercado próximo ao de
concorrência perfeita, onde os preços
são fixados no mercado e não por meio
de fixação de Mark-up, mantida uma
alíquota constante, o total arrecadado
pelo imposto incidente sobre o valor
adicionado (IVA) em todas as fases
de circulação corresponde ao mesmo
montante alcançado caso seja aplicado
um imposto monofásico na etapa do
varejista.
571
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e
Tributário, vol. IV, Os Tributos na Constituição, Renovar, 2007.p.321. “O princípio constitucional da repercussão obrigatória, do qual a não-cumulatividade
é um subprincípio, sinaliza no sentido
de que a carga econômica do ICMS deve
repercutir sobre o contribuinte de fato.”
FGV DIREITO RIO
242
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Mas qual a diferença prática entre as duas hipóteses, isto é, quando o imposto está ou não incluído em sua própria base de cálculo?
Preliminarmente, deve-se destacar que as metodologias de cálculo e os
seus efeitos são diversos, o que pode ocasionar muita confusão, desde o momento da produção legislativa até as decisões judiciais das mais altas cortes,
conforme será examinado a seguir.
No caso do ICMS estadual deve-se realizar o denominado “cálculo por
dentro”, por determinação constitucional expressa, ao passo que na hipótese
do IPI federal realiza-se o chamado “cálculo por fora”.
Preliminarmente, entretanto, importante destacar que o intérprete se nutre e colhe elementos não apenas dos textos normativos (mundo do deverser), mas, também, do caso concreto e da realidade para a aplicar o Direito,
matéria que será aprofundada na última aula do curso. Nessa linha ensina o
Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau em estudo doutrinário572:
Por ora, repitamos: a norma encontra-se, em estado de potência, involucrada
no texto. Mas ela se encontra assim nele incolucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a norma é produzida, pelo
intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela
aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se
também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento
histórico no qual se opera a interpretação – em cujo contexto serão eles aplicados. (grifo nosso)
Portanto, a realidade ocupa papel central na definição do sentido, alcance
e eficácia das normas jurídicas, devendo o interprete e aplicador da lei observar, com cuidado especial, a razão, decorrente da lógica e das leis físicas, que
não podem ser revogadas ou afastadas pela simples vontade humana expressa
na linguagem do Direito.
Importante, portanto, fixar duas premissas em relação ao raciocínio que
será adiante exposto: (1) que a Constituição determina que o ICMS está incluído em sua própria base de cálculo (alínea “i” do inciso XII do §2º do
artigo 155 da CR-88) e (2) que a interpretação pressupõe, além da leitura do
texto normativo, a compreensão do caso e da realidade, em especial a razão e
as leis físicas, que não podem ser afastadas pela vontade do legislador ou da
norma extraída de decisão judicial, nem mesmo do Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, procurar-se-á demonstrar que qualquer lei determinado a
aplicação de alíquota nominal do ICMS em percentual igual ou superior a
100% (cem por cento) é inexeqüível573. De fato, conforme será demonstrado, qualquer norma nesse sentido, como é o caso, por exemplo, da supratranscrita Lei nº 4153/03, é inapta a produzir efeitos jurídicos, ainda que
572
GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre
a Interpretação/Aplicação do Direito.
Malheiros, 5ª Ed. 2009. p.32.
573
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Editora Unidade de
Brasília, 10ª Ed 1999. Ensina o consagrado autor: “uma norma que proibisse
uma ação necessária ou ordenasse uma
ação impossível seria inexeqüível”.
FGV DIREITO RIO
243
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
declarada formalmente constitucional e transitada em julgado a decisão, com
é o caso daquela monocrática exarada no Recurso Extraordinário 589.216.574
A inequívoca demonstração que a mencionada alíquota de 200% é inexeqüível, desde a publicação da Lei, requer a explicitação da metodologia e
operacionalização do denominado “cálculo por dentro”, em comparação ao
chamado “cálculo por fora”, questão que passou despercebida em todas as
instâncias judiciais em que a matéria foi examinada, haja vista a concentração e limitação da análise sobre a configuração ou não de confisco ou
da utilização do imposto com efeitos confiscatórios. Dito de outra forma, a
comprovação de que uma alíquota do ICMS igual ou superior a 100% representa uma contradição real e não apenas aparente pressupõe a compreensão
do significado do dispositivo constitucional que estabelece que o ICMS integra a sua própria base de cálculo em comparação à sistemática aplicável aos
impostos em que esta regra não se aplica.
É o que se passa a examinar.
Diferentemente do caso do ICMS, na hipótese dos impostos não incluídos
em sua própria base de cálculo, como é o IPI, por exemplo, a alíquota nominal
é exatamente igual à alíquota real, isto é, a carga tributária comparada ao valor
do produto sem o imposto expressa o mesmo percentual que a alíquota fixada
em lei. Isso ocorre porque a base de cálculo é equivalente ao próprio custo da
mercadoria sem o imposto. O exemplo numérico a seguir revela e demonstra
o fato: suponha que o custo de uma mercadoria sem tributo é igual a R$ 90,00
(noventa reais) e que a alíquota nominal de determinado imposto que não está
incluído em sua própria base de cálculo é de 10% (dez por cento). O imposto
incidente seria equivalente ao valor de R$ 9,00 (nove reais), resultado da multiplicação do custo da mercadoria sem o imposto, no montante de R$ 90,00
(noventa reais), pela alíquota nominal de 10% (dez por cento) fixada em lei.
Já o total do produto mais o imposto seria igual a R$ 99,00 (noventa e nove
reais). A alíquota real, por sua vez, a qual significa e expressa a proporção que
o imposto corresponde da mercadoria sem o próprio imposto, calcula-se por
meio da divisão do valor do tributo pelo custo do produto, sendo, nessa hipótese, resultante da divisão entre R$ 9,00 (nove reais) pelos R$ 90,00 (noventa
reais) da mercadoria, isto é, 10% (dez por cento). Constata-se, dessa forma,
que, no caso dos impostos não são incluídos em sua própria base de cálculo,
a alíquota nominal fixada em lei é exatamente igual à alíquota real. Pode-se
apresentar o exposto em termos matemáticos da seguinte forma:
•
•
•
•
•
Base de Cálculo
= R$ 90,00
(x) Alíquota nominal = ___ 10%____
(=) IPI incidente
= R$ 9,00
Alíquota real =
10% = R$ 9,00/R$90,00
Total da mercadoria mais IPI = R$ 99,00 = R$9,00+R$90,00
574
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. RE n° 589.216-RJ,
Rel. Min. Eros Grau. Julgamento em
12.08.2009. Brasília. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>.
Acesso
em 17.06.2010. Decisão monocrática
com fulcro no disposto no artigo 557,
§1º-A, do Código de Processo Civil,
dispositivo incluído pela Lei nº 9.756,
de 17.12.1998, o qual estabelece: “Se
a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com
jurisprudência dominante do Supremo
Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao
recurso.” A parte relevante do acórdão
está assim fundamentada: “7. O recurso
merece prosperar, tendo em vista que a
incidência, no caso, atende ao requisito
da seletividade, que lhe confere caráter
extrafiscal. O tributo cumpre, na espécie, função extrafiscal; visa a desestimular a compra de armas de fogo e
munições, suas partes e acessórios. 8. A
jurisprudência do Supremo fixou-se no
sentido de ser idôneo o uso do “caráter
extrafiscal que pode ser conferido aos
tributos, para estimular conduta por
parte do contribuinte, sem violar os
princípios da igualdade e da isonomia”
[ADI n. 1.276,Relatora a Ministra Ellen
Gracie, DJ de 29.8.02].” A exrafiscalidade será objeto de estudo da próxima
aula e o exame das limitações constitucionais ao poder de tributar, das quais
fazem parte, entre outros, o princípio
da isonomia e do não confisco será iniciado na aula 15.
FGV DIREITO RIO
244
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Caso a alíquota nominal seja aumentada, por exemplo, para 200% (duzentos por cento), mantida a mesma base de cálculo, o montante do imposto
seria equivalente a R$ 180,00 (cento e oitenta reais), resultado da multiplicação da mercadoria no valor de R$ 90,00 (noventa reais) pela alíquota correspondente a 200% (duzentos por cento). Dessa forma, o total da mercadoria
mais o imposto seria R$ 270,00 (duzentos e setenta reais), o que pode ser
representado nos seguintes termos:
•
•
•
•
•
Base de Cálculo
= R$ 90,00
(x) Alíquota nominal = _ 200%____
(=) IPI incidente
= R$ 180,00
Alíquota real =
200% = R$ 180,00/R$90,00
Total da mercadoria mais IPI = R$ 270,00 = R$180,00+R$90,00
Pode-se concluir, portanto, que, neste caso, do imposto não incluído em
sua própria base de cálculo, não há limite lógico ou teto máximo para a alíquota nominal, que poderá ser equivalente a qualquer percentual, observado,
entretanto, obviamente, as denominadas limitações constitucionais ao poder
de tributar, em especial a capacidade econômica ou contributiva do sujeito
passivo da obrigação tributária, matéria que será objeto de estudo a partir
da aula 15. Nesse sentido, a extrafiscalidade, assim qualificada no momento
como a utilização dos tributos com outros objetivos além da arrecadação
(estimular ou desestimular o consumo por exemplo), pode ser utilizada de
forma mais aguda e radical. Isso ocorre na hipótese dos tributos que não estão
incluídos em sua própria base de cálculo porque não há de limite lógico na
fixação da alíquota nominal.
Por outro lado, a alíquota nominal do ICMS, considerando que o imposto
está incluído em sua própria base de cálculo, nos termos da alínea “i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da CR-88, conforme será adiante demonstrado,
possui um limite máximo, que decorre da razão e não de princípios ou regras
constitucionais expressas, como o princípio do não confisco ou da capacidade econômica. De fato, a lógica formal obstaculiza a incidência de tributo,
cuja base de cálculo o inclua, em alíquota nominal igual ou superior a 100%
(cem por cento), motivo pelo qual esta tem que ser, necessariamente, sempre,
independentemente da vontade humana expressa por meio das normas jurídicas de decisão, inferior a 100% (cem por cento). Isso ocorre pos a base de
cálculo do imposto é diferente do custo da mercadoria sem o imposto.
Pode-se comprovar essa conclusão em relação às alíquotas nominais do
ICMS de duas formas: a) pela apresentação de exemplos numéricos e fórmulas matemáticas simples; ou b) por meio de demonstração gráfica, o que pode
facilitar a compreensão do tema em tela por todos, ainda que não familiarizados com as ciências exatas.
FGV DIREITO RIO
245
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Analogamente ao exercício que foi acima apresentado em relação a imposto que não está incluído em sua própria base de cálculo (caso do IPI), suponha agora, na situação de o tributo analisado ser o ICMS, hipótese em que o
custo de uma mercadoria sem o imposto é, igualmente, R$ 90,00 (noventa
reais) e que a alíquota nominal incidente é, também, de 10% (dez por cento).
Diferentemente do caso anterior, tendo em vista que o ICMS está incluído em sua própria base de cálculo, o imposto incidente não é R$ 9,00 (nove
reais), pois no caso sob exame neste momento o tributo incidente não é resultado da multiplicação do custo da mercadoria sem o imposto pela alíquota
nominal de 10% (dez por cento) fixada em lei. De fato, se a base de cálculo
contém o próprio imposto, como no caso do ICMS, pode-se concluir que o
montante sobre o qual se aplica a alíquota nominal de 10% (dez por cento)
é o resultado da soma do custo da mercadoria sem o tributo adicionado do
próprio ICMS. Dessa forma teríamos:
• Base de Cálculo
= (R$ 90 + ICMS)
• (x) Alíquota nominal = ___ 10%____
• (=) ICMS incidente = ICMS
Podemos, portanto, por meio da equação abaixo, deduzir qual é o valor do
ICMS e, por conseguinte, da base de cálculo do imposto.
•
•
•
•
•
•
(R$90,00 + ICMS) * 10% = ICMS
(R$9,00) + (10% * ICMS) = ICMS
(R$9,00) = ICMS – (10% * ICMS)
(R$9,00) = 0,90 * ICMS
ICMS = R$9,00 /0,90 = R$ 10,00 é o valor absoluto de ICMS
Logo, R$ 90,00+ICMS= R$ 90,00 + R$ 10,00= R$ 100,00*10% =
R$ 10,00
• Alíquota Real = ICMS de R$ 10,00/R$90,00 = 11,11%
Portanto, na hipótese do imposto incluído em sua própria base de cálculo
a alíquota real difere da alíquota nominal, pois o ICMS de R$ 10,00 (dez
reais), dividido pela mercadoria sem imposto, no montante de R$ 90,00 (noventa reais), equivale a uma carga tributária efetiva de 11,11% (onze inteiros
e onze décimos por cento), superior, portanto, à alíquota definida em lei para
ser aplicada sobre a base de cálculo.
A mesma conclusão pode ser alcançada pela aplicação de uma regra de
três, por meio da seguinte proposição: se R$ 90,00 (noventa reais) corresponde a 90%, a incógnita a ser alcançada é igual a 100% (cem por cento). Nesses
termos, teríamos:
FGV DIREITO RIO
246
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
TOTAL RECOLHIDO = R$ 40 (10+10+20)= NF última etapa R$ 400 * 10%
Assim, definida a base de cálculo de R$100,00 (cem reais), é possível afirmar que o ICMS incidente é igual a R$ 10,00 (dez reais), tendo em vista a
incidência da alíquota nominal de 10% (dez por cento) sobre a expressão
econômica do fato gerador.
Para evitar todos esses cálculos é possível, ainda, determinar a base de cálculo do imposto a partir da seguinte fórmula, bastando conhecer a alíquota
nominal e o valor da mercadoria sem o imposto.
• Fórmula: Base de cálculo = 1 * (Valor da mercadoria sem ICMS)
1- alíquota nominal
O quadro abaixo serve de comparativo entre os dois impostos: o ICMS e
o IPI:
IPI
ICMS
Alíquota
10%
10%
Custo da mercadoria
R$ 90,00
R$ 90,00
Base de Cálculo
R$ 90,00
R$ 100,00
Imposto
R$ 9,00 (10%* R$ 90,00)
R$ 10,00 (10%* R$ 100,00)
Total da Nota
R$ 99,00
R$ 100,00
Os oito exemplos numéricos abaixo comprovam a impossibilidade matemática de aplicação de alíquota nominal igual ou superior a 100%, na hipótese de o imposto estar inserido em sua própria base de cálculo. O primeiro
caso reflete a hipótese já apresentada, de custo da mercadoria sem ICMS
equivalente a R$ 90,00 (noventa reais) e alíquota de 10%. Em seguida é
mantido o mesmo valor da mercadoria sem ICMS, sendo acrescida a alíquota
para 50%, no caso 2, até 200%, no caso 8.
Caso 1
Caso 2
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Base de cálculo com ICMS
R$ 100,00
Base de cálculo com ICMS
R$ 180,00
Alíquota Nominal do ICMS
10%
Alíquota Nominal do ICMS
50%
ICMS em R$
R$ 10,00
ICMS em R$
R$ 90,00
Caso 3
Custo sem ICMS
Caso 4
R$ 90,00
Custo sem ICMS
R$ 90,00
FGV DIREITO RIO
247
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Base de cálculo com ICMS
R$ 9.000,00
Base de cálculo com ICMS
R$ 90.000,00
Alíquota Nominal do ICMS
99%
Alíquota Nominal do ICMS
99,90%
ICMS em R$
R$ 8.910,00
ICMS em R$
R$ 89.910,00
Caso 5
Caso 6
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Base de cálculo com ICMS
R$ 9.000.000,00
Base de cálculo com ICMS
R$ 90.000.002.545,37
Alíquota Nominal do ICMS
99,9990%
Alíquota Nominal do ICMS
99,99999990%
ICMS em R$
R$ 8.999.910,00
ICMS em R$
R$ 90.000.002.455,37
Caso 7
Caso 8
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Custo sem ICMS
R$ 90,00
Base de cálculo com ICMS
#DIV/0!
Base de cálculo com ICMS
R$ (90,00)
Alíquota Nominal do ICMS
100,0%
Alíquota Nominal do ICMS
200,0%
ICMS em R$
#DIV/0!
ICMS em R$
R$ (180,00)
Saliente-se que a alíquota nominal do ICMS equivalente a 66,67% (sessenta e seis inteiros e sessenta e sete décimos por cento) reproduz uma alíquota real ou carga tributária efetiva de 200% (duzentos por cento), ou seja, é a
alíquota que conduz a ser o dobro a proporção do imposto incidente sobre o
custo da mercadoria sem o ICMS.
Os números que revelam e demonstram o exposto são os seguintes:
(1)
Custo sem ICMS
R$ 90,00
(2) = {(1)/[1-(3)]}
Base de cálculo com ICMS
R$ 270,00
(3)
Alíquota Nominal do ICMS
66,67%
(4) = [(2)-(1)]
ICMS em R$
R$ 180,00
(5) = [(4)/(1)]
Alíquota Real
200,00%
Saliente-se, entretanto, que a tentativa de interpretar o artigo 1º, da Lei
nº 4153/03, no sentido de fixação de alíquota real ou carga tributária efetiva
esbarra e contraria, além do próprio conceito de alíquota fixado no art. 97
do Código Tributário Nacional, também o disposto no parágrafo único do
mesmo artigo 1º da Lei que visou instituir a indigitada alíquota de 200%
(duzentos por cento), tendo em vista que o dispositivo alude à “alíquota vigente” 575, que é, evidentemente, aquela nominal fixada no art. 14, VII, “a”,
da Lei nº 2.657/96, a qual será objeto de exame a seguir.
575
Dispõe o artigo 1º: “Art. 1º - A alíquota do Imposto sobre operações
relativas à circulação de mercadorias e
sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal
e de comunicação - ICMS incidente
sobre operação interna, interestadual destinada a consumidor final não
contribuinte, e de importação, tendo
por objeto arma de fogo e munição,
suas partes e acessórios, passa a ser de
200% (duzentos por cento).Parágrafo
único - Não se aplicam as disposições
previstas no “caput” quando as operações, tendo por objeto armas de fogo
e munições, suas partes e acessórios,
forem destinadas às forças armadas ao
sistema penitenciário e às entidades ligadas ao sistema nacional de desporto,
bem como aos órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito
Federal, definidos no art. 144 da Constituição Federal, permanecendo, para
essa finalidade, a alíquota vigente.”
FGV DIREITO RIO
248
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A segunda forma de se demonstrar a impossibilidade lógica de incidência de alíquota igual ou superior a 100% (cem por cento), na hipótese de o
imposto estar incluído em sua própria base de cálculo, se realiza por meio de
demonstração gráfica, o que pode facilitar a compreensão do tema sem a necessidade de conhecimento profundo ou exame detalhado das denominadas
ciências exatas, o que me parece tornar a questão compreensível para todos.
Sob o ponto de vista visual entendo que a melhor análise, objetivando
alcançar o que se deseja no momento, é aquela por meio da qual se fixa a base
de cálculo do imposto sempre no mesmo montante, em R$ 100,00 (cem
reais), por exemplo, alterando-se, apenas, a alíquota nominal aplicável. Dessa
forma, pode-se perceber com mais facilidade o acréscimo do valor do ICMS
incidente e o seu limite potencial visualmente, tendo em vista que todos os
gráficos possuem a mesma proporção e escala.
Entretanto, visando reproduzir, sob representação gráfica, os exemplos
numéricos anteriormente apresentados nos denominados casos 1, 2 e 3,
apresentar-se-á, em seguida, os desenhos pertinentes, sem a precisão da escala
relativa que seria desejável. Nesses casos, portanto, parte-se, sempre, de um
custo de mercadoria sem ICMS correspondente a R$ 90,00 (noventa reais).
Suponha-se que o círculo abaixo representa a base de cálculo do ICMS, e
que corresponda, exatamente, ao montante de R$ 100,00 (cem reais), ponto
de partida de todos os exemplos que serão apresentados nessa primeira parte.
Conforme já salientado acima, nos termos da alínea “i” do inciso XII do
§2º do artigo 155 da CR-88, cabe à lei complementar “fixar a base de cálculo”
do ICMS, “de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.
Dessa forma, o próprio ICMS está incluído ou inserido nos R$ 100,00
(cem reais) acima definidos como a base de cálculo do imposto. Dito de outra
forma, o ICMS está, necessariamente, por força do mandamento constitucional, contido em sua base de cálculo, montante a partir do qual se extrai,
ou melhor, é obtida, pela aplicação da alíquota nominal, o valor absoluto
do imposto devido. Inquestionavelmente, no exemplo acima, o valor absoluto do ICMS incidente não pode superar ou ultrapassar os hipotéticos R$
100,00 (cem reais). Caso a alíquota nominal do ICMS fixada em lei corres-
FGV DIREITO RIO
249
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
ponda ao percentual de 10% (dez por cento), por exemplo, o imposto, em
termos absolutos, seria equivalente a R$ 10,00 (dez reais).
Graficamente teríamos:
Conforme se pode constatar pelo desenho acima, o valor absoluto do
ICMS não pode, por questões de lógica formal576, ser maior do que a sua
própria base de cálculo, dentro da qual está contido, sendo esta última regra
imposta pela própria Constituição.
Na hipótese de a alíquota nominal do ICMS ser alterada para 90% (noventa por cento), por exemplo, o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 90,00 (noventa reais), resultado da multiplicação de R$
100,00 (cem reais) por nove décimos (0,9 = 90/100 =90%).
Graficamente teríamos:
Caso a alíquota nominal do ICMS fosse alterada para 99% (noventa e
nove por cento), por exemplo, o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 99,00 (noventa reais), resultado da multiplicação de R$
100,00 (cem reais) por noventa e nove décimos (0,99 = 99/100 =99%). Graficamente teríamos:
576
O subconjunto não pode superar o
próprio conjunto dentro do qual está
inserido e faz parte.
FGV DIREITO RIO
250
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Se aplicada a alíquota nominal de 100% (cem por cento), o valor do ICMS
torna-se equivalente ao total da base de cálculo do imposto, isto é, corresponderia a sua integralidade, razão pela qual todo o preço pago pelo consumidor
adquirente seria debitado na escrita fiscal do contribuinte. Nessa toada, caso
o imposto esteja integrado à sua base de cálculo o seu montante absoluto não
pode ser superior ao valor a partir do qual é calculado, o que implica não ser
possível a aplicação de uma alíquota nominal igual ou maior do que 100%
(cem por cento). Este é o motivo em função do qual, não obstante ser inquestionavelmente válida a adoção da seletividade, que confere caráter extrafiscal
ao ICMS, sua alíquota nominal possui um limite máximo que decorre da
racionalidade e não especificamente das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, como o princípio do não confisco.
Portanto, a tentativa de fixar ou aplicar alíquota nominal em percentual
superior a um inteiro, na hipótese de o imposto estar integrado à sua própria
base de cálculo, configura contradição real, ilógica, na medida em que não é
possível algo ser e não ser ao mesmo tempo, estar contido e conter ao mesmo tempo!
Ainda sob representação gráfica, objetivando apresentar os mesmos exemplos numéricos dos denominados casos 1, 2 e 3, conforme já enfatizado,
apresentar-se-á, em seguida, os desenhos pertinentes, sem a precisão da escala
relativa que seria desejável. Nesses casos, o custo de mercadoria sem ICMS
é fixado em valor correspondente a R$ 90,00 (noventa reais), alterando-se
apenas a alíquota nominal aplicável, a qual será, inicialmente, nos mesmos
termos do caso 1, igual a 10% (dez por cento). Graficamente teríamos:
FGV DIREITO RIO
251
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Mantido o custo da mercadoria sem imposto em R$ 90,00 (noventa reais)
e alterada a alíquota nominal do ICMS para 50% (cinqüenta por cento),
o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 90,00 (noventa
reais), resultado da multiplicação da base de cálculo no valor de R$ 180,00
(cento e oitenta reais) por cinco décimos (0,5 = 50/100 =50%). A base de
cálculo de R$ 180,00 (cento e oitenta reais) pode ser obtida diretamente por
meio da aplicação da fórmula já apresentada:
• Fórmula: Base de cálculo = 1 * (Valor da mercadoria sem ICMS)
1- alíquota nominal
Dessa forma teríamos R$ 90,00 (noventa reais) dividido por 1 menos
0,5 (50/100 = 5%). Pode-se representar a hipótese graficamente nos seguintes termos:
Caso a alíquota nominal do ICMS fosse alterada para 99% (noventa e
nove porcento), mantido o custo da mercadoria sem imposto em R$ 90,00
(noventa reais), o que reproduz o citado caso 3, a base de cálculo seria igual a
R$ 9.000,00 (nove mil reais), obtida por meio da aplicação da fórmula acima
apresentada. Graficamente teríamos:
FGV DIREITO RIO
252
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Na mesma linha já apontada, caso o imposto esteja integrado à sua base
de cálculo o seu montante absoluto não pode ser superior ao valor a partir do
qual é calculado, o que implica não ser possível a aplicação de uma alíquota
nominal igual ou maior do que 100% (cem por cento), o que restringe a
margem de utilização da extrafiscalidade nos tributos que adotam essa metodologia de cálculo (“por dentro”).
Assim sendo, constata-se que as atividades e as prescrições do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e bem assim dos órgãos de representação judicial
e de consultoria jurídica das respectivas unidades federadas, como é o caso
da Procuradoria Geral do Estado, apesar de serem órgãos dotados de prerrogativas e funções constitucionais essenciais ao exercício do “Poder Estatal”,
encontram limites na razão. De fato, conforme arguta observação de Lourival
Vilanova577, altera-se o mundo físico, mediante o trabalho e a tecnologia, que o
potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das
normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito. Entretanto, a
racionalidade, decorrente da lógica e das leis físicas, não pode ser revogada ou
afastada pela simples vontade humana expressa pela linguagem do Direito,
seja ela exteriorizada por meio do texto normativo expedido pelo Parlamento
seja ela extraída de decisão judicial, motivo pelo qual a Lei nº 4.135, de 18
de agosto de 2003, que estabelece a alíquota de 200% (duzentos por cento)
sobre as vendas de armas de fogo e munições, suas partes e acessórios, como
qualquer outra que estabeleça alíquota nominal do ICMS igual ou superior a
100% (cem por cento), é inexeqüível e ineficaz desde a data de sua publicação, sendo inapta a produzir efeitos jurídicos em relação aos fatos passados,
aqueles que ocorrem no presente e bem assim aos eventos que ocorrerão
no futuro.
577
VILANOVA, Lourival. As estruturas
lógicas e o sistema do direito positivo,
Revista dos Tribunais, 1977, p.3-4.
FGV DIREITO RIO
253
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Dessa forma, considerando nunca ter sido aplicável a Lei nº 4.135/2003,
continua em vigor, sem interrupção, o disposto no artigo 14, inciso VII,
alínea “a”, da Lei nº 2.657/1996, dispositivo que estabelece a alíquota de
37% (trinta e sete por cento) em operação interna, interestadual destinada a
consumidor final não contribuinte, e de importação, com “arma e munição,
suas partes e acessórios”.
Por todo o exposto, e tendo em vista, em especial, que a razão não se adaptará à norma jurídica de decisão, deveria a Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro reduzir a alíquota fixada pela citada Lei nº 4.135/2003,
para percentual inferior a 100% (cem por cento), ou, alternativamente, abrogar esta lei inexequível, visto ser inaplicável desde a data de sua publicação.
Comprova-se, dessa forma, a inquestionável correlação e indissociabilidade da análise econômica e jurídica da tributação, que se subordina, também,
às leis físicas e à razão.
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254
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 14 – A POLÍTICA FISCAL E A EXTRAFISCALIDADE: A NECESSÁRIA
COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE EFICIÊNCIA ECONÔMICA, JUSTIÇA
DISTRIBUTIVA E A CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUTOS.
Pode-se dizer, sem exagero, que rios de tinta já foram gastos e muita discussão ainda hoje existe na busca da melhor resposta para algumas questões
fundamentais relacionadas à ideal organização política, econômica e social no
âmbito interno de cada país, visando ao alcance do desenvolvimento socialmente sustentável, dentre as quais se destacam:
1. Quais deveriam ser as funções estatais na ordem econômica e social,
ou seja, quais seriam as atividades e os limites da atuação do tradicional Estado-Nação578?
2. Em quais circunstâncias e em que medida deveria o Estado intervir na alocação de recursos realizada pelo “mercado” bem como no
retorno e remuneração dos fatores de produção (terra – alugueres,
capital-juro ou dividendo, trabalho– remuneração ou salário, empreendedorismo– lucro ou dividendo, tecnologia – royalties, e etc.),
ou seja, quais seriam os contornos e os graus de interferência estatais desejáveis?
3. A ação do Estado deve somente corrigir as falhas de “mercado” por
questões de eficiência econômica ou deve ir além, também para
evitar/impedir a concentração da renda ou mesmo para realizar
políticas públicas objetivando redistribuir a riqueza579, ainda que
não sejam ótimas essas ações públicas sob o critério exclusivamente
econômico em sentido estrito, isto é, deveria o poder público considerar outros valores contendo razoável grau de subjetividade como
a equidade, justiça distributiva, etc.?
4. Caso concluído no sentido da necessidade ou imprescindibilidade
das políticas públicas objetivando a redistribuição e a transferência
de renda entre classes economicamente estratificadas para diminuir
desigualdades, deveriam ser utilizados os tributos que priorizem a
neutralidade580 do seu impacto sobre as decisões dos agentes econômicos aliado à adoção de uma eficaz política de redução de desigualdades somente na vertente da despesa pública ou, alternativamente, adotar-se exclusivamente ou preponderantemente a política
extrafiscal na via da receita? Não seria mais adequado adotar uma
política fiscal abrangente e conjunta, compreendendo, ao mesmo
tempo, a política tributária e, também, os gastos visando a alcançar
objetivos de intervenção na ordem econômica e social? Essas políticas seriam diferentes dependendo do país nas quais são adotadas?
5. Qual é a distribuição de renda e de riqueza ideal? Quais os critérios
e os riscos dessa atuação estatal em face das liberdades fundamen-
578
A aceleração do processo de integração de mercados, em âmbito regional
e global, impõe inevitáveis restrições
e condicionantes às políticas públicas
locais, as quais se vinculam – e se
subordinam em muitas circunstâncias
- cada vez mais às ordens jurídicas e
econômicas supranacionais. Entretanto, os atuais dilemas relacionados às
possíveis políticas tributárias e de gastos a serem adotadas contém em sua
raiz os mesmos tipos de escolhas e problemas do tradicional Estado-Nação,
os denominados “trade-offs”. Na realidade, como em toda política pública,
na política fiscal ocorre uma escolha na
margem entre algumas virtudes de um
lado em detrimento de outras qualidades de outro (como justiça distributiva
e equidade na distribuição dos custos
governamentais de um lado e crescimento econômico e a adequação administrativa por outro). Conforme pontua
Messere, em relação, especificamente,
à política tributária:“Tax policy is about
trade-offs, not truths”. In. MESSERE,
Ken. Half Century of Changes in Taxation. 53 Bulletin for International Fiscal
Documentation 340. 1999. p. 343-344.
Assim, ao lado da necesária segurança
jurídica, os três planos clássicos nos
quais as políticas tributárias devem ser
analisadas – (1) eficiência econômica,
(2) equidade/justiça distributiva, e (3)
adequação administrativa ou praticalidade – permanecem, ao lado dos novos
parâmetros e desafios inerentes à pósmodernidade, em especial a necessidade de interagir e competir em âmbito
global. Os elementos envolvidos devem
ser ponderados cuidadosamente, um
verdadeiro exercício de sintonia fina e
não apenas de escolha excludente.
579
O índice ou coeficiente de Gini é a
medida expressa em pontos percentuais, normalmente utilizado em estudos
econômicos para identificar o grau de
desigualdade e de concentração de renda em determinado país. O índice para
dado país varia entre 0 e 1 (ou 100),
onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (todos teriam a mesma
renda) e 1 (ou 100) corresponderia à
completa desigualdade (apenas uma
pessoa teria toda a renda). Segundo
o relatório 2007/2008 do Human Development Report das Nações Unidas,
com base em dados do Banco Munidal,
obtido no sitio http://hdrstats.undp.
org/indicators/147.html, acesso em
19/01/2009, o Brasil apresenta o índice
de 57.0, enquanto Moçambique 47.3,
Nigéria 50.5, Etiópia 30.0, Zambia 50.8,
Ruanda 46.8, Uganda 45.7, Gana 40.8,
Serra Leoa 62.9, Lesoto 63.2. Já o índice
da Noruega é 25.8, Japão 24.9, Finlandia 26.9, Dinamarca 24.7, França 32.7,
Inglaterra 36.0, Estados Unidos 40.8
etc. Conforme será destacado a seguir,
os dados pertinentes à distribuição de
riqueza/patrimônio não são disponíveis
como aqueles relativos à renda.
FGV DIREITO RIO
255
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tais? Quem deveria arcar com o ônus financeiro de eventuais políticas públicas visando à redistribuição de renda e riqueza e quais os
limites desses encargos para o cidadão contribuinte?
6. A política tributária deveria incorporar outros objetivos – além da
arrecadação dos recursos financeiros e redistribuir renda e riqueza
– como estimular ou desestimular comportamentos e decisões das
pessoas (físicas ou jurídicas)?
Essas questões podem ser certamente respondidas sob múltiplas perspectivas, tais como a filosófica, política, econômica, jurídica, sem esquecer,
entretanto, dos requisitos práticos e operacionais, bem como dos aspectos
dinâmicos e interativos das suas conseqüências, ou seja, como implementar
as respectivas diretivas e como identificar os seus efeitos reflexos, incentivos
e desestímulos, ao longo do tempo, elementos comumente relegados ao segundo plano.
Os economistas apontam em geral razões de ordens distintas para a atuação estatal, as denominadas “determinantes das despesas públicas”:581 destacando-se entre elas: (1) as falhas de mercado, envolvendo a existência de bens
públicos, caracterizados pela impossibilidade de exclusão do seu consumo e
por ser “não-rival”, isto é, “o consumo por parte de um indivíduo ou de um
grupo social não prejudica o consumo do mesmo bem pelos demais integrantes da sociedade”582, bem como (2) as externalidades, (3) o poder de mercado,
e (4) as informações assimétricas e etc. Sobre essa questão indica o especialista
em Finanças Públicas Harvey S. Rosen583:
If properly functioning competitive markets allocate resources efficiently, what
role does the government have to play in the economy? Only a very small government
would appear to be appropriate. Its main function would be to establish a setting in
which property rights are protected so that competition can work. Government provides law and order, a court system, and national defense. Anything more is superfluous
However, such reasoning is based on a superficial understanding of the fundamental
theorem. Things are really more complicated. For one thing, it has implicitly been
assumed that efficiency is the only criterion for deciding if a given allocation of
resources is good. (…) The Fundamental Theorem of Welfare Economics states that,
under certain conditions, competitive market mechanisms lead to Pareto efficient outcomes. It is not obvious, however, that Pareto efficiency584 by itself is desirable. (…)
The framework used by most public finance specialists is welfare economics, the branch of economics theory concerned with the social desirability of alterative economics
states. The theory is used to distinguish the circumstances under which markets can
be expected to perform well from those under which markets fail to produce desirable
results. (…) Despite its appeal, Paretto efficiency has no obvious claim as an ethical
norm. Society may prefer an inefficient allocation on the basis of equity, justice, or
580
Conforme será examinado a seguir,
qualquer espécie tributária afeta o
comportamento dos agentes econômicos, podendo, entretanto, dependendo
do tipo de exação, ser maior ou menor
o seu impacto quanto à decisão de poupar ou consumir, sobre os preços relativos dos bens e serviços, no que se refere
à taxa de retorno dos investimentos, em
relação aos incentivos para trabalhar
ou para o lazer, quanto à adoção das
distintas formas de produção (maior
intensidade na aplicação de capital ou
de trabalho no processo produtivo) etc.
Um imposto geral sobre todos os bens
e serviços, por exemplo, com a adoção
da mesma alíquota em todas as etapas
de circulação tem reduzido impacto
sobre os preços relativos da economia, haja vista a uniformidade de seus
efeitos sobre os agentes econômicos e
o processo produtivo. Essa desejável e
difícil neutralidade dos tributos sobre
a economia é aniquilada caso adotadas
alíquotas ou tratamentos tributários
diferenciados dependendo do tipo ou
categoria de mercadorias e serviços,
hipótese em que os respectivos preços
seriam impactados de formas diversas,
o que pode ocasionar ineficiência sob
a perspectiva exclusivamente econômica. Na mesma linha, no caso do
imposto incidente sobre a renda auferida, a existência de cargas tributárias
distintas para determinados tipos de
rendimento ou de acordo com a faixa
de renda pode estimular ou desestimular comportamentos, como a intenção
de poupar ou consumir mais ou menos
no presente ou no futuro, dedicar-se
mais intensamente ou não ao trabalho
vis a vi o tempo para o lazer, a decisão
de realizar determinado investimento
ou não, atuar na formalidade ou na
informalidade e etc.
581
REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006.
p.27-41.
582
GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática
no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2008. p. 4.
583
ROSEN, Harvey S. Public Finance –
4th ed. United States: Irwin, 1995. p.
38 e 47. Destaca o autor que: “‘In general, the art of government consists in
taking as much money as possible from
one class of citizens to give to the other.’
While Voltaire’s assertion is an overstatement, it is true that virtually every important political issue has implications
for distributions of income. Even when
they are not explicit, questions of whom
will gain and who will lose lurk in the background of public policy debates. (…)
Before proceeding, we should discuss
whether economists ought to consider
distributional issues at all. Not everyone
thinks they should. Notions concerning
the “right” income distribution are value
FGV DIREITO RIO
256
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
some other criterion. This provides one possible reason for government intervention
in the economy.
As tensões entre os valores eficiência585 e racionalidade econômica de um
lado e equidade e justiça distributiva586 de outro subjazem e se refletem em
todo o processo decisório acerca das políticas públicas a serem possivelmente
adotadas, não havendo, entretanto, em face do atual estágio de desenvolvimento e conhecimento humano, possibilidade de supressão absoluta587 de
qualquer dos dois componentes (eficiência ou justiça distributiva), sendo,
portanto, problema solucionado por meio da ponderação mais adequada em
cada situação concreta, do conjunto e do peso dos valores que a sociedade,
por meio do processo político, decide priorizar e conferir relevância. De fato,
no mundo atual, a definição do modelo de atuação estatal vai além da simples
contradição e escolha entre maior ou menor intervencionismo, pois reflete o
conjunto de valores priorizados, conforme observa Odete Medauar:588
as linhas contrastantes nos estudos atuais sobre o Estado demonstram o caráter
multifacetário do tema e, em especial, a impossibilidade de tratamento unilinear, simplista, monocórdio, como por exemplo, a perspectiva reducionista,
expansionista ou abolicionista. (...) Torna-se fundamental, portanto, indagação
a respeito da natureza, função e fim do Estado, o que envolve a questão da
estrutura de valores dentro dos quais a vida pública será conduzida; tal indagação diz respeito também ao efetivo exercício da autoridade pública, sobretudo a
administrativa, na realização desses valores. (grifo nosso)
No contexto de extrema complexidade caracterizadora do denominado
mundo pós-moderno, destaca-se a dificuldade de adoção de um conceito
unívoco para os serviços públicos589, área de titularidade do poder público (artigo 175 da CR-88), bem como para a determinação dos contornos,
limites e interpenetrações entre o público e o não público, nas áreas de titularidade do setor privado e de exploração direta da atividade econômica
pelo Estado (artigo 173 e 174 da CR-88). Pode-se afirmar, apenas, que essas
definições dependem da sociedade e do Estado nos quais se perquire os respectivos conceitos e conteúdos, caracterizando-se, portanto, por sua mutação
e variabilidade no tempo e no espaço.
Nessa linha, aponta Tércio Sampaio Ferraz590 que:
Modernamente, no entanto, a própria transformação e o aumento da complexidade industrial vieram colocando as coisas em outro rumo. Não resta dúvida que hoje o Estado cresceu para além de sua função protetora repressora,
aparecendo até muito mais como produtor de serviços de consumo social, regulamentador da economia e produtor de mercadorias. Com isso foi sendo mon-
judgments and there is no ‘scientific’ way
to resolve differences in matters of ethics.
Therefore, some argue that discussion of
distributional issues is detrimental to
objectivity in economics and economists
should restrict themselves to analyzing
only the efficiency aspects of social
issues. This view has two problems.
First, as emphasized in Chapter 4, the
theory of welfare economics indicates
that efficiency by itself cannot be used
to evaluate a given situation. Criteria
other than efficiency must be brought
to bear when comparing alternative
allocation of resources. Of course, one
can assert that only efficiency matters,
but this in itself is a value judgment. In
addition, decision makers care about
the distributional implications of policy.
If economists ignore distribution, then
policy makers will ignore economists.
Policymakers may thus end up focusing
only on distributional issues and pay
no attention at all to efficiency. The
economist who systematically takes
distribution into account can keep policymakers aware of both efficiency and
distributional issues. Although training
in economics certainly does not confer
a superior ability to make ethical judgments, economists are skilled at drawing
out the implications of alternative sets of
values and measuring the costs of achieving various ethical goals”.
584
O ótimo de Pareto, ou Paretto efficiency, é utilizado em estudos econômicos para avaliar a eficiência de
determinada alocação de recursos, é o
marco para medir resultados. Reflete a
posição na qual, para fazer uma pessoa
melhorar a sua situação, necessariamente alguém será prejudicado ou terá
a sua satisfação reduzida. Ou seja, em
uma distribuição que não seja ótima
é possível incrementar a satisfação de
alguém sem reduzir a de outra pessoa.
585
A CR-88 consagra a eficiência no
artigo 37 caput, o qual estabelece os
princípios regedores da Administração
Pública, bem como no artigo 70, caput,
ao determinar que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial deve observar, além
de outros princípios, conforme já examinado na aula pertinente ao controle
e fiscalização das finanças públicas, a
economicidade.
586
Nos termos já enfatizados na aula sobre a repartição de receitas, o artigo 3º da
CR-88 fixa como objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil, entre
outros, “construir uma sociedade livre,
justa e solidária”, “erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover
o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.
587
Com a crise internacional que assola
o mundo desde o final do ano de 2008
FGV DIREITO RIO
257
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tado um complexo sistema normativo que lhe permite, de um lado, organizar
sua própria máquina de serviços, de assistência e de produção de mercadorias,
e, de outro, montar um imenso sistema de estímulos e subsídios. Ou seja, o Estado, hoje, substitui, ainda que parcialmente, por exemplo, o próprio mercado
na coordenação da economia, tornando-se centro da distribuição da renda, ao
determinar preços, ao taxar, ao subsidiar.
A realização desse plexo de funções e atividades inerentes à atuação estatal tem custo elevado, o qual deve ser financiado de alguma forma, além de
exigir a adoção de inúmeros instrumentos, entre os quais aqueles de caráter regulatório e de intervenção na ordem econômica e social, podendo os mesmos
estar ou não vinculados às políticas de natureza fiscal (receita e despesa). Na
realidade, conforme já salientado, o próprio processo de obtenção de receita
(tributária e não tributária) pode trazer em seu bojo uma política intencional
que transcenda e vá além do objetivo exclusivo de carrear recursos para os cofres públicos, por meio da utilização da já examinada parafiscalidade, matéria
que foi objeto de estudo na Aula 12, ou da extrafiscalidade dos tributos, podendo esta última política compreender objetivos592: (1) de redistribuição de
renda e riqueza e/ou (2) regular a atividade econômica ou induzir o comportamento social, oferecendo incentivos ou desestímulos aos agentes econômicos e
à sociedade em geral. Ainda que consideradas necessárias ou mesmo indispensáveis, é preciso não perder de vista que essas duas políticas elevam acentuadamente a complexidade do sistema de cobrança dos tributos e assemelhados,
criando diversas exceções e regras pormenorizadas, afastando drasticamente
a ampla aplicação das disciplinas gerais e uniformes, o que dificulta sobremaneira a administração das exações e eleva os custos administrativos, tanto
do poder público como dos contribuintes que tem de adimplir com a exigência, além de propiciar os denominados loopholes ou brechas na legislação,
que facilitam e muitas vezes fomentam a evasão e a perda de receita. Como
conseqüência, invariavelmente, além de afastada a desejável simplicidade da
tributação, o que prejudica a transparência do sistema, a carga tributária sobre
aqueles que não podem ou não conseguem escapar da exigência é sobrelevada.
Entretanto, importante salientar que, independentemente da vontade ou
intenção do legislador, os tributos, mesmo que instituídos apenas para a obtenção de recursos, podem afetar os preços relativos dos bens e serviços bem
como modificar a mais eficiente alocação de recursos pelos agentes econômicos, ensejar alterações nas decisões corporativas quanto à melhor estrutura de
financiamento593, se por meio da captação de capital próprio ou capital de
terceiros (Debt vs. Equity), distorcer a taxa de retorno de determinada atividade econômica em detrimento de outra, incrementar ou diminuir o nível
oferta de mão-de-obra disponível, incentivar – ou não – novas contratações
de pessoas ou de aquisição de máquinas e equipamentos pelas empresas. As591
os argumentos da primazia e autosuficiência do mercado para resolver os
problemas econômicos fundamentais,
em especial de alocação e distribuição
de recursos entre a denominada economia real e os mercados financeiros,
parecem estar em cheque, conforme
constata o professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV/EESP, Yoshiaki Nakano,
ao afirmar em artigo publicado no
Jornal Valor de 13 de janeiro de 2009
(A11): “Muitos bancos e empresas símbolos já quebraram ou estão sendo socorridos pelo governo, como Citibank,
GM e Ford, com medidas que estavam
no índex do pensamento convencional.
A visão de mundo e idéias que fundamentavam o pensamento econômico convencional como mercado
eficiente e, que se auto-regulam,
ruíram com a crise.” Considerando,
entretanto, que os desejos e demandas
individuais e coletivas são ilimitados e
instáveis, combinado com o fato de que
os recursos e fatores de produção são limitados ou escassos (terra, capital, trabalho, tecnologia em determinado momento), aliado ao fato de que o Estado
de Planificação, manifestação totalitária ou socialista, é incapaz de atender
as demandas individuais e coletivas, é
certo que o mercado e o sistema privado de formação de preços, em conjunto
com o Estado, em um novo sistema não
separatista a ser delineado nesse início
de século XXI, continuarão a exercer
papel central nas decisões e soluções
dos problemas econômicos fundamentais, tais como: o que produzir, como
produzir e para quem produzir. No
mesmo sentido apontou o presidente
dos Estados Unidos Barack Obama em
seu discurso de posse, em 20/01/2009,
ao declarar: “A pergunta que fazemos
agora não é se nosso governo é grande
demais ou pequeno demais, mas se ele
funciona. Não enfrentamos a questão
se o mercado é uma força para o bem
ou o mal. O seu poder de gerar riqueza
e expandir liberdade não tem paralelo.
Mas esta crise nos lembrou que, sem
um olhar vigilante, o mercado pode
sair do controle; que a nação não pode
prosperar por muito tempo se favorecer
apenas os prósperos”.
588
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. p. 77
589
Após destacar a dificuldade de se
conceituar serviços públicos, e apontar
para o modelo adotado por Celso Antonio Bandeira de Mello – o qual desvincula o conceito da noção de “atividade
econômica”, e conecta-o às atividades
estatais essenciais – a professora Maria
Silvia Di Pietro define “serviços públicos” como “toda atividade material
que a lei atribui ao Estado para que a
exerça diretamente ou por meio de seus
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
sim sendo, pode ocasionar uma ineficiente alocação dos fatores de produção
(terra, capital, trabalho, tecnologia, empreendedorismo) e baixa produtividade. Em suma, a simples existência dos tributos já é suficiente para modificar
o comportamento das pessoas, individualmente, das famílias, das empresas,
da sociedade como um todo e dos próprios governos, razão pela qual é ínsito
à tributação redefinir a alocação dos recursos socialmente disponíveis, o que
afeta a demanda e a oferta no mercado de fatores de produção e de bens e serviços, ocasionando modificação nos respectivos preços594, motivos pelos quais
sempre existiu – e continua a existir – intenso debate acerca do “melhor”
substrato de incidência (patrimônio, renda ou consumo) sob a perspectiva da
eficiência econômica, objetivando causar o menor grau de distorção possível
em relação às decisões que seriam efetivadas caso inexistente a exação.
Dessa forma, se na seara tributária a expressão extrafiscalidade tem o sentido de outros efeitos da imposição dos tributos, além da arrecadação dos recursos para financiar a atividade do Estado, importante repisar que o fenômeno
é indissociável e intrínseco à denominada fiscalidade, haja vista que mesmo
as exações mais neutras sob a perspectiva econômica causam repercussões e
impactos de naturezas diversas, que não apenas a obtenção de receitas públicas. Em análise sobre a neutralidade como um dos objetivos a serem alcançados no desenho do modelo tributário, William D. Andrews595 esclarece:
Neutrality means avoiding or minimizing distortions of normal economic
incentives, and it is another crucial objective. Virtually any tax will distort market incentives to some extent, but some taxes are worse than others in this
respect, and we should prefer the latter on that account. In part distortion varies
because different aspects of economic behavior vary in their sensitivity to costs
and prices, and this criterion provides some reason for avoiding taxes on particularly sensitive items. Some would argue, for example, that investment is particularly sensitive to after-tax rates of return, and capital gains cannot be subjected to
high graduated tax rates without impairing the normal flow of capital into new
enterprises. Therefore, the argument concludes, capital gains should be given
special protection against ordinary rates. Others are skeptical of that argument
at several points, but is important to keep in mind the extent in which various
aspects of the tax system may alter economic choices that would be made in
its absence.
Assim sendo, parece correta a definição de Estevão Horvath596 que estabelece a distinção entre a fiscalidade e a extrafiscalidade em função da ênfase
da intenção com a qual o tributo é criado e aplicado:
fala-se em tributo fiscal quando ele é cobrado com a finalidade precípua de abastecer os cofres públicos de dinheiro, para que o Estado possa realizar os seus fins
delegados, com o objetivo de satisfazer
concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. v. DI PIETRO, Maria
Sylvia Zanella. Direito Administrativo.
16ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 99. Já
o Ministro Eros Grau, do STF, enquadra
o serviço público como espécie de atividade econômica, tomado esse último
em seu sentido lato: “Daí a verificação
de que o gênero – atividade econômica
– compreende suas espécies: o serviço
público e a atividade econômica”. Ressalva, ainda, que se trata de conceito
aberto, a ser preenchido com os dados
da realidade, e como tal, depende
do confronto entre o capital de um
lado – que procura “reservar para sua
exploração, como atividade econômica
em sentido estrito, todas as matérias
que possam ser, imediata ou potencialmente, objeto de profícua especulação
lucrativa” - e o trabalho, de outro, que
“aspira atribua-se ao Estado, para que
este as desenvolva não de modo especulativo, o maior número possível
de atividades econômicas (em sentido
amplo). É a partir deste confronto –
do estado em que tal confronto se
encontrar, em determinado momento
histórico – que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos
das atividades econômicas em sentido
estrito e dos serviços públicos”. v. GRAU,
Roberto Eros. A Ordem Econômica na
Constituição de 1988. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 92 e 99.
590
FERRAZ, Tércio Sampaio. Apresentação. In: BOBBIO, Norberto. Teoria do
Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.p.12.
591
GRAU. Op. cit. p.82. “Daí se verifica
que o Estado não pratica intervenção
quando presta serviço público ou regula a prestação de serviço público. Atua,
no caso, em área de sua própria titularidade, na esfera pública. Por isso mesmo
dir-se-á que o vocábulo intervenção é,
no contexto, mais correto do que a expressão atuação estatal: intervenção
expressa atuação estatal em área de
titularidade do setor privado; atuação
estatal, simplesmente, expressa significado mais amplo. Pois é certo que
essa expressão quando não qualificada,
conota inclusive atuação na esfera do
público” (grifo nosso).
592
AVI-YONAH, Reuven S. The three goals of Taxation. 60 Tax Law Review 01,
2006. O professor americano sumariza
a questão nos seguintes termos: “To
answer these puzzles, it is necessary
to resurrect a question that has not
been considered recently in the tax
policy literature: What are taxes for?
The obvious answer is that taxes are
needed to raise revenue for necessary
governmental functions, such as the
provision of public goods. And, indeed,
all taxes have to fulfill this function to
FGV DIREITO RIO
259
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
adrede estabelecidos. Diz-se extrafiscal, por sua vez, o tributo que se arrecada
mais com a intenção de buscar estimular ou desestimular certos comportamentos (desencorajar a manutenção de latifúndios improdutivos, por exemplo) que
de encher as burras do Estado. (grifo nosso)
A utilização do tributo com fim extrafiscal, seja para a redefinição do grau
de concentração de riqueza e de renda ou como instrumento regulatório, é
matéria extremamente complexa e de difícil consenso, pois além de envolver
premissas e elementos de natureza ideológica e de valores de elevado grau de
subjetividade, tais como liberdade, justiça distributiva e equidade, dependem
amplamente do ambiente jurídico, econômico, político, cultural no qual essas
políticas são adotadas, além, é claro, da viabilidade administrativa da exação.
14.1 A ADOÇÃO DE POLÍTICA FISCAL COMO INSTRUMENTO PARA DESCONCENTRAR RENDA E RIQUEZA
Durante a vigência do denominado patrimonialismo, conforme já destacado na primeira aula, predominavam as receitas dominiais bem como aquelas decorrentes da exploração das colônias, em que pese em alguns países
já se fazer presente a necessidade de prévia autorização para a cobrança de
impostos, como a Inglaterra a partir de 1215. Não havia, entretanto, à época, distinção entre a Fazenda pública e a do monarca, sendo fundamentada
a exigência dessa espécie tributária nas necessidades dos Reis e da nobreza.
Assim, além da receita extrapatrimonial ser secundária e excepcional, a suscitar apenas em algumas circunstâncias a anuência e a aprovação preliminar
dos estamentos, os impostos não se vinculavam à idéia de liberdade nem de
igualdade, que somente passaram a fundamentar essa exação no Estado Liberal. De fato, apenas com o processo de extinção dos privilégios da nobreza
e do clero e com o surgimento do liberalismo e do Estado de Direito, que
marcam o início do constitucionalismo moderno, é que o imposto deixa de
ser apropriado privadamente e passa a ser notadamente público, consubstanciando-se na principal categoria dos ingressos e a mais destacada fonte
das receitas públicas597. Nessa toada, com o advento do denominado Estado
Fiscal, as necessidades financeiras passam a ser essencialmente cobertas por
impostos, o que tem sido a regra no estado moderno, salvo as exceções de
estados proprietários, produtores e empresariais, os quais, conforme assevera
José Casalta Nabais598, “em virtude do grande montante de receitas provenientes da exploração de matérias primas (petróleo, gás natural, ouro, etc.)
ou até da concessão do jogo (como Mônaco ou Macau), podem dispensar os
respectivos cidadãos de serem o seu principal suporte financeiro”. A partir do
Estado Fiscal o imposto passa a ser caracterizado como o valor “que se paga
be effective; as the Russian government discovered in the 1990’s [FN10]
(following many others in history), a
government that cannot tax cannot
survive. And there is widespread ideological agreement that this function is
needed, even while people vehemently
disagree about what functions of government are truly necessary, and what
size of government is required. [FN11]
But taxation also has two other functions, which are more controversial,
but which modern states also widely
employ. Taxation can have a redistributive function, aimed at reducing
the unequal distribution of income and
wealth that results from the normal
operation of a market-based economy.
This function of taxation has been hotly
debated over time, and different theories of distributive justice can be used to
affirm or deny its legitimacy. What cannot be denied, however, is that many
developed nations in fact have sought
to use taxation for redistributive purposes, although it also is debated how
effective taxation was (or can be) in redistribution. [FN12] Taxation also has a
regulatory component: It can be used
to steer private sector activity in the
directions desired by governments. This
function is also controversial, as shown
by the debate around tax expenditures.
[FN13] But it is hard to deny that taxation has been and still is used widely
for this purpose, as shown inter alia
by the spread of the tax expenditure
budget around the world following its
introduction in the United States in the
1970’s [FN14]” (grifo nosso).
593
Modigliani, F. and M. Miller (1958),
“The Cost of Capital, Corporation Finance and the Theory of Investment”, The
American Economic Review, Vol. 48, No.
3, (June 1958) p. 261-297
594
Os efeitos dessas mudanças sobre os
preços dos bens e serviços e dos fatores
de produção, ocasionados pela cobrança ou aumento dos tributos, beneficiam
alguns em detrimento de outros (consumidores, industriais, comerciantes,
prestadores de serviços, trabalhadores,
empreendedor, e etc.), razão pela qual
o efeito líquido dessas alterações é o
que define quem arca em cada hipótese com o ônus ou encargo financeiro do
tributo, podendo ser ou não a mesma
pessoa eleita pela legislação como o
sujeito passivo da obrigação tributária
dependendo do tipo de imposto, do
produto e seus substitutos e complementares, do mercado onde se insere
e etc.. Conforme salienta Vasconcelos:
“O produtor procurará repassar a totalidade do imposto ao consumidor.
Entretanto, a margem de manobra
de repassá-lo dependerá do grau de
sensibilidade desse a alterações do
preço do bem. E essa sensibilidade
(ou elasticidade) dependerá do tipo de
mercado. Quanto mais competitivo ou
FGV DIREITO RIO
260
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
para viver em uma sociedade civilizada”, conforme preconizado por Oliver
Wendell Holmes599, ou por ser “o preço da liberdade, tendo em vista que é
pago sem qualquer contraprestação por parte do Estado e afasta o cidadão
das obrigações pessoais”, como identificado por Ricardo Lobo Torres600. Se as
demandas da nobreza e do clero, o que posteriormente se designará por “razão de Estado”601, são os núcleos fundamentais para justificar a cobrança dos
impostos no Estado Patrimonial, a igualdade e a liberdade do cidadão, decorrentes do contrato social, são as razões de ser da imposição no Estado Liberal de Direito, na medida em que o imposto602 possuia natureza liberatória,
vez que, consoante lições de Gabriel Ardant, “representava a transformação
de outras obrigações, do serviço militar, da armada, das prestações in natura,
ele liberava o homem da constrição de caráter feudal ou comunitário, ele lhe
restituía a disposição de seu tempo e de seu trabalho”. Por outro lado, o poder
estatal, agora submetido à própria ordem jurídica que emanava, se conformava não apenas pela liberdade, mas também pela igualdade que se expressava
preponderantemente pela sua vertente formal, princípio que se exterioriza na
seara tributária por meio da denominada capacidade contributiva de cada
cidadão, fundamento e limite intransponível da tributação. Nesse sentido,
preponderava a legalidade estrita para resguardar a segurança jurídica dos
contratos e das atividades exercidas pelos agentes econômicos, bem como as
iguais liberdades individuais em face de possíveis abusos do Estado.
Ocorre, entretanto, que a igualdade, e de forma reflexa a capacidade
contributiva, possui diversas acepções possíveis, o que pode alterar drasticamente, dependendo da concepção adotada, a escolha entre os três substratos
econômicos de incidência, ou a preponderância de alguma(s) dessas bases
(patrimônio, renda e consumo), o que está atrelado à intensidade da tributação e à distribuição do ônus dos gastos (tributação proporcional, progressiva ou regressiva). Essas opções alteram significativamente as conseqüências
decorrentes da exação, questão que se vincula à escolha entre a utilização ou
não – e a ênfase – do tributo como instrumento para reduzir a concentração
de renda/riqueza e a definição de uma entre as diversas opções quanto à distribuição do ônus das despesas públicas.
No século XVIII, marcado pela independência americana e pela revolução francesa, a capacidade contributiva foi vinculada à idéia de benefício
que cada indivíduo recebe do Estado, uma construção filosófica iniciada já
no século XVII por Thomas Hobbes, para quem as pessoas deveriam pagar
impostos de acordo com o que elas efetivamente usufruem da ação estatal,
ratio que vincula a vertente das receitas ao lado da despesa pública, e que foi
sedimentada pelo economista Adam Smith no seu famoso livro Inquérito sobre a Natureza e as Causas das Riquezas das Nações. Nesse sentido salientam
Karl Case e Ray Fair603:
concorrencial o mercado, maior a parcela do imposto paga pelos produtores,
pois eles não poderão aumentar o preço
do produto para nele embutir o tributo.
O mesmo ocorrerá se os consumidores
dispuserem de vários substitutos para
esse bem. Por outro lado, quanto mais
concentrado o mercado – ou seja,
com poucas empresas -, maior grau
de transferência do imposto para consumidores finais, que contribuirão com
parcela do imposto.” In.VASCONCELLOS,
Marco Antonio. Fundamentos de Economia, 2a Ed. Saraiva, 2006, p.48
595
ANDREWS, William D. Basic Federal
Income Taxation. Little, Brown and
Company. Boston. Fourth Edition.
1991. p. 7.
596
HORVATH, Estevão. O Princípio do
Não-Confisco no Direito Tributário. São
Paulo: Dialética, 2002.
597
A preponderância dos impostos sobre as outras categorias de entradas ou
ingressos públicos começou a ser relativizada em diversos países com o início
do intervencionismo estatal da ordem
social, tendo em vista que a segurança
ou seguridade social (saúde, assistência
e previdência social) passou a ocupar
papel destacado. Dessa forma, para
fazer face às novas despesas caracterizadoras do Estado de Bem-Estar Social,
muitos países, como o Brasil, passaram
a instituir e cobrar as denominadas
contribuições sociais, hoje incluídas
expressamente no âmbito das exações
de natureza tributária pela Constituição
(artigo 149 e 195 da CR-88) e caracterizadas por sua vinculação à determinada finalidade específica, o que
estabelece uma distinção marcante em
relação aos impostos, os quais, salvo as
exceções constitucionais (artigo 167, IV,
da CR-88), são destinados às despesas
públicas gerais.
598
NABAIS, José Casalta. Algumas Reflexões sobre o Actual Estado Fiscal.
In: Revista Fórum de Direito Tributário.
RFDT. ano 1, n.1 jan/fev. 2003. Belo Horizonte Fórum, 2003. p. 92-93.
599
Compania Gen. Tabacos de Filipinas v.
Collector of Internal Revenue, 275 U.S.
87, 100 (1927) (Holmes J., dissenting).
600
TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos Fundamentais e Finalísticos dos Tributos.
In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O
Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo: Editora
Forense, 2007. p. 37. “O Estado Liberal
Clássico, ou Estado Guarda-Noturno,
necessita da receita tributária para
atender às suas finalidades essenciais,
menos escassas que anteriormente.
O conceito jurídico de imposto se cristaliza a partir de algumas idéias fundamentais: a liberdade do cidadão, a
legalidade estrita, a destinação pública
do ingresso e a igualdade”.
FGV DIREITO RIO
261
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
The view favoring consumption as the best tax base dates back at least to the
seventh-century English philosopher Thomas Hobbes, who argued that people
should pay taxes in accordance with ‘what they actually take out of the common
pot, not what they leave in’. (…) One theory of fairness is called the benefits-received principle. Dating back to the eighteenth century economist Adam Smith
and earlier writers, the benefits-received principle holds that taxpayer should
contribute to government according to the benefits that they derive from public expenditures. This principle ties the tax side of the fiscal equation to the
expenditure side. For example, the owners and users of cars pay gasoline and
automotive excise taxes, which are paid into the Federal Highway Trust Fund
that is used to build and maintain the federal highway system. The beneficiaries
of public highways are thus taxed in rough proportion to their use of those
highways. The difficulty with applying the benefits principle is that the bulk of
public expenditures are for public goods – national defense, for example. The
benefits of public goods fall collectively on all members of society, and there is
no way to determine what value individual taxpayers receive from them.
Dessa forma, a igualdade de sacrifício para fazer face às despesas públicas
seria proporcional ao benefício privado individual decorrente da atividade
estatal, o que confere o sentido de proporcionalidade à capacidade contributiva.
Em sentido diverso, se forem desvinculadas as vertentes da receita de um
lado e a despesa pública de outro, surgem diversas alternativas quanto ao
sentido e a extensão do conceito de capacidade contributiva, matéria intimamente relacionada à adoção da extrafiscalidade como instrumento para
reduzir desigualdades sociais604. Karl Case e Ray Fair605 esclarecem a questão
nos seguintes termos:
A different principle, and that has dominated the formulation of tax policy
in the United States for decades, is the ability-to-pay principle. This principle
holds that taxpayer should bear tax burdens in line with their ability to pay.
Here the tax side of the fiscal equation is viewed separately from the expenditure
side. Under this system, the problem of attribution the benefits of the public
expenditures to specific taxpayer or groups of taxpayer is avoided.
Nessa linha, a capacidade contributiva pode assumir a conotação de igual
sacrifício, no sentido de justiça utilitarista (Utilitarian Justice), ou outro conceito que reflita a possibilidade para contribuir, tendo como elementos subjacentes outros sentidos de justiça distributiva606 (Distributive Justice), a qual
possui diversas vertentes, e opositores 607.
O “igual sacrifício” preconizado John Stuart Mill608, com base no utilitarismo de Jeremy Bentham609, concebido no final do século XVIII, se fun-
601
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília:
Universidade de Brasília, 1986. Para
explicar o sentido da razão de Estado, “é
preciso a identificação dos momentos
cruciais da história do Estado moderno
... [surgido com o fim precípuo de permitir] à autoridade suprema do Estado
impor coercivamente à população que
lhe estava sujeita as regras indispensáveis à convicção ...” (p. 1067)
602
ARDANT, Gabriel. Histoire de l’ Impôt.
Paris: Fayard, 1971, v. 1, p.431.
603
CASE, Karl E. e FAIR, Ray C.. Principles
of Microeconomics. 4th Ed. New Jersey –
USA: Prentice Hall. p.466-468.
604
A utilização da tributação como
mecanismo de redução de desigualdade pode ter como fundamento desde
argumentos de natureza ética e moral,
passando por proposições como a justiça utilitarista, calcada nos argumentos
propugnados por Jeremy Bentham e
John Stuart Mill, na teoria do valor trabalho de Marx, que atribuía o valor dos
bens e serviços em função do trabalho
inserido e o lucro como uma expropriação da mais valia, ou ainda por meio da
utilização da teoria justiça de Rawls,
que estabelece como premissa um
contrato social no qual maximiza-se
o bem estar daquele pior sucedido na
sociedade. Para um resumo da questão
vide CASE e FAIR. Op. cit. p. 446 a 451.
605
CASE e FAIR. Op. cit. p. 466.
606
Apesar da existência de variados
critérios e diferentes opiniões quanto
à diferenciação entre justiça (1) geral,
(2) distributiva, (3) comutativa e (4)
corretiva, como aqueles sustentados
por Aristóteles ou Tomás de Aquiino
(vide Justiça Social - Gênese, estrutura
e aplicação de um conceito, de Luis Fernando Barzotto, disponível em http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/Artigos/ART_LUIS.htm),
a segunda espécie (distributiva) diz
respeito ao que é considerado justo ou
certo relativamente à alocação de bens
e riqueza em uma sociedade, em determinado momento no tempo, ou seja, o
enfoque é a aceitabilidade do resultado
distributivo produzido pelo mercado,
por si só, vis a vi um parâmetro ideal
variável, a ser alcançado por uma política de redução de desigualdades que
pode ser mais ou menos redistributiva
de acordo com a sociedade. No entanto,
nem todos aqueles adeptos das teorias
consequencialistas, apesar de objetivarem resultados geradores de maior
bem estar e riqueza, estão preocupados
com uma sociedade justa no sentido
igualitário estrito, de equivalente distribuição de bens. Dessa forma, justiça
distributiva vincula-se ao exame da
realidade sob múltiplos parâmetros,
considerando a riqueza absoluta, as
suas disparidades, ou qualquer outra
FGV DIREITO RIO
262
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
damentava no conceito de utilidade marginal do capital, isto é, a utilidade da moeda seria inversamente proporcional à riqueza (a utilidade de uma
unidade monetária seria maior para o mais pobre do que para o mais rico),
o que serviu como justificativa para a aplicação da tributação progressiva
e não apenas proporcional. De acordo com o pensamento utilitarista, se a
utilidade declina na medida em que a renda aumenta seria justificável a tributação mais gravosa dos ricos, o que produziria desconcentração de renda na
sociedade e distribuição desigual no financiamento das despesas públicas na
medida das respectivas possibilidades contributivas. Saliente-se, entretanto,
que a intensidade da progressividade pode variar drasticamente, em razão
dos variados impactos em relação à tributação proporcional, conforme será
demonstrado quando do exame comparativo da tributação regressiva, proporcional e progressiva.
As crescentes demandas sociais e a elevação da complexidade da dinâmica
econômica no início do século XX impuseram novas funções e demandas
ao Estado, que passou a intervir na ordem econômica e social para garantir
condições mínimas de vida para a maioria da população610 e impor disciplina
ao mercado, o que suscitou a utilização de novos instrumentos de coerção
para o exercício do poder de polícia e novas fontes de financiamento, algumas
delas associadas às atividades reguladoras, matéria a ser examinada no tópico
seguinte. Nesse momento é importante destacar que o denominado Estado
Fiscal, caracterizado pela preponderância do financiamento das necessidades
financeiras públicas por impostos, apesar de assumir a feição tanto do Estado
Liberal como do Estado Social, conforme pontua José Casalta Nabais611, está
fortemente associado à pretensão de limitar a atuação e dimensão da estatalidade, pois:
“ao contrário do que alguma doutrina actual afirma, recuperando ideias de
Joseph Schumpeter, não se deve identificar o estado fiscal com o estado liberal,
uma vez que o estado fiscal conheceu duas modalidades ou dois tipos ao longo
da sua evolução: o estado fiscal liberal, movido pela preocupação de neutralidade
econômica e social, e o estado fiscal social economicamente interventor e socialmente conformador. O primeiro, pretendendo ser um estado mínimo, assentava
numa tributação limitada – a necessária para satisfazer as despesas estritamente
decorrentes do funcionamento da máquina administrativa do estado, que devia
ser tão pequena quanto possível. O segundo, movido por preocupações de funcionamento global da sociedade e da economia, tem por base uma tributação
alargada – a exigida pela estrutura estadual correspondente. Não obstante o estado fiscal ser tanto o estado liberal como o estado social, o certo é que o apelo a
tal conceito tem andado sempre associado à pretensão de limitar a actuação e a
correspondente dimensão do estado”.
forma utilitarista de padrão de medida. É normalmente contrastada com a
justiça comutativa, caracterizada como
aquela em que um particular, e não a
sociedade, confere ou dá a outro particular o bem que lhe é devido, e a justiça
procedimental, a qual diz respeito à
legitimidade dos procedimentos e a
administração da justiça. Conforme
aponta The Stanford Encyclopedia of
Philosophy, disponível no sítio http://
plato.stanford.edu/entries/justicedistributive/, acesso em 28/01/2009,
“Principles of distributive justice are
normative principles designed to guide
the allocation of the benefits and burdens of economic activity. After outlining
the scope of this entry and the role of
distributive principles, the first relatively
simple principle of distributive justice
examined is strict egalitarianism, which
advocates the allocation of equal material goods to all members of society. John
Rawls’ alternative distributive principle,
which he calls the Difference Principle, is
then examined. The Difference Principle
allows allocation that does not conform
to strict equality so long as the inequality
has the effect that the least advantaged
in society are materially better off than
they would be under strict equality. However, some have thought that Rawls’
Difference Principle is not sensitive to
the responsibility people have for their
economic choices. Resource-based distributive principles, and principles based
on what people deserve because of their
work, endeavor to incorporate this idea
of economic responsibility. Advocates of
Welfare-based principles do not believe
the primary distributive concern should
be material goods and services. They
argue that material goods and services
have no intrinsic value and are valuable
only in so far as they increase welfare.
Hence, they argue, the distributive principles should be designed and assessed
according to how they affect welfare.”
607
A mesma The Stanford Encyclopedia
of Philosophy, esclarece que: “Advocates
of Libertarian principles, on the other
hand, generally criticize any patterned
distributive ideal, whether it is welfare
or material goods that are the subjects
of the pattern. They generally argue
that such distributive principles conflict
with more important moral demands
such as those of liberty or respecting
self-ownership.(…) The market will be
just, not as a means to some pattern, but
insofar as the exchanges permitted in
the market satisfy the conditions of just
exchange described by the principles.
For Libertarians, just outcomes are
those arrived at by the separate just
actions of individuals; a particular
distributive pattern is not required for
justice. Robert Nozick has advanced this
version of Libertarianism (Nozick 1974),
and is its most well-known contemporary advocate.”
FGV DIREITO RIO
263
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Vários são os reflexos do novo cenário, marcado pelo intervencionismo
estatal na ordem econômica e social, na seara tributária, destacando-se o distanciamento do fundamento do imposto na liberdade, que passa a ser subsidiária, e a conexão de sua justificativa aos aspectos econômicos da incidência, conforme destaca Ricardo Lobo Torres612, passando “a questão da justiça
tributária, como parcela da proteção social, a ser obtida de acordo com a
ideologia utilitarista,” o que se efetiva em conjunto a uma nova compreensão
dos princípios da igualdade e da legalidade, os quais passam a se desenvolver
dentro dos parâmetros utilitaristas e no contexto do positivismo jurídico.
Nesse contexto do Estado de Bem-Estar social, e de intervencionismo estatal na ordem econômica e social, a discussão quanto à melhor escolha entre
os diversos substratos econômicos de incidência e a preponderância ou não
de alguma(s) delas (patrimônio, renda e consumo613), bem como a intensidade da tributação (tributação proporcional, progressiva ou regressiva), ganha
ainda maior relevo, em que pese essa discussão ter se iniciado algum tempo
antes, conforme destacado por Joseph Bankman e David A. Weisbach614:
Perhaps the single most important tax policy decision is the choice between an income tax and a consumption tax. The topic has been discussed and argued over since at
least the time of Hobbes and Mill without apparent resolution.615 Consumption and
income taxes both represent substantial sources of revenue in all modern economies.
A seguir serão examinados os aspectos extrafiscais dos tributos de acordo
com o substrato econômico de incidência: consumo, renda e patrimônio.
14.1.1 A tributação sobre o Consumo
Apesar de opiniões em sentido contrário616, o imposto incidente sobre o
consumo é tido como regressivo, não sendo, portanto, tributo adequado,
por si só, ao objetivo de redistribuição de renda ou de riqueza. De fato, a propensão marginal a consumir dos mais pobres é maior, comparada àquela dos
mais ricos, na medida em que o indivíduo com menor rendimento consome
parcela comparativamente maior de sua renda, isto é, o rico gasta pouco
proporcionalmente aos seus rendimentos totais, sendo tributado apenas em
um pequeno percentual do que ganha. Assim, afastada a incidência sobre a
renda não consumida – que equivale àquela poupada – maior será o benefício daquele com maior capacidade relativa de poupança, razão pela qual é
considerado tributo regressivo e que privilegia diretamente aquele que ganha
mais, relativamente àquele de menor renda.
A tabela abaixo ajuda a compreensão do argumento no sentido da regressividade dessa base de tributação, adotando-se uma alíquota nominal uniforme
608
MILL, John Stuart. Princípios de
Economia Política. São Paulo: Abril
Cultural, 1983. p.290: “A igualdade de
tributação, portanto, como máxima
de política, significa igualdade de
sacrifício”.
609
BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução
aos Princípios da Moral e da Legislação.
1ª Ed. São Paulo: Abril Cultural e Industrial. 1974. p. 9-13.
610
Conforme argutamente identificado
por Aristóteles: “É evidente, pois, que a
comunidade civil mais perfeita é a que
existe entre os cuidados de uma condição média, e que não pode haver Estados bem administrados fora daqueles
nos quais a classe média é numerosa e
mais forte que todas as outras, ou pelo
menos mais forte que cada uma delas:
porque ela pode fazer pender a balança
em favor do partido ao qual se une,
e, por esse meio, impede que uma ou
outra obtenha superioridade sensível.
Assim, é uma grande felicidade que
os cidadãos só possuam uma fortuna
média, suficiente para as suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham
imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou
ainda uma tirania insuportável, produto infalível dos excessos opostos. Com
efeito, a tirania nasce comummente
da democracia mais desenfreada, ou da
oligarquia. Ao passo que entre cidadãos
que vivem em uma condição média, ou
muito vizinha da mediana, esse perigo
é muito menos de se temer. Disso daremos razão, alias, quando tratarmos das
revoluções que abalam os governos.
(…) Mas que a multidão dos pobres
que se torna excessiva, sem que a classe
média aumente na mesma proporção,
surge o declínio, e o Estado não tarda
a perecer”. In: ARISTÓTELES. A Política.
Coleção Grandes Obras do Pensamento
Universal – 16. Tradução Nestor Silveira
Chaves. São Paulo: Escala. p.187.
611
NABAIS. Op. Cit. p. 93-94.
612
TORRES. Op. Cit. p.39.
613
O consumo de bens e serviços, o
domínio e a propriedade sobre os bens
móveis e imóveis bem como a renda
auferida são considerados os signos de
riqueza a ensejar a possibilidade de tributação, haja vista denotar capacidade
econômica e a possibilidade de contribuir para o custeamento das despesas
públicas.
614
BANKMAN, Joseph & WEISBACH,
David A. The Superiority of an ideal
Consumption Tax over and Ideal Income
Tax, 58 Stanford Law Rev (2006).
615
A literatura é vastíssima. See, e.g.,
THOMAS HOBBES, LEVIATHAN (1651); JOHN
STUART MILL, PRINCIPLES OF POLITICAL ECONOMY
(1871); IRVING FISHER, THE NATURE OF CAPITAL
AND INCOME (1906); NICHOLAS KALDOR, AN
FGV DIREITO RIO
264
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
hipotética de 5% sobre o consumo total do mês, isto é, sem alterações em
função do tipo de bem ou serviço, e percentuais específicos de poupança617
para cada faixa de renda:
Imposto sobre o
Consumo:
Indivíduo
Renda
mensal
5%
Índice de
poupança
individual
Poupança
Renda
disponível
para o
Consumo
5% de
Imposto
sobre Consumo (IC)
Consumo
efetivo –
excluindose a incidência do
imposto
Peso médio do IC
em relação
à Renda
mensal
(a)
(b)
(c)
(d) =
(b)*(c)
(e) = (b)–
(d)
(f ) =
5%*(e)
(g) = (e)-(f ) (h) = (f )/(b)
A
R$ 50.000
50%
R$ 25.000
R$ 25.000
R$ 1.250
R$ 23.750
2,50%
B
R$ 20.000
40%
R$ 8.000
R$ 12.000
R$ 600
R$ 11.400
3,00%
C
R$ 10.000
20%
R$ 2.000
R$ 8.000
R$ 400
R$ 7.600
4,00%
D
R$ 5.000
10%
R$ 500
R$ 4.500
R$ 225
R$ 4.275
4,50%
E
R$ 3.500
8%
R$ 280
R$ 3.220
R$ 161
R$ 3.059
4,60%
F
R$ 2.500
5%
R$ 125
R$ 2.375
R$ 119
R$ 2.256
4,75%
G
R$ 1.500
4%
R$ 60
R$ 1.440
R$ 72
R$ 1.368
4,80%
H
R$ 1.433
3%
R$ 43
R$ 1.390
R$ 70
R$ 1.321
4,85%
Dessa forma, a incidência exclusiva sobre o consumo implica carga tributária relativa inversamente proporcional à renda do cidadão – quanto mais
pobre maior o peso relativo do imposto em relação à renda auferida. Enquanto o peso do imposto para “A” é de apenas 2,5% (dois e meio por cento)
sobre a sua renda, “H” suporta carga de 4,85% (quatro inteiros e oitenta e
cinco décimos por cento).
A eliminação ou redução da incidência sobre os bens e serviços essenciais
pode atenuar o quadro, sem eliminar, no entanto, a concomitante exclusão
da base de incidência daqueles com maior renda, razão pela qual em alguns
países não é adotada a redução ou eliminação da carga tributária sobre os produtos, mas operacionalizada a devolução dos valores despendidos com o imposto incidente sobre o consumo para as camadas mais pobres da população.
Por outro lado, importante ressaltar que o incentivo à poupança, haja vista
a exclusiva oneração tributária sobre o consumo, e não sobre o retorno do capital investido, repercute positivamente sobre o crescimento econômico em
potencial, haja vista maiores disponibilidades para o investimento em geral
e a conseqüente geração de empregos e de riqueza total, o que tende a au-
EXPENDITURE TAX (1955); William Andrews,
A Consumption-type of Cash Flow Personal Income Tax, 87 HARV. L. REV. 1113
(1974); Michael Graetz, Implementing a
Progressive Consumption Tax, 92 HARV. L.
REV. 1575 (1979); Alvin Warren, Would
a Consumption Tax Be Fairer Than an
Income Tax, 89 YALE L.J. 1081 (1980);
David Bradford, The Case for a Personal
Consumption Tax, in WHAT SHOULD BE TAXED:
INCOME OR CONSUMPTION 75 (Joseph Peckman ed., 1980); DAVID F. BRADFORD & THE
U.S. TREASURY TAX POLICY STAFF, BLUEPRINTS FOR
BASIC TAX REFORM (2d ed. 1984); Barbara
H. Fried, Fairness and the Consumption
Tax, 44 STAN. L. REV. 961 (1992); ALAN
AUERBACH & LAWRENCE KOTLIKOFF, DYNAMIC
FISCAL POLICY (1987); DANIEL SHAVIRO, WHEN
RULES CHANGE (2000).
616
Vide, por exemplo, Daniel N. Shaviro,
Replacing the Income Tax with a Progressive Consumption Tax, 103 Tax Notes 91 (Apr. 5, 2004) e Joseph Bankman
& David A. Weisbach. The Superiority
of an ideal Consumption Tax over and
Ideal Income Tax, 58 Stanford Law Rev
(2006). Uma das críticas é o fato de que
a definição e a análise quanto à regressividade requer a mudança da base de
FGV DIREITO RIO
265
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mentar o bem estar social total, sem a garantia, entretanto, do perfil da distribuição de renda e riqueza. De fato, conforme já estudado na aula passada, a
tributação exclusiva sobre o consumo elimina a dupla incidência econômica
sobre a renda poupada, imobilizada ou investida, o que estimula a poupança
e o investimento, motores do crescimento econômico.
A utilização dos tributos incidentes sobre o consumo com objetivos regulatórios e com o fulcro de alterar as decisões dos agentes econômicos, o que
também pode ser realizado como instrumento para atenuar desigualdades,
por meio, por exemplo, de isenções e benefícios fiscais para os bens e serviços
essenciais, será examinada no tópico seguinte.
14.1.2 A tributação sobre a Renda
Em que pese a possibilidade de utilização dos impostos incidentes sobre
o consumo e sobre o patrimônio com o objetivo de atenuar ou reduzir as
desigualdades sociais, a adoção da tributação sobre a renda das pessoas físicas
nos Estados Unidos foi um dos marcos históricos fundamentais na utilização
intencional dos tributos com fim de redistribuição de renda e riqueza. Nesse
sentido aponta o professor Reuven Avi-Yonah relativamente à experiência
internacional:618
The case for drastic progression in taxation must be rested on the case against
inequality.” [FN47] Henry Simons. The revenue goal of taxation thus explains
why all other OECD members619, and most other countries, have both an income tax and a consumption tax as their principal sources of revenue. But this still
leaves the second puzzle--why would any country change from relying primarily
on consumption taxes to relying primarily on income taxes? This is what the
United States did when it adopted the Sixteenth Amendment in 1913. Throughout the nineteenth century, with the brief exception of the Civil War and its
immediate aftermath (1862-1872), [FN48] the federal government was funded
entirely by tariffs (that is, taxes on consumption). [FN49] Following the passage
of the Sixteenth Amendment (authorizing the federal government to levy taxes
on income without apportionment), the United States began levying an income
tax, and from World War II onward this became the principal source of revenue
of the U.S. federal government. [FN50] Even when taking the state level sales
taxes into account, income taxes currently account for over 80% of total U.S. tax
revenue. [FN51]. Historically, the answer to the question of why the change
to an income tax occurs is clear: The income tax was substituted for the tariffs
because of its redistributive impact. The post-Civil War industrialization and
urbanization had led to a shift from a mostly agrarian society to one dominated
by large industrial corporations and a sharp rise in inequality, as measured by the
comparação do consumo para a renda.
Nesse sentido, é sustentado que o consumo também deveria ser o parâmetro
de comparação.
617
O mesmo exercício pode ser efetivado a partir da propensão marginal a
consumir de cada indivíduo, de acordo
com a faixa de renda. O índice é o inverso daquele atribuído à poupança
mensal.
618
AVI-YONAH. Op. Cit. p.6.
619
A Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) –
é formada pelos 30 países comprometidos com a economia de mercado mais
desenvolvidos do mundo. O Brasil, ao
lado da China, Índia, Indonésia e África
do Sul, têm sido chamado para participar mais intensamente das reuniões do
grupo, enquanto o Chile, Estônia, Israel,
Eslovênia e Rússia foram convidados a
participar de discussões com vistas a
se tornarem países membros efetivos,
que conta atualmente com os seguintes países Australia, Austria, Belgium,
Canada, Czech Republic, Denmark,
Finland, France, Germany, Greece, Hungary, Iceland, Ireland, Italy, Japan, Korea, Luxembourg, Mexico, Netherlands,
New Zealand, Norway, Poland, Portugal, Slovak Republic, Spain, Sweden,
Switzerland, Turkey, United Kingdom,
United States. Para obtenção de maiores informações http://www.oecd.org.
FGV DIREITO RIO
266
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
distribution of income or wealth. [FN52] Lawmakers of both parties viewed this
state of affairs as inequitable, [FN53] and the existing tax system was considered
ineffective in remedying the situation because it relied completely on consumption taxes, which were regarded as regressive because the poor consume a higher proportion of their income than the rich. [FN54] In addition, state level
personal property taxes were seen as ineffective in reaching intangible forms of
property such as stocks and bonds, [FN55] which formed the bulk of the new
wealth in the hands of the industrialists. [FN56] The result was a focused and
sustained effort to enact a federal income tax on both individuals and corporations, as well as an estate tax. In 1895 the Supreme Court blocked the first
attempt to do so, [FN57] but Congress ultimately enacted the corporate tax in
1909, [FN58] the modern estate tax in 1916, [FN59] and the individual income tax in 1913 [FN60] after the adoption of the Sixteenth Amendment abated
concerns regarding its constitutionality.[FN61] Significantly, until World War
II, the income tax applied only to the richest Americans, because the exemption
levels were set high enough to leave the bottom 90% of the population outside
the reach of the income tax. [FN62] Redistribution was considered to require
only taxing the rich, and beginning in World War I, the rich were subject to
income tax at very high rates. [FN63] After a period of rate reductions in the
1920’s, [FN64] Elliott Brownlee shows that by World War II, this “soak the
rich” [FN65] tax policy resulted in quite high effective tax rates on the top 1%
of earners (the effective tax rate in 1944 was 58.6%, with a top marginal rate
of 94%). [FN66] These high rates on the top earners persisted through the late
1970’s and early 1980’s (70% top marginal rate), although the effective rate by
then had declined to 28.9%. [FN67] Thus, a primary goal of the income tax
historically was seen as redistributing wealth from the rich to everyone else.
This explains why it was first adopted in the United States, and it also explains
why the income tax is persistently maintained today in developing countries
that could satisfy their entire revenue needs by the VAT620. Even though the
personal income tax in these countries has a spotty record, they insist on maintaining it because of its symbolic potential in achieving redistribution (although, as I argue below, redistribution in these countries can be achieved through
consumption taxes as well).
A comparação dos resultados das tabelas abaixo facilita a compreensão
dos distintos efeitos da utilização da tributação proporcional da renda e da
adoção de diferentes modelos de progressividade.
Na primeira hipótese a alíquota nominal do imposto de renda da pessoa
física (IRFP) é 20%, não havendo qualquer faixa de isenção, ou seja, independentemente do nível de renda há tributação, inexistindo, também, qualquer possibilidade de dedução ou exclusão da base de incidência, ao contrário
do ocorre em geral no mundo real em relação a algumas despesas como, por
620
VAT é o Value Added Tax – Imposto
sobre o Valor Adicionado (IVA), ou sobre
o Valor Acrescido, na tradução portuguesa do termo, imposto aplicado por
cerca de 130 países no mundo e amplamente utilizado na Comunidade Européia. Espécie de imposto multifásico
(ou plurifásico) sobre o consumo, incide
em todas as etapas de circulação das
mercadorias e dos serviços, ao contrário
do Sales Tax – Imposto sobre Vendas,
caracterizado por ser imposto monofásico incidente apenas nas vendas pelo
varejo ao consumidor final.
FGV DIREITO RIO
267
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
exemplo, gastos de educação, saúde e etc., ainda que permitidas em montantes inferiores aos valores realmente despendidos. Nesse cenário, ao contrário
do que se verificará posteriormente, a alíquota efetiva real é a mesma que a
alíquota nominal, isto é, 20%.
Imposto de renda
da PF:
20%
OBS: IRPF Sem isenção, deduções ou exclusões.
Indivíduo
Renda
mensal
Imposto
de Renda
no mês
(IRPF)
(a)
(b)
(c) =
20%*(b)
(d) = (b)-(c)
(e)
(f) = (d)*(e)
(g) = (f)/(b)
(h) = (c)/(b)
A
R$ 50.000
R$ 10.000
R$ 40.000
50%
R$ 20.000
R$ 30.000
20%
B
R$ 20.000
R$ 4.000
R$ 16.000
40%
R$ 6.400
R$ 13.600
20%
C
R$ 10.000
R$ 2.000
R$ 8.000
20%
R$ 1.600
R$ 8.400
20%
D
R$ 5.000
R$ 1.000
R$ 4.000
10%
R$ 400
R$ 4.600
20%
E
R$ 3.800
R$ 760
R$ 3.040
8%
R$ 243
R$ 3.557
20%
F
R$ 3.000
R$ 600
R$ 2.400
5%
R$ 120
R$ 2.880
20%
G
R$ 2.000
R$ 400
R$ 1.600
4%
R$ 64
R$ 1.936
20%
H
R$ 1.566
R$ 313
R$ 1.253
3%
R$ 38
R$ 1.528
20%
Renda disponível
Índice de
poupança
Poupança
Renda
disponível
para Consumo
Alíquota
média
efetiva do
IRPF
No segundo exemplo, que será apresentado abaixo, ao invés da adoção da
proporcionalidade aplicada no caso acima, onde a alíquota nominal incidente é sempre a mesma, independentemente da renda, e cuja alíquota média
final é sempre 20%, implementar-se-á a progressividade no sistema. Assim, a
alíquota será acrescida de acordo com o aumento dos rendimentos, os quais
serão os mesmos dos outros exemplos já analisados acima, não havendo, entretanto, para facilitar a compreensão do que se deseja alcançar no momento,
a possibilidade de deduções ou exclusões621. Suponha, uma faixa de isenção
para a renda auferida até R$ 1.566,61 (hum mil quinhentos e sessenta e seis
reais e sessenta e um centavos). Destaque-se que adotar-se-á nesse próximo
exemplo a metodologia aplicável nos Estados Unidos para o IRPF, onde cada
fatia de renda, correspondente a cada faixa da tabela, é tributada de acordo
com a alíquota específica incidente, independentemente do total dos rendimentos. Dessa forma há perfeita equivalência da tributação em cada segmento de renda, apesar da maior complexidade do cálculo, conforme será visto.
621
No Brasil, de acordo com a Lei nº
11.482, de 11 de maio de 2007, com
a sua redação conferida pela Lei nº
12.469, de 26 de agosto de 2011, fruto
da conversão da Medida Provisória nº
528/2011, para o ano calendário de
2011, havia isenção do imposto sobre a
renda das pessoas físicas até o montante mensal de R$ 1.566,61. A partir de
R$ 1.566,62 até R$ 2.347,85 a alíquota
aplicável era de 7,5%, sendo dedutível o montante de R$ 117,49; de R$
2.347,86 a R$ 3.130,51 a alíquota era
de 15%, permitindo-se a dedução da
parcela de R$ 293,58; de R$ 3.130,52
até R$ 3.911,63 a alíquota era 22,5%,
com o valor passível de dedução de R$
528,37, e, por fim, para a renda acima
de R$ 3.911,63 a alíquota era de 27,5%,
admitindo-se a dedutibilidade de R$
723,95 nessa última faixa de renda.
Ou seja, no atual sistema brasileiro a
alíquota máxima aplicável é 27,5%.
Saliente-se que essas parcelas a deduzir apenas ajustam os valores a recolher
aos cálculos simplificados da alíquota
marginal sobre a renda total auferida,
conforme será examinado a seguir. A
partir do ano calendário de 2012 e seguintes, a faixa de isenção será de R$
1.637,11, para a renda mensal de R$
FGV DIREITO RIO
268
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Tabela Progressiva Mensal do IRPF de acordo com a faixa de Renda (R$)
de ou acima de
Até
Alíquota (%)
(a)
(b)
(c)
30.000,01
...
42,0%
15.000,01
30.000,00
38,0%
10.000,00
15.000,00
32,0%
6.000,00
9.999,99
28,0%
3.911,64
5.999,99
27,5%
3.130,52
3.911,63
22,5%
2.347,86
3.130,51
15,0%
1.566,62
2.347,85
7,5%
0,00
1.434,59
0,0% (isenção)
Assim, o indivíduo com renda equivalente a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), por exemplo, tem parcela de sua renda isenta (R$ 1.566,61 *
0%), outra parte é submetida à incidência pela alíquota de 7,5% (R$ 781,23
= R$ 2.347,85 – R$1.566,62), determinando o valor devido em função dessa fatia em R$ 58,59, e, por fim, o montante de R$ 152,14 (cento de cinquenta e dois reais e quatorze centavos), o qual equivale à diferença entre R$
2.500,00 e R$ 2.347,86, sendo tributado pela alíquota de 15%, o que redunda em mais R$ 22,82 (vinte e dois reais e oitenta e dois centavos) de imposto
devido. Dessa forma, o imposto de renda devido no mês é igual à soma de
R$ 0 (faixa isenta) + R$58,59 + R$ 22,82, o que perfaz o total de R$ 81,41
(oitenta e um reais e quarenta e um centavos). Nesse caso, a alíquota média
real é 3,25%, correspondente ao imposto de R$ 81,41, dividido pela renda
auferida de R$ 2.500, o que difere da alíquota marginal aplicável a essa faixa
de renda de 15%, tendo em vista que parte da renda é isenta e parcela substancial é tributada pela alíquota nominal de 7,5%. Resumidamente pode-se
explicitar a situação no seguinte quadro:
(e) =
(c)*(d)
(f) =R$
2.500 –
2.347,86
(g) =
(f)*(c)
(a)
(b)
(c)
(d) = (b)
–(a)
2.347,86
3.130,51
15,0%
152,14
22,82
1.566,62
2.347,85
7,5%
781,23
58,59
0,00
1.566,61
0,0%
1.566,61
0,00
81,41
Aplicando-se a mesma sistemática para todos os indivíduos teríamos:
1.637,12 até R$ 2.453,50, alíquota de
7,5% (e dedução de R$122,78), de R$
2.453,51 até R$ 3.271,38 (e dedução
de R$306,80), alíquota de 15%, de R$
3.418,60 até R$ 4.271,59, alíquota de
22,5% (e dedução de R$552,15) e acima de R$ 4.271,59, alíquota de 27,5%
(e dedução de R$756,63).
FGV DIREITO RIO
269
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
(a)
(b)
(c) = %*(b)
(d) =
(b)-(c)
(e)
(f) =
(d)*(e)
(g) = (f)/
(b)
(h) = (c)/
(b)
Indivíduo
Renda
mensal
Imposto
de Renda
devido no
mês
Renda disponível
Índice de
poupança
Poupança
Renda
disponível
para Consumo
Alíquota
média real
do IRPF
A
R$ 50.000
R$ 17.746
R$ 32.254
50%
R$ 16.127
R$ 16.127
35,49%
B
R$ 20.000
R$ 5.546
R$ 14.454
40%
R$ 5.782
R$ 8.672
27,73%
C
R$ 10.000
R$ 2.046
R$ 7.954
20%
R$ 1.591
R$ 6.363
20,46%
D
R$ 5.000
R$ 651
R$ 4.394
10%
R$ 435
R$ 3.914
13,02%
E
R$ 3.800
R$ 327
R$ 3.473
8%
R$ 278
R$ 3.196
8,60%
F
R$ 3.000
R$ 156
R$ 2.844
5%
R$ 142
R$ 2.701
5,21%
G
R$ 2.000
R$ 33
R$ 1.967
4%
R$ 79
R$ 1.888
1,63%
H
R$ 1.566
R$ –
R$ 1.566
3%
R$ 47
R$ 1.519
0,00%
Constata-se que a aplicação da tabela progressiva supramencionada enseja
alíquotas médias reais finais crescentes à medida que a renda do contribuinte
aumenta, realizando-se, dessa forma, a progressividade do imposto, na medida em que é tributado mais fortemente aquele que possui maiores possibilidades contributivas.
Cumpre destacar, entretanto, que a adoção da extrafiscalidade na vertente
da receita pública como instrumento para reduzir desigualdades tem custo
administrativo e risco elevado para a Administração Tributária, haja vista que
o incentivo para evitar a incidência do tributo por aquele contribuinte potencialmente atingido pela elevada carga tributária é diretamente proporcional
ao grau de progressividade do sistema, isto é, quanto maior a progressividade
maior será o ganho esperado em se evitar a incidência, o que pode ocorrer de
forma lícita ou ilícita. Essa é a razão pela qual alguns estudos apontam que,
em face da deficiente estrutura na administração dos tributos em países em
desenvolvimento, bem como pela redução dos controles de capitais em âmbito internacional aliado às isenções fiscais para os rendimentos decorrentes de
investimentos em instrumentos financeiros públicos e privados no mercado
de capitais622 de diversos países, dependendo das circunstâncias, deve-se priorizar a adoção de tributos mais neutros, como os impostos sobre o consumo,
com alíquotas uniformes e sem exceções de incidência, e que apresentem
menor grau de incentivo à evasão e elisão aliado a uma eficaz política de redistribuição de renda e de riqueza quase que exclusivamente pela vertente da
despesa pública. Em relação a essa política nos países em desenvolvimento
Eric Zolt e Richard Bird concluíram em importante estudo que:623
622
ZOLT, Eric M. e BIRD, Richard M. Redistribution via Taxation: The limited
Role of the Personal Income Tax in
Developing Countries. Research paper
nº 05-22, disponível no sitio http://
sstn.com/abstract=804704, acesso
em 19/01/2009, p.38-39: Apontam os
autores que um sistema progressivo de
imposto de renda da pessoa física afeta
mais fortemente o comportamento
dos agentes econômicos em um país
em desenvolvimento do que em um
país desenvolvido. A influência sobre
a escolha entre um emprego formal
ou informal bem como a decisão entre
operar empresarialmente na economia
formal ou informal é inequivocamente
maior em uma economia ainda em
desenvolvimento. Destacam, ainda,
que: “high personal income tax rates
may influence decisions of where to
locate capital investment. Reductions
in capital controls and improvements
in financial technology have made it
easier than ever before for individuals and firms to invest funds outside
their home countries . Changes in
tax laws, particularly the change
in U.S. tax law providing for no U.S.
taxation of portfolio interest earned
by nonresidents, have also made it
more attractive for the wealthy in
developing countries to invest in U.S.
government and corporate securities. Given the apparently growing
ability of high –income individuals
in some countries to hide capital
abroad (in untaxed U.S. deposits or
other fiscal havens, for example), it
become increasingly difficult to have
an effective progressive tax system
in developing countries without
FGV DIREITO RIO
270
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
After reviewing the past fifty years of fiscal futility in achieving distributional
goals through income tax progressivity, many development specialists have argued that developing countries concerned with equity and growth are better off
to collect as much revenue as they can through as nondistorting a tax system
as possible and then seek to reduce inequality or poverty through expenditure
side. Given the tax mix dominant in most developing countries, this approach
in part calls for devoting resources to improve compliance under consumption
taxes rather than trying to improve coverage and compliance for the personal
income tax. More importantly, it also calls for good spending. Just as the end of
production is consumption, so the end of taxation is expenditures. (grifo nosso)
Portanto, após a decisão preliminar quanto à necessidade de políticas públicas para reduzir o nível de concentração de renda e de riqueza, visando à
diminuição das desigualdades sociais, por meio de uma política fiscal ativa,
impõe-se determinar em cada país, considerando todas as circunstâncias relevantes624, qual é a melhor ponderação e o modelo redistributivo desejado,
seja pela via da receita, por meio da realização das despesas, ou, ainda, pela
adoção de um mix nas duas vertentes.
Importante destacar também, ainda que constatada a necessidade política
ou mesmo a inevitabilidade ética da adoção de tais instrumentos visando à
redistribuição de renda e de riqueza pela via da receita, a imprescindibilidade do estabelecimento de limites para essas políticas tributárias extrafiscais
visando a reduzir as desigualdades sociais, haja vista a inafastável restrição
imposta pela capacidade contributiva do cidadão, núcleo essencial para além
do qual as exações tributárias perdem a sua legitimidade no Estado Democrático de Direito, razão pela qual a própria Constituição, no seu artigo 150,
IV, determina a vedação da utilização de tributos com o efeito de confisco,
matéria a ser examinada posteriomente. Nesse sentido também estabelece a
CR-88 em seu artigo 150, §1º, verbis:
§ 1º – Sempre que possível, os impostos625 terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,
identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio,
os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Diversamente dos exemplos acima apresentados, de acordo com a legislação brasileira, desde 2009, o imposto de renda das pessoas físicas possui
apenas quatro alíquotas distintas – 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%– havendo,
ainda, uma faixa de isenção no IRPF, sendo, para o exercício de 2011, correspondente ao montante de R$ 1.566,61. As alíquotas no exercício de 2011
foram as mesmas, alterando-se apenas os valores das deduções permitidas,
subjecting income from these investments to some level of taxation
and, as all countries know, doing so
is far from easy. (…) An aspect of inequality that has been little explored is
its possible relation to the quality of the
tax administration. A recent U.S. study
argues that inequality and tax evasion
are positively related for at least two
reasons. First, because an increasing
fraction of higher incomes normally accrues in forms that are less observable
than wages, there is more opportunity
for the rich to evade and remain undetected. ‘Richer means harder to tax’,
both because it is difficult to tax capital
income effectively and because those
who receive high labor incomes can
often control the timing and form of
their compensation. Second, because
the rich normally perceive a growing
gap between what they pay in taxes
and what they get in benefits from
the public sector, the opportunity cost
of compliance also rises with income.
Such problem are even greater in developing countries than they are in
developed ones.”
623
ZOLT, Eric M. e BIRD. Op cit. p. 46-47
624
ZOLT, Eric M. e BIRD. Op cit. p. 40. “In
at least some developing countries, the
attempt to implement a progressive,
comprehensive global income tax was
probably not the best strategy in the
first place. Substancial enforcement,
compliance, and efficiency costs arise
from progressive income taxes – and
it may be that such costs are greater
when the level of inequality is higher.
When, as in many developing countries, progressive income tax systems
are accompanied by high levels of tax
evasion and (often well justified) low
levels of satisfaction with governments
use of tax revenues, the net distributional benefits are unlikely to be great.
Such countries thus have the worst of
both worlds – the costs of a progressive
income tax system with few, if any, of
the benefits.”
625
Muito se discute na doutrina tributária brasileira se o comando constitucional, apesar de sua literalidade, se
estende – ou não - a todos os tributos,
gênero do qual o imposto é apenas
mais uma espécie.
FGV DIREITO RIO
271
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
As mencionadas deduções, pertinentes a cada faixa de renda (nos valores de
R$ 117,49; R$ 293,58; R$ 528,37, e R$ 723,95, no exercício de 2011) apenas facilitam o cálculo do imposto, o qual, ao invés de ser operacionalizado
por meio da aplicação das diversas alíquotas sobre cada faixa de rendimento,
conforme acima realizado no último exemplo, permite a multiplicação do
total da renda pela alíquota final incidente (aquela correspondente ao último
real auferido). Após a multiplicação da alíquota pela renda auferida deduz-se
o montante permitido pela legislação, produzindo-se, entretanto, o mesmo
resultado. Seguindo a tabela editada pela Lei nº 11.482, de 11 de maio de
2007, com a sua redação conferida pela Lei nº 12.469/2011, fruto da conversão da Medida Provisória nº 528/2011, para o exercício de 2011 e para as
mesmas pessoas dos exemplos acima, teríamos:
(a)
(b)
(c) =
(%*(b))dedução
(d) =
(b)-(c)
(e)
Indivíduo
Renda
mensal
Imposto
de Renda
devido no
mês
Renda disponível
A
R$ 50.000
R$ 13.026
B
R$ 20.000
C
(f) =
(d)*(e)
(g) = (f)/
(b)
(h) = (c)/
(b)
Índice de
poupança
Poupança
Renda
disponível
para Consumo
Alíquota
média real
do IRPF
R$ 36.974
50%
R$ 18.487
R$ 18.487
26,05%
R$ 4.776
R$ 15.224
40%
R$ 6.090
R$ 9.134
23,88%
R$ 10.000
R$ 2.026
R$ 7.974
20%
R$ 1.595
R$ 6.379
20,26%
D
R$ 5.000
R$ 651
R$ 4.349
10%
R$ 435
R$ 3.914
13,02%
E
R$ 3.800
R$ 327
R$ 3.473
8%
R$ 278
R$ 3.196
8,60%
F
R$ 3.000
R$ 156
R$ 2.844
5%
R$ 142
R$ 2.701
5,21%
G
R$ 2.000
R$ 33
R$ 1.967
4%
R$ 79
R$ 1.889
1,63%
H
R$ 1.566
R$ –
R$ 1.566
3%
R$ 47
R$ 1.519
0,00%
Constata-se, portanto, uma queda no grau de progressividade a partir da
faixa de rendimento de R$ 10.000,00 (dez mil reais) mensais se comparado
o resultado com aquele obtido no exemplo anterior, haja vista não serem utilizadas as alíquotas superiores para as faixas de rendas acima de R$ 6.000,00
anteriormente aplicadas (28%, 32%, 38% e 42%, respectivamente). De fato,
a redução da intensidade da progressividade no Brasil ocorreu nos anos 90 do
século XX, como reflexo do movimento iniciado nos Estados Unidos após
1986, sob a liderança do governo liberal de Reagan, conforme salientado por
Reuven Avi-Yonah 626:
626
AVI-YONAH, Reuven S. Why Tax the
Rich? Efficiency, Equity, and Progressive Taxation: Does Atlas Shrug? The
Economic Consequences of taxing
the Rich (Joel Slemrod ed., 2001),
111 Yale L.J. 1391 (2002).
FGV DIREITO RIO
272
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Statutory marginal tax rates are important for their symbolic significance
and incentive effects, but from an economic perspective, it is just as important
to determine the effective tax rate facing the rich. The effective rate is the rate
the rich pay after taking into account lower rates for lower brackets of income
and the available deductions, credits, and other methods of narrowing the tax
base (i.e., reducing the taxable income on which the marginal rate is imposed).
Brownlee helpfully provides estimates of the historical effective rates for the richest one percent of households as well. He indicates that effective rates during
the high marginal rate years of World War I reached 15.8%, and that during the
high marginal rate years of World War II they reached an astonishing 58.6% in
1944. n9 After the war, while the top marginal rate remained extremely high at
91%, the effective rate for the rich declined to 32.2% in 1952, then 24.6% in
1963, rising to 28.9% when Ronald Reagan took office and declining to 22.1%
following the 1986 tax reductions. n10 More recent estimates for the Clinton
years are not yet available. The conclusion drawn by Brownlee is that the rich
can be taxed at very high effective rates during times of national emergency, but
that at other times their political clout ensures that effective rates are much lower
than marginal rates. It turns out that when Ayn Rand was writing Atlas Shrugged, the actual burden borne by the “prime movers” was not so high after all; by
the late 1940s the rich had “largely succeeded in removing the redistributional
fangs from the movement for progressive taxation.” n11
14.1.3 A tributação sobre o Patrimônio
A incidência sobre o patrimônio, por sua vez, que para muitos é o verdadeiro
termômetro para medir a capacidade de comandar recursos, o que lhe conferiria o
status de substrato econômico ideal para a tributação com fins de reduzir desigualdades. Entretanto, a sua adoção apresenta obstáculos de variadas naturezas, destacando-se, inicialmente, a dificuldade administrativa de identificar a sua composição, em especial em uma economia internacional integrada e caracterizada pela
relevância crescente dos intangíveis e bens de alta portabilidade ou mobilidade, o
que redundaria em ônus exclusivo para aqueles contribuintes com capital imobilizado apenas em uma jurisdição fiscal. Ademais, inexistente uma transação real
precificada no mercado, isto é, não havendo uma alienação onerosa, a valoração
do patrimônio é muito dificultada, tornando-se necessária a adoção de critérios
muitas vezes subjetivos para determinar a base de cálculo de algo que não está sendo transacionado nem ofertado de fato. Ainda, importante mencionar, também,
o problema da liquidez, tendo em vista que, independentemente do substrato
econômico de incidência, todos os tributos são pagos da renda disponível não
imobilizada, e nem sempre o proprietário possui recursos financeiros líquidos para
efetivar o pagamento, isto é, a falta de cash pode impelir e obrigar a alienação de
pelo menos de parte do capital imobilizado para fazer face à exação.
FGV DIREITO RIO
273
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Além desses problemas de natureza operacional e financeira em sentido
estrito, importante ressaltar que os argumentos favoráveis e contrários à utilização da tributação sobre patrimônio como instrumento para reduzir desigualdades são muito semelhantes àqueles pertinentes ao uso da incidência
sobre a renda, conforme destacam Karl Case e Ray Fair:
Data on the distribution of wealth are not as readily available as data on the
distribution of income (…) Clearly, the distribution of wealth is significantly
more unequal than the distribution of income. Part of the reason is that wealth
is passed from generation to generation and thus accumulates. Large fortunes
also accumulate when small businesses become successful large business. Some
argue that an unequal distribution of wealth is the natural and inevitable consequence of risk taking in a market economy: It provides the incentive structure
necessary to motivate entrepreneurs and investors. Others believe that too much
inequality can undermine democracy and lead to social conflict. Many of the
arguments for and against income redistribution, (…), apply equally well to
wealth redistribution.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a exigência ou possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas627 em diversas hipóteses no que se refere aos impostos incidentes sobre o patrimônio, como, por
exemplo, no artigo 153, §4º, inciso I, relativamente ao Imposto Territorial
Rural (ITR); no artigo 155, §6º, em relação ao imposto sobre a propriedade
de veículo automotor (IPVA) e no artigo 156, §1º, alterado pela Emenda
Constitucional nº 29/2000, e no artigo 182, §4º, II, no que se refere ao
Imposto sobre a propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Não há
disciplina expressa quanto ao imposto estadual incidente sobre a transmissão causa mortis e doação (ITCMD ou ITD), nem em relação ao imposto
municipal incidente sobre a transmissão onerosa de bens imóveis entre vivos
(ITBI).
A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal sempre foi no
sentido da impossibilidade de utilização dos impostos incidentes sobre o patrimônio com fins extrafiscais, salvo expressa previsão constitucional. Nesse
sentido aponta a Súmula nº 656 do STF:
É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto
de transmissão “inter vivos” de bens imóveis – ITBI com base no valor venal
do imóvel.
Nessa mesma linha dispõe a Súmula nº 668 do STF:
627
A expressão alíquota diferenciada
aqui esta sendo utilizada como gênero,
compreendendo tanto a progressividade, que significa aumentar a alíquota na medida em que a base de cálculo
acresce, como a alíquota diferenciada
em sentido estrito, incluindo as diversas situações em que as alíquotas
podem ser alteradas para alcançar
algum objetivo de política tributária
específica, como tributar de forma diversa os imóveis localizados em regiões
ou localizações distintas ou estabelecer
incidência diferenciada se o automóvel
for utilizado em determinado segmento de atividade ou possuir características peculiares, como os vários tipos de
combustíveis disponíveis.
FGV DIREITO RIO
274
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda
Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada
a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.
Saliente-se, quanto à parte final desse enunciado, que o poder constituinte originário já havia previsto a possibilidade do IPTU progressivo para o
alcance da função social da propriedade, nos termos do citado artigo 182,
§4º, II. Nessa toada, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 586693, julgou constitucional, a
Lei municipal 13.250/2001, de São Paulo. A norma instituiu a cobrança do
Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), com base no
valor venal do imóvel (valor de venda de um bem que leva em consideração
a metragem, a localização, a destinação e o tipo de imóvel).
Em que pese o exposto, parece que a jurisprudência tradicional do STF
acima aludida pode ser alterada, haja vista o desenrolar da votação no Recurso Extraordinário 562045628, que diz respeito ao ITCMD, para o qual não há
autorização constitucional específica no sentido da possibilidade da adoção
da progressividade, mas os votos até agora proferidos consideraram possível a
aplicação de alíquotas mais gravosas de acordo como montante transmitido a
título gratuito e causa mortis.
14.2 A EXTRAFISCALIDADE COMO INSTRUMENTO PARA ESTIMULAR OU
DESESTIMULAR COMPORTAMENTOS E AFETAR A ORDEM ECONÔMICA
O intervencionismo estatal na e sobre a ordem econômica pode se realizar de forma direta ou indireta. A criação de empresas estatais, sociedades de
economia mista e empresas públicas (artigo 37, XIX e XX, da CR-88), para a
exploração de atividade econômica, as quais podem estar submetidas ao regime
de monopólio (artigo 177 da CR-88) ou não (artigo 173 da CR-88), consubstanciam a atuação do denominado Estado Empresário de forma direta na
economia, matéria que foge ao escopo do curso. Ainda, além da prestação de
serviços públicos (artigo 175 da CR-88), cuja titularidade é do poder público,
realizados diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, o Estado
pode intervir indiretamente no domínio econômico tanto pela regulação629,
matéria que também está fora do âmbito desta disciplina, como por meio da
extrafiscalidade, isto é, utilizando-se de determinados ingressos especiais de natureza não tributária ou mesmo por meio de tributos que são instituídos não
apenas para arrecadar, mas, também, ou preponderantemente, como instrumentos de regulação e de implementação de política econômica e de incentivo ao comportamento das pessoas (físicas e jurídicas), em especial no que se
refere ao perfil e a intensidade das decisões de consumir, investir e poupar.
628
Pedido de vista do ministro Carlos
Ayres Britto interrompeu o julgamento
pelo Plenário do STF do referido RE, e
de outros dez processos versando sobre
o mesmo assunto, nos quais se discute a hipótese da progressividade da
alíquota do ITCMD, para o qual não há
até o momento previsão constitucional
expressa da possibilidade de adoção
da progressividade. O governo do Rio
Grande do Sul contesta a decisão do
Tribunal de Justiça daquele estado
(TJ-RS), que declarou inconstitucional
a progressividade da alíquota do ITCD,
prevista no artigo 18 da Lei gaúcha nº
8.821/89 (com alíquotas variáveis de
1% até 8%), e determinou a aplicação
da alíquota de 1% aos bens envolvidos
no espólio de Emília Lopes de Leon,
que figura no pólo passivo do Recurso
Especial em causa. Conforme noticiado no sítio do STF ( http://www.stf.
jus.br ), acesso em 22/01/2009, “No
momento em que ocorreu o pedido de
vista, quatro ministros haviam admitido a progressividade e, portanto,
se pronunciaram pelo provimento do
RE, enquanto um, o ministro Ricardo
Lewandowski, apresentou voto pelo
não-provimento”. Caso o tribunal mantenha o entendimento majoritário até o
momento ocorrerá uma mudança radical da jurisprudência até agora seguida
pelo STF sobre o assunto.
629
ARAGÃO, Alexandre Santos de.
Agências Reguladoras e a evolução do
direito administrativo econômico. Rio
de Janeiro: Forense, 2004.
FGV DIREITO RIO
275
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
O quadro abaixo sumariza as lições de Eros Grau630 acerca das múltiplas
faces da atuação estatal, as quais podem ocorrer na ordem econômica, quando o Estado atua em regime de monopólio de determinada atividade ou participa diretamente de um segmento econômico por meio de suas estatais, ou
quando intervém sobre o domínio econômico, nos termos sintetizados por
Mario Gomes Shapiro631, “ao buscar influir nos processos de mercado, todavia, sem desempenhar diretamente um papel de agente econômico”, o que
pode ocorrer pela regulação direta da atividade – Estado normatizador e regulador – ou pela direção indireta de determinado segmento. A direção indireta pode ser realizada por intermédio: (1) de estímulos/desestímulos a determinados comportamentos que influenciam as decisões de consumir, investir
e poupar, todas elas políticas de indução que podem ser exercidas, conforme
já salientado, por meio (1.1) de exações especiais autônomas, qualificadas ou
não como tributos dependendo do regime constitucional e da doutrina, ou
(1.2) de impostos de caráter extrafiscal; ou, ainda, (2) de comandos disciplinadores da atividade privada, o que insere elementos de poder de polícia632
na seara do poder de tributar, como os regimes especiais de tributação e de
recolhimento de impostos (ex: a sistemática de retenção na fonte do IR ou de
substituição tributária para frente do ICMS, os quais objetivam inviabilizar a
possibilidade de redução, pela evasão ou elisão, do pagamento dos impostos).
630
GRAU. Op. cit.
631
SCHAPIRO, Mario Gomes. Estado,
direito e economia no contexto desenvolvimentista: breves considerações
sobre três experiências – governo Vargas, Plano de Metas e II PND. In: SANTI,
Eurico Marcos Diniz de (coordenador).
Curso de Direito Tributário e Finanças
Públicas. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 83-84. O autor apresenta quadro
sintético semelhante, sem diferenciar,
entretanto, a indução de comportamento ou da atuação dos particulares
por meio de tributos ou de exações de
natureza não tributária.
632
Ver conceito legal do poder de polícia
no artigo 78 do Código Tributário Nacional a ensejar a instituição de taxa.
FGV DIREITO RIO
276
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Atuação estatal na Ordem Econômica e Financeira
Atuação no domínio econômico
Absorção – Estado guarda para
si a titularidade
de determinadas
atividades
Estado atua com
exclusividade em
determinado setor
–monopoliza a
atividade (artigo
177 da CR-88)
Participação
direta na atividade
econômica em
sentido lato
Estado atua diretamente por meio
das empresas públicas e sociedades de economia
mista em segmento econômico
específico ou,
ainda, prestando
serviços públicos,
quando o mesmo é qualificado
como subespécie
do gênero atividade econômica
(artigo 173 c/c 175
da CR-88)
Intervenção sobre o domínio econômico
Regulação
Estado dirige a
atividade econômica diretamente,
atuando como
agente normativo
e regulador das
condutas dos particulares (artigo
174 da CR-88)
Indução ou disciplina do comportamento dos particulares visando restringir e
limitar a liberdade, direito ou interesse,
ou induzir determinado comportamento (consumo, investimento e poupança)
tendo em vista o interesse público:
(1) através da instituição de exações
especiais, categoria autônoma de
ingressos públicos
não qualificados
como tributos. Modelo não utilizado
no Brasil mas existente, por exemplo, na Alemanha e
na Itália.
(2) por meio:
(2.1) da instituição
de tributos específicos (art. 149 e 177,
§4º, da CR-88), ou
(2.2) da utilização
de impostos de
caráter extrafiscal
(ex: arts. 150, §1º,
153, §1º, e §3º, I,
155, §2º, III da CR88, etc.), ou
(2.3) da adoção de
regimes tributários
especiais como a
substituição tributária ou a retenção
na fonte visando
reduzir a possibilidade de evasão e
elisão fiscal.
No Brasil, desde a Emenda Constitucional nº 1/69, o que foi ratificado
pela Constituição de 1988, as exações especificamente voltadas para intervir
na ordem econômica são enquadradas e qualificadas como tributos (vide artigo 149 c/c 177, §4º, da CR-88), ao contrário do que ocorre em diversos
países, como a Itália e a Alemanha, conforme ensina Ricardo Lobo Torres633:
Na Alemanha as contribuições econômicas ou ingressos especiais (Sonderabgaben) não se confundem com os tributos (impostos, taxas ou contribuições
– Steuern, Gebühren, Beiträge), eis que são cobrados com base no dispositivo
constitucional que autoriza a intervenção indireta na economia. As contribuições
especiais não são exigidas com fundamento nos dispositivos constitucionais que
distribuem a competência tributária (art. 105 da GG), mas com apoio na competência concorrente para legislar sobre ‘Direito Econômico (minérios, indústria, energia, artesanato, pequena indústria, comércio, regime bancário, bolsa e
633
TORRES, Ricardo Lobo. A política industrial da Era Vargas e a Constituição
de 1988. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz
de (coordenador). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 262-263.
FGV DIREITO RIO
277
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
seguros de direito privado)’ prevista no art. 74, item XI, da Constituição alemã,
tudo de conformidade com a distinção entre competência de legislar sobre tributos (Steuergesetzgegungskompetenz) e competência legislativa genérica (Gesetzgebungskompeten). Os adversários dessa interpretação vêm-na acusando de
criar uma Constituição Tributária apócrifa (eine aporkryphe Steuerverfassung).
É considerado de natureza excepcional o Sonderabgaben, e, por isso, necessita
sempre de justificativa”.
Para o eminente autor, transformar as contribuições de intervenção no
domínio econômico em tributos ou qualifica-las com tal, significa dar à intervenção estatal um caráter de permanência e essencialidade que não possui no
Estado Fiscal, mas que no Brasil foi uma opção em torno da maior estatização
da economia e, portanto, um enfraquecimento do Estado Fiscal e da liberdade.
Considerando que essas exações foram situadas e qualificadas pelo constituinte originário brasileiro de 1988 como receitas tributárias, essas contribuições interventivas no domínio econômico (CIDE) se submetem ao mesmo
regime jurídico dos tributos, o que pode significar sob determinados aspectos
maior segurança ao sujeito passivo da obrigação legal constitucionalmente
disciplinada e limitada.
Além de regular o comportamento dos particulares por meio dessas contribuições tributárias específicas de intervenção na ordem econômica (CIDE),
também os impostos podem ser utilizados como instrumentos para disciplinar634 a atividade privada e estimular e desestimular as decisões e as ações dos
particulares visando implementar determinada política econômica, o que se
efetiva por intermédio da elevação da carga tributária em situações específicas
ou através da concessão de incentivos e benefícios fiscais (vide art. 165, §6º
c/c 174 da CR-88), os quais podem estar direta ou indiretamente vinculados
à tributação, conforme será examinado a seguir. De fato, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal635 fixou-se no sentido de ser idônea a utilização do
“caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da
isonomia”, conforme voto da Relatora Ministra Ellen Gracie na ADI n. 1.276.
Antes, entretanto, importante repisar que a adoção dessas políticas indutivas eleva sobremaneira a complexidade da tributação, criando múltiplas exceções e tratamentos diferenciados que suscitam novas alterações para atender
outras particularidades decorrentes das previsões anteriormente expedidas,
criando uma verdadeira colcha de retalhos e um ciclo vicioso, o que amplia
as brechas (loopholes) que facilitam a evasão e a elisão fiscal, dificultando de
forma acentuada a administração dos tributos, o que demanda muito investimento na Administração Tributária para que esta obtenha receita, objetivo
primário quando da criação dos tributos.
634
TORRES. Op. Cit. p. 257. “Os tributos,
ao lado de sua função de fornecer recursos para as despesas essenciais do
Estado, exercem o papel de agentes do
intervencionismo estatal na economia,
de instrumentos de política econômica:
é o intervencionismo fiscal de que fala
Neumark. Os tributos já não se apresentam apenas como fruto do poder
de tributar, mas simultaneamente
como emanação do poder de polícia,
ou melhor, o poder de tributar absorve
o poder de polícia na tarefa de regular a
economia; só heuristicamente se pode
falar de um poder tributário ao lado de
um poder de polícia, pois o tributo juridicamente emana do poder tributário.”
635
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 1276/ DF, Plenário,
Rel. Min. Ellen Gracie. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 18.06.2010. Decisão unânime.
FGV DIREITO RIO
278
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A tributação sobre o consumo636 de bens e serviços é amplamente utilizada com objetivos extrafiscais, seja por meio da ampliação ou da redução da
carga tributária.
O incremento das alíquotas dos impostos incidentes637 sobre os bens e
serviços importados, por exemplo, pode reduzir a demanda por aqueles estrangeiros e ampliar o mercado interno para os similares nacionais, o que
estimula a indústria e a produção local. No mesmo sentido, pode ser elevada
a imposição sobre determinados produtos que o poder público deseja desestimular o consumo, como ocorre, em geral, com o cigarro e a bebida alcoólica,
produtos que aumentam de forma exponencial a possibilidade de doenças
graves e os acidentes que tanto prejudicam as pessoas atingidas diretamente
e oneram sobremaneira o sistema público de saúde, o que aumenta drasticamente as despesas do setor público, que devem ser financiadas de alguma
forma, a gasolina – combustível altamente poluente o qual tem como origem
o petróleo, produto fóssil não renovável, e etc.
Por outro lado, a redução desses impostos usualmente denominados de
indiretos, haja vista que o encargo financeiro do tributo não recai diretamente sobre aquele designado em lei como o sujeito passivo da obrigação tributária (comerciante, industrial atacadista e etc.) e sim sobre o consumidor final,
o qual não possui relação jurídica tributária com o Estado, é muito utilizada
como instrumento de política econômica para estimular a economia e elevar
a demanda agregada em fases recessivas ou de baixo crescimento, o que seria
preferível se comparado ao incremento de gastos no caso brasileiro atual, de
acordo com a tese do economista Rubens Penha Cysne638:
São várias as razões pelas quais, no Brasil, o estímulo à demanda através da
elevação da renda pessoal líquida obtida por meio da redução de impostos indiretos pode ser preferível à elevação de gastos. Primeiro, reduções de impostos
indiretos levam diretamente à queda dos preços finais ao consumidor, o que
pode amenizar o concomitante impacto altista de fomento à demanda (decorrente da majoração da renda disponível do setor privado). Segundo, impostos
indiretos menores compensariam também as recentes pressões altistas do câmbio
sobre os preços. No jargão macroeconômico isto equivaleria a dizer que choques
de oferta adversos (aumento do preço do dólar) combatem-se com choques de
oferta positivos (redução de impostos). O que os empresários gastam a mais
com insumos importados, ou com a elevação das demandas salariais daí decorrentes, compensam com menores transferências ao governo, sem necessidade de
maiores elevações de preços. Terceiro, a carga tributária nacional tem aumentado
sobremaneira desde os anos 1980 (de 26% para algo em torno de 35% do PIB),
o que tem ocorrido a taxas superiores àquelas da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). A se manter a trajetória atual, em breve
o Brasil estará alcançando os 36,5% da OCDE. O problema com estes números
636
O principal instrumento utilizado
nos impostos incidentes sobre o consumo para alcançar objetivos de natureza
extrafiscal é a seletividade, a qual se
efetiva por meio da adoção de alíquotas diferenciadas para os diversos bens
e serviços de acordo com a essencialidade dos mesmos – alíquotas menores
para aqueles essenciais e maiores para
os supérfulos ou não essenciais (vide
artigo 153, §3º, I da CR-88, no que se
refere à obrigatoriedade de aplicação
do princípio ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), imposto de
competência privativa da União, e o
artigo 155, §2º, III da CR-88, quanto à
facultatividade para o Imposto sobre
a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Comunicação e de
Transporte Interestadual e Intermunicipal – ICMS, imposto de competência
privativa dos Estados e do Distrito Federal). Apesar da citada facultatividade, o
Órgão Especial do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, considerando
a essencialidade da energia elétrica, na
Argüição de Inconstitucionalidade nº
2008.017.00021, declarou a inconstitucionalidade do art. 14, VI, “b”, da Lei nº
2.657/96, que institui o ICMS no Estado
do Rio de Janeiro, com a nova redação
dada pela lei 4.683/2005, que fixava
em 25% ( vinte e cinco por cento ) a
alíquota máxima de ICMS sobre operações com energia elétrica. O Tribunal
considerou que a lei ordinária viola os
princípios da seletividade e da essencialidade assegurados no art. 155, § 2º,
da Carta Magna de 1988, devendo-se
aplicar, portanto, a alíquota geral de
18% (dezoito por cento). Saliente-se
que os benefícios fiscais também são
amplamente adotados nos impostos
incidentes sobre o consumo com objetivos outros que não exclusivamente
fomentar e incrementar a arrecadação
futura, como, por exemplo, facilitar o
consumo de determinados bens e serviços essenciais ou obstar a aquisição
daqueles considerados prejudiciais ou
se visa desestimular.
637
Importante destacar a necessária
adequação desses aumentos na carga
tributária dos bens e serviços de origem
estrangeira com os condicionamentos
fixados nos tratados firmados em âmbito local, regional ou internacional,
multilaterais ou não, como é o caso, por
exemplo, dos acordos da Organização
Mundial do Comércio (OMC), que sucederam aqueles do GATT (General Agreement on Trade and Tariffs), do tratado
que disciplina o Mercosul, os quais limitam ou estabelecem parâmetros para a
política tributária nacional unilateral,
matéria a ser examinada na parte final
do semestre.
638
CYSNE, Rubens Penha. Reação à Crise. Conjuntura Econômica. Jan 2009.
Vol. 63. nº 01. Fundação Getúlio Vargas.
p. 18-19.
FGV DIREITO RIO
279
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
não é apenas sua magnitude. Mas o fato de não se observarem, no Brasil, serviços públicos com a qualidade e amplitude daqueles providos, na média, pelos
30 países da OCDE (que engloba Estados Unidos, Alemanha, França, e vários
outras economias de liderança tecnológica mundial). Quarto, porque no Brasil o
pagamento de salários das três esferas da administração pública, somado à compra de bens e serviços a empresas, apresenta valores injustificadamente superiores
àqueles de outras economias (...)
Cumpre salientar que países com elevada dívida pública e alto volume
de despesas de baixa mutabilidade no curto prazo, como é o caso brasileiro,
possuem inevitáveis restrições quanto à redução de impostos de forma ampla
e abrangente em situações de crise econômica. Por outro lado, a redução
pontual e discriminada impostos deve ser combatida se violadora do princípio da igualdade. No sentido inadequação da redução do IPI incidente sobre
veículos para o combate à crise no início de 2009 assevera Gustavo Loyola639:
“(...) Aliás, no campo fiscal, um dos equívocos freqüentes é a redução temporária de impostos, como ocorreu com o IPI incidente sobre a produção de veículos. Esse tipo de medida, além de discriminatória, não tem como condão aumentar a demanda, mas apenas antecipa o consumo que seja de qualquer modo
realizado no futuro. Havendo espaço fiscal, o correto seria, no Brasil, buscar-se
uma menor carga tributária, por meio de quedas de tributos que beneficiam a
economia como um todo, e não apenas setores eleitos pelo poder do príncipe”.
Considerando a possibilidade de utilização desses impostos e de outros
tributos para a realização de política econômica, bem como para estimular
e desestimular comportamentos dos agentes econômicos, a Constituição de
1988 estabelece regime jurídico especial para várias espécies tributárias, excepcionando, por exemplo, a aplicação do princípio da legalidade, no que
se refere à exigência de lei em caráter formal para aumentar a alíquota de
determinados impostos, a teor do artigo 153, §1º, ou ainda, ao ressalvar a
aplicabilidade do princípio da anterioridade para determinadas exações, nos
termos do artigo 150, §1º, ou, ainda, ao prever a seletividade, através da qual
os bens não essenciais são tributados mais gravosamente (artigo 153, e §3º, I,
e 155, §2º, III da CR-88) e etc.
Também a concessão de benefícios e incentivos fiscais, isto é, a desoneração de determinados bens e serviços, por meio da redução das alíquotas,
criação de isenções, de reduções de base de cálculo, de créditos presumidos
e etc., são amplamente utilizadas pelo Estado como instrumento para modificar e induzir o comportamento dos particulares e das empresas em geral.
Pode ser reduzida a carga tributária de uma mercadoria específica objetivando aumentar ou facilitar o seu consumo por questões de ordem sanitária, de
639
LOYOLA, Gustavo. Resposta à Crise
não pode ser recuo. Jornal Valor. Segunda feira, 30 de março de 2009.p.A13.
FGV DIREITO RIO
280
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
saúde pública ou de planejamento familiar, como é o caso, por exemplo, dos
preservativos e etc.
Salvo a concessão de subsídios de natureza financeira, vinculados à tributação, a possibilidade de utilização de incentivos tributários nos impostos
incidentes sobre o consumo para afetar decisões sobre investimentos dos
agentes econômicos pressupõe que na sua base de incidência sejam também
incluídos os bens de capital, o que de certa forma desnatura a exação como
um verdadeiro consumption tax. A maioria dos países do mundo que adota o
citado Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA ou VAT) exclui da respectiva
base de tributação os bens destinados a compor o ativo fixo imobilizado do
investidor, ou seja, não há fato gerador e cobrança de imposto na saída da
máquina ou do equipamento destinada a ampliar a capacidade produtiva
do adquirente, posto estar essa hipótese fora do campo de incidência. Dessa
forma, esses impostos formulados para incidência sobre o consumo não são
utilizados para realizar política tributária visando incentivar ou desestimular investimentos. No Brasil, entretanto, ao contrário da maioria dos países
que adotam a tributação exclusivamente sobre esse substrato econômico, as
aquisições para o ativo imobilizado estão inseridas no campo de incidência
de diversos impostos e contribuições, como é o caso do IPI e do ICMS, além
da PIS e da COFINS, razão pela qual esses tributos são amplamente utilizados com fins extrafiscais, tanto por meio de benefícios de natureza tributária
como através de incentivos financeiros que se vinculam à tributação. Assim,
é possível no Brasil incentivar certos investimentos por meio de impostos
usualmente formulados para incidir sobre o consumo, com vistas, por exemplo, a facilitar640 a aquisição de bens de capital para aumentar a capacidade
produtiva de determinado setor da economia, como a produção de biocombustíveis, que são renováveis e não são poluentes.
No que se refere às contribuições sociais para o financiamento da seguridade social devida pelo empregador641, o §9º do artigo 195 da CR-88, com a
sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº 47/2005642, estabelece
a possibilidade de adoção de alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em
razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do
porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. As contribuições dos servidores públicos, por sua vez, são disciplinadas nos artigos
39 e 40 da CR-88, sem a previsão da adoção de alíquotas diferenciadas ou
de progressividade. Nesse sentido, por não se submeterem às regras gerais da
seguridade social, salvo nas hipóteses e situações previstas na Constituição,
o STF, no julgamento da medida cautelar na ADI 2010 MC, decidiu no
sentido da impossibilidade de utilização da progressividade nas contribuições
para o financiamento da seguridade social devida pelos servidores públicos.
Dispõe a parte relevante do acórdão643 na ação direta:
640
Em sentido contrário, pode o poder
público desejar desestimular a ampla
automação em determinado setor
econômico, objetivando resguardar a
utilização de mão de obra ao invés de
máquinas.
641
A decisão na ADI 2010 a seguir explicitada afasta a possibilidade da progressividade em relação à contribuição
dos empregados e em relação a parcela
devida pelos servidores públicos no que
se refere aos respectivos sistemas próprios de segurança social.
642
O §9º foi incluído ao artigo 195 pela
EC nº 20/1998, prevendo-se apenas as
alíquotas ou bases de cálculo diferencidas “em razão da atividade econômica
ou da utilização intensiva de mão de
obra”. A EC nº 47/2005 incluiu a possibilidade relativamente às hipóteses
de “porte da empresa ou da condição
estrutural do mercado de trabalho”.
643
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo
Tribunal Federal. ADI 2010 MC-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches.
Julgamento em 30.09.1999. Brasília.
Disponível em: <http://www.stf.jus.
br>. Acesso em 07.05.2010. Decisão
por unanimidade de votos.
FGV DIREITO RIO
281
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL – SERVIDORES EM
ATIVIDADE – ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS: A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA SUPÕE EXPRESSA AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO JURÍDICO DA TESE. –
Relevo jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses
taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode valer-se da progressividade na definição das alíquotas pertinentes à contribuição de seguridade social devida por servidores públicos em atividade. Tratando-se de matéria
sujeita a estrita previsão constitucional – CF, art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º;
art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição social devida
pelo empregador) – inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso
Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição. Inaplicabilidade,
aos servidores estatais, da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição,
introduzida pela EC nº 20/98. A inovação do quadro normativo resultante da
promulgação da EC nº 20/98 – que introduziu, na Carta Política, a regra consubstanciada no art. 195, § 9º (contribuição patronal) – parece tornar insuscetível de invocação o precedente firmado na ADI nº 790-DF (RTJ 147/921). A
TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA.
Já a utilização do imposto incidente sobre a renda, da pessoa física (IRPF)
ou da pessoa jurídica (IRPJ), como instrumento regulatório, tem como objetivo precípuo alterar as decisões quanto à modalidade e a intensidade dos investimentos e da poupança, e não propriamente incentivar ou desestimular
diretamente o consumo de determinado bem ou serviço, o que pode ocorrer
de maneira subsidiária. Nesse sentido destaca o professor Reuven Avi-Yonah644 quanto ao caráter regulatório e indutor de crescimento e desenvolvimento econômico do imposto de renda nos Estados Unidos:
The income tax, and in particular the corporate income tax, had been seen as
a potential regulatory tool from the beginning. President Taft, in proposing the
corporate tax in 1909, had emphasized its regulatory potential: By adopting the
tax, he said, the government can achieve “supervisory control of corporations
which may pre– vent a further abuse of power.” [FN118] And in adopting and
developing the reorganization provisions from 1918 onward, [FN119] the United States began a long series of measures designed to reward some forms of corporate activity and deter others. The heyday, however, of using the income tax as
a regulatory tool was in the post World War II period. This was part of a general
tendency to entrust regulatory powers to the state--the so-called “golden period
of the nation state.” [FN120] In the 1960’s and 1970’s, in particular, hundreds
of provisions were added to the Code to influence investment and spending de-
644
AVI-YONAH. Op. Cit. p.12-14.
FGV DIREITO RIO
282
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
cisions by both individuals and corporations. The problem, of course, was that
these regulatory provisions (“tax expenditures”) clashed with the other goals of
taxation--they made the income tax less effective in both raising revenue and as
a redistributive tool, since most of the tax expenditures were aimed at the rich.
In addition, the tax expenditures made the Code far more complex. The result
was a backlash led by academics like Stanley Surrey, who wanted to restore the
tax law to its “pure” functions of revenue raising and redistribution and achieve
regulatory aims directly by subsidies and direct regulation. [FN121] (…) Some
private activities can best be regulated by consumption taxes--consumption activities. In fact, if the goal of the government is to deter consumption of certain
items (for example, tobacco, alcohol or gasoline), excise taxes on these items are
the most effective way of achieving this aim--far better than denying an income tax deduction. General consumption taxes are also widely used (although
this use is more controversial) to impose extra taxes on some items (luxuries)
and lower taxes on others (food and medicine). (It should be noted, however,
that the aim of these provisions frequently is to abate regressivity, which can be
achieved better by spending programs.) But most of the regulatory function of
taxation relates not to consumption, but to investment and saving behavior. The
biggest tax expenditures in all countries tend to be those that encourage individuals to invest for certain goals (for example, retirement, housing or education).
[FN131] Other important ones are designed to encourage corporate investments (for example, accelerated depreciation, investment tax credits). [FN132]
These types of regulation can be achieved only in the context of a system that
taxes individual and corporate income, not consumption.
A utilização de benefícios e incentivos fiscais do imposto incidente sobre
a renda para alterar as decisões econômicas e induzir uma política de crescimento econômico tem sido amplamente utilizada em diversos países, inclusive o Brasil, o que evidentemente eleva sobremaneira a complexidade do
sistema. Ademais, a concessão indiscriminada de benefícios fiscais é um mal
que assola diversas nações, razão pela qual os especialistas em finanças públicas Stanley S. Surrey645 e Paul R. McDaniel, conforme já destacado na aula
pertinente às receitas públicas, instituíram o conceito que se denominou de
“tax expenditure”, ao equiparar o incentivo fiscal implementado pela via da
receita ao gasto fiscal, isto é, passou a qualificar e registrar os benefícios fiscais
(renúncia de receita) como despesas públicas, o que eleva o grau de transparência da política fiscal realizada com os recursos públicos. Nesse sentido, o
artigo 165, § 6º, da CR-88 estabelece que o “projeto de lei orçamentária será
acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e
despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios
de natureza financeira, tributária e creditícia”. Ressalte-se, no entanto, que
se por um lado a Constituição estabelece o princípio da transparência das
645
SURREY, Stanley. Tax Expenditures.
Cambridge: Harvard University Press,
1985.
FGV DIREITO RIO
283
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
mencionadas renúncias de receitas visando a reduzir o uso indiscriminado
dos benefícios fiscais, por outro lado institui o princípio do desenvolvimento
regional e prestigia a redução das desigualdades, nos termos dos artigos 3º,
III e 174, § 1º, razão pela qual parece adotar o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico das diferentes regiões do país (artigo 151, I, da CRFB)
como hipótese excepcional e justificável para a adoção dos incentivos na seara tributária.
No que se refere à tributação sobre o patrimônio, conforme já mencionado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas em diversas hipóteses como
instrumento indutivo de política urbana, rural e de incentivo ou desestímulo
ao comportamento dos agentes econômicos e das famílias, como, por exemplo, no artigo 153, §4º, inciso I, relativamente ao Imposto Territorial Rural
(ITR); no artigo 155, §6º, em relação ao imposto sobre a propriedade de
veículo automotor (IPVA) e no artigo 156, §1º, alterado pela Emenda Constitucional nº 29/2000, e no artigo 182, §4º, II, no que se refere ao Imposto
sobre a propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
Por fim, cumpre destacar que a doutrina nacional aponta a possibilidade
de utilização de determinadas técnicas de tributação, que alteram a sistemática básica de operacionalização da exação, o que caracterizaria e qualificaria
o uso extrafiscal do tributo, como mecanismo para disciplinar o comportamento dos agentes econômicos, restringindo a sua liberdade de atuação, de
forma a evitar a possibilidade de redução intencional de impostos, por meios
lícitos ou ilícitos (a denominada elisão e a evasão tributária). Nessa hipótese,
são adotados determinados regimes tributários e procedimentos especiais de
pagamento do imposto, como, por exemplo, a substituição tributária para
frente do ICMS ou a retenção na fonte pagadora do imposto incidente sobre
a renda daquele que recebe os pagamentos e aufere renda. Deve-se ressaltar a
necessária razoabilidade e proporcionalidade desses instrumentos, tendo em
vista que a facilidade administrativa e o objetivo de reduzir a possibilidade de
evasão ou elisão não podem justificar eventual violação à capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, seja ele contribuinte ou o
responsável, nem descaracterizar a essência e a natureza de incidência.
O regime de substituição tributária do ICMS em relação às operações e
prestações subseqüentes da cadeia de circulação de mercadorias e da prestação de serviços (substituição para frente) é um exemplo de utilização de medidas simplificadoras do procedimento fiscalizatório, que reduzem os custos
da Administração Tributária, mas que restringem a liberdade e interesse do
contribuinte, ao determinar o pagamento de imposto relativo a transações
que ainda não ocorreram. Nessa hipótese, o industrial ou fabricante, além de
pagar o imposto pertinente à própria operação que realiza (ICMS próprio),
é o responsável pelo recolhimento do tributo incidente sobre toda a cadeia
FGV DIREITO RIO
284
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
circulatória posterior de forma antecipada (ICMS retido ou ST), isto é, antes
da ocorrência do fato econômico que fundamenta a exigência do imposto. A
razão de ser dessa sistemática é, naturalmente, a adequação administrativa da
exação, o que reduz os custos operacionais, haja vista a extrema dificuldade
que teria o Poder Público se tivesse que fiscalizar o elevado número de contribuintes varejistas (bares, restaurantes, farmácias, ambulantes e etc.) para
verificar a correção ou não do recolhimento do ICMS sobre as suas vendas.
Dessa forma, ao determinar o pagamento antecipado na etapa inicial de circulação, é medida que disciplina o comportamento dos agentes econômicos
por meio de regimes especiais de pagamento, os quais objetivam diminuir o
volume de despesas com a máquina administrativa, tendo em vista reduzir a
possibilidade de elisão e evasão tributária.
14.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto nesta aula conclui-se que as características e as razões
de ser da exigência dos tributos modificam-se ao longo da história, pois, se
o fundamento dos impostos na vigência do denominado patrimonialismo
são as “razões de Estado” e as necessidades da nobreza e do clero, no Estado
de Liberal de Direito a igualdade e a liberdade do indivíduo contra a opressão do precedente absolutismo monárquico figura como a sua matriz. Já no
denominado Estado de Bem-Estar Social que preponderou desde a segunda
metade do século XX até o início dos anos oitenta, é o intervencionismo na
ordem social e econômica que denota e qualifica o tributo não somente por
seus aspectos arrecadatórios, mas, também, por suas finalidades extrafiscais e
parafiscais. Essa crescente demanda e pressão sobre a política fiscal como um
todo, incluindo a vertente das despesas, é intensificada na realidade atual, em
que se apresenta o duplo desafio estratégico do desenvolvimento econômico
sustentável e inclusivo sob o ponto de vista social harmonizado com o meio
ambiente no qual se realizam e processam as atividades humanas.
A extrafiscalidade se exterioriza de forma intencional em pelo menos cinco
vertentes distintas: (1) pela utilização das exações tributárias com o objetivo
de reduzir desigualdades sociais e transformar o tributo em instrumento de
redistribuição de renda e riqueza; (2) por meio de exações específicas para
disciplinar e dirigir os agentes privados, como as contribuições para a intervenção no domínio econômico (CIDE), que podem ter ou não natureza
tributária dependendo do regime constitucional; (3) através do uso dos próprios tributos, diretos ou indiretos, como mecanismos de regulação e indução da atividade econômica e do comportamento social, (4) beneficiando e
incentivando a atividade econômica visando elevar o nível de desenvolvimento por meio dos benefícios e incentivos fiscais ou reduzindo a carga tributária
FGV DIREITO RIO
285
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
como ferramenta indutora das demandas e ações dos agentes econômicos, e
(5) disciplinando a atividade ou a forma do recolhimento do imposto, objetivando a facilidade na administração do tributo.
Por fim, importante destacar que vários são os argumentos a favor e contrários à adoção da incidência sobre o consumo, a renda ou o patrimônio,
bem como para a utilização da proporcionalidade ou da progressividade, a
qual pode comportar diversos graus e intensidades distintas.
FGV DIREITO RIO
286
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
AULA 15 – A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA, OS ELEMENTOS E AS
DIVERSAS FASES DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. O MOMENTO DE
FIXAÇÃO DO REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO.
ESTUDO DE CASO646
Determinada Lei Estadual, publicada em 10/01/2010, estabeleceu a redução (1) das alíquotas e (2) das multas aplicáveis, respectivamente, aos (1)
fatos jurídicos tributáveis e (2) ilícitos fiscais previstos na legislação do ICMS
daquele Estado. Considerando que certo contribuinte tenha sido autuado
pela fiscalização local em 15/12/2009, em razão de falta de pagamento do
ICMS relativo aos meses de fevereiro/2009 a novembro/2009, poderia ser
aplicada a nova lei aos (1) fatos geradores e (2) infrações fiscais ocorridas em
2009, uma vez que este contribuinte ofereceu impugnação em tempo hábil,
estando ainda pendente de julgamento na esfera administrativa? Responda,
com base na legislação aplicável à espécie.
15.1 – ASPECTOS GERAIS ACERCA DA RELAÇÃO JURÍDICA-TRIBUTÁRIA
As relações entre as pessoas constituem-se por fundamentos variados, desde os laços familiares e de amizade despretensiosos sob o ponto de vista patrimonial até aquelas levadas a efeito por interesse individual ou coletivo de
caráter exclusivamente pecuniário, em que há inequívoca manifestação de
vontade das partes – sejam elas convergentes a determinado objetivo, como
ocorre nos pactos conveniais, ou simplesmente contrapostas, como nas relações contratuais-. Por outro lado, há vínculos que surgem por força e em
decorrência do próprio sistema jurídico, como é o caso da relação jurídica
tributária, sem que haja a necessidade de manifestação de vontade das partes,
bastando, tão somente, o enquadramento do caso concreto – o fato da vida
– na hipótese genérica e abstrata prevista em lei, seguindo a lógica e a racionalidade647 da subsunção que caracteriza a aplicação da norma no Estado de
Direito Liberal, marcadamente influenciado pela demanda por liberdade,
igualdade formal e segurança jurídica do cidadão ou, ainda, em função da
necessidade de se atingir determinados objetivos socialmente desejados, de
acordo com a racionalidade dos fins, típica do denominado Estado de Bem
Estar Social de caráter interventivo, o qual confere relevo a valores sociais
como a justiça distributiva, igualdade material e solidariedade.
O momento em que se instaura a relação jurídica tem relevância para a
determinação do conjunto de regras e princípios aplicáveis a um caso concreto, haja vista a possibilidade de ocorrência de eventos que se realizam instantaneamente, um ponto no tempo, ou, de forma diversa, durante um lapso
646
Exame de Ordem Unificado – 2010.2
- Questão 3 do Prova Prático-profissional. Leia os artigos 105, 106, II, 113,
114, 115 e 144 do Código Tributário
Nacional.
647
GRECO, Marco Aurélio. Contribuições
(uma figura “sui generis”). São Paulo:
Dialética, 2000, p. 43-44. Essa questão
será aprofundada nas aulas pertinentes
à interpretação e aplicação da legislação tributária.
FGV DIREITO RIO
287
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
temporal. Ainda, importante destacar desde já a possibilidade de alteração do
regime jurídico aplicável ao longo do tempo. O princípio geral é no sentido
de que deve incidir a lei ou o conjunto de normas vigentes durante a ocorrência dos eventos disciplinadores da hipótese (tempus regit actum).
A natureza de toda relação, segundo uma concepção causalista, é definida
por seu fundamento, sua razão de ser mediata, e pelo seu objeto, que é o
elemento material em torno do qual as pessoas se vinculam. Seus efeitos e
conseqüências também podem constituir a sua natureza, de acordo com uma
visão consequencialista.
No campo obrigacional privado a prestação do devedor, que é o objeto da
relação, consistente sempre em uma ação humana, compreende um dar, um
fazer ou não fazer algo, razão pela qual não se confunde com a coisa em que
se especializa,648 consoante o disposto no Título I, do Livro I, da Parte Especial
do Código Civil (art. 233 a 285). Caso descumprido o dever jurídico vinculado ao fazer, em suas duas modalidades não expressas em unidades monetárias,
converte-se o objeto em uma prestação de dar o equivalente em pecúnia649 a
título de perdas e danos, caso o devedor culposamente der causa, ainda que
não tenham as partes “cogitado do seu caráter econômico originário”.650
A relação jurídica tributária, por sua vez, é multifacetada, na medida em
que a mesma se constitui, de acordo com o disposto no Código Tributário
Nacional (CTN), por três causas ou fundamentos distintos, abaixo descritos,
e se desdobra nos três modais supracitados (dar, fazer ou não fazer), envolvendo, ao mesmo tempo, prestações de caráter patrimonial e pecuniário assim como outras de cunho não patrimonial.
O tributo e as prestações a ele vinculadas – essas últimas existentes para
garantir a higidez e solidez do sistema651 – caracterizam a natureza pública
da relação tributária, o que determina a aplicabilidade de um regime jurídico
diferenciado. Conforme será examinado abaixo, a relação jurídica tributária
pode possuir três causas remotas652 distintas, de acordo com o art. 113 do
CTN: (1) o dever de pagar (1.1) o tributo ou (1.2) a penalidade expressa em
moeda corrente, o que faz nascer uma relação de caráter patrimonial, qualificada como obrigação de dar pela maior parte da doutrina e denominada de
principal pelo CTN; (2) a obrigação do sujeito passivo de realizar prestações
positivas e negativas (“fazer” ou “não fazer”), de natureza não patrimonial,
nomeada de obrigação acessória pelo mesmo Codex, as quais têm como objetivo precípuo garantir o correto cumprimento da obrigação principal, mas
também possibilitam o controle de todo o sistema tributário pelo Fisco e, por
fim, (3) a relação constituída em função e em decorrência do descumprimento do dever de pagar o tributo (item 1.1) ou de realizar as prestações positivas
e negativas anteriormente citadas (item 2).
A terceira modalidade de constituição da relação jurídica tributária somente ocorre no caso de infração imputável ao sujeito passivo da obrigação
648
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 10 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1990. p.2-5.
649
SILVA, De Plácido e. Vocabulário
Jurídico. Rio de Janeiro, 2002. Forense.
Rio de Janeiro, 2002. p. 596. “Pecúnia
– Do latim pecunia, de ecus, sempre
foi empregado em sentido técnico do
Direito ou da Economia, para designar o
dinheiro ou a moeda. Dele, com a mesma significação, forma-se o pecuniário,
para qualificar tudo o que concerne ao
dinheiro ou à pecúnia.”
650
PEREIRA. Op. Cit. p.17. Daí a patrimonialidade da obrigação na seara privada, conforme será examinado a seguir.
651
De fato, no mundo ideal não seria
necessária a exigência de que o sujeito passivo cumprisse as denominadas
obrigações acessórias, que em última
instância objetivam garantir o correto
pagamento dos tributos, nem a previsão de sanções objetivando desestimular ou coibir a possibilidade de infração.
652
Em sentido diverso, pode ser considerado como a causa próxima ou imediata o fato concreto previsto abstratamente na norma jurídica ou a própria
lei do ente político competente para
instituir o tributo e regulamentá-lo por
meio de seu poder legislativo.
FGV DIREITO RIO
288
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tributária, de natureza primariamente administrativa e de caráter sancionatório, a qual redundará, de acordo com o determinado em lei, em penalidade
pecuniária de cunho patrimonial, consubstanciada em uma obrigação de dar,
nos termos acima citados.
Saliente-se, ainda, que o descumprimento653 da legislação tributária pode
ter ou não implicações criminais, dependendo do enquadramento do fato em
algum tipo penal654 bem como de seus desdobramentos em âmbito administrativo655 e judicial. Assim sendo, da mesma forma que o estudo jurídico da
extrafiscalidade pressupõe a compreensão da correlação entre o denominado
poder de polícia e o poder de tributar, a análise dessa terceira forma por meio
da qual a relação jurídica tributária se constitui, requer o exame da interface
entre esses poderes e o poder de punir.
Cumpre realçar que várias são as teorias que tentam explicar a essência ou
a natureza da relação tributária, desde a sua qualificação como simples relação de poder, destituída de qualquer outra fundamentação, sendo a norma
impositiva do tributo no Estado de Direito simples ordem sem a real natureza de lei656, até as teses que incorporam estruturas e disciplinas do direito
obrigacional privado para o Direito Tributário. Pode-se ainda destacar aquela
mais moderna, que vincula e estuda a relação jurídica tributária a partir do
enfoque e perspectiva constitucional, malgrado também qualificá-la e definila como modalidade de obrigação ex lege, não obstante deslocar o foco e
ênfase para o seu fundamento de validade, ao invés de se direcionar para o
instrumento ou o veículo normativo por meio do qual se manifesta.
Alcides Jorge Costa657 ao abordar o tema esclarece:
Antes de se iniciar o estudo da obrigação tributária é útil ter em mente que,
no Estado-Polícia, no qual o soberano tinha poder absoluto, o patrimônio público, chamado Fisco, foi concebido como um ente dotado de personalidade, sujeito às regras de Direito Privado e, portanto, aos tribunais comuns. Essa concepção protegia os cidadãos, pois lhes dava o direito de discutir, perante os tribunais
comuns, as questões patrimoniais que pudessem ter com o Estado. Assim, nessas
questões não havia mera submissão ao poder absoluto do soberano. Com o fim
do Estado-Polícia e o advento do Estado de Direito, o que não aconteceu em todos os países ao mesmo tempo e que sucedeu por caminhos variados, a chamada
doutrina do Fisco não podia mais prevalecer, por ter desaparecido o poder absoluto com o qual contrastava. Mas ainda era necessário proteger o contribuinte.
Os administrativistas alemães da parte final do século XIX e início do século
XX inclinavam-se por ver uma relação de poder entre o Estado e o contribuinte
quando se tratava da cobrança de tributos. Da mesma forma, na Itália houve
quem visse na relação tributária uma simples sujeição do contribuinte ao poder
do Estado. Foi o caso de Orlando, que concebia as leis instituidoras de impostos
como simples ordem, sem real natureza de lei. Foi também o caso de Lolini,
653
Conforme destaca Ricardo Lobo Torres, “Inconfundíveis o poder de punir e
o poder de tributar. Estremam-se pela
natureza e objetivo. O poder de punir,
atribuído ao Estado no pacto constitucional, destina-se a garantir a validade
da ordem jurídica. O poder de tributar,
restringindo a propriedade privada,
procura garantir ao Estado o dinheiro
suficiente para atender às necessidades
públicas. Aproximam-se entretanto,
por terem sede constitucional e por
se constituírem no espaço aberto pela
liberdade.” In. TORRES, Ricardo Lobo.
Curso de Direito Financeiro e Tributário.
11ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
p. 231.
654
A Lei nº 8.137/90 tipifica os crimes
contra a ordem tributária e os artigos
168-A, 334 e 337-A do Código Penal
tipificam, respectivamente, o crime de
apropriação indébita previdenciária, os
crimes de contrabando e descaminho e
o de sonegação de contribuição previdenciária.
655
O Supremo Tribunal editou a Súmula
Vinculante nº 24 com o seguinte teor:
“Não se tipifica crime material contra
a ordem tributária, previsto no art. 1º,
incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes
do lançamento definitivo do tributo”.
De fato, de acordo com a jurisprudência tradicional do STF, HC 81.611,
HC 85185, HC 86120, HC 83353 e HC
85463, entre outros, falta justa causa
para ação penal na hipótese de lançamento do tributo pendente de decisão
definitiva em âmbito administrativo,
ou seja, enquanto estiver em curso o
contencioso administrativo não pode
ser proposta a ação penal.
656
Nesse sentido assevera Oto Mayer,
citado por Ricardo Lobo Torres, que “o
dever geral de o sujeito pagar impostos
é uma fórmula destituída de sentido
e valor jurídico”. In. TORRES. Op. Cit. p.
231.
657
COSTA, Alcides Jorge. Obrigação Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva. (Coordenador). Curso de Direito
Tributário. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 191.
FGV DIREITO RIO
289
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
cujos escritos a respeito datam de 1912 e 1920 e, mais tarde, Di Paolo. A reação
a essa concepção veio por meio da assimilação da relação Estado-contribuinte à
relação obrigacional, conceito haurido no Direito Privado. Dessa maneira, não
prevaleceu a idéia de mera relação de poder, mas de uma relação obrigacional,
na qual os sujeitos de encontram em pé de igualdade. Dessa forma, novamente
o recurso a instituto do direito privado é utilizado como meio de proteção do
contribuinte. Hoje a noção de obrigação tributária está tão arraigada que sua
origem histórica é esquecida.
Na mesma linha, Hugo de Brito Machado658, ressalta que a relação entre o
Estado e as pessoas sujeitas à tributação não é uma simples relação de poder,
mas uma relação jurídica de natureza obrigacional, pois:
No Direito Tributário inegavelmente encontram-se as características do Direito Obrigacional, eis que ele disciplina, essencialmente, uma relação jurídica
entre um sujeito ativo (fisco) e um sujeito passivo (contribuinte ou responsável),
envolvendo uma prestação (tributo).
Ao explicitar essa doutrina, que conceitua o tributo como objeto de uma
relação obrigacional criada por lei, isto é, que desloca o núcleo da definição
da natureza da relação jurídica tributária para o vínculo obrigacional, ao invés do enfoque exclusivo na lei ou no poder que possibilita a sua imposição,
Ricardo Lobo Torres659 assevera e alerta que:
O núcleo da definição passou a ser o vínculo obrigacional, pois a relação
jurídica se firmava entre dois sujeitos – credor e devedor do tributo – que se
subordinavam à lei em igualdade de condições. O tributo, portanto, tinha na
lei a sua fonte ou causa, mas se definia principalmente em função do fato gerador que dava nascimento à obrigação tributária, nova estrela na constelação
financeira (...). Corolário da tese central é a exacerbação formalista do poder
tributário, com a sua redução ao momento legislativo, vedada à Administração
qualquer parcela de discricionariedade; (...). A teoria da relação obrigacional
trouxe, contudo, algumas perplexidades. Não explicava, diante da questão da
soberania, como o Estado poderia, no ato de legislar, se colocar em relação de
igualdade com o contribuinte. Além disso, confundia o plano da norma e da
definição abstrata do fato gerador com o plano do contingente e da ocorrência
do fato gerador (vide p. 240). Finalmente, afastava o fenômeno tributário de
suas matrizes constitucionais, reduzindo-o ao campo da legislação ordinária e
confundindo-o com outras figuras de direito privado, mercê de sua absorção na
idéia de vínculo obrigacional.”
Em linha de pensamento diversa, Alcides Jorge Costa enfatiza:
658
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de
Direito Tributário. 21 ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: Editora Malheiros,
2002. p. 54.
659
TORRES. Op. Cit. p. 231 a 233.
FGV DIREITO RIO
290
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A discussão sobre se a obrigação de direito privado e obrigação tributária se
identificam ou diferem não é meramente acadêmica. Se há identidade, as normas de direito privado aplicam-se à obrigação tributária. Caso contrário, não se
aplicam. A resposta a essa indagação é alcançada considerando-se existir, entre
obrigações de direito privado e obrigação tributária, identidade estrutural, mas
não funcional. Daí decorre que, em princípio, as normas legais concernentes à
obrigação de direito privado aplicam-se à obrigação tributária, exceto se, à vista
da diferença funcional, a aplicação não puder ou não dever ser feita. A isso se
acrescente o óbvio: se a lei tributária contiver regras específicas (o que ocorre
com freqüência em vista da diferença de função), aplicam-se estas e não as de
direito privado. A obrigação tributária é uma obrigação ex lege. Que significa
isso? A resposta liga-se à classificação das fontes das obrigações, assunto que
tem sido, desde os juristas romanos, objeto de controvérsia ainda não pacificadas. Não interessa, aqui, aprofundar esse debate. Basta dizer que se chamam de
fontes das obrigações os fatos que a produzem. A obrigação é uma relação jurídica e há de ter por fonte mediata sempre a lei. Mas não se fala em fonte nesse
sentido, porque, se o fizesse, não existiria qualquer dificuldade, uma vez que
sempre haveria uma só fonte, a lei. Acontece que entre a lei abstrata e geral por
natureza e a obrigação, relação jurídica particular, há sempre um fato, um ato
ou uma situação jurídica a cuja a lei liga o nascimento da obrigação. Quando se
fala de fonte da obrigação está se fazendo referência a esse fato, ato ou situação.
É nesse contexto que se busca classificar as fontes das obrigações. Como foi dito,
a matéria é controversa.
Após explicitar outras teses que enfatizavam o ato ou o procedimento administrativo de lançamento como o núcleo central da imposição, as quais
fundamentam a relação jurídica tributária em teorias procedimentais, matéria que será examinada na disciplina de Direito Tributário e Finanças Públicas III, Ricardo Lobo Torres660 esclarece que:
A doutrina mais moderna e mais influente estuda a relação jurídica tributária a partir do enfoque constitucional e sob a perspectiva do Estado de Direito,
estremando-a das relações jurídicas do direito privado: a sua definição depende
da própria conceituação do Estado. Assim pensam, entre outros, K. Tipke e Birk
na Alemanha e F. Escribano na Espanha.
Claro que, apesar da abordagem constitucional do problema, a relação jurídica tributária continua a se definir como obrigação ex lege. Mas sua origem
legal se complementa e se equilibra com os momentos ulteriores do exercício do
poder de administrar e do poder de julgar as controvérsias surgidas da aplicação
da lei, sem os quais não se forma, na vida real, o vínculo de direito. (...)
A imbricação constitucional da relação tributária orienta a sua problemática
para o campo das conexões entre a receita e os gastos públicos, dado importan-
660
TORRES. Op. Cit. p. 233.
FGV DIREITO RIO
291
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tíssimo na atual fase das finanças públicas. A relação jurídica tributária, por outro lado, aparece totalmente vinculada pelos direitos fundamentais declarados
na Constituição. Nasce, por força de lei, no espaço previamente aberto pela
liberdade individual ao poder impositivo estatal. (grifo nosso)
A relação jurídica tributária qualificada nos termos apontados por Ricardo
Lobo Torres permitem, por um lado, (1) a contenção do exercício do poder
de tributar, que já surge subordinado aos direitos e garantias fundamentais,
o que confere relevância aos aspectos essenciais da liberdade do cidadão e da
segurança jurídica visando neutralizar a superioridade da parte mais forte
da relação, matéria a ser examinada a partir da Aula 15, quando se inicia o
estudo das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, e,
ao mesmo tempo, (2) afasta o formalismo normativista, que limita e restringe de forma extremada e exacerbada a atuação e o papel do Estado Juiz na
interpretação e aplicação do Direito e do Estado Administração no exercício
dessas mesmas funções e, ainda, em especial, na realização de sua função
normativa regulamentar.
Nesse momento é oportuno destacar que o enquadramento e a aplicação
da disciplina jurídica das relações obrigacionais de direito privado às relações
tributárias, sem temperamentos e adaptações, abrem amplo espaço ao cometimento de abusos por parte daqueles sujeitos passivos que praticam atos e
negócios jurídicos sem o essencial propósito negocial. Nesse passo, agindo
com o objetivo único de evitar ou obstar661 a ocorrência do fato gerador da
obrigação tributária ou de seus elementos constitutivos, não pagar impostos
de acordo com as respectivas capacidades contributivas e em consonância
com a desejável justiça fiscal entre aqueles que se encontram em situação econômica equivalente, o que sobrecarrega a carga tributária daqueles que não
podem ou não se dispõem a praticar atos que visam exclusivamente à redução
do ônus tributário.
A matéria é complexa e controvertida, haja vista a inquestionável necessidade de garantir igualdade material e justiça fiscal ao mesmo tempo em que
seja também assegurada a adequada segurança jurídica, amplo estímulo e
elevado grau de liberdade na escolha da melhor estrutura para o exercício da
atividade econômica, razão pela qual a questão merece novas abordagens ao
longo de todo o curso.
15.2 A ESTRUTURA DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E OS ELEMENTOS DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
Nos mesmos termos de qualquer outra relação jurídica, que une pessoas
em face de um objeto, a relação jurídica tributária liga o sujeito ativo e o su-
661
O parágrafo único do artigo 116 do
Código Tributário Nacional utiliza a
expressão dissimular, dispositivo que
para alguns doutrinadores representa
verdadeira norma geral antielisiva enquanto para outros apenas a aplicação
no campo tributário da vedação à simulação, tão conhecida no âmbito direito
privado, matéria que será examinada
ao longo do curso.
FGV DIREITO RIO
292
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
jeito passivo em torno três espécies de prestações (dar, fazer ou não fazer ou
tolerar algo), por três fundamentos distintos, conforme já salientado acima.
De acordo com o art. 113 do CTN, conforme já salientado, a relação jurídica tributária pode ter caráter patrimonial – ou não – e possuir como causas
remotas: (1) o dever de pagar (1.1) o tributo ou (1.2) a penalidade de caráter
pecuniário; (2) a obrigação de fazer ou não fazer, isto é, de realizar prestações
positivas ou negativas de caráter não patrimonial, exigidas com o objetivo de
garantir o adimplemento das prestações pecuniárias, ou (3) o descumprimento do dever de pagar o tributo (item 1.1) ou de realizar as prestações positivas
e negativas anteriormente citadas (item 2).
A primeira forma em que se manifesta a relação jurídica tributária, que
tem por objeto o dever de pagar o tributo ou a penalidade pecuniária, é
designada pelo §1º do artigo 113 do Código Tributário Nacional (CTN)
como obrigação principal. A característica fundamental dessa primeira modalidade em que se consubstancia e se desdobra a relação jurídica tributária
é a sua natureza patrimonial e pecuniária, atributos tanto (1) do pagamento
do tributo, que é uma das formas de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156, I, do CTN, como (2) do pagamento da penalidade expressa
em unidades monetárias, seja ela decorrente de inadimplemento do dever de
pagar o tributo como aquela incidente em função do descumprimento das
denominadas obrigações acessórias, a serem abaixo explicitadas.
Dessa forma, de acordo com o CTN, a obrigação principal é gênero, que
abrange duas espécies: o dever de pagar o tributo bem como a penalidade
pecuniária. Nesse sentido, o conceito de obrigação principal não se confunde
com aquele utilizado pelo próprio CTN662 para definir o tributo, o qual não
compreende a prestação pecuniária compulsória que constitua sanção de ato
ilícito. De fato, apesar de não se enquadrar no conceito do artigo 3º do CTN
a multa fiscal é um dos objetos da obrigação principal, ao lado do pagamento
do tributo, possuindo, ambos, portanto, caráter patrimonial e pecuniário,
características essenciais da denominada obrigação principal.
Não obstante os distintos fundamentos de validade, do poder de punir e
do poder de tributar, conforme salientado em nota acima, e apesar da multa
fiscal não ser tributo, consoante o disposto no citado artigo 3º do CTN, a
obrigação de pagar a penalidade pecuniária (a multa fiscal) possui natureza
tributária. Essa opção do CTN, uma aparente contradição, visa a submeter
tanto a cobrança do tributo como a das multas ao mesmo regime jurídico
tributário, seja a penalidade pecuniária exigível em decorrência do inadimplemento do dever de pagar o próprio tributo seja em função do descumprimento das denominadas obrigações acessórias, o que permite a aplicabilidade
de diversas regras especiais aos denominados créditos fiscais.
A segunda modalidade em quê se constitui e desdobra a relação jurídica
tributária tem natureza instrumental, viabilizadora do correto pagamento do
662
Dispõe o art. 3º do CTN: “Tributo é
toda prestação pecuniária compulsória,
em moeda ou cujo valor nela se possa
exprimir, que não constitua sanção
de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa
plenamente vinculada”. Ricardo Lobo
Torres entende que a Carta de 1988
constitucionalizou a definição fixada
pelo CTN, não podendo a legislação
infraconstitucional modificar o seu
conceito, ressaltando o jurista, no
entanto, que: “nem por isso se poderá
considerá-la imune a complementações. A grande utilidade da definição
consiste justamente em servir de pauta
de interpretação para o conceito constitucional, pelo que necessita ela própria
de interpretações e de contacto com
outras definições e conceitos tributários. Ademais, a definição do nosso
Código Tributário tem origem doutrinária, pois se baseou fundamentalmente
em conceitos positivistas, inteiramente
superados. E, ainda mais, apresenta o
defeito imenso de se apegar ao critério
de definir segundo o gênero próximo,
sem atentar para as diferenças específicas: os elementos da compulsoriedade
e da atividade vinculada, por exemplo,
embora sejam essenciais à noção de
tributo, pertencem a outras categorias
de entrada, como os preços públicos e
multas.” In. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. IV. Os Tributos
na Constituição. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2007. p.22. Dessa forma, o artigo 3º não apresenta todos os elementos do tributo, apesar de todos aqueles
por ele apontados serem essenciais.
FGV DIREITO RIO
293
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
tributo e da higidez do sistema tributário, denominada de obrigação acessória,
pelo §2º do mesmo artigo 113 do CTN. Incluem-se no conceito de obrigação
acessória tanto as denominadas prestações positivas, assim qualificadas por
consistir num fazer (ex: emitir a nota ou o cupom fiscal, preencher e encaminhar a declaração de rendimentos anualmente ou das operações e prestações
realizadas, etc), como as obrigações de não fazer algo, designadas como prestações negativas (ex: não rasurar os documentos fiscais, a vedação de realizar
importações proibidas, o que aproxima a relação jurídica tributária atinente
ao imposto de importação ao poder de polícia expresso por meio da denominada pena de perdimento, a proibição de transportar mercadorias sem os
respectivos documentos fiscais, o dever de tolerar o exame em livros, arquivos
e documentos comprobatórios da atividade econômica realizada etc).
Repise-se, ainda, que o não cumprimento da obrigação principal (deixar
de pagar o tributo) assim como o inadimplemento pelo sujeito passivo de
obrigação acessória (não emitir nota ou cupom fiscal, não escriturar os livros
fiscais, não prestar as informações exigidas etc), impõe ao Fisco o dever de
propor as penalidades cabíveis, por meio da lavratura do denominado auto
de infração ou de notificação de lançamento de ofício663, inclusive no que se
refere àquela de natureza pecuniária prevista como sanção ao descumprimento da obrigação acessória. Nessa hipótese não há espaço para a realização de
juízo de conveniência e de oportunidade, característica dos atos discricionários, pois a atividade da Administração Tributária é plenamente vinculada à
lei, nos termos do parágrafo único do artigo 142 do CTN, razão pela qual a
causa motivadora da já citada terceira modalidade em que a relação jurídica
tributária se constitui, de natureza sancionatória, pressupõe o descumprimento de alguma das prestações tributárias exigíveis, de natureza patrimonial
e pecuniária (o pagamento do tributo) ou de caráter instrumental (obrigação
acessória). Pelo exposto, constata-se que essa terceira modalidade de constituição da relação jurídica tributária somente ocorre no caso de infração
imputável ao sujeito passivo da obrigação tributária, de natureza primariamente administrativa e de caráter sancionatório.
Conforme já explicitado, a relação jurídica tributária, da mesma forma
que as outras relações jurídicas constituídas por força de lei, surge quando
ocorre na realidade concreta aquela hipótese genérica (indeterminada quanto
às pessoas a que se dirige) e abstrata (indeterminação quanto aos casos a que
se aplica) prevista na norma jurídica. Nesse sentido, a lei tributária estabelece (plano normativo tributário) determinado evento, por meio do qual se
exterioriza capacidade econômica (patrimônio, renda ou consumo), como
condição necessária e suficiente para constituir a relação, a qual se consubstancia e concretiza juridicamente caso verificada a sua ocorrência, o que pode
ser: (1) uma situação de fato; ou (2) uma situação jurídica, a teor do artigo
116 do CTN.
663
O Código Tributário Nacional prevê
nos seus artigos 147 a 150 três modalidades de lançamento: 1) lançamento
por declaração (Art. 147 CTN); 2) lançamento de ofício (Art. 148 e 149), efetuado nas hipóteses descritas no artigo
145 c/c 149, abrangendo a revisão do
lançamento anteriormente efetuado
(Art. 149) e o arbitramento (Art. 148) e ,
por fim, 3) lançamento por homologação (Art. 150). A jurisprudência gaúcha,
como será visto adiante, procurando
adequar as modalidades de lançamento previstas no CTN, formuladas para a
realidade brasileira das décadas de 60
e 70, à realidade do Brasil moderno,
caracterizado por elevado números de
contribuintes e grande velocidade na
troca de informações e registros eletrônicos, prevê, também, na hipótese de
imposto caracterizado por fato gerador
periódico, consubstanciado em uma situação jurídica, uma outra sub-espécie
de lançamento: “lançamento ¨direto¨,
periódico e rotineiro” (Apelação cível
nº 70002607448- Relator: Des. Roque Joaquim Volkweiss – Primeira
Câmara Cível- Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul)
FGV DIREITO RIO
294
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
A relevância da diferenciação entre as duas situações (“de fato” ou “jurídica”) decorre dos diferentes momentos em que se considera ocorrido o fato
gerador, isto é, “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua
ocorrência”, nos termos do artigo 114 do CTN. A identificação temporal
do fato gerador, o momento de sua ocorrência, é, por sua vez, essencial para
determinar o regime jurídico (conjunto de regras e princípios – ex: alíquota,
base de cálculo etc) aplicável à obrigação tributária principal correspondente,
haja vista a possibilidade de alteração da norma tributária ao longo do tempo.
De fato, o lançamento, que será objeto de breve análise abaixo, de acordo
com o disposto no caput do artigo 144 do mesmo CTN, reporta-se à data
da ocorrência do fato gerador e rege-se pela lei então vigente, ainda que
posteriormente a lei tributária disciplinadora seja modificada ou revogada
(tempus regit actum). Assim, a identificação do momento em que ocorre
o fato gerador é requisito à determinação do regime jurídico aplicável ao
lançamento do tributo.
No que se refere à obrigação principal, parece-nos que se enquadra como
situação de fato, aludida no inciso I, do citado artigo 116, por exemplo, “a
comunicação”, que é uma das hipóteses de incidência do ICMS estadual.
Nesse sentido aponta Marco Aurélio Greco,664 partindo do pressuposto de
que o intérprete da Constituição não está vinculado a conceito previamente
fixado pelo Direito Privado:
[...] o conceito de ‘comunicação’ utilizado pela CF-88 não é um conceito
legal (que se extraia de uma determinada lei), mas sim um conceito de fato (que
resulta da natureza do que é feito ou obtido) (Os grifos não são do original)
664
GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000. p.136.
665
SILVA. Op. Cit. p. 230. “Fatura. Do
latim factura, de facere (fazer) significando feitio, quer indicar todo ato de
fazer alguma coisa. Desse modo fatura
e feitura equivalem-se, pois que ambos
exprimem o ato ou ação de fazer ou
executar alguma coisa. Fatura. Na técnica jurídico-comercial, no entanto, é
especialmente empregado para indicar
a relação de mercadorias ou artigos
vendidos, com os respectivos preços
de venda, quantidade e demonstrações
acerca de sua qualidade e espécie, extraída pelo vendedor e remetida por ele
ao comprador. A fatura, ultimando a
negociação, já indica a venda que se realizou. Na técnica mercantil a fatura se
distingue da conta-corrente, do pedido
de mercadorias e das notas parciais. A
fatura é o documento representativo
da venda já consumada ou concluída, mostrando-se o meio pelo qual o
vendedor vai exigir do comprador o
pagamento correspondente, se já não
foi paga e leva o correspondente recibo
de quitação. E quando a venda se estabelece para o pagamento a crédito ou
em prazo posterior, a fatura é elemento
necessário para extração de duplicata
mercantil, desde que caso de sua feitura obrigatória. (...) Faturar. Derivado
de fatura, quer significar o ato de se
proceder à extração ou formação da
fatura, a que se diz propriamente de
faturamento.”
666
Outras situações de fato também podem ser apontadas em nosso sistema
tribuário, como a “entrada” de produtos estrangeiros em território nacional,
situação que determina a incidência do imposto de importação, nos termos
do artigo 19 do CTN; a “circulação de mercadoria”, que ocorre em regra no
momento da “saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda
que para outro estabelecimento do mesmo titular”, hipótese de incidência do
ICMS, nos termos do artigo 12 da Lei Complementar nº 87/96; o “faturamento” da sociedade empresaria, hipótese de incidência da COFINS e do
PIS, nos termos do artigo 195, I, “b” da CR-88, etc. Nesse sentido, aponta
o Dicionário De Plácido e Silva, 665 ao definir as expressões fatura, faturar
e faturamento.
Por outro lado, conforme apontado, a relação jurídica tributária também
pode surgir com a ocorrência no mundo real daquele ato, fato, negócio ou
situação jurídica666 prévia e genericamente prevista em lei abstrata, constitucionalmente fundamentada, que juridiciza determinado evento, o qual, posteriormente, a norma tributária, por sua vez, identifica como manifestação
BARROSO, Luis Roberto. O Direito
Constitucional e a Efetividade de
suas Normas. 6. ed. Rio de Janeiro:
Editora Renovar, 2002. p. 81. Após
apresentar a teoria tridimensional
do Direito de Miguel Reale, aponta o
professor fluminense: “As regras de direito, portanto, consistem na atribuição
de efeitos jurídicos aos fatos da vida,
dando-lhes um peculiar modo de ser.
O direito elege determinadas categorias de fatos humanos ou naturais e
qualifica-os juridicamente, fazendo-os
ingressar numa estrutura normativa.
A incidência de uma norma legal sobre
determinado suporte fático converte-o
em um fato jurídico. Identificam-se, por
conseguinte, como realidades próprias
e diversas o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Os fatos jurídicos resultantes de uma manifestação de vontade
denominam-se atos jurídicos. Cifrando
o objeto de nosso estudo, tem-se que
os atos jurídicos – e, ipso facto, os atos
normativos de todo grau hierárquico
– comportam análise científica em
três planos distintos e inconfundíveis:
o da existência, o da validade e o da
eficácia.”
FGV DIREITO RIO
295
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
de riqueza (capacidade contributiva). Nesse caso, a lei tributária, em circunstâncias específicas por ela determinada, qualifica os mesmos atos, fatos, negócios ou situações jurídicas como hipóteses de incidência de tributo, o que
faz nascer a relação tributária entre o sujeito ativo e o sujeito passivo, como
ocorre, por exemplo, na hipótese da propriedade de determinados bens, situação jurídica ou instituto qualificado e disciplinado pelo Código Civil (ex:
propriedade de um veículo automotor, de um imóvel predial territorial urbano ou de imóvel territorial na zona rural) ou a sua transmissão causa mortis
ou entre vivos, a título gratuito ou oneroso, hipóteses também reguladas pelo
mesmo Codex (ex: a transmissão da propriedade em decorrência de um fato
natural causa mortis ou de um ato voluntário a título gratuito entre vivos
fazem nascer a obrigação tributária relativamente ao ITCMD), etc. Nessas
hipóteses, a lei tributária se utiliza de situações previamente qualificadas e
disciplinadas pelo ordenamento jurídico não fiscal para identificar e caracterizar o fato gerador da obrigação, o que, como visto, é essencial para a definição do seu aspecto temporal, o qual, por sua vez, fundamenta a mencionada
fixação do regime jurídico aplicável (tempus regit actum).
Com o surgimento da relação jurídica, por força da ocorrência do fato gerador, nasce a correspondente obrigação tributária667, a qual possui múltiplas
significações possíveis segundo a doutrina.668 Em termos gerais, é possível
identificar duas grandes linhas de pensamento, com variantes em relação aos
seus desdobramentos, tanto na seara privada como pública.
A primeira, em acepção ampla, fundamenta-se na dicotomia entre o Direito de um lado e a obrigação de outro, razão pela qual, conforme ensina o
professor Washington de Barros Monteiro669:
Direito e obrigação constituem realmente, os dois lados da mesma medalha,
o direito é o avesso do mesmo tecido. Sob esse aspecto, numa imagem feliz,
houve quem afirmasse que as obrigações são como as sombras que os direitos
projetam sobre a vasta superfície do mundo.
Ressalta o mesmo autor, no entanto, que sob o ponto de vista técnico, no
âmbito do Direito Obrigacional, o seu conceito é diverso, e após salientar a
existência de vários sentidos e características, conclui que “efetivamente, obrigação é a relação jurídica de caráter transitório”670, já que não pode “ocorrer
a perpetuidade”, mas sempre estabelecida “entre duas pessoas, credor e devedor”, razão pela qual tem natureza pessoal, com a peculiaridade de, no caso de
inadimplemento, “induzir responsabilidade patrimonial do devedor” 671, já que
o objeto da obrigação – a prestação – “há de ser sempre suscetível de aferição
monetária; ou ela tem fundo econômico, pecuniário, ou não é obrigação, no
sentido técnico legal”. Ao lado do duplo sujeito (elemento subjetivo) e do objeto (elemento material – prestação de dar, fazer ou não fazer), o vínculo jurídico
667
Nos termos a seguir salientados,
parte da doutrina entende que o
surgimento da obrigação tributária
dependeria da pratica de um ato
complementar, o denominado lançamento do tributo, fundamentando-se
na premissa de que caso a obrigação
existisse seria possível pagá-la desde
o seu nascimento, sem a necessidade
da pratica de qualquer outro ato. Em
contraposição a doutrina majoritária
entende que obrigação tributária que
nasce com o surgimento da relação
jurídica tributária encontra-se em sua
fase ilíquida, ou seja, a obrigação já
existiria, mas pendente de liquidação
para tornar o crédito tributário exigível.
668
Sobre o assunto vide, entre outros:
AMARO, Luciano. Direito Tributário
Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Saraiva, 2005.p. 243245; COSTA, Regina Helena. Curso de
Direito Tributário: Constituição e
Código Tributário Nacional. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. pp. 172-177.
669
MONTEIRO, Washington de Barros.
Curso de Direito Civil. Direito das
Obrigações. 10 ed. São Paulo: Saraiva,
1975. p. 3.
670
MONTEIRO. Op. Cit. p.8.
671
MONTEIRO. Op. Cit. p.9.
FGV DIREITO RIO
296
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
comporia o terceiro elemento essencial da obrigação, posto unir os dois sujeitos
em torno ou por causa da prestação, e fixar, ao mesmo tempo, o dever de a
pessoa obrigada cumprir ou realizar a prestação (debitum), bem como estabelecer a sua responsabilidade, em caso de inadimplemento (obligatio), isto é, a
submissão de seu patrimônio como garantia de última instância.
Nesse sentido a obrigação, estabelecida entre o devedor e o credor, seria,
para o Washington de Barros Monteiro 672, a própria relação jurídica, sempre
de caráter patrimonial, transitória, cujo objeto consistiria em uma prestação
pessoal econômica, positiva ou negativa, sendo o patrimônio do devedor a
garantia do seu adimplemento. Percebe-se, desde já, que a obrigação assim
qualificada, inviabiliza ou pelo menos causa perplexidade diante do que se
disse anteriormente quanto ao determinado pelo CTN (no artigo 113), especificamente no que se refere aos denominados deveres instrumentais do
contribuinte (ex: a emissão da nota fiscal etc.), posto qualificá-los como obrigações – tributárias acessórias –, apesar da não possuírem caráter patrimonial
nem serem expressas em unidades monetárias.
Inúmeros autores673, entretanto, apesar de mantida a patrimonialidade
e a estrutura dos elementos constitutivos, dissociam o conceito de relação
daquele aplicável à obrigação, ao caracterizá-la, a obrigação, como vínculo
jurídico, fundamentando o argumento a partir da etimologia da palavra:
O recurso à etimologia é bom subsídio: obrigação, do latim ob + ligatio,
contém uma idéia de vinculação, de liame, de cerceamento da liberdade de ação,
em benefício de pessoa determinada ou determinável (...)
É certo que alguns se insurgem contra o laço ou o vínculo, ali referido,
preferindo substituir-lhe “relação ou situação jurídica”. Inevitável retorno faz,
entretanto, sentir na obrigação a idéia de vinculação, acentuada nas Institutas:
(...) obrigação é o vínculo jurídico ao qual nos submetemos coercitivamente,
sujeitando-nos a uma prestação (...) A predominância do vinculum iuris é inevitável. Cremos que as tentativas de substituí-lo pela idéia de relação não passam
de anfibologia, já que na própria relação obrigacional ele revive (...)
Também nós, procurando um meio sucinto, definimo-la, sem pretensão de
originalidade, sem talvez elegância do estilo e sem ficarmos a cavaleiro das críticas: obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir
de outra uma prestação economicamente apreciável.(...)
Por outro lado, e numa segunda ordem de idéias, a vida social conhece números atos cuja realização é indiferente ao direito. Se a obrigação pudesse ter
por objeto prestação não-econômica, faltaria uma separação nítida entre ela e
aqueles atos indiferentes, e é precisamente a pecuniariedade que extrema a obrigação em sentido técnico daqueles deveres que o direito institui, numa órbita
diferente, como exempli gratia, a fidelidade recíproca dos cônjuges, imposta pela
lei, porém exorbitante da noção de obrigação.
672
MONTEIRO. Op. Cit. p.3-10.
673
PEREIRA, Op. Cit. p.2-5 e 17.
FGV DIREITO RIO
297
DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I
Caracterizada como a própria relação jurídica, como visto anteriormente,
ou como o vínculo jurídico, a obrigação de natureza privada sempre gira em
torno de uma prestação de caráter patrimonial passível de ser expressa em
unidades monetárias.
Assim sendo, pode-se concluir que, ou o CTN qualifica indevidamente o
dever instrumental como obrigação acessória, posto envolver exigência não
patrimonial, ou, em sentido diverso, não há vinculação necessária entre o
conceito de obrigação atribuído pelo direito privado àquele aplicável na seara
tributária, haja vista que no direito tributário a patrimonialidade não consubstancia elemento ou requisito necessário à constituição do vínculo obrigacional, seja por que: (1) a Constituição da República de 1988, fundamento
de validade de todo ordenamento jurídico, por meio de seu artigo 146, III,
“b”, autorizou a lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de
legislação tributária, especialmente sobre “obrigação tributária”, e o CTN definiu o instituto para efeitos tributários de forma distinta daquele construído
no campo privado, ou (2) pelo fato de que a obrigação não constitui uma
categoria jurídica axiomática da Teoria Geral do Direito, aplicável a todos
os seus ramos indistintamente, mas sim um instituto cujas características e
contornos são fixados pelo próprio Direito positivo em cada circunstância específica. Essa questão é controvertida na seara tributária, conforme identifica
Regina Helena Costa674:
Lembraremos primeiro, os ensinamentos da doutrina que leva em consideração as construções teóricas laboradas no âmbito do Direito Civil, a qual salienta
a patrimonialidade do vínculo obrigacional. Assim é que, invocando a clássica
lição civilista, “obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa
pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável.
De acordo com tal ótica, pode-se vislumbrar, no âmbito tributário, duas
espécies de relações jurídicas.
A primeira delas é a relação jurídica obrigacional ou obrigação tributária, consubstanciada no vínculo abstrato que surge pela imputação normativa, mediante
o qual o sujeito ativo ou credor – o Fisco – pode exigir do sujeito passivo ou devedor – o contribuinte – uma prestação de cunho patrimonial denominada tributo.
A segunda modalidade de relação jurídica é a relação de cunho não obrigacional, vale dizer, o vinculo abstrato que surge pela imputação normativa mediante
o qual o sujeito ativo ou o Fisco pode exigir do sujeito passivo ou contribuinte uma prestação consistente na realização de um comportamento, positivo ou
negativo, destinado a a
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DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I