DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AUTOR: LEONARDO DE ANDRADE COSTA COLABORAÇÃO: ANA ALICE DE CARLI GRADUAÇÃO 2012.1 Sumário Direito Tributário e Finanças Públicas I AULA 1 – PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA. AS NECESSIDADES PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO. BREVE HISTÓRICO DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS EM FACE DA EVOLUÇÃO SOCIAL. ...................................................................... 3 AULA 2 – ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO NA FEDERAÇÃO. ..................................................................................... 23 AULA 3 – O ESTADO FINANCEIRO, A REPÚBLICA E O FEDERALISMO FISCAL. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES101. . 40 AULA 4 – O PLANEJAMENTO E AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS (PPA, LDO E LOA) ...................................................................... 55 AULA 5 – OS CRÉDITOS ORÇAMENTÁRIOS E ADICIONAIS ............................................................................................. 83 AULA 6 – A DESPESA PÚBLICA, A EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO E A RESPONSABILIDADE FISCAL. ............................................ 98 AULA 7 – O FINANCIAMENTO DOS GASTOS, AS OPERAÇÕES DE CRÉDITO E A DÍVIDA PÚBLICA EM FACE DO EQUILÍBRIO FISCAL. .. 116 AULA 8 – AS TRANSFERÊNCIAS CONSTITUCIONAIS E A PARTILHA DE RECEITA TRIBUTÁRIA NO FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO.....127 AULA 9 – A RECEITA PÚBLICA NO ÂMBITO DA TEORIA GERAL DOS INGRESSOS PÚBLICOS. ................................................. 146 AULA 10 – O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA. ......................................................... 167 AULA 11 – O PODER DE TRIBUTAR, A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E A CAPACIDADE TRIBUTÁRIA ATIVA ................................. 180 AULA 12 – A PARAFISCALIDADE COMO TÉCNICA ADMINISTRATIVA PARA DESENVOLVER ATIVIDADES DE INTERESSE PÚBLICO E O TRIBUTO NA CR-88 ...................................................................................................... 210 AULA 13– ASPECTOS ECONÔMICOS DA TRIBUTAÇÃO E OS DIFERENTES SUBSTRATOS DE INCIDÊNCIA: O PATRIMÔNIO, A RENDA E O CONSUMO..................................................................................................................................... 225 AULA 14 – A POLÍTICA FISCAL E A EXTRAFISCALIDADE: A NECESSÁRIA COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE EFICIÊNCIA ECONÔMICA, JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E A CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUTOS. ............................................................... 255 AULA 15 – A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA, OS ELEMENTOS E AS DIVERSAS FASES DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. O MOMENTO DE FIXAÇÃO DO REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO. .................................................................................... 287 AULA 16 – AS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO PODER DE TRIBUTAR. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS. A LEGALIDADE E A NECESSÁRIA PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA JUSTIÇA FISCAL. ............ 313 AULA 17– A ISONOMIA E A CAPACIDADE ECONÔMICA DO CONTRIBUINTE. DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DO NÃO CONFISCO. ......... 336 AULA 18 – A IRRETROATIVIDADE, AS ANTERIORIDADES E A LIBERDADE DE TRÁFEGO. ...................................................... 352 AULA 19 – ASPECTOS GERAIS DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS, DA NÃO INCIDÊNCIA E DAS ISENÇÕES. ................................. 368 AULA 20 – A IMUNIDADE RECÍPROCA, DOS TEMPLOS, DOS PARTIDOS POLÍTICOS, DOS SINDICATOS, DAS ENTIDADES DE EDUCAÇÃO E DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ......................................................................................... 395 AULA 21 – A IMUNIDADE DOS LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E O PAPEL DESTINADO A SUA IMPRESSÃO E AS DEMAIS VEDAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR ............................................................................ 427 AULA 22 – AS FONTES DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS: A LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. A CONSTITUIÇÃO E A EMENDA CONSTITUCIONAL. AS DENOMINADAS “CLÁUSULAS PÉTREAS” ............................................. 447 AULA 23 – AS LEIS COMPLEMENTARES, OS DECRETOS LEGISLATIVOS, OS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS, AS LEIS ORDINÁRIAS E DELEGADAS, AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E AS RESOLUÇÕES DO CONGRESSO NACIONAL E DO SENADO FEDERAL..........472 AULA 24 – O REGULAMENTO E OS ATOS DO PODER EXECUTIVO COM FORÇA DE LEI MATERIAL. AS DEMAIS NORMAS COMPLEMENTARES. ......................................................................................................................................... 499 ANEXO – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E EXERCÍCIOS ............................................................................................ 502 AVALIAÇÃO: DUAS PROVAS ESCRITAS (P1 E P2) COM CONSULTA EXCLUSIVA À LEGISLAÇÃO DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 1 – PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA. AS NECESSIDADES PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO. BREVE HISTÓRICO DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS EM FACE DA EVOLUÇÃO SOCIAL. 1.1 PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA A compreensão de cada parte que compõe o objeto de estudo das Finanças Públicas1 e do Direito Tributário (juízo deôntico prescritivo do dever-ser), assim como da interação de seu conjunto e a realidade social (juízo ôntico descritivo do ser), pressupõe o entendimento de alguns elementos de natureza estruturante da atividade financeira do Estado e bem assim do caráter multifacetado dos orçamentos, das despesas públicas, dos tributos e das demais receitas públicas não tributárias. Conforme será visto, esses temas podem ser examinados a partir do ponto de vista estritamente normativo, do enfoque exclusivamente econômico ou, ainda, da perspectiva em que o Direito, a Economia e a Política se correlacionam e interpenetram. Destacam-se entre esses elementos, todos essenciais ao entendimento da matéria e cuja análise efetivar-se-á ao longo do curso: 1. os princípios fundantes do ordenamento jurídico brasileiro voltados para a pulverização e contenção do exercício dos poderes estatais, destacando-se entre eles o sistema de distribuição de funções, de independência e de harmonia entre os denominados “Poderes” da República2, assim como a Forma de Estado3 Democrático4 de Direito, usualmente denominados de Princípios Republicano, Federativo e Democrático, respectivamente, além da Forma e do Sistema de Governo5 implementados; 2. a função de planejamento exercida pelo Estado6 e a sua ligação com as finanças públicas por meio dos orçamentos,7 instrumentos necessários para a realização da atividade financeira pública; 3. as diversas estratificações, fases e dinâmica dos gastos públicos bem como das múltiplas fontes para o seu financiamento; 4. os diferentes substratos econômicos8 de incidência de tributos e os correspondentes eventos juridicamente qualificados pela norma tributária9 a ensejar a instauração da relação jurídica-tributária, isto é, a interligação entre as denominadas “bases econômicas de tributação” e as correlatas “hipóteses jurídicas de incidência dos tributos”; 5. as múltiplas possibilidades de repercussão econômica dos tributos sobre os diversos agentes econômicos, os chamados contribuintes de fato, que arcam com o ônus ou encargo financeiro do tributo (eg. consumidores finais de bens e serviços, proprietários, locadores, 1 Nos termos em que será examinado nesta aula, as Finanças Públicas e o Direito Financeiro possuem o mesmo objeto de estudo, isto é, a atividade financeira do Estado. No entanto, a disciplina jurídica é normativa e eminentemente prática, ao passo que a ciência das finanças é especulativa, não possuindo caráter disciplinador, pois é pré-normativa e atinente ao campo da economia. Não quer dizer, entretanto, que a ciência jurídica possua um fim em si mesma e possa ser estudada, compreendida e aplicada sem a permanente interação com os outros campos do conhecimento formal e da realidade que se interpenetram. De fato, a capacidade humana de compreender a realidade é limitada, o que suscita as inevitáveis segmentações dos objetos e relações sob exame e bem assim a criação de modelos simplificados e parciais para a sua análise. 2 Vide artigo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de agora em diante simplesmente CR-88, cujo Título IV intitula-se “Da Organização dos Poderes”. A parte relevante do tema para o presente estudo será apresentada na Aula 3 e detalhado na Aula 4. 3 No caso brasileiro, a adoção da forma de Estado Federado está expressa, em especial, nos artigos 1º, 18 e 60, §4º, I, da CR-88. O Federalismo Fiscal será introduzido na Aula 2 ocasião em que será iniciado o estudo do Capítulo II, do Título VI, da CR-88 (art. 163 a 169), intitulado “Das Finanças Públicas”. O exame do atual regime de repartição de receitas tributárias na Federação brasileira será aprofundado na Aula 8 e a apresentação do sistema de atribuição de competências tributárias entre os entes políticos no Brasil será realizado na Aula 11, ocasião em que será iniciada a análise do Capítulo I, do Título VI, da CR-88, denominado “Do Sistema Tributário Nacional” - art. 145 a 162 da CR-88. 4 O estudo da dinâmica e da ratio subjacente ao processo político democrático é de fundamental importância para a compreensão de quais deveriam ser, sob o ponto de vista teórico, as atribuições de cada um dos denominados Poderes da República na definição e execução das políticas públicas a serem implementadas pelos entes políticos, assim como o papel do planejamento e dos orçamentos na sociedade brasileira. 5 Vide art. 2º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Essa questão é importante, por exemplo, para a compreensão dos possíveis efeitos sobre o exercício da competência tributária privativa dos entes políticos subnacionais (Estados, Distrito Federal e Municípios), na hipótese em FGV DIREITO RIO 3 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I locatários, industriais, produtores agrícolas, comerciantes, prestadores de serviços em suas diversas modalidades, financeiros, manual etc.), e que podem ser ou não a mesma pessoa designada em lei como o sujeito passivo da relação jurídica-tributária (o denominado contribuinte de direito, que possui o débito com o Fisco e tem o dever de extinguir o crédito tributário); 6. os limites à atuação do Estado atual em face dos direitos e garantias do cidadão contribuinte; 7. as fontes da legislação tributária, as diferentes estruturas normativas de imposição10 e a aplicação da norma jurídica tributária à luz da indissociável correlação entre o Direito e a Economia. A necessidade do prévio entendimento desses elementos, que englobam múltiplas disciplinas, decorre do fato de que as Finanças Públicas e a Tributação são subsistemas tanto do Direito como da Economia, e, ao mesmo tempo, expressão e resultante de um longo processo de sedimentação Política e Cultural de determinado povo, localizado em território definido em dado momento histórico, sob as inevitáveis influências das múltiplas interações dinâmicas de âmbito local, regional e global. No entanto, se por um lado existe o requisito do exame multidisciplinar e interdisciplinar das questões envolvidas, deve-se destacar que as normas econômicas não possuem caráter impositivo formal por força de sua simples existência, razão da indispensabilidade da norma jurídica, pois somente esta reveste a coercitividade muitas vezes necessária à realização e disciplina da atividade financeira estatal e, ao mesmo tempo, pode, também, fixar os limites e os parâmetros para a atuação do Estado de Direito, reduzindo o risco de descumprimento11 das “regras do jogo” pelas partes que interagem nas relações financeiras e tributárias. Cumpre, ainda, ressaltar que o estudo das Finanças Públicas possui caráter expeculativo e abrange toda a atividade financeira do Estado, isto é, os orçamentos, as despesas, a dívida pública bem como as diferentes formas de financiamento dos gastos públicos, destacando-se entre elas os tributos, as receitas decorrentes do patrimônio do próprio Estado e o crédito público. Destaque-se, entretanto, que, diferentemente do que ocorre com o Direito Financeiro, o estudo das Finanças Públicas não tem caráter normativo, tendo em vista ter como objetivo precípuo a análise econômica e o estudo dos possíveis impactos da atividade financeira do Estado. Já o Direito Tributário, que no passado recente se encontrava formalmente inserido no escopo de estudo do Direito Financeiro, cuida tão somente do tributo e da relação jurídica tributária. Dessa forma, a disciplina jurídica dos tributos se ocupa apenas de um subconjunto pertencente ao âmbito da estrutura da matéria financeira estatal, tendo em vista tratar tão somente de que os tratados internacionais de natureza tributária firmados pelo presidente da República Federativa do Brasil, o qual é ao mesmo tempo chefe do Poder Executivo da União e chefe de Estado – da República Federativa do Brasil, estabeleçam isenções e benefícios fiscais de tributos estaduais e municipais. Sobre o tema importante ressaltar a decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, no Recurso Extraordinário (RE) 229.096-0, acórdão que será examinado na Aula 24. 6 O Estado atua, além do planejamento, que será objeto de estudo na Aula 4, na fiscalização e no incentivo, e bem assim como agente normativo e regulador da atividade econômica (art.174 da CR-88), na prestação de serviços públicos (art. 175 da CR-88), na exploração da atividade econômica (art. 173 da CR-88), em regime de monopólio ou não (art. 177 da CR-88), no exercício do poder de polícia (art. 78 da Lei nº 5.172/66, norma denominada de Código Tributário Nacional (CTN) pelo Ato Complementar n 36/67 e recepcionada com status de lei complementar pela CR-88, conforme será examinado a partir da Aula 8). 7 O Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). 8 São três os substratos econômicos de incidência tributária: o Patrimônio, a Renda e o Consumo. Ressalte-se, entretanto, que determinado tributo formulado e desenhado para atingir determinada base econômica pode incidir, no mundo real, sobre outro substrato diverso, por força das condições de mercado ou, ainda, em função das normas jurídicas aplicáveis ou mesmo de sua interpretação. A matéria será inicialmente examinada na Aula 11 e aprofundada nas Aulas 13 e 17. 9 Na aula 15 será examinada a técnica adotada pelo Código Tributário Nacional (CTN) sob o ponto de vista jurídico de incidência para criar a relação e a obrigação tributária, o que se realiza pela utilização tanto de situações de fato como de situações jurídicas previamente qualificadas pelo ordenamento. 10 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da Imposição Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. (Coordenador). Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1. Ensina o eminente autor: “A imposição tributária, como decorrência das necessidades do Estado em gerar recursos para sua manutenção e a dos governos que o administram, é fenômeno que surge no campo da Economia, sendo reavaliado na área das Finanças Públicas e normatizado pela Ciência do Direito. Impossível se faz o estudo da imposição tributária, FGV DIREITO RIO 4 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I uma espécie de receita pública coativa de regime jurídico diferenciado. No entanto, o Direito Tributário desenvolveu-se de tal forma nos últimos 40 anos que a maior parte da doutrina12 aponta no sentido da sua “autonomia”, ainda que relativa13, haja vista que os tributos gozariam de: 1. autonomia científica – existência de um conjunto de regras, princípios e institutos próprios, inaplicáveis aos outros ramos do direito (ex: o lançamento para constituir o crédito tributário, o qual será objeto de estudo nos próximos semestres; os princípios da anterioridade clássica e nonagesimal, a serem estudados na Aula 18 etc.); 2. autonomia normativa – As Constituições de 1946 (art. 5°, XV, b) e de 196714 (art. 8°, XVII, c) apenas fixavam a competência da União para legislar sobre normas gerais de Direito Financeiro, o qual se consubstancia como a disciplina jurídica da atividade financeira, sem haver menção expressa ao Direito Tributário. A Carta Magna de 1988, por sua vez, confere status diferenciado ao Direito Tributário. O artigo 24, I, da CR-88 dispõe que compete à União, aos Estados e ao DF legislar concorrentemente sobre Direito Tributário e, também, Direito Financeiro, de forma apartada e individualizada. Ainda, o artigo 163, I, e o artigo 146, ambos da CR-88, conferem à lei complementar a atribuição, respectivamente, para dispor sobre Finanças Públicas e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária; e 3. autonomia didática – a maioria dos cursos universitários no Brasil oferecem o curso de Direito Tributário, não sendo abordada a matéria financeira ou apenas examinada tangencialmente. Em suma, apesar do Direito Financeiro e as Finanças Públicas possuírem o mesmo objeto de estudo, isto é, a atividade financeira do Estado (AFE), a primeira disciplina é eminentemente normativa e a outra marcadamente especulativa. Em sentido análogo, o estudo dos tributos é objeto de exame tanto do Direito Tributário como da Tributação, apesar do enfoque do primeiro ser jurídico e do segundo ser econômico. Inquestionável, entretanto, que somente é possível compreender os tributos e a tributação no contexto das Finanças Públicas em sua interação com a Política, o Direito e a Economia, fenômenos indissociáveis15 e usualmente analisados separadamente por comodidade ou questões de ordem didática. O quadro abaixo sumariza de forma esquemática o objeto de estudo do curso bem como a interação entre as diversas disciplinas mencionadas: em sua plenitude, se aquele que tiver de estudá-la não dominar os princípios fundamentais que regem a Economia (fato), as Finanças Públicas (valor) e o Direito (norma), uma vez que pretender conhecer bem uma das ciências, desconhecendo as demais, é correr o risco de um exame distorcido, insuficiente e de resultado, o mais das vezes incorreto.” 11 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983. Tradução de Gustavo Bayer. p. 110 e 115. Assevera o autor que: “a normatização dá continuidade a uma expectativa, independentemente do fato de que ela de tempos em tempos venha a ser frustrada. Através da institucionalização o consenso geral é suposto, independentemente do fato de não existir uma aprovação individual (...) O direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas. O alívio consiste na disponibilidade de caminhos congruentemente generalizados para as expectativas, significando uma eficiente indiferença inofensiva contra outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco de expectativa contrafática”. A contenção e os limites da atuação estatal na seara tributária serão abordados durante todo o curso, em especial após a Aula 16. 12 ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário. 15 ed. atual. com alterações no CTN e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.151. “Parece-nos indiscutível a autonomia do Direito Tributário porque possui conceitos, princípios e institutos jurídicos que lhe são próprios e distintos dos demais ramos do direito”. O autor examina detalhadamente a questão no Capítulo VI, p. 135-162. 13 Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p.1. Cf. ensina o autor: “Dado o extraordinário desenvolvimento do direito atinente aos tributos, ganhou foros de ‘autonomia’ o conjunto de princípios e regras que disciplinam essa parcela da atividade financeira do Estado, de modo que é possível falar no direito tributário, como ramo ‘autônomo’da ciência jurídica, segregado do direito financeiro. Veremos, mais adiante, a relatividade da ‘autonomia’ do direito tributário, a exemplo do que se dá com os demais ramos do direito.” 14 A redação original do artigo 8°, XVII, c, da Constituição de 1967 possuía a seguinte redação: “Art. 8° - Compete à União: I - (...); XVII – legislar sobre: a) (...); c) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário”. A alínea “c” foi alterada pela Emenda Constitucional n° 1, de 1969, que passou a expressar: “c) normas gerais sobre orçamen- FGV DIREITO RIO 5 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I to, despesa e gestão patrimonial e financeira de natureza pública; de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário”. Já a Emenda Constitucional n° 7, de 1977, que conferiu nova redação ao dispositivo, dispunha: “c) normas gerais sobre orçamento, despesa e gestão patrimonial e financeira de natureza pública; taxa judiciária, custas e emolumentos remuneratórios dos serviços forenses, de registros públicos e notariais; de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; de regime penitenciário”. O inciso II e IV, do citado artigo 24 da atual Carta de 1988, estabelecem competência legislativa concorrente dos entes políticos para legislar sobre “orçamento” e “custas dos serviços forenses”. 15 1.2 AS FINANÇAS EM SEUS MÚLTIPLOS ASPECTOS Fixadas essas noções preliminares, torna-se importante salientar o sentido e o alcance da expressão finanças para melhor compreensão da matéria. Em sentido comum16, as finanças expressam a situação de uma pessoa natural ou jurídica, de direito público ou de direito privado, relacionadas aos recursos econômicos disponíveis. Os bens e direitos, meios necessários para a satisfação dos mais variados desejos e objetivos de quem os possui, podem ter diversos graus de liquidez, ou seja, a pessoa pode dispor desde moeda corrente nacional17 ou estrangeira até imóveis de difícil alienação, seja em função das exigências legais para a autorização de sua disposição ou em função de condições de mercado. Por outro lado, é importante ressaltar a necessidade de que seja também identificada, para as mesmas pessoas, titulares dos ativos, a existência e o montante de possíveis obrigações vinculadas a essas disponibilidades, isto é, se há também obrigações e dívidas assumidas, tendo em vista a relevância de que seja determinada a posição patrimonial líquida (capital próprio).18 Assim, a determinação da posição econômica e financeira de uma pessoa, de direito público ou privado, requer: (1) a definição de mecanismos para a quantificação monetária19 dos ativos e passivos, à exceção daqueles valores mantidos em caixa ou depositados em instituições financeiras, bem como dos passivos já expressos em moeda corrente; e (2) de um sistema para a sua evidência, controle e gerenciamento ao longo do tempo. Idealmente, o sistema adotado para evidenciar as finanças, públicas ou privadas, deve compreender grupos de contas que expressem a realidade da atividade da organização, um regime de registro e contabilização dos atos e fatos relevantes, bem como demonstrativos financeiros que possibilitem o Para a compreensão do tema recomenda-se a revisão da Aula 3 do Material didático de Direito Constitucional I (2010.2) – intitulada Conceito de Sistema. 16 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda. 3ª ed. totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1999. “finanças. A situação econômica de uma instituição, empresa, governo ou indivíduo, com respeito aos recursos econômicos disponíveis, esp. dinheiro, ou ativo líquido; ou condição financeira”. 17 O artigo 48, II, da Constituição da República de 1988 fixa a competência do Congresso Nacional para dispor sobre “emissões de curso forçado” e o artigo 315 do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10.01.2002) estabelece que “as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente pelo valor nominal” salvo os casos previstos em legislação especial, a teor do disposto no artigo 318 do mesmo CC. Já o artigo 1° da Lei n° 10.192/2001 determina que o pagamento das obrigações pecuniárias exequíveis no território nacional deve ser realizado em real, ressalvadas as exceções previstas na legislação. Nos termos dos artigos 5° e 42 da Lei n° 8.666/1993, a qual dispõe sobre as licitações e os contratos públicos, todos os valores, preços e custos utilizados em licitações devem ter como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvada a hipótese de concorrência de âmbito internacional, cujo edital deve ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. 18 Sob o ponto de vista jurídico Caio Mário da Silva Pereira pontua que “A idéia de patrimônio não está perfeitamente aclarada entre os modernos juristas, FGV DIREITO RIO 6 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I eficiente controle e a gestão da atividade da entidade e, ao mesmo tempo, aptos a informar adequadamente a situação: (a) Patrimonial, em determinado momento do tempo, bem como as suas variações entre períodos determinados (mutações ou variações patrimoniais); (b) Financeira, propriamente dita, adequada ao gerenciamento de liquidez de curto prazo e do fluxo de caixa necessário ao financiamento das atividades operacionais correntes e de investimentos, bem como da estrutura de capital e de solvência de longo prazo; e (c) Orçamentária, que expresse se foram, e em que grau, atingidas as metas estabelecidas, além de permitir o gerenciamento das ações planejadas, tendo em vista que o orçamento moderno (orçamentoprograma) é instrumento essencial de ligação entre o planejamento das ações e as finanças, permitindo a operacionalização efetiva e concreta dos planos de trabalho, na medida em que os monetariza, isto é, quantifica-os em moeda permitindo o estabelecimento de cronogramas físico-financeiros. Nesse sentido, cabe salientar que o correto entendimento dos mecanismos de quantificação monetária dos bens, direitos e obrigações, assim como das respectivas demonstrações financeiras que os evidenciam, é pressuposto à compreensão das Finanças Públicas e, em especial, de aspectos essenciais da tributação da renda, que ao lado do consumo e do patrimônio consubstanciam os substratos econômicos de incidência tributária (vide nota 8). Também é preliminar ao exame da matéria a distinção entre dois modelos de medidas adotados em análise econômica, denominadas, respectivamente, (1) stock measure, relacionado ao conceito de estoque, e (2) flow measure, vinculado à quantificação de fluxos. O fluxo é definido ao longo de um período específico de tempo (por ano, mês, dia etc.), ao passo que o estoque refere-se a um dado momento no tempo, e não durante e ao longo de um dado período de tempo. Essa análise permite o acompanhamento da execução do que foi programando, por meio da verificação da execução dos orçamentos, o que explicita a situação patrimonial e financeira em um dado momento do tempo e ao longo do período. Assim, em termos gerais e de forma esquemática, visando à compreensão dos elementos constitutivos básicos da análise da situação patrimonial e financeira de uma organização, pode-se representar o que se deseja alcançar no momento da seguinte forma: talvez em razão de não ter o direito romano fixado com segurança as suas linhas. Segundo a noção corrente, patrimônio seria o complexo das relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis economicamente. (...) Daí dizer-se que o patrimônio não é apenas o conjunto de bens. (...) Noutros termos, o patrimônio se compõe de um lado positivo e de outro negativo. A idéia geral é que a noção jurídica de patrimônio não importa balancear a situação, e apurar qual é o preponderante. Por não se terem desprendido desta preocupação de verificar o ativo, alguns se referem ao patrimônio líquido, que exprime o saldo positivo, uma subtração dos valores passivos dos ativos. Ao economista interessa a verificação. Também ao jurista tem de cogitar dela às vezes, quando tem de apurar a solvência do devedor, isto é, a aptidão econômica de resgatar seus compromissos com os próprios haveres. Mas, em qualquer hipótese o patrimônio abraça todo um conjunto de valores ativos e passivos, sem indagação de uma eventual subtração ou de um balanço”. In. PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19ª ed. Volume I. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2002. p. 245. 19 Princípio Contábil do denominador comum monetário. FGV DIREITO RIO 7 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Ao fluxo de receitas é contraposto o conjunto de despesas do período, o que permite determinar a situação líquida do patrimônio, ao final do cada exercício, bem como as variações patrimoniais entre dois momentos determinados no tempo. Cabe ressaltar, entretanto, a possibilidade de existir fluxo financeiro sem impacto no Patrimônio Líquido, o que será examinado durante o curso. No exemplo, não foi alterada a situação do passivo ao longo do período a fim de facilitar essa análise inicial. Saliente-se, que parte da dificuldade da gestão e do controle financeiro e patrimonial, público e privado, decorre do fato de que a despesa ou a receita gerada em determinado exercício – sob o ponto de vista jurídico ou econômico – nem sempre é realizada financeiramente no mesmo período, podendo ocorrer, portanto, desconexões entre: (1) o fluxo monetário; e (2) a contabilização do evento que altera a situação patrimonial líquida. Nesse sentido, importante frisar que o curso deste semestre se inicia com esta visão geral da matéria e da Atividade Financeira do Estado ao longo da história. Até a Aula 10 serão abordados os diversos temas atinentes ao campo tradicionalmente definido como pertinente ao Direito Financeiro e às Finanças Públicas, tais como o Financiamento dos Gastos e a Receita Pública no âmbito da Teoria Geral dos Ingressos Públicos, a Despesa Pública, a Responsabilidade Fiscal, os Orçamentos (a Lei do Orçamento Anual – LOA, a Lei do Plano Plurianual – PPA e a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO), o Controle da Execução Orçamentária, a Dívida Pública e o sistema de Repartição Constitucional de Receitas Tributárias. Uma vez apresentados os elementos que compõem o campo financeiro e bem assim o delineamento do perfil do Federalismo Fiscal brasileiro e do sistema de repartição de funções entre os denominados Poderes da República, a partir da Aula 11, com o estudo do FGV DIREITO RIO 8 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Poder de Tributar e da Competência Tributária, será iniciado o estudo específico da Tributação e do Direito Tributário em seus aspectos estruturais, o que envolve o exame da Parafiscalidade, dos substratos econômicos de incidência, da Extrafiscalidade e da formação da relação jurídica-tributária. Na aula 16 é iniciado o estudo das denominadas limitações constitucionais ao Poder de Tributar, o que pressupõe a distinção entre os institutos da isenção, da não incidência e das imunidades tributárias. De fato, ao lado dos diversos princípios que visam proteger o contribuinte, as imunidades consubstanciam, de acordo com a linguagem constitucional, limitações constitucionais ao Poder de Tributar. Por fim, será examinado o conceito de legislação tributária e as suas diversas espécies, considerando a necessidade de estudar a sua aplicação no espaço e no tempo, matéria que será aprofundada nos próximos semestres – Direito Tributário e Finanças Públicas II e III. 1.3 AS NECESSIDADES PÚBLICAS E A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO. Os indivíduos possuem interesses e demandas variadas, as quais, em seu conjunto, formam o que se denomina de necessidades gerais ou sociais20. Nesse sentido, as demandas coletivas seriam a resultante abstrata do somatório das necessidades individuais. O Estado, entretanto, considerando, por um lado, a limitação21 dos recursos disponíveis (naturais, humanos, tecnológicos, financeiros etc.), e, por outro, as demandas individuais e sociais infinitas, elege, por meio do processo político, que varia de forma e conteúdo no tempo e no espaço, aquelas para as quais alocará esforços visando ao seu atendimento: são as chamadas necessidades públicas. Assim, uma vez fixado normativamente o dever do Estado em realizar apenas algumas demandas coletivas politicamente determinadas – as políticas públicas-, o que ocorre modernamente por meio dos orçamentos, conforme será estudado nas próximas aulas, as mesmas se convolam e transmudam em necessidades públicas, a serem satisfeitas por meio dos serviços públicos, os quais se qualificam como o conjunto de bens e pessoas sob a responsabilidade do Estado. Os serviços públicos, que são instrumentos do Estado para o alcance dos fins a que se propõe, se realizam, atualmente, quase que exclusivamente, por meio da utilização da atividade financeira do Estado. Nesse sentido ensina Aliomar Baleeiro22 que: se, em tempos remotos, foi usual, e hoje, excepcionalmente, ainda se verifica a requisição pura e simples daquelas coisas e serviços dos súditos, ou a colaboração gratuita e honorífica destes nas funções governamentais em verdade, na fase contemporânea, o Estado costuma pagar com dinheiro os bens e o trabalho necessários ao desempenho da sua missão. É o processo da despesa pública, que 20 Fábio Nadal e Marcio Cozatti apontam no sentido de que “a necessidade pública não se confunde com necessidade individual (cujo grupamento dá lugar às necessidades gerais que são, por excelência, homogêneas) e necessidade coletiva (não revestida de homogeneidade e que surge da contraposição de interesses)”. NADAL, Fábio e COZATTI, Márcio Faria. Direito Financeiro simplificado para concursos públicos. São Paulo: Impactus, 2008. p. 19. 21 Importante salientar a existência da denominada reserva do possível, adotada pela jurisprudência alemã, princípio associado à constatação de que todos os direitos têm custo e que os recursos públicos são limitados, razão pela qual haverá sempre e em qualquer circunstância a necessidade de escolha entre o que será e o que não será realizado pelo Poder Público. SCHWABE, Jürgen (Organizador). Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução Leonardo Martins e outros. Montivideo: Fundação Konrad Adenauer, 2005. p. 660-664.BVERFGE 33, 303. De fato, a própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos, denominado Pacto de San José da Costa Rica, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992 e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992, estabelece em seu art. 26, intitulado “desenvolvimento progressivo”, que: “os Estados partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.” 22 BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 3-4. FGV DIREITO RIO 9 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I substitui, com vantagem, o da requisição, o da gratuidade de cargos, o do apossamento dos cabedais dos inimigos vencidos, embora de tudo isso ainda perdurem resquícios, notadamente em tempo de guerra. A regra, hoje, é o pagamento em moeda e, por isso, constitui atividade financeira a que o Estado, as províncias e municípios exercem para obter dinheiro e aplicá-lo ao pagamento de indivíduos e coisas utilizadas na criação e manutenção de vários serviços públicos. No atual contexto brasileiro, de determinação pelo processo político democrático das denominadas necessidades públicas, a serem atendidas pelo insubstituível instrumento da atividade financeira do Estado moderno, é importante destacar que o poder constituinte originário definiu ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil23: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Para alcançar tais mandamentos constitucionais, o poder público disciplina as relações econômicas e sociais, planeja e executa uma série de ações, entre as quais se destaca a política macroeconômica, cujos objetivos, correlatos àqueles fundamentais constitucionalmente qualificados, podem ser sumarizados como: (a) a busca de alto nível de emprego; (b) a estabilidade de preços; (c) a distribuição equitativa da renda; e (d) o crescimento econômico. Os principais instrumentos utilizados na condução da política macroeconômica para atingir esses fins são “as políticas fiscal, monetária, cambial e comercial, e de rendas”24, todas integrantes da denominada atividade financeira do Estado, caso adotado um conceito amplo25 para o termo. De fato, inquestionável a relevância e a interpenetração de cada uma dessas políticas econômicas, em especial para atingir consistência e coordenação entre as políticas públicas que ensejam as despesas do governo e as metas macroeconômicas, matéria cujo exame detalhado extrapola o objeto deste curso. Nessa toada, serão abordados nesse semestre apenas os aspectos mais relevantes dessas questões, na medida em que o estudo dos instrumentos diretamente relacionados (1) à obtenção das receitas e financiamento dos gastos, (2) à realização das despesas, (3) ao planejamento orçamentário e à gestão fiscal e patrimonial do Poder Público suscitem uma análise mais detalhada dos aspectos macroeconômicos que se imbricam. Assim, pode-se representar graficamente o objeto de estudo das próximas aulas pela figura que se segue: 23 Art. 3º I, II, III e IV da CR-88. 24 VASCONCELLOS, Marco Antonio S. e GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 91. 25 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 7. Assevera o autor que: “A expressão atividade financeira tem a mesma extensão do termo “finanças” que, surgindo na Idade Média por derivação da palavra finare, é sinônimo de finanças públicas, e não se aplica às finanças privadas.” FGV DIREITO RIO 10 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Nessa mesma linha de pensamento, Kyoshi Harada26 conceitua a “atividade financeira do Estado como sendo a atuação estatal voltada para obter, gerir e aplicar os recursos necessários à consecução das finalidades do Estado que, em última análise, se resumem na realização do bem comum” (grifo nosso). Aliomar Baleeiro27, por sua vez, adotando conceito mais amplo, define que a “atividade financeira consiste em obter, criar, gerir e despender o dinheiro indispensável às necessidades, cuja satisfação o Estado assumiu ou cometeu àqueloutras pessoas de direito público” (grifo nosso). De fato, a própria CR-88 estabelece a competência da União para emitir moeda, atribuição a ser exercida exclusivamente por meio do Banco Central, em seu artigo 164, dispositivo inserido no Capítulo II, do Título VI, da CR-88, intitulado “Das Finanças Públicas”. Dessa forma, tanto o eminente autor como a Constituição incluem a política monetária diretamente no escopo da análise da atividade financeira do Estado, o que será realizado neste curso apenas de forma tangencial. Pode-se concluir pelo que foi até aqui exposto, que a atividade financeira é meramente instrumental, na medida em que apenas viabiliza a consecução das políticas públicas, as quais traduzem os objetivos estatais fixados pelo processo político (ex: educação, saúde, segurança pública, transporte etc.). Portanto, a atividade finanaceira não constitui uma finalidade do Estado tendo em vista não possuir um fim em si mesma. Assim sendo, sob o ponto de vista jurídico, o objeto de estudo do semestre será a Constituição Financeira, a qual, segundo a melhor doutrina, é composta pelas Constituições Tributária, Orçamentária e Monetária28 (artigos 145 a 169 da CR-88), além dos dispositivos pertinentes à fiscalização orçamentária dos Municípios (artigo 31 da CR-88); ao controle interno, externo e social da execução orçamentária e da Administração Pública (artigos 70 e seguintes da CR-88), ao orçamento do Poder Legislativo (artigos 51, IV, e 52, XIII, da 26 HARADA, Hiyoshi, Direito Financeiro e Tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 4. 27 BALEEIRO. Op. Cit., p. 4. 28 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.1. Identifica o autor que: a “Constituição Orçamentária é um dos subsistemas da Constituição Financeira, ao lado da Constituição Tributária e da Monetária, sendo uma das Subconstituições que compõem o quadro maior da Constituição de Estado de Direito, em equilíbrio e harmonia com outros subsistemas, especialmente a Constituição Econômica e a Política” FGV DIREITO RIO 11 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I CR-88), do Poder Judiciário (artigo 99) e do Ministério Público (artigo 127). Antes, porém, serão examinados, de forma sucinta, os principais períodos e características mais relevantes da história dos tributos e das finanças públicas, o que certamente auxiliará a compreensão da realidade e o atual estágio de desenvolvimento da matéria. 1.4 BREVE HISTÓRICO DOS TRIBUTOS E DAS FINANÇAS PÚBLICAS. A leitura de diversos episódios marcantes em todo o curso da história da humanidade revela uma verdade inquestionável, independentemente do lugar objeto da pesquisa, os tributos as finanças públicas sempre tiveram e continuam a ter influência determinante no curso das civilizações. A primeira civilização de que se tem conhecimento29 concreto, cerca de seis mil anos atrás, era denominada Sumer, uma localidade entre os rios Tigre e Eufrates, no que hoje é o Iraque. Os acontecimentos históricos lá ocorridos revelam a grande influência dos tributos já naquela época, e estão gravados em hieróglifos encontrados em escavações em Lagash, localizado em Sumer. Após um período de incidência tributária de forma generalizada e bastante gravosa, um rei, chamado Urukagina, determinou a “liberdade”, por meio da extinção dos coletores do rei. O que parecia ser a solução de todos os problemas ensejou um final amargo para o bondoso monarca e àqueles até então submetidos à tirania fiscal: a localidade, após alcançada a almejada “liberdade”, foi totalmente destruída por invasores externos. Abaixo, reproduz-se a figura (extraída do livro de Charles Adams, p. 2, vide nota 21) contendo os símbolos que registraram e informam a existência da lei libertadora de Urikagina. 29 ADAMS, Charles. For good and evil: the impact of taxes on the course of civilization. 2nd ed. United States: Madison Books, 2001. p. 1-2. Revela o autor: “Taxes are the fuel that makes civilization run. There is no known civilizations that did not tax. The first civilization we know anything about began six thousand years ago in Sumer, a fertile plain between the Tigris and Euphrates rivers in modern Iraq. The dawn of history, and tax history, is recorded on clay cones excavated at Lagash, in Sumer. The people of Lagash instituted heavy taxation during a terrible war, but when the war ended, the tax men refused to give up their taxing powers. From one end of the land to the other, these clay cones say, ‘there were the tax collectors.’ Everything was taxed. Even the dead could not be buried unless a tax was paid. The story ends when a good king named Urukagina, ‘established the freedom’ of the people, and once again, ‘There were no tax collectors’. This may not have been a wise policy, because shortly thereafter the city was destroyed by foreign invaders. There is a proverb about taxes on other clay tablets from this lost civilization which reads: You can have a Lord, you can have a King, but the man to fear is the tax collectors” (grifo nosso). FGV DIREITO RIO 12 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Esse exemplo reflete um problema crucial, a necessidade de recursos para implementação de uma organização mínima e de proteção contra invasores – questão que, mesmo após a criação dos denominados Estados-Nações Absolutistas continuou a se fazer presente. Já na civilização egípcia, caracterizada por sua longevidade30, em contraponto à experiência libertária ocorrida em Lagash, era possível identificar, após o descobrimento de escritos e desenhos dentro de pirâmides e tumbas milenares, a existência de períodos de forte “pressão” de fiscais dos faraós para garantir-lhes o recebimento da parcela de 20% (vinte por cento) a eles pertencentes. Constata-se por meio de figuras e escritos milenares que nada era ocultado, nem mesmos os ovos sob as aves. Por sua vez, o grande jurista Marcus Tullius Cícero31 (106 – 43 a.C) difundiu no Império Romano a ideia grega contra os chamados tributos diretos, nos seguintes termos, um ano antes de sua morte (44 a.C): When constant wars made the Roman treasury run short, our forefathers often used to levy a property tax. Every effort must be made to prevent a repetition of this; and all possible precaution must be taken to ensure that such a step will never be needed … But if any government should find itself under necessity of levying a tax on property, the utmost care has to be devoted to making it clear 30 ADAMS. Op. Cit. p. 5. Destaca o autor que: “Egyptian civilizatian was highlighted by its enduring length. An advanced form of civilized life was in full bloom along the Nile before 3000 b.c., and it perpetuated itself until the fall of Rome”. 31 CICERO, Marcus Tullius. On Duties II. In: Cícero. On the Good life. Tradução Michael Grant . New York: Penguin Classics, 1971. p. 162. Disponível em: http://books.google.com.br. Pesquisa realizada em 01.01.2009. FGV DIREITO RIO 13 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I to the entire population that this simply has to be done because no alternative exists short o complete national collapse. Cabe salientar, entretanto, que o Império Romano é um exemplo clássico de como a exigência de tributos com fundamento apenas na força, sem referência ao valor justiça, transforma o direito de propriedade em um sistema de servidões sobre o homem, conforme assevera o professor Diogo Leite Campos32: Eis, pois, o legado de Roma em matéria fiscal: o imposto como produto e instrumento da opressão, crescendo à medida que se desenvolve a máquina político-administrativa; assente na força pura, sem referência à justiça. O imposto ‘nasceu’ em Roma caracterizado pela odiositas, fundado sobre a sua essência de mal necessário, de limitação do Direito pela força do ‘princeps’, de instrumento de dominação, ‘de império’. Enquanto as relações civis retiravam a sua força da justiça que realizavam como instrumento de cooperação entre homens livres e iguais. O carácter do imposto como produto e instrumento de um sistema de dominação foi evidente desde a grave crise do que o Império Romano atravessou a partir do século III. No decurso do principado de Diocleciano a economia e a sociedade são organizadas em termos de acampamento militar. O imperador estabelece a coacção como único instrumento de estabilização. Impõe-se uma escala de preços máximos para uma imensa lista de bens e serviços, estabelecendo como única sanção, para infractores, a morte. Simultaneamente, os impostos, destinados a manter uma máquina administrativa e militar crescente, aumentaram rapidamente. Criou-se um conjunto de impostos para financiar o aparelho administrativo e militar; um imposto geral sobre as vendas; um imposto sobre o rendimento; múltiplas prestações de serviços obrigatórias (transporte, fabrico de pão etc.). As atividades profissionais foram organizadas em corporações, elementos e instrumentos do Estado, com carácter coactivo e hereditário. Na última fase da sua história, a romanidade transforma-se numa comunidade em que todos trabalham, mas ninguém para si próprio. A propriedade mantém-se, é certo, como o ‘fundamento inamovível das relações humanas’; mas a sua função deixou de ser ligada ‘naturalmente’ à satisfação das necessidades de seu titular, para satisfazer os interesses públicos. Dando um salto na cronologia da história, outro momento merece destaque na abordagem que se estabelece neste curso é o século XIII d.C., o qual, para alguns autores33, representa o início da sistemática tributária que se consagra na atualidade, uma vez que foi a partir da promulgação da Carta Magna inglesa de 121534 que a legalidade ascendeu como princípio norteador das relações tributárias, impondo ao Rei João-sem-Terra o dever de observar limites para a criação de tributos. Na realidade, tal documento35 é decorrência da indignação dos barões proprietários de terras que forçaram King 32 CAMPOS, Diogo Leite de. A Jurisdicização dos Impostos: Garantias de Terceira Geração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo: Editora Forense, 2007, p. 87-88. 33 GALVÊAS, Ernani. Breve História dos Tributos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo: Editora Forense, 2007, p. 318. 34 ADAMS. Op. Cit. p. 164. Um dos capítulos da Magna Carta trata da livre circulação de mercadorias, conforme se extrai do texto, in verbis: “Let all merchants have safety and security to go out of England, to come into England, and to remain in and go about through England, as well by land as by water, for the purpose of buying and selling, without payment of any evil or injust tolls, on payment of ancient and just customs”. Conforme aponta o autor tal normativa foi seguida pelos Estados Unidos e Canadá: “the United States and Canadian constitutions adopted this principle of internal free trade. Commerce moving within the nation cannot be taxed. Freedom to travel in and out the country cannot be curtailed. The Russians find difficult to understand why the West emphasizes this basic human right. Magna Carta is the source.” 35 Cf. pontua Ana Alice De Carli, in: Bem de Família do Fiador e o Direito Humano Fundamental à Moradia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009: “Na seara da promoção e positivação dos direitos humanos, pode-se apontar como marco histórico, a Carta Magna inglesa, de 1215, a qual consagrou alguns direitos-garantias como o habeas corpus, o devido processo legal, a propriedade privada, e o princípio da legalidade. Não obstante, a questionável legitimidade da referida Constituição - pois, na verdade, consubstanciou apenas a concretização dos interesses da burguesia -, ela representa um capítulo da história do constitucionalismo inglês.”. Cumpre, realçar, que o princípio da legalidade tributária antecede a própria noção de legalidade em sentido lato. FGV DIREITO RIO 14 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I John a assinar a Magna Carta, pois já não concordavam com os constantes desrespeitos do monarca aos costumes tributários da realeza impondo-lhes excessiva carga tributária. De fato, tributação adicional somente poderia ser exigida com consentimento36, cujo conceito foi se alterando e expandindo ao longo do tempo, haja vista que a anuência da classe comum então ascendente economicamente passou também a ser exigida. No mesmo período, isto é, ainda no século XIII, conforme ressalta Galvêas37, o rei Eduardo I foi compelido a ir além e aceitar a norma segundo a qual “nenhum tributo poderá ser lançado pelo rei, sem o consentimento dos arcebispos, bispos, condes, barões, cavaleiros, burgueses e todos os homens livres...”. Alguns séculos depois, já no ano de 1628, a Inglaterra edita o Bill of Rights, o qual proclama que “a partir desta data, nenhum cidadão será obrigado a conceder qualquer dádiva ou empréstimo ao soberano, ou a pagar qualquer tributo, sem a aprovação do Parlamento”; ou seja, concretizou-se o princípio da legalidade consubstanciado no imperativo categórico no taxation without representation (aliás, tal expressão foi largamente difundida pelos americanos no período da revolução americana). Conforme preleciona Galvêas38 a referida norma-princípio é a base em que se fundam os orçamentos públicos dos países modernos. Destaque-se, no entanto, nos termos apontados pelo professor Ricardo Lobo Torres39 que: É inútil procurar antes das revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII a figura do orçamento. No mundo patrimonial já surgia a autorização dos estamentos e das cortes para a cobrança de impostos. Na Inglaterra a partir de 1215 e em Portugal, mas remotamente, tornava-se necessário o consentimento para que o Rei pudesse lançar tributos, que tinha o caráter extraordinário e só se justificavam quando insuficientes os ingressos dominiais. Mas esses impostos, a rigor, não se confundem com os que permanentemente passam a ser cobrados a partir da instauração da estrutura liberal de Governo, posto que eram apropriados privadamente, sem a nota da publicidade que marca os tributos permanentes. Era difícil distinguir a Fazenda do Rei e a do Estado, as despesas do Rei e do Reino, as rendas da Coroa e do Reino. Assim sendo, não havia necessidade nem de autorização para a cobrança dos ingressos dominiais nem para a realização da despesa, pelo que descabe cogitar de orçamento no Estado Patrimonial. (grifo nosso) Portanto, o período denominado de Patrimonialismo é caracterizado pelo Estado protetor contra as guerras e invasões externas, sendo as finanças fundamentadas em rendas patrimoniais e dominiais dos príncipes bem como da exploração das colônias. A receita extrapatrimonial de tributos nesse período é secundária e excepcional, não havendo a necessidade de autorização parlamentar para a sua efetivação, tampouco para a realização das despesas, 36 ADAMS. Op. Cit., p. 163. Esclarece o autor que: “John’s attempt to stretch the revenue devices of the realm had failed, but not entirely. Extra taxation could be collected with consent. In time the consent concept expanded. A rising class of wealthy commoners were called to meet in a House of Commons, to approve taxation for commoners in the same way the Great Council, approved taxation for the nobility. The king now became a politician. When extra revenue was needed, he did not need to steal it or arbitrarily increase taxation, he would call together his two councils of taxpayer representatives and present a case for more taxation.” 37 GALVÊAS. Op. Cit., 318. 38 Idem. Ibidem. p. 318-319. 39 TORRES. Op. Cit. p. 3-4. FGV DIREITO RIO 15 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I motivo pelo qual não existia orçamento sequer em sua concepção tradicional, confundindo-se e entrelaçando-se as finanças do Rei e a do Estado. O século XVIII, por sua vez, foi marcado pela independência americana e pela revolução francesa, a qual proclama a proteção de alguns direitos humanos fundamentais – em especial a propriedade e a liberdade –, uma vez que o Estado era visto como “inimigo da liberdade individual, e qualquer restrição ao individual em favor do coletivo era tida como ilegítima”, preleciona Dallari.40 A Declaração de Independência dos Estados Unidos da America, de 4 de julho de 1776, proclama entre as razões da insatisfação com o King of Great Britain: “For imposing taxes on us without our consent”. A Constituição dos Estados Unidos, por sua vez, ratificada em julho de 1787, estabelece em seu artigo 1º, seção 8, que: The Congress shall have the Power 1. to lay and collect taxes, duties, imposts and excises, to pay the debts and provide common defense and general welfare of the United States; but all duties, imposts and excises shall be uniform throughout the United States. (grifo nosso) Na mesma linha, a Constituição francesa de 03.09.1791 foi categórica na contenção da prerrogativa impositiva, tendo em vista a necessidade de renovação anual da autorização parlamentar para tributar: Titre V, art. 1 er: Les contributions publiques seront délibérées et fixées chaque année par le Corps Legislatif, et ne pourront subsister au dela du dernier jour de La session suivante, si elles n’ont pás été expressément renouvelée. Se com o constitucionalismo nasce a idéia de orçamento incorporando as garantias normativas da liberdade, por outro lado a marca do período era a intervenção mínima do Estado na seara privada, apontando a liberdade contratual como um direito natural das pessoas. Com efeito, o pensador Adam Smith sustentava que as relações econômicas deveriam ser regidas pelo princípio da liberdade de negociar, sem a participação do Estado. Era a denominada fase do Estado Liberal – caracterizado como Estado Mínimo ou Estado de Polícia –, cuja premissa sob o aspecto econômico era por alguns denominada como a primazia da mão invisível do mercado para reger a economia. A Revolução Industrial também merece realce, porquanto trouxe mudanças de diversas ordens, inclusive no campo da tributação, possibilitando a imposição de tributos sobre a produção industrial, sobre o consumo, bem como sobre o lucro e a renda auferida dos titulares de propriedade, acentua Galvêas41. 40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16. ed. atual. ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 1991. p. 233. 41 Ver GALVÊAS. Op. Cit., 318-320. FGV DIREITO RIO 16 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A visão clássica e mais difundida desse contexto, que perdura desde a fase final do século XVIII, todo o século XIX até o início do século XX, é no sentido de que a atividade financeira do Estado Liberal era neutra, geralmente classificada como finanças neutras ou fiscais42, pois tinha apenas a função de arrecadar para fazer face às despesas decorrentes das prestações por ele exercidas, de caráter essencial, como as relacionadas à justiça, política, diplomacia, defesa contra agressão externa e segurança da ordem interna. Os tributos, conforme assevera Luiz Emygdio F. da Rosa Jr43, também eram caracterizados pelo fim exclusivamente fiscal, posto que a exigência dos mesmos objetivaria tão-somente a obtenção de recursos para financiar a atividade financeira. Assim sendo, a atividade financeira exercida pelo Estado somente visava à obtenção de numerário para fazer face às citadas despesas públicas, isto é, as finanças públicas tinham finalidades exclusivamente fiscais. Gaston Jéze resumiu de maneira lapidar o alcance da atividade financeira desenvolvida pelo Estado no período clássico, ao enunciar: ‘Il y a dês dépenses publiques; Il faut lês couvrir’. Assim, as despesas tinham um tratamento preferencial sobre as receitas, uma vez que essas visavam apenas a possibilitar a satisfação dos gastos públicos. Nesse período, portanto, o tributo tinha fim exclusivamente fiscal porque visava apenas a carrear recursos para os cofres do Estado. Percebe-se que a expressão fiscalidade é utilizada em dois âmbitos e contextos distintos, isto é, tanto no que se refere ao papel das finanças públicas ao longo da história como também em relação às possíveis funções do tributo, que é atualmente, na maioria dos países, a principal fonte de receita pública. Sob o ponto de vista histórico das finanças públicas em geral, referida doutrina traz vantagens para a compreensão da evolução do papel da atividade financeira do Estado sobre as ordens econômica e social ao longo dos diferentes períodos, enfatizando características que seriam distintas em cada época. É possível vislumbrar alguns pontos positivos na aludida segmentação sob o ponto de vista didático, haja vista marcar de forma clara e precisa, em períodos cronologicamente distintos (1) a fiscalidade – finanças neutras e tributos somente com finalidade arrecadatória – de um lado; e a (2) extrafiscalidade e a parafiscalidade – finanças ativas e os tributos com finalidade não apenas arrecadatória, a partir da segunda década do século XX-. No entanto, apesar dessa vantagem pontual, conforme será examinado abaixo, o estudo de determinados fatos isolados da história nos permite afirmar que a dissociação temporal entre a fiscalidade de um lado e a extrafiscalidade de outro apenas facilita a compreensão da ênfase da intenção com que os tributos foram utilizados em cada período da história, na medida em que os mesmos também foram exigidos com outros objetivos que não meramente arrecadatórios em diversos momentos antecedentes ao denominado Estado de Bem- 42 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense. Rio de Janeiro, 2002. p. 361. “Fiscal. Derivado do latim, de fiscus, é vocábulo que nos vem do Direito Romano com a significação de relativo ao fisco ou ligado ao fisco, em que continua a ser tido, tomado adjetivamente. Como substantivo, designa a pessoa a quem se comete a função ou atribuição de vigiar ou zelar o cumprimento ou a execução de certas leis, preceitos ou regulamentos de ordem fiscal ou tributária, ou empenhar-se pelo cumprimento de regras jurídicas e disciplinares em certos estabelecimentos públicos ou particulares, e para manter a regularidade na exação de certos atos de negócios, que devem ser executados ou praticados por outrem”. 43 ROSA JR. Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 4-5. FGV DIREITO RIO 17 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I estar Social intervencionista, ou seja, de forma não neutra ou com fins outros que não meramente “fiscais”, ainda que não qualificada a política tributária com a denominação referida (“extrafiscalidade” ou “parafiscalidade”). Nesse sentido apresenta Adams44 diversos exemplos históricos, dentre os quais duas passagens emblemáticas, e que se referem, respectivamente: (1) à utilização de tributos para influenciar a religião, como no caso do islamismo na Idade Média e, também, (2) das tarifas aduaneiras e o conflito Norte e Sul que marca a confederação americana no período que antecedeu a guerra civil: (1) The humanity in the tax policy of the Moslems was of utmost importance. The Arabs brought peace and gentleness to an overtaxed world. They liberated the old Roman world from decadent, oppressive, and corrupt taxation. Nothing illustrates better than the tax refunds they made to Christians and Jews in Palestine in A.D. 636. At that time the Moslems had conquered most of the lands of Judea, but their forces were overextended, and large body of Roman troops was on the march from Antioch. At a war council the Moslems decided to evacuate most of the conquered territories. After this decision made the Moslem leader called in the chief tax collector and gave him these instructions: ‘ You should therefore refund the entire amount of money realized from them that our relations with them remains unchanged but that as we are not in a position to hold ourselves responsible for their safety, the pool tax, which is nothing but the price of protection, is reimbursed to them’. Accordingly, the entire sum collected from the Christian and Jewish communities was refunded to them. This affected the Christians to such a degree that tears trickled down their faces and, one and all, they passionately exclaimed: ‘May God bring you back to us.’ The effect on the Jews was still more marked. They cried out with vehemence: ‘By the law ant the prophets, the Roman emperor shall not take this city as long as the spark of life scintillates in our bodies’. It’s too bad the Jews and Moslems today don’t feel that way. The Moslems used taxation to bring converts into the faith. The spread of Islam has been attributed to the sword and many historians harp on the Moslem cry of ‘Death to the infidel. The Koran (9:29) certainly justifies that course of action. In practice, the Moslems acted to the contrary. Slaughter was not the normal modus operandi of even the most fanatical Moslems. Vanquished people were given three choices: death, taxes, or conversion to the faith. With these options it was not necessary for conquered people to lose their heads or their religion. (…) (2) The tariff of 1828 was called ‘the tariff of abomination,’ a biblical term meaning the greatest evil. Prior to that time the tariff was needed to repay the national debt from the wars of 1812 and the revolution itself. By 1832 the national debt was paid and there was no justification for the import taxes at high rates, except to promote a monopoly in the hands of Northern industrialists to raise prices for Southern consumers. The South exported about three-quarters of its goods and in turn used the money to buy European goods which carried 44 ADAMS. Op. Cit., (1) p. 133-134 e (2) p.333. FGV DIREITO RIO 18 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I the high import tax. This means that the South paid about three-quarters of all federal taxes, most of which were spent in the North. If they didn’t buy foreign goods and pay high taxes the alternative was to buy Northern manufactured products at excessively high prices. Either way Southern money ended up in the North. The injustice of this arrangement dominated Southern hostilities toward the North. Said one historian: ‘Indignation against the tariff as an unfair tax injurious to their economy was general throughout the South’ A southerner, a year after the Civil War ended expressed that indignation in a book appropriately clalled The lost Cause: ‘ In every measure that ingenuity of avarice devise the North exactes from the South a tribute, which could only pay at the expense and the character of an inferiour [sic] in the Union’. Nessa toada, analisando as finanças funcionais e a utilização dos impostos alfandegários com fins extrafiscais em períodos remotos Aliomar Baleeiro45 pontua: Os progressos das ciências econômicas, sobretudo depois do impulso que lhes imprimiu a teoria geral de Keynes, refletiram-se na Política Fiscal e esta, por sua vez, revolucionou a concepção da atividade financeira, segundo os preceitos dos financistas clássicos. Ao invés das ‘finanças neutras’ da tradição, com seu código de omissão e parcimônia tão ao gosto das opiniões individualistas, entendem hoje alguns que maiores benefícios a coletividade colhera de ‘finanças funcionais’, isto é, a atividade financeira orientada no sentido de influir sobre a conjuntura econômica. Destarte, o setor público – ‘a economia pública’ não se encolhe numa vizinhança pacífica e tímida junto às lindes da economia privada. A benefício desta é que deve invadi-la, para modificá-la, como elemento compensador nos desequilíbrios cíclicos. Em verdade, a despeito das novidades terminológicas, a ‘Política Fiscal’ é apenas nova aplicação dos instrumentos financeiros para fins ‘extrafiscais’. A Política Fiscal, no campo econômico, era bem conhecida dos clássicos para o protecionismo por meio de impostos alfandegários. Alguns advogam para fins “sócio-políticos”, como preferia dizer Seligman referindo-se às tendências de reforma social pelo tributo, defendidas por Wagner. Hoje a política anticíclica de modificação da conjuntura e da estrutura atrai as atenções em finanças extrafiscais. Ademais, sob o ponto de vista econômico, nos termos em que será analisado na Aula 14 sobre a extrafiscalidade, os tributos, em regra, ainda que seja possível instituí-los com a intenção exclusiva de obtenção de recursos para os cofres públicos, afetam os preços relativos dos bens e serviços, modificam a alocação dos recursos pelos agentes econômicos, alteram as decisões quanto 45 BALEEIRO. Op. Cit., p. 30-31. FGV DIREITO RIO 19 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I à melhor estrutura de financiamento corporativo, distorce a taxa de retorno de determinada atividade econômica em detrimento de outra, independentemente da intenção do exator. Ou seja, a simples existência dos tributos impacta o comportamento das pessoas, das famílias, das empresas e da sociedade como um todo, motivo pelo qual é ínsito à tributação redefinir a alocação dos recursos socialmente disponíveis, o que afeta a demanda e a oferta no mercado de fatores de produção e de bens e serviços, razão pela qual, economicamente, a extrafiscalidade (compreendida como outros efeitos além da própria arrecadação) é inerente e indissociável da denominada fiscalidade. Conforme já se pode extrair pelo que acima foi dito, sob o ponto de vista do desenvolvimento histórico das finanças, a etapa subsequente é classicamente denominada de “fase de intervencionismo estatal” ou do “tributo com fim extrafiscal”, e corresponde ao resultado da crise do Estado Fiscal do início do século XX, em função do descompasso entre a liberdade econômica e a realidade social. As desigualdades eram acentuadas, o que criou um grande hiato entre o discurso de desenvolvimento econômico sem a participação do Estado e o mundo da vida enfrentado por grande parte da massa humana, que se via forçada a trabalhar por baixos salários e com péssimas condições de vida. Como conseqüência de tal situação, já no século XIX, seguido pelo século XX, movimentos sociais surgiram para combater o sistema liberal clássico vigente; marcado pelo individualismo exacerbado, momento em que prevaleciam de forma absoluta os valores segurança jurídica, liberdade e igualdade formal. Nesse contexto, exsurgiu o denominado Estado de Bem-estar Social, que traz a lume novos valores deixados de lado até então no contexto do Estado Liberal Mínimo (ou de polícia), caracterizado como mero espectador ou ordenador distante dos fatos sociais. O Estado Social passa a ser ator decisivo da conduta privada, com fundamento na visão de que a intervenção estatal era conditio sine qua non para o alcance da justiça social e da igualdade material. Em conexão com esse movimento, os dispositivos orçamentários das Constituições de diversos países foram alterados para abranger a intervenção do Estado na ordem econômica e social. Assevera Luiz Emygdio46 que o Estado passou a intervir na iniciativa privada especialmente pelas seguintes razões: a) grandes oscilações porque passavam as economias (...); b) crises provocadas pelo desemprego que ocorria em larga escala nas etapas de depressão, gerando grandes tensões sociais; c) efeitos cada vez mais intensos das descobertas científicas e de suas aplicações; e d) dos efeitos originados da Revolução Industrial com o surgimento de empresas fabris de grande porte, com o consequente agravamento das condições materiais dos trabalhadores. 46 ROSA JR. Op. Cit., p. 5-6. FGV DIREITO RIO 20 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Para intervir na economia o Estado precisou criar novos instrumentos, dentre eles surgiu, formalmente, a figura do tributo com natureza extrafiscal, isto é, o tributo deixava de ser reconhecido por seu caráter eminentemente arrecadatório para os cofres do Tesouro, para assumir, concomitantemente, a feição de mecanismo coercitivo, utilizado pelo Poder Público com o fim de atingir outros objetivos e metas de natureza econômica e social. Nesse sentido, merece trazer como exemplos de medidas impositivas de exação com fulcro extrafiscal, as seguintes situações, que variaram ao longo da história: 1) aumento da alíquota do imposto sobre importação dos bens estrangeiros com vistas a fomentar a indústria nacional e garantir as reservas de moedas estrangeiras (instrumento auxiliar da política industrial e cambial); 2) redução das tarifas aduaneiras com o objetivo de reduzir os preços dos produtos e as pressões inflacionárias em âmbito local (instrumento auxiliar da política monetária); 3) adoção de imposto sobre o patrimônio territorial urbano com vistas à desestimular a especulação imobiliária, a má ou não utilização do imóvel urbano – vide IPTU progressivo, nos termos do art. 182, §4º, da CR-88 (instrumento auxiliar da política urbanística e de ocupação do solo); 4) a utilização do imposto sobre o câmbio, crédito e seguro para auxiliara a política cambial e monetária, etc. O Estado Intervencionista (Social) ganhou força, especialmente por conta dos prejuízos causados pela II Guerra Mundial, período em que havia necessidade premente de se otimizar os recursos para fazer face as demandas coletivas. No entanto, as exigências sociais impuseram a necessidade de aumentos contínuos da carga tributária e da criação de outras fontes de receitas para dar cabo às políticas públicas, cada vez mais intervencionistas, implicando despesas crescentes, em especial pela demanda da Segurança Social/Seguridade Social, abrangendo a Saúde, a Assistência e a Previdência Social. De fato, sob influência do keynesianismo, o Estado de Bem-estar Social elevou sobremaneira o papel dos tributos, o que redundou no paulatino esgarçamento do modelo do Welfare State, nos termos então estruturados. As constantes crises do petróleo, no final dos anos 70, tornaram inviáveis as estruturas do Estado Social, o qual carregava pesado fardo da dívida pública e de orçamentos desequilibrados e deficitários. As críticas vinham de todos os setores; em especial do pensamento liberal extremado, que denunciava o aniquilamento da liberdade por meio da exacerbada intervenção estatal na economia e do crescente peso dos tributos sobre os cidadãos. Com a crise do Estado do Bem-estar Social, confome ensina o professor Ricardo Lobo Torres47: (...) modifica-se novamente o perfil da Constituição Orçamentária. As que já estavam formalmente redigidas, como a da Alemanha, alteram-se substancialmente em sua interpretação. Nos Estados Unidos inicia-se a discussão sobre a 47 TORRES. Op. Cit. p. 3-6. Nesse cenário, aponta o autor o Estado Liberal clássico, na sua versão minimalista, como marco para o surgimento da cultura orçamentária, destacando as mudanças ocorridas ao longo de seu percurso histórico. Vale dizer que Estado Fiscal no período clássico, também denominado de Estado Guarda-Noturno, se restringia basicamente às atividades de poder de polícia, à atividade jurisdicional e à realização de alguns serviços públicos, não exigindo, portanto, grande estrutura tributária. FGV DIREITO RIO 21 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Emenda tendente criar regra obrigatória de equilíbrio orçamentário. (...). O grande problema atual da Constituição Orçamentária consiste em que deve ela ser rica e explícita em princípios jurídicos, de modo a permitir a elaboração da lei anual do orçamento segundo a ideologia do equilíbrio orçamentário e as idéias de economicidade e transparência das despesas, Insista-se em que o aspecto do gasto público é que se torna dramático nas finanças públicas contemporâneas. Apesar das acentuadas mudanças ocorridas no sentido da liberalização, privatização e foco do Estado na regulação da economia, reduzindo a face estatal provedora, o denominado neoliberalismo não superou (e nem poderia!) de forma absoluta o Estado Social. De fato, o processo histórico, assim como o processo de integração de mercados48, nunca é uniforme, contínuo e linear, sendo certo que, a cada etapa, novas características são incorporadas e diversas facetas do que existia no passado continuam a se fazer presente. Daí a complexidade da realidade atual! Nessa toada, por fim, importante realçar que o perfil e as características da receita pública foram delineadas de diversas formas ao longo da história, destacando-se entre elas, conforme ensina Aliomar Baleerio49: “as extorsões sobre povos vencidos; doações (voluntárias) recebidas; recolhimento das rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; exigência coativa de tributos ou penalidades; tomada de empréstimos forçados, e; fabricação de dinheiro metálico ou de papel”. Para o eminente autor essas diferentes formas de financiamento da atividade financeira do Estado, que ocorreram ao longo da história, podem ser agrupadas ou reduzidas a cinco padrões, não necessariamente sucessivos, a saber: 1. parasitária: proveniente da extorsão, pilhagem e exploração contra povos ou inimigos vencidos, característica do mundo antigo; 2. dominial: decorrente da exploração do próprio patrimônio (bens e direitos) do Estado, tais como imóveis, terras etc., prática disseminada no período medieval; 3. regaliana: obtida através da exploração dos denominados direitos regalianos, assim definidos como os privilégios conferidos e reconhecidos aos reis e príncipes para explorar certos serviços ou conferir esses direitos a terceiros em troca de pagamento ao Estado de uma determinada contribuição (regalia); 4. tributária: obtida coativamente ou coercitivamente e que passaram a ser a principal fonte de receita pública, e; 5. social: caracterizada pela utilização do tributo não somente como meio para obtenção de receita, mas, também, com fins extrafiscais, isto é, objetivando influenciar e modificar a ordem econômica e sócio-política. 48 COSTA, Leonardo de Andrade. Seminário Brasil Século XXI, em 24 de outubro de 2001, Brasília. O Direito na Era da Globalização. Realização do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, p. 117. “Preliminarmente, é importante enfatizar que a matéria tributária sempre foi e sempre será controversa pois traz dentro de si aspectos jurídicos, econômicos, administrativos, e, principalmente, de relações de poder. Portanto, sua análise deve ser, necessariamente, multidisciplinar, e o produto final será sempre a expressão do sopeso entre as diversas variáveis envolvidas, além, é claro, da visão de mundo do pesquisador. Seu estudo, em face do processo de integração de mercados, deve ser desenvolvido em duas dimensões: (1) a primeira no que se refere às diferentes formas em que se manifesta a integração internacional. Nesse ponto, é importante salientar que o processo de integração não tem sido, historicamente, uniforme, contínuo e linear. Daí decorre o primeiro fator de complexidade para compreensão da questão. Em suma, as diferentes formas em que se manifesta o processo integrativo determinam discussões tributárias de natureza distintas e, sem dúvida, os problemas tributários em face da criação de um Estado supranacional têm grau de complexidade infinitamente superior ao do estabelecimento de uma união aduaneira ou de uma zona de livre comércio. (2) uma segunda dimensão do problema diz respeito às questões tributárias propriamente ditas. Inquestionável, que o estudo dos aspectos tributários em uma economia globalizada deve incluir a análise das tarifas aduaneiras, dos impostos sobre o consumo e, por fim, a apreciação dos impostos diretos.” 49 BALEEIRO. Op. Cit., p.126. FGV DIREITO RIO 22 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 2 – ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO NA FEDERAÇÃO. Examinados os aspectos gerais do curso, especificado o conceito de atividade financeira do Estado, bem como o que se entende por necessidades públicas, e tendo sido abordada, ainda, em linhas gerais, a história dos tributos e das Finanças Públicas, cumpre agora avançar no estudo dos elementos essenciais à compreensão da matéria. Nesse sentido, importante ressaltar que a realização da despesa e a gestão fiscal e patrimonial do Estado moderno suscitam a elaboração, a aprovação, a execução e o controle do orçamento, o que pressupõe, necessariamente, a arrecadação de receita pública. Antes, porém, do estudo individualizado da despesa, da receita, das operações de crédito, da dívida pública, da elaboração, da aprovação, da execução e do controle do orçamento – o que se efetivará ao longo da primeira parte do curso – impõe-se examinar algumas características estruturais do modelo das finanças públicas nacionais, todas determinantes para o entendimento de como as receitas, as despesas e o orçamento se interligam e operam na República Federativa do Brasil da atualidade: o que facilitará a compreensão de cada um dos elementos que compõem a atividade financeira estatal posteriormente. Ressalte-se que dois desses elementos estruturantes das finanças públicas têm natureza jus-política – a forma de Estado Federada e o sistema de distribuição de funções entre os Poderes da República – características que possuem como ratio subjacente precípua evitar a concentração excessiva e os abusos no exercício do poder, sendo, também, fundamentais à constituição do perfil institucional brasileiro. As referidas características serão apresentadas em dois tópicos distintos, intitulados, respectivamente: O Federalismo Fiscal e o exercício da competência tributária em face do orçamento, disciplina a ser introduzida neste momento; e O sistema de distribuição de funções entre os Poderes e a natureza autorizadora do orçamento para a efetivação das despesas, matéria a ser apresentada na próxima aula. 2.1 ASPECTOS GERAIS DA FEDERAÇÃO COMO FORMA DE ESTADO: O ESTADO FEDERAL E OS ENTES POLÍTICOS (A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS). Nos termos já destacados na Aula 1, o Princípio Federativo é um dos pilares fundamentais ao delineamento do perfil institucional pátrio, ao lado do Princípio Republicano, o qual suscita o ideário da limitação, temporariedade50 e exercício responsável do poder, e bem assim do caráter democrático51 do Estado de Direito brasileiro, no qual a soberania popular pressupõe que 50 Diferencia-se, dessa forma, da monarquia, que se caracteriza por ser forma de governo hereditário. 51 Segundo Aristóteles, a igualdade e a liberdade eram as bases fundantes da democracia. A democracia, ao agregar valores como a igualdade e a liberdade, contribui para a realização da justiça. A justiça, para o pensador grego, dividia-se em justiça geral e justiça particular (ou legal): A Justiça Geral seria “a distinção moral que torna os homens aptos a fazerem as coisas justas, e que faz com que eles ajam com justiça e desejem o que é justo”. A Justiça Particular ( legal ), por seu turno, divide-se em: justiça comutativa e justiça distributiva. É a justiça decorrente do Estado. Conforme acentua Costas Douzinas, a justiça particular aristotélica “inaugura uma maneira totalmente nova de se olhar para as relações jurídicas”. Vide DOUZINAS, COSTAS. O Fim dos Direitos Humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009, p. 52. FGV DIREITO RIO 23 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I governantes e governados sejam submetidos à mesma lei editada pelos representantes do povo, consoante o disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR-88). Na história recente o Estado Federal tornou-se o modelo que melhor se associa à organização do Estado democrático, haja vista ser um sistema flexível e eficiente para evitar o excesso de concentração do poder estatal e os riscos de abusos. Assim, na linha de intelecção do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Velloso52, o Federalismo consubstancia uma forma de distribuição espacial de poder: o Estado Federal é na verdade, forma de descentralização do poder, de descentralização geográfica do poder do Estado. Constitui técnica de governo, mas presta obséquio, também à liberdade, pois toda a vez que o poder centraliza-se num órgão ou numa pessoa tende a tornar-se arbitrário. A doutrina estrangeira53, fugindo da dicotomia simplista de escolha entre maior centralização ou não, também destaca o papel fundamental que o Federalismo desempenha para evitar o arbítrio e propiciar ambiente econômico eficiente: O segundo motivo porque um debate entre prós e os contra seria estéril é que a descentralização tem sido um imperativo político. Na maioria dos países, ela teve motivação política. Um país descentralizado tem menor probabilidade de se tornar uma ditadura do que um centralizado. Essa é a justificativa principal para a descentralização. É um motivo muito forte. E que tem implicações econômicas, porque um pouco de estabilidade política é, com efeito, um pré-requisito para a eficiência, a estabilização e redistribuição econômicas. No entanto, apesar da concentração absoluta de poder ser um mal que se objetiva combater, os riscos do excesso de descentralização também têm sido identificados há algum tempo por muitos estudiosos, mesmo por parte dos simpatizantes da Federação como forma de Estado. Com efeito, o próprio Rui Barbosa, que havia sido grande defensor de um federalismo extremado como forma de superação revolucionária do Estado Unitário no Brasil (adotado na Constituição do Império de 1824), posto ser a centralização absoluta “incompatível com o liberalismo financeiro em país de dimensão continental”, alertava para o lado negativo dos excessos cometidos posteriormente, conforme leciona Ricardo Lobo Torres54: 52 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Estado Federal e Estados Federados na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo. 1993. p. 290-310. 53 PRUD’HOMME, Rémy e SHAH, Anwar. Centralização versus descentralização: o diabo está nos detalhes. In: REZENDE, Fernando e OLIVEIRA, Fabrício Augusto de (Organizadores). Federalismo e Intergração Econômica Regional – Desafios para o Mercosul. Fórum das Federações. Konrad Adenauer Stiftung. 2004. p. 63-99. 54 A discriminação de rendas da Constituição de 1891 e a voracidade dos Estados em busca da ampliação de suas fontes mereciam críticas constantes [de Rui]: ‘Aqui, pelo contrário, tudo que os Estados são, devem-no à revolução de 1889 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume I. Constituição Financeira, Sistema Tributário e Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 82 e 90-91. FGV DIREITO RIO 24 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I e à Constituição de 1891. Eram províncias centralizadas: elevaram-se a Estados autônomos. Vegetavam à custa das sobras da matéria tributável reservadas nas suas fontes principais ao orçamento geral: hoje dominam independentemente, pela Constituição republicana, um vasto campo tributário. E não lhes basta’. (...) Antes de votada a Constituição já advertia o perigo dos excesso de descentralização: ‘pronunciando-me assim, me cinjo ao pressuposto de que o Congresso Constituinte não alargue, em matéria de Tributos, a esfera das concessões franqueadas aos Estados pelo projeto. Se o domínio tributário da União for ainda mais desfalcado, se novas fontes de renda se transferirem do governo central para os governos locais, se prevalecerem certas emendas funestam que parecem esquecerem as necessidades supremas da nossa existência, da nossa solidariedade e da nossa hora com a nação, arvorando em princípio absoluto o egoísmo dos Estados – nesse caso a dificuldade será tão grave, que não vejo como o legislador poderia solvê-la imediatamente’. Nessa toada, apesar da constatação inicial, no sentido da necessidade de pulverização de poder, em movimento tipicamente centrífugo, de fluxo de poder do centro para as periferias, a preocupação com os inconvenientes da exacerbação no processo de descentralização excessiva sempre estiveram presentes no país. Saliente-se que o processo no Brasil diverge do contexto em que ocorreu a adoção do regime federativo nos Estados Unidos. Após a independência das antigas colônias inglesas, pela Revolução Americana de 1776, foram adotados os denominados Artigos da Confederação de 1781 – caracterizado por Estados independentes e soberanos, os quais foram posteriormente substituídos pela Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, em que a União passou a receber parcela dos poderes, em movimento centrípeto [da periferia para o centro]. Nesses termos, múltiplos são os caminhos para se alcançar ou adotar o regime federativo, havendo, no entanto, duas formas básicas por meio das quais uma Federação pode se constituir: (1) por aglutinação de vários Estados independentes, que resolvem abrir mão de sua soberania, para formar um Estado Federal único, tal como ocorreu nos Estados Unidos; ou (2) pela descentralização espacial do poder no contexto de um Estado do tipo simples, em movimento tipicamente centrífugo, isto é, a partir de um Estado inicialmente Unitário, a exemplo do Estado brasileiro55, o que pode ocorrer em um Estado previamente centralizado ou não sob o ponto de vista administrativo. Assim sendo, os aspectos históricos do processo de formação da Federação delineam o modelo federativo de cada país de forma substancialmente diversa, o que se coaduna com o contexto social, econômico, espacial e temporal de cada caso. Ainda em contraponto aos imperativos da descentralização, sob a perspectiva político-social, conforme adverte Roberto Mangabeira Unger,56 de- 55 Foi com o advento da primeira Constituição republicana brasileira de 1891, que o Brasil passou de Estado Unitário para Estado Federal, assumindo também a forma republicana de governo, nos termos de seu art. 2º. 56 Folha de São Paulo, 21 de fevereiro de 1985, Artigo nº 10. FGV DIREITO RIO 25 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I pendendo do momento histórico e das condições específicas de cada país, a descentralização exacerbada pode fortalecer oligarquias locais que procuram se perpetuar no poder a qualquer custo, em detrimento do bem comum: A descentralização federativa fundada na subsidiariedade e na especialização de funções fortalece as oligarquias locais. Ajuda a imunizar as estruturas consolidadas da sociedade brasileira contra as contestações, que crescem mais facilmente na política nacional. E faz com que a coordenação federativa tome mais ou menos como paradigma a ordem social existente. Se o Poder Central tem sido no Brasil o parceiro privilegiado dos poderosos e abastados, também tem servido como o único agente capaz de ameaçá-lo e de abrir espaços para a criação de contra-modelos de organização social. (grifo nosso). Pelo exposto, constata-se as divergentes causas e razões para a acomodação e formação de um modelo de Estado conciliatório, em que a ponderação dos diversos objetivos sejam alcançados, sem abrir, entretanto, espaço ou chance para a ruptura da unidade, do regime Democrático ou do Estado de Direito. Nessa senda, a dicotomia entre os objetivos de pulverização de poder para evitar o arbítrio e a corrupção e, ao mesmo tempo, a busca pela harmonia e coordenação das políticas públicas nacionais, favorece amplamente a adoção de um modelo federativo de equilíbrio ou de conciliação, o que representa uma das vantagens dessa forma de organização estatal. De fato, o modelo de federalismo político implementado em cada país, o qual é determinante para o sistema de federalismo fiscal adotado, se realiza sob a constante tensão entre o imperativo da unidade que congrega e une a nação de um lado com a necessidade de autonomia das partes que compõem o todo íntegro de outro lado. A resultante final entre essas variáveis, o que inclui os aspectos históricos, políticos e culturais, delineiam um modelo de federalismo fiscal de equilíbrio diferenciado em cada nação. No caso brasileiro atual, a Constituição de 1988 consagra a sua forma de Estado já no seu artigo 1º57, ou seja, qualifica a República como federativa, o que caracteriza o Brasil como uma Federação58. Importante perceber que a União, como ente federado autônomo, não consta do referido art. 1º da CR-88, mas sim o termo “união”, haja vista que a existência da Federação, previamente declarada no início do dispositivo, já consagra e pressupõe a existência do ente federal central. Em suma, a existência da União é pressuposto à existência da Federação, sendo desnecessária a declaração expressa de sua presença. Trata-se, portanto, o Estado Brasileiro, de um Estado complexo, constituído pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, em sentido análogo ao da Confederação e diametralmente oposto ao Estado Unitário simples. Uma das características fundamentais do Estado Federado, a qual consubstancia um dos elementos distintivos da Confederação, é a inviabilidade 57 O artigo 1º da CR-88 adota a forma federativa de Estado, ao dispor sobre a “República Federativa do Brasil”, o que é complementado, entre outros dispositivos, pelo art. 18, que estabelece a autonomia da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nos termos da Constituição, e pelo artigo 60, §4º, I, que impede “a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado”. 58 Os termos “a República Federativa do Brasil”, “a Federação”, “o Estado Federal” ou “Estado Federado” tem o mesmo significado e serão utilizados indistintamente. FGV DIREITO RIO 26 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I jurídica de separação ou segregação das partes (as unidades políticas subnacionais – os Estados Membros) que compõem o todo. Este Princípio da indissolubilidade59 ou Princípio da proibição de secessão60 – da união entre os Estados o Distrito Federal e os Municípios no caso brasileiro – está consagrado no mencionado art. 1º da Carta Constitucional de 1988. Em sentido contrário, as Confederações se caracterizam pela possibilidade de secessão61. Outros componentes estruturais também diferenciam essas duas formas de Estado: na Confederação não há relação direta entre a União e os diversos cidadãos residentes e domiciliados em cada Estado independente, de forma diversa do que ocorre na Federação, modelo que pressupõe a existência de múltiplas ordens jurídicas incidentes sobre o mesmo território, inclusive aquela emanada pela pessoa política que exerce o poder central. Essas diferenças estruturais – quanto à possibilidade de separação e da existência ou não de relação jurídica direta entre a União e os residentes – decorre do fato que a Confederação se constitui pela associação de vários Estados independentes e soberanos, ao passo que a Federação é apenas um Estado – o Estado Federal único, que se forma pela união de unidades políticas autônomas, isto é, cada ente subnacional não é dotado de soberania, mas sim de autonomia política, legislativa, administrativa, financeira, e etc, objetivando alcançar o autogoverno, a autoadministração e etc. Dessa forma, a Federação é, ao mesmo tempo, conforme ensina Raul Machado Horta,62 um só Estado, fator de diferenciação da Confederação de Estados, e, também, “uma pluralidade de Estados vinculados pelo laço federativo, e nisso se diferencia do Estado Unitário”. Assim sendo, ao contrário do Estado Unitário, que é simples, posto conter apenas uma ordem jurídica emanada por um único Parlamento, um Pode Judiciário e somente um Poder Executivo, o Estado Federado é composto ou complexo, haja vista possuir múltiplos planos jurídicos concomitantemente incidentes sobre o mesmo território nacional, tendo em vista coexistirem múltiplos centros de poder que projetam diversos poderes estatais nos diferentes âmbitos da Federação. De fato, é possível conceber um Estado Unitário extremamente descentralizado sob o ponto de vista administrativo, no qual as províncias possuam inúmeras atribuições. Entretanto, se as unidades administrativas locais não são constitucionalmente dotadas de determinados atributos caracterizadores do federalismo, como a autonomia legislativa e financeira, para proporcionar o autogoverno e políticas públicas próprias, núcleos essenciais inafastáveis da Federação, dissolvida estará a essência dessa forma de organização do Estado. Nesse sentido aponta Elcio Fonseca Reis63, com fundamento nas lições do ex-Ministro do STF Carlos Mário da Silva Velloso, que os Estados regionais autônomos, “em hipótese alguma, são confundidos com o Estado Federal, pois neste, a par da autonomia legislativa, administrativa e financeira, há autonomia constitucional, fator de diferen- 59 Nessa linha, importante destacar que a expressão “União”, conforme adverte José Cretella Junior, é palavra equívoca que contém múltiplos significados, dependendo da função atribuída pela Constituição no caso específico, conforme será adiante descrito. Vide, CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 1. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.130. “Note-se que união (com “u” minúsculo) tem, pela grafia e pelo contexto, sentido diverso do vocábulo “União” (com “U” maiúsculo). Notem-se assim, nas várias Constituições Brasileiras, os vocábulos “união” (com “u” minúsculo) e “União” (com “U” maiúsculo), o primeiro termo unívoco e não técnico (= agrupamento, agregado, junção, aglutinação, justaposição); o segundo termo equívoco, mas técnico tendo os mais diferentes sentidos” (grifo nosso). 60 O art, 1º, da CR/88, ao prever a união indissolúvel dos Entes da Federação, consagra o Princípio da Proibição do Direito de Secessão, ou seja, inadmite que Estados ou Municípios rompam o pacto federativo, ao vedar expressamente a retirada do Estado Federal. Esse pacto não inviabiliza a possibilidade de os Estados e Municípios desmembraremse para formar novos Entes, nos termos do art.18, §§ 3º e 4º da CR/88. 61 Derivado de “secessione (m)” o termo significa afastar-se. 62 HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Revista de Direito Público. nº 64, p. 15-29, 1982. Aponta o autor que o Estado Federal possui estrutura complexa, no qual “a dualidade estatal projeta-se na pluralidade dos ordenamentos jurídicos dentro da concepção tridimensional dos entes federativos: a comunidade jurídica total – o Estado federal -, a federação, uma comunidade jurídica central, e os Estados-Membros, que são comunidades jurídicas parciais.” 63 REIS, Elcio Fonseca. Federalismo Fiscal: competências Concorrentes e Normas Gerais de Direito Tributário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 25. FGV DIREITO RIO 27 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ciação” (grifo nosso). Assim, enquanto o processo de desconcentração de poder caracteriza-se pela descentralização política, administrativa e financeira entre o poder central e as regiões autônomas, o Estado federal possui, além dessas características, a autonomia constitucional não passível de supressão. Nessa linha, na forma de Estado Federado coexistem órbitas jurídicas distintas64, com funções previamente traçadas pelo sistema de repartição de competências constitucionais, o qual é ínsito a esta forma de Estado. Em contexto agregativo tem-se a ordem jurídica total, o que compreende a já mencionada interface com outros países,65 instituições internacionais e o conjunto de todos os ordenamentos internos, parcias e centrais66. Esse agregado de normas representa o sistema normativo do Estado Federal, ou seja, da República Federativa do Brasil, o qual compreende os atos normativos expedidos pela União no exercício de suas múltiplas funções constitucionais, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. As comunidades jurídicas parciais, cujas normas incidem apenas sobre parcela do território do país, são formadas por unidades políticas autônomas, denominados em geral como Estados membros, o que inclui, no caso brasileiro, os Estados, o Distrito Federal e, também, os Municípios, todos dotados de autonomia política, legislativa, administrativa, financeira e etc, nos termos do art. 18 da CR-88. Por sua vez, o sistema normativo central é constituído exclusivamente pelas normas editadas pela União, de acordo com as suas múltiplas tarefas fixadas na Constituição de 1988, possuindo, em todos os casos, eficácia em todo o território brasileiro, razão de sua identidade. A existência de leis editadas pelo Congresso Nacional com características distintas, algumas de caráter exclusivamente federal, as quais vinculam apenas os seus jurisdicionados e administrados, e outras de âmbito nacional, disciplinadoras da atuação de todos os entes políticos autônomos, inclusive da própria União como pessoa jurídica de direito público interno, confere maior complexidade ao sistema, conforme adverte Geraldo Ataliba67: as dificuldades para o estabelecimento da distinção entre leis federais e leis nacionais decorrem da origem comum, porque ambas são leis editadas pela União. 64 Na parte final do curso serão examinadas todas as espécies normativas tributárias, momento em que será analisada a expressão “legislação tributária” de que trata o artigo 96 do Código Tributário Nacional. 65 Na aula 23 será examinada a jurisprudência do STF que consagra a tese no sentido de que o monopólio da personalidade internacional é do Estado Federal, expressão institucional da comunidade jurídica total, que não se confunde com a União como ente político e pessoa jurídica de direito público interno. Nesse sentido recomenda-se a leitura do RE 229096. 66 Foi utilizado como critério de diferenciação entre a ordem jurídica central e as ordens jurídicas parciais o âmbito espacial de eficácia da norma expedida, isto é, se a legislação editada alcança por si só todo o território nacional ou apenas uma parcela limitada deste. Nesse sentido, a norma expedida pela União pode ter dupla função, isto é, vincular todos aqueles no território nacional sob jurisdição da República Federativa ou disciplinar apenas os atos daqueles subordinados à União como ente político central. Em sentido diverso, partindo de premissa distinta, ou seja, estabelecendo como critério de classificação os destinatários da norma, a maioria dos autores, seguindo as lições de Kelsen, situam a lei de caráter federal expedida pela União como situada dentro da ordem jurídica parcial e aquela de âmbito nacional inserida no bojo da ordem jurídica total, por ser norma da Federação. Nesse sentido vide REIS, Op. Cit. p. 119: “As normas jurídicas emanadas pela União, pelos Estados-Membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios pertencem à ordem jurídica parcial, pois somente se destinam a uma determinada parcela dos administrados, na sua área territorial e no seu âmbito de competência” (grifo nosso)”. Nessa linha, a ordem jurídica total seria expressa pelas normas de caráter nacional expedidas pelo Estado Federal, ao passo que as demais ordens central (União), regional (Estados) e locais (Municípios) seriam apenas parciais. 67 De um lado, a União, por meio do Congresso, formado pela Câmara e pelo Senado, tem a prerrogativa de expedir normas gerais68 de caráter nacional em matéria financeira e tributária, ex vi art. 24, §1º, art. 146, III e art. 163. Essas disciplinas são editadas em razão da função coordenadora que a União exerce em relação aos diversos entes políticos subnacionais (Estados, Distrito Federal e Municípios), todos entes autônomos, nos termos do já citado art. 18, o que tem por objetivo conferir unidade político-administrativa ao Estado Federado. Dessa forma, a característica da norma expedida nesses ATAILIBA, Geraldo. Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e municípios. RDP. v. 10. p. 49. 68 Conforme será examinado na parte final do curso, a disciplina das normas gerais em matéria de legislação tributária é reservada às leis complementares, o que não ocorre como regra nas demais áreas, como é o caso, por exemplo, da Lei nº 8666/93 que, apesar de ser lei ordinária, disciplina regras gerais das licitações e concorrências públicas para todos os entes da Federação, além de estabelecer regras específicas FGV DIREITO RIO 28 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I termos é a sua função precípua de vincular e estabelecer parâmetros ao legislador da própria União quando edita suas normas específicas aos seus jurisdicionados e administrados, aos legisladores e aplicadores das leis dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse caso, a lei editada pelo Congresso Nacional é lei da Federação, do Estado Federal, e não propriamente da União em sua acepção mais comum. Destaque-se que as normas gerais de Direito Tributário e de Direito Financeiro são necessariamente veiculadas por meio de lei complementar e não ordinária, tendo em vista o disposto nos citados artigos 146, III, e 163 da CR-88, o que ocorre, por exemplo, com o Código Tributário Nacional69 e a Lei de Responsabilidade Fiscal70. Essas leis complementares que objetivam harmonizar a disciplina jurídica das mencionadas matérias em âmbito nacional, posto vincularem o legislador de todos os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), são normas da República Federativa. Por outro lado, a mesma União, agora em sentido específico do termo, também expede, por meio do seu citado parlamento federal, formado pela mesma Câmara e o mesmo Senado, normas em razão do exercício de suas competências próprias por ser ente federado autônomo, qualificação sob a perspectiva do Direito Constitucional, ente político que se situa no mesmo plano hierárquico dos demais entes federados (Estados, Distrito Federal e Municípios), nos termos do já citado art. 18 da CR-88. Essa estrutura constitucional projeta a mesma União como pessoa jurídica de direito público interno sob o prisma do Direito Civil71, ao lado dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios, das autarquias e demais entidades de caráter público criadas por lei. Nesse contexto, as normas específicas expedidas pela União não se destinam a disciplinar a atividade legislativa dos entes federados, posto se dirigirem tão somente aos seus jurisdicionados e administrados. Nessa linha, se adotado como parâmetro de classificação os destinatários da norma, e não o seu aspecto espacial, como aqui propugnado, essas normas editadas pela União nesses termos constituiriam uma ordem jurídica parcial. Em sentido diverso, ao utilizar como critério classificatório o seu âmbito territorial de incidência, as duas espécies normativas editadas pela União se subsumem dentro da denominada ordem jurídica central, posto serem aplicáveis em todo o país. André Luiz Borges Netto72 enfatiza a importância da distinção entre as normas gerais e específicas expedidas pela União, reflexo da mencionada dúplice função desse ente central da Federação, ao destacar: (...) as normas gerais a que buscamos um conceito constituem-se em típico exemplo de leis nacionais, pois não se tratam de comandos normativos simplesmente referentes à União ou disciplinadores de relações dessa pessoa política com jurisdicionados e administrados seus, mas sim de normas que têm aplicação somente para a União, matéria que será brevemente analisada na aula sobre as despesas públicas. 69 A Lei nº 5.172/66, norma denominada de Código Tributário Nacional (CTN) pelo Ato Complementar nº 36/67, discplina matérias reservadas pela Constituição de 1988 à lei complementar. 70 Lei Complementar nº 101/2000. 71 Art. 41, I, do Código Civil de 2002. 72 NETTO, André Luiz Borges. Normas Gerais e competência concorrente – Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal, p. 179. Na aula 23 serão examinadas as possíveis limitações da atividade legislativa coordenadora da União para não invadir a competência dos entes subnacionais e bem assim das restrições à criação de normas gerais pelos Estados, ressalvados os casos de inexistência de lei federal em que se aplica o § 3º do art. 24. FGV DIREITO RIO 29 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I à totalidade do Estado Federal, sem exclusão de nenhuma parcela do território pátrio. Não se esqueça, porém, que a União, no âmbito da competência legislativa concorrente, além de editar normas gerais como produto legislativo do Estado nacional, também edita normas especificas, descendo a pormenores de para tratar de assuntos relacionados à administração federal (serviços e agentes federais), vinculando somente a conduta daqueles que se submetem às regras do Governo Federal. Nesse momento é importante destacar que sob a perspectiva das funções institucionais73 da União no Estado Federal brasileiro, além da atribuição de editar normas gerais e bem assim exercer as suas atividades normativas como ente político autônomo e pessoa jurídica de direito público interno, a mesma União também é Longa Manus da Sociedade Nacional, pois o Presidente da República é ao mesmo tempo Chefe de Governo e de Estado, presentante da República Federativa do Brasil no Exterior, conforme o disposto nos artigos 21, I, 84, VIII e art. 4º da CR/88. Assim, consoante a estrutura jurídico-política-institucional do Estado brasileiro, a União, de acordo com uma interpretação sistemática da Constituição, exerce pelo menos três papéis institucionais fundamentais, os quais estão ora explícitos e por vezes implícitos no texto constitucional vigente. As três funções podem ser melhor compreendidas e visualizadas por meio da seguinte estratificação: 1 ) Ente Político – pessoa jurídica de direito público – art. 18, CR/88 Papeis Jurídico-Institucionais da União no Estado Federal Brasileiro 2 ) Ente Coordenador da Federação - art. 1º, caput, c/c art. 24, §1°, CR/88. 3) Longa Manus da Sociedade Nacional – Presentante da República Federativa do Brasil no Exterior – art. 1º, p.u. c/c art. 4º, art.84, VIII, CR/88 Com a adoção da forma federativa de Estado, a distribuição de diversas funções à União e a inevitável coexistência de múltiplas ordens jurídicas no território nacional, impõe-se a implementação de um sistema constitucional de repartição de competências entre as unidades federadas, o que inclui, também, a previsão de edição das já referidas normas gerais (§1º do art. 24), ao lado das demais competências legislativas (privativa – art.22, concorrente – art. 24, suplementar – art. 24, §§2º a 4º, delegada – art. 22 parágrafo único e 73 Note que o critério de análise relativamente às funções da União agora não é mais o aspecto espacial de aplicabilidade da norma editada. FGV DIREITO RIO 30 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 23, parágrafo único, e originária – art. 30, I) e das competências administrativas (exclusiva – art. 21, comum – art. 23, decorrente – implícita, originária – art. 30). Nesse sentido, deve ser destacado que a CR-88, no artigo 24, I, confere competência para a União, os Estados e o Distrito Federal legislarem concorrentemente sobre Direito Financeiro, Orçamento e Tributário. Nessa hipótese, a prerrogativa da União,74 como ente polítco de coordenação, é limitada à expedição de normas gerais de caráter nacional, sendo atribuída, ao mesmo tempo, a competência suplementar aos Estados. Corolário da autonomia federativa estampada nos artigos 1º, 18 e 60, §4º, I, da CR-88, os Municípios também têm a atribuição de suplementar a legislação federal e estadual (artigo 30, II, da CR-88), assim como instituir e arrecadar tributos, aplicar suas rendas, submeter e prestar contas (art. 30, III, da CR-88), analogamente às prerrogativas da União, dos Estados e do Distrito Federal. Portanto, a determinação fixada no artigo 163 da CR-88, no sentido de que lei complementar federal disporá sobre finanças públicas, conforme ensina Misabel Abreu Machado Derzi75, não afasta ou suprime a competência legislativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: para legislar sobre as finanças públicas, dívida pública, operações de crédito, emissão e resgate da dívida pública, orçamentos, controle e fiscalização da execução financeira. Ao contrário, cada um desses entes políticos, mediante lei ordinária, aprova os seus orçamentos, operações de crédito, e empréstimos públicos. No citado art. 163, a Constituição apenas prevê a necessidade de a União editar normas gerais, por meio de lei complementar, para disciplinar princípios básicos a serem observados pelas leis ordinárias editadas nessa matéria pela União, Estados-Membros e Municípios. Dentro dos limites constitucionais que lhes são impostos, de respeito à diferenciação e às autonomias locais e regionais, as normas gerais padronizam parcialmente as ordens jurídicas que convivem no Estado brasileiro. Assim, importante repisar que o Brasil é usualmente qualificado como uma República Federativa tridimensional76, composta por três entes políticos internos distintos, diversamente do tradicional modelo dual adotado nos demais regimes federados, os quais são compostos por apenas dois entes. De fato, o artigo 68 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 já consagrava a autonomia municipal em “tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”, atribuição que foi se fortalecendo ao longo do tempo até o seu ápice no texto constitucional de 1988, quando os municípios alcançaram o status formal de entes federados, cujas prerrogativas vão muito além da autonomia meramente administrativa, conforme será examinado ao longo do curso. Nesse passo, de descentralização das finanças e da atribuição de competências tributárias aos entes políticos, serão inicialmente analisados os aspectos 74 Esse dispositivo constitucional (art. 24, §1º) parece se dirigir (“limitar-se-á a estabelecer normas gerais”) exclusivamente à função coordenadora da União, conforme acima salientado, tendo em vista que a mesma União, como pessoa jurídica de direito público interno, no exercício de suas funções como ente político autônomo, nos termos do art. 18 da CR-88, também expede normas específicas de caráter exclusivamente federal no bojo da competência concorrente, dentro dos limites constitucionais estabelecidos, inclusive no que pertine à matéria financeira e tributária. Dessa forma, conforme já salientado, pode-se distinguir a legislação expedida pela União em duas modalidades, as leis de caráter nacional, posto vincularem a atividade legislativa dos entes políticos, e as leis de natureza eminentemente federal, que se dirigem exlcusivamente aos seus jurisdiciondos e administrados. A União pode expedir normas, por exemplo, de direito financeiro e de direito tributário concerenentes à sua atividade financeira específica, independentemente da edição das normas gerais referidas no citado §1º do artigo 24 da CR-88. 75 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Comentários aos arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 276-277. 76 Já Regis Fernandes de Oliveira aponta que “no Estado federal brasileiro, em que são quatro entes federados, União, Estados, Distrito Federal e Município, cada qual, para sua sobrevivência e para atender às finalidades que lhes são traçadas na Constituição, tem que dispor de recursos para tanto.” In. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 124. Sob a perspectiva tributária, o Distrito Federal cumula as competências dos Estados (art. 155 caput da CR-88) e dos Municípios (art. 147, segunda parte, da CR-88). Nos termos do artigo 32, §1º, da CR-88 ao “Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios”, observadas as disciplinas específicas, como, por exemplo, o disposto nos artigos 21, XIII, 32, §4º, 98, 128, I, d, 134, §1º, da CR-88, etc. FGV DIREITO RIO 31 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mais relevantes do federalismo fiscal para depois ser examinado o problema das desigualdades regionais na Federação. Também será objeto de análise no próximo tópico a subordinação ou não do exercício da competência tributária à prévia autorização orçamentária, elemento que ao lado do sistema constitucional de partilha de receitas e de transferências entre os entes federados, objeto da Aula 8, ajuda a identificar e delinear as interligações entre as receitas, as despesas e o orçamento. 2.2 O FEDERALISMO FISCAL E O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA EM FACE DO ORÇAMENTO A forma de Estado (unitário, federado ou confederado) adotada pela República Federativa do Brasil é o primeiro elemento de natureza jurídicopolítica que, ao lado do sistema de distribuição de funções entre os poderes da República, define o modelo de interação entre as receitas, despesas e o orçamento, sendo também determinante para o delineamento do perfil institucional brasileiro. Resguardado um núcleo essencial inafastável, nos termos adiante descritos, o federalismo é um conceito essencialmente jurídico-positivo, ou seja, seu significado no mundo concreto depende de um conjunto amplo de normas constitucionais, que abrange não apenas a declaração dessa forma de Estado. Na realidade a definição do modelo adotado no Brasil, por exemplo, requer o exame de todas as regras de distribuição de competências materias e legislativas que se encontram espalhadas pelo texto constitucional77, sejam ou não de natureza exclusivamente financeira, orçamentária ou tributária. O federalismo sempre foi objeto de estudo e controvérsia, posto tratarse de um sistema de organização político-institucional de sobreposição78, ao contrário do Estado unitário, conforme já salientado. Portanto, a forma de Estado federado79 pressupõe a existência e coordenação de múltiplas ordens jurídicas incidentes sobre o mesmo território, sendo mecanismo eficiente à limitação do poder central, com a vantagem de não possuir um modelo predefinido e estático. Dessa forma, o Estado federal possibilita variadas estruturas jurídico-políticas, as quais facultam a implementação de diferentes graus de descentralização, o que se efetiva por meio do sistema constitucional de repartição de competências. Com efeito, o perfil do federalismo de cada país é delineado pela configuração do sistema de repatição de competências, o que tem como pressuposto uma Constituição rígida, isto é, aquela cujo processo de reforma é mais complexo do que aquele necessário para a edição das leis infracostitucionais, havendo, no caso brasileiro, limitações materiais e circunstanciais ao lado de quorum e procedimento especial. 77 Vide, em especial, os artigos 21, 22, 23, 24, 25 e 30 da CR-88. 78 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, t. III. p. 268. Explica o autor luso: “O Estado Federal tem como núcleo uma estrutura de sobreposição, a qual recobre os poderes políticos locais (dos Estados-membros), de modo a cada cidadão ficar simultaneamente sujeito a duas constituições (....).” 79 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 103: Aponta o professor que “a federação consiste na união de coletividades regionais autônomas que a doutrina chama de Estados federados, Estadosmembros ou simplesmente Estados”. FGV DIREITO RIO 32 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Cabe ressaltar, entretanto, que a Federação pode conter caráter meramente nominal, se os seus pressupostos fundamentais não forem verdadeiros e efetivos, isto é, a Federação só existe materialmente se inviabilizada a possibilidade de usurpação de competências locais e de possível violação à autonomia política, administrativa e, principalmente, financeira dos entes subnacionais. Não obstante a impossibilidade de serem afastados esses núcleos essenciais do federalismo, cumpre repisar que essa forma de Estado caracteriza-se por ser maleável, vez que possibilita arranjos institucionais capazes de deixar aflorar o que há de melhor nas diversas áreas que compõem o seu conjunto, adequado, portanto, àqueles países caracterizados80 pela diversidade interna, complexidade, permanente mutação e, em geral, pela grande extensão territorial. Assim sendo, pela própria natureza das coisas, trata-se de uma solução complexa para realidades de países cujas características físico-geográficas, culturais, políticas, econômicas ou sociais apresentem obstáculos muitas vezes intransponíveis à imposição de um modelo único para todo o país, inviabilizando a gestão hierárquica tradicional de cima para baixo, de forma que o governo central seja tão forte que imponha uma relação de dependência para as unidades políticas locais. Conforme já destacado, o sistema de repartição de competências materiais e legislativas – aí inserida a competência tributária81, que ao lado das receitas não tributárias e do sistema de partilha de recursos formam o complexo mecanismo de financiamento federado – é o núcleo central do federalismo, pois delimita e configura o perfil da autonomia constitucional de cada regime, sendo certo que o grau de independência financeira das unidades subnacionais determina o grau de autonomia da Federação. De fato, inexistente aquela, não há que se falar em federalismo, isto é, a autonomia financeira é um dos elementos nucleares do regime, podendo, no entanto, efetivar-se de diversas formas e com diferentes níveis de descentralização, especialmente pelo fato de que os recursos financeiros disponíveis para cada unidade federada realizar os seus gastos – e cumprir os encargos constitucionalmente designados – corresponde ao conjunto: (1) do somatório das receitas obtidas por cada unidade política no exercício das respectivas competências tributárias, das receitas decorrentes da exploração do seu patrimônio, da exploração de atividades econômicas (comércio, agropecuária, indústria e serviços), das operações de crédito, da alienação de bens, do recebimento de amortização de empréstimos concedidos e ainda do superávit do orçamento corrente etc.; adicionado (2) da parcela decorrente do sistema de repartição de receitas e de transferências intergovernamentais na Federação, que podem ser voluntárias ou obrigatórias. 80 KUGELMAS, Eduardo. A evolução recente do regime federativo no Brasil. HOFMEISTER, Wilhelm e CARNEIRO, José Mário Brasiliense (Organizadores). In: Federalismo na Alemanha e no Brasil. SP- Fundação Konrad Adenauer, Série de Debates nº 22, Vol I. 2001. p. 29: “Embora o número de países com regime federativo seja relativamente pequeno, em torno de vinte, esse conjunto inclui alguns dos maiores em extensão territorial e/ou população – Estados Unidos, Rússia, Brasil, Canadá, Índia – e a maior potência do continente europeu, a Alemanha. Na consolidação da democratização espanhola foi peça central a adoção de um regime por vezes chamado de quase federativo um notável grau de autonomia para as regiões. A recente reforma belga institucionalizou mecanismos federativos para permitir a convivência entre duas populações diferenciadas, a dos flamengos e a dos valões de língua francesa. Para a construção institucional da África do Sul como país democrático após o fim do aparthied foi estratégica a adoção de procedimentos de tipo federativo. Em um dos países unitários arquetípicos, o Reino Unido, está em andamento um ambicioso projeto de power devolution, atendendo às reivindicações da Escócia e do País de Gales. Os projetos e desenhos institucionais relativos à construção européia passam fatalmente por uma discussão histórica e conceitual sobre a natureza das federações e a distinção entre estas e as confederações”. 81 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Estado Federal e Estados Federados na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo. p. 49-50, 1993. O Ministro destaca a necessidade de um sistema constitucional de discriminação de rendas, compreendendo a repartição de competência tributária e a distribuição de receita tributária. FGV DIREITO RIO 33 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A análise da repartição de receitas e das transferências será realizada na aula 8, nos termos já enfatizados, e o exame das receitas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sob o ponto de vista do substrato econômico de incidência e sob a perspectiva da distribuição de competências tributárias no federalismo fiscal brasileiro, será realizada nas aulas 11 e 13, sendo necessário, neste momento, apenas examinar dois aspectos da matéria. O primeiro aspecto relacionado à receita a ser abordado neste momento, refere-se ao fato de que no atual regime constitucional brasileiro, ao contrário do passado recente, não há qualquer subordinação do exercício da competência tributária ao orçamento anual, no plano federal, estadual ou municipal. Ou seja, diferentemente das despesas, as quais têm como requisito necessário a autorização legislativa específica, anualmente,82 em qualquer dos entes federados, a tributação, principal origem de recursos para os entes públicos, independe de autorização parlamentar ânua, em qualquer dos entes políticos. Nesse sentido, impõe-se apresentar a redação do §34 do artigo 141, da Constituição de 194683, regra/princípio inserido entre os direitos e garantias individuais e cujo texto foi repetido em sua integralidade pelo artigo 51 da Lei n º 4.320, de 17.03.1964, norma recepcionada pela atual constituição de 198884 com status de lei complementar, devendo-se destacar que a mesma disciplina foi repetida, da mesma forma, no artigo 150, §29, da Constituição de 1967, todos, nos seguintes termos: Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra. (grifo nosso) Dessa forma, o exercício da competência tributária ficava subordinado e dependente da autorização legislativa anual, concretizando, assim, o denominado princípio da Anualidade Tributária. Esse princípio, não mais aplicável atualmente, conforme será analisado a seguir, distingue-se do chamado princípio da Anualidade Orçamentária, o qual estabelece a vigência anual para o orçamento (LOA), após o que será necessária, para legitimar a atividade financeira do Estado no exercício subsequente, nova autorização de natureza política. Assim sendo, a Anualidade Orçamentária, ainda hoje vigente – a teor do disposto no artigo 165, III, e §5º, da CR-88 – expressa o controle do Parlamento sobre os demais Poderes relativamente ao Orçamento, ao prever que o mesmo deve ser elaborado para durar apenas um ano, isto é, há necessidade de renovação da autorização legislativa anualmente. Já o princípio da Anterioridade Orçamentária85 prevê que o orçamento deve ser aprovado antes do início do exercício financeiro ao qual se aplica, matéria a ser abordada na Aula 4, conjuntamente com os demais princípios orçamentários. 82 O artigo 167, I e II, da CR-88, será transcrito na próxima aula e reexaminado na Aula 4. 83 Destaque-se que o art. 25 da Emenda Constitucional nº 18/65, de 01.12.1965, revogou expressamente o citado §34 do artigo 141 da Constituição de 1946, que previa a anualidade tributária, e consolidado, no art. 2º, II, da Constituição, a jurisprudência que havia se fixado no âmbito do STF. De fato, a exigência de prévia autorização orçamentária já havia sido mitigada pelo STF por meio da edição da Súmula 66, aprovada na reunião plenária de 13/12/1963 e que enunciava: “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro.” Referia-se, então, pela primeira vez, à regra/princípio hoje denominada de anterioridade tributária. Dessa forma, com a nova redação da Constituição de 1946 conferida pela EC 18/65 (art. 2º, II: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (I) ...; (II) cobrar imposto sobre patrimônio e a renda, com base em lei posterior è data inicial do exercício financeiro a que corresponda”), constitucionalizou-se a jurisprudência do STF, suprimindo-se temporariamente o princípio da anualidade tributária, e positivando-se o que hoje entendemos por anterioridade tributária, entretanto, exclusivamente em relação aos impostos sobre patrimônio e renda. Posteriormente, com a edição da Constituição de 1967, o princípio da anualidade tributária foi novamente constitucionalizado expressamente, no art. 150, §29, até ser promulgada a Emenda Constitucional nº 1/69, a qual excluiu definitivamente a exigência de prévia autorização orçamentária para o aumento de tributo de nosso ordenamento (anualidade tributária). 84 Ressalte-se que Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou em junho de 2010 o parecer e o substitutivo do relator, Senador Arthur Virgílio, ao Projeto de Lei Complementar nº 229, de 2009, o qual prevê a revogação da Lei nº 4320/64 (art. 125 do projeto de lei) e estabelece nova disciplina para o disposto no artigo 165, §9°, da CR-88, além de alterar a denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00). 85 O princípio da Anterioridade Tributária (clássica e nonagesimal) por sua vez, por se consubstanciar mais uma importante limitação constitucional ao Poder de Tributar será estudado de forma detalhada quando do exame dessas limitações. FGV DIREITO RIO 34 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, a qual ensejou ampla revisão no texto constitucional de 1967, retirou definitivamente a exigência de prévia autorização orçamentária para a cobrança de tributos, ao estabelecer a seguinte redação ao §29 do artigo 153: Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição. Assim sendo, a cobrança de tributo passou a ser possível após a Emenda nº 1/69, com a vigência da lei que a estabelece, observada, apenas, a necessidade de que o ato legislativo esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, sendo dispensável, portanto, a prévia autorização orçamentária, conforme anteriormente exigido, com a mitigação fixada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixada na Súmula 66. Com o advento da Emenda Constitucional nº 8, de 14 de abril de 1977, alterou-se novamente a redação do dispositivo, sem modificar, entretanto, a desvinculação do exercício da competência tributária da prévia autorização orçamentária: Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados e outros especialmente indicados em lei complementar, além do imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição.(grifo nosso) A Constituição de 1988, por sua vez, também não fixou qualquer requisito orçamentário para o exercício da competência tributária, estabelecendo, tão somente, na alínea “b”, do inciso III, do seu artigo 150, o denominado Princípio da Anterioridade tributária, o qual veda a cobrança de tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”, sem haver, entretanto, qualquer vinculação ou subordinação da tributação à citada autorização na lei anual do orçamento. Portanto, desde a Emenda nº 1/69, não mais se aplica o disposto na parte final do artigo 51 da Lei n º 4.320/6486, tendo em vista a sua revogação87 por incompatibilidade com as ordens constitucionais supervenientes. Nesse sentido, não há mais controle político a cada ano pelo Poder Legislativo, posto não haver exigência de renovação anual da permissão para a cobrança de tributos. Essa hipótese, concernente à inexistência de 86 Não tendo havido até hoje a edição da Lei Complementar prevista pelo artigo 163 da Constituição da República de 1988 (CR-88) no que se refere às normas gerais de Direito Financeiro e Orçamento, salvo quanto à responsabilidade na gestão fiscal (Lei Complementar nº 101/2000 - LRF), continua vigente e eficaz a Lei nº 4.320/64, no que não conflitar com a Carta Magna e com a LRF. Nesse sentido, ADI 1.726-MC, cuja ementa dispõe: “A exigência de previa lei complementar estabelecendo condições gerais para a instituição de fundos, como exige o art. 165, § 9º, II, da Constituição, está suprida pela Lei nº 4.320, de 17/03/64, recepcionada pela Constituição com status de lei complementar; embora a Constituição não se refira aos fundos especiais, estão eles disciplinados nos arts. 71 a 74 desta Lei, que se aplica à espécie: a) o FGPC, criado pelo art. 1º da Lei n. 9.531/97, é fundo especial, que se ajusta à definição do art. 71 da Lei n. 4.320/63; b) as condições para a instituição e o funcionamento dos fundos especiais estão previstas nos arts. 72 a 74 da mesma Lei.” (ADI 1.726-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 16-9-98, DJ de 30-4-04) 87 Há duas corrente doutrinárias quanto à incompatibilidade de norma infra constitucional antecedente à nova ordem constitucional: (1) aqueles que sustentam a sua revogação, sendo desnecessário, portanto, declará-la inconstitucional; e (2) os que defendem tratar-se de inconstitucionalidade superveniente, a exigir o seu reconhecimento expresso, tendo em vista fundamentar-se em conflito sob a perspectiva da hierarquia das normas. A questão é assim analisada por Luís Roberto Barroso: “De um lado, há os que sustentam que a nova Constituição, ao entrar em vigor, simplesmente revoga toda a legislação precedente com ela incompatível. Portanto, cuidar-se-ia de um conflito de natureza temporal, a ser resolvido no plano da vigência da norma. De outro lado, há os que sustentam a inadequação de se tratar tal questão à luz do direito intertemporal, sob argumento de que a regra lex posterior derrogat priori somente se aplica a normas de igual hierarquia. Por via de conseqüência, consideram que o conflito entre a Constituição e a lei anterior é de natureza hierárquica, a ser resolvido no plano da validade da norma. Logo, se a Constituição e a norma anterior são incompatíveis, é caso de pronunciar-se a inconstitucionalidade da norma, e não sua revogação”. In. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.72. O Supremo Tribunal Federal tendo em vista, também, as conseqüências práticas de uma ou outra opção e considerando, ainda, que em face da revogação não caberia controle FGV DIREITO RIO 35 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I renovação anual da autorização legislativa, é severamente criticada por Montesquieu.88 Verifica-se, nesses termos, diferenças consideráveis na interação do orçamento anual e as receitas quando comparada a sua relação com as despesas, haja vista que estas pressupõem a sua fixação89 na lei orçamentária todos os anos, ainda que a determinação possua, de fato, caráter meramente autorizador da realização dos gastos, conforme será explicitado nas próximas aulas, ao passo que o exercício da competência tributária, principal fonte de recursos públicos, independe de autorização na norma orçamentária anual, a qual apenas prevê e estima a receita, malgrado o caráter coercitivo daquelas de natureza derivada, as quais deitam raízes no classicamente denominado poder de império (jus imperi) ou no espaço aberto pelos direitos humanos fundamentais, conforme a tese mais atual. Assim, conforme salienta Ricardo Lobo Torres90, “com a superveniência do Estado de Direito e com a independência e o primado da lei formal, dá-se a bifurcação entre anualidade tributária e a orçamentária, como pioneiramente afirmou O. Mayer, ao observar que se desvanecera a conexão entre o direito de consentir impostos e o direito do orçamento.” 2.3 O FEDERALISMO FISCAL E AS DESIGUALDADES REGIONAIS O segundo aspecto relativo à receita a ser examinado nesta aula diz respeito ao fato de que o regime federativo possui contradições ínsitas a esta forma de Estado. O principal paradoxo inerente ao federalismo decorre da interação entre: concentrado de constitucionalidade, ao passo que enquadrada a questão no sentido da inconstitucionalidade superveniente seria cabível a ação direta, decidiu, na ADI 438, ponderando a necessidade de limitar o número de feitos que chegam àquele tribunal, que se trata de revogação da norma antecedente e não de inconstitucionalidade superveniente. 88 MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois, I. Folio Essais. Edition Gallimard, 1995. Livre XI, Chapitre VI. p. 339-340. (1) uma de suas características nucleares:91 “a apropriação dos recursos fiscais, determinada pela capacidade econômica das jurisdições”, seja pela estrutura de produção de bens e serviços, de seus recursos naturais ou pelo potencial de consumo local, o que repercute nos resultados do exercício da competência tributária própria e das receitas patrimoniais ; e (2) a “exigência de igualdade entre os cidadãos no que se refere ao acesso a bens e serviços públicos”, imperativo dos regimes democráticos modernos. 89 Portanto, pode-se concluir que, não obstante ser possível ao governo central adotar medidas compensatórias na vertente das despesas diretas no âmbito territorial dos entes subnacionais menos desenvolvidos, ou, ainda, a existência de sistemas de transferências intergovernamentais equalizadoras, a lógica regedora desta forma de Estado não afasta, por si só, a continuidade 91 Essa é a nomenclatura utilizada no artigo 165, § 8º, da CR-88 o qual dispõe que a “lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei”. 90 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 330. PRADO, Sérgio. Partilha de recursos e desigualdade nas federações: um enfoque metodológico. In: REZENDE, Fernando e OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. (Organizadores). Descentralização e Federalismo Fiscal no Brasil. Desafios da Reforma Tributária. Rio de Janeiro: FGV - Konrad Adenauer Stiftung, 2003. p. 274. FGV DIREITO RIO 36 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I e o agravamento das denominadas desigualdades regionais. Essas diferenças inter-regionais são refletidas, segundo a ratio subjacente92 aos artigos 3º, III, 151, I, 165, §7º, e 174, §1º, da CR-88, nas acentuadas desigualdades na qualidade de vida dos cidadãos residentes em áreas geográficas distintas do mesmo país. Merece destaque o fato de que maior será a dependência em relação ao complexo sistema de transferências financeiras, que objetiva levar recursos das regiões com maior capacidade econômica para as regiões mais pobres e de menor potencial econômico, quanto maior for o peso conferido à solidariedade em âmbito nacional. Assim, se as medidas adotadas na tentativa de garantir simetria de resultados estiverem acompanhadas de vedações ao exercício de competência legislativa local, ou seja, quanto maior o peso da solidariedade interpessoal, setorial e regional, afastando-se radicalmente o princípio da subsidiariedade, nos termos delineados no federalismo cooperativo alemão93, maior assimetria no sistema de partilha de poder, o que implica distorções no funcionamento das instituições e nos procedimentos políticos burocráticos, tendo em vista o alto grau de centralização94, o que determina forte interdependência e falta de agilidade na tomada de decisões, além de que “percebe-se cada vez mais que a homogeneidade, quanto aos resultados, tem seu preço.”95 Por outro lado, a simetria no sistema de partilha de poder conduz a resultados inevitavelmente assimétricos, isto é, admitir competências concorrentes em vários níveis, com plenos poderes de tributação e gastos para cada ente político, como ocorre nos Estados Unidos96, berço do federalismo, ou no Canadá97, implica desigualdade inter-regional, tendo em vista a salientada contradição intrínseca à forma de Estado federado. Impõe-se, agora, analisar as regras gerais do sistema de partilha de receitas e de transferências dos recursos financeiros entre os entes federados de acordo com o modelo de federalismo fiscal brasileiro, matéria que será detalhada na já citada Aula 8. Importante destacar, nesse sentido, que existem duas questões preliminares, as quais revelam, do ponto de vista econômico-financeiro, se há, ou não, equilíbrio federativo, ou seja, se as unidades federadas dos diferentes níveis estão financeiramente aptas a realizar o que delas a população espera: 92 Aponta Ricardo Lobo Torres no sentido: “De notar que a equidade entre regiões visa sobretudo a garantir a equidade horizontal entre os cidadãos domiciliados nas diferentes localidades do país”. v. TORRES. Op.cit. p. 308. 93 Inexistente a autonomia legislativa em matéria tributária (art. 83 da Lei Fundamental da República Federativa Alemã) no âmbito dos Estados-membros (Länder), cabe aos entes subnacionais apenas a execução das leis, o que qualifica o federalismo alemão para alguns como um “federalismo administrativo”, em oposição ao “federalismo legislativo” que caracteriza o Canadá. A Câmara Alta (Bundesrat) –segunda câmara do parlamento nacional, composta por representantes dos governos subnacionais, é o instrumento por meio do qual os Estados federados influenciam a política tributária do país, o que afasta a autonomia na produção legislativa e inibe a competição entre os mesmos, introduzindo assim um sistema de influência coordenada sobre a política federal. Elcio Fonseca, citando Hans Joechen Vogel, esclarece ser “la gestión de la mayor de los impuestos corresponde a las autoridades financieras regionales, pero em cambio los Länder solo parcialmente tienen competências legislativas em esta matéria – incluso respcto des impuestos cuya recaudación va a parar integramente a sus arcas-. De ahí que el Bundesrat sea la principal via de influencia de los Länder el importe de sus propios ingresos fiscales” (Cf. Elcio Fonseca Reis, Op. Cit. p. 47) 94 SCHULTZE, Rainer-Olaf. Tendências da evolução do federalismo alemão: dez teses, in Federalismo na Alemanha e no Brasil. Konrad Adenauer Stiftung, Série de Debates nº 22, Vol. I, abril 2001, p. 22. Destaca o autor a necessidade urgente de reforma “que levem em conta os desafios surgidos na economia regional, e, também maior pluralidade cultural”, salientando que no contexto “da futura repartição da arrecadação tributária entre União, estados e municípios, e ainda, a questão das competências tributárias originárias dos estados (...) diferentes alíquotas de tributos não deveriam constituir um tabu” 95 (1) a primeira, relativa à repartição de encargos para a prática de atos materiais entre os diferentes níveis de governo, isto é, se a distribuição de funções e atribuições é clara e excludente, não deixando margem para dúvidas quanto ao que pode e deve ser exigido especificamente da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e SPHAN, Paul Bernd. Solidariedade versus eficiência em uma federação: o caso da Alemanha, in Federalismo e Integração Econômica Regional – Desafios para o Mercosul, Fórum das Federações, Konrad Adenauer Stiftung, 2004, p. 153 e 177. Após apresentar inúmeros aspectos negativos do sistema alemão, no sentido de que a “subsidiariedade e, portanto, a diversidade regional foi sacrificada consistentemente em favor da solidariedade nacional” enfatiza a necessidade de FGV DIREITO RIO 37 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (2) se o montante de recursos financeiros disponíveis para o financiamento dos gastos para cada ente, individualmente, atende, ou não, às necessidades administrativas que visam à realização das ações e funções previamente fixadas no ordenamento jurídico. No que concerne à primeira questão, ou seja, quanto à repartição de funções e encargos entre os entes federados, a CR-88 distribui as competências materiais, em especial, nos seus artigos 21, 23, 25, 30 incisos V a IX, 144, 198 e 211 (competência exclusiva, comum e concorrente), o que tem sido objeto de muitas críticas, conforme se extrai da doutrina de Fernando Rezende:98 a) a ausência de uma nítida divisão de competências99 entre as diversas esferas governamentais (e também com referência à questão metropolitana) gera duplicação de esforços e lacunas na prestação dos serviços, com grandes desperdícios (financeiros e outros) na ação governamental; b) em decorrência, evidencia-se a dificuldade de atribuir responsabilidade às agências governamentais pela prestação do serviço, o que dificulta a relação usuário-governo e o controle social sobre a ação governamental; c) conflitos institucionais freqüentes refletem negativamente na eficiência de toda a máquina administrativa; d) a falta de uma visão clara do que compete a cada esfera torna praticamente impossível uma repartição adequada dos recursos públicos que deveriam ser fixados em função da correspondência recursos-encargos. (grifo nosso) Relativamente ao segundo aspecto, isto é, quanto às fontes de financiamento100 dos gastos, cumpre repisar que os mesmos correspondem ao conjunto: (A) das receitas próprias de cada unidade política, receitas correntes e de capital – obtidas, principalmente, por meio do exercício de suas competências tributárias, de suas receitas patrimoniais, de suas atividades econômicas e das operações de crédito; e (B) da parcela decorrente do sistema de repartição de receitas tributárias e de transferências intergovernamentais, que podem ser voluntárias ou obrigatórias, correntes ou de capital. A análise da vinculação ou não dos recursos tributários arrecadados e recebidos a título de transferência corrente será realizada quando forem examinadas as receitas dos entes federados. Pelo que foi até aqui apresentado nessa aula, pode-se verificar o caráter essencial do estudo dos dois elementos de natureza jus-política, os quais são determinantes ao delineamento da estrutura institucional do país relativamente à matéria financeira pública: o federalismo fiscal e a distribuição de funções entre os poderes. equilíbrio entre os dois princípios, com a introdução do “direito dos estados de lançar alguns impostos próprios. Uma política tributária autônoma - pelo menos “na margem” – é um elemento essencial e constitutivo da soberania estadual”, e finaliza alertando que diante da “relutância em mudar as regras que aparentemente desmantelariam a solidariedade inter-regional” “é questionável se os governos alemães estarão em posição de competir com outras nações e regiões num mundo globalizado.” 96 Apesar do elevado grau de autonomia, em especial em matéria tributária, Elcio Fonseca adverte que “já nas primeiras décadas do século XX, os Estados não possuíam condições de resolver seus problemas sem a intervenção do Poder Central, o que levou a uma centralização do sistema federativo americano”. Nesse sentido, José Baracho conclui que “o conceito clássico de federalismo, em que se assentava o sistema americano, não foi capaz de suportar as grandes modificações econômicas e sociais que acompanham as novas formas de desenvolvimento” (Cf. Elcio Fonseca Reis, Op. Cit. p. 29). Destaque-se, ainda, a inexistência, no sistema americano, de um programa formal de equalização da receita e preocupações acerca de transferências intergovernamentais, apesar de que, no lado das despesas, sejam ponderadas questões regionais no processo de decisão de alocação de recursos. 97 COURCHENE, Thomas J. Federalismo e a nova ordem econômica: uma perspectiva dos cidadãos dos processos, in Federalismo e Integração Econômica Regional–Desafios para o Mercosul, Fórum das Federações, Konrad Adenauer Stiftung, 2004, p. 27: “a Federação canadense é altamente descentralizada tanto nas despesas como nos impostos. Por exemplo: as províncias aplicam suas próprias alíquotas e categorias tributárias em termos de imposto de renda (física ou jurídica), seus próprios impostos de consumo e, em geral, controlam os recursos naturais dentro de suas fronteiras e são responsáveis por saúde, educação, previdência e treinamento, entre muitas outras áreas (...), não se deve surpreender o fato de que o sistema canadense de transferências intergovernamentais sirva para ajustar essa descentralização”. (grifo nosso) 98 REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.50. 99 A titularidade dos serviços de saneamento, por exemplo, ainda causam polêmica, mesmo após a edição da Lei nº 11.445/2007, a qual atribuiu competência legislativa aos entes da federação para que possam modernizar a infraestrutura dos serviços públicos. FGV DIREITO RIO 38 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O sistema de distribuição de funções entre os Poderes constitucionalmente instituídos, matéria a ser examinada na próxima aula, suscita elevado grau de fricção entre as instituições nacionais, em especial as divisões de competências para aprovar as despesas, bem como a natureza meramente autorizadora do orçamento, associado à complexidade do modelo de federalismo fiscal nacional, caracterizado por conflitos no plano horizontal e vertical, o que frequentemente gera mais calor do que luz. Conforme notícia extraída do sítio do Supremo Tribunal Federal, 07 de Julho de 2009: “Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 1842 e 2077) discutem o tema ao questionarem leis do estado do Rio de Janeiro que tratam sobre a prestação de serviço de saneamento básico (Lei estadual 2.869/97) e sobre a criação da região metropolitana e da microrregião dos Lagos no estado (Lei Complementar 87/89). O julgamento da ADI 1842 começou em abril de 2004 e foi interrompido por diversas vezes. Atualmente, as duas ações estão sendo analisadas conjuntamente e a matéria está nas mãos do ministro Ricardo Lewandowki, que pediu vista do processo na sessão do dia 3 de abril de 2008. Sciarra ressalta que a finalização desse julgamento é importante para que, juntamente com a regulamentação da lei sobre saneamento básico, seja possível estimular investimentos públicos e privados na área. Ele destaca que esses investimentos ‘são muito necessários’ já que hoje o país tem ‘uma cobertura muito baixa na área de saneamento nos municípios brasileiros’. ‘Um dos entraves, justamente, é a falta de definição de titularidade [do saneamento básico]. Por isso nós estamos aqui no Supremo dizendo da necessidade, de o mais rápido possível, se definir a questão da titularidade’, ponderou”. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br>. 100 A diferença entre as despesas e receitas, nestas incluídas os recursos financeiros provenientes das transferências recebidas, voluntárias e obrigatórias, corresponde ao que se denomina de public sector borrowing requirements, correspondente em português às necessidades de financiamento do setor público, matéria que será examinada na aula pertinente ao Financiamento dos Gastos e Crédito Público. FGV DIREITO RIO 39 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 3 – O ESTADO FINANCEIRO, A REPÚBLICA E O FEDERALISMO FISCAL. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES101. Após a apresentação da forma de Estado da República e a introdução do Federalismo Fiscal brasileiro, iniciaremos nesta aula o estudo acerca da natureza autorizadora do orçamento para a efetivação das despesas, bem como o exame preliminar da relevância da distribuição de funções entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo no que se refere ao orçamento, matéria que será detalhada na próxima aula. Nesse sentido, impõe-se agora analisar o segundo elemento de natureza jus-política que também possui como ratio subjacente evitar a concentração excessiva e os abusos no exercício do poder, sendo, também, fundamental à constituição do perfil institucional brasileiro: o sistema de distribuição de funções entre os Poderes da República que ocorre no âmbito da Federação. Nesse sentido, cumpre destacar que os Poderes Legislativos da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios não estão limitados pela CR-88 à função de criar normas gerais e abstratas nos âmbitos de suas repectivas atribuições constitucionalmente estabelecidas. Compete às Casas Legislativas, conforme será examinado ao longo do curso, também, além de outras atividades, autorizar despesas e receitas do Estado, fiscalizar a atividade de outras entidades do Poder Público nas áreas previamente fixadas, como as contas prestadas pelo Presidente da República, e, por simetria, dos Governadores e Prefeitos, apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo e os atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração Indireta (vide art. 48, II, IX e X da CR-88). 3.1 O SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE OS PODERES A previsão do orçamento no Brasil, incluindo a fixação de despesas e a estimativa de receitas orçamentárias, assim como a determinação de elaboração de um balanço geral das receitas e despesas do ano anterior, está expressa desde a Constituição Política do Império, de 25 de Março de 1824, cujo art. 15, item 10, art. 36, item 1, e art. 172 dispõem, respectivamente: Art. 15. É da atribuição da Assembléia Geral .................. 10). Fixar anualmente as despesas públicas, e repartir a contribuição direta. .................. Art. 36. É privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa. 1º) Sobre impostos. .................. 101 Recomenda-se revisar o conteúdo das Aulas 11 a 16 do material didático de Direito Constitucional I (2010.2) antes da leitura desta aula. FGV DIREITO RIO 40 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Art. 172. O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros Ministros os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, apresentará na Câmara dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despesas publicas do ano futuro, e da importância de todas as contribuições, e rendas publicas. Conforme se verifica na Constituição Imperial, incumbia ao Poder Legislativo, por meio da Câmara dos Deputados, a iniciativa das leis sobre impostos e à Assembléia Geral, composta pela “Câmara dos Deputados e Câmara dos Senadores ou Senado”, nos temos do artigo 14, a aprovação da lei orçamentária que fixava a despesa pública e repartia a denominada contribuição direta. Ao Poder Executivo, que ao lado do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Poder Moderador constituíam os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império (art. 10), conforme já examinado na disciplina de Direito Constitucional I102, incumbia, nos termos do transcrito artigo 172: (A) elaborar o projeto do “orçamento geral de todas as despesas publicas do ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas públicas”, ou seja, estimar e orçar as receitas e despesas do ano subseqüente; (B) apresentar “um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente”, o que permitia o controle das finanças; e (C) a execução orçamentária, a qual se efetivava pelo exercício de suas competências para a prática de atos materiais e para “expedir decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis”, bem como “decretar a aplicação dos rendimentos destinados pela Assembléia aos vários ramos da pública administração” (art. 102, itens 12 e 13). A análise dos mencionados dispositivos da Carta do Império nos permite identificar o primeiro conjunto de questões a serem disciplinadas quanto ao orçamento, às receitas e às despesas públicas, isto é, a atribuição de competências e distribuição de funções103 entre os poderes constituídos, relativamente a cada uma das etapas do orçamento e em relação à previsão, autorização e efetivação das receitas e despesas. De fato, as diversas características que podem assumir a distribuição de prerrogativas, bem como as etapas compreendidas em todo o processo, revelam o perfil do orçamento em dado momento histórico, o que auxilia a perquirição da natureza jurídica do ato, assim como a delinear o sistema de freios e contrapesos entre os poderes constitucionalmente constituídos. A natureza jurídica do orçamento é controvertida e objeto de amplo debate na doutrina104, tendo em vista as suas especificidades. No Brasil, entretanto, a própria CR-88 confere105 a natureza de lei em caráter formal às três peças orçamentárias, o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) 102 Aula 11, p. 68 do material didático de Direito Constitucional I (2010.2). 103 Ensina o professor de Sorbonne Laurent Versini que Montesquieu falava de distribuição de poderes e funções e não propriamente da sua separação: “Partout ailleurs, le président parle de distribuition des pouvoirs et non de séparation. E livre XI, qui a pour objet de montrer comment la distribution des pouvoirs assure da liberté politique d’abord en Angleterre (chap.6) pui dans la république romaine (12 sq.), a jusque dans ses titres de chapitres toute la précision souhaitable : voire chapiter 12, <<Du gouvernment des rois à Rome, et comment les trois pouvoirs y furrent distribués>> ; voyez égalment au chapitre 7 comment, dans les monarchies autres que l’anglaise, le trois pouvoirs <<ont chacun une distribuition particulière, selon laquelle ils approchent plus moins de la liberté politique>> : c’est dire que le pouvoir exécutif, ou législatif, ou judiciaire est partagé plus moins inélgalement entre plusieurs autoriés. La confusion est venue de l’ambiiguité du mot pouvoir :les fonctions exécutive, législative ou judiciaire étant dans les démocraties modernes le plus souvent exercées chacune par un organe spécialisé, on identifie la fonction avec l’organe sous le nom de pouvoir alors que pour Montesquieu la fonction doit être répartie entre plusieurs organes pour que le pouvoir arrête le pouvoir, et que soit assurée la modération, donc la liberté.” VERSINI, Laurent. Introduction. In: MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois, I. Folio Essais. Edition Gallimard, 1995. p. 40-41 104 HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 57/58. 105 Ver em especial o artigo 165, caput, e § 1º, §2º, §5º, §6º e §8º, da CR-88. FGV DIREITO RIO 41 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I e os orçamentos anuais (LOA), matéria que será objeto de exame detalhado na Aula 4. Apesar do artigo 166 da CR-88 estabelecer regime procedimental específico para a apreciação, tramitação e votação dos projetos das leis orçamentárias, conforme será estudado adiante, aplicam-se aos mesmos, no que não contrariar o disposto na Seção II, do Capítulo II, do Título VI da CR88 (artigo 165 a 169), as demais normas relativas ao processo legislativo.106 Assim, o quorum exigido para a sua aprovação é o comum, fixado no art. 47 da CR-88, a exigir a “maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros”, e não o qualificado de lei complementar, disciplinado no art. 69, razão pela qual, no atual regime jurídico brasileiro, o orçamento assume a natureza de lei ordinária.107 Ressalte-se, entretanto, tratar-se de norma de natureza especialíssima, posto não se amoldar perfeitamente ao conceito técnico de generalidade, abstração e impessoalidade, atributos que, como regra geral, caracterizam a lei em sentido material108, sem mencionar a indeterminação temporal. A lei do orçamento anual, por exemplo, além de vigorar por prazo determinado de um ano, produz efeitos concretos, motivos pelos quais muitos autores sustentam não se qualificar o orçamento como lei sob o ponto de vista material.109 Constata-se pela leitura das Constituições brasileiras de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1967/69 que várias modalidades e critérios de fixação de competência foram adotados no país até então, havendo períodos: (1) de maior concentração de atribuições no Poder Executivo (ex. 1937); (2) aquelas em que preponderava a atuação do Poder Legislativo (ex. 1891), que incluiu a competência do Congresso Nacional para “orçar110 a receita, fixar a despesa federal anualmente e tomar as contas da receita e despesa de cada exercício financeiro”; e, finalmente, (3) as demais Constituições, que se caracterizaram pela adoção de modelos muito detalhistas e de ampla distribuição de funções e competências entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo (ex. 1824, 1934, 1946, 1967 e 1967/69), como é o caso, também, da Carta atual de 1988. Cabe ressaltar que, à exceção da citada Constituição Imperial de 1824 – a qual implementou um sistema quadripartido de poderes – as demais Constituições brasileiras adotaram o modelo tripartido de funções de Montesquieu, tendo, no entanto, assumido feições diversas e ponderações distintas na alocação de atribuições relativas ao orçamento, às despesas e às receitas, dependendo do contexto político, econômico e social. Importante salientar que, não obstante estarem as competências previamente fixadas no plano normativo-constitucional, no mundo real ocorrem retrações e ampliações no campo de atuação de cada poder ao longo do tempo, dentro do mesmo regime constitucional e do mesmo sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), visto que, além da realidade fática e política se alterarem, a usurpação é ínsita ao exercício do poder, conforme salienta Fernando Papaterra Limongi:111 106 Artigo 166, §7º, da CR-88. 107 Na Aula 4 será detalhada a matéria, ocasião em que se verificará que o PPA é lei formal, sendo dependente do orçamento anual para possuir eficácia relativamente à realização das despesas. No mesmo sentido, a LDO também é lei formal, compreendendo apenas as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente e contendo simples orientação para a elaboração da lei orçamentária anual, razão pela qual não criam, em regra, direitos subjetivos para terceiros nem tem eficácia fora do âmbito dos Poderes do Estado. Nesse sentido, Ação Originária 533-9, em cuja decisão monocrática assevera o relator: “(...) Ademais, a alegação fundamentada em suposto direito subjetivo do autor ao repasse da verba requerida está afastada, conforme fundamento doutrinário embasador da decisão mencionada, que pela propriedade vale ser trasladado: a lei orçamentária possui “o claro objetivo de limitar o orçamento à sua função formal de ato governamental, cujo propósito é autorizar as despesas a serem realizadas no ano seguinte e calcular os recursos prováveis com que tais gastos poderão ser realizados, mas não cria direitos subjetivos” (Luiz Emydio F. da Rosa Jr., “Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário”, 10ª edição, Renovar, p. 80). Em face de tais circunstâncias, com respaldo no inciso IX do art. 21 do RISTF, julgo prejudicada esta ação. Publique-se. Brasília, 21 de setembro de 2004. Ministro Eros Grau Relator”. 108 Essa matéria tem relevância não apenas sob o ponto de vista acadêmico, tendo em vista a sua importância para a admissibilidade do controle judicial de constitucionalidade na via principal das leis orçamentárias, isto é, por ação direta. A doutrina clássica, que tem como um de seus expoentes o professor San Tiago Dantas, pontua que: “nem toda a lei é norma jurídica. A lei é a estrutura externa da norma jurídica, mas pode haver lei contendo um ato administrativo, como por exemplo: art. 1º, fica aberto um crédito de tantos contos de réis para realização do serviço de extinção da malária. A lei aí é elaborada segundo os preceitos constitucionais para esta espécie de ato, mas não contém uma norma jurídica. Contém, apenas, um comando administrativo; contém uma norma que não é universal, que se concretiza em torno de determinado caso, que é particular e, portanto, pertence ao tipo de comando administrativo, não ao tipo de comando jurídico. Daí uma divisão: lei em sentido formal e lei em sentido material. A lei em sentido formal é aquela elaborada segundo os preceitos constitucionais referentes ao assunto, FGV DIREITO RIO 42 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Como afirma Madison, não se nega que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados”. (“O Federalista”, n. 48). A limitação do poder, dada esta sua natureza intrínseca, só pode ser obtida pela contraposição a outro poder, isto é, o poder freando outro poder. Neste ponto, “O Federalista” se aproxima de Montesquieu. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação de poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser anotadas. Na seara orçamentária é comum ocorrerem anualmente, no contexto brasileiro atual, situações concretas de interação conflituosa entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, abarcando, de forma subjacente, os inevitáveis conflitos político-partidários – aliados e oposição. A sua raiz, certamente, está, em especial, na tentativa de ampliação dos respectivos âmbitos de atuação no que se refere ao orçamento, com reflexos diretos na previsão de receitas e despesas e, em particular, na especificação e alocação dos gastos, os quais têm como pressuposto necessário a sua previsão em lei112, além de condicionarem os projetos e programas que norteiam a ação governamental. Essa disputa é suavizada em função das vinculações constitucionais e legais de determinadas receitas à despesas específicas, como as de seguridade social, folha de pagamentos e dos compromissos das dívidas, o que centraliza o âmbito dessas tensões nas denominadas despesas de Investimentos. O Poder Judiciário, sem dúvida, também se insere de forma decisiva nesse sistema de checks and balances relativamente ao orçamento, às receitas e às despesas, notadamente por sua competência para exercer o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, sem esquecer, entretanto, que a atuação independente pressupõe autonomia financeira, razão pela qual este Poder, como os outros, também atua ativamente em busca de proteção de seus interesses financeiro-orçamentários. Nesse sentido vale ressaltar o disposto no artigo 99 da CR-88, que dispõe in verbis: Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa113 e financeira. § 1º – Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias. § 2º – O encaminhamento proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete: I – no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais; e lei em sentido material é aquela não só elaborada desse modo, mas que também contém uma norma jurídica”. In: DANTAS, SAN TIAGO. Direito Civil. Parte Geral. Clássicos da Literatura Jurídica. 4ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p.87-88. Nessa linha, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre foi no sentido de considerar a lei de efeito concreto como inidônea para o controle abstrato de normas, razão pela qual considerava majoritariamente inadmissível a ação direta de inconstitucionalidade contra lei orçamentária que destinasse determinada soma pecuniária ou percentagem de receita fixada para finalidade/ despesa específica, tendo em vista não serem as normas dotadas de abstração e generalidade (ADI 1640, ADI 2057, ADI 2484). Essa jurisprudência tem sido mitigada nos últimos anos (ADI 2.925, ADI 2108), havendo diversas hipóteses, quando os dispositivos especificamente impugnados possuam suficiente grau de generalidade, que o STF passou a admitir o controle direto, o que será objeto de análise quando do exame dos denominados créditos adicionais. 109 Para análise detalhada quanto à natureza do orçamento (Teoria da Lei Formal, Teoria da Lei Material e A Teoria da Lei “Sui Generis”) v. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro. Renovar, 2008. p. 93-99. 110 Nesse sentido, tendo em vista a competência do Poder Legislativo para “orçar”, isto é, estimar a receita e fixar a despesa, constata-se a mudança radical em relação à Constituição anterior, de 1824, a qual determinava a competência do Poder Executivo para elaborar a peça orçamentária. 111 LIMONGI, Fernando Papaterra. “O Federalista”: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. Vol. 1. 13 ª ed. São Paulo: Editora Ática. p 249-250. 112 Art. 167 da CR-88 estabelece que: “São vedados: I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; II – a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; (...)”, ao passo que o §8°, do art. 165, determina que a LOA fixa as despesas. Essa questão será detidamente analisada na próxima aula pertinente aos Orçamentos. 113 A Súmula 649 do STF prescreve: “É inconstitucional a criação, por Constituição estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”. O FGV DIREITO RIO 43 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I II – no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais. (*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004: § 3º – Se os órgãos referidos no § 2º não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 1º deste artigo. (*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004: § 4º – Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (*) Parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004: § 5º – Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. Esse dispositivo, bem como aqueles que conferem a prerrogativa ao Ministério Público, ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo para elaborarem as suas respectivas propostas orçamentárias serão analisados na Aula 4. Considerando o que foi exposto, percebe-se a distribuição de funções entre os poderes constitucionalmente constituídos enseja três tipos de interações sistêmicas potencialmente conflituosas: (a) Poder Executivo-Poder Legislativo; (b) Poder Legislativo-Poder Judiciário; e (c) Poder Executivo-Poder Judiciário. Conforme já examinado, considerando que no regime federativo adotado na República Brasileira cada ente político (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) possui o seu próprio orçamento, esses conflitos entre os Poderes podem ocorrer nos diversos âmbitos da Federação. Constata-se, assim, que a matéria financeiro-orçamentária suscita constantemente, durante o denominado ciclo orçamentário a ser examinado na próxima aula, a realização concreta do denominado sistema de freios e contrapesos, o que pode ser mais intenso ou não, dependendo do modelo de orçamento adotado no país, conforme será explicitado a seguir e detalhado ao longo da primeira parte do curso. 3.2 A NATUREZA AUTORIZADORA DO ORÇAMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DAS DESPESAS O orçamento anual no que se refere à realização das despesas pode ser autorizativo ou impositivo. Nesses termos, uma vez aprovada a peça orça- Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao qual foi atribuído o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional 45/2004 que incluiu, entre outros, o artigo 103-A e 103-B à Constituição da República Federativa de 1988. FGV DIREITO RIO 44 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mentária anual pelo Poder Legislativo, e sancionada pelo chefe do Poder Executivo, duas possibilidades se afiguram quanto à realização das despesas por parte da Administração Pública dos diversos Poderes: (1) a primeira, se a autoridade responsável por sua execução não tem opção, ou seja, tem que cumprir o que foi, ou vier a ser, determinado pela Casa Legislativa, contexto no qual o orçamento se caracteriza como impositivo àquele que o executa; ou (2) o segundo modelo, no qual a Casa Legislativa, ao aprovar o projeto de lei orçamentária, apenas confere uma autorização para que a Administração Pública do Poder respectivo, inclusive o próprio parlamento, realize o que foi previsto. No segundo caso, o orçamento caracteriza-se por ser instrumento meramente autorizador dos gastos e, por conseguinte, da execução dos programas deles decorrentes. Nesse segundo modelo, que é adotado atualmente no Brasil (orçamento autorizativo), as despesas fixadas pelo Legislativo servem, na prática, como teto ou limite para o executor do orçamento, na medida em que este pode realizar o que se denomina de contingenciamento114, assim como determinar, sem a anuência ou prévio consentimento parlamentar, o corte de despesas previstas no comando legislativo. Rubens Penha Cysne115 analisa a questão nos seguintes termos: Do ponto de vista da política de incentivos fica claro que o excesso de arbitrários contingenciamentos orçamentários (despesas aprovadas pelo Congresso e unilateralmente não executadas pelo Executivo) acaba por gerar perdas para todos os lados. Tratando-se o orçamento de um jogo repetido anualmente, deputados e senadores e destinatários das verbas reagem a tal prática, o que por sua vez gera reação da parte do Executivo e nova reação do Legislativo, etc., num ineficiente ciclo cujo limite se dita pela paciência e capacidade de cada ator de calcular a reação dos demais. Um pouco de observação histórica e de outros países, a exemplo do que se sugere no item quatro acima, mostra que tal processo também existia nos Estados Unidos até 1974, tendo nesta data sido abolido pelo Budget Impoudment Act. 116 A edição do citado Impoundment Control Act of 1974, que é o título X da lei federal117 disciplinadora do processo orçamentário nos Estados Unidos, retirou a possibilidade de o Poder Executivo, unilateralmente, suprimir ou cortar despesas previamente aprovadas pelo Congresso, salvo expressa autorização do próprio Parlamento. No entanto, todos os presidentes americanos que assumiram posteriormente o cargo tentaram reduzir essa dependência em relação ao Legislativo e, assim, reassumir a substancial parcela do poder retirado pelo citado título X, sob o argumento de que não haveria vedação constitucional expressa de se gastar menos do que o fixado pelo Congresso, podendo o Poder Executivo definir, inclusive, itens individuais ou específicos de despesas a serem contingenciadas e não todo o orçamento. Nesse sentido, 114 A expressão contingenciar significa controlar as despesas do orçamento governamental impondo corte à conta de uma rubrica orçamentária ou limitação de empenho e movimentação financeira, o que deveria ter como objetivo exclusivo afastar a possibilidade de desequilíbrios financeiros no decorrer de um exercício, considerando, em especial, a frustração na realização das receitas estimadas, conforme dispõe o artigo 9º da Lei Complementar nº 101/2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse sentido, nos termos em que será analisado a seguir, após identificados os recursos para o atendimento dos programas fixados no orçamento, cabe ao Poder Executivo estabelecer cotas e prazos para a sua utilização em consonância com o desempenho da arrecadação, do comportamento e ritmo das despesas em face das metas de resultado primário do governo. No entanto, na prática, o contingenciamento pode ser utilizado como forma de ampliar o espaço de atuação do Poder Executivo no campo orçamentário. No mesmo sentido, a possibilidade de abrir créditos suplementares sem específica autorização legislativa, utilizando o cancelamento de dotações indicadas na lei orçamentária de forma genérica como fonte ao crédito adicional amplia o espaço de atuação do Executivo. 115 CYSNE, Rubens Penha. O predomínio da agenda fiscal. Conjuntura Econômica. Dez 2007. Vol. 61. nº 12. Fundação Getúlio Vargas. p. 22. 116 Analogamente ao contingenciamento, impoundment significa a não execução pelo Poder Executivo, de forma unilateral, isto é, sem prévio consentimento legislativo, das despesas fixadas na lei orçamentária de forma detalhada por itens. Nesses termos o Impondment Control Act of 1974 é a lei federal, ou o capítulo X da lei que regula o Processo Orçamentário americano, que visa a disciplinar e controlar o contingenciamento. 117 Congressional Budget and Impoundment Control Act of 1974 (Pub.L. 93-344, 88 Status. 297, 2 U.S.C. § 601–688.). United States. U.S. House of Representatives Committee on Rules. Disponível em: <http://www.rules. house.gov/budget_pro.htm>. Pesquisa realizada em 20.05.2008. FGV DIREITO RIO 45 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I para atender aos anseios da administração Clinton, foi editado o Line Item Veto Act of 1996, o qual produziu efeitos até 12 de fevereiro de 1998, período dentro do qual foram contingenciados valores substanciais das leis orçamentárias vigentes. No entanto, em 25 de junho de 1998, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em uma decisão de 6 votos contra 3, no caso Clinton v. City of New York118, confirmou a decisão do juiz Thomas Hogan, da United States District Court for the District of Columbia, a qual havia declarado inconstitucional o não cumprimento das despesas nos termos aprovados no orçamento (budget), isto é, considerou o Line Item Veto Act of 1996 incompatível com a Constituição, na medida em que permitia a não realização de despesas especificamente aprovadas pelo Congresso e de forma unilateral pelo Poder Executivo. Dito de outra maneira, o Poder Judiciário americano considerou indelegável a prerrogativa parlamentar de fixar as despesas de forma impositiva e discriminada. Em que pese a decisão da Suprema Corte, as tensões entre os Poderes Executivo e Legislativo não arrefeceram, o que pode ser constatado pelo discurso inaugural da sessão legislativa do Congresso Americano de 2006 denominado State of the Union Address, em 31 de janeiro de 2006, no qual o ex-presidente Bush urged Congress to “pass the line-item veto”119, o que deixou transparecer que a questão, apesar de disciplinada pelo citado Congressional Budget and Impoundment Control Act of 1974, parece não ter sido definitivamente pacificada. De fato, o atual presidente Barack Obama, que já foi contra a delegação ao Poder Executivo, encaminhou ao Congresso, em maio de 2010, uma proposta, denominada “Reduce unnecessary Spending Act of 2010”, objetivando reestabelecer sistema semelhante ao “line-item veto”, com algumas alterações120, conforme noticiado na imprensa americana nos seguintes termos121: Obama asks Hill for line-item veto he once opposed As senator, turned down Bush (Monday, May 24, 2010.) When President George W. Bush called for a kind of line-item veto four years ago, the top Senate Democrat said it was like getting a “bad sore throat,” and the No. 2 House Democrat called it “a sham.” On Monday, President Obama asked them to reconsider and pass something very similar, for his sake. With fears of a Greek-style debt collapse roiling a Congress already balking at new spending, the White House on Monday proposed a modified line-item veto that would give the administration another crack at forcing Congress to vote on spending cuts. But the proposal will have to pass a Congress wary of giving up power over the purse, and would require a reversal by many Democrats who voted against a similar proposal from Mr. Bush. (...) 118 U.S. Supreme Court No. 97-1374. WILLIAM J. CLINTON, PRESIDENT OF THE UNITED STATES, ET AL, APPELLANTS v. CITY OF NEW YORK ETAL. ON APPEAL FROM THE UNITED STATES DISTRICT COURT FOR THE DISTRICT OF COLUMBIA [June 25, 1998] Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com>.Pesquisa realizada em 20.05.2008 119 Disponível em:<http://www.law.com/ jsp/article.jsp?id=1138874718390>. Pesquisa realizada em 20.5.2008. 120 A proposta cria um procedimento célere para “rescind unnecessary spending”. De acordo com o projeto o termo “rescind” significa: “to eliminate or reduce the amount of enacted funding”. Cópia pode ser obtida em: <http://www.whitehouse.gov/omb/assets/blog/Unnecessary_Spending_Act.pdf>. Pesquisa realizada em 20.5.2008. 121 Disponível em: <http://www. washingtontimes.com/news/2010/ may/24/when-president-george-wbush-called-for-a-kind-of-/>. Pesquisa realizada em 23.6.2010. FGV DIREITO RIO 46 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Isso posto, pode-se identificar a relevância do tema para a escolha de um entre os diversos modelos jus-políticos possíveis para disciplinar o processo orçamentário, especialmente no que se refere à sua relação com as despesas. Saliente-se que no início de todo exercício financeiro no Brasil é comum que o Poder Executivo edite Decreto para bloquear gastos que fora aprovado na lei orçamentária anual (LOA) pelo Parlamento, tanto no âmbito da União como dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. De fato, já no dia 02.01.2012, o Jornal Valor Econômico do anuncia que governo federal prevê a necessidade de contingenciamento, tendo em vista que “as despesas com benefícios previdenciários, assistência social, seguro-desemprego e abono salarial, que constam do Orçamento da União para 2012, recém aprovado pelo Congresso, estão subestimadas em cerca de R$ 8 bilhões”. Assim, “se a previsão do governo se confirmar, a presidente Dilma Rousseff terá uma dificuldade adicional para cumprir a meta de superávit primário deste ano, equivalente a 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB), pois será obrigada a fazer um contingenciamento ainda maior das verbas orçamentárias”. Também no ano de 2011, já no dia 03 de janeiro, antes mesmo da sanção, promulgação e publicação da LOA aprovada em dezembro de 2010 pelo Congresso Nacional, já tinha sido anunciado pelo memso Jornal Valor, em matéria intitulada “Decreto deve bloquear preventivamente o Orçamento”, que a nova presidenta “Dilma Rousseff deve assinar, nos próximos dias, um decreto de bloqueio preventivo do Orçamento da União, até que o projeto aprovado pelo Congresso Nacional seja esmiuçado e as receitas e despesas, reprogramadas pela área econômica do novo governo”. Na mesma linha, no ano de 2010, após a edição de Decreto nº 7.144, de 30 de março de 2010, ocasião em que foram bloqueados R$ 21,8 bilhões, foi editado o Decreto nº 7.189, de 30 de maio de 2010, para contingenciar mais R$ 7,61 bilhões dos gastos autorizados pela lei do orçamento do exercício (LOA 2010), Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010. Esses contingenciamentos, realizados por meio da limitação do empenho122 e a movimentação financeira, fundamentaram-se nos artigos 8º e 9º da Lei Complementar nº 101/00, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os quais indicam que: Art. 8o Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do art. 4o, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso. Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso. 122 O conceito e a disciplina jurídica do empenho serão estudados na Aula 5. FGV DIREITO RIO 47 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Art. 9o Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. (grifo nosso) Como ocorre normalmente, a oposição critica o contingenciamento das despesas, tendo em vista a redução do papel do parlamento em relação ao orçamento. Nesse sentido, conforme amplamente noticiado pela Agência Câmara123 no dia 02/06/2010, em relação ao orçamento de 2010: A decisão do Executivo de ampliar o contingenciamento das despesas discricionárias (não obrigatórias) do orçamento deste ano em R$ 7,614 bilhões foi criticada pela oposição nesta terça-feira, que viu na iniciativa deficiências no planejamento dos gastos e da receita. Na base governista, o bloqueio foi encarado como uma medida de austeridade e de preocupação sobre a alta inflacionária deste ano. Para o coordenador da bancada do PSDB na Comissão Mista de Orçamento, deputado Rogério Marinho (RN), a decisão mostra que o governo está falhando no planejamento. “Ele não prevê corretamente receitas e despesas e isso faz com que tenha que usar desses artifícios”, disse Marinho, lembrando que a razão do bloqueio foi uma previsão de queda da arrecadação para este ano. Segundo ele, o decreto de contingenciamento, publicado na segunda-feira no Diário Oficial da União, evidencia ainda uma falta de prioridades do Executivo. “O governo quer sinalizar ao mercado que tem austeridade para coibir a inflação. Mas o que ele está fazendo é cortando ações essenciais ao Estado, como educação, quando deveria cortar gastos ruins, como o excesso de cargos comissionados, de viagens e diárias”, afirmou. Marinho referiu-se ao fato de o bloqueio atingir o Ministério da Educação, que teve a sua margem de empenho reduzida em R$ 1,339 bilhão, a maior entre todos os ministérios. “O governo aparelhou o Estado e não tem a coragem de cortar no custeio, no gasto ruim. Prefere cortar no essencial, no que significa desenvolvimento e infraestrutura”, concluiu o deputado. Equilíbrio Já na base governista a revisão orçamentária foi encarada como uma necessidade. “Governo sério, que tem responsabilidade com as contas públicas, tem que encarar isso [contingenciamento] como ato de rotina. Ele contingencia e, de acordo com o equilíbrio das contas, vai liberando no decorrer do ano. Até para não dizer que estamos fazendo ‘farra eleitoral’”, disse o deputado José Guimarães (PT-CE). Segundo ele, ao contrário do que diz a oposição, o bloqueio não atingiu as ‘partes nobres’ do orçamento, como o Programa de Aceleração do Crescimento 123 Notícia disponível no sítio: <http:// www.anajustra.org.br/noticias/noticia.asp?id=4386&cat=4>. Pesquisa realizada em 28.06.2010. Matéria intitulada “Oposição critica contigenciamento e base fala em austeridade”. FGV DIREITO RIO 48 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (PAC), os programas sociais, nem os recursos para o aumento do salário mínimo e das aposentadorias e pensões dos beneficiários do INSS que ganham acima do mínimo. “Gastança seria abrir as porteiras”, disse o deputado. Guimarães afirmou ainda que o contingenciamento, ao limitar os gastos públicos federais, vai diminuir a pressão sobre a inflação, que vem em ritmo de alta. O decreto de contingenciamento é o segundo do ano. O primeiro, de março, já havia limitado as despesas em R$ 21,8 bilhões – R$ 21,5 bilhões no Executivo e R$ 300 milhões no Legislativo, Judiciário e Ministério Público da União (MPU). Desta vez, o bloqueio foi de R$ 7,489 bilhões para o Executivo, R$ 24,4 milhões no Legislativo, R$ 88,9 milhões no Judiciário e R$ 11,7 milhões no MPU. Avaliação Na consultoria de orçamento da Câmara, o impacto do novo contingenciamento na economia foi visto com reservas. Os consultores avaliam que ele poderá não ter o efeito previsto pelo governo no controle da inflação. O motivo é que o bloqueio não afetou a meta de superávit fiscal – de 2,15% do Produto Interno Bruto (PIB) para o governo central (Tesouro Nacional, INSS e Banco Central) e 0,2% para as estatais124. Com isso, as expectativas sobre a política fiscal, e sobretudo a pressão que ela exerce sobre a manutenção do ritmo elevado da atividade econômica, não deverão mudar. Ou seja, o Executivo mantém a sua demanda em alta e o contingenciamento afeta apenas a programação temporal dos gastos, avaliam os consultores. Em abril de 2009 a União também havia contingenciado expressivo montante de gastos autorizados pela Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008, a qual estimava receita e fixava a despesa para o exercício de 2009. A limitação das despesas foi efetivada antes de completado três meses da aprovação do orçamento, por meio da edição do Decreto nº 6.808, de 27 de março de 2009, o qual alterou o Decreto nº 6.752, de 28 de janeiro de 2009, que dispunha sobre a programação financeira e estabelecia o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo para o exercício. De forma análoga ao que ocorreu em 2009, o Jornal Valor125 noticiou o contingenciamento realizado em 2008 nos seguintes termos: O corte de R$19,41 bilhões anunciado há duas semanas pelo governo federal nas despesas discricionárias da União, no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social, vai atingir principalmente os investimentos, sobretudo aqueles incluídos pelo Congresso ao emendar o projeto inicial. (...) Alguns Ministérios perdem praticamente toda verba de investimento aprovada pelos deputados e senadores (...) entre custeio e investimentos, os órgãos do governo ficam proibidos de executar R$19,2 bilhões com o corte”, sendo que “os outros R$ 200 milhões terão de ser economizados pelos Poderes Judiciário e Legislativo e pelo Ministério Público. 124 Vide art. 2º da Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2010 (LDO para LOA de 2010). 125 Jornal Valor de 24 de abril de 2008, p. A3. FGV DIREITO RIO 49 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Essa sistemática, que se repete a cada ano, suscita, obviamente, muito embate político, como ocorreu em especial em 2008, pelo fato de que pouco tempo após o contingenciamento, conforme noticiado pelo mesmo jornal, em 21 de maio de 2008, p. A4, “o governo encaminhou ontem ao Congresso uma nova reavaliação de receitas e despesas no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social.(...) Em relação à estimativa feita pelo Congresso, o adicional esperado para este ano já chega a R$17,52 bilhões no mesmo conceito. Diante disso, o governo anunciou que vai elevar em R$ 4,6 bilhões os limites de empenho e movimentação financeira dos órgãos federais este ano,relativamente às despesas discricionárias. Com isso reverte-se, parcialmente, o contingenciamento de R$19,4 bilhões anunciado logo após a sanção do orçamento” (grifo nosso). Na mesma linha, por exemplo, a Secretária de Fazenda do Município do Rio de Janeiro, informando ter dúvidas quanto à arrecadação que seria possível no ano de 2009, em função dos efeitos da crise financeira, declarou126 que “queremos começar com muito contingenciamento”. Os fatos descritos, que se repetem anualmente, ensejam constantes tentativas de redefinição do atual modelo orçamentário brasileiro no que se refere à necessidade, ou não, da adoção do chamado orçamento impositivo. A Proposta de Emenda à Constituição nº 565/2006, à qual foram apensadas as PECs nºs 169/2003; 385/2005; 465/2005; 46/2007; e 96/2007, e que possui como objetivo central tornar “obrigatória a execução da lei orçamentária”, proposta até hoje não aprovada, traduz a citada disputa por maior espaço de atuação de forma explícita, especialmente na definição da alocação e da utilização dos recursos públicos. A PEC nº 565/2006 intenciona acrescer o artigo 165-A à CR-88 para estabelecer em seu caput que: a programação constante da lei orçamentária anual é de execução obrigatória, salvo se aprovada, pelo Congresso Nacional, solicitação, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, para cancelamento ou contingenciamento, total ou parcial, de dotação. Dessa forma, caso fosse aprovada a alteração constitucional, além de tornar obrigatória a execução do orçamento, nos termos aprovados pelo Legislativo, somente seria possível alterar a programação estabelecida, pelo parlamento, por meio de cancelamento ou contingenciamento da dotação, se aprovada previamente a alteração pelo próprio Congresso Nacional. Assim, estaria inviabilizada a edição de Decreto do Executivo para efetivar cortes e redimensionamento de despesas unilateralmente, como ocorre todos os anos. A leitura da matéria abaixo, publicada no Jornal Valor do dia 07/05/2008, relacionada à votação da citada PEC nº 565/2006 auxilia a compreensão do 126 Jornal Valor de 30 e 31 de dezembro de 2008 e 1 de janeiro de 2009, p A5. FGV DIREITO RIO 50 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I contexto político atual e a sua correlação com a matéria orçamentária, especialmente no que se refere ao caráter autorizador da fixação de despesas pelo Parlamento e o seu contingenciamento pelo Poder Executivo. Por todo o exposto nesta aula, constata-se a relevância que assume o modelo de distribuição de competências entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, matéria de cunho político-jurídico, em especial quanto à interligação entre (1) a realização das despesas e (2) a sua fixação no orçamento. Nesse sentido, a natureza exclusivamente autorizadora do orçamento, no que se refere à realização das despesas, caracteriza parte fundamental da estrutura das finanças públicas do país, refletindo a atual ponderação dentro do sistema de checks and balances brasileiro. FGV DIREITO RIO 51 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I As tensões e os desafios decorrentes da distribuição de funções entre os poderes constitucionalmente constituídos na área das finanças públicas podem ser visualizados da seguinte forma: A adoção da forma de Estado federado, já examinada na aula passada, eleva sobremaneira o escopo das relações potencialmente conflituosas no que se refere à despesa, à receita, ao crédito, à dívida pública e ao orçamento, tendo em vista que se abre a possibilidade de tensões entre os Poderes dos diferentes níveis de governo, além das previsíveis contendas entre Poderes distintos das diversas esferas de governo. De fato, o Federalismo Fiscal, por se estruturar sob a constante tensão entre o imperativo da unidade do país de um lado e a necessidade de autonomia local de outro, eleva em muito o grau de complexidade do modelo jurídico-institucional do país. A interseção entre esses dois elementos – a distribuição de funções entre os poderes e o modelo de federalismo fiscal – e os possíveis conflitos e tensões decorrentes dessas interações, no plano vertical e horizontal, caracterizadora da complexidade das Finanças Públicas da República Federativa do Brasil, pode ser visualizada nos seguintes termos: Ressalte-se que foram suprimidas, considerando a dificuldade de visualização, a reprodução gráfica dos conflitos entre os poderes dos diferentes níveis de governo (ex. Poder Judiciário Estadual – Poder Executivo Municipal; Poder Judiciário no âmbito da União – Poder Executivo Estadual, etc), FGV DIREITO RIO 52 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I o que representaria com maior fidedignidade a complexidade das interações sistêmicas das finanças públicas na República Federativa do Brasil. Em que pese o exposto, merece destaque a interessante análise sobre a política orçamentária no presidencialismo de coalizão brasileiro realizada por Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi127, onde sustentam que, na realidade, o conflito não seria propriamente entre os Poderes Executivo e Legislativo, e sim entre os dois blocos parlamentares distintos, ou seja, aqueles que apóiam o Poder Executivo e outros que fazem oposição ao governo: A principal fonte de conflitos do sistema político brasileiro não advém das relações entre poderes e, sim, de clivagens político-partidárias. Os parlamentares dividem-se em dois grandes campos: os que apóiam e os que se opõem ao Executivo. Essa distinção implica, em primeiro lugar, o apoio da maioria à centralização da condução do processo orçamentário em sua fase congressual. Há uma delegação de poder das bases para as lideranças partidárias, representadas neste caso pelo relator-geral e seus colaboradores diretos. Essa delegação explica o papel reduzido que as emendas individuais desempenham na participação do Congresso no processo orçamentário e a importância que as questões macroeconômicas assumem para os relatores. Antes de mais nada, o orçamento visa garantir o sucesso da política do governo, especialmente a econômica, prioritária no período analisado. (grifo nosso) A despeito da pertinência da conclusão quanto à centralização das decisões nas mãos do relator-geral, da redução do papel das chamadas emendas individuais, bem como da preponderância dos aspectos macroeconômicos sobre o orçamento brasileiro, a mencionada subdivisão entre os dois blocos parlamentares – de apoio e de oposição ao Executivo – consubstancia, sob nosso ponto de vista, na verdade, elemento do processo político de nosso presidencialismo, o qual reflete o desdobramento político-partidário da tensão estrutural subjacente ao processo de distribuição de funções entre os Poderes, e não a principal fonte de conflitos do sistema político brasileiro. Dito de outra forma, o sistema de distribuição de funções adotado e as definições de natureza estruturantes, tais como o modelo de orçamento, impositivo ou autorizativo, e a especificação das atribuições de cada Poder no processo orçamentário, precedem o embate político partidário e de formação de maiorias parlamentares circunstanciais, uma vez que se encontram, no caso brasileiro, consolidadas na própria Constituição. Por fim, cumpre destacar que, nesse cenário de orçamento autorizativo, a estimativa da receita assume caráter fundamental dentro do contexto orçamentário, pois é com base nela que são autorizadas as despesas (estimadas), requisito necessário e essencial à sua efetivação nos termos do já citado artigo 167, incisos I e II, da CR-88. Assim, receita superestimada, o que pode 127 FIGUEIREDO, Argelina Cheibub e LIMONGI, Fernando. Política Orçamentária no Presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Ed. FVG, 2008. p.15. FGV DIREITO RIO 53 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I decorrer da própria atuação parlamentar, conforme será estudado a seguir, conduz e implica despesa autorizada em montante superior à realidade fiscal possível. Essa possibilidade, de receita estimada acima do razoável, facilita a acomodação política da elaboração do orçamento bem como o uso distorcido ou indevido do mencionado contingenciamento dos gastos, unilateralmente pelo Poder Executivo, tendo em vista o argumento sempre disponível, quando da execução do orçamento, da necessidade de manutenção do equilíbrio orçamentário128 associado à natureza autorizadora da lei orçamentária anual. Essas características propiciam o ciclo vicioso e acirramento de atritos e disputas com o Poder Legislativo, ainda que a base econômica sobre a qual ocorram as disputas, conforme será estudado, seja limitada às denominadas despesas discricionárias, haja vista a prévia vinculação de elevado percentual de despesas na própria Constituição, em dispositivos legais sobre os quais o legislador ordinário e o governo não tem muita margem de atuação ou por força de dívidas contratuais. Importante ressaltar, ainda, que a realização de receitas em nível superior ao estimado durante a execução orçamentária, antes ou após possíveis contingenciamentos, deflagra a elevação dos limites de empenho e movimentação financeira referente às despesas discricionárias, o que pode ensejar a reversão parcial ou total do contingenciamento.129 Cabe repisar que o contingenciamento das dotações não pode incidir sobre as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente político (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios), como pessoal, transferências a estados e municípios, sentenças judiciais, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e sobre aquelas protegidas pela lei de diretrizes orçamentárias. Não obstante exposto, relativamente à importância da estimativa de receita, nos termos salientados por Harada130, “desde a Emenda 18/65, o requisito da prévia estimativa de receita, decorrente de tributo criado ou aumentado, deixou de existir como condição para sua cobrança. Talvez esse fato explique o desinteresse dos parlamentares”. Entretanto, a Comissão Mista do Orçamento, cujas competências serão analisadas na próxima aula, possui um relator da receita, o qual, com o auxílio do Comitê de Avaliação da Receita, examina e avalia aquelas previstas pelo Executivo131 no projeto de lei orçamentária132. O objetivo é verificar se o montante estimado está de acordo com os parâmetros econômicos previstos para o ano seguinte. Na hipótese de encontrar algum erro ou omissão, é facultado ao Legislativo reavaliar a receita definida pelo Executivo e propor nova estimativa, com fundamento no artigo 166, §3°, III, a da CR-88. Na próxima aula serão examinadas as diversa peças orçamentárias (PPA, LDO e LOA) e o denominado ciclo orçamentário. 128 Apesar do objetivo geral de equilíbrio entre a receita e a despesa, uma política fiscal anti-cíclica é defendida por muitos economistas influenciados pela teoria keynesiana, tendo em vista a relevância da função estabilizadora do governo, que ao lado das funções alocativa e distributiva compõem a denominada “política fiscal”. Uma presença ativa do governo, agora novamente em evidência, por força da crise internacional de 2008/2009, ensina Fabio Giambiagi, “passou a ser defendida, principalmente, a partir da publicação do livro da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda em 1936, de autoria de John Maynard Keynes. Até então, acreditava-se que o mercado tinha uma capacidade de se auto-ajustar ao nível de pleno emprego da economia. A flexibilidade de preços e salários garantiria este equilíbrio: a existência de desemprego só seria explicada, por exemplo, por um nível de salários reais acima daquele que equilibraria a demanda e a oferta de trabalho, o que poderia ocorrer em razão da ação dos sindicatos. Keynes, ao contrário, apontava que o limite ao emprego era dado pelo nível de demanda: as firmas só estariam dispostas a empregar determinada quantidade de trabalho conforme as expectativas de venda de seus produtos. Desta forma, tudo que pudesse ser feito para aumentar a quantidade de gastos na economia contribuiria para uma redução da taxa de desemprego da economia. Neste sentido, Keynes deu ênfase ao papel do Estado mediante as políticas monetárias e, principalmente, fiscal para promoverem alto nível de emprego. (...) A política fiscal pode se manifestar diretamente, através da variação dos gastos públicos em consumo e investimento, ou indiretamente, pela redução das alíquotas de imposto, que eleva a renda disponível do setor privado. Por exemplo, em uma situação recessiva o governo pode promover um crescimento de seus gastos em consumo e/ou investimento e com isso incentivar um aumento da demanda agregada, tendo como resultado um maior nível de emprego e renda da economia. Alternativamente, o governo pode reduzir as alíquotas de impostos, aumentando, desta forma, o multiplicador de renda da economia. No caso da existência de um alto nível de inflação, por sua vez, decorrente de um excesso de demanda agregada na economia, o governo pode agir de forma inversa ao caso anterior, promovendo uma redução da demanda agregada, através da diminuição dos seus gastos e/ou do aumento das alíquotas de impostos – que reduziria a renda disponível e, consequentemente, o nível de consumo da economia. Dependendo da situação, o governo pode preferir agir sobre a demanda agregada da economia através da política mone- FGV DIREITO RIO 54 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 4 – O PLANEJAMENTO E AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS (PPA, LDO E LOA) Apresentados os aspectos gerais da matéria, delineados os conceitos de necessidades públicas e da atividade financeira do Estado, estabelecidas as grandes linhas do sistema de distribuição de funções entre os Poderes da República bem como do Federalismo Fiscal, todos necessários à determinação de como as receitas e as despesas interagem com o orçamento, cumpre agora iniciar o estudo do planejamento do setor público e a sua interligação com as leis orçamentárias. De fato, somente por meio do planejamento das ações do Estado é possível atingir o desejável equilíbrio de longo prazo entre as receitas e as despesas públicas e, ao mesmo tempo, atender às necessidades públicas e ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis. 4.1 AS LEIS ORÇAMENTÁRIAS (PPA, LDO E LOA) E O CICLO ORÇAMENTÁRIO Orçamento é termo derivado de orçar, do italiano orzare, o qual, em sentido vulgar, significa, segundo o Dicionário De Plácido e Silva133, “a estimativa de custo a respeito das coisas, cujo valor de construção, ou de custeio, é necessário saber, por antecipação”. Nas finanças públicas clássicas,134 o orçamento consubstanciava-se apenas como instrumento de estimativa de receitas e de autorização de despesas por objeto (pessoal, material, serviços, etc.), tendo em vista, quase exclusivamente, as necessidades das unidades organizacionais e o objetivo de registrar os eventos. De fato, conforme já destacado, a previsão constitucional do orçamento no Brasil, incluindo a fixação de despesas e a estimativa de receitas, assim como a determinação de elaboração de um balanço geral destas e das despesas do ano anterior, está expressa desde a Constituição Política do Império de 1824, possuindo à época, entretanto, conotação meramente contábil para o controle financeiro do que se realizou, pois não era ainda instrumento de medição de desempenho, tampouco de planejamento de política fiscal. Não poderia ser diferente ante a concepção de atuação do Estado Patrimonial, conforme já anotado no início da Aula 1. Com o desenvolvimento do denominado orçamento de desempenho ou de realizações, o enfoque passou a ser, também, em relação aos resultados dos gastos e não apenas com o seu controle. A preocupação com o registro da despesa assumiu caráter secundário e instrumental, pois o foco dirige-se à contraposição entre as metas objetivadas e os resultados obtidos. O interesse, nesses termos, não se finda apenas em quantificar o que o governo adquiriu ou os itens de despesa, mas sim as suas ações para atender ao cidadão contribuinte. Nesse sentido, aponta Rubens Penha Cysne135, em análise sobre o orçamento público norte-americano: tária. Em casos de recessão ou desaceleração do crescimento econômico, o governo pode promover uma redução das taxas de juros, estimulando desta forma o aumento dos investimentos e, consequentemente o crescimento da demanda agregada e da renda nacional, Alternativamente, em uma situação de excesso de demanda com impactos inflacionários, o governo pode aumentar as taxas de juros, reduzindo, desta maneira, a demanda agregada da economia, Para se atingir as prioridades da política econômica, o mais comum , na prática, é uma ação combinada das políticas fiscal e monetária por parte do governo.” In. GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática no Brasil. 3ª Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 14/15. 129 Ressalte-se a relevância do disposto no artigo 9 º, § 1º, da LRF, cuja aplicação objetiva garantir a realização do que foi definido na LOA mesmo na hipótese de contingenciamente, ao dispor que: “No caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas.” O empenho será estudado na aula pertinente às despesas públicas. 130 HARADA. Op.cit. p.59. 131 O artigo 12, § 1º, da LRF estabelece que a “Reestimativa de receita por parte do Poder Legislativo só será admitida se comprovado erro ou omissão de ordem técnica ou legal”. 132 Um exemplo concreto pode auxiliar a compreensão do tema: considerando que a crise econômica mundial já havia apresentado impacto concreto sobre a atividade econômica e a arrecadação da União no final do próprio exercício de 2008, conforme noticiado pelo Jornal Valor da sexta-feira e fim de semana, 12, 13 e 14 de dezembro de 2008, A10, “a Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO), aprovou ontem, a revisão do relatório de arrecadação do projeto de Orçamento da União para 2009 (...). Fica referendada, assim, a redução de R$ 15,34 bilhões no volume esperado de receitas primárias brutas no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social (que exclui empresas estatais não-dependentes do Tesouro Nacional). Em conseqüência disso, cerca de R$ 10 bilhões do volume que iria para despesa de custeio e investimento dos órgãos federais terão que ser cortados pelo relator geral (...)”. 133 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense. Rio de Janeiro, 2002. p. 575. FGV DIREITO RIO 55 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I um passo adiante em relação ao orçamento itemista foi determinado pelo orçamento de desempenho, este último fruto dos estudos da Comissão Hoover, em 1949. O objetivo principal da Comissão Hoover foi reorganizar o Executivo norteamericano após a Segunda Guerra. Em uma de suas conclusões, a Comissão sugeriu que o orçamento federal passasse a se estruturar com base em atividades e medidas de desempenho (“o que o governo faz”), e não apenas com base nos itens de despesa (“o que o governo gasta”). O foco deveria passar dos meios (despesas) aos fins (retorno ao contribuinte). Tratava-se tal mudança de ênfase, na verdade, de uma idéia que se desenvolveu aos poucos, em função da elevação dos gastos públicos determinada pelo New Deal (1933-1938) e pela Segunda Grande Mundial (1939-1945). O orçamento de desempenho também se qualifica como orçamentoprograma se o mesmo, além de contrapor metas objetivadas e os resultados obtidos, estiver, também, vinculado ao planejamento central136 das ações de governo137. Nesse sentido, o orçamento-programa é o instrumento nuclear de coordenação e realização do planejamento econômico e social, na medida em que viabiliza, com programas anuais138, a realização do plano geral de governo de desenvolvimento de longo prazo. A introdução oficial do planejamento de governo no Brasil ocorreu com a edição do Decreto-lei n° 200/1967, o qual estabelece no artigo 6°, I, que as atividades da Administração Federal devem obedecer, entre outros, ao princípio do planejamento. O artigo 7° do mesmo diploma normativo, que faz parte do Capítulo I denominado“ Do Planejamento”, dispõe, in verbis: Art. 7º A ação governamental obedecerá a planejamento que vise a promover o desenvolvimento econômico-social do País e a segurança nacional, norteandose segundo planos e programas elaborados, na forma do Título III, e compreenderá a elaboração e atualização dos seguintes instrumentos básicos: a) plano geral de governo; b) programas gerais, setoriais e regionais, de duração plurianual; c) orçamento-programa anual; d) programação financeira de desembolso. Nessa linha de intelecção, o artigo 174 da CR-88 consagra o planejamento como instrumento essencial à ação do Estado, na medida em que o mesmo é qualificado como determinante para o setor público. O dispositivo da atual Constituição enuncia: Art. 174 Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. (grifo nosso) 134 Ensina Regis Fernandes que: “Classicamente, o orçamento é uma peça que contém a previsão de receitas e a autorização das despesas sem preocupação com planos governamentais e com interesses efetivos da população. Era mera peça contábil, de conteúdo financeiro” v. DE OLIVEIRA, Regis Fernandes e HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. 3ª ed. revista e ampliada. Editora Revista dos Tribunais, 1999. p.69. 135 CYSNE, Rubens Penha. O Orçamento Público: o caso norte-americano. Conjuntura Econômica. Janeiro 2008. Vol. 62. nº 01. Fundação Getúlio Vargas. p. 19-20. 136 Conforme ensina Ricardo Lobo Torres, “O Estado do Planejamento não se confunde com o Estado de Planificação, que é sempre uma manifestação totalitária ou socialista, nem está em vias de extinção, como pretendem os adeptos do pós-modernismo, que vislumbram o desaparecimento dos planos estatais, substituídos pela repartição de responsabilidades financeiras entre o Estado e a Sociedade”. v. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro. Renovar, 2008. p.77. 137 Assim o orçamento é o elo entre o sistema de planejamento e as finanças. 138 O artigo 16 do Decreto-lei 200/1967 dispõe que: “Em cada ano, será elaborado um orçamento-programa, que pormenorizará a etapa do programa plurianual a ser realizada no exercício seguinte e que servirá de roteiro à execução coordenada do programa anual”. FGV DIREITO RIO 56 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I No mesmo sentido, da utilização do orçamento como instrumento de planejamento e de controle da ação governamental, a Constituição, no artigo 165, dispositivo inserido na Seção II do Capítulo II do Título VI, intitulada “Dos Orçamentos”, criou um sistema integrado de previsão, alocação e controle de recursos coletivos, bem como de gestão e de execução das diretrizes, objetivos, metas e prioridades do setor público, o que se dá por meio de três leis orçamentárias: o plano plurianual (PPA), as diretrizes orçamentárias (LDO) e os orçamentos anuais (LOA). Essas leis, apesar de consubstanciarem documentos distintos, possuem finalidade comum e harmônica, isto é, atender as necessidade públicas consagradas por meio do processo político. Saliente-se que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição, em particular aqueles de que tratam os artigos 21, IX, 174, §1° e 214, devem ser necessariamente elaborados em consonância com o plano plurianual (PPA) o qual, no âmbito da União, é apreciado pelo Congresso Nacional139. Dessa forma, o planejamento estatal deve necessariamente ser coordenado ao PPA. O PPA, conforme será detalhadamente examinado abaixo, abrange (a) os três últimos anos do chefe do Poder Executivo em exercício; e (b) o primeiro ano do mandato do sucessor, devendo a lei que o instituir, nos termos do artigo 165, § 1º da CR-88, estabelecer, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da Administração Pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes, bem como para as relativas aos programas de duração continuada.140 Ainda, nos termos do artigo 167, §1º, da CR-88, nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem a sua prévia inserção no Plano Plurianual, ou sem lei que autorize a inserção, sob pena de crime de responsabilidade. Tendo em vista consubstanciar mera enunciação de programação e orientação, o PPA é lei formal, sendo dependente do orçamento anual para possuir eficácia relativamente à realização das despesas. No mesmo sentido, a LDO141 também é lei formal, compreendendo apenas as metas e prioridades da Administração Pública – que inclui as despesas de capital para o exercício financeiro seguinte e contém simples orientação para a elaboração da lei orçamentária anual142– razão pela qual não cria, conforme ensina Ricardo Lobo Torres143, “direitos subjetivos para terceiros nem tem eficácia fora da relação entre os Poderes do Estado”. Diferencia-se do PPA na medida em que se refere às metas e prioridades para o exercício subseqüente. Constitui-se, dessa forma, em plano prévio operacional de curto prazo, baseado em dados e informações de natureza econômica e social, para fundamentar e orientar a posterior elaboração da proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público, isto é, um verdadeiro elo de ligação entre o PPA e a LOA. A jurisprudência tradicio- 139 Art. 165, §4º, da CR-88. 140 Dispõe o artigo 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Lei Complementar nº 101/00, que: “Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios”. 141 O § 1º do art. 4º da LRF determina que a LDO conterá Anexo de Metas Fiscais, em que “serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes”. 142 Estabelece ainda o § 2º do artigo 165 da CR-88 que a lei de diretrizes orçamentárias “disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.” 143 TORRES. . Op.cit. p.85. FGV DIREITO RIO 57 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I nal do Supremo Tribunal Federal, a qual tem sido mitigada ultimamente, conforme já salientado144, é no sentido de que, por se tratar de lei de efeitos concretos, a LDO não se submete ao controle de constitucionalidade pela via direta, conforme se depreende da ementa da ADI 2.484-MC: Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. (ADI 2.484-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 19-12-01) Já a lei orçamentária anual (LOA), observados os princípios da universalidade, unidade, anterioridade, anualidade, legalidade, exclusividade, transparência, não afetação, equilíbrio financeiro, redistribuição de rendas, desenvolvimento econômico, e economicidade, conforme será explicitado no final da aula, é o instrumento normativo que fixa a despesa e estima a receita anualmente, evidenciando a política econômica e financeira de curto prazo do governo. Saliente-se, no que se refere à LOA, a relevância do orçamento-programa como instrumento de medição do desempenho e de vinculação da execução orçamentária ao planejamento central. Destaque-se, ainda nesse contexto, a essencialidade da programação financeira de desembolso145 para a definição do ritmo146 da execução orçamentária. O fluxograma abaixo visa auxiliar a compreensão do que foi até aqui exposto: Dessa forma, a Constituição estabelece três planejamentos orçamentários, os quais, conforme ensina Ricardo Lobo Torres147, são resultado da influência “da Constituição da Alemanha, que prevê o plano plurianual (eine mehrjahrige Finanzplanung – art. 109, 3), o plano orçamentário (Haushaltsplan – art.110), e a lei orçamentária (Haushaltsgesetz – art. 110), só que lá se discute se o plano orçamentário é realmente distinto da lei orçamentária.” Com o objetivo aprofundar o estudo das três leis orçamentárias, inicialmente serão abordados os seus aspectos essenciais quanto à elaboração, iniciativa, apreciação e votação dos projetos, bem como à vigência das leis orça- 144 Em especial, ADI 2.925 e ADI-MC 4.048, que serão analisadas quando da apresentação dos denominados créditos adicionais que, ao lado dos créditos orçamentários, compõem as autorizações legislativas para que o Poder Executivo possa realizar despesas para a consecução dos projetos e programas que decorrem do planejamento. 145 Dispõe o artigo 8° da Lei Complementar n° 101/2000: “Até trinta dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do artigo 4°, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso.” 146 O artigo 17 do Decreto-lei n° 200/1967 dispõe que: “Art. 17. Para ajustar o ritmo de execução do orçamento-programa ao fluxo provável de recursos, o Ministério do Planejamento e Coordenação Geral e o Ministério da Fazenda elaborarão, em conjunto, a programação financeira de desembolso, de modo a assegurar a liberação automática e oportuna dos recursos necessários à execução dos programas anuais de trabalho”. 147 TORRES. Op.Cit.p.78. FGV DIREITO RIO 58 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mentárias, o que ajudará a traçar o perfil de cada uma das leis. Com efeito, o conjunto dessas matérias constitui parte do denominado Ciclo Orçamentário, o qual corresponde ao período em que se realizam as atividades próprias e específicas do processo orçamentário no âmbito de cada ente político (da União, de cada Estado, do Distrito Federal e de cada Município), compreendendo a elaboração, envio do projeto de lei, apreciação, emendas, votação, sanção e publicação, execução das leis orçamentárias e de créditos adicionais e, por fim, o controle interno, externo e social. Pode-se visualizar graficamente o exposto nos seguintes termos: Na próxima aula serão analisados os Créditos Orçamentários e Adicionais (Aula 5); na Aula 6 as Despesas Públicas e a Responsabilidade Fiscal na Execução do Orçamento; na Aula 7 será estudado o Financiamento dos Gastos, a Dívida e as Operações de crédito; na Aula 8 as Transferências Constitucionais e as Repartições de Receitas tributárias, na Aula 9 as Receitas Públicas e na Aula 10 o Controle e a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública. Importante, ainda, destacar que, em função do princípio da simetria e de nosso federalismo fiscal, os mesmos princípios estruturantes das Finanças Públicas no âmbito da União são aplicáveis aos Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive no que se refere ao denominado ciclo orçamentário, ressalvadas as regras específicas que serão objeto de estudo ao longo do curso. 4.2 INICIATIVA, ELABORAÇÃO, APRECIAÇÃO E VOTAÇÃO DOS PROJETOS O PPA, a LDO e a LOA são leis de iniciativa do Poder Executivo, nos termos do caput do artigo 165 da CR-88, e servem, conforme já salientado, de elo de ligação entre o planejamento e a ação governamental, ou seja, a atuação concreta do poder público pressupõe a existência dos orçamentos, sem os quais não pode haver utilização do dinheiro público para realizar despesas (art. 167, I e II da CR-88). Nos termos do artigo 84, XXIII, e artigo 166, §6° da CR-88, a iniciativa das leis orçamentárias é vinculada148 e privativa 148 É uma iniciativa indelegável e vinculada tendo em vista a fixação de prazos fatais para a sua efetivação na própria Constituição, sob pena de configurarse crime de responsabilidade política, conforme será a seguir destacado. v. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo. Atlas, 2005. p. 621. FGV DIREITO RIO 59 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I do Chefe do Poder Executivo149 a quem incumbe enviar ao Congresso Nacional os projetos de lei do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e do orçamento anual. Assim, conforme observa Kyoshi Harada150, a proposta orçamentária anual (LOA) do Poder Legislativo, na qual se inclui o Tribunal de Contas, do Poder Judiciário e do Ministério Público: “são unificadas antes do envio ao Parlamento para discussão”, o que não afasta as respectivas competências para elaborar as suas proposições151 dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias, nos termos fixados nos artigos 99, § 1º, e 127, § 3º da CR-88 e da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar n° 101/2000 (LRF). Nessa toada, o artigo 14 da LDO que trata das diretrizes para a elaboração da LOA de 2012 da União, Lei nº 12.456, de 12 de agosto de 2011, dispõe: Art. 14. Os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do MPU encaminharão à SOF/MP, por meio do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento – SIOP, até 15 de agosto de 2011, suas respectivas propostas orçamentárias, para fins de consolidação do Projeto de Lei Orçamentária de 2012, observadas as disposições desta Lei. § 1º As propostas orçamentárias dos órgãos do Poder Judiciário e do MPU, encaminhadas nos termos do caput deste artigo, deverão ser objeto de parecer do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, de que tratam os arts. 103-B e 130-A da Constituição, respectivamente, a ser encaminhado à Comissão Mista a que se refere o art. 166, § 1º, da Constituição – CMO, até 30 de setembro de 2011, com cópia para a SOF/MP (Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão). § 2º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo ao Supremo Tribunal Federal, ao Conselho Nacional de Justiça, ao Ministério Público Federal e ao Conselho Nacional do Ministério Público. Destaque-se que ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público, aos quais foi conferida a atribuição para exarar pareceres, nos termos do transcrito §1°, com a ressalva determinada no §2°, compete o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do Ministério Público, nos termos do artigo 103-B, § 4°, caput, e artigo 130-A, § 2°, caput, da CR-88, respectivamente. O Poder Executivo152 procederá aos ajustes necessários, para fins de consolidação da proposta da LOA, na hipótese em que as propostas do Poder Judiciário e do Ministério Público sejam encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na LDO. Em sentido análogo, se o Poder Judiciário e o Ministério Público não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias anuais dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo153 considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na LDO. 149 ADI 882, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 19-2-04, DJ de 23-404: “Orçamento anual. Competência privativa. Por força de vinculação administrativo-constitucional, a competência para propor orçamento anual é privativa do Chefe do Poder Executivo”. 150 HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 58. 151 Dispõe o artigo 12, § 3º, da LRF, que “O Poder Executivo de cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e do Ministério Público, no mínimo trinta dias antes do prazo final para encaminhamento de suas propostas orçamentárias, os estudos e as estimativas das receitas para o exercício subseqüente, inclusive da corrente líquida, e as respectivas memórias de cálculo.” 152 Artigos 99, § 4º, e 127, § 5º, da CR88, dispositivos incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004. 153 Artigos 99, § 3º, e 127, § 4º, da CR88, dispositivos incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004. FGV DIREITO RIO 60 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I No âmbito do Poder Judiciário a competência para o encaminhamento da proposta orçamentária154, a ser consolidada pelo Poder Executivo, é: (1) na esfera federal, dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais; e (2) no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais. Importante mencionar que a Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu §2º ao artigo 133 da CR-88, para estender também às Defensorias Públicas Estaduais a “autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º”. Cabe ressaltar, ainda, – quanto ao encaminhamento dos projetos de leis orçamentárias, o qual consubstancia competência vinculada e indelegável – que a não apresentação tempestiva das propostas155 do PPA, da LDO e da LOA ao Poder Legislativo constitui crime de responsabilidade política praticado pelo Presidente da República tendo em vista que a hipótese se enquadra como ato atentatório às leis orçamentárias156, consoante o disposto no artigo 10, 1, da Lei n° 1.079/1950157, norma que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.158 O artigo 32 da Lei n° 4.320/1964, por sua vez, disciplina apenas as conseqüências do não recebimento da proposta de LOA pelo parlamento, isto é, “se não receber a proposta orçamentária no prazo fixado nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios, o Poder Legislativo considerará como proposta a Lei de Orçamento vigente”. Por sua vez, o artigo 165, §§§ 5º, 6º, e 7º da CR-88, estabelece o escopo da lei orçamentária anual nos seguintes termos: 154 Artigo 99, § 2º, da CR-88. 155 Salienta Valcedir Pascoal que as leis que envolvam matéria orçamentária são de iniciativa privativa e indelegável do Chefe do Poder Executivo a sua omissão “constituirá crime de responsabilidade conforme a legislação: Lei n° 1.079 – Presidente e Governador, e Decreto-Lei n° 201/67 – Prefeito.” v. PASCOAL, Valdecir. Direito Financeiro e Controle Externo. 4ª ed. revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro. Impetus, 2004. p.41. 156 Artigo 85, VI, da CR-88. 157 § 5º – A lei orçamentária anual compreenderá: I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; III – o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público. § 6º – O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia. § 7º – Os orçamentos previstos no § 5º, I e II, deste artigo, compatibilizados com o plano plurianual, terão entre suas funções a de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional. Saliente-se que o prazo para o envio da proposta determinado na lei foi alterado pela Constituição, conforme será apresentado a seguir, nos termos do artigo 165, §9°, I, da CR-88 combinado com o artigo 35, §2°, do ADCT. 158 A acusação deve ser admitida por dois terços da Câmara dos Deputados (artigo 86) e será julgada pelo Senado Federal, tendo em vista tratar-se de crime de responsabilidade (artigo 52, I,). Se instaurado o processo, o Presidente fica suspenso de suas funções (artigo 86, §1°) por cento e oitenta dias, prazo dentro do qual se não estiver concluído o julgamento cessará o seu afastamento, prosseguindo o processo normalmente No julgamento perante o Senado funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, “limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (parágrafo único do artigo 52). FGV DIREITO RIO 61 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O artigo 5° da LRF complementa o dispositivo constitucional ao prever que a LOA conterá também: (1) a explicitação das medidas de compensação a renúncias de receita e ao aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado; (2) demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e metas constantes do Anexo de Metas Fiscais da LDO; (3) conterá reserva de contingência, cuja forma de utilização e montante, definido com base na receita corrente líquida, serão estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, destinadas ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos; (4) as despesas relativas à dívida pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que as atenderão; (5) o refinanciamento da dívida pública constará separadamente na lei orçamentária e nas de crédito adicional. Destaque-se, ainda, que o artigo 22 da Lei n° 4.320/1964 define a estrutura e composição da proposta orçamentária. Uma vez apresentados os projetos das leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA) pelo Poder Executivo, consoante os termos dos citados artigo 84, XXIII, caput do artigo 165 e artigo 166, §6°, todos da CR-88, serão os mesmos apreciados, no âmbito da União, pelas duas Casas do Congresso, na forma do regimento comum.159 A Constituição de 1967/69 estabelecia de forma expressa em seu artigo 66, que a lei orçamentária anual seria objeto de “votação conjunta das duas Casas”, menção que não consta da atual Carta Constitucional. De fato, o artigo 166 da CR-88 que disciplina a matéria não o faz expressamente, apenas se referindo à apreciação do projeto. O artigo 48 da CR-88 também não disciplina expressamente a questão ao estatuir caber somente ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor “sobre plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e emissões de curso forçado”. Assim, é importante destacar o artigo 1º, V, do regimento comum do Parlamento Nacional, nos termos do Ato da Mesa do Congresso Nacional, nº 63 de 2006160, que disciplina a matéria: Art. 1º A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, sob a direção da Mesa deste, reunir-se-ão em sessão conjunta para: ................. V – discutir e votar o Orçamento (arts. 48, II, e 166 da Constituição); ............... O artigo 103 do regimento dispõe que à “tramitação de projetos de orçamento plurianual de investimentos aplicar-se-ão, no que couber”, as normas ali disciplinadas quanto ao orçamento anual, cabendo no que for aplicável à apreciação da lei de diretrizes. 159 Artigo 166, caput, da CR-88. 160 Disponível em: <http://www.senado. gov.br/sf/legislacao/regsf/RegCN.rtf> FGV DIREITO RIO 62 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A Resolução nº1 de 2006-CN, do Congresso Nacional, por sua vez, dispõe sobre a Comissão Mista Permanente a que se refere o § 1º do art. 166 da Constituição, denominando-a de Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização – CMO. À Comissão mista permanente de Senadores e Deputados, compete examinar e emitir parecer sobre os projetos do PPA, LDO e LOA e aos créditos adicionais, os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição, assim como a análise das emendas161 aos projetos de leis orçamentárias, que podem ser individuais, de Comissão Permanente do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, ou de bancada estadual, nos termos do artigo 43 a 50 da Resolução nº1 de 2006-CN. As emendas devem ser apresentadas à Comissão mista, consoante o disposto no § 2º do artigo 166, a qual deve examinar as condições e restrições impostas pelos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo, e são apreciadas, em sessão conjunta e nos termos do regimento interno, pelo Plenário das duas Casas do Congresso Nacional. As emendas ao projeto da LDO devem ser compatíveis com o PPA. No mesmo sentido, a emendas ao projeto da LOA têm de ser compatíveis com o PPA e com a LDO, além de indicar os recursos necessários para viabilizar a alteração, admitindo-se, entretanto, apenas os recursos provenientes de anulação de despesas, sendo vedada esta indicação sobre as dotações para pessoal e seus encargos; serviços da dívida; transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal. Também é possível apresentar emendas para corrigir questões redacionais, erros ou omissões162. Também é atribuição da Comissão Mista desempenhar inúmeras funções na seara do controle orçamentário, incluindo o exame e parecer sobre as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República e também exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária sem prejuízo da atuação das demais comissões temporárias ou permanentes. Sem dúvida, a Constituição conferiu amplos poderes à citada Comissão Mista, o que tem sido objeto de muitas críticas por parte de especialistas na matéria, como o professor Ricardo Lobo Torres163, que assevera de forma contundente: O relevo atribuído à Comissão Mista do Congresso foi um dos grandes equívocos da Constituição Orçamentária de 1988. (...) A Comissão Mista do Congresso Nacional, com superpoderes, foi causa direta dos escândalos apurados em 1993, com a dilapidação de recursos públicos promovida principalmente pelos deputados e senadores que a compunham. No relatório final da CPI o seu Presidente, Deputado Roberto Magalhães, disse que a Comissão Mista do Orçamento, ao longo dos anos, “granjeou a desestima e a indignada rejeição da sociedade” e denunciou três esquemas de manipulação do orçamento: o das emendas, o das empreiteiras e o das subvenções sociais. Nenhuma conseqüência 161 O §5º do artigo 166 da CR-88 autoriza o Presidente da República enviar mensagem ao Congresso Nacional para propor modificação nos projetos a que se refere o artigo “enquanto não iniciada a votação, na Comissão mista, da parte cuja alteração é proposta”. 162 (artigo 166, §3º, I, II e III da CR-88). 163 TORRES. Op.cit. p.437-438. FGV DIREITO RIO 63 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I teve aquele relatório, pois no ano de 2006 surgiram novos escândalos fundados no poder de emendar orçamento, que ficaram conhecidos como “vampiros” e “sanguessugas”. (grifo nosso) A raiz do problema, conforme identificado pelo ilustre jurista164, é de natureza jurídico-política e reflete a distorção do nosso sistema, que adotou “o modelo de orçamento próprio do parlamentarismo praticado na França e na Alemanha dentro de uma estrutura política presidencialista! A Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Comissão Mista do Congresso Nacional, por exemplo, são figuras típicas do regime parlamentarista, que nem a martelo se adaptam ao presidencialismo!”. Em linha de pensamento diversa, sem identificar a apontada desconexão estrutural do sistema de governo adotado e de distribuição de funções entre os Poderes, Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi165 sustentam que, a partir da Resolução nº 2 de 1995, o Congresso se auto-limitou, não havendo razões para suprimir a interferência parlamentar no processo orçamentário: As alterações no processo de apreciação e votação do orçamento adotada a partir de 1995 tornaram-no mais transparente, mais facilmente controlado pelos partidos, mais dependente de decisões coletivas e, principalmente, impuseram limites claros e significativos à atuação individual dos parlamentares. As emendas individuais não são privilegiadas pelo próprio legislativo e representam uma pequena parcela da intervenção legislativa no orçamento aprovado. As emendas coletivas e de relatorias apropriaram-se da maior parcela dos recursos alocados e são aprovadas segundo preceitos estritos. Em poucas palavras, para salvaguardar sua prerrogativa de participar do processo orçamentário, o Congresso se viu forçado a atar as próprias mãos. As decisões que realmente afetam – ou podem afetar – o perfil do orçamento são tomadas pelo relator-geral e pelos relatores adjuntos, selecionados entre os membros dos partidos da base do governo. Isto é, a apreciação congressual do orçamento é altamente centralizada e segue linhas partidárias. Por todas as razões expostas, a nosso ver, os direitos parlamentares de alteração da proposta orçamentária do Executivo não devem ser restringidos, ou praticamente anulados, como alguns pregam, acreditamos inadvertidamente. A corrupção e o desvio de verbas públicas não ocorrem porque o Congresso participa do processo orçamentário. Tampouco dependem da forma pela qual essa participação se dá desde 1995. A raiz do problema não está no Congresso, mas evidente que sua participação na elaboração do orçamento pode ser aperfeiçoada e que esse aperfeiçoamento pode contribuir para reduzir a corrupção. Mas, se isso vier a ocorrer, com certeza não será via restrição da participação congressual no processo. Pelo contrário, parece-nos líquido e certo que a corrupção só terá a ganhar se a participação do Congresso for limitada. 164 TORRES. Op.cit. p.49. 165 FIGUEIREDO, Argelina Cheibub e LIMONGI, Fernando. Política Orçamentária no Presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Ed. FVG, 2008. p.19. FGV DIREITO RIO 64 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I As divergentes perspectivas da matéria revelam a complexidade da questão, podendo-se advogar e sustentar diferentes pesos e ponderações na participação de cada Poder. O núcleo central do problema, entretanto, é realmente de natureza jurídico-política, na medida em que se refere à definição dos modelos e interconexões entre: (1) o sistema de governo parlamentarismopresidencialismo de um lado e, de outro, (2) o sistema de distribuição de funções entre os Poderes no que se refere à matéria orçamentária. O desafio central, entretanto, não diz respeito apenas à difícil escolha e implementação de um modelo de distribuição de funções e orçamento (impositivo-autorizativo) que aumente a estabilidade política, impõe-se, no mundo atual, que seja contemplada, ao mesmo tempo, a ampla e transparente participação da sociedade no processo e que se reduza ao máximo a possibilidade de desvios. Importante destacar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, expressa na ADI 1.050-MC166, quanto ao poder de emenda parlamentar – no contexto do modelo constitucional híbrido atual, de natureza presidencialista, compreendendo a possibilidade de o parlamento apresentar emendas aos projetos das leis orçamentárias, ao lado da natureza meramente autorizadora do orçamento anual relativamente às despesas-: O poder de emendar projetos de lei – que se reveste de natureza eminentemente constitucional – qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação das leis (RTJ 36/382, 385 – RTJ 37/113 – RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA, Rel. Min. Celso de Mello), desde que – respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição da República – as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º da Carta Política.” (ADI 1.050-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-9-94, DJ de 23-4-04) Fixados esses conceitos fundamentais, quanto à iniciativa, elaboração, emendas e votação das três leis orçamentárias, cumpre agora analisar os prazos de apresentação e de vigência das mesmas, o que auxiliará a compreensão das funções e dos objetivos de cada qual. 166 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.050-MC. Julgamento em 21.09.2004. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 26.05.2008. FGV DIREITO RIO 65 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 4.3 PRAZOS DE APRESENTAÇÃO E A VIGÊNCIA DAS LEIS ORÇAMENTÁRIAS Estabelece o artigo 165, §9°, I da CR-88, que cabe à lei complementar – norma até hoje não editada – “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual”. Tendo em vista a inexistência do referido diploma complementar para disciplinar a questão, aplica-se a regra prevista no artigo 35, §2°, do ADCT, que dispõe: § 2º – Até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º, I e II, serão obedecidas as seguintes normas: I – o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa; II – o projeto de lei de diretrizes orçamentárias será encaminhado até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa; III – o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa. 4.3.1 O plano plurianual (PPA) Relativamente ao PPA, disciplinado no inciso I do transcrito §2° artigo 35 do ADCT, dois aspectos devem ser salientados para a definição do prazo de vigência da lei e do encaminhamento do Projeto do PPA pelo Executivo: (1) o mandato presidencial; e (2) o encerramento da sessão legislativa. O artigo 82 da CR-88, com a sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 16, de 1997, estabelece que “o mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição”. Assim, o mandato presidencial coincide com o exercício financeiro.167 Já a sessão legislativa, nos termos do artigo 57 da CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº50 de 2006, se encerra em 22 de dezembro. Desta forma, visando à continuidade das ações estatais no médio prazo (período de quatro anos), a lei do plano plurianual possui vigência por quatro anos, os quais englobam os três últimos do governo de determinado Chefe do Poder Executivo e o primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, período dentro do qual, até 31 de agosto, deve o presidente seguinte encaminhar o seu projeto de PPA para ter vigência nos três anos 167 De acordo com o artigo 34 da Lei n° 4320/1964: “O exercício financeiro coincidirá com o ano civil”. Período distinto é a sessão legislativa, de que trata o artigo o artigo 57 da CR-88, dispositivo que estabelece que “o Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1 de agosto a 22 de dezembro”. Assim, a legislatura de cada parlamentar do Congresso Nacional é composta de sessões legislativas quatro sessões para os deputados e oito para os senadores - que se decompõem cada qual em dois períodos de trabalhos ordinários: até 17 de julho o primeiro período e até 22 de dezembro o segundo período, respectivamente, não coincidindo, dessa forma, como o exercício financeiro de que trata a Lei n° 4.320/1964. FGV DIREITO RIO 66 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I restantes de seu governo e no primeiro ano do mandato presidencial subseqüente e assim sucessivamente. A ilustração a seguir apresentada auxilia a compreensão da questão: No dia 20.12.2011 o Plenário do Congresso Nacional aprovou o projeto de lei (PLN 29/11), que contém o Plano Plurianual para o período de 2012 a 2015, não tendo sido sancionado ou publicado até o dia 03/01/2012. Saliente-se que a data da sanção presidencial à Lei n° 10.933 e à Lei nº 11.653 –as quais aprovaram o PPA para o quadriênio 2004-2007 e 20082011, dia 11 de agosto e dia 07 de abril, respectivamente – revelam que, na prática, nenhum dos projetos retornou ao Chefe do Executivo antes de encerrada a sessão legislativa (22 de dezembro), consoante requisito fixado na parte final do transcrito inciso I do §2° do artigo 35 do ADCT, tendo em vista o prazo constitucional de quinze dias que o Presidente da República possui para sancionar ou vetar projeto de lei, a teor do artigo 66 da CR88 combinado com o artigo 166, §7° da CR-88. Em face da complexidade que envolve o PPA, e tendo em vista as peculiaridades quanto à sua eficácia, conforme será visto a seguir, a Constituição não estabeleceu conseqüências práticas à sua não aprovação e devolução ao Poder Executivo fora do prazo determinado, ao contrário do que ocorre com a LDO, consoante o disposto no artigo 57, §2° da CR-88, o qual dispõe que a “sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias.” No que se refere à aplicabilidade da regra do transcrito artigo 35, §2° do ADCT aos Estados, Distrito Federal e Municípios, é importante destacar que, por meio da Mensagem nº 627/2000, o Poder Executivo da União vetou a integralidade do artigo 3º e o §7° do artigo 5º da Lei Complementar nº 101/2000, nos termos aprovados pelo Congresso Nacional, os quais dispunham sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual e da lei orçamentária anual, regras que vinculariam todos os entes da Federação. O exame das razões de veto permite o entendimento das especificidades e complexidade da vinculação absoluta dos Estados, Distrito Federal e Municípios às regras adotas em âmbito federal: FGV DIREITO RIO 67 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Razões do veto “Art. 3o Art. 3o O projeto de lei do plano plurianual de cada ente abrangerá os respectivos Poderes e será devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa. § 1o Integrará o projeto Anexo de Política Fiscal, em que serão estabelecidos os objetivos e metas plurianuais de política fiscal a serem alcançados durante o período de vigência do plano, demonstrando a compatibilidade deles com as premissas e objetivos das políticas econômica nacional e de desenvolvimento social. § 2o O projeto de que trata o caput será encaminhado ao Poder Legislativo até o dia trinta de abril do primeiro ano do mandato do Chefe do Poder Executivo. Razões do veto O caput deste artigo estabelece que o projeto de lei do plano plurianual deverá ser devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa, enquanto o § 2º obriga o seu envio, ao Poder Legislativo, até o dia 30 de abril do primeiro ano do mandato do Chefe do Poder Executivo. Isso representará não só um reduzido período para a elaboração dessa peça, por parte do Poder Executivo, como também para a sua apreciação pelo Poder Legislativo, inviabilizando o aperfeiçoamento metodológico e a seleção criteriosa de programas e ações prioritárias de governo. Ressalte-se que a elaboração do plano plurianual é uma tarefa que se estende muito além dos limites do órgão de planejamento do governo, visto que mobiliza todos os órgãos e unidades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Além disso, o novo modelo de planejamento e gestão das ações, pelo qual se busca a melhoria de qualidade dos serviços públicos, exige uma estreita integração do plano plurianual com o Orçamento da União e os planos das unidades da Federação. Acrescente-se, ainda, que todo esse trabalho deve ser executado justamente no primeiro ano de mandato do Presidente da República, quando a Administração Pública sofre as naturais dificuldades decorrentes da mudança de governo e a necessidade de formação de equipes com pessoal nem sempre familiarizado com os serviços e sistemas que devem fornecer os elementos essenciais para a elaboração do plano. Ademais, a fixação de mesma data para que a União, os Estados e os Municípios encaminhem, ao Poder Legislativo, o referido projeto de lei complementar não leva em consideração a complexidade, as peculiaridades e as necessidades de cada ente da Federação, inclusive os pequenos municípios. Por outro lado, o veto dos prazos constantes do dispositivo traz consigo a supressão do Anexo de Política Fiscal, a qual não ocasiona prejuízo aos objetivos da Lei Complementar, considerando-se que a lei de diretrizes orçamentárias já prevê a apresentação de Anexo de Metas Fiscais, contendo, de forma mais precisa, metas para cinco variáveis – receitas, despesas, resultados nominal e primário e dívida pública –, para três anos, especificadas em valores correntes e constantes. FGV DIREITO RIO 68 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Diante do exposto, propõe-se veto ao art. 3o, e respectivos parágrafos, por contrariar o interesse público. § 7o do art. 5o § 7o O projeto de lei orçamentária anual será encaminhado ao Poder Legislativo até o dia quinze de agosto de cada ano. Razões do veto A Constituição Federal, no § 2º do art. 35 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determina que, até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º, I e II, o projeto de lei orçamentária da União seja encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro. Estados e Municípios possuem prazos de encaminhamento que são determinados, respectivamente, pelas Constituições Estaduais e pelas Leis Orgânicas Municipais. A fixação de uma mesma data para que a União, os Estados e os Municípios encaminhem, ao Poder Legislativo, o projeto de lei orçamentária anual contraria o interesse público, na medida em que não leva em consideração a complexidade, as particularidades e as necessidades de cada ente da Federação, inclusive os pequenos municípios. Além disso, a fixação de uma mesma data não considera a dependência de informações entre esses entes, principalmente quanto à estimativa de receita, que historicamente tem sido responsável pela precedência da União na elaboração do projeto de lei orçamentária. Por esse motivo, sugere-se oposição de veto ao referido parágrafo.” Nesse contexto, pode-se concluir que os entes federados subnacionais podem estabelecer sistemáticas distintas quanto ao prazo de apresentação dos projetos de leis orçamentárias. No que se refere aos Municípios é importante destacar, ainda, com base no artigo 44 da Lei nº 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, a existência da gestão orçamentária participativa, instrumento de planejamento municipal, o qual inclui:168 a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para a sua aprovação pela Câmara Municipal. (grifo nosso) Já no âmbito federal e estadual não é obrigatória a adoção do princípio da gestão orçamentária participativa, especialmente em razão “da notória dificuldade de os membros da comunidade dirigirem-se às Casas Legislativas estaduais e ao Parlamento Nacional”, conforme pontua Harada.169 168 artigo 4 º, III, f, da Lei nº 10.257/2001. 169 HARADA. Op.cit. p.59. FGV DIREITO RIO 69 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 4.3.2 A lei de diretrizes orçamentárias (LDO) De volta à análise dos prazos para a apresentação, aprovação e devolução da lei de diretrizes orçamentárias, disciplinada no supratranscrito inciso II do §2° do artigo 35 do ADCT, constata-se que o projeto da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) deve ser encaminhado até 15 de abril de cada ano (oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro) e devolvido para a sanção do Chefe do Poder Executivo até o dia 17 de julho, termo de encerramento do primeiro período da sessão legislativa, consoante o disposto no citado artigo 57 da CR-88. Nos termos já destacados, em sentido diverso da inexistência de disciplina quanto à hipótese de não aprovação e devolução do PPA no prazo fixado, conforme ensina Alexandre de Moraes170, “não há possibilidade de o Congresso Nacional rejeitar o projeto de lei de diretrizes orçamentárias, uma vez que a Constituição Federal determina em seu art. 57, §2°, que “a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias”. A ilustração abaixo facilita o entendimento da questão: Importante frisar que a vigência da LDO é matéria controvertida, podendo-se sustentar que a sua vigência é de um ano, pois se trata de mera “orientação ou sinalização, de caráter anual, para a feitura do orçamento”, conforme entende Ricardo Lobo Torres.171 Em sentido diverso, assevera Valdecir Pascoal172 que: 170 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo. Atlas, 2005.p.623. 171 TORRES. . Op.cit. p.85. 172 PASCOAL. Op.cit.p.41. FGV DIREITO RIO 70 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Mesmo que alguns autores falem de vigência anual da LDO, isso, a rigor, não é correto. Valendo-nos do conceito jurídico de vigência, há que se concluir que a LDO vigora por mais de um ano. Normalmente é aprovada em meados do exercício financeiro, orientando a elaboração da LOA no segundo semestre e continuando em vigor até o final do exercício financeiro subseqüente. Diga-se, contudo, que, embora a vigência formal seja maior que um ano, a LDO traça as metas e as prioridades da Administração apenas para o exercício subseqüente. 4.3.3 Oprojeto de lei orçamentária anual (LOA) O projeto da lei orçamentária anual (LOA) da União, por sua vez, nos termos do inciso III do artigo 35, §2° do ADCT, deve ser encaminhado até o dia 31 de agosto (até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro) e devolvido para sanção até 22 de dezembro, data do encerramento da sessão legislativa. Assim, o prazo para o envio do projeto da LOA pelo Chefe do Poder Executivo e de devolução pelo Poder Legislativo para o Poder Executivo são iguais àqueles determinados para o PPA, com a diferença de que o prazo de vigência deste é quadrienal, ou seja, até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, enquanto a lei do orçamento tem vigência anual. O que ocorre se o projeto da LOA não for votado pelo Poder Legislativo no prazo consignado ou o mesmo for rejeitado? A possibilidade de (1) rejeição do projeto de lei orçamentária, bem como a possibilidade de (2) não devolução do projeto de LOA pelo Poder Legislativo serão analisadas a seguir. A interpretação do artigo 166, §8° da CR-88, consoante sustenta Alexandre de Moraes, “permite concluir pela possibilidade de rejeição total ou parcial do projeto” de lei do orçamento anual, tendo em vista a literalidade do dispositivo, o qual declara que: § 8º – Os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa. (grifo nosso) Em sentido diverso, adverte Adilson Abreu Dallari173, sob pena de paralisação da máquina estatal, não ser possível rejeição total do projeto da lei orçamentária anual, pois: se a Constituição restringe o poder de emenda, que somente pode ser exercido dentro de certos limites, evidentemente proíbe, implicitamente, a emenda total, radical modificadora absoluta do texto inicialmente proposto. (...) Em resumo, 173 DALLARI, Adilson Abreu. Lei Orçamentária: processo legislativo. Revista de informação legislativa. Brasília: Senado, nº 129. p. 159. FGV DIREITO RIO 71 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ao dever imposto pela Constituição ao Chefe do Poder Executivo de elaborar e enviar o projeto de lei orçamentária corresponde o dever imposto ao Legislativo de examiná-lo, alterá-lo (se for o caso) e aprová-lo, sem possibilidade de rejeição total. Valdecir Pascoal174, por outro lado, esclarece que: Há quase um consenso na doutrina acerca da impossibilidade jurídica de o Poder Legislativo rejeitar o PPA e a LDO. Primeiro, porque a CF não previu essa possibilidade, uma vez que estabeleceu, no artigo 35 do ADCT, que ambas as leis devem ser devolvidas ao Poder Executivo para SANÇÃO. Se o legislador mencionou apenas a possibilidade de sanção fica afastada a possibilidade de rejeição, uma vez que não cabe sancionar o que foi rejeitado. O segundo argumento toma por base o disposto no artigo 57, § 2º segundo o qual a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação da LDO. Não obstante, o mesmo raciocínio – no sentido de impossibilidade de rejeição – não pode ser empregado em relação ao projeto de LOA. É que neste caso, a própria CF/88 previu tal possibilidade ao assinalar em seu artigo 166, §8°, que: (...) (grifo nosso) Importante destacar que o artigo 66 da Constituição de 1967/69 disciplinava, expressamente, a hipótese da não devolução do projeto de lei do orçamento anual pelo Congresso Nacional, para a sanção do Presidente da República, determinando que “se, até trinta dias antes do encerramento do exercício financeiro, o Poder Legislativo não o devolver para sanção, será promulgado como lei”. Conforme ensina Regis Fernandes de Oliveira175, à época “entendia-se que a disposição valia tanto para a hipótese de não devolução, como para a de rejeição”. Aduz ainda Regis Fernandes sobre o tema que: a Constituição do Estado de São Paulo de 1969 dispôs que ‘rejeitado o projeto subsistirá a lei orçamentária anterior’. Houve julgamento que assim determinou (RF 207/211). O problema foi levado ao Supremo Tribunal Federal que entendeu inconstitucional o dispositivo (RDA 112/263). Afirmou-se que a solução seria a de se entender não devolvido o projeto enviado ao Congresso Nacional. José Afonso da Silva176 apresenta a solução que entende determinada na própria Carta Magna atual para o problema: A conseqüência mais séria da rejeição do projeto de lei orçamentária anual é que a Administração fica sem orçamento, pois não pode ser aprovado outro. Não é possível elaborar orçamento para o mesmo exercício financeiro. A Constituição dá solução possível e plausível dentro da técnica do direito orçamentário: as despesas, que não podem efetivar-se senão devidamente autorizadas pelo Legis- 174 PASCOAL. Op.cit.p.52-53. 175 DE OLIVEIRA. Op.cit.p.83. 176 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed. São Paulo. Malheiros, 2000. p.722. FGV DIREITO RIO 72 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I lativo, terão que ser autorizadas prévia e especificamente, caso a caso, mediante leis de abertura de créditos especiais. Assim, na hipótese de rejeitada a LOA pelo Poder Legislativo, a aplicação dos recursos públicos e a realização de despesas somente será possível por meio de créditos adicionais, nos termos disciplinados pela própria Constituição (artigo 167, V), isto é: créditos suplementares, caso a rejeição parlamentar seja parcial, ou créditos especiais, na hipótese de rejeição parcial ou total, toda elas, entretanto, a exigir autorização legislativa, conforme será estudado na próxima aula. Por fim, impõe-se destacar que não é disciplinada177 pela atual Constituição178, ao contrário da Constituição de 1967/69, a hipótese de o Poder Legislativo não devolver o projeto de lei orçamentária anual para a apreciação pelo Poder Executivo – sanção ou veto – no prazo determinado, até 22 de dezembro, conforme estatuído no citado inciso III do artigo 35, §2° do ADCT, nos termos já salientados. É possível, portanto, a anomia orçamentária, isto é, o início do exercício financeiro sem a aprovação formal da lei orçamentária anual pelo Congresso Nacional, tendo em vista não haver regra aplicável à LOA análoga àquela disciplinadora da hipótese para a LDO – caso no qual a sessão legislativa não é interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes – conforme já salientado. A questão chegou a ser disciplinada no artigo 6° da Lei Complementar n° 101/2000, no entanto, o dispositivo foi vetado, como se constata pelas esclarecedoras razões a seguir aduzidas por meio da Mensagem nº 627/2000: Art. 6o Se o orçamento não for sancionado até o final do exercício de seu encaminhamento ao Poder Legislativo, sua programação poderá ser executada, até o limite de dois doze avos do total de cada dotação, observadas as condições constantes da lei de diretrizes orçamentárias. Razões do veto Parcela significativa da despesa orçamentária não tem sua execução sob a forma de duodécimos ao longo do exercício financeiro. Assim, a autorização para a execução, sem exceção, de apenas dois doze avos do total de cada dotação, constante do projeto de lei orçamentária, caso não seja ele sancionado até o final do exercício de seu encaminhamento ao Poder Legislativo, poderá trazer sérios transtornos à Administração Pública, principalmente no que tange ao pagamento de salários, aposentadorias, ao serviço da dívida e as transferências constitucionais a Estados e Municípios. Por outro lado, tal comando tem sido regulamentado pela lei de diretrizes orçamentárias, que proporciona maior dinamismo e flexibilidade em suas disposições. Na ausência de excepcionalidade, o dispositivo é contrário ao interesse público, razão pela qual sugere-se oposição de veto, no propósito de que o assunto possa ser tratado de forma adequada na lei de diretrizes orçamentárias. 177 Considerando a inexistência de regramento expresso, qual seria a solução para a cobrança dos tributos caso vigente no sistema constitucional brasileiro o princípio da anualidade tributária? 178 Dois modelos são possíveis para resolver a questão: (1) a prorrogação do orçamento em vigor, solução adotada no Brasil nas Constituições de 1934 (artigo 50, § 5°) e 1946 (artigo 74); ou (2) considerar aprovado o projeto de orçamento, hipótese agasalhada pelas Constituições de 1937 (artigo 72, d) e 1967/69 (artigo 66). FGV DIREITO RIO 73 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Realmente, a matéria tem sido disciplinada, ano após ano, nas leis de diretrizes orçamentárias – LDO, conforme destacado nas razões de veto em face da constante omissão do próprio Poder Legislativo, relativamente à devolução do projeto da LOA até 22 de dezembro nos termos constitucionalmente determinados. Nesse sentido, tendo em vista que a LOA para o exercício de 2008 somente foi aprovada em 24 de março do exercício já em curso (Lei n° 11.647, de 24.03.2008), ou seja, já realizada a execução de quase 3/12 (três doze avos) do orçamento, aplicou-se o disposto no artigo 72 da Lei n° 11.514/2007, o qual estabelecia as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2008 e disciplinava, in verbis: Art. 72. Se o Projeto de Lei Orçamentária de 2008 não for sancionado pelo Presidente da República até 31 de dezembro de 2007, a programação dele constante poderá ser executada para o atendimento de: I – despesas que constituem obrigações constitucionais ou legais da União, relacionadas na Seção I do Anexo IV desta Lei; II – bolsas de estudo, no âmbito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, de residência médica e do Programa de Educação Tutorial – PET; III – despesas com a realização das eleições municipais de 2008, constantes de programações específicas; IV – pagamento de estagiários e de contratações temporárias por excepcional interesse público na forma da Lei no 8.745, de 9 de dezembro de 1993; e V – outras despesas correntes de caráter inadiável. § 1o As despesas descritas no inciso V deste artigo estão limitadas à 1/12 (um doze avos) do total de cada ação prevista no Projeto de Lei Orçamentária de 2008, multiplicado pelo número de meses decorridos até a sanção da respectiva lei. § 2o Aplica-se, no que couber, o disposto no art. 60 desta Lei aos recursos liberados na forma deste artigo. § 3o Na execução de outras despesas correntes de caráter inadiável, a que se refere o inciso V do caput, o ordenador de despesa poderá considerar os valores constantes do Projeto de Lei Orçamentária de 2008 para fins do cumprimento do disposto no art. 16 da Lei Complementar no 101, de 2000. A LDO para o exercício de 2012, Lei nº 12.465/2011, fixa regra semelhante em seu artigo 65, da mesma forma que os artigo 68 da LDO de 2011, Lei nº 12.309/2010, e do artigo 69 da LDO de 2009, Lei n° 11.768/08. Destaque-se que, diferentemente do orçamento do exercício de 2008, 2010, 2011 e 2012, a LOA do exercício de 2009 foi aprovada, sancionada FGV DIREITO RIO 74 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I e publicada ainda no exercício de 2008 (Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008). O quadro abaixo apresenta resumo do que foi até aqui exposto quanto aos prazos de envio das leis orçamentárias pelo Poder Executivo e devolução pelo Poder Legislativo: Projeto de lei (1) Prazo de envio pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo (1.1) Termo final PPA 31 de Agosto “encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro” LDO 15 de Abril “encaminhado até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro” LOA 31 de Agosto “encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro” (2) Prazo de devolução pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo (1.2) Se não cumprido o prazo (2.1) Termo final Crime de responsabilidade 22 de Dezembro “devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa” Crime de responsabilidade 17 de Julho “devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa” Crime de responsabilidade e será considerada como “proposta a Lei de Orçamento vigente” 22 de dezembro “devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa” Fundamento normativo (2.2) Se não cumprido o prazo Sem previsão (1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, I, do ADCT (1.2) artigo 84, XXIII, caput do artigo 165 e artigo 166, §6°, c/c art. 85, VI da CR-88, art. 10, 1, da Lei 1.079/50 ou Decreto-lei 201/67 Sessão legislativa não se interrompe (1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, II, do ADCT (1.2) artigo 84, XXIII, caput do artigo 165 e artigo 166, §6°, c/c art. 85, VI da CR-88, art. 10, 1, da Lei 1.079/50 (2.2) artigo 57, §2°, da CR-88, Sem previsão expressa. Na prática a matéria vem sendo disciplinada na LDO, todos os anos. (1.1 e 2.1) artigo 35, §2°, II, do ADCT (1.2) artigo 84, XXIII, caput do artigo 165 e artigo 166, §6°, c/c art. 85, VI da CR-88, art. 10, 1, da Lei 1.079/50 ou Decreto-lei 201/67 c/c Art. 32 da Lei 4.320/64 (2.2) artigo 72 da Lei 11.514/2007 (LDO para 2008) FGV DIREITO RIO 75 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 4.4 OS PRINCÍPIOS ORÇAMENTÁRIOS Os princípios, ao lado das regras, consubstanciam normas jurídicas, os quais, a despeito de seu alto grau de abstração e generalidade, direcionam os diversos sistemas normativos (Constitucional, Civil, Penal, Tributário, Financeiro etc.). O Direito Financeiro, como ramo autônomo do Direito, também é regido por um conjunto de princípios e regras. A Constituição da República de 1988 em conjunto com a Lei n° 4.320/64179 estabelecem vários princípios, os quais se vinculam e formam também um conjunto. Apenas a título de exemplo estudaremos alguns, vez que o rol não é taxativo, sendo, pois, numerus apertus: 1. Princípio da Unidade: consiste na proibição de mais de uma lei orçamentária em cada ente da Federação em dado exercício financeiro, haja vista a unicidade finalística do orçamento. Nesse sentido, ainda que a CR/88 em seu art. 165,§5º, conforme já destacado, disponha que a lei orçamentária compreenderá o orçamento fiscal, o orçamento de investimento e o orçamento da Seguridade Social, todas as receitas e despesas, ainda que constantes de três peças orçamentárias distintas, devem constar de uma única (unidade) lei orçamentária, sendo possível, dessa forma, uma visão global e consolidada do desempenho das finanças públicas do ente federado como um todo, o que facilita a sua fiscalização e controle. Portanto, pressupõe e introduz o princípio geral da unidade de caixa ou de tesouraria, previsto no artigo 56 da Lei n° 4.320/64180, o qual será objeto de estudo na aula pertinente às receitas públicas. 2. Princípio da Universalidade: O princípio da universalidade prescreve que a Lei orçamentária única (princípio da unidade) deve incorporar todas as receitas e despesas, ou seja, nenhuma instituição pública do ente federado, compreendendo todas as entradas e saídas de recursos financeiros, deve ficar de fora do orçamento da unidade política respectiva (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Nesse sentido os artigos 3° e 4° da Lei n° 4.320/64 estabelecem que: “A Lei do Orçamento compreenderá todas as receitas, inclusive as operações de crédito autorizadas em lei” e “A Lei do Orçamento compreenderá todas as despesas próprias dos órgãos do Governo (...)” 3. Princípio do Orçamento bruto: Segundo essa norma-princípio, todas (princípio da universalidade) as receitas e despesas constantes da lei orçamentária única (princípio da unidade) devem ser consignadas pelos seus valores brutos, qualquer que seja sua natureza ou o seu destino, isto é, independentemente de sua origem e de qual será a sua aplicação efetiva. Esse princípio encontra positivado no 179 O artigo 2º consagra expressamente os princípios orçamentários da “unidade, universalidade e anualidade” 180 Dispões o art. 56, verbis: “O recolhimento de todas as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio da unidade de tesouraria, vedada qualquer fragmentação para criação de caixas especiais.” FGV DIREITO RIO 76 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 4. 5. 6. 7. art. 6º, da Lei n° 4.320/64, o qual estabelece: “todas as receitas e despesas devem constar de lei orçamentária e de créditos adicionais pelos valores brutos, vedadas as deduções”. Princípio da Exclusividade: está contemplado no art. 165, §8º, da Carta de 1988, e prescreve que a lei orçamentária deve conter apenas matéria de direito financeiro e orçametária, permitindo, a título de exceção, a abertura de créditos suplementares, a serem estudados na próxima aula, e a contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receitas, matérias a serem apresentadas na Aula 6. Não cabe, portanto, as denominadas caudas orçamentárias, assim intituladas pelas inúmeras tentativas de se incluir nos orçamentos matérias não relacionadas às questões exclusivamente orçamentárias (art. 165, §8º). Princípio da Especificação (discriminação, especialização): consiste na proibição de dotações globais e genéricas, impondo, com isso, que a lei orçamentária discrimine a despesa por elementos. Tal princípio encontra-se positivado nos artigos 5º e 15 da Lei n° 4.320/64. Dessa forma, é possível saber, pormenorizadamente as origens e as aplicações dos recursos, o que facilita o controle e a gestão dos recursos públicos e limita a flexibilidade e arbítrio dos executores do orçamento, em especial o Poder Executivo, responsável pela execução da maior parcela, o que confe maior segurança à sociedade e ao Poder Legislativo. Há, no entanto, algumas exceções, como, por exemplo, as reservas de contingência (disciplinada nos termos do artigo 5º, III, da LRF e nas respectivas leis de diretrizes orçamentárias) e programas especiais de trabalho (art. 20, parágrafo único c/c art. 22, IV, da Lei n° 4.320/64). Princípio da Programação: é um enunciado normativo decorrente do processo natural de planejamento das ações e dos planos de governo, segundo o qual, a elaboração e a aprovação do orçamento devem observar o PPA e a LDO. Princípio do Equilíbrio Orçamentário: Vincula-se ao fato de que a fixação de despesas deve observar as receitas estimadas, visando evitar déficit público estrutural181 (despesas maiores do que as receitas). Preceitua Ricardo Lobo Torres182: Equilíbrio orçamentário é a equalização de receitas e gastos, harmonia entre capacidade contributiva e legalidade e entre distribuição de rendas e desenvolvimento econômico (...). O orçamento não se desequilibra pela falta de dinheiro, mas pelo desencontro entre valores e princípios jurídicos. 181 Veja em nota de rodapé da Aula 2 quanto à possibilidade de utilização da déficits públicos eventuais, como política anticíclica em função de conjunturas econômicas recessivas ou de crise sistêmica. 182 TORRES, Ricado Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: o orçamento da Constituição. Vol. V. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 173-174. FGV DIREITO RIO 77 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Embora a CR/88 não contemple expressamente o referido princípio, algumas normas determinam a indispensabilidade do controle de gastos, conforme abaixo explicitado. Quanto à falta de expressa previsão constitucional, Ricardo Lobo Torres183 entende que o princípio do equilíbrio orçamentário: ainda quando inscrito no texto constitucional, é meramente formal, aberto e destituído de eficácia vinculante: será respeitado pelo legislador se enquanto o permitir a conjuntura econômica, mas não está sujeito ao controle jurisdicional. Não pode a Constituição determinar obrigatoriamente o equilíbrio orçamentário, eis que este depende de circunstâncias econômicas aleatórias. O §1º do artigo 7º da Lei n° 4.320/64 determina que “em casos de déficit, a Lei do Orçamento indicará as fontes de recursos que o Poder Executivo fica autorizado a utilizar para atender à sua cobertura”. Em complemento, o artigo 98 do mesmo diploma legal preceitua que “a dívida fundada compreende os compromissos de exigibilidade superior a doze meses, contraídos para atender”: (1) “a desequilíbrio orçamentário”; “ou” (2) “a financiamento de obras e serviços públicos”. Assim, pela lei, o déficit apurado, pela diferença entre as despesas e receitas, exclui as operações de crédito, pois estas constituem os meios aptos para financiar os déficits orçamentários, consoante o disposto no artigo 98. No entanto, conforme lecionam José Teixeira Machado184 e Heraldo Costa Reis: é bom que se diga que, por princípio, as leis orçamentárias não devem aprovar orçamentos deficitários. Vale a pena lembrar que um dos meios de se evitar os déficits é atualizar anualmente as bases de cálculo das receitas e estabelecer prioridades para os gastos com base em uma programação trimestral, conforme dispõem os art. 47 e 50 desta Lei. Na prática, as leis orçamentárias, que tratam apenas das estimativas de receitas e da fixação de despesas, têm respeitado aludido princípio, ao prever o total da receita estimada em montante equivalente à despesa fixada, como é o caso, por exemplo, do artigo 1º da Lei nº 12.214, de 26 de janeiro de 2010, (LOA 2010) que dispõe: Art. 1º Esta Lei estima a receita da União para o exercício financeiro de 2010 no montante de R$ 1.860.428.516.577,00 (um trilhão, oitocentos e sessenta bilhões, quatrocentos e vinte e oito milhões, quinhentos e dezesseis mil e quinhentos e setenta e sete reais) e fixa a despesa em igual valor, compreendendo, nos termos do art. 165, § 5o, da Constituição, e dos arts. 6o, 7o e 54 da Lei no 12.017, de 12 de agosto de 2009, Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2010: 183 Idem. Ibidem. p. 175-176. 184 MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS,Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM, 2002/2003. p.21. FGV DIREITO RIO 78 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I I – o Orçamento Fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II – o Orçamento da Seguridade Social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da Administração Pública Federal direta e indireta, bem como os fundos e fundações, instituídos e mantidos pelo Poder Público; e III – o Orçamento de Investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detém a maioria do capital social com direito a voto. Entretanto, embutido nesses valores encontra-se uma substancial necessidade de financiamento por meio das denominadas operações de crédito, compreendendo tanto os financiamentos de longo prazo contratados para obras e investimentos como para a rolagem da dívida pública mobiliária (dívida pré-existente – o estoque da dívida) etc., assim como as operações de curto prazo visando recomposição de caixa, e que podem eventualmente se transformar em passivos de longo prazo, ante a possível carência de outras fontes de receitas permanentes, o que suscita a constante colocação de títulos e obrigações emitidas pelo Tesouro no mercado para captação de recursos. No mesmo sentido do equilíbrio do orçamento, o artigo 4, I, a, da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabelece que a lei de diretrizes orçamentárias, além de atender ao disposto no § 2o do art. 165 da Constituição e outras condições de boa gestão da coisa pública prescritos em outros dispositivos da LRF, disporá também sobre “equilíbrio entre receitas e despesas”. O já citado artigo 9º da LRF complementa o objetivo, ao estender e prever a operacionalização do princípio do equilíbrio à execução orçamentária, e não apenas quando do estabelecimento das estimativas, haja vista que: se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. Assim, a Lei Complementar 101/2000 estabelece o equilíbrio entre receitas e despesas públicas como princípio fundamental a ser perseguido também na execução do orçamento, podendo, ainda, ser fixada uma meta de superávit (receitas superiores às despesas), conceito que pode ser adotado levando-se em consideração ou não os pagamentos com juros (superávit primário exclui os juros e o superávit nominal inclui o pagamento de juros da dívida). A redação original185 do artigo 2º da Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009, definia a meta de superávit primário para o exercício de 2010 nos seguintes termos: 185 O superávit primário consiste na diferença entre as receitas e as despesas do governo, excluídos os encargos da dívida, isto é, dinheiro que o governo economiza para pagar juros da dívida pública. FGV DIREITO RIO 79 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Art. 2o A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2010, bem como a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a obtenção da meta de superávit primário, para o setor público consolidado, equivalente a 3,30%186 (três inteiros e trinta centésimos por cento) do Produto Interno Bruto – PIB, sendo 2,15% (dois inteiros e quinze centésimos por cento) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e 0,20% (vinte centésimos por cento) para o Programa de Dispêndios Globais, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV desta Lei. De forma diversa, a LDO para o exercício de 2011, Lei nº 12.309, de 09 de agosto de 2010, estabelece no art. 2º um superávit primário em valores nominais e não em percentual do Produto Interno Bruto (PIB), da seguinte forma: Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2011, bem como a execução da respectiva Lei, deverão ser compatíveis com a obtenção da meta de superávit primário, para o setor público consolidado de R$ 117.890.000.000,00 (cento e dezessete bilhões, oitocentos e noventa milhões de reais), sendo R$ 81.760.000.000,00 (oitenta e um bilhões, setecentos e sessenta milhões de reais) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e R$ 0,00 (zero reais) para o Programa de Dispêndios Globais, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo III desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.377, de 2010) Embora a meta para este ano, estabelecida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), seja de um superávit primário em valores nominais – de R$ 117,89 bilhões –, a intenção do governo é restabelecer o compromisso com um superávit pleno de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Para isso estima-se que será preciso cortar entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões dos gastos federais projetados para 2011. O controle do gasto público será peça chave da política de combate à inflação da nova administração 8. Princípio da Igualdade: deve o orçamento contemplar a redistribuição de rendas, a economicidade, o desenvolvimento econômico sustentável, a legalidade e a impessoalidade. No dizer de Ricardo Lobo Torres187: “o princípio da igualdade tem aspectos de rara dificuldade no plano orçamentário: conduz às ‘escolhas trágicas’, pois as opções de despesa se fundam sobretudo no desigual tratamento dos desiguais”. 9. Princípio da Publicidade: princípio basilar da Administração Pública que impõe ao administrador o dever de tornar público a lei 186 A Lei nº 12.377, de 30 de dezembro de 2010, alterou a redação deste artigo 2º dispositivo para reduzir a meta para 3,1% do PIB. Ou seja, constatado no final do exercício de 2010 que não seria cumprida a meta, a saída foi a alteração da LDO. 187 Idem. Ibidem. p. 186-187. FGV DIREITO RIO 80 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 10. 11. 12. 13. 14. 15. orçamentária, o que ocorre por meio de sua publicação em órgão de imprensa oficial (art. 37 caput da CR-88). Princípio da Clareza: estabelece que o orçamento deve ser expresso de forma clara e objetiva a fim de que todos possam entender o seu conteúdo. Princípio da Uniformidade (da consistência): significa que orçamento, em razão de seu caráter formal, deve conservar uma estrutura uniforme. Princípio da Não-afetação das Receitas (não-vinculação de receitas): As vinculações, em regra, reduzem o grau de liberdade do gestor e engessa o planejamento. O princípio está positivado no art. 167, inciso IV, da CR/88 e aplica-se somente aos impostos, espécie do gênero tributo, o qual compreende, ainda, as taxas, as contribuições, especiais, de melhoria, de iluminação pública e os empréstimos compulsórios, exações afetadas aos fins que lhe deram fundamento. A regra-princípio veda a vinculação da receita de impostos órgão, fundo ou despesa da Administração Pública, havendo, no entanto, diversas exceções a serem examinadas na aula pertinente às receitas públicas. Princípio Participativo: aplicado, em regra, no âmbito dos Entes municipais, sendo condição sine qua non para legitimar as leis orçamentárias, a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as suas propostas, conforme de depreende do art. 44, da Lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades). Legalidade: Princípio fundamental do Estado de Direito, em que o Poder Público se subordina e vincula às regras que somente o Parlamento expede e que informa toda a atividade da Administração Pública. Quanto aos orçamentos, o artigo 166 suscita a aprovação parlamentar e, em relação ao orçamento anual, conforme já destacado, preceitua que toda e qualquer despesa pública deve estar qualitativa e quantitativamente especificada em lei formal, sob pena de absoluta nulidade, nos termos do artigo 167, I e II, da CR-88. Princípio da Anualidade Orçamentária ou Periodicidade: Segundo este princípio, ainda hoje vigente, a teor do artigo 165, III, e §5º, da CR-88, conforme já apresentado na Aula 2, o Orçamento deve ser elaborado para ser realizado no período de um ano188, o qual, no Brasil, coincide com o ano civil, conforme já salientado189. Dessa forma, é princípio que expressa o controle do Parlamento sobre os demais Poderes relativamente ao Orçamento, ao prever a necessidade de renovação da autorização legislativa anualmente. A periodicidade pode coincidir ou não com o ano civil, como é o caso brasileiro. Na Itália e na Suécia, por exemplo, o exercício financeiro 188 São exceções a essa regra, nos termos a serem estudados na próxima aula, os créditos especiais e extraordinários autorizados nos últimos quatro meses do exercício, os quais, reabertos nos limites de seus saldos, serão incorporados ao orçamento do exercício subsequente. 189 O artigo 34 da Lei n° 4320/1964 prevê: “O exercício financeiro coincidirá com o ano civil”. FGV DIREITO RIO 81 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I começa em 01/07 e termina em 30/06. Na Inglaterra, no Japão e na Alemanha o exercício financeiro vai de 01/4 a 31/03. Nos Estados Unidos começa em 01/10, prolongando-se até 30/09. 16. Anterioridade Orçamentária190: prevê que o orçamento deve ser aprovado antes do início do exercício financeiro ao qual se aplica. Nos termos já salientados, a LDO tem disciplinado a hipótese de não aprovação antes do início do exercício financeiro, como é o caso da LDO para o exercício de 2010, Lei n° 12.017/2009, que fixa disciplina em seu artigo 68. 17. Princípio da Transparência: Segundo o professor Ricardo Lobo Torres191: “A transparência fiscal é um princípio constitucional implícito. Sinaliza no sentido de que a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade. Dirige-se assim ao Estado como à Sociedade, tanto aos organismos financeiros supranacionais quanto às entidades não-governamentais. Baliza e modula a problemática da elaboração do orçamento e da sua gestão responsável, da criação de normas antielisivas, da abertura do sigilo bancário e do combate à corrupção.” 18 Princípio da Melhor Estimativa ou da Exatidão possível: As estimativas devem ser tão exatas quanto possíveis, de forma a garantir à peça orçamentária razoável grau de consistência e utilidade, isto é, a fim de que possa ser utilizada como instrumento de programação, gestão e fiscalização. Têm sido apontados os artigos 7º e 16 do Decreto-lei nº 200/67 como fundamento. 19. Economicidade: Segundo o princípio estampado no caput do artigo 70 da CR-88, o orçamento deve prever a máxima satisfação das necessidades públicas com a aplicação do menor montante de receita possível, isto é, refere-se à otimização na utilização dos recursos públicos. 190 O princípio Anualidade Tributária não mais se aplica no Brasil, conforme já estudado, e o princípio da Anterioridade Tributária (clássica e nonagesimal) por sua vez, por se consubstanciar mais uma importante limitação constitucional ao Poder de Tributar será estudado de forma detalhada quando do exame dessas limitações. 191 FGV DIREITO RIO 82 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 5 – OS CRÉDITOS ORÇAMENTÁRIOS E ADICIONAIS Após a apresentação das principais questões relacionadas à vigência das leis orçamentárias, bem como da elaboração, iniciativa, apreciação, votação e sanção dos seus projetos, cumpre agora examinar os denominados Créditos Orçamentários e Adicionais em sua interação com a Despesa e o Orçamento público, elementos necessários para o estudo da Execução Orçamentária que, ao lado do Controle, formam os grandes tópicos do já referido Ciclo Orçamentário. Conforme já enfatizado na Aula 4, são vedados192 o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual bem como a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais. Nessa mesma linha, complementa o artigo 165, §8° da CR-88, no sentido de que a “lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.” Preliminarmente, entretanto, cumpre explicitar a inter-relação entre esses créditos e as despesas, bem como definir alguns conceitos que permitam traçar as diferenças entre os denominados: (1) créditos orçamentários; (2) créditos adicionais, que podem ser suplementares, especiais ou extraordinários; e (3) as operações de crédito – tendo em vista que todos possuem a palavra crédito inserida nas respectivas expressões, o que pode ocasionar dúvidas quanto ao âmbito de aplicação de cada qual. As chamadas operações de crédito, as quais podem, também, ser realizadas por antecipação de receita, serão examinadas nas aulas referentes ao Financiamento dos Gastos, à Dívida Pública e às Operações de Crédito, e bem assim das Receitas Públicas, especificamente quando analisadas aquelas de Capital, haja vista que, pela classificação legal193, as operações de crédito correspondem a ingressos públicos e, ao mesmo tempo, à constituição da dívida pública. Nesse sentido, a operação de crédito se vincula à Receita Pública, por ser uma das formas de financiar o gasto público, assim como ao denominado Crédito Público, o qual, por sua vez, constitui a Dívida Pública. Em sentido diverso, os créditos orçamentários e adicionais dizem respeito às autorizações parlamentares que visam à realização de despesas, o que revela a equivocidade da palavra utilizada nas supra mencionadas expressões. De fato, conforme apontado no Dicionário De Plácido e Silva 194, crédito é derivado do latim creditum e possui uma “ampla significação econômica e um estreito sentido jurídico”, a saber: Crédito. Em sua acepção econômica significa confiança que uma pessoa deposita em outra, a quem entrega coisa sua, para que, em futuro, receba dela coisa equivalente. (...) 192 Art. 167 da CR-88. Nesse sentido, é crime ordenar despesa não autorizada por lei a teor do artigo 359-D do Código Penal. 193 Apesar das controvérsias doutrinárias, que serão explicitadas no momento próprio, dispõe o artigo 3º da Lei n° 4320/64 que: “A Lei de Orçamentos compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei”. Nesse passo complementa o artigo 11, §2°, que: “São Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos da constituição de dívidas; (...).” Na mesma linha, define o artigo 29, III, da LRF: “operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”. O artigo 12, §2°, da LRF, dispositivo inserido no Capítulo III – Da Receita Pública, estabelece que “§ 2o O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.” Este último dispositivo foi impugnado pela ADI 2238. 194 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002. Forense. Rio de Janeiro, 2002. p. 230. FGV DIREITO RIO 83 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Crédito. Juridicamente, significa o direito que tem a pessoa de exigir de outra o cumprimento da obrigação contraída. Neste sentido, no entanto, tem-se o vocábulo em acepção mais ampliada, pois que abrange as obrigações de dar, fazer ou não fazer. Mas, em Direito ainda possui sentido mais restrito, desde que pode indicar o direito de cobrar uma dívida ativa, como pode significar o próprio título dessa dívida. (...) Crédito. Na técnica da escrituração mercantil, compreende o lançamento de haver feito em qualquer conta de uma escrita comercial ou a soma líquida (resultado balanceado) anotada no haver da mesma conta. Nesse último sentido crédito significa o montante da própria dívida ou de haver registrado. (...) Crédito. Na terminologia do Direito Administrativo, assim se diz para as somas consignadas nos orçamentos (verbas orçamentárias), destinadas a fazerem face às despesas públicas. Por essa forma, crédito, no sentido do Direito Administrativo, é indicado pela verba regularmente autorizada, dentro da qual, e sob títulos ou consignações próprias, se pagam as despesas empenhadas. (grifo nosso) Destaque-se que a nomenclatura verba, utilizada no Dicionário para definir o conceito de crédito no âmbito Administrativo, expressão, foi abolida da Lei n° 4.320/64, que passou a adotar, conforme pontuam José Teixeira Machado195 e Heraldo Costa Reis: mais apropriadamente, dotação e créditos orçamentários (art. 90). Na verdade, podemos notar uma vacilação de conceito entre os termos: dotação, crédito orçamentário e verba. Como a última está sendo eliminada, ou já o foi, da terminologia orçamentária brasileira, fixemo-nos das duas primeiras. Dotação deve ser a medida, ou quantificação monetária do recurso aportado a um programa, atividade, projeto, categoria econômica ou objeto de despesa. Este é o seu sentido. Apenas a prática, com sua capacidade de simplificação, toma o conteúdo (dotação igual a quantidade de recurso financeiro) pelo continente: programa, atividade, projeto, categoria econômica ou objeto de despesa. O crédito orçamentário seria, então, a autorização através da lei de orçamento ou de créditos, adicionais, para a execução de programa, projeto ou atividade ou para o desembolso de quantia aportada a objeto de despesa, vinculado a uma categoria econômica, e, pois, a um programa. Assim, o crédito orçamentário seria portador de uma dotação e esta o limite autorizado, quantificado monetariamente. Nessa linha de pensamento, em que pese o §5º do artigo 100 da CR-88 continuar a utilizar a expressão verba ao disciplinar os precatórios, a dotação é o limite do crédito conferido em lei para que os executores do orçamento realizem as despesas previamente especificadas e quantificadas monetariamente. O crédito pode ser previsto: (1) na lei do orçamento, hipótese em que se qualifica como crédito orçamentário196, já que consignado desde o início na 195 MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM, 2002/2003. p.21. 196 O Manual de Despesa Nacional, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizado no endereço eletrônico http://www. tesouro.fazenda.gov.br, qualifica como crédito orçamentário inicial “aquele aprovado pela lei orçamentária anual, constante dos orçamentos fiscal, da seguridade social e de investimentos das empresas estatais”. FGV DIREITO RIO 84 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I própria LOA; ou, ainda, (2) na norma que autoriza o crédito adicional (suplementar, especial ou extraordinário) durante a execução do orçamento, nos casos em que os gastos a que se vinculam não tenham sido previstos ou foram insuficientemente dotados na lei orçamentária, considerando, ainda, a possibilidade de haver recursos disponíveis sem vinculação à dotação específica. A última hipótese – recursos disponíveis sem vinculação à dotação específica – pode ocorrer: (2.1) em razão de imprecisões ou erros de planejamento, ou (2.2) em função da ocorrência de fatos supervenientes imprevisíveis e urgentes ou de desempenho da arrecadação acima do esperado. Os créditos especiais e suplementares podem, também, com prévia e específica autorização legislativa, nos termos do artigo 166, §8° da CR-88, ser os instrumentos utilizados para alocar os recursos que ficaram sem despesas correspondentes em decorrência de veto, emenda ou rejeição parcial do projeto de lei orçamentária anual, isto é, se a despesa inicialmente prevista no projeto sofreu redução ou supressão. Essa hipótese pode ocorrer se, após a aprovação da LOA, ocorreram sobras em relação à dotação inicialmente consignada, por força de veto do Chefe do Poder Executivo, por emenda parlamentar ou rejeição parcial do projeto de lei que atribuía determinada dotação para despesa específica. Esse montante, agora sem destino, pode ser utilizado por meio de créditos suplementares e especiais. O crédito suplementar, como o próprio nome revela, reforça e supre a dotação de despesas já previstas no orçamento, as quais, entretanto, ao longo do exercício financeiro, revelam-se insuficientemente dotadas financeiramente. Já os créditos especiais visam atender as despesas não previstas na LOA, mas que durante a execução do orçamento, mostram-se necessárias, razão pela qual se impõe a abertura de crédito novo, especial, com dotação específica a autorizar a despesa que surge. Os créditos suplementares e especiais, consoante o disposto no artigo 42 da Lei n° 4.320/64, “serão autorizados por lei e abertos por decreto executivo”, ou seja, o dispositivo diferencia o ato legislativo de autorização do ato administrativo que o integra para a produção de efeitos concretos. Por fim, os extraordinários visam a suprir as despesas imprevisíveis e urgentes que ocorram durante o exercício financeiro. Relativamente à abertura do crédito extraordinário, duas observações devem ser feitas: a primeira, conforme será analisado detidamente a seguir: (1) que a Constituição faculta a abertura de crédito extraordinário por meio de Medida Provisória; e, (2) a segunda, que nos interessa no momento, refere-se ao fato de que o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência firme no sentido de que as regras básicas de processo legislativo previstas na Constituição Federal servem de modelo obrigatório a ser seguido pelas Constituições Estaduais, conforme se infere do seguinte trecho da ADI 822.197 197 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 822. Julgamento em 05.04.1996. Disponível em: <http:// www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 26.05.2008. FGV DIREITO RIO 85 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Assim, se a Constituição faculta a autorização de crédito extraordinário por meio de Medida Provisória (artigo 167, §3°), mas o Estado ou o Município não possui aludida espécie normativa198, é permitida a sua criação e abertura por Decreto. Essa hipótese, no entanto, nos parece estar condicionada a ulterior ratificação legislativa pelas Assembléia Legislativa Estaduais, em cumprimento ao princípio da simetria. Nesses termos, dispõe o artigo 44 da Lei n° 4.320/64 que “os créditos extraordinários serão abertos por decreto do Poder Executivo, que deles dará imediato conhecimento ao Poder Legislativo”. Saliente-se que o termo conhecimento utilizado no dispositivo deve ser interpretado não apenas como simples anuência, mas sim como pedido formal de autorização ratificadora superveniente e vinculativa.199 Nessa direção aponta Afonso Gomes Aguiar:200 Ocorre porém, que os Créditos Extraordinários, por serem créditos adicionais, alteram o Orçamento Anual que, sendo uma lei, só pode sofrer alterações por força de autorização legislativa, isto é, por força de outra lei. Para pôr em harmonia a urgência no atendimento das despesas que devem ser socorridas por essa espécie de crédito adicional e a exigência do art. 2°, do Decreto-Lei n° 4.657/42 – Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro o legislador encontrou a saída disposta na verba da lei em questão. Destarte, o Chefe do Poder Executivo, ao abrir um crédito Extraordinário, através de Decreto, deverá encaminhar, de imediato, o texto do seu ato ao Poder Legislativo que, após examiná-lo, se for o caso, o aprovará, acontecendo, assim, posteriormente, a necessária autorização legislativa que, na espécie, o Poder Legislativo se externa através de Resolução, com força de lei.” (grifo nosso) O elemento comum às aludidas modalidades de crédito é o objetivo de possibilitar a geração201 e realização de despesas, o que pressupõe autorização legislativa em qualquer caso, ou seja, os créditos orçamentários e os adicionais corporificam, na norma que os autoriza, especifica e limita em termos monetários, por meio da dotação, a permissão do povo202 para que o governante possa gastar os recursos públicos, ainda que sejam distintas: (1) a forma como a abertura do crédito é autorizada e realizada, e bem assim, (2) o momen- 198 O Supremo Tribunal Federal já firmou jurisprudência no sentido da possibilidade e facultatividade de os Estados-membros adotarem medidas provisórias, assim como os Municípios. Nesse sentido, ADI 425, cuja parte relevante da ementa estabelece: “1. Podem os Estados-membros editar medidas provisórias em face do princípio da simetria, obedecidas as regras básicas do processo legislativo no âmbito da União (CF, artigo 62). 2. Constitui forma de restrição não prevista no vigente sistema constitucional pátrio (CF, § 1º do artigo 25) qualquer limitação imposta às unidades federadas para a edição de medidas provisórias. Legitimidade e facultatividade de sua adoção pelos Estados-membros, a exemplo da União Federal. (...)”. BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 425. Julgamento em 04.09.2002. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 27.05.2008. 199 Problemas de ordem prática podem surgir se a realização da despesa já foi efetivada quando ocorrer a não aprovação legislativa ou, ainda, se o Poder Judiciário suspender ou declarar inconstitucional o ato que permitiu a abertura do crédito extraordinário. Cabe, então, a indagação sobre o que ocorrerá com os créditos já repassados e empenhados pelos respectivos órgãos se o Poder Legislativo rejeitar a autorização para abertura do crédito ou o Judiciário considerá-lo incompatível com a ordem jurídica? No julgamento da medida cautelar na ADI 4048, a qual será adiante analisada, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia da Medida Provisória 405/07, convertida na Lei n 11.658/08, mas, conforme informado nas “Notícias STF”, de quarta feira, 14 de maio de 2008, “A decisão vale a partir de hoje, não atingindo os créditos já repassados e empenhados pelos órgãos”. BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 4048. Julgamento da cautelar em 14.05.2008. Disponível em: <http:// www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 16.05.2008. 200 AGUIAR, Afonso Gomes. Direito Financeiro. Lei 4.230. Comentada ao Alcance de todos. 3a edição. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2005. p. 307. 201 A Seção I, do Capítulo IV - Da Despesa Pública, da Lei Complementar n° 101/2000 (LRF), é intitulado “Da Geração de Despesa” e compreende os artigos 15 a 24 da LRF. 202 Dispõe o artigo 1°, III, da CR-88 “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. FGV DIREITO RIO 86 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I to em que essas autorizações legislativas são efetivadas, podendo ser prévia ou não. Em suma, a LOA fixa os gastos203, determinando as despesas qualitativa e quantitativamente, por meio de dotações específicas, consignadas nas respectivas rubricas orçamentárias a serem detalhadas no quadro de detalhamento das despesas204 de cada unidade orçamentária, sendo classificadas sob diversos critérios, mas sempre visando à realização dos projetos e programas previamente determinados pelo legislador, compatibilizados com as diretrizes, objetivos, metas e prioridades expressos na lei de diretrizes e no plano plurianual, os quais norteiam a ação governamental. Na hipótese de não estar prevista na LOA ou, se prevista, não for dotada suficientemente para atender determinado gasto a ser realizado durante o exercício financeiro, somente por meio dos créditos adicionais será possível a sua realização. Um outro exemplo pode facilitar a compreensão da questão: imaginemos, hipoteticamente, que em relação à estimativa do orçamento ocorra excesso de arrecadação durante a execução orçamentária de determinado exercício financeiro. Enquanto não houver a abertura de crédito adicional, suplementar ou especial, os recursos arrecadados acima do previsto, ainda não utilizados para dotar determinada despesa específica, por meio do ato próprio, não poderão ser gastos! Nesses termos, sob o ponto de vista da autorização, os créditos dizem-se orçamentários ou adicionais, a requerer, nas duas hipóteses, autorização parlamentar, a qual, como visto, pode ser prévia ou não. Os créditos orçamentários são disciplinados nos §§ 4° e 5° do artigo 5° da LRF, dispositivos que determinam ser vedado consignar, na lei orçamentária, crédito com finalidade imprecisa205 ou com dotação ilimitada, em sintonia com o disposto no artigo 167, VII, da CR-88, bem como dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja previsto no plano plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão, sob pena crime de responsabilidade, conforme disposto no § 1° do art. 167 da Constituição. Nesse sentido, o artigo 10, IX, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, estabelece que constitui ato de improbidade administrativa ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento. A menção deste (o regulamento) se restringe às hipóteses em que há delegação legislativa constitucionalmente autorizada, como é o caso do crédito suplementar, que será analisado a seguir. Destaque-se ainda que o artigo 359D, do Código Penal, dispositivo incluído pela Lei nº 10.028/2000, tipifica como crime “Ordenar despesa não autorizada por lei”, submetendo o ordenador da despesa que comete o ilícito à pena de reclusão de 1(um) a 4(quatro) anos. Cabe mencionar, ainda, que o artigo 42 da LRF veda, ao titular de Poder, assim qualificado pelo artigo 20 da Lei Complementar, como aquele do Executivo, Legislativo, neste incluído os Tribunais de Contas, Judiciário e do Ministério Público, “nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, 203 Nos termos do artigo 38 da Lei n° 4320/64: “Reverte à dotação a importância de despesa anulada no exercício, quando a anulação ocorrer após o encerramento do mesmo considerar-se-á receita do ano em que se efetivar.” 204 O chamado QDD (quadro de detalhamento de despesas) especifica os projetos e atividades por elementos de despesa a cargo da unidade orçamentária, conforme previsto no artigo 17 do Decreto n° 93.872/1986. A abertura ou reabertura de crédito adicional importa automática modificação do QDD. 205 Saliente-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal considera “adequada com a lei orçamentária anual” (1) “a despesa objeto de dotação específica e suficiente”, “ou” (2) que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício”. Nesse termos, a LRF veda o crédito com “finalidade imprecisa” ou “com dotação ilimitada”, mas permite o denominado “crédito genérico”. FGV DIREITO RIO 87 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.” O descumprimento desta determinação é tipificado como crime pelo artigo 359-C do Código Penal, dispositivo incluído pela Lei nº 10.028/2000. Nos termos já enfatizados, a abertura de crédito suplementar e especial somente são compatíveis com a Carta Magna, consoante o disposto no artigo 167, inciso V, e 62, §1º, I, d, da CR-88, caso haja autorização legislativa anterior206 e com a “indicação dos recursos correspondentes”, isto é, se ocorreu erro, descuido ou imprecisão no planejamento (o que ocasiona a existência de dotação inferior ao necessário) a ensejar crédito suplementar, ou omissão quanto à despesa que se revele necessária durante a execução orçamentária, a suscitar crédito especial, ou, ainda, na hipótese de existirem recursos em excesso, acima do previsto, tendo em vista o desempenho positivo da arrecadação relativamente ao previsto no orçamento, em qualquer dos casos, é constitucionalmente vedada a abertura de crédito (1)“sem prévia autorização legislativa” e (2) “sem indicação dos recursos correspondentes”. Repise-se, entretanto, que a autorização parlamentar ao crédito suplementar, mas não ao especial, pode ser efetivada diretamente na lei orçamentária anual – consubstanciando-se, assim, em delegação legislativa a priori, a teor do já citado artigo 165, §8° da CR-88-. Com efeito, tal dispositivo consagra o princípio geral da exclusividade207, assim como as suas exceções. Relativamente à indicação dos recursos disponíveis, cumpre destacar que são seis os recursos possíveis para cobrir a abertura de crédito suplementar e especial, desde que já não estejam comprometidos, sendo os mesmos disciplinados no artigo 43, §1°, I, II e III, da Lei n° 4.320/64, artigo 91 do Decreto-lei n 200/67 e no artigo 166, §8° da CR-88, nos seguintes termos: 1) o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício anterior, assim entendido como a diferença positiva entre o ativo e o passivo financeiro, conjugando-se, ainda, os saldos dos créditos adicionais transferidos e as operações de credito a eles vinculadas, conforme apurado no balanço patrimonial (artigo 43, §1°, I, da Lei n° 4.320/64); 2) os provenientes de excesso de arrecadação, assim entendida para esse fim o saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês entre a arrecadação prevista e a realizada, considerando-se, ainda, a tendência do exercício, observada a necessidade de deduzir a importância dos créditos extraordinários abertos no exercício para o fim de apurar os recursos utilizáveis provenientes de excesso de arrecadação; (artigo 43, §1°, II, da Lei n° 4.320/64); 206 Por esse motivo, exigência de autorização parlamentar prévia, os Partidos de oposição ajuizaram no Supremo Tribunal Federal (STF), conforme noticiado no site da Suprema Corte, “uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4179) contra os artigos 1º e 4º da Medida Provisória 452/08. A intenção dos autores – o Democratas, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Popular Socialista (PPS) – é impedir o Tesouro de emitir títulos da dívida pública mobiliária federal a serem empregados no Fundo Soberano do Brasil (FSB). Os três partidos argumentam, na ADI, que a Constituição Federal proíbe o presidente da República de editar MP sobre créditos suplementares ou especiais (artigo 167, V) e restringe os extraordinários aos casos urgentes. Além disso, defendem que o repasse ao Fundo deve ser previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias e feito por meio do Orçamento federal, e não por MP, uma vez que o artigo 62 veda edição de MPs para créditos suplementares. De fato, a lei de criação do Fundo (11.887/08), aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, prevê que os recursos do Tesouro serão repassados caso sejam “consignados no orçamento anual, inclusive aqueles decorrentes da emissão de títulos da dívida pública” (artigo 4º). Ela, inclusive, prevê que as fontes e recursos que o formarão serão provenientes das dotações do orçamento anual (aprovado pelo Congresso), ações de sociedades de economia mista federais e resultados de aplicações financeiras.” 207 O princípio da exclusividade, estampado no artigo 165, §8° da CR-88, prescreve que a lei orçamentária deve conter apenas a previsão da receita e a fixação da despesa. Tendo em vista não se tratar de matéria estranha à lei orçamentária, ele permite a abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receitas. A autorização legislativa na LOA é usualmente fixada em percentuais da dotação, podendo haver outros limites e parâmetro, como é o caso da delegação legislativa constante no artigo 4° da Lei n° 11.647/2008, a LOA da União para o exercício de 2008, conforme já salientado, dispositivo cujo caput estabelece: “Art. 4o Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, observado o disposto no parágrafo único do art. 8o da Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2008, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2008, respeitados os limites e condições estabelecidos neste artigo, para suplementação de dotações consignadas:” FGV DIREITO RIO 88 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 3) os resultantes de anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizados em Lei (artigo 43, §1°, III, da Lei n° 4.320/64); 4) o produto de operações de crédito autorizadas, em forma que juridicamente possibilite ao poder executivo realizá-las (artigo 43, §1°, IV, da Lei n° 4.320/64); 5) da reserva de contingência, prevista no artigo 91, do Decreto-lei n° 200/67, regra que determina que o orçamento incluirá verba global para constituição de um Fundo de Reserva Orçamentária, destinando-se os recursos a despesas correntes quando se evidenciar deficiências nas respectivas dotações e se fizer indispensável atender a encargo legal ou a necessidade imperiosa do serviço; 6) os já citados recursos que em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa (artigo 166, §8°, da CR-88). Por sua vez, a abertura de crédito extraordinário, consoante o disposto no artigo 167, §3° da CR-88, somente será admitida para atender às despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62. Ou seja, o parâmetro constitucional, que permite a abertura do crédito extraordinário, espécie de crédito adicional, por meio de Medida Provisória (MP), conforme já salientado, restringe-se aos casos em que há relevância e urgência. Assim, a criação de crédito extraordinário por MP possui três requisitos necessários e cumulativos, haja vista que a causa de sua abertura, o fato subjacente a ensejar a medida temporária, tem que ser (1) urgente, (2) relevante e (3) imprevisível, configurando-se essa imprevisibilidade à época da elaboração do orçamento. De fato, o artigo 62, § 1º, I, d, da CR-88, dispositivo incluído pela Emenda Constitucional nº32, de 2001, estatui ser vedada a edição de medida provisória sobre matéria relativa a “planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares,” excepcionada a hipótese do crédito extraordinário, nos termos do citado art. 167, § 3º. Saliente-se que, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 do artigo 62, as medidas provisórias, ainda que relevantes e urgentes, “perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do §7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes”. Nesses termos, repise-se que a requerida autorização legislativa para a abertura de crédito extraordinário ocorre posteriormente e não previamente, como é a regra geral dos demais créditos adicionais – o suplementar e o especial.208 Cabe 208 Destaque-se que, em 16/4/2008, a Comissão Especial, destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 511-A, de 2006, do Senado Federal, que “altera o art. 62 da Constituição Federal para disciplinar a edição de medidas provisórias”, estabelecendo que a Medida Provisória só terá força de lei depois de aprovada a sua admissibilidade pelo Congresso Nacional, sendo o início da apreciação alternado entre a Câmara e o Senado (PEC51106)”, aprovou o Parecer do relator, por unanimidade. A PEC modifica a redação dos artigos 62 e 167 da CR-88, o que afeta diretamente a matéria orçamentária ora sob exame. Os dispositivos, com a redação proposta na PEC, estão assim redigido: “Art. 62.(...) § 1º (...), I – (...) d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais, ressalvado o previsto no art. 167, §§ 3º e 5º”; e “Art. 167. São vedados (...) § 3º - A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública,observado o disposto no art. 62. (...) § 5º O projeto de lei de crédito suplementar e especial que, após decorrido o prazo de setenta e cinco dias de seu envio pelo Poder Executivo, não tenha sua votação concluída no Congresso Nacional, poderá ser objeto de medida provisória, observado o art. 62, com o mesmo conteúdo do projeto original, cuja tramitação permanecerá suspensa até deliberação final da medida provisória. § 6º O prazo a que se refere o § 5º suspender-se-á durante os períodos de recesso do Congresso Nacional.” Assim, nos termos da redação proposta para o § 3º o elenco apresentado pela Constituição passa de exemplificativo para taxativo, o que restringirá a possibilidade de aplicação do crédito extraordinário. Por outro lado, o novel § 5º combinado com o disposto no artigo 62, § 1º, I, d, estabelece a possibilidade de abertura de créditos suplementares e especiais por intermédio de Medida Provisória, caso “decorrido o prazo de setenta e cinco dias de seu envio pelo Poder Executivo, não tenha sua votação concluída no Congresso Nacional”. BRASIL. Poder Legislativo. Câmara dos Deputados. PEC nº 511-A, de 2006. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Pesquisa realizada em 27.05.2008. FGV DIREITO RIO 89 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ressaltar, entretanto, que se a causa a ensejar a edição da Medida Provisória não for, realmente, (1) urgente, (2) relevante e (3) imprevisível pode o Poder Judiciário considerar inválida a autorização, como foi o caso da decisão em medida cautelar na ADI 4048, ainda na hipótese em que já tenha havido a conversão da MP quando do julgamento, haja vista que “lei de conversão não convalida os vícios formais porventura existentes na medida provisória, que poderão ser objeto de análise do Tribunal, no âmbito do controle de constitucionalidade”, conforme jurisprudência firmada no STF nas ADIs n°s 3.090 e 3.100. A leitura da parte inicial e da parte final do voto do relator na ADI 4048 é esclarecedora em relação à matéria: “MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.048-1 DISTRITO FEDERAL O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator): No ato de distribuição do Relatório e apresentação em mesa para o julgamento desta Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.048/DF, em 31 de março de 2008, estava em tramitação a Medida Provisória n° 405/2007, a qual teve sua vigência prorrogada por sessenta dias, a partir de 30 de março, tendo em vista que sua votação não havia sido encerrada no Congresso Nacional (Ato do presidente da Mesa do Congresso Nacional n° 7, de 2008). No dia 16 de abril, o Congresso Nacional aprovou a conversão em lei da referida medida provisória. A promulgação da Lei n° 11.658, lei de conversão da MP n° 405/2007, ocorreu no dia 18 de abril de 2008, e sua publicação no dia 22 de abril do mesmo ano. É preciso esclarecer, portanto, que no dia 17 de abril, quando o Tribunal iniciou o julgamento da medida cautelar nesta ADI n° 4.048/DF, ainda não existia formalmente a lei de conversão (não havia sido promulgada nem publicada), mas apenas sua aprovação pelo Congresso Nacional, fato que não foi comunicado oficialmente nos autos, tendo sido objeto de considerações tecidas pelo Advogado-Geral da União em sua sustentação oral. Após os votos dos Ministros Eros Grau, Cármen Lúcia, Carlos Britto e Marco Aurélio, além do voto por mim proferido na qualidade de Relator, no sentido da concessão da medida cautelar, o julgamento foi suspenso para esperar os votos dos Ministros Menezes Direito, Ellen Gracie e Celso de Mello, ausentes na ocasião, justificadamente. No dia 22 de abril, data da publicação da lei de conversão (Lei n° 11.658/2008), o requerente, Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, aditou o pedido inicial para incluir no objeto desta ação a referida lei. Argumentou o partido político que não houve qualquer alteração no texto original da MP n° 405/2007. Eis o teor da Lei n° 11.658/2008: “Art. 1o Fica aberto crédito extraordinário, em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00 (cinco bilhões, quatrocentos e cinqüenta e cinco milhões, seiscentos e setenta e sete mil, seiscentos e sessenta reais), para aten- FGV DIREITO RIO 90 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I der à programação constante dos Anexos I e III desta Lei. Art. 2o Os recursos necessários à abertura do crédito de que trata o art. 1o decorrem de: I – superávit financeiro apurado no Balanço Patrimonial da União do exercício de 2006, no valor de R$ 3.995.542.240,00 (três bilhões, novecentos e noventa e cinco milhões, quinhentos e quarenta e dois mil, duzentos e quarenta reais); II – excesso de arrecadação no valor de R$ 670.252.213,00 (seiscentos e setenta milhões, duzentos e cinqüenta e dois mil, duzentos e treze reais); III – anulação parcial de dotações orçamentárias, no valor de R$ 370.837.862,00 (trezentos e setenta milhões, oitocentos e trinta e sete mil, oitocentos e sessenta e dois reais), conforme indicado no Anexo II desta Lei; IV – ingresso de operação de crédito relativa ao lançamento de Títulos da Dívida Agrária, no valor de R$ 417.115.345,00 (quatrocentos e dezessete milhões, cento e quinze mil, trezentos e quarenta e cinco reais); e V – repasse da União sob a forma de participação no capital de empresas estatais, no valor de R$ 1.930.000,00 (um milhão, novecentos e trinta mil reais). Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” Tendo em vista que não houve qualquer alteração substancial no texto original da MP n° 405/2008, não vejo qualquer obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. O Tribunal tem entendido que a lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória, como se pode observar nos precedentes das ADI n°s 3.090 e 3.100, cujo acórdão está assim ementado: “EMENTA: Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica, altera as Leis nºs 5.655, de 1971, 8.631, de 1993, 9.074, de 1995, 9.427, de 1996, 9.478, de 1997, 9.648, de 1998, 9.991, de 2000, 10.438, de 2002, e dá outras providências. 2. Medida Provisória convertida na Lei n° 10.848, de 2004. Questão de ordem quanto à possibilidade de se analisar o alegado vício formal da medida provisória após a sua conversão em lei. A lei de conversão não convalida os vícios formais porventura existentes na medida provisória, que poderão ser objeto de análise do Tribunal, no âmbito do controle de constitucionalidade. Questão de ordem rejeitada, por maioria de votos. Vencida a tese de que a promulgação da lei de conversão prejudica a análise dos eventuais vícios formais da medida provisória. 3. Prosseguimento do julgamento quanto à análise das alegações de vícios formais presentes na Medida Provisória n° 144/2003, por violação ao art. 246 da Constituição: “É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”. FGV DIREITO RIO 91 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Em princípio, a medida provisória impugnada não viola o art. 246 da Constituição, tendo em vista que a Emenda Constitucional n° 6/95 não promoveu alteração substancial na disciplina constitucional do setor elétrico, mas restringiu-se, em razão da revogação do art. 171 da Constituição, a substituir a expressão “empresa brasileira de capital nacional” pela expressão “empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país”, incluída no § 1º do art. 176 da Constituição. Em verdade, a Medida Provisória n° 144/2003 não está destinada a dar eficácia às modificações introduzidas pela EC n° 6/95, eis que versa sobre a matéria tratada no art. 175 da Constituição, ou seja, sobre o regime de prestação de serviços públicos no setor elétrico. Vencida a tese que vislumbrava a afronta ao art. 246 da Constituição, propugnando pela interpretação conforme a Constituição para afastar a aplicação da medida provisória, assim como da lei de conversão, a qualquer atividade relacionada à exploração do potencial hidráulico para fins de produção de energia. 4. Medida cautelar indeferida, por maioria de votos.” Assim, recebido o pedido de aditamento formulado pelo partido requerente, reformulo a parte dispositiva do voto para, deferindo o pedido de medida cautelar, suspender a vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. (...) Como se pode constatar, pela leitura atenta da exposição de motivos da MP n° 405/2007, os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. É bem verdade que, em alguns casos, é possível identificar situações específicas caracterizadas pela relevância dos temas. São os casos, por exemplo, dos créditos destinados à redução dos riscos de introdução da gripe aviária e de outras doenças exóticas na cadeia avícola brasileira; aqueles destinados às operações de policiamento nas rodovias federais e de investigação, repressão e combate ao crime organizado e para evitar a invasão de terras indígenas, assim como para solver a grave situação dos sistemas penitenciários com superpopulação carcerária; os créditos destinados ao aporte imediato de recursos extras para o pagamento de benefícios aos agricultores familiares do semi-árido que tiveram perdas na última safra; e, enfim, os créditos destinados a evitar a ocorrência de crise aérea, para impedir o risco de acidentes com as aeronaves da Força Aérea Brasileira, assim como para evitar a suspensão dos serviços de vigilância territorial. Não é possível negar que, nesses casos, existem fatos relevantes que necessitam, impreterivelmente, de recursos suficientes para evitar o desencadeamento de uma situação de crise. É preciso bem observar, porém, que são aportes financeiros destinados à adoção de mecanismos de prevenção em relação a situações de risco previsíveis. A situação de crise ainda não está configurada, de modo que faltam os elementos da imprevisibilidade e da urgência para caracterizar a necessidade da abertura do FGV DIREITO RIO 92 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I crédito extraordinário. Assim, por exemplo, se, por um lado, não se pode negar a relevância da abertura de créditos para a prevenção contra a denominada gripe aviária, por outro lado pode-se constatar que, nessa hipótese, os recursos são destinados à prevenção de uma possível calamidade pública ainda não ocorrida. Não há calamidade pública configurada e oficialmente decretada, mas apenas uma situação de risco previamente conhecida. Também as áreas de segurança, agricultura e aviação civil apresentam problemas que indubitavelmente carecem do aporte de recursos financeiros com certa urgência, mas todos são decorrentes de fatos plenamente previsíveis. Nenhuma das hipóteses previstas pela medida provisória configuram situações de crise imprevisíveis e urgentes, suficientes para a abertura de créditos extraordinários. Há, aqui, um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. E esse não é um caso raro. Impressiona a quantidade elevada de medidas provisórias editadas, no último ano, pelo Presidente da República, para abertura de créditos suplementares ou especiais travestidos de créditos extraordinários. Desde o início do ano de 2007, já se podem contar mais de 20 medidas provisórias destinadas à abertura de créditos de duvidosa natureza extraordinária (MP n°s 343, 344, 346, 354, 356, 364, 365, 367, 370, 376, 381, 383, 395, 399, 400, 402, 405, 406, 408, 409, 420 e 423). É papel desta Corte assegurar a força normativa da Constituição e estabelecer limites aos eventuais excessos legislativos dos demais Poderes. Com essas considerações, voto pela concessão da medida cautelar, para suspender a vigência da Medida Provisória n° 405, de 18.12.2007.” O Tribunal209, por maioria (6 votos contra 5), concedeu a liminar, nos termos do voto do relator, Ministro Gilmar Mendes (Presidente), vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Menezes Direito. Essa decisão, além de sua importância em função das razões de decidir – primeiramente, no que se refere à eficácia do controle concentrado sobre as leis de conversão, confirmando a jurisprudência das citadas ADI n°s 3.090 e 3.100, e bem assim por ser paradigmática no delineamento dos requisitos necessários à abertura de créditos extraordinários210, os quais pressupõem, cumulativamente (1) urgência, (2) relevância e (3) imprevisibilidade – também é emblemática por consolidar a mudança de posição do STF relativamente ao cabimento do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias pela via da ação direta. De fato, conforme já apontado anteriormente, a jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal era no sentido de considerar a lei de efeito concreto como inidônea para o controle abstrato de normas, razão pela qual considerava, majoritariamente, inadmissível a ação direta de inconstitucionalidade contra lei orçamentária que destinasse determinada soma pecuniária ou percentagem de receita fixada para finalidade/despesa 209 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 4048-MC. Julgamento em 14.05.2008. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 26.05.2008. Nas “Notícias do STF”, disponíveis no mesmo sítio, do dia 14 de Maio de 2008, é apresentado o seguinte informe: “Supremo suspende lei que abriu créditos extraordinários no orçamento “O chefe do poder Executivo da União transformou-se em verdadeiro legislador solitário da República”, disse o ministro Celso de Mello, ao salientar que, na edição de medidas provisórias, o presidente da República deve observar os requisitos constitucionais da urgência e da relevância.” Em que pese a decisão, no mesmo dia em que o STF concedeu a liminar na ADI, o Poder Executivo publicou em Diário Oficial de edição extra, a Medida Provisória nº 430, de 14 de maio de 2008, cujos artigo 1° e 2° estabelecem: “Art. 1° Fica aberto, em favor do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, crédito extraordinário no valor de R$ 7.560.000.000,00 (sete bilhões, quinhentos e sessenta milhões de reais), para atender à programação constante do Anexo desta Medida Provisória. Art. 2° Os recursos necessários à abertura do crédito de que trata o art. 1o decorrem de superávit financeiro apurado no Balanço Patrimonial da União do exercício de 2007, relativo a Recursos Ordinários.” 210 Em novembro de 2008, seguindo a mesma linha de entendimento, conforme noticiado no site do STF, “O Supremo Tribunal Federal declarou, em caráter liminar, a inconstitucionalidade da Medida Provisória 402 (convertida na Lei 11.656/08), que abriu crédito extraordinário de R$ 1,65 bilhão no orçamento federal para uso em obras, rodoviárias ou transposição de rios, entre outros. O argumento da maioria – seis ministros – é de que os eventos que justificariam esses gastos não podem ser considerados imprevisíveis, de calamidade pública e comoção interna” (ADI 4049). FGV DIREITO RIO 93 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I específica, posto não serem as normas dotadas de abstração e generalidade. Nesse sentido, entre outras, deve-se mencionar a ADI 1640, ADI 2057 e ADI 2484. Essa jurisprudência, conforme acima ressaltado, tem sido mitigada nos últimos anos, em especial no julgamento da ADI 2.925, que marcou uma nova etapa na posição do Tribunal, que já havia, é verdade, decidido pela possibilidade do exame do mérito do controle em outras ocasiões, como na ADI 2108 e ADPF 63. Assim, o juízo de admissibilidade da ADI-MC 4048 reafirma a posição do Tribunal no mesmo sentido da ADI 2.925, a qual possui a seguinte ementa: No que se refere à vigência dos créditos adicionais, duas regras são aplicáveis: (1) a primeira, no sentido de que os créditos suplementares somente são vigentes no exercício financeiro em que forem abertos, vedada a sua prorrogação, nos termos do artigo 45 da Lei n º 4.320/64 (“Art. 45. Os créditos adicionais terão vigência adstrita ao exercício financeiro em que forem abertos, salvo expressa disposição legal em contrário, quanto aos especiais e extraordinários.”); e (2) aos créditos especiais e extraordinários, exceções ao princípio da Anualidade Orçamentária, conforme já mencionado na aula passada, aplica-se o disposto no artigo 167, § 2º, da CR-88 que dispõe, in verbis: § 2º – Os créditos especiais e extraordinários terão vigência no exercício financeiro em que forem autorizados, salvo se o ato de autorização for promulgado nos últimos quatro meses daquele exercício, caso em que, reabertos nos FGV DIREITO RIO 94 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I limites de seus saldos, serão incorporados ao orçamento do exercício financeiro subseqüente. A aplicabilidade desses dispositivos pode ser melhor explicitada por meio do gráfico a seguir: O quadro abaixo consolida o que foi até aqui exposto relativamente às características e especificidades das três espécies de Créditos Adicionais: FGV DIREITO RIO 95 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Créditos Suplementares Créditos Especiais Créditos Extraordinários Objetivo Reforça e supre a dotação de despesa já prevista no orçamento, a qual, entretanto, ao longo do exercício financeiro, revela-se insuficientemente dotada Permitir a realização de programa e despesa não contemplada no orçamento. Atendimento das despesas urgentes e imprevisíveis. Autorização Legislativa Prévia, em lei especial, ou na própria LOA que pode delegar competência ao Poder Executivo (art. 165, § 8º, e 167, V, da CR-88) Prévia, somente por meio de lei específica. (art. 167, V, da CR-88) Posterior, tendo em vista a possibilidade de abertura do crédito por Medida Provisória ou Decreto Estadual. (art. 167, §3º, CR-88) Forma de Abertura Decreto do Poder Executivo Decreto do Poder Executivo Medida Provisória ou Decreto do Executivo Indicação de Recurso Obrigatória, devendo estar expressa na lei autorizadora e no Decreto que efetiva a abertura do crédito. Obrigatória, devendo estar expressa na lei autorizadora e no Decreto que efetiva a abertura do crédito. Independe de Indicação Indicação de limite Obrigatória, devendo estar expressa na lei autorizadora e no Decreto que efetiva a abertura do crédito. Obrigatória, devendo estar expresso na lei autorizadora e no Decreto que efetiva a abertura do crédito. Obrigatória, devendo estar expresso no ato que efetiva a abertura do crédito (MP ou Decreto do Executivo). Em regra no exercício financeiro em que foi aberto, mas permitida para o exercício seguinte. na hipótese de previsão na lei autorizadora e, também, ter sido autorizado durante os últimos quatro meses do exercício financeiro. Em regra no exercício financeiro em que foi aberto, mas permitida para o exercício seguinte. na hipótese de previsão no ato autorizador e, ainda, ter sido autorizado durante os últimos quatro meses do exercício financeiro. Vigência e possibilidade de prorrogação Restrita ao exercício financeiro em que foi aberto, sem possibilidade de prorrogação. Por fim, cumpre destacar que, visando garantir a autonomia e independência dos Poderes, o artigo 168 da CR-88 estabelecia em sua redação original que os “recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º”. No mesmo sentido, a Emenda Constitucional nº 45/2004211 al- 211 Dispõe a atual redação da CR-88 que “recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º”. FGV DIREITO RIO 96 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I terou a redação do dispositivo, para incluir a Defensoria Pública212 no rol dos destinatários, bem como para determinar que a entrega será efetivada “em duodécimos”. Destaque-se que, para os fins dessa entrega de recursos financeiros, fixada constitucionalmente, relativamente à despesa total com pessoal, o Poder Executivo considerará, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, a resultante da aplicação dos percentuais limites definidos na lei, ou aqueles fixados na lei de diretrizes orçamentárias por Poder e órgão. Conforme será salientado na próxima aula, a LRF, disciplinando o disposto no artigo 169 da Constituição, estabeleceu limites de despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, em relação aos percentuais da receita corrente líquida. Assim, quando do repasse dos recursos mensais aos demais Poderes e à Defensoria Pública, o Poder Executivo deve observar os limites de despesa com pessoal de que tratam os artigos 169 da CR-88 combinado com os artigos 18 a 20 da LRF. 212 Nos termos do § 2º do artigo 134 da CR-88, com as sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, “Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º”. FGV DIREITO RIO 97 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 6 – A DESPESA PÚBLICA, A EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO E A RESPONSABILIDADE FISCAL. Após o estudo dos aspectos mais relevantes dos orçamentos e dos créditos orçamentários iniciais e adicionais, requisitos essenciais à realização das despesas públicas, impõe-se agora examinar este componente da atividade financeira do Estado de forma individualizada, assim como alguns mecanismos para o seu controle. Antes, porém, importante salientar que a interação da Despesa com a Receita Pública pode ser analisada em dois planos distintos: o primeiro, no momento da elaboração do orçamento anual, e, o segundo, quando da execução orçamentária. Nos termos já exaustivamente enfatizados, desde a edição da Emenda Constitucional nº 1/69, as Receitas Públicas cogentes ou não, ao contrário da Despesas, não têm como requisito necessário prévia autorização orçamentária para a sua realização, isto é, o exercício da competência tributária e a arrecadação das demais receitas não dependem de autorização legislativa anual. A Despesa, em sentido oposto, conforme já repetidamente salientado nas aulas anteriores, pressupõe autorização legislativa213 (prévia214 ou não), renovada anualmente, a qual fixe, monetariamente, o limite de crédito conferido aos executores do orçamento, por meio da denominada dotação orçamentária. A definição da despesa e do montante de gastos, portanto, decorrem de uma decisão política, a qual, considerando diversos fatores de natureza econômica, social, cultural e histórica, delineia as funções e determina o modelo de atuação estatal. De fato, a despesa pública é o instrumento de que se vale o Poder Público moderno para realizar os serviços públicos tendentes a satisfazer as necessidades coletivas, fixadas pelo processo político como finalidades do Estado (ex: saúde, segurança, educação etc). Corresponde à aplicação de certa quantia em dinheiro por parte da autoridade ou agente público competente215. Salienta Kiyoshi Harada216, entretanto, que: ainda sobrevivem alguns processos de funcionamento de serviços públicos, sem despesa pública, na área de prestação de serviços esporádicos: presidentes e membros de mesas receptoras e apuradoras de eleições; membros do Conselho Penitenciário; júri; outras funções gratuitas existem, compensadas com as honrarias mediante atribuição, por lei, de nota de ‘relevante serviço público prestado’. É certo, porém, que a gratuidade da função é exceção, restrita a algumas esferas onde não se exigem a assiduidade, a regularidade e a continuidade do serviço público (para quem presta o serviço), dado o seu caráter temporário. Ressalvadas essas exceções, importante frisar que a realização da despesa requer, em regra, a adoção de diversos outros procedimentos, além da aquiescência parlamentar, tais como a licitação, o empenho, a liquidação até que 213 O artigo 167 da CR-88 estabelece que: “São vedados: I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; II – a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; (...)”, ao passo que o §8°, do art. 165, determina que a lei orçamentária anual (LOA) fixa as despesas. 214 A antecedência, conforme já estudado, é dispensada na hipótese de edição de Medida Provisória ou de Decreto para a abertura de créditos extraordinários. 215 BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 73. 216 HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.20. FGV DIREITO RIO 98 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ocorra o efetivo pagamento. Ainda, nos mesmos termos da receita, a despesa comporta variadas classificações, dependendo do interesse envolvido. Destaca-se entre elas a classificação legal com base em fundamento econômico que as subdivide em despesas correntes e de capital. O Manual de Despesa Nacional, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov. br, fixa importante classificação da despesa quanto à dependência da execução orçamentária (Despesa resultante da execução orçamentária – aquela que depende de autorização orçamentária para acontecer. Exemplo: despesa com salário, despesa com serviço, etc.e Despesa independente da execução orçamentária – aquela que independe de autorização orçamentária para acontecer. Exemplo: constituição de provisão, despesa com depreciação, etc.), conforme será examinado adiante. Importante mencionar, ainda, a relevância da já citada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a qual, ao lado da lei de licitações públicas, visa o controle e a transparência dos gastos públicos. Preliminarmente, entretanto, cumpre salientar que Fabio Giambiagi e Ana Cláudia Além217, analisando os dados indicativos das despesas desde o final do século XIX, em uma perspectiva de longo prazo concluem que: (...) a crescente complexidade dos sistemas econômicos no mundo como um todo tem levado a um aumento da atuação do governo, que tem se refletido no aumento da participação dos gastos do setor público ao longo do tempo. A percentagem dos gastos públicos sobre o PIB passou de uma média internacional, no grupo de países mais desenvolvidos do mundo, de cerca de 11% no final do século XIX, para algo em torno de 46% em 1996. (grifo nosso) Os economistas apontam em geral razões de ordens distintas para a atuação estatal, as denominadas “determinantes das despesas públicas”:218 as falhas de mercado, envolvendo a existência de bens públicos, caracterizados pela impossibilidade de exclusão do seu consumo e por ser “não-rival”, isto é, “o consumo por parte de um indivíduo ou de um grupo social não prejudica o consumo do mesmo bem pelos demais integrantes da sociedade”219, bem como as externalidades, o poder de mercado, e as informações assimétricas. Independentemente da teoria econômica que lhe dê sustentação, o que se verifica no Brasil, bem como nos países mais ricos do mundo ocidental, é o crescimento ou o elevado volume de despesas governamentais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), conforme os dados a seguir apresentados. O resultado das despesas da União, em relação ao PIB, foi produzido a partir dos dados da Secretaria do Tesouro Nacional relativamente à execução 217 GIAMBIAGI e ALÉM. Op. Cit. p. 10. 218 REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.27-41. 219 GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 4. FGV DIREITO RIO 99 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I financeira do Tesouro Nacional, disponível no sítio http://www.tesouro.fazenda.gov.br União (R$ milhões) 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Despesas realizadas 252.632 283.751 338.010 367.665 417.310 504.208 589.002 645.843 % do PIB 21,42% 21,79% 22,87% 21,63% 21,49% 23,48% 25,25% 25,24% % crescimento–ano anterior 11,88% 12,32% 19,12% 8,77% 13,50% 20,82% 16,82% 9,65% A elevada participação da despesa pública no “GDP” nominal (Gross Domestic Product) também é verificada no âmbito da OCDE, conforme dados do OECD Economic Outlook, que pode ser anals (http://www.oecd.org/eco/ sources-and-methods). FGV DIREITO RIO 100 43,6 44,9 41,5 42,9 52,9 31,8 20,0 37,7 54,9 53,2 53,3 Germany Greece Hungary Iceland Ireland Italy Japan Korea Luxembourg Netherlands New Zealand Norway 42,8 61,3 29,7 41,9 37,1 50,4 United States1 Euro area 49,3 37,8 62,7 31,5 43,6 .. 43,2 .. 44,3 38,4 54,9 50,3 54,5 44,5 54,0 31,6 20,9 46,1 41,8 55,8 42,9 50,6 .. 56,5 56,7 37,7 52,4 53,3 52,3 50,5 38,5 71,1 33,6 45,6 .. 44,3 .. 45,4 40,0 55,7 49,4 55,7 44,9 55,4 32,6 22,0 47,3 44,3 59,7 43,8 52,0 .. 57,5 62,2 38,3 53,1 53,6 53,3 52,2 38,0 72,4 34,5 45,7 .. 45,8 .. 49,0 39,8 55,7 45,7 54,6 44,7 56,4 34,3 21,6 48,3 46,6 59,3 43,6 54,9 .. 60,6 64,8 37,8 55,9 54,6 52,2 51,0 37,0 70,3 34,6 45,0 .. 44,0 54,5 46,7 38,9 53,5 42,9 53,7 44,0 53,5 35,6 21,0 47,9 44,8 62,8 43,4 54,2 .. 60,4 63,9 38,2 55,5 52,4 49,7 50,6 37,0 67,1 34,4 44,5 47,7 43,1 48,0 44,4 39,7 51,6 42,0 50,9 41,2 52,5 36,5 20,8 48,3 45,8 55,3 42,7 54,4 54,0 59,5 61,5 38,2 56,0 51,9 48,5 50,7 36,5 64,9 35,0 42,7 51,0 44,0 52,9 43,2 41,1 49,4 41,0 48,5 39,2 52,5 36,8 21,7 49,3 44,1 52,1 42,2 54,5 42,4 59,1 60,1 37,2 55,5 52,2 46,6 49,4 35,4 62,6 35,2 41,2 46,4 42,9 48,3 41,6 40,6 47,5 41,7 46,9 36,7 50,2 35,7 22,4 48,3 45,0 50,0 40,7 54,1 43,2 57,1 56,2 36,3 53,0 51,0 44,3 48,5 34,7 60,4 35,6 40,0 44,3 42,2 45,5 41,1 41,0 46,7 41,4 49,2 34,5 49,3 37,1 24,7 48,1 44,4 51,5 41,3 52,7 43,1 56,8 52,6 35,2 53,5 50,2 44,8 48,1 34,3 60,0 34,2 39,4 42,7 43,2 47,3 39,9 39,2 46,0 41,0 47,7 34,1 48,2 38,6 23,9 48,2 44,4 48,6 42,0 52,6 42,2 55,8 51,5 34,8 53,1 50,1 42,7 46,2 34,2 57,1 33,4 37,1 41,1 43,1 50,5 39,1 37,6 44,2 39,6 42,3 31,5 46,1 39,1 23,9 45,1 46,7 46,5 41,9 51,6 41,7 53,9 48,3 35,2 51,5 49,0 41,1 Annex Table 25. General government total outlays- Per cent of nominal GDP 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 47,3 35,3 56,7 34,1 40,4 43,8 44,4 44,3 38,6 38,1 45,4 38,5 44,2 33,3 48,0 38,5 25,0 47,5 45,3 47,2 42,6 51,6 44,2 54,5 47,8 36,0 50,8 49,1 42,0 2001 47,6 36,3 58,1 35,4 41,4 44,2 44,3 44,8 38,9 41,5 46,2 38,4 47,1 33,6 47,4 38,8 24,8 48,0 44,8 51,2 44,3 52,6 46,2 54,9 48,8 35,4 50,7 49,9 41,2 2002 48,1 36,8 58,3 36,4 42,8 44,6 45,5 40,5 38,4 41,9 47,1 38,8 48,3 33,4 48,3 38,4 30,9 48,4 45,0 49,1 45,6 53,3 47,1 55,3 50,0 34,6 51,1 51,2 41,1 2003 47,6 36,4 56,9 35,9 43,2 42,6 46,5 38,0 38,9 42,5 46,1 38,9 45,6 33,8 47,8 37,0 28,1 47,3 45,4 48,8 44,0 53,3 44,7 55,1 50,3 35,2 50,3 49,3 39,9 2004 47,5 36,7 56,6 34,9 44,6 43,3 47,7 38,4 38,5 41,8 45,2 40,5 42,3 34,2 48,3 38,2 28,9 47,0 43,2 49,9 42,3 53,7 44,5 52,8 50,5 34,8 49,9 49,3 39,2 2005 47,1 36,7 55,6 34,3 44,7 43,8 46,4 37,7 38,6 39,0 46,1 41,4 40,8 34,1 50,1 36,6 30,5 45,4 42,3 51,9 41,8 53,3 43,1 51,2 48,7 34,0 49,3 48,4 39,3 2006 46,4 37,4 53,8 34,0 44,6 43,2 45,9 36,5 38,8 37,8 45,7 42,3 41,0 34,7 48,4 36,5 31,7 44,3 43,2 51,0 43,1 53,0 43,3 50,7 48,1 34,0 48,2 48,3 38,6 2007 Total OECD 40,9 41,3 42,4 42,9 42,2 42,2 41,8 40,6 40,2 39,9 39,1 40,1 40,7 41,2 40,6 40,8 40,6 40,6 Note: Data refer to the general government sector, which is a consolidation of accounts for the central, state and local governments plus social security. Total outlays are defined as current outlays plus capital outlays. One-off revenues from the sale of mobile telephone licenses are recorded as negative capital outlays for countries listed in the note to Annex Table 27. Some other important one-offs have been accounted for prior to 2000 and are reported in OECD Economic Outlook Sources and Methods (http://www.oecd.org/eco/sources-and-methods). These data include outlays net of operating surpluses of public enterprises. .. Sweden Switzerland United Kingdom .. Poland Portugal Slovak Republic Spain 40,3 49,4 France .. 55,9 48,0 Czech Republic Denmark Finland .. 35,7 51,5 52,2 48,8 1990 Austrália Austria Belgium Canada Source: OECD Economic Outlook 82 database. DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I FGV DIREITO RIO 101 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Antes da apresentação das diversas classificações da despesa pública orçamentária, proceder-se-á a explicitação das diversas etapas necessárias à sua efetivação. 6.1 AS DIVERSAS ETAPAS PARA A REALIZAÇÃO DA DESPESA ORÇAMENTÁRIA A realização da despesa orçamentária perpassa e se estende, em termos gerais, pelas seguintes fases: (1) planejamento da despesa e a previsão no orçamento ou em créditos adicionais, consignado dotação orçamentária própria; (2) a realização do procedimento licitatório220 nas hipóteses determinadas em lei, ressalvados os casos de sua inexigibilidade, dispensa ou inaplicabilidade (matéria pertinente ao estudo da disciplina dos atos administrativos); (3) o empenho; (4) a liquidação; (5) o pagamento e o (6) controle e a avaliação. Assim, considerando o escopo desta disciplina e tendo em vista que a fixação dos créditos orçamentários e adicionais já foi objeto de exame na aula anterior e o controle e a avaliação das despesas será estudado na Aula 10, serão analisados, no momento, apenas os três estágios da despesa referidos nos artigo 58 a 70 da Lei n° 4.320/64, na ordem em que os mesmos ocorrem no mundo real: (1) o empenho; (2) a liquidação e (3) o pagamento. 6.1.1 O empenho da despesa O empenho consiste na reserva de dotação221 orçamentária para um fim específico, ou seja, é o “ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado a obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição” (artigo 58 da Lei n° 4.320/64). Consoante o disposto no artigo 60 da Lei n° 4.320/64, é vedada a realização de despesa sem prévio empenho, o qual não pode exceder o limite dos créditos concedidos e as dotações disponíveis.222 Ressalte-se, entretanto, a possibilidade do empenho ser contemporâneo à realização de despesa, e não prévio, na hipótese de urgência, conforme previsto no parágrafo único do artigo 24 do Decreto Federal n° 93.872/86. Do empenho extrai-se a denominada Nota de Empenho223, a qual indicará o nome do credor, a representação e a importância da despesa, simbolizando, também, o ato que formaliza a dedução do gasto do saldo existente da respectiva dotação. Ou seja, ao realizar o empenho já é abatido o montante da despesa da dotação orçamentária própria (prevista no orçamento), tornando-o indisponível à nova utilização. Saliente-se, entretanto, ser possível o reforço de empenho já realizado, em face de sua eventual insuficiência. Ele pode ainda ser anulado, total ou parcialmente, hipótese em que o montante respectivo é revertido à dotação disponível.224 Conforme será analisado abai- 220 O artigo 37, XXI, da CR-88 prevê que: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A Lei n° 8.666/93, por sua vez, com fundamento no disposto no citado artigo 37, XXI, da CR-88, no seu artigo 7°, § 2°, e 14, aplicáveis subsidiariamente também à modalidade de pregão, disciplinada pela Lei n° 10.520/02, estabelece que as compras, as obras e os serviços somente poderão ser licitados quando houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes, a serem executadas no exercício financeiro, sob pena de nulidade do ato ou do contrato e de responsabilidade de quem lhe tiver dado causa. Assim, ressalvadas as hipóteses de inexigibilidade, de dispensa ou de sua inaplicabilidade, em face da natureza do desembolso, tal como as diárias para atender as despesas de viagens pagas aos seus servidores, a realização da despesa pressupõe o procedimento licitatório. Estabelece, ainda, a lei das licitações e contratos, em seu artigo 5°, §§ 1° e 2°, que o pagamento de correção, sobre os valores contratados, por critérios previstos no próprio ato convocatório, visando à preservação do respectivo valor, será feito junto com o principal e será efetivado à conta das mesmas dotações orçamentárias que atenderam aos créditos a que se referem. A lei determina ainda, no parágrafo único do artigo 8° que: “É proibido o retardamento imotivado da execução de obra ou serviço, ou de suas parcelas, se existente previsão orçamentária para sua execução total, salvo insuficiência financeira ou comprovado motivo de ordem técnica, justificados em despacho circunstanciado da autoridade a que se refere o art. 26 desta Lei”. Devem ser observados, ainda, os artigos 57 e 65, § 8°. 221 Conforme foi examinado na aula passada, a dotação orçamentária é a medida, valor ou quantificação monetária do recurso aportado no orçamento a determinado programa, atividade, projeto, categoria econômica ou objeto de despesa pública, conforme decidido pelo parlamento. 222 As dotações correspondentes a créditos contingenciados não podem ser objeto de empenho, já que não são disponíveis. 223 MEDINA, José Miguel Garcia. Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, FGV DIREITO RIO 102 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I xo, a despesa pode ser ou não liquidada e paga no mesmo exercício financeiro no qual ocorre o empenho a ela relacionado. A legislação, em casos especiais, pode dispensar a emissão da nota de empenho225 – mas não o empenho em si –, como no caso das despesas de caráter continuado, o que ocorre com as despesas de pessoal, encargos sociais e, ainda, de sentenças judiciais, juros e encargos da dívida, etc. Esse estágio da despesa pode ser subdividido em três etapas: (1) a autorização, na qual o ordenador226 manifesta a aquiescência com a despesa, ou seja, é o ato formal da autoridade competente que permite a realização do gasto, em função do reconhecimento de dívida, do suprimento de fundo ou da autorização de pagamento; (2) a indicação da modalidade de licitação, sua inaplicabilidade, dispensa ou inexigibilidade; e (3) a emissão da nota de empenho, ato pelo qual é formalizada a sua realização e comprovada a dedução do valor da despesa do saldo disponível na dotação orçamentária respectiva, nos termos já salientados. Considerando, ainda, a adoção do sistema informatizado de administração financeira pela União e diversas unidades federadas (SIAFI e o SIAFEM), pode-se apontar em algumas circunstâncias, também, uma fase antecedente ao próprio empenho, momento no qual é extraído um documento designado de pré-empenho, por meio do qual o gestor público reserva determinada dotação e registra o compromisso assumido227. Diversos dispositivos da citada Lei de Responsabilidade Fiscal tratam do empenho e da sua limitação, tais como: (a) o artigo 4°, o qual estabelece que lei de diretrizes orçamentárias deve dispor, também, sobre critérios e forma de limitação de empenho; (b) o já citado artigo 9°, que trata da hipótese da realização da receita não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, caso em que os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira; (c) o artigo 42, que veda ao titular de Poder ou órgão referidos na lei, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito; (d) o artigo 65, que estabelece a dispensa de limitação de empenho e do atingimento dos resultados fiscais, no caso de ocorrência de calamidade pública, enquanto perdurar a situação, assim reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Casas Legislativas, na hipótese dos Estados (Assembléias Legislativas) e Municípios (Câmaras Municipais). Saliente-se, ainda, que o empenho e a licitação de serviços, o fornecimento de bens ou a execução de obras têm como requisito necessário, na hipótese da criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental, que acarrete aumento da despesa: (1) a apresentação da estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva 2008. p.93. “Segundo a Súmula 279 do STJ, ‘é cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública’. Assim, embora se processe sob procedimento específico (arts. 730 e 731 do CPC, e art. 100 da CF), admite-se a execução contra a Fazenda Pública não só quando fundada em título judicial, mas, também, em título extrajudicial. Dentre outros, tem sido considerados títulos hábeis à execução contra a Fazenda Pública a nota de empenho e a autorização de despesas, pois tais declarações constituem documentos públicos, que são títulos executivos ex vi do art. 585, II, do CPC” (grifo nosso). Em nota de rodapé o autor esclarece: “Assim, considera-se documento público o ‘produzido por autoridade, ou em sua presença, com a respectiva chancela, desde que tenha competência para tanto’ (STJ, 5.ª T., REsp 599.634/ MA, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 07.11.2006, DJ 27.11.2006, p. 310), tal como ocorre, por exemplo, com a Câmara Municipal, que ‘tem competência para emitir título executivo extrajudicial em relação aos pagamentos de seus membros e de seus funcionários’ (STJ, 2.ª T., REsp 594.874/MA, rel. Min. Castro Meira, j. 06.12.2005, DJ 19.12.2005, p. 322), contrato de prestação de serviço firmado com a administração pública (STJ, 1.ª T., REsp 487.913/MG, rel. Min. José Delgado, j. 08.04.2003, DJ 09.06.2003, p. 188). Não foi considerado documento público, no entanto, ‘o contrato firmado entre empresa privada e entidade da administração pública indireta, dotada de personalidade jurídica de direito privado – sociedade de economia mista’”. 224 O artigo 28 do Decreto Federal n° 93.872/86 disciplina a hipótese da anulação do empenho em função da redução ou do cancelamento no exercício financeiro do compromisso que o ensejou. Já o artigo 35 do mesmo diploma normativo trata do caso em que a anulação do empenho decorre da não liquidação da despesa até o final do exercício, salvo as exceções que aponta. 225 O Manual de Despesa Nacional (item 6.2.1) reconhece que: “Embora o artigo 61 da Lei nº 4.320/1964 estabeleça a obrigatoriedade do nome do credor no documento Nota de Empenho, em alguns casos, como na Folha de Pagamento, torna-se impraticável a emissão de um empenho para cada credor, tendo em vista o número excessivo de credores (servidores). Caso não seja necessária a impressão do documento “Nota de Empenho”, o empenho ficará arquivado em banco de dados, em tela com formatação própria e modelo oficial, a ser elaborado por cada ente da federação em atendimento às suas peculiaridades. Ressalta-se que o artigo 60 da Lei nº 4.320/1964 veda a realização da despesa sem prévio em- FGV DIREITO RIO 103 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I entrar em vigor e nos dois subseqüentes; e (2) de declaração do ordenador da despesa no sentido de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias (artigo da 16 LRF). Também se submete à limitação de empenho o ente da Federação que possuir dívida consolidada maior do que o respectivo limite nos termos fixados na Resolução n° 40/2001 do Senado Federal e no artigo 31 da LRF, matéria que será estudada na aula pertinente ao Crédito e a Dívida Pública. Em suma, efetivado o empenho da despesa, por meio do qual é reservado e deduzido o montante necessário da dotação orçamentária, é assumida a obrigação por parte do Estado. 6.1.2 A liquidação Realizada a entrega do bem, ou prestado o serviço pelo contratado, processa-se a denominada liquidação, aqui qualificada como a segunda etapa da realização da despesa, a qual consiste na verificação do direito adquirido, ou não, pelo credor junto ao Estado, tendo por base os títulos e os documentos comprobatórios do respectivo crédito. Ou seja, é a etapa em que a autoridade pública deve comparar o que foi contratado e o que foi efetivamente entregue ou realizado, o que pode tornar líquido e certo o direito do credor em face da Fazenda Pública. A regular liquidação é fase necessária à realização do pagamento da despesa, nos termos artigo 62 da Lei n° 4.320/64, e que possui diversos elementos de aferição, tais como: o contrato, o ajuste ou acordo respectivo, a nota de empenho, os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço, isto é, os títulos e documentos comprobatórios dos respectivos créditos. Cabe mencionar, entretanto, que o cumprimento dos requisitos de natureza formal não é suficiente à comprovação do direito do credor, vez que os princípios da economicidade e da legitimidade, estampados no artigo 70 da CR-88, exigem mais do que a simples verificação do atendimento formal por parte do contratado. De fato, impõe-se que a autoridade responsável pela liquidação ateste que o objeto do contrato foi realizado nos termos da especificação acordada, podendo fazer, se necessário, a verificação in loco de obra, de prestação de serviço ou mesmo fornecimento de bens, ou seja, é dever daquele que realiza e afere a liquidação identificar se houve, ou não, o implemento das condições previamente fixadas, o que determina se o credor realmente faz jus ao pagamento. Nesse sentido apontam José Teixeira Machado e Heraldo Costa Reis228 sobre a matéria: Trata-se de verificar o direito do credor ao pagamento, isto é, verificar se o implemento de condição foi cumprido. Isto se faz com base em títulos e documentos. Muito bem, mas há um ponto central a considerar: é a verificação penho. Entretanto, o § 1º do referido artigo estabelece que, em casos especiais, pode ser dispensada a emissão do documento “nota de empenho”. Ou seja, o empenho, propriamente dito, é indispensável.” 226 Em geral, são competentes para autorizar as despesas nas respectivas esferas de governo: o Presidente, o Governador e o Prefeito, as autoridades do Poder Judiciário, conforme determinado em lei ou no regimento interno, as autoridades do Poder Legislativo, nos termos do regimento interno, o Presidente dos Tribunais e Cortes de Contas; os Ministros de Estado, os Secretários Estaduais e Municipais, bem como aqueles que exercem os cargos de direção e gestão das autarquias, empresas públicas, de sociedades de economia mista e de fundações, nos termos da lei, decreto ou estatuto da sociedade. 227 O Manual de Despesa Nacional (item 6.2.1) recomenda: “constar no instrumento contratual o número da nota de empenho, visto que representa a garantia ao credor de que existe crédito orçamentário disponível e suficiente para atender a despesa objeto do contrato. Nos casos em que o instrumento de contrato é facultativo, a Lei nº 8.666/1993 admite a possibilidade de substituí-lo pela nota de empenho de despesa, hipótese em que o empenho representa o próprio contrato. 228 MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM, 2002/2003. p.149. FGV DIREITO RIO 104 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I objetiva do cumprimento contratual. O documento é apenas o aspecto formal da processualística. A fase de liquidação deve comportar a verificação in loco do cumprimento da obrigação por parte do contratante. Foi a obra, por exemplo, construída dentro das especificações contratadas? Foi o material entregue dentro das especificações estabelecidas no edital de concorrência ou de outra forma de licitação? Foi o serviço executado dentro das especificações? O móvel entregue corresponde ao pedido? E assim por diante. Trata-se de uma espécie de auditoria de obras e serviços, a fim de evitar obras e serviços fantasmas. Este aspecto da liquidação é da mais transcendente importância no caso das subvenções, exatamente para evitar o pagamento de subvenções e auxílios a entidades inexistentes. O documento de liquidação, portanto, deve refletir uma realidade objetiva. De fato, seriam reduzidas as chances de desperdício de recursos público, em função desta fase da realização da despesa, caso fossem sempre atendidos os requisitos apontados. 6.1.3 O pagamento Nesse passo chega-se ao pagamento, que é o terceiro estágio da despesa e consiste na entrega dos valores referentes à dívida líquida e certa ao credor, mediante a devida quitação, podendo ser efetuado por tesouraria ou pagadoria regularmente instituídos por estabelecimentos bancários credenciados e, em casos excepcionais, por meio de adiantamento.229 No mesmo sentido estabelece o Manual de Despesa Nacional que o “pagamento consiste na entrega de numerário ao credor por meio de cheque nominativo, ordens de pagamentos ou crédito em conta, e só pode ser efetuado após a regular liquidação da despesa”. A ordem de pagamento, que pode ser efetivada por meio de ordem bancária230, cheque nominativo ou pelo regime de adiantamento, também denominado de suprimento de fundos ou suprimento individual, é o despacho exarado pelo ordenador determinando que a despesa seja paga, ato sempre realizado por meio de documentos processados pela contabilidade. O pagamento aos credores pode ser efetivado durante a execução orçamentária na qual a despesa foi prevista231 e realizada, mas também pode ocorrer o encerramento do exercício financeiro com despesas já empenhadas, porém ainda não pagas. As despesas empenhadas e não pagas no exercício, intituladas de Restos a Pagar232, consubstanciam parte da denominada dívida flutuante233 e podem ser segmentadas em dois grupos, consoante o disposto no artigo 36 da Lei n° 4.320/64: 229 O artigo 74, caput, do Decreto-lei 200/67 prevê que na realização da receita e da despesa pública, será utilizada a via bancária. O §2º estabelece que “o pagamento de despesa, obedecidas as normas que regem a execução orçamentária (lei nº 4.320, de 17 de março de 1964), far-se-á mediante ordem bancária ou cheque nominativo, contabilizado pelo órgão competente e obrigatòriamente assinado pelo ordenador da despesa e pelo encarregado do setor financeiro”. O §4°, do mesmo dispositivo, entretanto, ressalva que “em casos excepcionais, quando houver despesa não atendível pela via bancária, as autoridades ordenadoras poderão autorizar suprimentos de fundos, de preferência a agentes afiançados, fazendo-se os lançamentos contábeis necessários e fixando-se prazo para comprovação dos gastos”. Nesse sentido, estabelece o artigo 45 do Decreto Federal n° 93.872/86 que, “excepcionalmente, a critério do ordenador de despesa e sob sua inteira responsabilidade, poderá ser concedido suprimento de fundos a servidor, sempre precedido do empenho na dotação própria às despesas a realizar, e que não possam subordinar-se ao processo normal de aplicação”: “para atender despesas eventuais, inclusive em viagens e com serviços especiais, que exijam pronto pagamento”; “quando a despesa deva ser feita em caráter sigiloso, conforme se classificar em regulamento”; e “para atender despesas de pequeno vulto, assim entendidas aquelas cujo valor, em cada caso, não ultrapassar limite estabelecido em Portaria do Ministro da Fazenda”. De acordo com o § 5º, ressalvadas as limitações fixadas do § 6º, do mesmo artigo 45, incluído pelo Decreto 6.370/2008, “as despesas com suprimento de fundos serão efetivadas por meio do Cartão de Pagamento do Governo Federal - CPGF” – o denominado Cartão Corporativo, por meio do qual é permitido hoje o saque, em dinheiro, até o limite do cartão. De acordo com o Portal da Transparência (www.portaldatransparencia.gov.br), criado pela Presidência da República, as despesas com cartões corporativos em 2007 totalizaram cerca de R$ 75,8 milhões, mais que o dobro do montante gasto em 2006. O relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos cartões corporativos, em seu relatório final, apresentado em 03.06.2008, conforme noticiado no sítio do câmara (www.camara.gov.br), recomendou ao Poder Executivo “que seja estabelecido um limite de saque, com percentual máximo de 30% do limite do cartão. Também defende que os ministros de Estado voltem a receber diárias em viagens, em vez de receberem cartões corporativos, cujo uso passaria a ser vedado aos ministros. De acordo com dados do relatório, os saques representaram 75% do gasto total dos cartões FGV DIREITO RIO 105 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (1) aquelas não liquidadas, assim denominadas de “não-processadas”, as quais darão ensejo aos denominados “Restos a Pagar não-processados”, caracterizados pelo não adimplemento da obrigação assumida pelo credor e/ou o não reconhecimento pelo poder público do cumprimento das condições acordadas (a prestação do serviço, a entrega da coisa, etc.) e (2) as despesas empenhadas e liquidadas, qualificadas como “processadas”, ou seja, aquelas em que se verifica o cumprimento da obrigação por parte do credor, as quais serão inscritas ao final do exercício como “Restos a Pagar processados”. A relevância desta subdivisão está relacionada à necessidade de a Administração realizar a previsão dos recursos a serem destinados ao pagamento durante o exercício, a já mencionada programação financeira de desembolso.234 De fato, considerando que os Restos a Pagar processados passaram por todo o rito da liquidação devem ter prioridade quando da realização da programação de desembolso, posto já estar configurado o direito do credor. Cabe salientar, ainda, que existe a possibilidade de determinada despesa de um exercício somente ser reconhecida posteriormente, quando já encerrado o ano, não tendo havido o empenho na época própria. Neste caso, ao contrário dos Restos a Pagar, processados ou não processados, não há empenho no exercício financeiro pertinente, razão pela qual será, no futuro, denominada de “despesa de exercícios anteriores”235. Cabe agora fazer uma breve recapitulação do que foi apresentado até esse momento, a fim de que se possa avançar na análise dos Restos a Pagar. Fixada a despesa no orçamento, esta pode ser empenhada até o limite da dotação orçamentária correspondente ou dos créditos adicionais, salvo as limitações de empenho já mencionadas.236 Uma vez realizado o empenho, pode ocorrer: (1) o reforço de sua dotação, caso demonstre-se insuficiente à realização da despesa; (2) a anulação237 do empenho durante o exercício, na hipótese de configurada a desnecessidade do gasto (total) ou o seu excesso (parcial), ou, ainda, caso a despesa não seja liquidada até o final do exercício, salvo as exceções previstas no artigo 35 do Decreto Federal n° 93.872/86; (3) a liquidação da despesa, caso verificado o implemento de todas as condições previamente fixadas no ato que estabelece o vínculo jurídico e a obrigação do credor, podendo ocorrer ainda durante o transcurso do mesmo exercício financeiro o pagamento, ou não; (4) o encerramento do exercício sem que a despesa empenhada tenha sido liquidada. Na hipótese de ser efetuado o pagamento no próprio exercício financeiro do empenho e da liquidação não há qualquer impacto para o exercício financeiro subseqüente. Em sentido diverso, a despesa empenhada e não paga no exercício financeiro, liquidada ou não, será inscrita em Restos a Pagar para o período seguinte, em 2007. O texto prevê, ainda, que os extratos dos gastos sigilosos da Presidência da República sejam divulgados um ano depois do fim do mandato do Presidente”. A oposição, por sua vez, quer proibir os saques em dinheiro com o cartão corporativo. 230 A Instrução Normativa da Secretaria do Tesouro Nacional nº 4/98, que dispõe sobre a consolidação das instruções para movimentação dos recursos financeiros da Conta Única do Tesouro Nacional, estabelece que a movimentação de recursos da Conta Única será efetuada através de Ordem Bancária - OB, DARFEletrônico - DF, GRPS – Eletrônica, Nota de Sistema - NS ou Nota de Lançamento - NL, de acordo com as respectivas finalidades. 231 Na LOA ou em créditos adicionais. De fato, a execução orçamentária coincide com o exercício financeiro e com o ano civil, nos termos do já citado artigo 63 da Lei nº 4.320/64. 232 “Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro distinguindo-se as processadas das não processadas. Parágrafo único. Os empenhos que sorvem a conta de créditos com vigência plurienal, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a Pagar no último ano de vigência do crédito.” 233 Dispõe a alínea a do § 1º do artigo 115 do Decreto nº 93.872/86 que a dívida flutuante, a qual, ao lado da dívida fundada, forma a dívida pública, compreende os compromissos exigíveis, cujo pagamento independe de autorização orçamentária, assim compreendidos: “a) os restos a pagar, excluídos os serviços da dívida; b) os serviços da dívida; c) os depósitos, inclusive consignações em folha; d) as operações de crédito por antecipação de receita; e) o papel-moeda ou moeda fiduciária.” 234 Dispõe o artigo 9º, § 2º, do Decreto nº 93.872/86, que “Serão considerados, na execução da programação financeira de que trata este artigo, os créditos adicionais, as restituições de receitas e o ressarcimento em espécie a título de incentivo ou benefício fiscal e os Restos a Pagar, além das despesas autorizadas na Lei de Orçamento anual.” Nesse sentido os restos a pagar constituem item específico da programação financeira, devendo o seu pagamento efetuar-se dentro do limite de saques fixado. 235 Art. 37 da Lei 4.320/64. 236 Limita-se o empenho, por exemplo, no caso de a receita não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal ou se a dívida consolidada do ente for maior do que o respectivo limite. FGV DIREITO RIO 106 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I sendo designada como “processada” caso já liquidada e “não processada” na hipótese contrária. A ilustração abaixo sumariza e auxilia a compreensão do que foi até aqui exposto: Importante salientar que ordenar ou autorizar a inscrição de despesas não empenhadas em Restos a Pagar consubstancia crime, tipificado no artigo 359-B do Código Penal, submetendo o infrator à pena de detenção de seis meses a dois anos. Conforme ensina Marcelo Leonardo:238 Neste tipo penal, o objetivo do legislador era transformar em crime o desrespeito ao art. 41 do projeto da LRF que pretendia dar nova disciplina à inscrição em “Restos a Pagar”. Ocorre que este artigo 41 foi vetado pelo Presidente da República. Entretanto, o crime subsiste, pois as normas de contabilidade pública disciplinadoras dos “Restos a Pagar” contidas no artigo 36 da Lei n 4.320/64 continuam em vigor. Restos a Pagar são despesas empenhadas mas não pagas até 31 de dezembro. 237 Nos termo do Manual de Despesas (item 9.2): “A inscrição de despesa em Restos a Pagar não-processados é procedida após a depuração das despesas pela anulação de empenhos, no exercício financeiro de sua emissão, ou seja, verificam-se quais despesas devem ser inscritas em Restos a Pagar, anulam-se as demais e inscrevem-se os Restos a Pagar não-processados do exercício.” 238 LEONARDO, Marcelo. Crimes de responsabilidade fiscal: crimes contra as finanças públicas; crimes nas licitações; crimes de responsabilidade dos prefeitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 26. FGV DIREITO RIO 107 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Ainda, importante destacar que “deixar de ordenar, de autorizar ou de promover o cancelamento do montante de Restos a Pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei” é enquadrado como crime pelo artigo 359-F do Código Penal. No que se refere à possibilidade de cancelamento dos Restos a Pagar não liquidados no exercício (Exercício financeiro X2), merece destaque a posição definida no já citado Manual de Despesas Públicas – Minuta para discussão pública239, quanto: Para os Restos a Pagar processados, ou seja, aqueles que já passaram pela fase da liquidação, quando já foi entregue o bem ou mercadoria pelo fornecedor, não há que se falar em cancelamento do resto a pagar, pois já houve a verificação do direito adquirido pelo credor, podendo ocorrer somente a baixa da obrigação pelo pagamento ou prescrição do direito do credor. Assim, somente o Resto a Pagar não processado no exercício, assim definido como aquele não liquidado, pode ser objeto de cancelamento. Até 2011, se o Resto a Pagar (não processado) não fosse liquidado até 31 de dezembro do ano subsequente ao da sua inscrição (o final do Exercício Financeiro 2), como regra geral, o mesmo deveria ser cancelado240 automaticamente241. Em dezembro de 2011, o Decreto nº 7.654 alterou a redação do artigo 68 do Decreto nº 93.872/1986, para determinar novas regras quanto aos restos a pagar não processados. A partir de 2012, a inscrição prevista como restos a pagar não processados é condicionada à indicação pelo ordenador de despesas242 e, se não liquidados posteriormente, terão validade, como regra geral, até 30 de junho do segundo ano subsequente ao de sua inscrição. Entretanto, há exceções a essa regra, pois, de acordo com a nova sistemática, não perdem a validade em 30 de junho os restos a pagar não processados que referentes às despesas executadas diretamente pelos órgãos e entidades da União ou mediante transferência ou descentralização aos Estados, Distrito Federal e Municípios, com execução iniciada até aquela data (30 de junho) ou sejam relativos às despesas do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, do Ministério da Saúde ou do Ministério da Educação financiadas com recursos da Manutenção e Desenvolvimento do Ensino. Procurou-se, dessa forma, fixar parâmetros objetivos para a validade dos restos a pagar não processados. Segundo notícia publicada no Jornal Valor de 27.12.2011 (p. A5), em matéria intitulada “Portaria compartilha responsabilidade com ministros para livrar Planalto das pressões parlamentares” a partir de agora: (...) caberá aos ministros indicar quais serão os restos a pagar não processados a serem inscritos para o Orçamento no ano seguinte (...) Quando a inscrição era 239 Disponível no sítio http://www. tesouro.fazenda.gov.br. Acesso em 09/06/2008. 240 Nesse sentido dispunha a redação do artigo 68 do Decreto 95872/1986, vigente até dezembro de 2011. 241 Ao longo dos anos houve diversas exceções a essa regra geral, o que era objeto de barganha política e ensejava a edição de ato específico por parte do Poder Executivo. 242 O §7º do artigo 68, também introduzido em dezembro de 2011, estabelece: “Os Ministros de Estado, os titulares de órgãos da Presidência da República, os dirigentes de órgãos setoriais dos Sistemas Federais de Planejamento, de Orçamento e de Administração Financeira e os ordenadores de despesas são responsáveis, no que lhes couber, pelo cumprimento do disposto neste artigo” FGV DIREITO RIO 108 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I feita automaticamente, não havia uma seleção prévia por parte dos ministérios. Tudo que tinha sido empenhado passava para ser pago no exercício seguinte. Isso gerava uma forte pressão política no decorrer do ano para que as despesas fossem executadas e pagas, tendo em vista que boa parte é oriunda de emendas parlamentares. Dilma, desse modo, mais uma vez atua para compartilhar responsabilidades com seus ministros. 6.2 AS DIVERSAS CLASSIFICAÇÕES DA DESPESA PÚBLICA A despesa pública também pode ser examinada sob diversas perspectivas e classificada por critérios diversos. A execução da despesa orçamentária nem sempre causa um impacto patrimonial simultâneo, razão pela qual também se pode falar em enfoque patrimonial distinto do ponto de vista orçamentário da despesa. O Manual de Despesa Nacional estabelece a codificação das despesas sob variados critérios e contempla, ainda, os conceitos a serem observados em sua contabilização bem como a correlação da destinação da receita com a fonte de financiamento da despesa. No mesmo sentido, serão examinadas neste tópico apenas aquelas mais relevantes e que sejam importantes para o que será estudado a seguir. Entre outras, as despesas podem ser classificadas quanto: (1) à sua natureza em face do orçamento; (2) à sua categorização sob o ponto de vista econômico-orçamentário, geralmente denominada de classificação “por natureza”; (3) à sua vinculação aos programas e ações governamentais, designada como “programática”; (4) às funções de governo, denominada de funcional; (5) aos efeitos sobre o patrimônio líquido do ente público; (6) ao ente federado que efetiva a despesa ou ao qual a entidade responsável pelo dispêndio está vinculada; e (7) à instituição que a realiza. Repise-se, que a execução dos gastos nem sempre tem repercussão patrimonial concomitante, motivo pelo qual é possível examinar as despesas tanto sob o ponto de vista orçamentário como pela perspectiva patrimonial, conforme disciplina o Manual de Despesa Nacional, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov. br. O Manual, que deve ser observados por todos os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) estabelece a codificação das despesas sob variados critérios e contempla, ainda, os conceitos a serem observados em sua contabilização bem como a correlação da destinação da receita com a fonte de financiamento da despesa. Impõe-se, nesses termos, o exame individualizado de algumas classificações, ainda que de forma breve: FGV DIREITO RIO 109 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (1) A despesa quanto à sua natureza em face do orçamento subdivide-se em: (1.1) despesas orçamentárias e (1.2) despesas de caráter extraorçamentário. (1.1) As despesas orçamentárias são aquelas previstas expressamente na LOA ou em créditos adicionais e se referem, em regra, àqueles gastos incorridos243 no exercício; (1.2) As despesas de caráter extra-orçamentário do exercício financeiro são aquelas que não constam expressamente no orçamento inicial e podem ser subdivididas em três grupos244: (a) as saídas de recursos que ingressaram transitoriamente nos cofres públicos sem que o desembolso suscite a necessidade de autorização orçamentária, como as devoluções dos designados ingressos extra-orçamentários, assim denominados posto não pertencerem ao órgão público, como é o caso dos depósitos e cauções – matéria a ser examinada na aula sobre as receitas públicas; (b) pagamentos que não necessitam de autorização orçamentária para serem realizados, como aqueles autorizados de forma genérica na lei orçamentária, na lei de crédito adicional ou lei específica, mas sem a previsão do montante ou mesmo de sua efetiva realização, como o resgate de operações de crédito por antecipação de receita245 (ARO), questão a ser estudada na aula pertinente ao Crédito e a Dívida Pública; (b) os denominados Restos a Pagar, já analisados no tópico anterior desta aula e correspondem às despesas incorridas em determinado exercício e somente paga, em geral, no ano subseqüente, isto é, são aquelas empenhadas mas não pagas no próprio exercício em que se realiza o empenho da despesa, constituindo-se em dívida flutuante a ser objeto de desembolso, em regra, no exercício seguinte. (2) A despesa orçamentária quanto à sua categorização sob o ponto de vista econômico246, denominada de classificação “por natureza”, segmenta o gasto em despesa (2.1) corrente e (2.2) de capital: (2.1) despesas correntes247, que se referem àquelas despesas orçamentárias destinadas ao funcionamento e manutenção dos serviços públicos, prestados direta ou indiretamente pela Administração, e que não geram qualquer aumento do patrimônio público posto estarem vinculadas às: 2a) despesas de custeio da máquina administrativa248, assim qualificadas as dotações para manutenção de serviços anteriormente criados, inclusive as destinadas a atender a obras 243 Segundo o Manual de Despesa Nacional, as Despesas Orçamentárias: “são aqueles que dependem de autorização legislativa para sua efetivação. As despesas de caráter orçamentário necessitam de recurso público para sua realização e constituem instrumento para alcançar os fins dos programas governamentais. È exemplo de despesa de natureza orçamentária a contratação de serviços de terceiros, pois se faz necessária a emissão de empenho para suportar os contratos com prestação de serviços de terceiros”. 244 O Manual de Despesa apresenta dois outros grupos, a saber: (1) Recolhimento de Consignações/Retenções – são recolhimentos de valores anteriormente retidos na folha de salários de pessoal ou nos pagamentos de serviços de terceiros; e (2) dos Pagamentos de Salário-Família, Salário-Maternidade e Auxílio-Natalidade – os benefícios da Previdência Social adiantados pelo empregador, por força de lei, têm natureza extra-orçamentária e, posteriormente, serão objeto de compensação ou restituição. 245 A ARO visa a suprir insuficiências de caixa que ocorram durante a execução orçamentária e devem ser liquidadas com juros, até o dia dez de dezembro de cada ano, nos termos do artigo 38 da LRF, razão pela qual a sua efetivação requer apenas a sua autorização prévia, sem haver, contudo, a determinação de sua efetiva realização ou do seu montante, devendo ser observados, entretanto, os limites e as condições estabelecidas na Resolução 43/01 do Senado, bem como aquelas fixadas na própria LRF, conforme será examinado na próxima aula. 246 A Portaria Interministerial n 163/2001 estabelece que na lei orçamentária a discriminação da despesa, quanto à sua natureza, será, “(...) no mínimo, por categoria econômica, grupo de natureza de despesa e modalidade de aplicação”. 247 O artigo 12 da Lei n° 4.320/64 prevê que as despesas correntes se desdobram em despesas de custeio e transferências correntes. Elas não enriquecem o patrimônio público, mas são necessárias à execução dos serviços públicos e à vida do Estado, sendo, assim, despesas operacionais. Sob o ponto de vista econômico, não aumentam a capacidade do Estado prestar serviços públicos, posto não incrementar o seu patrimônio. 248 Artigo 12, § 1º, da Lei n° 4.320/64. FGV DIREITO RIO 110 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I de conservação e adaptação de bens imóveis, nelas se incluem despesas com pessoal, material etc; ou (b) transferências correntes, que equivalem às dotações para despesas, as quais não correspondam contraprestação direta em bens ou serviços, inclusive para contribuições e subvenções destinadas a atender à manifestação de outras entidades de direito público ou privado; Nelas se incluem as subvenções (transferências destinadas a cobrir despesas de custeio de outras entidades) sociais e econômicas, despesas com inativos, pensões, transferências intergovernamentais e os juros da dívida contratada. (2.2) despesas de capital, que se conecta ao conceito de investimento do setor público, uma vez que constituem gastos para aquisição ou constituição de bens de capital, que contribuirão para a produção de novos bens e serviços, gerando apenas uma mutação patrimonial, pois essa despesa não reduz a situação líquida do patrimônio. São divididas em (I) Investimentos, (II) Inversões Financeiras e (III) Transferências de capital de acordo com o artigo 12, § 4º, § 5º e § 6º, da Lei n° 4.320/64. (I) Os investimentos são as dotações para o planejamento e a execução de obras, inclusive aquelas s destinadas à aquisição de imóveis necessários à sua realização, como, por exemplo, as obras públicas, serviços em regime de programação especial, equipamentos e instalações, material permanente e participação em constituição ou aumento de capital de empresas que não seja de caráter comercial ou financeiro. (II) As inversões financeiras são despesas de capital capazes de produzir renda para o Estado. São subdivididas em: (a) aquisições de imóveis ou bens de capital já em utilização; (b) aquisições de títulos representativos do capital de empresas ou entidades de qualquer espécie; e (c) constituição ou aumento do capital de empresas que visem objetivos comerciais ou financeiros. (III) As transferências de capital são as dotações orçamentárias para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito público ou privado realizarão, independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços. Essas transferências constituem auxílios ou contribuições, caso derivem diretamente da lei do orçamento ou de lei específica anterior, assim como as dotações para amortização da dívida pública. FGV DIREITO RIO 111 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I No anexo a esta aula podem ser examinadas as demais classificações apresentadas no Manual de Despesas, tais como a despesa: a) orçamentária segundo a estrutura de programa, ação (projeto, atividade ou operação especial) e subtítulo (localizador do gasto); b) orçamentária, segundo a estrutura de funções e subfunções, objetiva indicar as áreas de atuação do governo a que o gasto se vincula, como saúde, educação, transporte, entre outras; c) quanto aos efeitos sobre o patrimônio líquido do ente público; d) segundo a competência do ente federado que a realiza ou ao qual a entidade está vinculada (federal, estadual, distrital ou municipal); e e) sob o ponto de vista da instituição que a realiza, também denominada de “classificação institucional”, reflete a estrutura organizacional, administrativa e governamental, estando estruturada em dois níveis hierárquicos: órgão orçamentário e unidade orçamentária 6.3 AS DESPESA PÚBLICA E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL A já mencionada Lei Complementar 101/2000, normalmente designada como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com o objetivo de garantir o controle das receitas e dos gastos públicos pela sociedade, dedica um capítulo inteiro (artigo 48 a 59) sobre a transparência, controle e fiscalização da atividade financeira da Administração Pública. Ainda, no que se refere especificamente às despesas públicas, estabelece, no Capítulo IV (art. 15 a 24), importantes limitações à sua realização e reconhece a nulidade daquelas que não prestarem observância às suas disposições (art. 15). Destacam-se, além daquelas já especificadas no que se refere à limitação do empenho (art. 9º, por exemplo), as suas disposições sobre a Lei Orçamentária Anual (LOA): (1) que exigem um planejamento prévio de todas as receitas e as despesas referentes ao ano seguinte (artigo 5º); (2) a exigência de uma estimativa de impacto financeiro para os três primeiros anos da implementação de atividades governamentais que acarretem o aumento de despesa (artigo 16, I); (3) a proibição que o titular de Poder ou órgão referido no art. 20 da lei, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, venha a contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito (artigo 42), (4) os limites da dívida pública (artigos 30 e 31), a serem estudados na próxima aula e, ainda, (5) as limitações das despesas com pessoal (artigo 19), matéria a ser estudada a seguir. As despesas com pessoal e encargos sociais são disciplinadas pela Constituição e legislação complementar, normas que prevêem como regra geral a es- FGV DIREITO RIO 112 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tabilidade dos servidores públicos, regime de vinculação estatutário que visa à proteção da própria sociedade. Apesar de justificativas poderáveis no sentido da existência desse regime jurídico diferenciado, essa característica estabelece baixíssimo grau de discricionariedade dessa despesa, como ocorre também com os encargos da dívida249. A contenção dos gastos públicos nesta área tem sido uma das grandes preocupações nacionais. Nesse sentido, o artigo 169 da CR-88 dispõe sobre a despesa com pessoal ativo e inativo dos entes públicos, prevendo que lei complementar determinará limites para os gastos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A Lei Complementar nº 101/00 disciplina a matéria, definindo o conceito de despesa de pessoal, estabelecendo como parâmetro dos limites dos gastos a denominada receita corrente líquida, fixando, no seu artigo 19, os percentuais por ente federado, e, no artigo 20, determinando a discriminação do limite entre o Poder Executivo, Legislativo, (neste incluído o Tribunal de Contas), Judiciário e o Ministério Público. No artigo 2º, IV e §§ § 1º 2º e 3º a LRF estabelece o conceito da receita corrente líquida, para os efeitos da lei, nos seguinte termos: IV – receita corrente líquida: somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidos: a) na União, os valores transferidos aos Estados e Municípios por determinação constitucional ou legal, e as contribuições mencionadas na alínea a do inciso I e no inciso II do art. 195, e no art. 239 da Constituição; b) nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional; c) na União, nos Estados e nos Municípios, a contribuição dos servidores para o custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira citada no § 9o do art. 201 da Constituição. § 1o Serão computados no cálculo da receita corrente líquida os valores pagos e recebidos em decorrência da Lei Complementar no 87, de 13 de setembro de 1996, e do fundo previsto pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. § 2o Não serão considerados na receita corrente líquida do Distrito Federal e dos Estados do Amapá e de Roraima os recursos recebidos da União para atendimento das despesas de que trata o inciso V do § 1o do art. 19. § 3o A receita corrente líquida será apurada somando-se as receitas arrecadadas no mês em referência e nos onze anteriores, excluídas as duplicidades. Cabe salientar que o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por unanimidade (342 votos favoráveis), em 28/05/2008, o Projeto de Lei Complementar nº 132/07, do Poder Executivo, que altera a LRF, para evitar que 249 Somente dois componentes - despesas com amortização e juros da dívida pública, assim como as outras despesas correntes-, no exercício de 2001, por exemplo, representam 83,4% do total das despesas do exercício. Se adicionarmos a esse conjunto as despesas com pessoal e encargos sociais - isto é, a soma das despesas com amortização e juros da dívida pública mais as denominadas “outras despesas correntes” e os gastos de pessoal, no ano de 2001- é alcançado o percentual de 94,2% das despesas. FGV DIREITO RIO 113 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I um ente federado seja penalizado pelo descumprimento dos limites de despesas de pessoal por parte de algum órgão ou Poder de sua estrutura política. Hoje, a LRF determina que, caso o limite seja excedido, isso deverá ser corrigido em dois quadrimestres.250 Não alcançada a redução, o ente federativo não poderá receber transferências voluntárias e obter garantia, direta ou indireta, de outro ente ou contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal. De acordo com a justificativa do governo, a atual redação da lei estende essas restrições a todos os poderes e órgãos de determinado ente da Federação, ainda que somente um único órgão ou Poder não esteja observando os limites máximos de despesa de pessoal. Assim, os impedimentos são aplicados mesmo que, no conjunto, o limite total da despesa com pessoal esteja sendo observado. De fato, as sanções do art. 23, § 3º, da Lei Complementar nº 101 de 2000 são aplicadas ao ente federativo251, ainda que, agregadamente, o limite de despesa com pessoal esteja sendo observado. A matéria agora está sob o crivo do Senado Federal. Saliente-se, ainda quanto à matéria, que o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 13/11/2008, conforme noticiado no Informativo n°528: referendou decisão proferida pelo Min. Celso de Mello, que deferira medida liminar, em ação cautelar, da qual era relator, para suspender as limitações impostas ao Distrito Federal, em especial ao seu Poder Executivo, quanto à obtenção de garantias diretas, indiretas e aval de outros entes e à contratação de operações de crédito em geral (Lei Complementar 101/2000, art. 23, § 3º, I, II e III). Na espécie, o Distrito Federal solicitara à Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda autorização para realizar operação de crédito com organizações internacionais e bancárias, a qual fora indeferida ao fundamento de ter sido descumprida a Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere ao limite percentual de gastos do Poder Legislativo local. Entendeu-se que estariam presentes os requisitos autorizadores da concessão da medida liminar pleiteada. Considerou-se que a plausibilidade jurídica da pretensão encontraria fundamento em precedentes do Supremo, nos quais fixada a orientação de que o postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Por sua vez, o periculum in mora estaria configurado porque a negativa da autorização inviabilizaria a iminente obtenção do crédito internacional que vem sendo negociado entre o BIRD e o Distrito Federal, que não disporia, em razão disso, dos necessários recursos para implementação dos programas pretendidos, o que se daria em prejuízo manifesto a sua população. Observou-se, ademais, que, no caso, o Distrito Federal teria se adstrito aos limites global e individuais estabelecidos nos artigos 19 e 20 da LC 101/2000, dispositivos declarados constitucionais pela Corte, e que, na verdade, haveria um conflito interno entre a Câmara Legislativa e o Tribunal de Contas do Distrito Federal. 250 A previsão está contida no caput do artigo 23. O artigo 22 da LRF, por sua vez, estabelece limitações ao Poder ou ao órgão que exceder a 95% do limite de gastos com pessoal. Nesse caso a restrição é aplicada ao próprio Poder ou órgão que ultrapassou o teto fixado na lei, ao contrário do que ocorre na hipótese do artigo 23,§ 3º, que fixa restrição ao ente como um todo, ainda que o excesso seja de apenas um órgão ou de um Poder do ente federado. 251 Em questão relativamente análoga, alguns entes federativos recorreram ao Supremo Tribunal Federal em função de suas inscrições no Cadastro Único de Convênios (CAUC), o que limita a recepção de transferências voluntárias pelo ente político, por força da aplicação da Instrução Normativa nº 1 da Secretaria do Tesouro Nacional. O STF, julgando a Ação Cautelar nº 1.033, entendeu, com fulcro no postulado da intranscendência, que sanções e restrições de ordem jurídica não podem superar a dimensão estritamente pessoal do infrator. Considerando essa decisão, o STF (Secretaria do Tesouro Nacional) expediu a Instrução Normativa nº 2, de 24 de abril de 2007, regulando as transferências voluntárias, a fim de que a adimplência do ente seja observada exclusivamente por meio do CNPJ do tomador principal e o órgão beneficiário da transferência, junto ao Cadastro Único de Convênio. FGV DIREITO RIO 114 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I No mesmo sentido se posicionou o relator da Ação Cautelar 2650, conforme revela a notícia apresentada no sítio do STF: Terça-feira, 06 de julho de 2010 STF livra Executivo gaúcho de sanção por suposto descumprimento de limite de gastos com pessoal do Judiciário Liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski na Ação Cautelar (AC) 2650 suspendeu restrição imposta pela União ao estado do Rio Grande do Sul por suposto descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), abrindo espaço para o estado contratar dois empréstimos no valor de, respectivamente, US$ 60 milhões e R$ 15 milhões. A restrição foi aplicada pela União por alegada extrapolação dos limites legais para despesa com pessoal do Poder Judiciário e do Ministério Público estaduais nos quatro últimos quadrimestres (exercícios de 2008, 2009 e primeiro quadrimestre de 2010). Na AC, o governo gaúcho alega que o Poder Executivo vem atendendo aos limites previstos na LRF para as despesas com pessoal. Por outro lado, alega que a restrição imposta atinge diretamente o Poder Executivo e seus cidadãos, vez que o estado fica impossibilitado de implementar programas e projetos destinados ao aprimoramento da gestão administrativa e tributária, bem como do contencioso fiscal e da administração financeira, fundamentais para o desenvolvimento do estado. Alega, também, perigo na demora da decisão, pois o prazo para contratar o primeiro empréstimo mencionado estaria quase esgotado. Decisão Em sua decisão, o ministro Ricardo Lewandowski observou que o caso é semelhante ao contido na Ação Civil Ordinária (ACO) 1431, que envolvia a suspensão de empréstimos em vias de contratação pelo estado do Maranhão, pela extrapolação do limite de gastos pelo Ministério Público e pelo Poder Legislativo daquele estado. Naquele caso, o Plenário do STF entendeu que havia potencialidade de ofensa ao pacto federativo, ressaltando que o governo estadual não tem competência para intervir nas esferas do Poder Legislativo e do Ministério Público, por se tratarem de órgãos com autonomia institucional por determinação expressa da Constituição Federal (CF). “Assim, parece-me também que não pode o Poder Executivo sofrer sanções em decorrência de descumprimento dos limites de gastos com pessoal pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público”, afirmou o ministro Ricardo Lewandowski. Assim, ele concedeu o pedido de liminar, determinando à União que “se abstenha de impedir a contratação de operações de crédito por parte do estado do Rio Grande do Sul, no que se refere tão somente à restrição de extrapolação dos limites legais fixados na LRF para despesas de pessoal por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público”. FGV DIREITO RIO 115 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 7 – O FINANCIAMENTO DOS GASTOS, AS OPERAÇÕES DE CRÉDITO E A DÍVIDA PÚBLICA EM FACE DO EQUILÍBRIO FISCAL. A atividade financeira do Estado é desenvolvida para satisfazer as necessidades públicas, o que se efetiva, predominantemente, conforme já examinado, por meio das despesas, tendo em vista que as outras modalidades de realização dos serviços públicos são esporádicas e excepcionais, conforme destacado no item 1.2 da Aula 1. Por sua vez, os gastos público realizados para implementar as diversas ações estatais pressupõem o seu financiamento252, o que pode ocorrer de diversas formas. O Estado pode arcar com as despesas por meio: (1) da emissão de moeda, hipótese em que não assume qualquer ônus ou comprometimento de pagar qualquer encargo (ex: juros), (2) da exploração do próprio patrimônio estatal para auferir renda, como, por exemplo, locando ou cedendo a título oneroso as suas propriedades ou explorando a atividade econômica por intermédio de empresas por ele controladas, (3) contraindo empréstimos, voluntários ou não, (4) exigindo o pagamento de tributos, (5) cobrando multas, e etc. Se o único objetivo do Estado nessa vertente – de cobrir os gastos – fosse, exclusivamente, a obtenção de recursos para financiar as despesas públicas, bastaria imprimir moeda253 de forma gratuita, sem a necessidade de organizar o dispendioso e complexo aparato burocrático para administrar a arrecadação de tributos ou de suas receitas patrimoniais. No entanto, o estudo dos efeitos líquidos254 decorrentes da simples emissão do papel moeda, matéria cujo exame detalhado foge ao escopo desta aula, indicam no sentido de que as pessoas com menor nível de renda tenderiam a sofrer mais pesadamente com o denominado imposto inflacionário, haja vista a dificuldade de se protegerem contra a desvalorização dos ativos monetários não indexados. Nesse sentido, aponta Gustavo Miguez de Mello255 que: Habitualmente entende-se que os tributos são cobrados para arrecadação pelo Estado de recursos financeiros. Este entendimento é, entretanto, equivocado. Para obter recursos financeiros seria muito mais barato imprimi-los, emitir moeda, do que arcar com complexos e sofisticados departamentos de administração de tributos. A emissão de moeda expandiria a demanda doméstica, criando a inflação que funcionaria como um encargo econômico gravemente injusto que tenderia a ser relativamente mais suportável pelos contribuintes de renda mais baixa. Podemos assim antecipar uma conclusão de que os tributos são cobrados para restringir a demanda doméstica contrapondo-se à expansão dela decorrente de gastos governamentais, evitando a inflação e, principalmente para realizar a equidade ou justiça fiscal, impedindo que o contribuintes de renda mais baixa suportem encargos tributários relativamente mais elevados do que os de renda mais alta. 252 A expressão está neste momento sendo utilizada em seu sentido lato, isto é, refere-se à necessidade de obtenção e criação dos recursos financeiros como um todo para fazer face às despesas. Diferencia-se, dessa forma, conforme será examinado a seguir, do denominado public sector borrowing requirements, o qual expressa o resultado da diferença entre despesas e receitas sem considerar os ingressos decorrentes chamadas operações de crédito. Na Aula 9 serão aprofundados e detalhados os diversos conceitos das receitas públicas. 253 GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática no Brasil. 3ª Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 16. Apontam os autores que “o governo pode se financiar ‘de graça’ – sem assumir o ônus associado ao pagamento de juros de sua dívida -, de duas formas. A primeira é emitindo moeda para acompanhar a maior demanda por esta, em termos reais. A segunda é através da corrosão do valor real da base monetária existente, o que lhe permite imprimir moeda, apenas para conservar o valor real da moeda previamente impressa.” 254 A “senhoriagem” é definida pelos economistas como a possível receita decorrente do “fluxo nominal da base monetária”, pois, em uma economia com o Produto Interno Bruto constante, se de um lado a demanda por moeda cai quando a inflação aumenta – é um ativo financeiro não indexado que perde valor com o aumento dos preços dos ativos reais -, reduzindo a demanda por base monetária, por outro, aumenta o denominado imposto inflacionário. Assim, conforme destacam Giambiagi e Ana Cláudia, “a receita de senhoriagem vai variar para mais ou para menos em função da importância relativa de cada um desses dois fenômenos”. GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Op. Cit. p.16-17. 255 MELLO, Gustavo Miguez de. O Tributo: Finalidades Econômica, Jurídica, Política e Administrativa. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo: Editora Forense, 2007. p. 425. FGV DIREITO RIO 116 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Ainda que seja complexa e controvertida correlação objetiva entre a emissão de moeda e a inflação independentemente das circunstâncias, bem como intrincada a definição quanto às reais funções dos tributos, matéria a ser abordada ao longo do curso, uma conclusão parece inequívoca: a obtenção do maior volume de recursos ou disponibilidades com o menor custo possível – eficiência econômica em sentido estrito – não parece ser o único parâmetro norteador da escolha entre as possíveis fontes de financiamento a serem utilizadas pelo Poder Público, isto é, o valor justiça distributiva é inerente e faz parte do próprio processo de determinação de como as despesas públicas devem ser financiadas e não apenas da estruturação e opção do dispêndio em si. Assim, pode-se constatar que a eficiência econômica, de um lado, e a justiça como igualdade material, por outro, são valores que devem ser sopesados não apenas quando da efetivação dos gastos públicos, mas também durante todo o processo de escolha entre as diversas formas possíveis de obtenção de recursos financeiros, o que se reflete e influência, também, na interpretação e aplicação da legislação tributária, conforme será examinado ao final deste semestre. No mesmo sentido, importante destacar que as diferentes formas de arcar com o ônus das despesas em determinado momento impactam de maneiras distintas não apenas as pessoas que vivem em uma mesma época, pois o endividamento de longo prazo, por exemplo, tem como característica marcante o fato de que os benefícios e sacrifícios não são usualmente suportados e usufruídos pela mesma geração, o que pode ocasionar distorções acentuadas no processo de repartição de encargos governamentais ao longo do tempo. De fato, enquanto a tributação onera os contribuintes no momento da exação os empréstimos públicos de longo prazo256 oneram gerações futuras, por despesas ocorridas antes do seu tempo, daí a relevância de se perquirir o tipo de gasto a ser realizado com recursos obtidos em determinada época a serem suportados no futuro. As inevitáveis desconexões em determinado momento histórico entre o volume de recursos para satisfazer as necessidades públicas, de um lado, e aqueles disponíveis para a realização da atividade financeira do Estado, do outro, ensejam escolhas dramáticas. De fato, se as receitas tributárias e patrimoniais próprias, adicionadas daquelas recebidas de terceiros em transferência, não são suficientes para fazer face às despesas fixadas em certo período, consubstancia-se o denominado public sector borrowing requirements, correspondente em português às necessidades de financiamento do setor público257, aqui sendo utilizada a expressão em seu sentido estrito, isto é, circunscrevendo-se aos ingressos decorrentes das operações de crédito. Na realidade, três soluções plausíveis se apresentariam para fazer face à divergência entre as demandas sociais e as disponibilidades: (1) diminuir os gastos para alcançar o desejável equilíbrio, reduzindo, inevitavelmente, o escopo das necessidades 256 Essa parece ser a ratio da CR-88 ao apontar no sentido do equilíbrio entre as operações de crédito e as despesas de capital. O artigo 167, III, veda “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital (...)”. A mensagem evidente desse dispositivo é que o endividamento somente pode ser admitido para a realização de investimento ou abatimento da dívida, ou seja, não deveria ser possível contrair empréstimos para gastar os recursos obtidos com despesas correntes, salvo exceções tratadas em créditos suplementares e especiais de finalidade precisa e aprovados por maioria absoluta (vide art. 167 II c/c art. 27 do ADCT). Portanto, o Poder Público pode cobrir despesa de capital por meio de operações de crédito. Essa regra, denominada de regra de ouro, é reforçada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que em seu artigo 12, §2º, estabelece que o “montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.” No mesmo sentido, significa que a receita corrente deve cobrir as despesas correntes, não devendo haver déficit corrente. Essa correlação será examinada na aula pertinente às receitas públicas. 257 GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Op. Cit. p.16-17. p. 46. Apontam os autores que “o resultado fiscal por excelência – ou seja, o que todos os analistas interpretam como sendo o resultado fiscal – é apurado pelo BC e corresponde às denominadas ‘necessidades de financiamento do setor público’ (NFSP), versão em português de ‘public sector borrowing requiremennts’ (PSBR) (...) A NFSP representam apenas o resultado da diferença entre despesas e receitas, sem que o dado divulgado pelo BC permita saber o que está causando o desequilíbrio entre essas variáveis.(...) “No Brasil, as necessidades de financiamento são apuradas pelo conceito de caixa, exceto pela despesa de juros, apuradas pelo conceito de competência contábil. De um lado, isso visa evitar que, se o governo emite títulos de prazo mais longo, com pagamentos concentrados no tempo, o déficit seja artificialmente baixo durante algum tempo e depois estoure” no momento do vencimento. Ao apropriar os juros pelo conceito de competência, o BC torna a despesa de juros mais regular ao longo do tempo a não ser que a taxa de juros mude muito de um mês para o outro. De outro, o critério de competência para o cálculo dos juros é consistente com a apuração da dívida do setor público junto ao sistema financeiro”. FGV DIREITO RIO 117 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I coletivas qualificadas como públicas; (2) aumentar tributos, efetivar esforços no sentido de elevar as receitas patrimoniais ou incrementar as transferências recebidas de terceiros; ou, ainda, (3) realizar as chamadas operações de crédito258 e obter financiamento junto ao mercado interno ou internacional por meio da emissão de títulos da dívida pública, de empréstimos de longo prazo etc. Assim, o crédito público é uma das formas pelas quais o Estado obtém recursos259 e, como conseqüência, surge a dívida pública260 haja vista a criação de obrigações para o Estado, conforme será explicitado no decorrer desta aula. Kiyoshi Harada261 aponta que parte da doutrina tem uma concepção mais ampla de crédito público, o qual abarcaria dúplice perspectiva, “envolvendo tanto as operações em que o Estado toma dinheiro como aquelas em que fornece pecúnia”, o que será tratado aqui de forma apenas tangencial. A natureza jurídica do crédito público é tema de difícil consenso entre os doutrinadores. Apenas à guisa de exemplo cabe trazer três correntes sobre o assunto: 1. considera o crédito público um ato legislativo, ou seja, as regras já estariam estabelecidas; 2. ato de soberania por meio do qual o Estado contrai empréstimo público como resultado natural de seu “poder de autodeterminação e de auto-obrigação” (...); 3. o crédito público seria um contrato (corrente majoritária) “que objetiva a transferência de certo valor em dinheiro de uma pessoa, física ou jurídica, a uma entidade pública para ser restituído, acrescido de juros, dentro de determinado prazo ajustado”, ensina, ainda, Kiyoshi Harada.262 Ao se debruçar sobre o tema em tela, Ricardo Lobo Torres263 apresenta duas teorias contratuais acerca da natureza jurídica dos empréstimos públicos (crédito público); a primeira defende a posição de que o empréstimo público tem natureza de contrato de direito privado, seguindo, portanto, as regras do contrato de mútuo, e a segunda corrente segue a linha de pensamento de que o crédito público assenta-se como contrato de direito administrativo, uma vez que o Estado não pode, por razões óbvias de interesse público, se igualar de forma absoluta ao particular. Na opinião do mencionado jurista, esta é a melhor teoria. A doutrina264 e o sistema normativo apresentam variadas classificações de crédito público, em especial quanto à sua forma (voluntária ou compulsória), prazo (flutuante/de curto prazo ou fundada/consolidada), origem (interna ou internacional) e de sua competência no regime federativo (federal, estadual, distrital ou municipal). No decorrer da aula buscar-se-á analisar aspectos daquelas mais citadas no plano normativo. Para Aliomar Baleeiro265: a caracterização jurídica do empréstimo público exige a prévia discriminação dos vários tipos de operações de crédito estatal, pois há profundas diferenças entre 258 A doutrina utiliza indistintamente das expressões crédito público, empréstimo público e dívida pública para designar o instituto. 259 Na aula pertinente às receitas públicas será examinado se os ingressos decorrentes de operações de crédito subsumem-se - ou não - no conceito de receita pública. 260 No Direito Financeiro o conceito de Dívida Pública vincula-se às obrigações cujo pagamento decorra de empréstimos assumidos pelo Estado, mas não aquelas obrigações da Administração decorrentes, por exemplo, de aluguéis a serem pagos, da aquisição de bens, da prestação de serviços, de condenações judiciais etc, salvo se forem inscritas as despesas como restos a pagar, hipótese em que serão consideradas dívidas flutuante. 261 HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 17ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 99-134. 262 Idem. Ibidem. p. 100-101. Traçando uma analogia com a teoria geral dos contratos, o empréstimo público se equivaleria ao mútuo, embora com este não se confunda, posto existirem peculiaridades nos empréstimos públicos que os diferenciam dos empréstimos privados, a começar pelo interesse público, princípio norteador da Administração. 263 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004. p. 216-225. 264 Empréstimo perpétuo e empréstimo temporário: quanto a esta classificação, ensina Kiyoshi Harada: “o perpétuo será remível ou irremível, conforme haja ou não a faculdade de o Estado efetuar a restituição do capital quando quiser. Na realidade, empréstimo público sem a possibilidade de exigir a restituição do capital perde a característica de receita creditícia”; Dívida Voluntária e Dívida Forçada ( involuntária ): Segundo a doutrina de Ricardo Lobo Torres a dívida forçada “é a assumida em razão de ato de império do Estado. Pode ter diversas formas: a) empréstimos compulsórios, que hoje se classificam melhor como tributo ( art. 148 CF ); Pode ter diversas formas: b) depósitos compulsórios feitos pelos bancos junto ao Banco Central; c) títulos de curso forçado emitidos pelo Governo, como os Certificados de Privatização” (...). A dívida voluntária, a seu turno, complementa o autor, “é a assumida espontaneamente pelos investidores e instituições financeiras. Dela diz-se que é: a) flutuante, quando, sendo dívida de curto prazo, deva ser paga no mesmo exercício financeiro; b) fundada ou consolidada, quando FGV DIREITO RIO 118 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I o empréstimo voluntário e o forçado, ou entre uma dívida assumida para com um indivíduo e os negócios típicos do Tesouro, à base de subscrição oferecida aos prestamistas.(...) Os autores, em geral, assinalam que o empréstimo forçado participa da natureza do tributo. Jèze, reconhecendo que ele não é contrato, considera-o requisição de dinheiro. Amilcar Falcão, em exaustiva monografia demonstrou o caráter tributário dos empréstimos compulsórios, hoje consagrados pelo266 art. 18, §3º, da Constituição de 1969, como medida excepcional da União. Os empréstimos compulsórios, previstos no artigo 148 da CR-88, são usualmente qualificados como dívidas forçadas no âmbito do estudo das Finanças Públicas, em contraposição às dívidas voluntárias contraídas pelo Poder Público, já que decorrem de obrigação legal. Não são receitas definitivas tendo em vista que seus valores devem ser restituídos. Por outro lado, na seara tributária, isto é, para os efeitos do Direito Tributário, os mesmos empréstimos compulsórios também são classificados como tributos pelo Supremo Tribunal Federal (RE 138.284), matéria que será objeto de análise nas Aulas 10 e 11 e de exame detalhado no curso de Direito Tributário e Finanças Públicas II. A Lei Complementar n° 101/00 (LRF), em seu art. 29, traz algumas classificações de dívida pública267, como a dívida consolidada ou fundada, a qual representa o montante total das obrigações financeiras do ente político, assumidas em razão de preceito legal, contratos, convênios, tratados e da realização de operação de crédito, para amortização em prazo superior a 12 meses. Tal quantitativo é apurado sem duplicidade, ou seja, são excluídas do cômputo geral as obrigações entre o ente político e seus fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes ou entre estes.268 Ainda, conceitua o mencionado diploma legal, a dívida mobiliária, isto é, aquela decorrente da emissão de títulos da União, dos Estados (inclui-se o DF), dos Municípios, bem como do Banco Central do Brasil; e as operações de créditos, estas abarcam os compromissos financeiros do Estado assumidos “em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”, nos termos do inciso III do art. 29 da LC 101/00. Com feito, equipara à operação de crédito, ainda, o referido diploma legal, “a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo ente da Federação”, nos termos do art. 29, § 1°. Sobre o tema operações de crédito, preciosa é a contribuição do financista José Maurício Conti269, que ao analisar a normas insertas nos artigos 32 a 39 da Lei de responsabilidade fiscal (LC 101/00) aponta três critérios básicos utilizados para a fixação de limites às operações de crédito: seja inscrita nos livros da Fazenda Pública para pagamento em data previamente determinada (empréstimo amortizável) ou sem prazo fixado para amortização (empréstimo perpétuo)”; Empréstimos internos e empréstimos externos: Kiyoshi Harada aponta que o “crédito interno como aquele que o Estado obtém no âmbito de seu espaço territorial. Caracteriza-se o crédito externo quando o Estado celebra o contrato de mútuo, em moeda estrangeira, com uma pessoa não nacional”. Nesse contexto, ensina Regis Fernandes de Oliveira que o crédito externo “não tem caracterização pela moeda de pagamento, mas pela transferência de divisas ao exterior e, pois, o que importa é o local ou a praça em que o pagamento deva ser feito”. Ver HARADA, op. cit.; TORRES, op. cit. e OLIVEIRA, op. cit. 265 BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 488-490. Segundo o autor “receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”. Assim, estariam excluídos do conceito de receita para o eminente autor os simples movimentos de fundos ou de caixa, assim compreendidos os ingressos que refletissem, ao mesmo tempo, criação de uma obrigação ou passivo correspondente. 266 Vide artigo 148 da atual CR-88. 267 Ver também o Decreto Federal n° 93.872/86, que trata dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, o qual, no capítulo IV, traz regras disciplinadoras da dívida pública. Nesse sentido cabe transcrever o dispositivo que traz o conceito de dívida pública: “Art. 115. A dívida pública abrange a dívida flutuante e a dívida fundada ou consolidada. §1o. A dívida flutuante compreende os compromissos exigíveis, cujo pagamento independe de autorização orçamentária, assim entendidos: a) os restos a pagar, excluídos os serviços da dívida; b) os serviços da dívida; c) os depósitos,inclusive consignações em folha; d) as operações de crédito por antecipação de receita; e) o papel moeda ou moeda fiduciária. §2o. A dívida fundada ou consolidada compreende os compromissos de exigibilidade superior a 12 meses contraídos mediante emissão de títulos ou celebração de contratos para atender a desequilíbrio orçamentário, ou a financiamento de obras e serviços públicos, e que dependam de autorização legislativa para amortização ou resgate”. Frise-se que a LRF, conforme se extrai do dispositivo transcrito, ampliou o escopo tanto da dívida consolidada como da dívida flutuante ( ver arts. 92 e 98 da Lei 4.320/64 ). FGV DIREITO RIO 119 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O primeiro método é o estabelecimento de limites por meio de um processo de negociação entre o governo central e os governos subnacionais (cooperative approach), que pode ser observado em alguns países europeus (...). Outro método é a fixação por meio de normas jurídicas preestabelecidas na Constituição ou na legislação infraconstitucional (ruled-based approaches). E o terceiro método é o controle feito diretamente pelo governo central, que fixa os limites do endividamento das entidades subnacionais (direct control of the Central Government). Este último método é mais usual nos Estados unitários e pode ser observado no Reino Unido e no Japão. No Brasil, conforme preleciona o mencionado autor, o sistema adotado para fixar os limites de endividamento segue o método ruled-based approaches, visto que a Constituição de 1988 e a normativa infraconstitucional tratam minuciosamente da matéria. Sobre o tema apontam José Roberto Afonso e Rafael Barroso270: A questão da dívida pública federal e da fixação de metas para esta e para o resultado nominal constitui também uma debilidade. A dívida pública seria a priori aspecto de maior sucesso da LRF, mas, de fato, e de direito, é em que mais falhou sua regulamentação posterior. A LRF, seguindo a Constituição Federal, prevê limites para o endividamento público: consolidado e mobiliário271. No primeiro caso, deveriam ser fixados pelo Senado272 para cada uma das três esferas de governo. Ao final de 2001, o Senado aprovou a nova resolução273 para regular o endividamento estadual e municipal, disciplinando tanto os fluxos, quanto limitando os estoques, mas até hoje sequer iniciou a tramitação do mesmo projeto aplicado à União. Nada justifica que o ente mais importante da Federação, o que sempre teve a maior dívida, não esteja sujeito a nenhum limite. De início, havia o temor de questionarem a fixação de um limite para o governo federal acima do limite aplicado aos governos subnacionais, mas ninguém questiona essa diferença, que é facilmente explicada pelo fato de aquele governo ter estoque de dívida superior ao dos demais entes e também por ser o responsável pela política monetária. Nessa toada, a LC 101/00, em seu art. 32, estabelece a competência do Ministério da Fazenda para verificar o cumprimento dos limites e condições referentes à realização de operação de crédito pelos entes da federação. Consoante dispõe o referido dispositivo legal, a realização de operação de crédito pressupõe o preenchimento de alguns requisitos por parte do ente contratante. Sobre eles debruçou-se José Maurício Conti:274 268 NASCIMENTO, Leonardo do. E CHERMAN, Bernardo. Contabilidade Pública. Rio de Janeiro: Editora Ferreira, 2007. p. 438-439. 269 CONTI, José Maurício Conti. Comentários aos artigos 32 a 39. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 229-231. 270 AFONSO, José Roberto e BARROSO, Rafael. Uma Reforma Esquecida. In:Boletim de Desenvolvimento Fiscal. 5. IPEA. Junho, 2007. p.11. 271 Vide LRF art. 30: “Art. 30. No prazo de noventa dias após a publicação desta Lei Complementar, o Presidente da República submeterá ao: I - Senado Federal: proposta de limites globais para o montante da dívida consolidada da União, Estados e Municípios, cumprindo o que estabelece o inciso VI do art. 52 da Constituição, bem como de limites e condições relativos aos incisos VII, VIII e IX do mesmo artigo; II - Congresso Nacional: projeto de lei que estabeleça limites para o montante da dívida mobiliária federal a que se refere o inciso XIV do art. 48 da Constituição, acompanhado da demonstração de sua adequação aos limites fixados para a dívida consolidada da União, atendido o disposto no inciso I do § 1o deste artigo.” 272 a. adequada relação custo-benefício da operação: o interessado em contratar uma operação de crédito deverá instruir o seu pedido com os argumentos e Artigo 52, VI, da CR-88. 273 Vide Resolução nº 1 de 2001 do Congresso Nacional. 274 Idem. Ibidem. p. 230-236. FGV DIREITO RIO 120 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I provas que demonstrem a necessidade da operação e a compatibilidade entre recursos pleiteados e o benefício as ser obtido pela aplicação na finalidade proposta (é possível extrair dessa premissa os princípios da proporcionalidade e o da economicidade). b. o interesse econômico e social da operação: (...) as operações de crédito somente poderão ser aceitas caso sejam destinadas a atender o interesse público, ou seja, tenham por objetivo atingir uma finalidade socialmente relevante. c. existência de prévia e expressa autorização para a contratação com a inclusão no orçamento ou em créditos adicionais dos recursos provenientes da operação: A contratação de operação de crédito precisa estar previamente autorizada por lei da entidade que pleiteia realizá-la. Um município, por exemplo, antes de contratar a operação de crédito, deve ter previsão desse ato na legislação pertinente. d. a observância dos limites e condições fixados pelo Senado Federal: O Ministério da Fazenda deve analisar a observância, pelo ente da federação que pretende consumar a operação, dos limites a que fica sujeito (...)275. e. a existência de autorização específica do Senado Federal quando se tratar de operação de crédito externo: (...) toda vez que o ente necessitar realizar operação de crédito externo deverá submeter o pedido à apreciação do Senado Federal276, ex vi do art. 52, inciso V, da CR/88, a quem caberá expedir resolução autorizando o negócio. f. o atendimento do disposto no inciso III do art. 167 da Constituição: essa é uma das mais importantes disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, por regulamentar a chamada ‘regra de ouro’, ao estabelecer o principal limite para o endividamento do setor público, qual seja, impedir que a dívida ultrapasse o montante das despesas de capital277. O objetivo desse princípio de gestão fiscal responsável é a proibição de se financiarem despesas correntes278, indício claro de descontrole das contas públicas. g. a observância das demais restrições estabelecidas na LRF: (...) 1. vedação às operações de crédito entre entes da Federação, ainda que por meio da respectiva Administração indireta (art. 35); 2) vedação às operações de crédito entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação destinadas a financiar despesas correntes ou a refinanciar dívidas não contraídas junto à própria instituição concedente (art. 35, § 1o); 3. vedação às operações de crédito entre instituição financeira estatal e o ente que a controle (art. 36 c/c art. 2o, II); e 4. vedação às operações de crédito com o Banco Central do Brasil (art. 39).” (grifo nosso). Cumpre, ainda, mencionar outros requisitos previstos na Resolução do Senado Federal n° 43/2001, art. 21, como, por exemplo, a competência dos Tribunais de Contas, nos termos do inciso IV, para expedir certidão atestando a regularidade das contas do último exercício do ente interessado, bem como o cumprimento das normas esculpidas na LRF. 275 Faz-se mister salientar que os referidos limites estão delineados na Resolução do Senado Federal n° 43/2001, como forma de regulamentar o disposto no art. 52, inciso VII, da CR/88. 276 Vale ressaltar que a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em seu art. 99, inciso XXXII, contempla a competência da Assembléia Legislativa para autorizar previamente, por maioria absoluta de seus membros, proposta de empréstimo externo a ser encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo ao Senado Federal. 277 Cumpre fazer menção à exceção prevista no art. 167, inciso III, da CR/88, que dispõe, in verbis: “art. 167. são vedados: III- a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”. 278 Conforme determina o inciso X, do art. 167, CR/88, in verbis: “Art. 167. São vedados. (...)X – a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos federal e Estadual e suas instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. FGV DIREITO RIO 121 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Não há como refutar a importância da LRF em sede de controle fiscal das finanças públicas, o que, de fato, precisa ocorrer é a sua plena eficácia tanto no plano jurídico como na esfera social. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige comprometimento com a coisa pública não apenas dos administradores públicos, mas também das entidades privadas. Nesse sentido, oportuno trazer à luz a regra inserta no art. 33 do mencionado diploma normativo, a qual dispõe, in verbis: “Art. 33. A instituição financeira que contratar operação de crédito com ente da Federação, exceto quando relativa à dívida mobiliária ou à externa, deverá exigir comprovação de que a condição atende às condições e limites estabelecidos”. Dispõe, ainda, em seu § 1o, que, se houver violação às normas da LRF, a operação de crédito realizada será considerada nula, devendo o negócio ser cancelado, com a devolução da quantia recebida, sem o pagamento de juros ou de qualquer outro encargo. A LRF atribui às instituições financeiras a tarefa de verificar se os entes contratantes estão observando os limites e as condições impostas pela legislação para a contratação de operações de crédito. Conforme aponta José Maurício Conti:279 “estabeleceu-se a co-responsabilidade do setor privado pela fiscalização no cumprimento das disposições da LRF”. É, sem, dúvida, mais um exemplo concreto da interpenetração das finanças públicas nas finanças privadas (corporativas). Algumas sanções imputadas em razão do descumprimento dos preceitos normativos para a realização de operações de crédito merecem ser destacadas: no âmbito da Administração Pública, os arts. 23, § 3o, e o 33, §§ 1o e 2o da LRF, apresentam um elenco delas, apenas a título de exemplo: 1. fica o ente proibido de receber transferências voluntárias; 2. obter garantia, direta ou indireta, de outro ente; 3. contratar operações de crédito, com exceção daquelas destinadas a refinanciar a dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal; 4. nulidade do contrato; 5. devolução do valor recebido; sem prejuízo de outras sanções de natureza política, civil e penal, nos termos do art. 73 da LRF. I. Operações de crédito por antecipação de receita (ARO).280 Este tipo de operação tem natureza extra orçamentária, posto tratar-se de operação de crédito não prevista a priori na lei orçamentária. Ela visa a atender insuficiência de caixa durante o exercício financeiro, podendo ser utilizada, inclusive, para suprir despesas com o custeio da máquina pública. O art. 38 da LRF disciplina algumas condições que, somadas àquelas já mencionadas do art. 32 para operação de crédito em geral, devem ser observadas para a realização desta operação. Assim dispõe o caput do referido dispositivo: “Art. 38. A operação de crédito por antecipação de receita destina-se a atender 279 CONTI. Op. Cit. p. 237. 280 Cf. determina o art. 38, § 2o, da LC 101/OO, “as operações de crédito por antecipação de receitas realizadas por Estados ou Municípios serão efetuadas mediante abertura de crédito junto à instituição financeira vencedora em processo competitivo eletrônico promovido pelo Banco Central do Brasil”. FGV DIREITO RIO 122 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I insuficiência de caixa durante o exercício financeiro e cumprirá as exigências mencionadas no art. 32 e mais as seguintes (...)”. Importante ter em mente que a ratio da imposição das condições, de que trata o artigo supra transcrito, está diretamente relacionada ao princípio da não afetação da receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas, positivado no art. 167, inciso IV, da CR/88, cujas exceções, entre elas a operação de crédito por antecipação de receita, estão ali elencadas. As exigências de que trata o art. 38 da LRF podem ser detalhadas da seguinte maneira: “a. o caput do artigo prevê o cumprimento das condições estabelecidas pelo art. 32 da LRF, dentre elas estão, conforme já visto alhures: a existência de prévia e expressa autorização para a contratação; a sujeição aos limites fixados pelo Senado Federal etc.; b. o inciso I determina o dies a quo para contrair obrigação decorrente de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, que é 10 de janeiro; c. o termo final da operação deverá ser dia 10 de dezembro do mesmo ano em que foi contraída a obrigação. Com efeito, essa exigência está diretamente relacionada ao princípio do equilíbrio orçamentário, que traz subjacente a finalidade de conter o endividamento público281; d. a previsão e pagamento de juros com observância dos limites legais. Sobre tal regra, preleciona José Maurício Conti282 “que esses acréscimos restringem-se apenas à taxa de juros, que deverá ser obrigatoriamente prefixada ou indexada a TBF (taxa básica financeira283)”; e. vedação à realização de operação enquanto existir operação da mesma natureza ainda não adimplida; f. impossibilidade de realização de ARO no último ano de mandato do Chefe do Poder Executivo. Tal regra tem como ratio subjacente evitar que o governante deixe excessivo encargo financeiro decorrente de operação de crédito por antecipação de receita para o que lhe suceder284; g. dispõe o § 2o do artigo em tela acerca da competência do Banco Central do Brasil para organizar e promover o processo licitatório, denominado de “ processo competitivo eletrônico”, para escolher a instituição financeira que irá negociar com os Estados, DF e Municípios, com fulcro no art. 36 da Resolução do Senado n° 43/2001. As propostas oriundas das instituições licitantes só poderão prever cobrança de juros da operação, sendo vedado qualquer outro encargo, conforme determina o art. 38, inciso III, da LRF e o art. 37, § 3o da Resolução do Senado n° 43/2001. Tal restrição está expressa na exigência de entrega de declaração ao Ministério da Fazenda por parte da Instituição vencedora de que não há qualquer custo adicional à operação além da taxa de juros. Tal documento deve 281 Ensina Ricardo Lobo Torres que o art. 167, inciso III, da CR/88, - que estabelece a denominada “regra de ouro”, isto é, a regra segunda a qual as operações de crédito não podem exceder o montante das despesas de capital, salvo aquelas autorizadas mediante créditos suplementares e especiais para fins específicos - teve como fundamento a Constituição Alemã ( art. 115 ), a qual também veda a existência de créditos superiores aos gastos de investimentos. In: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. V. O Orçamento na Constituição. 3ª ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008. p. 183. 282 CONTI. Op. Cit. p. 252. 283 A Taxa Básica Financeira foi instituída pela Medida Provisória n° 1.875 (art. 5o), sendo, depois de sucessiva reedições, convertida na Lei 10.192 de 14 de fevereiro de 2001, cujo art. 5o assim dispõe, in verbis: “Art. 5o Fica instituída Taxa Básica Financeira - TBF, para ser utilizada exclusivamente como base de remuneração de operações realizadas no mercado financeiro, de prazo de duração igual ou superior a sessenta dias. Parágrafo único. O Conselho Monetário Nacional expedirá as instruções necessárias ao cumprimento do disposto neste artigo, podendo, inclusive, ampliar o prazo mínimo previsto no caput”. 284 O art. 21, § único, da LRF veda qualquer operação que resulte em aumento de despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato. Ainda dispõe o art. 42 da LRF acerca da proibição de contratação de despesas nos últimos dois quadrimestres que não possam ser integralmente pagas no período. FGV DIREITO RIO 123 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ser assinado pelo contratante (Chefe do poder Executivo) e pela contratada (Instituição Financeira). O resultado do concurso será divulgado pelo Banco Central do Brasil a todas a instituições financeiras, ao Senado, ao Tribunal de Contas e ao Poder Legislativo respectivos, ex vi do art. 39 da referida Resolução”. Compete, ainda, ao Banco Central a função fiscalizadora do saldo do crédito aberto, nos termos do art. 38, § 3o da LRF. O eventual descumprimento dos limites impostos, responderá a contratada instituição financeira, nos termos da legislação pertinente, conforme expressa o art. 73 da LRF. III. Da Garantia e da Contra-Garantia. Outro tema relevante para o objeto deste curso diz respeito às garantias e contra-garantias que os Entes Políticos podem lançar mão ao realizarem operações de crédito internas ou externas. A garantia, conforme ensina a doutrina civilista, é uma espécie do gênero caução e vincula-se à tutela do patrimônio, posto servir de instrumento para preservação deste face às obrigações assumidas pelo devedor. No sistema normativo pátrio as garantias se subdividem em reais e pessoais (fidejussórias). A garantia decorre da necessidade de o credor sentir-se seguro de que vai receber o pagamento da obrigação assumida pelo devedor. Nesse contexto, ensina o civilista Caio Mário da Silva Pereira285 que a garantia ou caução estrito senso: “(...) pode efetivar-se mediante a separação de um bem determinado, móvel ou imóvel, com o encargo de responder o bem gravado ou seu rendimento pela solução da obrigação (penhor, hipoteca, anticrese), casos em que fica estabelecido um ônus sobre a própria coisa, constituindo espécie de garantia real (...). Mas pode realizar-se, também, mediante a segurança de pagamento oferecida por um terceiro estranho à relação obrigatória, o qual se compromete a solver pro debitore, e desta sorte nasce a garantia pessoal ou fidejussória.” A despeito de serem aplicáveis as referidas formas de garantia na seara pública, é preciso ressaltar certas peculiaridades que as distanciam da sua aplicação nas relações privadas, visto que o administrador público tem como vetor axiológico de sua conduta o interesse público, valor indisponível. Desta sorte, deve o ente político, ao utilizar instrumentos de garantia ou contra-garantia, observar os ditames constitucionais e a legislação infraconstitucional. O art. 40 da LRF disciplina a concessão de garantia em operações de crédito internas e externas pelos entes federados, e subordina a sua realização ao oferecimento de contragarantia, em valor igual ou superior ao da garantia a ser concedida, e à adimplência da entidade que a pleitear relativamente a suas obrigações junto ao garantidor e às entidades por este controladas.286 Nesse 285 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p.327-335. 286 Também cuida da matéria a Resolução do Senado Federal n° 43/2001. Deve-se destacar que nos termos do §1º do art. 40 da LRF não se exige contragarantia de órgãos e entidades do próprio ente e a contragarantia exigida pela União a Estado ou Município, ou pelos Estados aos Municípios, pode consistir na vinculação de receitas tributárias diretamente arrecadadas e provenientes de transferências constitucionais, com outorga de poderes ao garantidor para retê-las e empregar o respectivo valor na liquidação da dívida vencida. FGV DIREITO RIO 124 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I passo, merece relevo a contribuição de Misabel de Abreu Machado Derzi287 que, ao comentar o referido artigo 40, fez a seguinte análise: “As garantias e contra-garantias podem ser reais ou pessoais. Mediante autorização legal, o ente federativo pode oferecer em garantia bens dominicais, móveis ou imóveis, disponíveis. Não se pode impedir, embora a regra seja a inalienabilidade dos bens públicos, que certos bens de propriedade do Estado sejam vendidos ou doados para fins de interesse coletivo, mediante lei. Se puderem ser objeto de alienação, poderão ser onerados com garantia real. Entretanto, essa relatividade inexiste em relação à receita pública ou à renda pública. Em se tratando, pois, de garantia ou contra-garantia prestada mediante vinculação de receita de impostos, estar-se-á diante de caução fidejussória, jamais real, pois a receita arrecadada, existente nos cofres públicos, é absolutamente inalienável, imprescritível e impenhorável.” (grifo da autora). Embora seja pertinente a visão da mencionada estudiosa, há que se reconhecer que a Constituição de 1988, em seu art. 167, IV, no qual está positivado o princípio da não-afetação da receita, contempla a possibilidade de vinculação de recursos oriundos de receitas de impostos para a concessão de garantias às operações de crédito por antecipação de receita.288 É possível inferir da referida exceção ao princípio da vedação à vinculação da receita de impostos a órgãos e fundos, que o objetivo do Constituinte de 1988 é o de garantir o equilíbrio financeiro-orçamentário do Estado e, como conseqüência, a concretização dos direitos humanos fundamentais, os quais dependem dos serviços públicos, como assistência à saúde e melhor estrutura da educação básica e do ensino médio. EQUILÍBRIO FISCAL Por fim, cumpre destacar que, no caso brasileiro, além do aumento da despesa como proporção do PIB ao longo dos anos, nos termos já apresentados na aula passada, o resultado primário do Governo Central (total das Receitas menos total das Despesas antes do pagamento dos Juros) vem sendo positivo e crescente ao longo dos últimos anos, o que confirma o aumento da arrecadação da União em ritmo mais forte do que o crescimento dos gastos e do PIB, sem considerar os encargos da dívida. No acumulado de janeiro a novembro de 2008, conforme Relatório da Secretaria do Tesouro Nacional289, o resultado do Governo Central é 38,9% superior ao obtido em igual período de 2007 (R$ 91,5 bilhões contra R$ 65,9 bilhões). Com isso, o resultado primário passou de 2,78% para 3,45% do PIB estimado para o período. As receitas do Governo Central, líquidas de transferências aos esta- 287 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Comentários aos arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 258-344. 288 Cabe salientar que, para Misabel de Abreu Machado Derzi, a vinculação de receitas tributárias de que trata o art. 40 da LRF amplia a regra inserta no art. 167, § 4o da CR/88, que prevê a utilização dos referidos recursos à prestação de garantia ou contra-garantia à União. Segundo a mencionada estudiosa, o texto do referido art. 40 amplia o escopo da norma constitucional, uma vez que estabelece a retenção e expropriação da receita do ente devedor pelo garantidor, o que enseja vício de constitucionalidade. In: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Comentários aos arts. 40 a 47. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva e NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 258-344. 289 Relatório disponível no sitio http:// www.stn.fazenda.gov.br/. Merece destaque o fato de que, no mês de novembro de 2008, o resultado primário do Governo Central passou a ser deficitário em R$ 4,3 bilhões pela primeira vez em quatro anos. No mês de outubro o superávit primário havia sido de R$ 14,9 bilhões e no mesmo mês do ano anterior, novembro de 2007, o superávit primário havia sido de R$ 4,5 bilhões. FGV DIREITO RIO 125 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I dos e municípios, cresceram 3,2% acima do crescimento nominal do PIB no período (11,97%), enquanto as despesas do Governo Central apresentaram decréscimo de 0,3%. No entanto, deve-se ressaltar que o resultado nominal, ou seja, se considerados o pagamento de juros da dívida, é deficitário. Em sentido análogo ao que vem ocorrendo com a União, tem sido constatados resultados primários positivos e déficits nominais dos três níveis de Governo de forma agregada (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), informações compiladas também a partir dos dados disponibilizados pela Secretaria do Tesouro Nacional: (Valores em R$ mil) Resultado Geral do Governo 2002 2003 2004 2005 2006 2007 I. Total das Receitas 511.748.237 586.924.326 685.020.631 786.204.210 874.786.441 991.471.083 II. Total das Despesas 478.018.839 529.830.707 610.970.826 702.155.690 801.510.676 907.142.788 III. Resultado Primário (I-II) 33.729.398 57.093.619 74.049.805 84.048.520 73.275.764 84.328.294 IV. Juros Nominais 111.724.137 153.848.962 137.158.265 156.898.636 153.604.636 150.720.186 V. Resultado Nominal (III-IV) (77.994.738) (96.755.342) (63.108.460) (72.850.116) (80.328.872) (66.391.892) União, Estados e Municípios FGV DIREITO RIO 126 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 8 – AS TRANSFERÊNCIAS CONSTITUCIONAIS E A PARTILHA DE RECEITA TRIBUTÁRIA NO FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO Conforme já explicitado na Aula 2, os recursos disponíveis para cada ente político realizar as suas funções em uma federação como a brasileira não correspondem apenas às receitas auferidas individualmente, patrimoniais e extrapatrimoniais, isto é, as fontes de financiamento orçamentárias dos gastos em sentido lato, de cada ente federado, correspondem ao conjunto: (A) das receitas próprias de cada unidade política, obtidas, principalmente, por meio do exercício de suas competências tributárias290, de suas receitas patrimoniais, da atividade econômica exercida por suas empresas, bem como das operações de crédito; e (B) da parcela decorrente do sistema de repartição de receitas tributárias e de transferências intergovernamentais, que podem ser voluntárias ou obrigatórias, correntes ou de capital Preliminarmente, entretanto, cumpre destacar a distinção entre transferências intergovernamentais e intragovernamentais. As despesas realizadas para transferir recursos financeiros a entidades pertencentes à Administração Pública, dentro da mesma esfera de governo, denomina-se transferências intragovernamentais. Em sentido diverso, as transferências entre os diversos entes federados, qualificam-se como transferências intergovernamentais, as quais podem ter por fundamento: (1) determinação constitucional ou legal, o que a caracteriza como participação obrigatória e (2) o processo de descentralização orçamentário voluntário, que se efetiva pelas transferências discricionárias. Acerca das transferências voluntárias, estabelece o artigo 25 da Lei Complementar nº 101/2000 (LRF) que: Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde. (grifo nosso) Saliente-se, ainda, que, consoante o disposto no artigo 167, X, da CR88 – inciso incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98 – é vedada “a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estadual e suas 290 Matéria a ser examinada nas próximas aulas. FGV DIREITO RIO 127 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Os instrumentos de repasse das transferências discricionárias são múltiplos, destacando-se entre eles os convênios, os contratos de repasse, ajustes, a transferência automática e a transferência fundo a fundo. Os fundamentos para as transferências voluntárias291 também são vários, podendo ser, por exemplo, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, conforme estatui o citado artigo 25 da LRF, visando, especialmente, à realização de obras e/ou serviços de interesse comum e coincidente às três esferas de Governo. As transferências voluntárias, por se tratarem de despesa para o ente governamental transferidor, devem ter previsão na lei do orçamento anual, nos termos do artigo 167, II da CR-88, bem como obedecer às condições fixadas no já citado inciso X do mesmo dispositivo constitucional, na Lei de Diretrizes Orçamentárias292, do ente federado concedente, e na Lei de Responsabilidade Fiscal, a qual estabelece diversas condições293 e requisitos para que a União realize transferências a título voluntário, destacando-se entre eles os fixados nos artigos 11, 23, 25, 51, 52, 54 e 55. Se o Município, por exemplo, não encaminhar o balanço do exercício anterior à Secretaria do Tesouro Nacional no prazo determinado, fica impedido de receber transferências voluntárias. O Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, regulamenta os convênios, contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. As informações sobre transferências voluntárias obtidas no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) podem ser consultadas no sítio da Secretaria do Tesouro Nacional no seguinte endereço eletrônico: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/transferencias_voluntarias.asp. A propósito, a participação das transferências voluntárias para o Estado do Rio de Janeiro e os seus Municípios, de 1997 a Março de 2008, pode ser sumarizada da seguinte forma: 291 Saliente-se, ainda, a existência das subvenções sociais e econômicas, disciplinadas, respectivamente, nos artigos 16 e 18 da Lei n º 4.320/64. As subvenções sociais são destinadas às instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa, que visam suplementar as ações da iniciativa privada na área social. Já as subvenções econômicas destinam-se a cobrir os déficits de manutenção das empresas públicas, compreendendo aqueles decorrentes do montante em que as despesas de custeio superam as receitas correntes. Destaque-se que a artigo 32, da Lei nº12.017, de 12 de agosto de 2009, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2010,da União, estabelece que “A transferência de recursos a título de subvenções sociais, nos termos do art. 16 da Lei no 4.320, de 1964, atenderá as entidades privadas sem fins lucrativos que exerçam atividades de natureza continuada nas áreas de cultura, assistência social, saúde e educação e preencham” as condições fixadas no dispositivo. 292 A citada Lei nº 12.017/2009, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2010, da União, estabelece, no artigo 39, que: “As transferências voluntárias, conforme definidas no caput do art. 25 da Lei Complementar no 101/2000, dependerão da comprovação, por parte do conveniente, até o ato da assinatura do instrumento de transferência, de que existe previsão de contrapartida na lei orçamentária do Estado, Distrito Federal ou Município.” A contrapartida será estabelecida em termos percentuais do valor previsto no instrumento de transferência voluntária, considerandose a capacidade financeira da respectiva unidade beneficiada e seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). 293 Os artigos 8º a 11 da Lei 11.945/2009 estabelecem quais são as ações a serem realizadas pelos órgãos e entidades da administração pública federal responsáveis pela inscrição de pendências relativas a obrigações fiscais, legais ou de natureza financeira ou contratual devidas por Estados, Distrito Federal ou Municípios e que compõem a base de informações para fins de verificação das condições para transferência voluntária da União. FGV DIREITO RIO 128 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Percentual de Transferências Voluntárias em relação ao total Brasil (1) (2) (3) Estado e Municípios do RJ* Estado do RJ** Municípios do RJ*** 1997 3,55% 3,13% 4,58% 1998 2,98% 2,59% 3,70% 1999 8,96% 3,29% 11,38% 2000 3,99% 3,76% 4,30% 2001 3,95% 3,18% 5,36% 2002 3,72% 2,68% 4,91% 2003 4,43% 4,01% 4,83% 2004 3,62% 2,94% 4,24% 2005 4,57% 3,15% 5,80% 2006 4,81% 3,65% 5,73% 2007 6,74% 6,82% 6,66% Jan-Mar 2008 6,07% 6,96% 5,83% * Soma das transferências recebidas pelos Municípios e pelo Estado dividido pela soma do total das transferências para Estados e Municípios ** Soma das transferências recebidas pelo Estado dividido pela soma do total para todos os Estados do Brasil *** Soma das transferências recebidas por todos os Municípios do Estado dividido pela soma do total de todos os Municípios do Brasil Fonte dos dados: Secretaria do Tesouro Nacional–http://www.tesouro.fazenda. gov.br/estados_municipios/transferencias_voluntarias.asp Elaboração própria Segundo informação do Jornal Valor de 02.09.2008 (página A4), entrou em funcionamento no dia anterior à publicação da notícia “o Siconv, sistema desenvolvido pelo governo federal especialmente para controlar os repasses de recursos voluntários da União. Com isso, só conseguirão receber transferências não-obrigatórias do Tesouro Nacional entes públicos e entidades privadas que se credenciarem e firmarem contrato por intermédio do Portal de Convênios do governo federal.” As transferências obrigatórias, por sua vez, podem ter fundamento constitucional ou legal. Destaque-se, inicialmente, conforme será examinado na Aula 9, que o princípio geral, consoante o disposto no artigo 167, IV, da CR-88, é o da impossibilidade de vinculação de receita de impostos a órgão, FGV DIREITO RIO 129 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I fundo ou despesa. Entretanto, o mesmo dispositivo estabelece diversas exceções, entre as quais aquelas determinadas nos artigos 157 e 159, 198, §2º, 212 e artigo 37, XXII, a serem apresentadas a seguir, bem como a prestação de garantias previstas no artigo 165, §8º, e no §4º do próprio artigo 167, hipóteses já analisadas na aula passada. As transferências determinadas na Constituição, de caráter obrigatório, podem ser segmentadas em seis grandes grupos, possuindo, cada qual, finalidade e natureza distinta, destacando-se: (1) aquelas determinadas pela Carta Magna visando a realização de ações governamentais descentralizadas em que há participação de múltiplos entes federados, como é o caso dos recursos financeiros destinados: i. ao Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pelo artigo 198 da CR-88, disciplinado pela Lei n° 8.080/90 e Lei n° 8.142/90, e financiado, nos termos do artigo 195 da CR-88, com recursos do orçamento da seguridade social, da União294, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outros recursos (§1°do artigo 198); ii. ao Fundo de Assistência Social (FNAS), que são transferidos295 de acordo com os critérios aprovados pelo Conselho Nacional de Assistência Social, o qual deve considerar “para tanto, indicadores que informem sua regionalização mais eqüitativa, tais como: população, renda per capita, mortalidade infantil e concentração de renda, além de disciplinar os procedimentos de repasse de recursos para as entidades e organizações de assistência social, sem prejuízo das disposições da Lei de Diretrizes Orçamentárias”, nos termos do art. 18, IX da Lei nº 8.742/1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social, prevista nos artigos 203 e 204 da CR-88; iii. ao Fundo de manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), de que trata o artigo 60 do ADCT da CR-88, com a redação dada pela Emenda Constitucional n° 53, de 19 de dezembro de 2006 e regulamentado pela Lei n° 11.494/2007296; (2) a quota dos Estados e dos Municípios, correspondente a dois terços dos recursos arrecadados pela União com a contribuição social do salário-educação de que trata o §6°do artigo 212 da CR-88, as quais serão creditadas mensal e automaticamente em favor das Secretarias de Educação dos Estados, do Distrito Federal e em favor dos Municípios, para financiamento de programas, projetos e ações voltadas para a educação básica, nos termos do Decreto Federal nº 6.003 de 28 de dezembro de 2006; 294 O artigo 198, §3º, inciso II, da CR-88, prevê que Lei Complementar, até hoje não editada, estabelecerá: “os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais” (inciso incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000). 295 A Lei nº 9.604/1998, que dispõe sobre a prestação de contas de aplicação de recursos a que se refere a Lei nº 8.742/1993, estabelece que os recursos recebidos pelos fundos dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios devem ser aplicados de acordo com as prioridades fixadas nos planos de assistência social, aprovados pelos respectivos conselhos, devendo ser observada a necessária compatibilidade com o plano estadual na hipótese de transferência aos fundos municipais (parágrafo único do artigo 2º). 296 O FUNDEB é um fundo de natureza contábil criado no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal (art. 60, I do ADCT), sendo o mesmo financiado com recursos desses entes federados e, também, com recursos dos Municípios (art. 60, II do ADCT). A União apenas complementa os recursos dos Fundos sempre que, no Distrito Federal e em cada Estado, o valor por aluno não alcançar o mínimo fixado nacionalmente (art. 60, V do ADCT). Segundo o artigo 212 da CR-88 a União aplicará, anualmente, no mínimo 18% e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, da receita resultante de impostos, incluindo a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A Lei nº 11.738/2008, por sua vez, entre outras medidas, fixou piso nacional de remuneração para os professores em R$ 950,00. A lei foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4167) no Supremo Tribunal Federal (STF), proposta por Governadores de cinco estados. Para os governadores, a lei extrapolou a idéia inicial de uma fixação do piso da carreira e criou “regras desproporcionais” ao regular o vencimento básico (não o piso) e dar jornada menor de trabalho dos professores dentro das salas de aula. Segundo eles, a lei federal causará despesas exageradas e sem amparo orçamentário nos estados. O Plenário do STF concluiu, no dia 17.12.2008, no julgamento da liminar, que: (1) o termo “piso” a que se refere a norma em seu artigo 2º deve ser entendido como a remuneração mínima a ser recebida pelos professores. Assim, até que o Supremo analise a constitucionalidade da norma, na decisão de mérito, os professores das escolas públicas terão a garantia de não ganhar abaixo de R$ 950,00, somados aí o vencimento básico (salário) e as FGV DIREITO RIO 130 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (3) os recursos financeiros transferidos à título de compensação e participação no resultado da exploração de petróleo e gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nos termos do §1º do artigo 20 da CR-88297; (4) a transferência da arrecadação do imposto sobre as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF), incidente sobre o ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial, cabendo, de acordo com a sua origem, trinta por cento para o Estado, o Distrito Federal ou o Território, e setenta por cento para o Município, nos termos do artigo 153, V, e § 5º da CR-88; (5) os valores entregues pela União aos Estados e ao Distrito Federal, de acordo com critérios, prazos e condições a serem definidos em lei complementar, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, § 2º, X, a, nos termos do artigo 91298 do ADCT da CR-88, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19/12/2003 e (6) as transferências decorrentes da denominada “Repartição das Receitas Tributárias”, disciplinadas nos artigos 157 a 162 da CR-88, Seção VI do Capítulo I – Do Sistema Tributário Nacional, o qual está inserido no Título VI – Da Tributação e do Orçamento. Relativamente a este último grupo (número 6), disciplinado nos artigos 157 a 162 da CR-88, cumpre apontar a sua estreita conexão com o disposto no já citado artigo 3º, III, da mesma Carta, que estabelece como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (grifo nosso). Dessa forma, pode-se concluir que a Constituição elegeu e consagrou o sistema de repartição de receitas tributárias e de transferências entre os entes federados como o principal299 instrumento financeiro para alcançar o objetivo fundamental de reduzir as denominadas desigualdades regionais e promover o equilíbrio econômico entre Estados e Municípios (artigo 161, II, da CR-88). Visando garantir a efetividade desses repasses, o artigo 160 da CR-88 estabelece a vedação da retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sendo ressalvada, entretanto, a possibilidade de condicionamento do repasse das receitas “ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias” e “ao cumprimento” das “ações e serviços públicos de saúde”, nos termos do artigo 198 da CR-88. gratificações e vantagens; e (2) pela suspensão do parágrafo 4º do artigo 2º da lei, que determina o cumprimento de, no máximo, 2/3 da carga dos professores para desempenho de atividades em sala de aula. No entanto, continua valendo a jornada de 40 horas semanais de trabalho, prevista no parágrafo 1º do mesmo artigo. A suspensão vale, também, até o julgamento final da ação pelo STF. Ao decidir a ADI 4102 o STF referendou liminar concedida em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro para suspender a vigência do § 1º do art. 309 e do art. 314, caput, e § 5º, bem como da expressão “e garantirá um percentual mínimo de 10% (dez por cento) para a educação especial” contida na parte final do § 2º do art. 314, todos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Entendeu-se que as normas impugnadas elidem a competência do Executivo na elaboração da lei orçamentária, retirando-lhe a iniciativa dessa lei, obrigando-o a destinar dotações orçamentárias a fins pré-estabelecidos e a entidades prédeterminadas. Alguns precedentes citados: ADI 780 MC/RJ (DJU de 16.4.93); ADI 1689/PE (DJU de 19.3.2003); ADI 820/RS (DJE de 29.2.2008). 297 Esse terceiro grupo, relativo às compensações e participações especiais, pode, em sentido diverso ao aqui enquadrado, não ser classificado como transferência obrigatória, tendo em vista a possibilidade de se sustentar a tese de que esses recursos deveriam ser pagos diretamente aos Estados, Distrito Federal e Municípios titulares destes, nos termos do artigo 20, §1º, da CR88, não sendo submetidos, portanto, ao regime jurídico das transferências obrigatórias. Sobre o assunto ver MS 24.312-1/DF, Tribunal Pleno do STF, a ser estudado na Aula 9. 298 Esse dispositivo do ADCT, cujo objetivo é substituir o sistema de compensação e transferência de recursos definidos no artigo 33, da Lei Complementar nº 87/1996, que disciplina o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), não foi até hoje regulamentado, razão pela qual, tendo em vista o disposto no § 3º do mesmo artigo 91 do ADCT (“Enquanto não for editada a lei complementar de que trata o caput, em substituição ao sistema de entrega de recursos nele previsto, permanecerá vigente o sistema de entrega de recursos previsto no artigo 31 e Anexo da Lei Complementar nº 87/96, de 13 de setembro de 1996, com a redação dada pela Lei Complementar nº 115/02, de 26 de dezembro de 2002) continua, portanto, em pleno vigor a sistemática disciplinada no cita- FGV DIREITO RIO 131 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Apesar da CR-88 ter conferido a prerrogativa a cada um dos entes da federação para instituir e exigir os seus próprios tributos, o que pode ensejar o nascimento da relação jurídica-tributária entre o sujeito ativo credor e o sujeito passivo devedor, conforme será estudado na próxima aula, os recursos financeiros decorrentes dessa competência não se afiguram suficientes para garantir a autonomia financeira de todos os Estados e Municípios do país. De fato, a grande maioria dos Municípios e muitos Estados brasileiros são dependentes da relação jurídica-financeira criada pela Constituição entre os entes políticos visando o equilíbrio federativo, prevendo as citadas repartições das receitas tributárias a que alude. Destaque-se que a doutrina estabelece diversas classificações no que concerne ao sistema de repartição das receitas tributárias, objetivando auxiliar a diferenciação entre as diversas espécies e formas de alocação de recursos disciplinadas nos artigos 157 a 162 da CR-88. Segundo Kiyoshi Harada300, a Constituição de 1988 estabeleceu “três modalidades diferentes de participação dos Estados, DF e Municípios na receita tributária da União e dos Estados: (a) participação direta dos Estados, DF e Municípios no produto de arrecadação de imposto de competência impositiva da União; (b) participação no produto de impostos de receita partilhada; (c) participação em fundos”. Outros autores301 qualificam-nas, quanto à forma, em transferências “diretas, ou seja, sem qualquer intermediação, e indiretas, efetuadas por meio de fundos”. José Maurício Conti302 aponta que as transferências obrigatórias podem ser qualificadas como automáticas, “quando estejam previstas no ordenamento jurídico de determinado Estado de forma que devam ser operacionalizadas por ocasião do recebimento dos recursos, independentemente de decisão de autoridades”, ou realizadas por um sistema misto, quando a “transferência se opera em duas etapas, com critérios diversos: há a transferência automática e obrigatória do recurso da unidade a um determinado fundo, que, por sua vez, discricionariamente, repassa os valores recebidos para as outras unidades, seguindo determinações que podem variar conforme circunstâncias”. A transferência e a apropriação dos recursos tributários partilhados podem ocorrer por meio de Fundo ou sem a utilização desse instrumento, o qual tem como requisito necessário a autorização legislativa, consoante o disposto no artigo 167, IX, da CR-88.303 A Constituição, em duas hipóteses, determina a retenção dos valores pelos próprios beneficiários da receita partilhada, consoante se extrai do disposto no inciso I do artigo 157 e do inciso I do artigo 158. Tais dispositivos prevêem que pertencem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem. do artigo 31 da LC nº 87/1996, apesar deste dispositivo fixar o ano de 2006 como termo final para aplicabilidade da sistemática ali determinada. Este é o denominado “seguro receita”, pois visa garantir recursos financeiros aos Estados e Distrito Federal em compensação à desoneração dos produtos semi manufaturados e às aquisições de bens do ativo permanente introduzidos pela LC nº 87/1996, daí sua natureza compensatória. Tanto no sistema previsto no ADCT (§ 1º do artigo 91) como no regime da lei complementar (§ 1º do artigo 31) é estabelecido que 25% da compensação será repassada aos Municípios e 75% aos Estados. 299 Outros instrumentos podem ser identificados no próprio sistema tributário, como, por exemplo, aquele previsto no artigo 151, I da CR-88, o qual estabelece ser possível à União, em atendimento ao princípio da igualdade material, instituir tributo não uniforme em todo o território nacional, que implique distinção ou preferência em relação ao Estado, DF ou ao Município, em detrimento de outro, na hipótese de “incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país”. 300 HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 45. 301 DI PIETRO, Juliano. Repartição de Receitas Tributárias: A repartição do produto da arrecadação. As Transferências Intergovernamentais. In: CONTI, José Maurício (Organizador). Federalismo Fiscal. Barueri: Manole, 2004. p. 71. 302 CONTI, José Mauricio. Federalismo fiscal e fundos de participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 39. 303 Dispõe ainda a Constituição, no artigo 165, §9º, II, que cabe à lei complementar “estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.” FGV DIREITO RIO 132 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Nesses termos, quando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios realizam pagamentos (ex: pagamento aos seus servidores etc.), os quais consubstanciem renda para o destinatário, devem executar, por mandamento constitucional, a retenção do imposto de renda (IR), na hipótese incidente na própria fonte pagadora. Portanto, o ente federado substitui aquele que aufere a renda no que se refere à obrigação de pagar o imposto devido, isto é, os entes públicos subnacionais passam a ser substitutos tributários e, ao mesmo tempo, titulares da arrecadação do IR retido, imposto cuja competência privativa para instituição é da União, nos termos do artigo 153, III, da CR-88. Portanto, não há, conforme já salientado, qualquer sistema ou mecanismo para repassar esses recursos aos entes beneficiários (Estados, Distrito Federal e Municípios) nem desembolso de caixa no montante partilhado por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Dessa forma, a receita tributária é repartida sem que haja o efetivo repasse financeiro dos recursos pelo Tesouro Nacional por intermédio do Banco do Brasil. Assim, quando os Estados, o Distrito Federal e os Municípios efetivam o pagamento mensal aos seus servidores, por exemplo, desembolsam apenas o montante líquido a ser recebido a título de remuneração ou de subsídio, sendo o ente público subnacional responsável, no entanto, pela denominada retenção na fonte. No Estado do Rio de Janeiro, a matéria está disciplinada no Decreto n.º 12.716, de 28 de fevereiro de 1989, no que se refere aos pagamentos realizados fora do âmbito do Poder Executivo, hipótese em que o “produto da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza retido na fonte sobre os rendimentos pagos, a qualquer título, pelos órgãos componentes do Poderes Legislativo e Judiciário, bem como pelas autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro, será recolhido em DARJ, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, na forma a ser indicada pelo Secretário de Estado de Fazenda”. Apesar de não mencionado o Ministério Público estadual, a mesma regra deveria ser aplicada, haja vista a autonomia orçamentária e financeira assegurada pela Constituição ao parquet. Por sua vez, a União, titular da competência tributária para instituir o IR, certamente acompanha e controla os valores envolvidos, tendo em vista a necessidade de contabilização dos montantes pertinentes: (1) em sua execução orçamentária; (2) para a fiscalização das declarações anuais de imposto de renda daqueles destinatários dos pagamentos a ensejar a retenção, efetuados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios; e bem assim, (3) para a efetivação da exclusão dessa parcela do IR retido na fonte dos montantes a serem transferidos a título de Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM) aos programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte (FNO), Nordeste (FNE) e Centro-Oeste (FCO), nos termos do artigo 159, §1º da CR-88. FGV DIREITO RIO 133 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Também pertencem aos Estados e Municípios vinte por cento do produto da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que lhe é atribuída pelo art. 154, I, a denominada competência residual da União, a ser examinada na Aula 11. Existe ainda a previsão da repartição das receitas de dois impostos de competência dos Estados: (a) do imposto incidente sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios (IPVA); e (b) do imposto incidente sobre a circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), disciplinados, respectivamente, nos incisos III e IV do artigo 158 da CR-88. Aludida sistemática, relativamente ao ICMS, está prevista nos artigos 4º e 5 º da Lei Complementar nº 63/1990, que dispõe: “Art. 4º Do produto da arrecadação do imposto de que trata o artigo anterior, 25% (vinte e cinco por cento) serão depositados ou remetidos no momento em que a arrecadação estiver sendo realizada à “conta de participação dos Municípios no Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações”, aberta em estabelecimento oficial de crédito e de que são titulares, conjuntos, todos os Municípios do Estado. § 1º............................ § 2º Os agentes arrecadadores farão os depósitos e remessas a que alude este artigo independentemente de ordem das autoridades superiores, sob pena de responsabilidade pessoal. Art. 5º Até o segundo dia útil de cada semana, o estabelecimento oficial de crédito entregará, a cada Município, mediante crédito em conta individual ou pagamento em dinheiro, à conveniência do beneficiário, a parcela que a este pertencer, do valor dos depósitos ou remessas feitos, na semana imediatamente anterior, na conta a que se refere o artigo anterior.” Dessa forma, o recurso não transita, de fato, pelo caixa do Estado, ente competente para instituir o IPVA e o ICMS. Saliente-se, entretanto, que sob a perspectiva da execução do orçamento, as receitas do ICMS e do IPVA são registradas e contabilizadas de forma integral nos demonstrativos financeiros do Estado, como decorrência e reflexo do já apresentado princípio do orçamento bruto304, ainda que as parcelas pertencentes aos municípios sejam direcionadas pelo agente arrecadador diretamente para a conta dos Municípios. No mesmo sentido, quando da elaboração do orçamento e da estimativa de receita, os montantes relativos ao IPVA e ao ICMS devem constar do orçamento do Estado como receita corrente305 pelo seu valor estimado bruto, sem abatimento da participação dos Municípios. Esses valores, constitucio- 304 O princípio do orçamento bruto está positivado no art. 6º, da Lei 4.320/64, e estabelece que todas as receitas e despesas devem constar de lei orçamentária e de créditos adicionais pelos valores totais, vedadas quaisquer deduções. No entanto, conforme será estudado na Aula 9, Manual de Receita Nacional, de utilização obrigatória pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda.gov.br, estabelece dois procedimentos possíveis: 1) “No caso em que se configure em orçamento apenas o valor pertencente ao ente arrecadador, deverá ser registrado o valor total arrecadado, incluindo os recursos de terceiros. Após isso, estes últimos serão registrados como dedução da receita e será reconhecida uma obrigação para com o “beneficiário” desses valores. A adoção desse procedimento está fundamentada no fato de que não há necessidade de aprovação parlamentar para transferência de recursos de acordo com o que determina a legislação. As transferências constitucionais ou legais constituem valores que não são passíveis de alocação em despesas pelo ente público, desse modo, não há desobediência ao Princípio do Orçamento Bruto, segundo o qual receitas e despesas devem ser incluídas no orçamento em sua totalidade, sem deduções”; e 2) “No caso em que se consigne em orçamento o valor total a ser arrecadado, incluindo os recursos de terceiros, em que o ente seja apenas arrecadador, o recebimento será integralmente computado como receita, sendo efetuada uma despesa quando da entrega ao beneficiário. Exemplo: FPM – Fundo de Participação dos Municípios. Tais observações são aplicadas apenas para recursos que não pertençam ao ente, ou seja, cuja transferência seja intergovernamental, de acordo com a legislação em vigor.” 305 Conforme já salientado, as diversas classificações das receitas e despesas serão apresentadas na aula 10. FGV DIREITO RIO 134 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I nalmente atribuídos, devem ser contabilizados como despesa para o Estado, enquadrada a hipótese como transferência corrente, nos termos do artigo 12 da Lei nº 4.320/1964. Por outro lado, no orçamento municipal devem ser registrados os montantes que, por estimativa, serão repassados pelo Estado no exercício como receita corrente, sendo categorizada economicamente como receita de transferência corrente. Apresentados esses exemplos do Imposto de Renda retido na fonte pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como do IPVA e ICMS, hipóteses em que não há efetivo envio ou fluxo financeiro entre os entes federados, cumpre agora analisar as outras hipóteses de que tratam a citada Seção VI, relativamente à repartição de receitas tributárias. No que se refere ao imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), malgrado tratar-se de imposto da competência privativa da União (art. 153, inciso VI), a Constituição permite a sua fiscalização e cobrança pelos Municípios, que assim optarem, nos termos da lei, desde que não ocorra redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.306 O artigo 158, II, com a sua redação dada pela Emenda Constitucional 42/2003, por sua vez, estabelece pertencer aos Municípios cinqüenta por cento do produto da arrecadação do ITR, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo, no entanto, a totalidade do imposto na hipótese de o Município exercer a opção de que trata o citado art. 153, §4°, inciso III, isto é, passarem a fiscalizar e cobrar o ITR. A Lei nº 11.250, de 27 de dezembro de 2005, disciplina essa opção e dispõe que a União, por meio da Secretaria da Receita Federal, “poderá celebrar convênios com o Distrito Federal e os Municípios que assim optarem, visando a delegar as atribuições de fiscalização, inclusive a de lançamento dos créditos tributários, e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, de que trata o inciso VI do art. 153 da Constituição Federal, sem prejuízo da competência supletiva da Secretaria da Receita Federal”. Tendo em vista as dificuldades práticas para operacionalizar o aludido sistema, foi editado o Decreto nº 6.433, de 15 de abril de 2008, por meio do qual foi “instituído o Comitê Gestor do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural –CGITR com a atribuição de dispor sobre matérias relativas à opção pelos Municípios e pelo Distrito Federal para fins de fiscalização, inclusive a de lançamento de créditos tributários, e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de que trata o inciso III do § 4o do art. 153 da Constituição, bem assim com competência para administrar a operacionalização da opção”. O artigo 13 do Decreto estabelece que “o CGITR definirá o sistema de repasse do total arrecadado, inclusive encargos legais, para o Município optante”, e prevê, ainda, que “enquanto o CGITR não regulamentar o prazo para o repasse” o mesmo “será efetuado nas mesmas condições e datas em que são transferidos decendialmente os recursos do Fundo de Participação dos Municípios, vedada qualquer forma de retenção 306 art. 153, §4°, inciso III, da CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda Constitucional 42/2003. FGV DIREITO RIO 135 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ou condição suspensiva da transferência”. Em 15.04.2008 foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução nº 1, de 13.05.2008 do CGITR, que aprova o Regimento Interno do Comitê Gestor do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural. Portanto, independentemente da opção a que alude o artigo 153, §4°, inciso III, a União deve repassar o montante próprio do produto da arrecadação do ITR, cem por cento no caso de Município optante e cinqüenta por cento na hipótese de ser mantida a fiscalização pela União. Existem, ainda, duas outras hipóteses de repartição de receita nas quais há transferência de recursos financeiros dos cofres da União aos Estados e ao Distrito Federal sem que a Constituição suscite a realização do repasse por meio de Fundos. São aquelas disciplinadas nos incisos II e III do artigo 159 da CR-88. O artigo 159, II, da CR-88, dispõe que a União entregará aos Estados e ao Distrito Federal 10% (dez por cento) do produto da arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados, sem mencionar a instituição de Fundo para tanto. A parcela individual de cada unidade federada não poderá, nos termos do § 2° do artigo 159, ser superior a vinte por cento do montante total a ser repassado pela União a este título. A Lei Complementar n° 61/1989 regulamenta a matéria307 e estabelece que os coeficientes individuais de participação de cada Estado e do Distrito Federal “deverão ser apurados e publicados no Diário Oficial da União pelo Tribunal de Contas da União até o último dia útil do mês de julho de cada ano”, sem mencionar também a constituição de Fundo. A Lei n° 8.016/1990, por sua vez, disciplina que as quotas de participação dos Estados e do Distrito Federal no produto da arrecadação do IPI: “serão creditadas em contas especiais abertas pelas Unidades da Federação, em seus respectivos bancos oficiais ou, na falta destes, em estabelecimentos por elas indicados, nos mesmos prazos de repasse das quotas do Fundo de Participação dos Estados e Municípios”. Não há menção, repise-se, à necessidade de constituição de Fundo para a sua operacionalização. Ressalte-se, ainda, que, analogamente ao que ocorre com o citado sistema de natureza compensatória de que trata o artigo 31, da Lei Complementar n° 87/1996, relacionado ao ICMS, vinte e cinco por cento do que cabe a cada Estado, a título de transferência de IPI-exportação, são destinados aos seus Municípios, observando-se o mesmo critério de rateio adotado para a distribuição da cota parte do ICMS que cabe aos Municípios (25%), consoante os termos do § 3° do artigo 159 combinado com o artigo 158, parágrafo único, incisos I e II da CR-88. Nesse sentido, o artigo 5° da Lei Complementar 61/1989 estabelece que devem ser observados “os mesmos critérios, forma e prazos estabelecidos para o repasse da parcela do ICMS que a Constituição 307 O artigo 4°, da Lei Complementar n° 65/1991, determina que, para o cálculo da participação de cada Estado ou do Distrito Federal nesta repartição da receita tributária: “somente será considerado o valor dos produtos industrializados exportados para o exterior na proporção do ICMS que deixou de ser exigido em razão da nãoincidência prevista no item a do inciso X e da desoneração prevista no item f do inciso XII, ambos do § 2° do art. 155 da Constituição”. FGV DIREITO RIO 136 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Federal assegura às municipalidades”. Complementa a disciplina dessa matéria o artigo 7° da Lei Complementar n° 63/1990, que dispõe in verbis: Art. 7º Dos recursos recebidos na forma do inciso II do art. 159 da Constituição Federal, os Estados entregarão, imediatamente, 25% (vinte e cinco por cento) aos respectivos Municípios, observados os critérios e a forma estabelecidos nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar. Assim sendo, ao realizar o repasse desse recurso aos Estados, o Banco do Brasil já realiza a separação da cota pertinente aos Municípios (25%) e a credita em sua conta, ou seja, o montante bruto da transferência contabilizado no orçamento não é integralmente depositado na conta do tesouro dos Estados, razão pela qual não chega a ter a disponibilidade jurídica ou econômica do recurso, em termos análogos ao que ocorre com a partilha do ICMS e do IPVA. Por fim, saliente-se que a citada Lei nº 11.494/2007, que regulamenta o FUNDEB, estabelece que 20% do que for repassado ao Estado a título de ressarcimento de IPI-exportação deve ser direcionado ao Fundo de Educação estadual. Esta parcela também já é segmentada e depositada em contas separadas pelo próprio Banco do Brasil, que realiza o repasse tanto da parcela do Estado como o percentual do Município no FUNDEB. A outra hipótese de transferência, sem a previsão constitucional de Fundo para a sua efetivação, está disciplinada no inciso III308 do artigo 159 da CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda nº 44, de 2004, o qual se consubstancia no primeiro caso previsto na Constituição de partilha de contribuição. O dispositivo estabelece, in verbis: do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, 29% (vinte e nove por cento) para os Estados e o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que se refere o inciso II, c, do referido parágrafo. O artigo 177, § 4º, prevê a contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo, gás natural e seus derivados, assim como de álcool combustível, a denominada CIDE-Petróleo ou Combustíveis-, sendo estabelecido no citado inciso II, c, do parágrafo, que os recursos arrecadados serão destinados ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. Vale dizer que da parcela pertinente a cada Estado, vinte e cinco por cento é repassado aos seus Municípios, conforme determina o§ 4º do artigo 159 da CR-88. Em observância ao disposto nos artigos 159, III, da CR-88 e 93 do ADCT, a Lei no 10.866/2004 acrescentou os artigos 1o-A e 1o-B à Lei no 308 O artigo 93 do ADCT, dispositivo inserido pela Emenda Constitucional n° 42/2003, estabeleceu que a vigência do disposto no artigo 159, III, e § 4º, que fixa participação dos Estados na arrecadação da CIDE, somente se iniciaria após a edição de lei a que se refere o artigo, o que ocorreu com a edição da Lei no 10.866/2004 . FGV DIREITO RIO 137 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 10.336/2001, que institui a Cide-Petróleo. Os dispositivos adicionados regulamentam a partilha da arrecadação da contribuição e estabelecem que: “os recursos serão distribuídos pela União aos Estados e ao Distrito Federal, trimestralmente, até o 8o (oitavo) dia útil do mês subseqüente ao do encerramento de cada trimestre, mediante crédito em conta vinculada aberta para essa finalidade no Banco do Brasil S.A. ou em outra instituição financeira que venha a ser indicada pelo Poder Executivo federal.” A lei determina ainda que os percentuais individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal, para o rateio dos 29%, “serão calculados pelo Tribunal de Contas da União” de acordo com os critérios fixados no § 2º do artigo 1o-A. Nos mesmos termos do IPI– exportação, ressalvada a inexistência de qualquer vinculação ao FUNDEB, o Banco do Brasil, agente financeiro repassador dos recursos, já segmenta o montante transferido em duas parcelas, ou seja, cota Estado e cota Municípios. Assim, o valor bruto total não é disponibilizado em conta de titularidade do Estado, havendo, entretanto, nos termos já repisados a sua contabilização orçamentária pelo seu montante bruto. Conforme já enfatizado, a característica comum entre essas modalidades de repartição de receitas tributárias, analisadas até o momento, refere-se ao fato de que a Constituição não menciona a necessidade de constituição de Fundo para a respectiva operacionalização, isto é, o artigo 157, I e II; o artigo 158, I, II, III, IV, e o artigo 159, II e III, prevêem a partilha de receitas tributárias e a sua apropriação pelos entes beneficiados sem a necessidade de sua realização por meio de Fundo. Em sentido diverso, as hipóteses de repartição dos quarenta e oito por cento das receitas tributárias do produto da arrecadação dos impostos sobre (1) renda e proventos de qualquer natureza e (2) sobre produtos industrializados, de que trata o artigo 159, I, da CR-88, pressupõe a operacionalização da partilha e a transferência dos recursos financeiros por meio de Fundos. Derivado do latim fundus309 (fundo, base, bens de raiz), possui na terminologia jurídica várias significações. No plural, fundos, ainda segundo De Plácido Silva, é “aplicado como haveres, recursos financeiros, de que se podem dispor de momento ou postos para determinado fim, feita abstração a outras espécie de bens. Neste sentido, temos, os fundos disponíveis ou os fundos de reservas sociais.” A doutrina diverge quanto à natureza jurídica dos fundos, havendo autores que entendem não possuir personalidade jurídica, no entanto, nos mesmos termos do condomínio possuem capacidade processual. Alguns fundos, como é o caso do FUNDEB, por determinação constitucional, possuem natureza meramente contábil. No contexto constitucional brasileiro da repartição de receita, sustenta Maurício Conti310 que “não há porque atribuir personalidade jurídica – ou capacidade postulacional, ou processual – a parte de uma fórmula matemática de transferência intergovernamental despida de qualquer grau de autonomia”. O artigo 165, §9°, II, da CR-88 309 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002.Forense. Rio de Janeiro, 2002. p. 374. 310 Conti. Op.Cit.p.78. FGV DIREITO RIO 138 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I prevê que cabe à lei complementar “estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos”. Por sua vez, a Lei 4.320/64, dispõe no seu artigo 71 que “Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”. O artigo 159, I, da CR-88, com a sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007, dispõe que: “Art. 159. A União entregará: I – do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma: a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal; b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios; c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer; d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano;” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007) Objetivando delinear as regras essenciais para a operacionalização desses dispositivos, o parágrafo único do artigo 161 da CR-88 confere competência ao Tribunal de Contas da União (TCU) para efetuar o cálculo das quotas referentes aos fundos previstos nas alíneas a, b e c do inciso I do transcrito artigo 159. Nesse contexto, visando a promover o equilíbrio sócio-econômico entre os Estados e entre os Municípios, a Constituição estabelece, ainda, no inciso II, do mesmo artigo 161, que cabe à lei complementar fixar normas e critérios de rateio entre as diversas unidades federadas subnacionais dos aludidos fundos: Fundo de Participação dos Municípios – FPM, do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE, do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte – FNO, do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste – FNE e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste – FCO. Com fundamento nos supracitados dispositivos constitucionais, e com base no inciso VI, da Lei nº 8.443 de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do FGV DIREITO RIO 139 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Tribunal de Contas da União), no art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 7.827 de 27 de setembro de 1989, nos artigos 88 a 92 da Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), com as alterações introduzidas pelo Ato Complementar nº 35 de 28 de fevereiro de 1967, e pelo Decreto-lei nº 1.881 de 27 de agosto de 1981; e nas Leis Complementares nºs 62 de 28 de dezembro de 1989 e 91 de 22 de dezembro de 1997, que fixam normas e critérios de rateio dos Fundos, o Tribunal de Contas da União (TCU) publica todos os anos os coeficientes destinados ao cálculo das quotas referentes ao FPE311, FPM, FNO, FNE e FCO de cada unidade federada. Ocorre, entretanto, que o artigo 2º da mencionada Lei Complementar nº 62, de 28 de dezembro de 1989, o qual especifica os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 23/02/2010 (ADI 875, 1987, 2727 e 3243), tendo sido mantida a sua aplicabilidade, no entanto, até 31/12/2012. De acordo com a decisão do STF, partir dessa data deverá entrar em vigor uma nova lei complementar que discipline a matéria. A questão está assim noticiada no sítio do STF312: O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de todo o artigo 2º da Lei Complementar 62/89, que define os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do DF (FPE). Ele só terá efeitos até 31 de dezembro de 2012. A partir dessa data, deverá entrar em vigor uma nova norma sobre o mesmo assunto. A Lei Complementar 62/89 foi editada em 1989 em obediência ao artigo 159 da Constituição sobre a repartição das receitas tributárias, mas deveria ter vigorado apenas nos exercícios fiscais de 1990 e 1992. Após esse ano, a previsão era de que o censo do IBGE reorientaria a distribuição, mas isso nunca foi feito e a Lei Complementar continua em vigor com os mesmos coeficientes de rateio vinte anos depois. A decisão do Supremo foi provocada por quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizadas pelo Rio Grande do Sul (ADI 875), Mato Grosso e Goiás (ADI 1987), Mato Grosso (ADI 3243) e Mato Grosso do Sul (ADI 2727). O fundamento das ações é o de que a lei complementar, na época da edição, teve por base o contexto socioeconômico do Brasil daquele tempo, que não é necessariamente o mesmo hoje. Além disso, os coeficientes teriam sido estabelecidos de maneira arbitrária por acordos políticos costurados à época. Os ministros do STF demonstraram preocupação com o tempo que levará para que o Congresso Nacional criar nova lei de distribuição do Fundo de Participação dos Estados e do DF, uma vez que a atividade legislativa fica prejudicada por ser este um ano de eleições. Por isso, a Corte estabeleceu o ano fiscal de 2012 como prazo máximo para a vigência do artigo 2º da lei complementar 62/89. 311 Saliente-se, entretanto, conforme noticiado na Revista do TCU, ANO 35, NÚMERO 109, MAIO/AGOSTO 2007, pg. 113. Disponível em: <http:// www2.tcu.gov.br/portal>. Acesso em 18.05.2008, que: “muitos municípios não se conformam com o cálculo efetivado pelo tribunal e recorrem ao Poder Judiciário para o incremento de seus coeficientes. São ajuizadas ações ordinárias com pedido de tutela antecipada inaudita altera pars com esse objetivo. O deferimento dessas tutelas antecipatórias acarreta a alteração do coeficiente do município e repercute no valor a ser percebido por outros municípios do interior do mesmo Estado. Quando essa decisão interlocutória do juízo singular lhes é desfavorável, há a interposição de agravo de instrumento perante o Tribunal Regional Federal respectivo, com pedido liminar de efeito suspensivo, o denominado efeito suspensivo ativo. Deferida essa liminar, o resultado é análogo, ou seja, é alterado o coeficiente de FPM do município. Essas decisões, em sede de cognição sumária, representam transtorno ao TCU e ao Banco do Brasil, responsável pela entrega do montante devido a cada município. Com o intuito de preservar a competência constitucional do TCU de fixar os coeficientes de FPM, a Consultoria Jurídica do órgão, alegando grave ofensa à ordem econômica e jurídica (arts. 4º da Lei 8.437/1992 e 25 da Lei 8.038/1990) ajuizou, diretamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), suspensão de liminar contra decisão de desembargador federal da 4ª Região, que, em agravo de instrumento, deferira o efeito suspensivo ativo. O vice-presidente (STJ), no exercício da Presidência, ministro Francisco Peçanha Martins, em 11/6/2007, acolheu a pretensão do TCU, ou seja, deferiu o pedido de suspensão da liminar. Dessa forma, o coeficiente de FPM do município interessado retorna ao valor fixado pela Decisão Normativa/ TCU nº 79/2006.” 312 Disponível no sítio:<www.stf.jus. br>. Pesquisa realizada em 29/02/2010. FGV DIREITO RIO 140 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O julgamento foi unânime apenas em relação à ADI 1987, que na verdade é uma Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão, no tocante à declaração de que há um vácuo de lei complementar a partir do ano de 1992. Nas demais ações, o ministro Marco Aurélio foi vencido pela maioria, que julgou as ações de inconstitucionalidade procedentes. Relator O relator das ADIs, ministro Gilmar Mendes votou pela procedência das ações. Segundo ele, tudo indica que a lei complementar foi editada num contexto de circunstâncias muito especiais, “marcado por um consenso político premido pelo princípio da necessidade”. O ministro lembrou que naquela época era preciso rever os critérios anteriores não se sabendo quais seriam os mais adequados para um prazo médio de duração. Como haveria o censo de 1990, a lei foi produzida em 1989 tendo sido estabelecido o prazo de dois anos para sua aplicação. Seria feita, posteriormente, a revisão do sistema. Ele ressaltou que os critérios de rateio dos fundos de participação deveriam promover o equilíbrio socioeconômico entre estados e municípios. “É evidente, portanto, que o FPE tem esse caráter nitidamente redistributivo, ou seja, a transferência de um recurso pesa, proporcionalmente mais nas regiões e estados menos desenvolvidos”, afirmou o relator. De acordo com ele, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes, “de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado”. Histórico A ADI 2727 foi ajuizada pelo governo de Mato Grosso do Sul contra os parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 2º da Lei Complementar Federal nº 62/98 e parte da Decisão Normativa nº 44/01 do Tribunal de Contas da União. Os dispositivos contestados da Lei Complementar definem a forma de distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE). O parágrafo 1º define os coeficientes individuais de participação dos estados e do DF; o 2º diz que os critérios de rateio em vigor a partir de 1992 serão fixados em lei específica e o 3º prevê que, até que sejam definidos os critérios do parágrafo anterior, permanecerão em vigor os fixados nesta Lei Complementar. O ato normativo do TCU é contestado na parte em que aprova e fixa os coeficientes a serem utilizados no cálculo das quotas para distribuição dos recursos do FPE. Conforme a ação, a aplicação dos coeficientes da Lei impõe perdas financeiras ao estado no repasse dos recursos do FPE. Afirma que há prejuízo na distribuição da receita aos programas vinculados, ameaça de que o estado fique “sem argumentos” contra pedidos de Intervenção Federal pelo não pagamento de precatórios e risco de atraso no pagamento de vencimentos aos servidores. FGV DIREITO RIO 141 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Já ADI 3243 foi proposta pelo governo de Mato Grosso contra a mesma lei complementar, sob alegação de que o fundo não cumpre sua função social de promover o equilíbrio sócio-econômico entre as unidades da federação. De acordo com o estado, a lei contraria o artigo 159, inciso II, da Constituição Federal, que determina a distribuição da arrecadação sobre produtos industrializados aos estados e ao DF, bem como o artigo 161, inciso II. Esse dispositivo atribui à lei complementar o estabelecimento de normas sobre a entrega dos recursos e o critério de rateio utilizado pela União. Na ação, os procuradores do estado ressaltam que os índices de participação foram fixados arbitrariamente para o exercício de 1990 e se repetiram no período de 1991 a 1995, “em prejuízo de várias unidades da Federação”. O governo do Rio Grande do Sul, na ADI 875, também questionou o artigo 2º da Lei Complementar Federal 62/89, ao sustentar ofensa ao princípio da igualdade assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 5º. O estado ressalta que a ideia de nacionalidade não convive com o fato de que uma ou outra região seja menos beneficiada que outra. Sustenta, ainda, o desconhecimento do destino a ser dado aos referidos recursos e, em consequência, frustrando o objetivo dessas transferências. Por fim, o quarto processo (ADI 1987) refere-se a uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão ajuizada pelos estados de Mato Grosso e de Goiás contra a Lei Complementar 62/89, por entenderem que tal norma não proporcionou critérios de rateio justos e objetivos a fim de efetivar a promoção do equilíbrio sócio-econômico entre os estado da Federação. Cabe ressaltar, ainda quanto ao FPE e FPM, que nos termos do artigo 4° da Lei Complementar n° 62/1989, a União deve creditar às “contas individuais dos Estados e Municípios, dos recursos do Fundo de Participação nos seguintes prazos máximos: I – recursos arrecadados do primeiro ao décimo dia de cada mês: até o vigésimo dia; II – recursos arrecadados do décimo primeiro ao vigésimo dia de cada mês: até o trigésimo dia; III – recursos arrecadados do vigésimo primeiro dia ao final de cada mês: até o décimo dia do mês subseqüente”. Assim, são mensais os repasses do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, de que tratam as alíneas a e b do inciso I, no montante de vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e de vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios. A parcela de um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, disciplinada na alínea d, do inciso I, do art. 159, da CR-88, dispositivo acrescentado pela Emenda Constitucional 55/2007, por sua vez, será entregue uma vez ao ano no primeiro decêndio do mês de dezembro sem que haja qualquer vinculação constitucional em relação à sua utilização. FGV DIREITO RIO 142 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I De fato, até o advento da Emenda Constitucional n° 53/2006, que instituiu o já citado FUNDEB, não havia previsão constitucional de qualquer contrapartida, vinculação, destinação específica ou finalidade pré-determinada para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios relativamente aos recursos repassados no âmbito do FPE e FPM, razão pela qual Ezequiel Antonio Ribeiro Balthazar313 apontava que: “esses recursos podem ser utilizados pelas unidades beneficiárias com quaisquer fins de interesse público, servem para compor suas receitas e não possuem destinação específica”. Entretanto, com a inclusão do inciso II ao artigo 60 do ADCT, ficam vinculados à composição financeira do FUNDEB Estadual 20% dos recursos do: (1) ICMS, IPVA e ITD que cabe aos Estados e do Distrito Federal; (2) da participação do Estado no imposto que a União vier a instituir no exercício da sua competência residual (art. 154, I); (3) da parcela que pertence aos Municípios no ITR, no IPVA e no ICMS; e (4) os recursos das “alíneas a e b do inciso I e o inciso II do caput do art. 159”, isto é, a parcela dos Estados e dos Municípios relativamente ao IPI proporcional ao valor das suas exportações bem como das respectivas parcelas no FPE e no FPM, entregues mensalmente. De forma diversa, um por cento do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, que compõe o FPM de que trata a alínea d, dispositivo acrescentado pela Emenda Constitucional 55/2007 ao inciso I do artigo 159, a ser entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano, não é destinado à composição financeira do FUNDEB, diferentemente da parte do FPM de que trata a alínea b do inciso I. Por fim, a alínea c do inciso I do art. 159 da CR-88 estabelece que do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados três por cento serão aplicados em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à ele na forma que a lei estabelecer. A Lei nº 7.827/1989 cria o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte – FNO, o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste – FNE e o Fundo Constitucional de Financiamento do CentroOeste – FCO e regulamenta a aplicação dos citados três por cento. Desse montante, 0,6% são para o FNO; 1,8% para o FNE e 0,6% para o FCO. A norma federal disciplina ainda no artigo 7º que a: “Art. 7o A Secretaria do Tesouro Nacional liberará ao Ministério da Integração Nacional, nas mesmas datas e, no que couber, segundo a mesma sistemática adotada na transferência dos recursos dos Fundos de Participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, os valores destinados aos Fundos Consti- 313 BALTHAZAR, Ezequiel Antonio Ribeiro. Fundos Constitucionais como Instrumentos de Redução das Desigualdades Regionais na Federação In: CONTI, José Maurício (Organizador). Federalismo Fiscal. Barueri: Manole, 2004. p. 118. FGV DIREITO RIO 143 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tucionais de Financiamento do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, cabendo ao Ministério da Integração Nacional, observada essa mesma sistemática, repassar os recursos diretamente em favor das instituições federais de caráter regional e do Banco do Brasil S.A. (Redação dada pela Lei nº 10.177, de 12.1.2001) Parágrafo único. O Ministério da Fazenda informará, mensalmente, ao Ministério da Integração Nacional, às respectivas superintendências regionais de desenvolvimento e aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento a soma da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e do imposto sobre produtos industrializados, o valor das liberações efetuadas para cada Fundo, bem como a previsão de datas e valores das 3 (três) liberações imediatamente subseqüentes.” (Redação dada pela Lei Complementar nº 125, de 2007) Nesse contexto, é possível constatar a complexidade do sistema brasileiro de transferências intergovernamentais, o qual visa à redução das denominadas desigualdades regionais e a promoção do equilíbrio econômico entre Estados e Municípios (artigo 3º III c/c 161, II, da CR-88). Outrossim, a compreensão das políticas fiscais adotadas desde 1988 e das relações internas do Sistema Tributário Nacional, no contexto do federalismo fiscal brasileiro, pressupõe o correto entendimento do sistema de partilha de receitas tributárias e de transferência. De fato, após a análise do sistema de repartição dos tributos, verifica-se que as contribuições especiais ou parafiscais, à exceção da citada CIDE – Combustíveis, não são divididas entre os Estados e Municípios, razão pela qual a União passou a utilizar as mesmas como instrumento de política arrecadatória314, ao contrário do IPI e do IR, que se constituíram, em algumas circunstâncias, simples instrumentos para amortizar o impacto de renúncia de receita federal das receitas não repartidas.315 No devir dos fatos, iniciou-se forte movimento no sentido do retorno à centralização do modelo de tributação do país, o que consubstancia grave contradição do nosso atual regime federativo vis a vi o sistema idealizado e estabelecido na Carta Magna de 1988. Nesse sentido, a análise dos números da arrecadação e da participação relativa dos diversos entes federados no “bolo tributário” reflete o substancial aumento da receita disponível nas mãos da União como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), apesar do grande esforço do Constituinte originário em descentralizar as finanças públicas do país. Fato que ilustra muito bem a complexidade e correlação entre os temas pode ser constado no final do ano de 2008, quando a União e diversos Estados, considerando o impacto da crise internacional no sentido de reduzir a atividade econômica e, conseqüentemente, as principais bases de arrecadação (faturamento, renda, circulação de mercadorias, industrialização, prestação de serviços etc) anunciaram pacotes de redução de impostos visando fomen- 314 Alterando, dessa forma, o seu critério de validação constitucional, que é a “finalidade” ensejadora de sua criação. v. GRECCO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo: Ed Dialética, 2000. 315 Exemplo dessa política, que afronta o pacto federativo estabelecido na CR88, é a concessão de crédito presumido do IPI para ressarcir PIS, PASEP e COFINS contidos nos produtos exportados, nos termos da Lei nº 9.363/96 e da Lei nº 10.276/01, o que reduz a parcela das transferências constitucionais destinadas ao FPE, FPM, Fundos Regionais de Desenvolvimento –FNO, FNE e FCO e o repasse do IPI-Exportação. FGV DIREITO RIO 144 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tar ou pelo menos suavizar a queda do ritmo de crescimento. Conforme noticia do Jornal Valor (página A-2 do dia 18.11.2008) “boa notícia para as empresas, os pacotes de benefícios fiscais anunciados na semana passada pela União e por alguns Estados, como Minas Gerais, são uma dor de cabeça para os prefeitos. A prorrogação do prazo para recolhimento do IPI (federal) e do ICMS (estadual) terá impacto negativo sobre o caixa de dezembro dos municípios, dificultando o pagamento das despesas, alegam os prefeitos. Em fim de mandato, muitos governantes municipais temem não conseguir fechar as contas em cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal. (...) Prefeito de Mariana e presidente da Associação Mineira de Municípios (AMM) Celso Cotta (PMDB), definiu como ‘temerárias’ as medidas anunciadas a poucos dias do encerramento da gestão dos atuais prefeitos. Cotta informou que a entidade já encaminhou carta ao Ministério da Fazenda e à Secretaria Estadual da Fazenda de Minas Gerais pleiteando mudanças nos prazos dos benefícios concedidos às empresas. A entidade quer que os benefícios valham a partir de janeiro, de modo a não comprometer o fechamento das contas municipais em dezembro”. Já o presidente da Confederação Nacional dos Municípios comentou: “É sempre assim, União e Estados fazem favor com chapéu alheio”. A combinação desses elementos enseja e fomenta os conhecidos conflitos federativos não apenas no plano vertical (União-Estados, União-Municípios e Estados-Municípios), mas também no plano horizontal (Estado-Estado e Município-Município), tendo em vista a competição por maior espaço na busca pelos investimentos privados, da qual decorre,em muitas circunstâncias, uma verdadeira guerra fiscal predatória que repercute nas relações privadas e, especialmente, naquelas de natureza concorrencial. FGV DIREITO RIO 145 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 9 – A RECEITA PÚBLICA NO ÂMBITO DA TEORIA GERAL DOS INGRESSOS PÚBLICOS. ESTUDO DE CASO316 Leia a seguinte notícia veiculada no sítio do Globo Esporte.com 19/03/10 – 19h53 – Atualizado em 19/03/10 – 19h55 – Obina fala sobre apreensão de seu carro: ‘Eu estava com pressa’– Atacante do Atlético-MG evita explicação sobre falta de pagamento do IPVA e diz que regularização do veículo está em andamento. Marcelo Machado Belo Horizonte. O atacante Obina preferiu não entrar em detalhes sobre o episódio da apreensão de sua picape pela polícia mineira. Em entrevista coletiva nesta sexta-feira, na Cidade do Galo, ele disse que a regularização do automóvel já está sendo providenciada. – Eu estava com pressa, mas não tem nenhum problema. Meu amigo já está olhando isso, e logo, logo o carro estará comigo novamente – limitou-se a dizer Obina. A Hilux do atacante foi apreendida na noite de quinta-feira, no Aeroporto de Confins, no qual a delegação atleticana desembarcou após retornar de ChapecóSC, onde a equipe perdeu na última quarta-feira por 1 a 0 para o Chapecoense, pela Copa do Brasil. O veículo de Obina estava parado em fila dupla e em local proibido. Abordado por um policial, o atacante não apresentou os documentos de 2009 e 2010, mostrando apenas o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) de 2008. Dentro do procedimento previsto na legislação do trânsito, a polícia apreendeu a picape do atacante, que foi rebocada e levada ao pátio da prefeitura de Pedro Leopoldo, Grande Belo Horizonte. O carro só poderá ser retirado do local após o pagamento das multas e a regularização dos documentos. Estacionar em local proibido gera uma multa de R$ 191,54 e perda de sete pontos na carteira. Já a documentação atrasada resulta R$ 53,20 de multa, além de três pontos na carteira. Suponha, ainda, que ao estacionar o veículo em área pública o proprietário e condutor do carro tenha errado a manobra e destruído a placa de sinalização de trânsito existente ao lado da vaga administrada pelo Município, razão pela qual teria sido posteriormente acionado por danos materiais em função da destruição do bem público municipal. Imagine, ainda, que antes de chegar ao local houvesse ultrapassado um sinal vermelho, motivo pelo qual tivesse sido multado pelo servidor público municipal responsável 316 Notícia obtida no sítio: http:// globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Times/Atletico_MG, acesso em 19/03/2010. FGV DIREITO RIO 146 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I pela fiscalização de trânsito no local. Para resolver todos esses problemas o proprietário resolveu fazer uma retirada no banco e efetuar o pagamento de todo o montante devido. Essas situações têm algo em comum? Todas elas representam receitas públicas? De que espécies e de titularidade de que ente político? Justifique! 9.1 INTRODUÇÃO, OBJETIVOS E OBJETO DA AULA Nas aulas anteriores foram examinados os aspectos gerais da matéria, especificado o conceito de atividade financeira do Estado, assim como o que se entende por necessidades públicas, tendo sido, ainda, abordadas as linhas gerais da evolução histórica dos tributos e das Finanças Públicas, delineado os contornos essenciais da distribuição de funções entre os Poderes e bem assim e os fundamentos do Federalismo Fiscal, das Despesas e do seu Controle, do Financiamento dos Gastos em geral, do Crédito e da Dívida Pública. A aula de hoje, dando continuidade ao que já foi apresentado na Aula 6, visa aprofundar os estudos quanto às diferentes formas de financiamento dos gastos públicos, merecendo destaque aquelas de natureza tributária. As receitas públicas em geral, sem as quais não seria possível a realização das despesas e a efetivação da atividade financeira do Estado, podem ser analisadas e classificadas por variados critérios e perspectivas, destacando-se as formuladas pela doutrina jurídica, as adotadas em função da visão econômica ou contábil do fenômeno bem como aquelas definidas pela lei e pelos atos administrativos das autoridades gestoras do orçamento e das finanças públicas, isto é, do ponto de vista normativo. A relevância dessas diferentes classificações decorre da necessidade de se identificar e classificar as entradas de recursos nos cofres públicos em suas múltiplas particularidades, pois somente assim é possível compreender os variados e diferentes impactos de cada espécie de receita nas contas públicas, sob o ponto de vista: (1) patrimonial; (2) financeiro e (3) orçamentário. Ainda, as diversas classificações a serem estudadas permitirão identificar o regime jurídico a ser aplicado a cada tipo de receita, isto é, se uma espécie específica deve ser disciplinada pelas normas tributárias, de natureza eminentemente pública, ou pelas normas cíveis, de natureza privada, o que tem relevância determinante para definir, por exemplo, os prazos para ajuizamento de ações de cobrança, a natureza do ato317 adequado para aumentar o seu valor etc. Nesse sentido, importante destacar a clássica diferenciação entre (1) a entrada, o ingresso e a receita pública, bem como as diferentes classificações de receita pública oferecidas pela doutrina jurídica e econômica, destacando-se entre elas a distinção entre (2) receita pública ordinária e extraordinária; e (3) receita pública originária e derivada. Será ainda objeto de análise a clas- 317 Dependendo do regime jurídico aplicável pode ser necessária a edição de lei em caráter formal, ato com força de lei ou simplesmente ato administrativo editado pela autoridade competente da Administração Pública. FGV DIREITO RIO 147 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I sificação econômica de receita pública adotada pela Lei nº 4.320/64318, (4) receita corrente e de capital, bem como as definições do Manual de Receita Nacional, de utilização obrigatória pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, aprovado pela Portaria Conjunta n° 3, de 14 de Outubro de 2008, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, disponibilizada no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda. gov.br. Preliminarmente, no entanto, cumpre destacar que a previsão de receita319 exerce papel fundamental na fixação320 das despesas públicas, conforme analisado na aula sobre o orçamento. No mesmo sentido, a realização efetiva da receita determina o ritmo da realização dos gastos e da execução da programação financeira, razão pela qual a receita pública possui, também, papel central na consecução dos demais componentes da atividade financeira do Estado durante a denominada execução orçamentária. De fato, a sua conexão com o orçamento se dá pela via da despesa, uma vez que o exercício da competência tributária e a prerrogativa de arrecadar as receitas não tributárias independem de autorização anual orçamentária, conforme já estudado na Aula 2. 9.2 AS ENTRADAS, OS INGRESSOS E A RECEITA PÚBLICA A doutrina diverge quanto aos conceitos de entrada, ingresso e receita pública, conforme aponta Regis Fernandes de Oliveira321: Todo e qualquer dinheiro que ingressa nos cofres públicos, seja a que título for, denomina-se entrada. Alguns autores falam de ingresso (entrada provisória), distinguindo-o da entrada. Utilizaremos as expressões como sinônimas. Nem todo ingresso, todavia, constitui receita. Há entradas que ingressam provisoriamente nos cofres públicos podendo permanecer ou não. Destinam-se a ser devolvidas. Daí as entradas provisórias. A relevância do tema é centrada na possibilidade de enquadramento dos denominados ingressos de caráter devolutivo como receitas públicas, isto é, se aquelas entradas não definitivas de recursos nos cofres do Tesouro (para serem posteriormente restituídas, também chamadas de movimentos de fundos ou de caixa) devem ser – ou não – qualificadas como receitas. Neste rol de entradas provisórias são incluídos, por exemplo, os depósitos322, as cauções323, os empréstimos compulsórios324 e os empréstimos voluntários contraídos pelo Estado em geral. O professor Ricardo Lobo Torres325, na esteira de Aliomar Baleeiro326, propõe a diferenciação entre o ingresso e a receita pública, nos seguintes termos: 318 Essa lei estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal e continua até hoje em vigor, isto é, foi recepcionada pela Constituição da República de 1988. 319 Considerando, por exemplo, que a crise econômica mundial iniciada nos Estados Unidos já apresentou impacto sobre a atividade econômica e a arrecadação da União no final do próprio exercício de 2008, tendo sido constatado que em novembro de 2008, pela primeira vez após 4 anos, houve queda da arrecadação da União em relação ao exercício de 2007, conforme noticiado pelo Jornal Valor da sexta-feira e fim de semana, 12, 13 e 14 de dezembro de 2008, A10, “a Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO), aprovou ontem, a revisão do relatório de arrecadação do projeto de Orçamento da União para 2009 (...). Fica referendada, assim, a redução de R$ 15,34 bilhões no volume esperado de receitas primárias brutas no âmbito do orçamento fiscal e da seguridade social (que exclui empresas estatais não-dependentes do Tesouro Nacional). Em conseqüência disso, cerca de R$ 10 bilhões do volume que iria para despesa de custeio e investimento dos órgãos federais terão que ser cortados pelo relator geral (...)”. 320 Nesse sentido, importante destacar, conforme noticiado no site do STF que o “Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu a liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3949 proposta pelo partido Democratas (DEM). Na ADI, foi questionado o artigo 100, da Lei 11.514/07, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2008. O DEM afirmava que o artigo 100 da Lei 11.514/07 concede às instâncias responsáveis pela elaboração da lei orçamentária o poder de estimar receita que não tem base na legislação e, sobretudo, na própria Constituição Federal. De acordo com a ação, o artigo atacado autoriza o Executivo e o Legislativo, na elaboração do orçamento de 2008, considerarem “os efeitos das propostas de alterações na legislação tributária e das contribuições, inclusive quando se tratar de desvinculação de receitas, que sejam objeto de propostas de emenda constitucional, de projeto de lei ou de medida provisória que esteja em tramitação no Congresso Nacional”. Para o partido político, essa autorização, com base em “esperança no futuro da legislação”, constitui abuso, pois a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o projeto de lei orçamentária devem observar necessariamente a ordem constitucional vigente, “e não pressupor uma Constituição futura, hipotética e inexistente”. A controvérsia FGV DIREITO RIO 148 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Assim sendo, o conceito de receita, embora fundamentalmente baseado no de ingresso, dela se extrema, pois o ingresso corresponde também à entrada de dinheiro que ulteriormente será restituído, como ocorre no empréstimo e nos depósitos. (grifo nosso) Os eminentes autores, portanto, não qualificam as entradas ou ingressos provisórios como receitas públicas. Ocorre, entretanto, que a Lei n° 4.320/64 não incorporou a conceituação dessa doutrina, ao estabelecer em seus artigos 3º, 11, §2°, e 57 a inclusão de diversas receitas que não ingressam nos cofres públicos em caráter definitivo: Art. 3º A Lei de Orçamentos compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei. ............... Art.11............... §2° São Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos da constituição de dívidas; (...). ............... Art. 57. Ressalvado o disposto no parágrafo único do artigo 3° desta lei serão classificadas como receita orçamentária, sob as rubricas próprias, todas as receitas arrecadadas, inclusive as provenientes de operações de crédito, ainda que não previstas no Orçamento. Na mesma linha, define o 12, §2°, da Lei Complementar n° 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, dispositivo inserido no Capítulo III – Da Receita Pública, que “o montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.”. Infere-se desses dispositivos que as normas federais incluem no conceito de receita pública, também os ingressos de recursos financeiros decorrentes das operações de crédito327, dentre as quais se destacam os empréstimos públicos voluntários. Ou seja, a lei federal que disciplina as normas gerais de Direito Financeiro em âmbito nacional não adotou a conceituação da doutrina financista supramencionada, na medida em que não fixou como requisito necessário à configuração da receita pública a entrada de dinheiro sem que houvesse a respectiva contrapartida no passivo ou o acréscimo patrimonial do ente beneficiado. De fato, conforme assevera o professor Kioshi Harada328, apesar de não ter definido expressamente o conceito de receita pública, o exame do artigo 11 e os seus parágrafos da Lei n° 4.320/64, “permite identificá-la como tal todo ingresso de recursos financeiros ao tesouro público, com ou sem contrapartida no passivo e independentemente de aumento patrimonial” (grifo nosso). Na mesma linha estabelece o mencionado Manual de Receita Nacional que: existia pois a então vigente CPMF possuía prazo de vigência somente até 31 de dezembro de 2007, razão pela qual a oposição entendia não ser possível a inclusão da estimativa de receita da contribuição no projeto da LOA. De fato, a contribuição não prorrogada. 321 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 101. Nos mesmos termos do eminente autor, ingresso e entrada serão aqui utilizados como sinônimos. 322 O depósito do montante integral do crédito tributário, que permite a discussão administrativa ou judicial quanto à legitimidade da cobrança do tributo, é uma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, matéria a ser estudada nos cursos de Direito Tributário e Finanças Públicas II e III. 323 A Lei 8.666/93, que disciplina as licitações e os contratos públicos, em atendimento ao disposto no artigo 37, XXI, da CR-88, prevê a possibilidade de a autoridade administrativa exigir do contratado em processo licitatório a prestação de garantia, como a caução, o seguro-garantia e a fiança bancária (art. 56). A caução em dinheiro (alternativamente também pode ser prestada por título da dívida pública) é garantia que enseja entrada ou ingresso nos cofres públicos, mas a quantia deve ser “liberada ou restituída após a execução do contrato”, “atualizada monetariamente” (art. 56, §4°, da Lei 8.666/93), ou seja, adimplido o contrato o valor caucionado é devolvido ao proponente-adjudicatário e registrado como despesa de caráter extra-orçamentária (Manual de Despesa Nacional – item 4.4.2). Em sentido contrário, se forem inadimplidos os termos do contrato pode ser aplicada sanção com a decretação da perda do depósito, momento no qual haverá receita pública definitiva. 324 Os empréstimos compulsórios, previstos no artigo 148 da CR-88, são qualificados como dívidas forçadas, em contraposição às dívidas voluntárias contraídas pelo Poder Público, já que decorrem de obrigação legal, e como tal foram objeto de exame na Aula 6. Não são receitas definitivas tendo em vista que seus valores devem ser restituídos. Os empréstimos compulsórios também são classificados como tributos pelo Supremo Tribunal Federal (RE 138.284), matéria que será objeto de exame detalhado no curso de Direito Tributário e Finanças Públicas II. 325 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004. p. 183. 326 BALEEIRO, Alimoar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª. ed. Rio de FGV DIREITO RIO 149 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A Lei nº 9.703, de 17 de novembro de 1998 estabelece que os depósitos judiciais e extrajudiciais, em dinheiro, de valores referentes a tributos e contribuições federais, inclusive seus acessórios serão efetuados na Caixa Econômica Federal e repassados para a Conta Única do Tesouro Nacional, independentemente de qualquer formalidade, no mesmo prazo fixado para recolhimento dos tributos e das contribuições federais. Após o encerramento da lide ou do processo litigioso, o valor do depósito será devolvido ao depositante ou transformado em pagamento definitivo do tributo ou contribuição. De forma análoga, a Lei nº 10.819, de 16 de dezembro de 2003, estabelece, no âmbito dos municípios, que os depósitos judiciais, em dinheiro, referentes a tributos e seus acessórios, de competência dos Municípios, inclusive os inscritos em dívida ativa, serão efetuados, a partir da data da publicação dessa Lei, em instituição financeira oficial da União ou do Estado a que pertença o Município, mediante a utilização de instrumento que identifique sua natureza tributária. A citada lei também dispõe que os municípios poderão instituir fundo de reserva, destinado a garantir a restituição da parcela dos depósitos que lhes seja repassada. Ao município que instituir o fundo de reserva será repassada pela instituição financeira a parcela correspondente a setenta por cento do valor dos depósitos de natureza tributária nela realizados a partir da vigência da lei. Em virtude da legislação acima citada, a parte dos depósitos judiciais transferidos ao Tesouro do ente serão registrados como receita orçamentária, já que podem ser utilizados para suportar despesas orçamentárias329. (grifo nosso). Nesse cenário, a disciplina normativa da matéria é no sentido de incluir como receita pública parte dos depósitos judiciais (aqueles já transferidos), além das operações de crédito, conforme preceitua a Lei n° 4.320/64, apesar de não corresponderem a hipóteses de entrada que, “integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”, conforme condiciona Aliomar Baleeiro. A compreensão dessa questão bem como dos diversos conceitos de receita pública pressupõe o entendimento prévio dos três enfoques distintos já mencionados, pelos quais as entradas de recursos nos cofres do Tesouro podem ser examinadas e operacionalizadas: (1) o enfoque financeiro, acima aludido por Kioshi Harada; (2) a perspectiva patrimonial e (3) a visão orçamentária. Sob o ponto de vista financeiro330, o simples ingresso, consoante já explicitado, ainda que corresponda à receita apenas transitória, seria o suficiente para a sua configuração e o registro da receita. Já pela perspectiva patrimonial, a receita vincula-se à entrada de recursos que implicam variação positiva da situação patrimonial líquida, em decorrência de aumento de ativos ou de diminuição do passivo da entidade. Por fim, a visão orçamentária da receita, Janeiro: Forense, 2006. p. 126. .Segundo o autor “receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”. Assim, estariam excluídos do conceito de receita para o eminente autor os simples movimentos de fundos ou de caixa, assim compreendidos os ingressos que refletissem, ao mesmo tempo, criação de uma obrigação ou passivo correspondente. 327 As operações de crédito também já foram examinadas na Aula 6. 328 HARADA, Hiyoshi. Direito Financeiro e tributário. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.32. 329 Complementa o Manual acerca dos registros contábeis da receita: “Porém, ao classificar a receita orçamentária deverá haver um registro de uma obrigação patrimonial correspondente, em contrapartida com uma variação passiva, o que manterá a adequação do resultado contábil. Com a conversão do depósito judicial em receita orçamentária ele deixa de se caracterizar como ingresso extra-orçamentário.” 330 Nesse sentido apontava a 4ª edição do Manual de Procedimentos das Receitas Públicas, aprovado pela Portaria Conjunta n° 2, de 8 de Agosto de 2007, do Secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda e a da Secretária de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão: “Na Administração Pública, o fluxo econômico é compreendido por dois conceitos distintos, porém integrados. O primeiro é o conceito financeiro, fundamentado na tradição cameralista (gestão financeira) do ingresso de disponibilidade, na qual se baseou o orçamento e se estabeleceu o regime de caixa para a Receita Orçamentária. O segundo é o conceito patrimonial, fundamentado na tradição patrimonialista, que por muito tempo não vem sendo observado tanto pela Administração Pública quanto pela contabilidade pública aplicada ao setor público e que, com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, vem demandando esforços para que seja cumprido, necessitando de uma mudança cultural.” Este Manual foi substituído pelo mencionado Manual de Receita Nacional aprovado pela Portaria Conjunta n° 3 , de 14 de Outubro de 2008. FGV DIREITO RIO 150 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I segundo a sistemática adotada pela Lei n° 4.320/64, engloba todas as receitas disponíveis para fazer face às despesas públicas, sendo as mesmas (as receitas) segmentadas em orçamentárias e não orçamentárias331. Assim, além das denominadas entradas provisórias, qualificadas ou não como receita, dependendo do enfoque (financeiro, patrimonial ou orçamentário), bem como da doutrina e da disciplina jurídica aplicável, existem, também, os ingressos definitivos. As entradas definitivas, sempre enquadradas como receita pública, podem ter diversas origens e classificadas por variados critérios. 9.3 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À ENTIDADE QUE SE APROPRIA DA RECEITA A receita pode ser pública ou privada. A receita pública é aquela auferida por entidade pública ao passo que a privada corresponde àquela auferida por entidade privada. Nem toda receita pública, entretanto, permanece, para ser utilizada pelo ente político (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) responsável ou competente para a sua arrecadação, como ocorre nas hipóteses de transferências, matéria examinada, conforme já salientado, na Aula 7. Nesse sentido, as receitas são consideradas próprias ou de transferências. 9.4 AS RECEITAS SEGUNDO A SUA REGULARIDADE, FREQÜÊNCIA OU PERIODICIDADE. Sob a perspectiva da regularidade ou habitualidade, as receitas classificamse como extraordinária ou ordinária. A receita ordinária decorre de fontes de riqueza previsíveis e contínuas, caracterizando-se por constar de forma permanente no orçamento do Estado, como é o caso de diversas auferidas pela exploração do patrimônio do Estado assim como pela arrecadação de diversas espécies tributárias, tais como: (1) os impostos (art. 145, I, da CR-88); (2) taxas (art. 145, II, da CR-88); (3) contribuições de melhoria (art. 145, III, da CR-88); (4) contribuições especiais (149 e 195 da CR-88) e (5) contribuição de iluminação pública (art.149-A). A receita extraordinária, por sua vez, como o próprio nome revela, decorre de circunstâncias esporádicas, excepcionais ou de caráter transitório, como ocorre, por exemplo, com os empréstimos compulsórios decorrentes de calamidades (art. 148, I, da CR-88) e no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional (art. 148, II, da CR-88), o imposto extraordinário de guerra (art. 154, II, da CR-88), as doações332, os legados333 e as heranças jacentes334 recebidas pelo Estado. 331 O artigo 103, parágrafo único, da Lei n° 4.320/64 dispõe: “Os Restos a Pagar do exercício serão computados na receita extra-orçamentária para compensar sua inclusão na despesa orçamentária”. Essa questão foi objeto de estudo na aula pertinente ao Orçamento. 332 Vide art. 538 a 564 do Código Civil 333 O legado é a coisa certa deixada pelo testador a título singular em sucessão causa mortis, ou seja, a posição jurídica do legatário não se confunde com aquela do herdeiro, legítimo ou testamentário, os quais recebem a totalidade dos bens do de cujus ou uma quota-parte ideal deles, isto é, enquanto o legatário adquire cifra em dinheiro ou bem individualizado e certo, o herdeiro recebe um conjunto de direitos e obrigações, incluindo os débitos por ventura existentes, até o limite e forças da própria herança. (Código Civil “Art. 1.923. Desde a abertura da sucessão, pertence ao legatário a coisa certa, existente no acervo, salvo se o legado estiver sob condição suspensiva”). 334 Vide artigos 1819 e 1882 do Código Civil, os quais estabelecem, in verbis: (a) “Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância”; e (b) “Art. 1.822. A declaração de vacância da herança não prejudicará os herdeiros que legalmente se habilitarem; mas, decorridos cinco anos da abertura da sucessão, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União quando situados em território federal. Parágrafo único. Não se habilitando até a declaração de vacância, os colaterais ficarão excluídos da sucessão” (grifo nosso). Nesse sentido, a herança jacente, uma vez declarada a sua vacância e transcorridos 5 (cinco) anos sem que herdeiros se habilitem, enquadra-se como receita pública. FGV DIREITO RIO 151 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Cumpre salientar que, ao contrário da perspectiva eminentemente financeira em sentido estrito, sob o ponto de vista patrimonial, compõem as receitas públicas as doações, os legados e as heranças jacentes transmitidas ao Estado, em dinheiro ou em bens. Nesse sentido aponta Regis Fernandes335 que “a doação é receita originária de bens ou valores que ingressam no patrimônio público”. Essa questão é exemplificada no Manual de Receitas Públicas nos seguintes termos: Receita independente da execução orçamentária – são fatos que resultam em aumento do patrimônio líquido, que ocorrem independentemente da execução orçamentária. Exemplos: inscrição em dívida ativa, incorporação de bens (doação), etc. Importante destacar, ainda, que não se deve confundir essas receitas públicas, assim enquadradas sob o enfoque patrimonial, decorrente da incorporação de bens por força de doações, legados e heranças jacentes, com as receitas provenientes da exploração dos bens dominiais já pertencentes ao próprio Estado, matéria a ser examinada no tópico subseqüente, intitulado As Receitas segundo a sua origem patrimonial, as quais podem ser originárias ou derivadas. 9.5 AS RECEITAS SEGUNDO A SUA ORIGEM PATRIMONIAL. Aliomar Baleeiro336 designa como “alemã” a classificação por meio da qual a receita é categorizada de acordo com a origem do patrimônio do qual deriva, que pode ser público ou privado. Aquela decorrente da exploração do patrimônio (bens e serviços) do próprio Estado é denominada receita originária, haja vista que a perspectiva sob a qual se analisa a receita pública é a do ente beneficiário dos ingressos. Essa receita é também designada como receita de economia privada, tendo em vista que o Estado, nos mesmos termos do particular, explora os seus bens e as suas empresas para auferir receita, sem se valer de seu poder soberano ou qualquer meio coercitivo para exigir o pagamento pela utilização dos seus serviços ou do seu patrimônio. Nesse sentido, é receita (A) voluntária ou não coativa, pois decorre primariamente da manifestação de vontade do particular; (B) pactuada de forma bilateral337, pois o particular aceita e anui com os termos em que se efetiva a relação e o pagamento pela utilização dos bens e serviços estatais, daí ser também denominada de (C) patrimonial. Embora até hoje importante, essa modalidade de receita perdeu relevância após o advento do denominado Estado Fiscal, época em que passaram a preponderar as receitas tributárias, de natureza cogente. 335 OLIVEIRA, Op. Cit., p.111. 336 BALEEIRO, Op. Cit., p.127. 337 Regis Fernandes Oliveira ressalta que nas receitas originárias encontram-se os “interessados em nível horizontal de interesses, apenas ocorrendo relação entre eles caso haja bilateralidadede intenções. Não falamos em contrato, porque nem sempre haverá comutatividade de obrigações. Mas em bilateralidade pode-se falar, uma vez que os comportamentos são confluentes para a formação de um vínculo” (grifo nosso). Cf. OLIVEIRA, Op. Cit., p.109. FGV DIREITO RIO 152 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I As receitas originárias ou patrimoniais, caracterizadas por expressar uma relação de direito privado, compreendem, de acordo com a doutrina de Ricardo Lobo Torres338: a. os ingressos comerciais, os quais decorrem da exploração da economia pelo Estado, por meio de suas empresas, em regime de monopólio ou não (ex: as sociedades de economia mista em geral, os correios e telégrafos, as casas lotéricas, etc.); b. os preços públicos, também denominados de tarifa, que são ingressos não-tributários devidos como contraprestação pelo benefício recebido, e c. as compensações financeiras, as quais compreendem os royalties e as participações especiais (artigo 20, § 1º, da CR-88). A Receita derivada, por outro lado, representada pelos tributos e pelas multas aplicadas e exigidas do particular – em função do descumprimento de norma de natureza tributária ou não: ex: multas de trânsito, multas administrativas em geral e também aquelas aplicadas em função do descumprimento de obrigação tributária etc,-, tem como características centrais: (A) decorrem do patrimônio privado e (B) são coercitivamente obtidas. Regis Fernandes339 aponta que se incluem no conjunto das receitas derivadas “a cobrança de sanções e também o perdimento decorrente de contrabando, apreensão de armas de criminosos etc.” Pelo exposto acerca das receitas derivadas, obtidas de forma coercitiva, conclui-se que os particulares têm que dispor de parcela do seu patrimônio para fazer face à atividade financeira do Estado. A origem e o fundamento desse poder, se decorre da soberania do próprio Estado ou se nasce delimitado no espaço aberto pelos direitos humanos fundamentais, serão examinados na Aula 11 – O Poder de Tributar, a Competência Tributária e a Capacidade Tributária Ativa. 9.6 AS RECEITAS SOB O ENFOQUE ORÇAMENTÁRIO O orçamento, conforme já destacado na Aula 1, é um importante instrumento de planejamento de qualquer entidade, seja pública ou privada, e consubstancia a previsão do conjunto: (1) de receitas orçamentárias; e (2) de aplicação e gastos de recursos em determinado intervalo de tempo. Diversas são as classificações dos ingressos e das receitas sob o ponto de vista orçamentário. A receita orçamentária quanto às entidades destinatárias do orçamento pode ser classificada como Receita Orçamentária Pública, na hipótese em que 338 TORRES, Op. Cit, p. 186 a 191. 339 OLIVEIRA, Op. Cit., p.111. FGV DIREITO RIO 153 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I for executada por entidades públicas, ou Receita Orçamentária Privada, no caso em que executada por entidades privadas e que consta na previsão orçamentária aprovada por ato de conselho superior ou outros procedimentos internos necessário à sua consecução. Na seara pública representa todas as entradas disponíveis para a cobertura das despesas orçamentárias e de operações que, mesmo não havendo ingresso de recursos, financiam despesas orçamentárias, isto é, aquelas previstas no orçamento desde a sua aprovação. Relativamente ao orçamento a que se vinculam, as receitas podem ser classificadas como do orçamento fiscal340 ou do orçamento da seguridade social341. As receitas que compõem o orçamento fiscal compreendem principalmente as receitas dos impostos, de contribuições de intervenção no domínio econômico e as outras receitas não vinculadas à seguridade social (que são fundamentalmente aquelas contribuições securitárias definidas nos incisos do artigo 195 da CR-88). De fato, o financiamento da segurança social, que compreende a saúde, a assistência e a previdência (art. 194 da CR-88), é realizado, além das contribuições discriminadas nos incisos do artigo 195, pelos demais recursos orçamentários disponibilizados pelo ente político. Destaquese que aquelas receitas securitárias previstas no inciso I, alínea “a”, incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, e no inciso II, cobrada do trabalhador e demais segurados da previdência social, ambos do citado artigo 195, não podem ser utilizadas para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência, consoante determinação do inciso XI do artigo 167 da CR-88. Já no caso dos impostos, o princípio geral é que não podem ser vinculados a órgão, fundo ou despesa. De fato, a Carta Magna de 1988, em seu artigo 167, IV, com a sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, veda a vinculação de receita dos impostos a órgão, fundo ou despesa, mas prevê exceções, entre outras, relativamente: 1) à repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os artigos 158 e 159, matéria detalhadamente examinada na aula sobre as Transferências constitucionais e as repartição de receitas tributárias (Aula 7); 2) à destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino, consoante o disposto nos artigos 198, § 2º, e 212, matéria também abordada na Aula 7; 3) para a realização de atividades da administração tributária, como determinado pelo artigo 37, XXII; 340 Vide art. 165, §5°, I da CR-88. 341 Vide art. 165, §5°, III da CR-88. FGV DIREITO RIO 154 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 4) à prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, matéria já estudada na aula pertinente ao Crédito e a Dívida Pública (Aula 6); 5) às receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contra-garantia à União e para pagamento de débitos, matéria também já analisada na Aula 6. Assim, a regra geral é a vedação de vinculação de receita dos impostos, havendo, no entanto, diversas exceções constitucionalmente fixadas, conforme será detalhado abaixo. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a inexistência de previsão na Constitucional Federal, procedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Governador do Estado de Santa Catarina, ADI 1759/SC342, para declarar a inconstitucionalidade do inciso V do § 3º do art. 120 da Constituição daquele Estado, com a redação dada pela Emenda Constitucional 14/97 estadual, que destinava 10% da receita corrente daquela unidade federada, por dotação orçamentária específica, aos programas de desenvolvimento da agricultura, pecuária e abastecimento. Segundo o Manual de Receita Nacional o ingresso é gênero, podendo ser (1) orçamentário ou (2) extra-orçamentário. Apenas os ingressos orçamentários qualificam-se como receita. Já os ingressos extra-orçamentários são enquadrados como recursos de terceiros, em contrapartida com as obrigações correspondentes. Na medida em que o recurso se desqualifica como recurso de terceiro convola-se em receita orçamentária. Exemplo concreto dessa classificação é a hipótese já mencionada em que tenha havido depósito judicial e o Poder Judiciário decide favoravelmente ao Estado. Nesse caso, o depósito judicial é convertido em renda e passa a ser qualificado como receita orçamentária, descaracterizando-se, a partir desse momento, como ingresso extra-orçamentário. Já o artigo 11 da Lei nº 4.320/64 classifica a receita orçamentária em duas categorias econômicas: receitas correntes e receitas de capital. Essa segmentação, conforme ensinam José Teixeira Machado e Heraldo Costa Reis343: “visa possibilitar uma perfeita identificação da origem dos recursos financeiros, bem como estabelecer coerência entre as rubricas utilizadas nos orçamentos públicos e nas contas nacionais, permanecendo, no entanto, a dicotomia básica inicial: operações correntes e operações de capital, como se vê no esquema seguinte: • Operações Correntes 1.Receitas Correntes 3. Despesas Correntes • Operações de Capital 2. Receita de Capital 4. Despesa de Capital” 342 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.759-MC. Rel. Min. Gilmar Mendes Julgamento em 14.04.2010. Unanimidade. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.gov. br>. Acesso em 15.05.2010. Precedentes citados: ADI 103/RO (DJU de 8.9.95); ADI 1848/RO (DJU de 25.10.2002); ADI 1750 MC/DF (DJU de 14.6.2002). 343 MACHADO Jr., Jose Teixeira e REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada: e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 31ª ed. Rio de Janeiro: Ed. IBAM, 2002/2003. p.21. FGV DIREITO RIO 155 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Nesses termos, as receitas correntes seriam aqueles recursos disponíveis ao ente político federado: (1) de natureza tributária e (2) provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas, de direito público ou privado, destinados a atender as denominadas despesas correntes, qualificadas como aquelas destinadas ao funcionamento e manutenção dos serviços públicos, prestados direta ou indiretamente pela Administração, e que não geram qualquer aumento do patrimônio público, conforme já examinado na Aula 6. Por outro lado, as receitas de capital seriam aquelas disponibilidades provenientes de constituição de dívidas e de recursos financeiros, também recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, destinados a cobrir as despesas classificáveis como despesa de capital, inclusive as outras receitas de capital. Saliente-se, entretanto, que não há correspondência absoluta344 entre (1) as receitas e despesas correntes, de um lado, nem entre (2) as receitas e as despesas de capital, de outro. De fato, o saldo positivo em conta corrente, isto é, a diferença a maior das receitas em relação às despesas correntes em determinado período, constitui a poupança do governo, e serve para financiar as denominadas despesas de capital, conforme já examinado. As operações de crédito (empréstimos contraídos e outras operações de contração de dívidas, etc.), por outro lado, não se prestam a financiar exclusivamente as despesas de capital, conforme se extrai da parte final do artigo 167, III, da CR-88, que prevê exceções mediante créditos suplementares e especiais de finalidade precisa e aprovados por maioria absoluta. Já os parágrafos do citado artigo 11 da Lei n° 4.320/64 estabelecem que são: • Receitas Correntes: A) as receitas tributárias; B) de contribuições345; C) patrimonial; D) agropecuária; E) industrial; F) de serviços e outras e, ainda, G) as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em Despesas Correntes. • Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos: A) de constituição de dívidas; B) da conversão, em espécie, de bens e direitos; C) os recursos recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, destinados a atender despesas classificáveis em Despesas de Capital e, ainda, D) o superávit do Orçamento Corrente. 344 REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.153. “Note-se que não existe (nem deve existir) uma associação perfeita entre receitas e despesas correntes e despesas de capital. Na verdade, o saldo em conta corrente, ou seja, a diferença entre receitas e despesas correntes, que constitui a poupança do governo, é uma das fontes de financiamento das despesas de capital. Por outro lado, operações de crédito não se restringem, obrigatoriamente, ao financiamento de despesas da mesma categoria”. 345 Apesar da separação das receitas tributárias em relação às contribuições pela Lei n° 4.320/64 e em que pese a literalidade do artigo 145 da CR-88, o Supremo Tribunal Federal, especialmente no RE 138.284-8, RE 146.733 e ADC-1/DF, adotou a tese qüinqüipartide dos tributos, para definir que são cinco as espécies tributárias no atual sistema constitucional brasileiro: (1) os impostos (artigo 145, I, da CR-88); (2) as taxas (artigo 145, II, da CR-88); (3) as contribuições de melhoria (artigo 145, III, da CR-88); (4) os empréstimos compulsórios (artigo 148 da CR-88) e (5) as contribuições especiais (artigo 149 da CR-88), sendo estas últimas subdivididas em três grupos: (5.1) sociais; (5.2) de intervenção no domínio econômico e (5.4) de interesse das categorias profissionais e econômicas. As contribuições sociais, por sua vez, desdobram-se em: (5.1.1) sociais gerais; (5.1.2) de seguridade social e (5.1.3) outras de seguridade social. Ressalte-se que após essas decisões do STF foi introduzido o artigo 149-A estabelecendo a competência dos Municípios para instituírem as denominadas Contribuições de Iluminação Pública. FGV DIREITO RIO 156 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Segundo o Manual de Receita Nacional a receita sob o enfoque orçamentário pode também ser classificada como efetiva ou não efetiva, em função do seu impacto sobre o patrimônio. Dessa forma, vincula-se a perspectiva orçamentária e patrimonial da receita. A questão está assim descrita: “Receita Orçamentária Efetiva – aquela que, no momento do seu reconhecimento, aumenta a situação líquida patrimonial da entidade. Constitui fato contábil modificativo aumentativo. Receita Orçamentária Não-Efetiva – aquela que não altera a situação líquida patrimonial no momento do seu reconhecimento, constituindo fato contábil permutativo. Neste caso, além da receita orçamentária, registra-se concomitantemente conta de variação passiva para anular o efeito dessa receita sobre o patrimônio líquido da entidade.” 9.7 OUTRAS CLASSIFICAÇÕES DAS RECEITAS PÚBLICAS Edwin Seligman, economista norte-americano, classificou as espécies de receita de acordo com a preponderância do interesse envolvido na atividade a suscitar a cobrança, isto é, se há maior ou menor interesse público ou privado. Dessa forma, a receita pública seria categorizada como: 1) preços quase-privados: quando a atividade financeira do Estado a ensejar a cobrança seja de interesse exclusivamente privado, havendo interesse público acidental e tão somente pelo fato de a atividade estar sendo desenvolvida pelo Estado; 2) preços públicos: tem vantagem particular inferior ao do preços quase-privados mas ainda assim predomina o interesse particular, apesar de a exploração da atividade possuir algum interesse público,; 3) taxa: decorre de atividade em que o interesse público é preponderante e o interesse particular é mensurável para cada indivíduo; 4) contribuição de melhoria: algum tipo de vantagem para um indivíduo ou conjunto de pessoas, mas o interesse público também prepondera como na taxa; e 5) impostos: ainda que possa haver eventual ou acidental vantagem para o particular, o interesse e consideração é exclusivamente público. Já o italiano Luigi Einaudi, suprimindo as taxas, que inclui entre os preços públicos e acrescendo a categoria dos “preços políticos”, conforme alerta Luiz Emygdio346, classifica as receitas públicas de acordo com fixação do valor a ser exigido, o que tem como parâmetro e referência as diversas possibilidades por meio das quais se realizam e satisfazem as necessidades públicas. Dessa 346 ROSA Jr., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.56. FGV DIREITO RIO 157 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I forma, as receitas seriam categorizadas com base nos valores exigidos, os quais se alteram em função: 1) das leis de mercado, o que os classificaria como preços quase-privados; 2) da impossibilidade ou inviabilidade de serem prestados pelo particular, o que enseja a cobrança de valor mais baixo do que aqueles de economia privada, 3) qualificado como preço público; 4) da insuficiência de sua remuneração para o custeio dos serviços que ensejam a sua cobrança, designados como preços políticos; e 5) da vantagem obtida pelo particular proprietário de bens imóveis em compensação à execução de obra pública, qualificada com contribuição; 6) de elementos estranhos a qualquer atividade estatal específica, isto é, não há qualquer contraprestação estatal para servir de parâmetro, classificados como impostos. Luiz Emygdio347 aponta as seguintes diferenças entre as classificações de Seligman e de Einaudi: “a) enquanto Seligman baseia sua classificação no conflito entre o interesse público e o interesse privado, que está presente em toda a atividade financeira desempenhada pelo Estado, Einaudi leva em conta os diversos processos pelos quais se providenciam as satisfações das necessidades públicas; adota, ainda, como um dos critérios nucleares para a sua classificação o custo do serviço público, que quando é inteiramente coberto pela receita, esta se denominará preço público, mas quando a receita for insuficiente para cobrir tal custo a mesma corresponderá a preço político, sendo a diferença coberta pelo imposto; b) a utilização de vocábulos diferentes – taxa para Seligman e preço político para Einaudi, para caracterizar a receita pública auferida pelo Estado do exercício exclusivo de determinada atividade, visando o Estado prestar à coletividade um serviço público por um preço inferior ao que seria cobrado pela empresa privada.” Apesar de autores como Regis Fernandes apontarem no sentido do abandono de “qualquer estudo sobre as classificações de E.R Sligman, de Gastón Jèze e de Einaudi, uma vez que nada acrescentam de útil na apreciação do fenômeno jurídico financeiro”, Aliomar Baleeiro348 procurou conciliar a denominada classificação “alemã”, que subdivide as receitas em originárias e derivadas, com aquelas categorizações de Seligman e Einaudi, e construiu o seguinte quadro, intitulado Classificação dos ingressos públicos: 347 ROSA Jr., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.56. 348 BALEEIRO, Op. Cit., p.131. FGV DIREITO RIO 158 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 1º) MOVIMENTOS de fundos ou de Caixa a) Empréstimos ao Tesouro; b) Restituição de Empréstimo do Tesouro; c) Cauções, fianças, depósitos, indenizações de direito civil etc. a) a título gratuito - doações puras e simples; - bens vacantes, prescrição aquisitiva etc. b) a título oneroso - doações e legados sob condição; - preços quase-privados; - preços públicos; - preços políticos a) tributos - taxas; - contribuições de melhoria; - impostos; - contribuições parafiscais I. Originárias, ou de Economia Privada, ou de Direito privado, ou Voluntárias 2º) RECEITAS II. Derivadas, de Economia Pública de Direito Público ou Coativas b) multas, penalidades e confisco; c) reparações de guerra 9.8 PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS A receita tributária, que tem sido a principal fonte de recursos públicos, pode ser classificada de acordo com múltiplos critérios, destacando-se entre eles as distinções quanto: (1) ao ente político competente para instituir o tributo específico, estabelecer a disciplina jurídica, cobrar, fiscalizar e decidir o contencioso administrativo e judicial349; (2) à tríplice função350 que o tributo pode exercer: (2.1) a função fiscal, segundo a qual a sua instituição visa à arrecadação para fazer face à atividade financeira do Estado; (2.2) a função parafiscal, cuja designação, apesar de controvertida no campo doutrinário, denota a cobrança e a utilização de alguns tributos por entidades paraestatais de natureza privada ou pública, com personalidade jurídica própria, que, ao exercerem as suas tarefas ao lado da administração direta, ampliam o alcance das múltipas atividades de interesse público e a efetividade da intervenção do Estado na ordem social; e (2.3) a função extrafiscal de algumas espécies tributárias, de acordo com a qual prepondera a sua utilização como instrumento de intervenção no domínio econômico ou social, direcionando-os à redistribuição de renda e riqueza ou à indução de comportamento das pessoas (na- 349 Essa questão será examinada na Aula 11, quando serão apresentadas as distinções entre o denominado Poder de Tributar, a Competência Tributária e a Capacidade Tributária Ativa. 350 A Parafiscalidade e a Extrafiscalidade serão objeto de duas aulas específicas, após o exame do sistema constitucional de discriminação de rendas e de repartição de competências e bem assim dos três substratos econômicos de incidência de tributos. FGV DIREITO RIO 159 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I turais ou jurídicas), estimulando ou desestimulando o consumo de determinados bens e serviços, a poupança ou o investimento e etc; (3) ao substrato ou base econômica de incidência do tributo, podendo ser a renda, o patrimônio ou o consumo, matéria a ser examinada na Aula13; (4) à possibilidade de transferência do ônus ou do encargo financeiro do tributo a terceira pessoa, questão que também será analisada na Aula 13; (5) ao regime jurídico aplicável ao produto da arrecadação tributária, podendo assumir três modelos distintos: (a) no primeiro, somente há liberdade do ente político para determinar o destino do produto da arrecadação a cada exercício financeiro, no bojo do processo orçamentário, sendo vedada pela Constituição a prévia vinculação da receita do tributo a uma despesa específica pelo legislador ordinário, o que afastaria a possibilidade de alterações futuras do destino dos recursos arrecadados de acordo com as mutantes condições econômicas e as decisões políticas durante cada ciclo orçamentário; (b) no segundo conjunto, ocorre a sua vinculação constitucional, ou seja, o constituinte determina que a receita deve ser necessariamente utilizada em uma dotação de despesa orçamentária específica, não havendo qualquer margem para a sua alteração a cada exercício financeiro durante a elaboração do orçamento; e (c) aqueles tributos em que não há vinculação constitucional obrigatória em relação ao produto da arrecadação, mas o legislador infraconstitucional, ao instituir o tributo ou discipliná-lo posteriormente, possui margem de liberdade para fixar e vincular em lei o destino da receita, o que deve ser observado durante a elaboração e a execução das peças orçamentárias. Portanto, esta classificação diz respeito à discricionariedade que o ente político possui para decidir o destino dos recursos arrecadados com os tributos. Nessa perspectiva, os tributos são geralmente subdivididos em dois grupos: (a) aqueles de arrecadação não vinculada pela Constituição (podendo haver nesse grupo duas modalidades distintas: (a.1) aqueles que a Constituição veda expressamente a vinculação da arrecadação, não deixando margem ao legislador ordinário; e (a.2) aqueles em que o constituinte é silente quanto à possibilidade de o legislador infraconstitucional vincular ou não a receita tributária a uma despesa específica) e (b) os tributos cuja receita deve ser necessariamente aplicada, exclusivamente, em determinada atividade ou finalidade específica, não sendo possível a sua alteração no plano infraconstitucional. A explicitação de exemplos concretos facilitará a compreensão do exposto. O imposto é o exemplo típico do chamado tributo de receita não vinculada, em FGV DIREITO RIO 160 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I que é constitucionalmente vedada, como regra geral, a destinação de sua receita para órgão, fundo ou despesa. Portanto, o imposto é espécie de tributo que deve ter a sua utilização ou a destinação de sua receita livremente determinada no bojo do processo orçamentário. De fato, ressalvadas as exeções fixadas no próprio inciso IV do artigo 167 da CR-88, conforme já destacado, quando do exame da receita pública de acordo com o orçamento a que se vincula, a regra geral é que as receitas dos impostos não podem ser previamente vinculadas. Como regra geral, as receitas arrecadadas com a exigência das contribuições de melhoria e de taxas351 também não são vinculadas, inexistindo, entretanto, diferentemente dos impostos, vedação constitucional para que o legislador ordinário, ao instituir essas duas exações, vincule o produto de suas arrecadações para serem utilizadas emdespesas específicas. Em sentido diverso, são constitucionalmente vinculadas as receitas dos empréstimos compulsórios, tendo em vista o disposto no parágrafo único do artigo 148 da CR-88 (“A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição”). Nessa mesma linha, de associação e conexão entre a instituição e arrecadação do tributo e o gasto relacionado à causa que justifica aexigência da exação, as receitas das contribuições de seguridade social352 são vinculadas às despesas coma própria seguridade social, podendo ser destinados aos dispêndios com a saúde, a assistência ou a previdência social. Nos termos já salientados, algumas espécies de exações securitárias possuem grau ainda mais específico de vinculação, como ocorre, por exemplo, com as receitas decorrentes das contribuições previstas no inciso I, alínea “a”, incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, e no inciso II, cobrada do trabalhador e demais segurados da previdência social, ambos do já citado artigo 195 da CR-88, que não podem ser utilizadas para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência, consoante determinação do inciso XI do artigo 167 da CR-88, espécie do gênero seguridade social. As contribuições sociais gerais, apesar de não se vincularem ao financiamento da Seguridade Social, têm os seus recursos arrecadados também vinculados, como é o caso do salário educação (art. 212, §5º, da CR-88) e etc.. No mesmo passo, os recursos arrecadados com a contribuição de intervenção sobre o domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível de que trata o artigo 177, §4º, da CR-88 (CIDE petróleo) devem ser necessariamente destinados: (1) 351 Nesse sentido, a lei do ente político que cria uma taxa, como regra geral, pode ou não vincular o produto de sua arrecadação a uma destinação específica. No entanto, conforme será examinado detalhadamente na aula 11, o STF considera as custas e os emolumentos judiciais de que trata o §2º do artigo 98 da CR-88 como espécie de taxas. Dessa forma, considerando que a própria Constituição determina que “as custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”, trata-se de espécie tributária na modalidade de taxa cuja receita é vinculada, ao contrário da regra geral. 352 Algumas contribuições sociais de caráter geral também possuem vinculação específica do produto de sua arrecadação, apesar de não servirem ao financiamento da seguridade social, como é o caso do fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS), o qual tem natureza tributária de acordo com o STF. FGV DIREITO RIO 161 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; (2) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; ou (3) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes; (6) às características da hipótese de incidência353 a ensejar a instituição, cobrança e arrecadação do tributo, isto é, diz respeito aos elementos e contornos dos atos, fatos, negócios e situações jurídicas e bem assim aos eventos e situações de fato eleitas pelo constituinte para fundamentar a instituição do tributo pelo legislador infraconstitucional. Nessa perspectiva as hipóteses de incidência podem se referir a duas espécies de tributos: (a) aqueles cujo fato gerador independe de qualquer atuação estatal específica para fundamentar a exação, como é o caso dos impostos, que são exigidos sem haver qualquer ação estatal pressuposta; e (b) os tributos cuja hipótese de incidência vincula-se a uma atividade estatal determinada, isto é, a exação pressupõe uma atuação contraprestacional do ente político, como é o caso das taxas, a exigir o exercício do poder de políciaa ou a prestação de serviço público específico e divisível ou a sua colocação à disposição do contribuinte. Na mesma linha, a cobrança da contribuição melhoria também pressupõe uma atuação estatal específica, ou seja, depende da realização de obra pública da qual decorra valorização imobiliária. Já as denominadas contribuições especiais de que trata o art. 149 da CR-88 (sociais, de intervenção no domínio econômico ou de interesse das categorias profissionais ou econômicas) podem ou não ter as respectivas hipóteses de incidência vinculadas diretamente a uma ação estatal prévia. Por outro lado, essas contribuições interventivas deveriam ter sempre como pressuposto subjacente o alcance de determinados fins na ordem econômica ou social, não havendo justificativa de natureza constitucional para a sua adoção apenas com objetivos arrecadatórios para fazer face aos gastos gerais ou para a produção de superávits fiscais; (7) às espécies tributárias existentes. Apesar da separação das receitas tributárias em relação às contribuições pela Lei n° 4.320/64 e em que pese a literalidade do artigo 145 da CR-88 e do artigo 5º do CTN, o SupremoTribunal Federal, especialmente no RE 138.2848, RE 146.733 e ADC-1/DF, adotou a tese qüinqüipartide dos tributos, para definir que são cinco as espécies tributárias no atual sistema constitucional brasileiro conforme será examinado ao longo do curso: (1) os impostos (artigo 145, I, da CR-88); (2) as taxas (artigo 145, II, da CR-88); 353 A estrutura jurídica da norma de incidência tributária será examinada e detalhada a partir da aula 14. FGV DIREITO RIO 162 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (3) as contribuições de melhoria (artigo 145, III, da CR-88); (4) os empréstimos compulsórios (artigo 148 da CR-88) e (5) as contribuições especiais (artigo 149 da CR-88), sendo essas subdivididas em três grupos: (5.1) sociais as quais se desdobram, por sua vez, em: (5.1.1) sociais gerais; (5.1.2) de seguridade social e (5.1.3) outras de seguridade social. As contribuições de seguridade social listadas nos incisos do artigo 195 e aquelas criadas pela União com fundamento no §4º do mesmo artigo tem por objetivo o financiamento da Saúde, Assistência e Previdência Social. Por outro lado, as denominadas contribuições sociais gerais (5.1.1) são destinadas a custear a atuação do Estado em outras áreas sóciais. São exemplos de contribuição social geral o salário-educação (art. 212, § 5º, da CF/88), as contribuições destinadas às entidades privadas de serviços sociais autônomos e de formação profissional, vinculadas ao sistema sindical (SESC, SENAI, SENAC, SEBRAE), conforme preconiza o artigo 240 da Constituição, etc. (5.2) de intervenção no domínio econômico (CIDE), que tem como exemplo constitucionalmente previsto a denominada CIDE petróleo e combustíveis de que trata o art. 177, §4º, da CR-88, além daquelas criadas por meio de lei com fundamento no art. 149 da CR-88; e (5.4) de interesse das categorias profissionais e econômicas. Ressalte-se que após essas decisões do STF foi introduzido o artigo 149-A à Constituição, estabelecendo a competência dos Municípios para instituírem as denominadas Contribuições de Iluminação Pública, razão pela qual na atualidade seriam 6 espécies tributárias de acordo com a jurisprudência do tribunal. 9.9 A RECEITA PÚBLICA E A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL A Lei Complementar 101/2000, comumente denominada de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), tendo em vista estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade e transparência na gestão fiscal, prevê que “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação354 de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação” (art. 11). Dessa forma, não adotar as medidas necessárias à arrecadação das receitas tributárias cuja competência tenha sido constitucionalmente conferida ao ente político (União, Estados, 354 Há violação a este dispositivo da LRF caso a Constituição confira competência tributária a determinado ente político e o mesmo não institua e arrecade o tributo? Examine o artigo 153, VII, da CR88! Importante mencionar, entretanto, que a Constituição, conforme será examinado no momento oportuno, não cria o tributo, apenas confere competência tributária ao ente federado, razão pela qual a norma constitucional tem como destinatário primário o Poder legislativo do ente político! FGV DIREITO RIO 163 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Distrito Federal e Município) consubstanciaria a primeira vista omissão passível de responsabilização de acordo com a LRF. No mesmo sentido, o artigo 14 da lei complementar estabelece que: a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita355 deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. De fato, é a própria Constituição que estabelece em seu artigo 165, § 6º, que o “projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”. Esses dispositivos normativos foram inspirados e adotaram o que o especialista em finanças públicas americano Stanley Surrey356 denominou de “tax expenditure”, ao equiparar o incentivo fiscal implementado pela via da receita ao gasto fiscal, isto é, passou a qualificar e registrar os benefícios fiscais (renúncia de receita) como despesas públicas, o que eleva o grau de transparência da política fiscal realizada com os recursos públicos. 9.10 A CRONOLOGIA DAS ETAPAS DA RECEITA PÚBLICA ORÇAMENTÁRIA O Manual de Receita Nacional subdivide a gestão da receita orçamentária em 3 etapas: (1) o planejamento; (2) a execução e (3) o controle e avaliação. O planejamento engloba a previsão da arrecadação da receita orçamentária constante da Lei Orçamentária Anual – LOA, o que varia de acordo com a espécie e o tipo de receita. A estimativa é resultante de metodologias estatísticas e econômicas de projeção usualmente adotadas, considerando, em geral, as séries históricas de arrecadação, as possíveis mudanças da legislação tributária e o provável cenário econômico futuro (inflação projetada, taxa de câmbio, crescimento do produto interno bruto esperado etc.) observadas, 355 O §1º do artigo 14 estabelece o conceito de renúncia de receita para os efeitos da LRF nos seguintes termos: “A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado”. 356 SURREY, Stanley. Tax Expenditures. Cambridge: Harvard University Press, 1985. FGV DIREITO RIO 164 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ainda, as limitações e condições normativas fixadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF357, o que será examinado no tópico seguinte. Conforme já salientado na Aula 3, a projeção das receitas é essencial para a determinação das despesas, pois é com base na arrecadação estimada que as despesas são fixadas na Lei Orçamentária Anual. Ademais, a estimativa de receita também é fundamental para a execução do orçamento, nos termos já estudados na Aula 3. De fato, pode haver impacto sobre a determinação das necessidades de financiamento do Governo de outras fontes, como a emissão de títulos públicos ou contração de empréstimos etc., de acordo com o desempenho da receita efetivamente arrecadada vis a vis o que fora projetado. No mesmo sentido, a estimativa de receita contraposta ao que for de fato arrecadado impacta diretamente a possibilidade de concessão de créditos suplementares e especiais por excesso de arrecadação, matéria também abordada nas aulas sobre o Orçamento (Aulas 3 e 4). A execução da receita orçamentária, por sua vez, consoante a Lei nº 4.320/1964 e o Manual de Receita Nacional, compreende três estágios: (1) o lançamento, (2) a arrecadação e (3) o recolhimento. O lançamento para constituir o crédito tributário, no entanto, se encontra disciplinado no Código Tributário Nacional (artigos 142 seguintes da Lei nº 5.172/66), e compreende a realização de todos os atos preparatórios ao pagamento do tributo, tais como a verificação da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, a determinação da matéria tributável, o cálculo do montante devido, podendo englobar, também, a necessidade de identificação do sujeito passivo quando o lançamento, em função das características do tributo, for realizado pela própria administração tributária ou, ainda, quando for o caso, a aplicação da penalidade cabível (o denominado lançamento de ofício). Os aspectos gerais desse tema – o lançamento e as diferentes fases do crédito tributário – serão examinados na segunda parte da Aula 15 e o seu estudo detalhado efetivar-se-á nos próximos semestres (Direito Tributário e Finanças Públicas II e III). Por outro lado, a constituição do crédito das outras receitas orçamentárias não tributárias, de natureza contratual e que possuem regime jurídico próprio e tratamento operacional específico, dependem tanto da espécie como do que consta nos pactos firmados pelos particulares com o Poder Público. Assim, por exemplo, a receita auferida pelo Estado em contrato de locação com o particular ou, ainda, as participações e compensações financeiras de tratam o artigo 20, § 1º, da CR-88, em função do resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais, são regidas e disciplinadas nos termos dos atos, contratos e demais princípios de direito privado bem como da Administração, tendo em vista o inafastável interesse público envolvido. 357 O artigo 12 da Lei Complementar 101/2000 estabelece que: “As previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas”. FGV DIREITO RIO 165 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Já a arrecadação, que também abrange as receitas tributárias e não tributárias, sob o ponto de vista das Finanças Públicas do Estado, representa, conforme disciplina o Manual da Receita Nacional, a “entrega realizada pelos contribuintes ou devedores, aos agentes arrecadadores ou bancos autorizados pelo ente, dos recursos devidos ao Tesouro”. Cumpre destacar, no entanto, que sob a perspectiva tributária, tecnicamente, o pagamento é uma das formas de extinção do crédito, nos termos do artigo 156, I, do CTN, e deve ser efetivado juridicamente358 pelo sujeito passivo da obrigação tributária, conceito que compreende, de acordo como o parágrafo único do artigo 121 do CTN, tanto o contribuinte como o responsável, matéria a ser examinada ao longo do curso. O recolhimento, por sua vez, definido pelo Manual como o terceiro estágio da execução da receita, é “a transferência dos valores arrecadados à conta específica do Tesouro, responsável pela administração e controle da arrecadação e programação financeira, observando-se o Princípio da Unidade de Caixa, representado pelo controle centralizado dos recursos arrecadados em cada ente”. A unidade de tesouraria, isto é, o recolhimento de todas as receitas públicas de forma centralizada está prevista no artigo 56 da Lei n° 4.320/64359 e é usualmente denominado de Caixa Único. Por fim, a última etapa da gestão da receita orçamentária é o controle e avaliação, a qual, segundo o Manual de Receita Nacional: “compreende a fiscalização realizada pela própria administração, pelos órgãos de controle e pela sociedade. O controle do desempenho da arrecadação deve ser realizado em consonância com a previsão da receita, destacando as providências adotadas no âmbito da fiscalização das receitas e combate à sonegação, as ações de recuperação de créditos nas instâncias administrativa e judicial, bem como as demais medidas para incremento das receitas tributárias e de contribuições.” O Manual apresenta esquema didático sobre as diversas etapas da receita nos seguintes termos: 358 O sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa que possui vínculo jurídico com o sujeito ativo da relação (o Estado lato sensu), e pode ser - ou não - a mesma pessoa que arca ou suporta com o encargo financeiro do tributo, matéria que será examinada na aula pertinente à capacidade contributiva, momento em que serão apresentados, também, os diferentes substratos econômicos de incidência de tributos, bem como examinado o fenômeno da repercussão, por meio do qual o sujeito passivo da relação jurídica pode- ou não - transferir o ônus do tributo para outra pessoa, que possua - ou não - relação jurídico-tributária com a Fazenda Pública. 359 Dispões o art. 56, verbis: “ O recolhimento de todas as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio da unidade de tesouraria, vedada qualquer fragmentação para criação de caixas especiais.” FGV DIREITO RIO 166 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 10 – O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA. ESTUDO DE CASO (MANDADO DE SEGURANÇA Nº 24.312-1/DF – STF) Irresignado com o ato praticado pelo Tribunal de Contas da União Federal (TCU), o qual havia determinado ser de sua competência a fiscalização da aplicação dos recursos recebidos a título de royalties e participações especiais decorrentes da extração de petróleo e gás natural pelos Estados e Municípios, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) impetrou Mandado de Segurança para afastar a aplicabilidade da norma federal e evitar a usurpação do que alega ser de sua competência. Considerando o disposto no artigo 20, § 1º e artigo 71, VI, da CRFB-88, você como juiz concederia a segurança? Justifique (Mandado de Segurança nº 24.312-1/DF, Tribunal Pleno do STF). OS CONTROLES A Administração Pública, compreendida em sua dúplice face, direta e indireta, está sujeita ao controle interno e externo. O interno, “é o controle exercido por órgãos da própria Administração, isto é, integrantes do aparelho do Poder Executivo”, preleciona Celso Antonio Bandeira de Mello.360 Na realidade, o controle interno é inerente à gestão da coisa pública, sendo, portanto, poder-dever de todos os órgãos da Administração Publica, sejam do Executivo, Legislativo ou do Judiciário, no tocante à sua própria estrutura funcional e operacional. O controle externo, a seu turno, é realizado por órgãos exógenos, ou seja, aqueles que atuam fora da esfera controlada. A expressão controle encontra sua origem remota no latim fiscal medieval, como ensina Eduardo Lobo Botelho Gualazzi361, e “indica o exemplar do catálogo (dos contribuintes, dos censos, dos foros anuais) com base em que se verifica a operação do exator”. O dicionário Houaiss362 da língua portuguesa, por exemplo, discrimina uma série de significados para o termo controle, o qual pode representar: “monitoração; fiscalização ou exame minucioso de normas, fatos, ou situações; dispositivo ou mecanismo interno destinado a comandar; painel; domínio da própria vontade; função que estabelece o curso de operações e sistemas, etc.” De fato, a denominação controle tem significado multívoco, ou seja, evoca mais de um sentido semântico. No Direito Administrativo, o termo controle adquire um conceito jurídico, conforme propõe o administrativista clássico 360 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 827. 361 GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Regime Jurídico dos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992. p. 20-23. FGV DIREITO RIO 167 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Hely Lopes Meirelles:363 “controle, em tema de Administração Pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção de um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro”. O controle dos atos da Administração Pública pode se dar em quatro âmbitos: político-legislativo, administrativo, jurisdicional e social. Na presente aula buscar-se-á delinear os aspectos que norteiam o controle político-legislativo, sem descuidar, obviamente, de mencionar, ainda que de forma sucinta, a relevância dos controles administrativo, judicial e social. Com relação ao controle social, cabe, de pronto, ressaltar que a Constituição de 1988 e alguns diplomas normativos infraconstitucionais consagram instrumentos que viabilizam a participação da sociedade no desenvolvimento do processo democrático de gestão da coisa pública: é a concretização no “mundo da vida”364 dos fundamentos da forma republicana de governo (art. 2º do ADCT) e da democracia participativa.365 Nesse sentido, observa-se que os cidadãos e as associações também podem provocar o controle do Poder Público quando se depararem com situações caracterizadoras de abuso de autoridade, por força do art. 5º, inciso XXXIV, da Carta Magna, e da Lei 4.898/65, que disciplina o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nas hipóteses de abuso de autoridade. O indivíduo ainda pode fazer uso da ação popular com vistas a tutelar qualquer ato lesivo ao patrimônio e a moralidade pública, com base no art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição, e na Lei 4.717/65, bem como denunciar irregularidades ao Tribunal de Contas, amparado na norma constitucional insculpida no art. 74, § 2º.366 No tocante ao acesso à Corte de Contas, as associações, igualmente, podem denunciar ilegalidades, assim como ajuizar ação civil pública, com o objetivo de defender, dentre outras causas, o meio ambiente, a ordem econômica e a economia popular, nos termos do art. 1º c/c art. 5º da Lei 7.347/85. Cumpre lembrar também a possibilidade de qualquer pessoa, natural ou jurídica, comunicar à autoridade competente fato caracterizador de improbidade, consoante disciplina o art. 14 da Lei 8.429/92. Na opinião de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes367, o controle social talvez seja o mais importante dos sistemas, uma vez que permite a participação de todo o corpo social na manutenção e reconstrução contínua do Estado, aliás, nada mais natural se entendermos, assim como John Locke368, que a razão precípua da existência deste Ente é a de estruturar e proteger a esfera dos direitos humanos fundamentais. Objetivando alcançar esses objetivos, foi editada a Lei Complementar nº 131/2009, a qual alterou diversos dispositivos da Lei Complementar nº 101/2000 e incluiu, entre outros, o art. 73-A, para dispor expressamente que “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente 362 DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS 2.O. 363 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Destro Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Editora Malheiros, 2001. p. 624. 364 A expressão “mundo da vida” empregada no texto, com inspiração em Jürgen Habermas, tem o sentido de “fatos reais da vida”. Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. 2. ed. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2002. p. 88- 100. 365 Hely Lopes Meirelles menciona como manifestação do controle social, que ele denomina de “controle externo popular”, a disposição prevista no art. 31, § 3o, da CR/88, segundo a qual poderão os contribuintes examinar as contas do município em que são domiciliados, no período de 60 dias, podendo questionar a legalidade e a legitimidade das mesmas. In: MEIRELLES. Op. Cit. p. 626. 366 Cabe destacar, ainda, a contribuição do indivíduo no processo de elaboração e de discussão das leis orçamentárias, tendo por fundamento o princípio da transparência, consagrado no art. 48, par. único, da Lei Complementar 101/2000 ( LRF ). 367 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil. Jurisdição e Competência. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005. p. 50-52. Aponta o autor que o sistema social se subdivide em interno e externo. “o interno, constituído pelo conjunto de ações adotadas pela sociedade para mentalizar nos indivíduos as normas, os valores e os objetivos da ordem social, é enfatizado pela comunidade durante a fase da socialização primária (...). (...), no externo, os meios ( sanções, punições e ações reativas) são empregados contra os indivíduos, cujo comportamento não guarda uniformidade com as norma dos sistema dominante”. 368 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3ªed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p. 156 et seq. Para Locke, os homens necessitavam de leis para disciplinar suas condutas e de juizes imparciais para dirimir possíveis conflitos. FGV DIREITO RIO 168 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas” na LRF. A mesma lei complementar também incluiu incisos ao parágrafo único do artigo 48 e acrescentou o artigo 48-A, com o fulcro de reforçar a concretização do ideal de transparência fiscal, entre outras formas, por meio da liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público. Foi conferido, para tanto, o prazo de um ano para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de 100.000 (cem mil) habitantes disponibilizassem por meio da internet acesso a informações referentes às despesa e receitas públicas. Nesse sentido, deve a população ser cientificada de todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado. Por outro, lado, no que se refere às receitas públicas, também deve ser dada ampla divulgação ao lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários. Para garantir o cumprimento dessa determinação a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro – SEFAZ-RJ, por exemplo, consolidou em um site as informações exigidas, tornando-a acessível no endereço http://www.fazenda.rj.gov.br/portal/instituicao/tesouro.portal. I. Controle Político lato sensu Segundo o administrativista José dos Santos Carvalho Filho369, o controle político tem como ratio subjacente a harmonia entre os “Poderes estruturais da República”, consubstanciando o princípio de freios e contrapesos (checks and balances), aplicado nos Estados Unidos e ínsito a visão de Montesquieu370, que já no século XVIII defendia a tese da existência de mecanismos hábeis a controlar as ações de um Poder sobre o outro, a fim de se evitar qualquer intervenção abusiva. O poder político no Brasil é exercido, conforme a normativa constitucional de 1988, pelos três poderes371 do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário). Desta forma, à guisa de exemplo, constata-se o controle do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, quando aquele exerce seu poder de veto sobre os projetos de lei oriundos deste, nos termos do art. 66, § 1o, da CR/88. Quanto ao Poder Judiciário, é possível visualizar a ingerência do Poder Executivo nas nomeações dos integrantes dos Tribunais Superiores, como ocorre com a nomeação dos Ministros do STF. O Poder Legislativo, a seu turno, controla o Poder Executivo quando, por exemplo, com base no art. 167, V e VI, da CR/88, exerce a competência de autori- 369 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. rev. e ampl. atual. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. p. 807-961. 370 MONTESQUIEU. De l’Esprit des lois, I. Éditions. Gallimard, 1995. p. 328-329. 371 Cabe realçar a doutrina de Vitor Rolf Laubé, para quem o “poder” é uno e inerente ao Estado, ou seja, o que existe na realidade é uma distribuição de funções de acordo com a competência de cada órgão. In: LAUBÉ,Vitor Rolf. Considerações acerca da conformação constitucional do Tribunal de Contas. Revista de Informação Legislativa. Brasília. 29, 113, jan./mar. 1992, p. 308-309. FGV DIREITO RIO 169 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I zar a abertura de créditos suplementares ou especiais, bem como o remanejamento de recursos de um determinado segmento para outro, controlando as finanças e o orçamento do Poder Judiciário, com fulcro no art. 70 da Carta de 1988. Por fim, o Poder Judiciário exerce o controle político sobre os outros poderes, por meio do controle da legalidade, legitimidade e constitucionalidade dos seus atos. Ressalte-se que, como muito bem pontua José dos Santos Carvalho Filho372, as hipóteses de exercício do Poder de Controle, por parte dos três poderes mencionados, tem como principal objetivo “a preservação e o equilíbrio das instituições democráticas”. II. Controle Administrativo O controle administrativo, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro373, consubstancia “o poder de fiscalização e correção que a Administração Pública (em sentido amplo) exerce sobre sua própria atuação, sob os aspectos de legalidade e mérito, por iniciativa própria ou mediante provocação”, e biparte-se em interno e externo. O interno, conforme já mencionado alhures, diz respeito ao controle exercido pela Administração sobre os seus próprios órgãos, tendo como corolário o poder de autotutela.374 Nesse sentido, a Constituição prevê diversos instrumentos à verificação da legalidade e legitimidade dos atos praticados pela Administração, inclusive, mas não exclusivamente375, por meio dos órgãos de consultoria e assessoramento jurídico internos, como é o caso, por exemplo, da Advocacia-Geral da União (art. 131 da CR-88), das Procuradorias das Casas Legislativas estaduais etc. No que se refere especificamente ao controle interno da matéria financeira, orçamentária e patrimonial, o artigo 74 da Constituição prevê: Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional. § 1º – Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.” 372 CARVALHO FILHO. Op. Cit. p. 807. 373 Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 600-608. 374 O STF esposa o entendimento segundo o qual a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios de ilegalidade, consoante se constata nas súmulas 346 e 473. 375 O Controle Interno é amplamente realizado por cada servidor público e, em especial, pelo sistema de auditoria. FGV DIREITO RIO 170 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Exemplo de controle interno híbrido ou atípico, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, é exercido pelo Conselho Nacional de Justiça. O CNJ, apesar de ser órgão do Poder Judiciário, a teor do artigo 92 da CR-88, com a sua redação conferida pela citada emenda, possui alguns integrantes não vinculados do Poder Judiciário, como é o caso dos dois representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e dos dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal, sem mencionar os membros do Ministério Público da União e dos Estados (artigo 103-B, XI, XII e XIII). A Constituição, no §4º do mesmo artigo 103-B, confere ao CNJ as seguintes atribuições: Art. 103-B (...) ............... § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituílos, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. FGV DIREITO RIO 171 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A mesma Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou §2º ao artigo 130-A, o qual estabeleceu, entre outras, competência ao Conselho Nacional do Ministério Público para realizar “o controle da atuação administrativa e financeira” do Ministério Público. Por sua vez, o controle exercido sobre a denominada Administração Indireta, a qual compreende entidades dotadas de personalidade jurídica própria, distinta do ente político376 a que se vincula, é externo, também denominado de tutela ou de supervisão ministerial.377 Saliente-se, no entanto, que, malgrado ser comumente denominado de externo, esse controle se dá no âmbito do próprio Poder Executivo (Controle Administrativo externo), razão pela qual não deve ser confundido com o controle externo exercido pelo Poder Legislativo (Controle Legislativo ou Parlamentar), com o auxílio do Tribunal de Contas, conforme será explicitado adiante. O controle administrativo pode ser, ainda, qualificado como preventivo ou repressivo, nesse sentido ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto:378 “o controle administrativo preventivo é o exercitado antes de o ato ser praticado, ou mesmo durante sua prática, para que sejam evitados defeitos de legalidade ou de mérito. (...), por exemplo, em procedimentos preparatórios, como os licitatórios (...). O controle administrativo repressivo é o que se emprega para reconduzir a ação administrativa à legalidade e à legitimidade (...).” Vale, ainda, destacar alguns instrumentos idôneos para realização do controle administrativo, tais como: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, a, CR/88); reclamação referente à prestação de serviços públicos (art. 37, § 3º, I, da CR/88); e os recursos administrativos (art. 5º, LV, da CR/88). É importante frisar que a relação de cooperação sistêmica entre o controle interno da Administração e o controle externo exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, é essencial para a eficiência da aplicação dos recursos públicos e da realização das atividades afetas ao interesse público realizadas pelo Estado. Do referido sistema de ajuda mútua poderiam exsurgir aspectos positivos, conforme pontua Adhemar Paladini Ghisi:379 1) redução do escopo de trabalhos do controle externo, como decorrência da verificação de efetividade dos exames levados a termo pelo controle interno; 2) fornecimento, por parte do controle interno, de informações vitais para o melhor conhecimento dos setores a serem auditados. Por esse motivo, uma das funções do controle externo é aferir o grau de confiabilidade dos trabalhos realizados pelo controle interno; 3) eliminação da duplicidade de esforços, na medida do possível. 376 Vide nota de rodapé inicial da aula 8. 377 No âmbito federal esse tipo de controle é denominado de supervisão ministerial, por força do Decreto-Lei 200/67. 378 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p.556-561. 379 GHISI 1999 apud FERNANDES, 2005. Op. Cit. p.53. FGV DIREITO RIO 172 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Parece, no entanto, que, na realidade concreta, o ideal de cooperação entre os sistemas de controle, traçado pelo mencionado autor, ainda requer um longo caminho de conscientização por parte das próprias instituições públicas. Nesse sentido, Renato Jorge Brown Ribeiro380, ao analisar estudo realizado pelo próprio Tribunal de Contas, aponta que, dentre as opiniões colhidas no âmbito do controle interno, está a constatação de que não há efetiva “troca substancial de informações, nem um trabalho efetivamente sistêmico entre o Controle Interno e Externo”. III. Controle Legislativo ou Parlamentar:381 O controle legislativo divide-se em político e financeiro382, sendo exercido diretamente pelo Poder Legislativo ou com o auxílio do Tribunal de Contas: trata-se de um controle externo à estrutura do órgão fiscalizado. A Carta de 1988 aumentou significativamente o rol de atribuições do Poder Legislativo no que concerne ao controle dos atos do Poder Público, aqui englobadas a Administração Direta (entes da federação) e a Administração Indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, etc), nos termos do art. 49, inciso X. Também incumbe ao Parlamento (Câmara e Senado conjuntamente) o julgamento das contas do Presidente da República, ex vi do art. 49, inciso IX, e a fiscalização financeira e orçamentária da União, com o auxílio do Tribunal de Contas, consoante o disposto nos arts. 70 e 71, todos do mencionado diploma constitucional. O artigo 70 dispõe verbis: Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98: Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. (grifo nosso) Nesse contexto, Odete Medauar383 professa que esse tipo de controle sobre a Administração Pública encontra eco em todos os regimes de governo no ocidente, malgrado “se registra descrença genérica quanto à eficácia e mesmo operacionalização da fiscalização parlamentar”, ou seja, a despeito de se des- 380 RIBEIRO, Renato Jorge Brown. Controle externo da Administração Pública federal no Brasil: o Tribunal de Contas da União – uma análise jurídico-administrativa. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2002, p.95-100. 381 MOREIRA NETO. Op. Cit. p.562. O autor adota tal terminologia e aponta como a principal característica deste controle a legitimidade, uma vez que decorre do poder de fiscalização dos representantes eleitos pelo povo. 382 GARCIA, Emerson e ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006. p.138-140. Prelecionam os autores que, enquanto o controle político “visa à fiscalização de atos relacionados à função administrativa e à própria organização dos Poderes Executivo e Judiciário, o controle financeiro, a seu turno, “é exercido pelo Legislativo sobre todos os Poderes, inclusive sobre os atos que praticar, com o necessário auxílio do Tribunal de Contas, importando na realização do controle externo da administração pública”. Conforme se depreende do art. 70 da CR/88, o controle financeiro, em sentido lato, abrange “a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”das entidades da Administração Direta e Indireta. 383 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 459-464. FGV DIREITO RIO 173 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tacar a importância da atividade controladora do Poder Legislativo, a mesma ainda não encontrou seu grau ideal de efetividade. Como é cediço, cada um dos Poderes do Estado exerce uma função precípua, e no caso do Poder Legislativo384 é a de legislar. Porém, o espectro de sua atuação é bem mais amplo, uma vez que, por força de imperativos constitucionais, o referido Poder também exerce o controle externo sobre os Poderes Executivo e Judiciário, o que se apresenta como uma decorrência natural do regime democrático representativo. Nesse sentido merecem relevo as palavras de José Roberto de Paiva Martins:385 A missão primitiva dos Parlamentos que, como se sabe, teve início no que hoje chamamos Inglaterra, não foi legislar. Na Inglaterra, os Parlamentorum eram porta-vozes das reclamações dos cidadãos junto ao Soberano. Levavamlhe as aspirações do povo sobre as necessidades públicas e, em especial, sobre os excessos de imposição tributária. Como levavam tais pleitos sob a forma de projetos, que eram sancionados (ou não) pelo Soberano, a prática foi adquirindo foros de atividade específica, dando origem à atividade parlamentar tal qual, mutatis mutandis, a conhecemos hoje (...). Interessante observar, consoante à contribuição do mencionado estudioso, que o controle social já era, na fase primária do parlamento, o elemento propulsor do controle parlamentar. No Brasil, o controle parlamentar vem, cuidadosamente, esmiuçado na Constituição, e, no tocante à fiscalização orçamentária e financeira, podese destacar a sua competência, por meio de comissão mista permanente de senadores e deputados, para emitir pareceres acerca de programas nacionais, regionais e setoriais, além de fiscalizar e acompanhar o cumprimento do orçamento, ex vi do art. 166, § 1o, da CR/88. III. 1. Tribunal de Contas: poder-dever de fiscalizar, controlar e julgar as contas públicas. A Carta de 1988 incumbe ao Tribunal de Contas a função de auxiliar o Poder Legislativo, para tanto consagra um rol de atribuições inerentes ao seu papel no quadro social e político do Estado. Também disciplinam a competência das Cortes de Contas, as Constituições estaduais e a normativa infraconstitucional.386 Cumpre, de pronto, destacar que a natureza jurídica das atribuições da Corte de Contas bem como a sua posição institucional são questões controvertidas. Pode-se dizer que há, basicamente, duas correntes. De um lado há aqueles, como os clássicos Pontes de Miranda e Rui Barbosa, que sustentam ser a Corte de Contas um Tribunal sui generis e independente387, ou seja, não vinculado a qualquer um dos Poderes.388 Na con- 384 Ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho que: “tradicionalmente o Legislativo é o poder financeiro. De fato, às câmaras, ditas legislativas, por tradição ou data do medievo, compete autorizar a cobrança de tributos, consentir nos gastos públicos, tomar contas dos que usam do patrimônio geral. Na verdade, o poder financeiro das câmaras é historicamente anterior ao exercício, por elas, da função legislativa”. In: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed., 1980, p. 138, apud MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.27, 108, out./dez. 1990, p. 101. 385 MARTINS 1995 apud FERNANDES, 2005. Op. Cit. p. 100-101. 386 Apenas à guisa de ilustração cabe destacar: a Lei 9.452/97, que disciplina a possibilidade de as Câmaras Municipais representarem ao TCU quando não forem notificadas da liberação de recursos federais; a Lei 11.494/07, a qual regula o FUNDEB, outorga às Cortes de Contas o poder-dever de fiscalizar a aplicação das verbas e o cumprimento da norma inserta no art. 212 da CR/88; a Lei 8.666/93, que trata de licitações e contratos, prevê o direito de representação ao Tribunal de Contas, na hipótese de existência de irregularidades nos procedimentos nela previstos; a Lei 8.730/93 permite a análise da evolução patrimonial por parte das Cortes de Contas; a Lei Complementar 101/00, denominada lei de responsabilidade fiscal, atribui ao Tribunal de Contas a tarefa de fiscalizar a eficiência da gestão fiscal. 387 FERNANDES. Op. Cit. p. 140-153. 388 Nesse sentido, ver MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 140-142, e STJ. RO em MS nº 12.580, relator Min. José Arnaldo da Fonseca. Brasília, 15.02.2001. Diário de Justiça, DF, 02.04.2001, seção 1. FGV DIREITO RIO 174 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I temporaneidade, tem-se, por exemplo, Roberto Rosas e Jorge Ulisses Jacoby Fernandes que também defendem a independência dos Tribunais de Contas, cujas funções adotam ora natureza administrativa, ora de jurisdição (anômala), neste último caso quando, em decorrência de imperativo constitucional, consubstanciado no art. 71, inciso II, devem julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Em linha de pensamento um pouco diversa, a outra corrente, encabeçada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro389 e Hely Lopes Meirelles390, afirma que as Cortes de Contas não exercem atividade jurisdicional; conforme pontua o mencionado administrativista, as atividades dos Tribunais de Contas brasileiros compreendem “funções técnicas opinativas, verificadoras, assessoradoras e jurisdicionais administrativas”. Consoante se verifica das posições doutrinárias acima referidas, a matéria é controvertida, o que é compreensível, uma vez que no Brasil cabe ao Poder Judiciário exercer a função jurisdicional precipuamente, porém, deve-se ressaltar que não o faz de forma exclusiva, na medida em que a própria Constituição prevê exceções ao exercício da jurisdição pelo mencionado poder, conforme se extrai, por exemplo: 1. do art.52, incisos I e II, nos quais está prevista a competência do Senado Federal para julgar, por crime de responsabilidade, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional Ministério Público; e 2. do art. 84, inciso XII, que prevê a concessão de indulto e a comutação de pena pelo Chefe do Poder Executivo Federal. Cabe, ainda, realçar que a análise da natureza jurídica da jurisdição é questão complexa sobre a qual não se debruçará nesta aula, visto que o tempo e o objeto estão delimitados; porém, não é demais traçar algumas linhas para melhor compreensão do que será estudado adiante. Nesse sentido, reconhece-se que a determinação de quais atividades devem ser consideradas como exercício da jurisdição depende, particularmente, do conceito que se adota para tal expressão.391 A propósito, De Plácido e Silva392, por exemplo, ao enfrentar o significado semântico da palavra jurisdição, a definiu como “o poder de julgar que, decorrente do imperium, pertence ao Estado. E este, por delegação, o confere às autoridades judiciais (magistrados) e às autoridades administrativas”. Assim como o magistrado, ao proferir uma decisão num dado processo, está aplicando o Direito, também o fazem, por exemplo, os senadores quando julgam o Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, o Tribunal de Contas quando julga as contas dos administradores de dinheiro e bens públicos, por força do art. 71, inciso II, da CR/88, e o Presidente da República quando concede indulto. De fato, não se pode refutar que existe diferença no conteúdo da atividade jurisdicional nos exemplos acima mencionados. Tal atividade desempenhada 389 TEIXEIRA, Flávio Germano de Sena. O Controle das Aposentadorias pelos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 46. 390 MEIRELLES. Op. Cit. p. 662-663. 391 Nesse ponto cabe ver: BERMUDES, Sérgio. Introdução ao Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001, e FERNANDES, Sérgio Ricardo de Arruda. Questões Importantes de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Editora DP & A. 1999. 392 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 19ª ed. rev. e atual. Por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 466. FGV DIREITO RIO 175 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I pelo Poder Legislativo tem escopo de ordem política, decorrência natural do processo democrático representativo e, quando exercida pelo Tribunal de Contas, assume feições de ordem técnica e social, na medida em que, ao examinar e julgar as contas dos administradores do patrimônio público, visa a Corte de Contas a analisar se foram respeitados os princípios da legalidade, da legitimidade e da economicidade. Já a jurisdição exercida pelo Poder Judiciário, ao enfrentar as questões trazidas pelos jurisdicionados, vincula-se ao princípio da legalidade.393 Frise-se, entretanto, que uma característica elas têm em comum, que é a tutela dos direitos e garantias fundamentais.394 Oportuno pontuar que, a partir da Constituição de 1988, cabe aos Tribunais de Contas, ao fiscalizar os gastos públicos, aferir, além da legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos da Administração, conforme deixa claro o texto do art. 70 da Carta Maior. Nessa toada, esclarece Flávio Germano de Sena Teixeira:395 “o poder constituinte de 1988 quis sintonizar o Tribunal de Contas no Brasil com a tendência do controle externo no mundo, que não é meramente o controle dos atos da Administração, mas da totalidade da gestão administrativa”. Nessa linha de idéias, Emerson Garcia396 aponta que a atuação do Tribunal de Contas abrange basicamente: 1. a função consultiva, quando profere parecer prévio das contas do Chefe do Poder Executivo; 2. a atividade julgadora, realizada a partir da análise das contas dos administradores de bens e valores públicos; 3. a competência sancionatória, isto é, aptidão para aplicar multas e obrigar os responsáveis por danos ao erário a indenizar na justa medida do prejuízo causado, consoante consagra o art. 71, inciso VIII, da CR/88397; 4. a função fiscalizadora prévia sobre o procedimento licitatório, sendo-lhe admissível analisar editais e até sustar licitações em que haja alguma irregularidade, ex vi do art. 71, inciso X, da CR/88; e, ainda, 5. exercer o controle prévio, ao acompanhar o cumprimento das leis orçamentárias, bem como a eficiência da gestão fiscal, conforme exige a LC 101/00.398 Conforme já dito anteriormente, o Tribunal de Contas, no seu ofício fiscalizador, deve analisar a conduta do gestor da res publica a partir da perquirição dos princípios da legalidade, legitimidade e economicidade. O princípio da legalidade, como é cediço, é a base fundamental dos atos da Administração Pública, devendo ser o vetor da fiscalização das contas públicas, além de servir de base para o exame dos atos de execução orçamentária. O princípio da legitimidade, por sua vez, encontra sua ratio essendi no “equilíbrio e na harmonia entre os valores sociais, éticos e morais do grupamento, ensejando o surgimento de princípios e padrões de conduta de natureza consensual, o que permite divisar uma área de nítida superposição entre a moralidade e a legitimidade dos atos dos agentes públicos”, sustenta Emerson Garcia.399 393 FERNANDES. Op. Cit. p. 148. 394 Cf. Súmula 347 do STF: “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. Isso não significa dizer que o Tribunal de Contas pode declarar a inconstitucionalidade de lei, o que ele pode é deixar de aplicar determinado diploma normativo que esteja em desarmonia com a Constituição. Vale ressaltar que, no tocante às finanças públicas, o controle por parte do Tribunal de Contas é um poder-dever que ultrapassa o aspecto meramente jurídico, enfeixando, igualmente, o aspecto social, vez que inerente a tal controle é a defesa dos direitos humanos fundamentais e do próprio processo democrático. 395 TEIXEIRA, Flávio Germano de Sena. O Controle das Aposentadorias pelos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p. 23. 396 GARCIA. Op. Cit. 141-152. 397 Importante frisar que as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas com imputação de multas ou débitos terão eficácia de título executivo extrajudicial, nos termos do art. 71, § 3o, da CR/88. Tais multas e débitos serão inscritos na Dívida Pública do respectivo ente. 398 A LC 101/00, em seu art. 59, § 1o, estabelece a competência para os Tribunais de Contas alertarem os administradores públicos sobre possíveis descumprimentos das normas nela previstas. Segundo entendimento de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, “a omissão da Corte de Contas (nesse sentido) permitirá a aferição prática do ato de improbidade previsto no art. 11, II, da Lei 8.429/92 (...), o que exigirá sejam perquiridos os motivos de tal omissão à luz da estrutura organizacional do órgão”. In: GARCIA. Op. Cit. p. 148. 399 GARCIA. Op. Cit. p. 147-148. FGV DIREITO RIO 176 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Por fim, tem-se o princípio da economicidade, corolário do princípio da eficiência, proclamado no art. 37, da Carta de 1988, do qual se extrai a premissa de que a gestão da coisa pública deve buscar sempre otimizar os recursos de tal forma a atingir o máximo de feitos positivos para a sociedade, destinatária das atividades estatais. Conforme expressa o art. 71 da CR/88, dentre as atividades do Tribunal Contas estão a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Direta e Indireta. Cumpre indagar, no âmbito da Administração Indireta, até que ponto pode a Corte de Contas fiscalizar as empresas públicas e as sociedades de economia mista? Sobre esta questão, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal que, em sede de Mandado de Segurança n° 23.627, da relatoria do Ministro Ilmar Galvão, definiu que a fiscalização seria possível se jungida aos bens e valores por elas geridos400; o que é vedado é a fiscalização da atividade de caráter privado realizada pelas referidas entidades. Feitas essas considerações, cabe agora enfrentar o controvertido tema tratado no art. 71, inciso II, que prevê a competência de Cortes de Contas, nos seguintes termos: “Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração Direta e Indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público Federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.” (grifo nosso) Conforme ensina o especialista em controle externo Eduardo Carone Costa Júnior401, a competência das Cortes de Contas para julgar402 as contas dos administradores de bens públicos passou a ter base constitucional com a Carta de 1934, se mantendo nas Constituições que lhe sucederam até chegar ao Diploma Constitucional de 1988, que aumentou significativamente o escopo de atuação desses Tribunais. III. 1.1. Adequada Exegese do termo “julgar” utilizado no inciso II do art. 70 da CR/88 Como quase tudo em Direito é objeto de controvérsia no plano da hermenêutica, a expressão “julgar” empregada pelo Constituinte de 1988 também é motivo de dissonância entre os estudiosos. Autores como Régis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath403, exempli gratia, não aceitam a função jurisdicional como inerente à atividade de julgar as contas dos administradores de bens públicos pelo Tribunal de Contas e, para embasar sua posição, utilizam como argumentos: 400 Nesse sentido, cabe, por exemplo, a fiscalização da Caixa Econômica Federal pelo Tribunal de Contas, vez que a referida instituição é gestora do FGTS, como muito bem lembrou Emerson Garcia. In: GARCIA. Op. Cit. p. 143. 401 COSTA JÚNIOR, Eduardo Carone. As Funções Jurisdicional e Opinativa do Tribunal de Contas – Distinção e Relevância para a Compreensão da Natureza Jurídica do Parecer Prévio Sobre as Contas Anuais dos Prefeitos. Disponível em <www.tce.mg.gov.br/ revista>. Acesso em 26.05.2008. p. 1-25. 402 Cumpre ressaltar que, nos termos do art. 71, § 3o, da CR/88, “as decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo”. 403 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. e HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 111-112. FGV DIREITO RIO 177 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I “1. o Tribunal de Contas não compõe o Judiciário; 2. de acordo como o inciso XXXV do art. 5o da CF, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, além do que não haverá “juízo ou tribunal de exceção” (inciso XXXVII). Significa que o legislador constituinte de 1988 manteve o monopólio da atividade jurisdicional em mãos do Poder Judiciário. 3. ao falar o inc. II do art. 71 em julgar as contas, “significa que as aprecia com o significado de avaliá-las, entendê-las, reputá-las bem ou mal, jamais no sentido de sentenciar, de decidir a respeito delas”. (referência textual de Oswaldo Bandeira de Mello).” (grifo dos autores). E concluem os doutrinadores: “(...) afirma-se, categoricamente, que o Tribunal de Contas tem função apenas administrativa.” Nesse sentido, aponta Eduardo Carone Costa Júnior404 que: “O pretenso monopólio da atividade jurisdicional nas mãos do Poder Judiciário, conforme o art. 5o, XXXV, da Constituição da República de 1988 é a base do raciocínio daqueles que negam às Cortes de Contas o poder de dizer o direito em caráter definitivo. Afirmam que o Brasil aderiu ao sistema inglês de jurisdição única, ao contrário do existente em França, onde há jurisdições especializadas.” Na linha de entendimento do mencionado estudioso, a norma inserta no art, 5o, inciso XXXV, a qual dispõe, in verbis, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, não afirma a exclusividade daquele Poder para o exercício da atividade jurisdicional, podendo a própria Constituição prever hipóteses em que tal função é exercida por outro órgão público, e o fez em várias situações como referido alhures: o Legislativo quando julga o Presidente e o Vice-presidente da República por crimes de responsabilidade, o Executivo quando concede indulto, e o Tribunal de Contas quando julga as contas dos gestores de valores e bens públicos. Em sentido contrário à visão de parte da doutrina que não reconhece o caráter de jurisdição à função da Corte de Contas de julgar, consoante o inciso II do art. 71 da CR/88, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes405 assevera que “as decisões dos Tribunais de Contas, quando adotadas em decorrência da matéria que o Constituinte estabeleceu na competência de julgar, não podem ser revistas quanto ao mérito”, uma vez que se isso fosse admissível estar-se-ía tornando inócua não somente a norma constitucional que atribui competência à Corte Contas para julgar as contas dos administradores de dinheiro e bens públicos, como também a própria atividade desenvolvida pelos servidores daquele órgão. Nessa toada, afirma Eduardo Carone Costa Júnior:406 404 COSTA JÚNIOR. Op. Cit. p. 10 405 FERNANDES. Op. Cit. p.89. 406 COSTA JÚNIOR. Op. Cit. p. 20. FGV DIREITO RIO 178 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I “A revisibilidade judicial das decisões dos Tribunais de Contas somente se dará quando estiverem elas contaminadas pelo abuso de poder, em qualquer de suas espécies, excesso de poder ou manifesta ilegalidade. A inafastável garantia do devido processo legal ou a decisão contiver manifesta ilegalidade.”407 Conforme se constata, há bons argumentos em ambos os sentidos, não havendo, entretanto, pronunciamento definitivo por parte do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria. 407 Idem. Ibidem. Cf. o autor quando o Tribunal de Contas “imputa débito ao gestor ou lhe aplica multa, com base no art. 71, II e VIII, da Carta Política de 1988, ele está proferindo uma decisão de caráter eminentemente condenatório que terá eficácia de título executivo”, ex vi do art. 71, § 3o, da CR/88. FGV DIREITO RIO 179 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 11 – O PODER DE TRIBUTAR, A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E A CAPACIDADE TRIBUTÁRIA ATIVA Segundo Norberto Bobbio,408 o poder “é uma relação entre dois sujeitos onde um impõe ao outro sua vontade e lhe determina, mesmo contra vontade, o comportamento”. Entretanto, conforme salienta José Casalta Nabais409 “como dever fundamental, o imposto não pode ser encarado nem como um mero poder para o Estado, nem como um mero sacrifício para os cidadãos, constituindo antes um contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em Estado fiscal” Na aula 15 serão examinadas diversas teorias que tentam explicar a essência ou a natureza da relação tributária, desde a sua qualificação como simples relação de poder, destituída de qualquer outra fundamentação, sendo a norma impositiva do tributo no Estado de Direito simples ordem sem a real natureza de lei410, até as teses que incorporam estruturas e disciplinas do direito obrigacional privado para o Direito Tributário. No momento objetivase apenas apresentar as diversas modalidades em que se manifesta o poder do Estado sobre o direto fundamental de propriedade privada e liberdade de iniciativa, bem como distinguir o denominado Poder de Tributar da Competência Tributária. Ainda, apresentar sob o ponto de vista do federalismo fiscal brasileiro os diversos tributos atribuídos a cada ente político e bem assim examinar o conceito de Capacidade Tributária Ativa, matéria que introduz o estudo da parafiscalidade que será o objeto da próxima aula. 11.1. OS PODERES DO ESTADO E O PODER TRIBUTÁRIO O poder estatal se manifesta em diversas vertentes, sendo usualmente qualificado e distribuído em: poder judicante; poder legiferante; poder de polícia (por meio do qual se manifesta o intervencionismo na ordem econômicosocial e na propriedade); o poder de punir e o poder tributário. O exercício do poder de tributar se realiza sob a constante tensão que é subjacente a toda e qualquer relação de direito público, isto é, de um lado o caráter impositivo do poder estatal e de outro as liberdades individuais do cidadão. Da mesma forma que a autoridade pública tem o poder-dever de exercer as atividades de sua competência para garantir o atingimento do bem comum, sem cometer arbitrariedades ou desvios, o contribuinte, cujo patrimônio deve ser protegido contra os possíveis excessos estatais, também tem que agir de boa-fé e pagar os tributos de acordo com a sua real capacidade econômica, sem a utilização de planejamentos tributários abusivos. Dito de outra maneira: a relação jurídica tributária enfeixa múltiplos direitos e de- 408 BOBBIO, Norberto. O significado clássico e moderno de política. Curso de Introdução à ciência política. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, v.7. p12. 409 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Editora Almedina, 1978, p. 679. 410 Nesse sentido assevera Oto Mayer, citado por Ricardo Lobo Torres, que “o dever geral de o sujeito pagar impostos é uma fórmula destituída de sentido e valor jurídico”. In. TORRES. Op. Cit. p. 231. FGV DIREITO RIO 180 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I veres para todas as partes envolvidas nas diversas fases da tributação, posto ter como objeto prestações indispensáveis à vida em comunidade sob um Estado fiscal. Importante destacar a distinção entre o poder de tributar de um lado e o confisco e a expropriação de outro, esses últimos previstos no artigo 243 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR-88), o qual dispõe: Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias. Assim, apesar da fundamentalidade do direito à propriedade privada, nos termos do inciso XXII do artigo 5º da CR-88, direito individual com aplicação imediata, consoante o disposto no §1º do mesmo dispositivo constitucional, atributo que também consubstancia princípio da ordem econômica, nos termos do inciso II do artigo 170 da CR-88, é possível tanto a expropriação como o confisco nas duas hipóteses específicas acima transcritas, as quais possuem como pressuposto comum o cometimento de ilícitos. Também enseja a flexibilização do direito de propriedade a hipótese de aplicação da denominada pena administrativa de perdimento411 prevista no Decreto-lei nº 37/66, que disciplina o imposto de importação, e no Decretolei nº 1.455/76, nos termos alterados pela Lei 10.637/2002, o qual dispõe sobre bagagem de passageiro procedente do exterior e estabelece normas sobre mercadorias estrangeiras apreendidas. Na pena de perdimento o direito de propriedade privada também é relativizado, podendo estar ou não associada a sua aplicação ao descumprimento de obrigação tributária. O Decreto-lei nº 37/66 estabelece como hipótese de perda de mercadoria estrangeira, já desembaraçada e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em parte, mediante artifício doloso, ou, ainda quando fracionada em duas ou mais remessas postais ou encomendas aéreas internacionais visando a elidir, no todo ou em parte, o pagamento dos tributos aduaneiros ou quaisquer normas estabelecidas para o controle das importações ou, ainda, a beneficiarse de regime de tributação simplificada. O mesmo Decreto-lei prevê, ainda, entre outras hipóteses, a possibilidade de aplicação da pena de perdimento em situações não vinculadas ao pagamento de tributos, como ocorre no caso 411 Existem outras hipóteses de perda da propriedade de bem no ordenamento jurídico, como é o caso da perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio na hipótese de enriquecimento ilícito de agentes públicos no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional de que trata a Lei nº 8.429/92. FGV DIREITO RIO 181 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I de mercadoria estrangeira atentatória à moral, aos bons costumes, à saúde ou ordem públicas. A Constituição de 1967, com a Emenda de 1969, possuia dispositivo prevendo expressamente a denominada pena de perdimento: art. 153. § 11 – Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, nem de banimento. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação penal aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento no exercício de função pública. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (grifo nosso) Sob o atual regime constitucional, dois dispositivos podem servir de fundamento para se questionar a possibilidade ou a viabilidade jurídica de aplicação da denominada pena administrativa de perdimento: (1) o art. 5º LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”); e (2) o art. 150, IV, que veda a possibilidade de qualquer ente federado “utilizar tributo com efeito de confisco”. No entanto, a Segunda Turma do STF, por unanimidade, já se pronunciou no sentido de não haver ofensa à Constituição de 1988 na previsão de pena de perda de bens importados irregularmente, ou seja, tanto o Decreto-lei nº 37/66 como o Decreto-lei nº 1.455/76, que disciplinam as perdas de bens para restituição do erário, foram recepcionados pela nova ordem constitucional. O Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 173689412 possui a seguinte ementa: AI 173689 AgR / DF – DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 12/03/1996 Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA Publicação DJ 26-04-1996 PP-13126 EMENT VOL-01825-05 PP-00918 Parte(s) AGRAVANTE: ARTUR RIBEIRO DE SOUZA AGRAVADA: UNIÃO FEDERAL Ementa IMPORTAÇÃO – REGULARIZAÇÃO FISCAL – CONFISCO. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que, a partir de normas estritamente legais, aplicaveis a espécie, resultou na perda de bem movel importado. VOTAÇÃO: UNÂNIME. RESULTADO: IMPROVIDO. 412 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. AI 173689 AgR / DF, Segunda Turma, Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 25.05.2010. Decisão unânime. FGV DIREITO RIO 182 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I No mesmo sentido também se pronunciou a Segunda Turma do STF por unanimidade, relativamente ao Decreto nº 91.030/85, que havia aprovado o Regulamento Aduaneiro, disciplina atualmente fixada pelo Decreto nº 6.759, de 2009. Dispõe a ementa do acórdão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 251008413: RE 251008 AgR / DF – DISTRITO FEDERAL AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. CEZAR PELUSO Julgamento: 28/03/2006 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 16-06-2006 EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Aeronave. Permanência ininterrupta no país, sem guia de importação. Auto de infração administrativa. Pena de perdimento de bem. Art. 514, inc. X, do Decreto nº 91.030/85, cc. art. 23, caput, IV e § único, do Decreto-Lei nº 1.455/76. Art. 153, § 11, da Constituição Federal de 1967/69. Aplicação de normas jurídicas incidentes à época do fato. Inexistência de ofensa à Constituição Federal de 1988. Agravo regimental não provido. Precedentes. Súmula 279. Não pode ser conhecido recurso extraordinário que, para reapreciar questão sobre perdimento de bem importado irregularmente, dependeria do reexame de normas subalternas. Decisão A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª. Turma, 28.03.2006. Dessa forma, os institutos acima referidos, o confisco, a expropriação e a pena de perdimento, que representam manifestações do poder de punir do Estado, se afastam radicalmente da tributação, isto é, se diferenciam em sua essência, tendo em vista que o tributo não pode constituir sanção contra ato ilícito414, consoante o disposto no artigo 3º do Código Tributário Nacional (CTN). Por outro lado, deve-se repisar que o poder de tributar atinge, também, inevitavelmente, a propriedade privada, característica comum entre os tributos e os aludidos institutos de natureza punitiva. Entretanto, apesar de a tributação reduzir o patrimônio disponível do sujeito passivo, importante enfatizar que é vedada a utilização do “tributo com efeito de confisco”, conforme previsão do já transcrito artigo 150, IV, da CR-88, matéria que será objeto de exame após a Aula 16, quando se iniciam os estudos das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar. Ainda, importante destacar que na disciplina Direito Tributário e Finanças Públicas III será examinada a forma legítima que o Estado possui para cobrar coercitivamente os seus créditos, observado o devido processo legal para a excussão de bens do contribuinte devedor, disciplinado na Lei nº 6.830, de 413 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. RE 251008 / DF, Primeira Turma, Rel. Min. Cezar Peluso. Brasília. Disponível em: <http://www. stf.jus.br>. Acesso em 25.05.2010. Decisão unânime. 414 Isso não quer dizer que o ato ilícito não possa ter efeitos tributários e gerar o vínculo jurídico a ensejar o dever de pagar o tributo por parte do infrator. Assim, por exemplo, a renda produzida por atividade ilícita é sujeita à tributação pelo Imposto sobre a Renda, apesar da vedação do CTN no sentido de que o legislador ordinário utilize o tributo como sanção contra o ato ilícito. FGV DIREITO RIO 183 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 22 de setembro de 1980415 (Lei das Execuções Fiscais-LEF), com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC). De fato, quando um devedor não cumpre espontaneamente uma obrigação, seja ela representada por um título extrajudicial, seja reconhecida por uma sentença judicial condenatória, é facultado ao sujeito ativo da obrigação obter a satisfação do crédito por meio da aplicação medidas coativas que, a seu pedido, são aplicadas pelo Estado no exercício do poder jurisdicional. No entanto, conforme destacado, sob pena de violação aos essenciais direitos individuais à propriedade e à liberdade para o exercício de atividade econômica, a expropriação de bens do contribuinte em decorrência do inadimplemento da obrigação tributária não pode ocorrer senão de acordo com o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR-88). Em suma, a mencionada tensão subjacente a todas as fases da tributação reflete a indissociável correlação entre o poder-dever estatal de tributar para atender as necessidades públicas de um lado e os direitos humanos fundamentais que protegem o patrimônio e a liberdade do cidadão contribuinte de outro. O poder de polícia, por sua vez, manifestação do intervencionismo estatal na propriedade e na ordem econômico-social, também possui elementos de aproximação e de distanciamento no que se refere ao poder de punir e ao poder de tributar. De fato, o poder de tributar e o poder de polícia restringem a margem de liberdade do cidadão e interferem diretamente na propriedade privada, isto é, tanto a liberdade individual como o direito de propriedade são exercidos dentro dos contornos fixados conjuntamente pelo poder de tributar e pelo poder de polícia. A função social da propriedade416 (art. 5º, inciso XXIII, da CR-88) serve de fundamento para o Estado intervir na propriedade privada, como, por exemplo, nas hipóteses de limitações administrativas, servidões, requisições, ocupações temporárias (art. 5º, inciso XXIII, da CR-88), desapropriações por necessidade ou utilidade pública, ou, ainda, por interesse social, mediante justa e prévia indenização (art. 5º, inciso XXIV, CR-88). Nessa toada, merecem destaques as hipóteses de despropriação em razão do descumprimento do plano diretor municipal, de que trata o art. 182, §4º, e bem assim em decorrência de reforma agrária, disciplinado no art. 184, ambos da Constituição de 1988. Em sentido diverso, prover os recursos adequados para atender as necessidades públicas fundamenta as restrições impostas pela tributação à propriedade privada dentro dos parâmetros constitucionais, situação caracterizada pela doutrina na seara tributária417 como a fiscalidade, usualmente qualificada como a imposição dos tributos apenas com fins arrecadatórios. Por sua vez, o emprego dos tributos para atingir outros objetivos além da receita tributária, denominado de extrafiscalidade, aproxima o poder de tributar do poder de polícia. 415 A lei disciplina os procedimentos necessários à cobrança coercitiva de dívidas de natureza tributária ou não (artigos 1º e 2º da LEF). 416 Numa visão clássica, porém de efetiva aplicação prática no direito contemporâneo, o jurista francês Lèon Duguit, influenciado pelas idéias de Augusto Comte, já em 1850 propugnava a propriedade não como direito, mas como função social, conforme se depreende do fragmento textual abaixo transcrito: “Pero la propriedad no es un derecho; es una función social. El proprietario, es decir, el poseedor de una riqueza, tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus actos de proprietario están protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumprir su función social de proprietario, que consiste en assegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino”. In: DUGUIT, Lèon. Las Transformaciones Generales del Derecho Privado, desde el Código de Napoleón. 2. ed. Tradução Carlos G. Posada. Espanha: Livraria Espanola y Estranjera, 1920. Já a doutrina mais recente, representada pelo jurista italiano Pietro Perlingieri, defende a função social da propriedade como fundamento para a elaboração de normas restritivas a seu uso, conforme se extrai de sua doutrina: “em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento”. In: PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. Ainda nesse universo de considerações, Ana Alice De Carli, in: CARLI, Ana Alice De. Bem de Família do Fiador e o Direito Humano Fundamental à Moradia. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2009, p. 91, destaca “o princípio da função social como vetor axiológico do regime patrimonial e, concomitantemente, como regra direcionadora para os proprietários e para o poder público. Desta feita, aos titulares do direito de propriedade cabe o dever de exercê-lo sem abusos e visando ao bem coletivo. O Estado, a seu turno, deve utilizar a referida norma-princípio como meio de controle do espaço urbano e como diretriz para imposições de limites de seu uso”. 417 Para exame do conceito no contexto das Finanças Públicas ver item 1.4 da Aula 1. FGV DIREITO RIO 184 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.418 aponta que a doutrina clássica norteamericana faz distinção entre o poder de tributar e o poder de polícia, podendo as características definidoras de cada uma ser reconhecida a partir da análise da finalidade dos tributos. Nesse sentido, de acordo com a referida doutrina estrangeira tradicional, verifica-se qual é o fim do tributo, qual é sua ratio essendi. Se o objetivo do tributo fosse meramente carrear recursos para os cofres públicos, estaríamos perante a manifestação do poder de tributar. Por outro lado, se a instituição do tributo tivesse como escopo servir de instrumento para o Estado intervir na seara econômica e social, estar-se-ia diante do poder de polícia. A doutrina nacional majoritária, no entanto, a partir de Bilac Pinto419 não reconhece a separação entre o poder tributário e o poder de polícia no que se refere aos efeitos da incidência de tributos, conforme se constata do seguinte trecho: Não vemos também vantagem nem possibilidade da revisão da classificação das rendas públicas, para recompô-la com mais uma categoria: a dos tributos fundados no poder de polícia. Nessa linha aponta Ricardo Lobo Torres420, ao afirmar que: Se é tributo o que se cobra, não desnatura a componente de extrafiscalidade fundada no poder de polícia que pode informá-lo, desde que não lhe retire totalmente a finalidade de contribuir para a cobertura das necessidades públicas. Aliomar Baleeiro também aceita a finalidade extrafiscal na cobrança de taxa, que lhe não conspurca a natureza tributária. 418 A partir dessas divergentes concepções doutrinárias é possível compreender os aspectos iniciais de interconexão entre a fiscalidade e a extrafiscalidade sob o ponto de vista jurídico-tributário, institutos que envolvem tanto o poder de tributar como o poder de polícia – bem como a relação desses institutos com a denominada parafiscalidade. Com efeito, a parafiscalidade será objeto de estudo na próxima aula e a extrafiscalidade na Aula 14, após a análise dos tributos sob a perspectiva econômica de incidência. A respeito do poder de polícia, malgrado não estudarmos aqui o direito administrativo de forma específica, vale trazer à baila as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto421, que descreve o poder de polícia como sendo aquele “exercido pelo Estado enquanto legislador; pois apenas por lei se pode limitar e condicionar liberdades e direitos”. Por outro lado, a função de polícia, ensina, ainda, o autor, consiste na aplicação da lei às situações concretas e é exercida pelo Estado administrador. Na esteira das lições do mencionado administrativista, a polícia administrativa se diferencia da polícia judiciária, pois, enquanto esta (judiciária) tem como ROSA JR., Luiz Emydio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 269-270. Cf. preceitua o autor; “a doutrina clássica nos Estados Unidos distingue entre poder de tributar e poder de polícia. Assim, ao lado do poder de tributar, considera como poder de polícia o poder que o Estado tem de restringir o direito de cada um a favor do interesse da coletividade. Por outro lado, vincula os tributos com finalidade meramente fiscal ao poder de tributar, enquanto o poder de polícia corresponde aos tributos com fins extrafiscais”. 419 BILAC, Pinto. Estudos de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p.147. 420 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume IV. Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro. Renovar, 2007.p.403. 421 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, pp. 385-398. FGV DIREITO RIO 185 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I principal escopo a repressão dos comportamentos humanos ilícitos, a polícia administrativa, a seu turno, relaciona-se ao controle dos “demais valores contidos nas liberdades e direitos fundamentais”, como, por exemplo “todas as formas de atuação, preventivas e repressivas, com suas sanções aplicáveis executoriamente sobre a propriedade e a atividade privadas, atuando, apenas excepcionalmente, através de um constrangimento sobre as pessoas”, pontua Diogo de Figueiredo422. Nesse passo423, variado seria o campo de atuação da polícia administrativa: 1) na área de segurança pública, por meio de instrumentos de controle, fiscalização e manutenção da ordem social; 2) na defesa sanitária; 3) na tutela do patrimônio estético; 4) no controle do comportamento ético nos meios de comunicação; 5) na repressão de condutas contrárias aos bons costumes ou que agridam a sociedade de um modo geral; 6) no controle das atividades comerciais e empresariais; 7) no desenvolvimento humano por meio de instrumentos de proteção ao meio ambiente saudável e sustentável; 8) no processo de imigração; 9) na área de urbanismo e construções; e 10) como regulador das atividades profissionais. No que toca, especificamente, à função disciplinadora das categorias profissionais, importante destacar as profissões liberais, as quais, em regra, têm suas normas norteadoras em leis específicas instituídas pela União, nos termos do art. 22, XVI, da CR-88, que assim dispõe: “art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre. (...)XVI. Organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões”. Nesse contexto, inserem-se as contribuições das categorias profissionais (art. 149 da CR-88) arrecadadas pelas entidades de classe (ex., OAB424, CREA, CRM etc) criadas com o propósito de orientar e fiscalizar as atividades inerentes a sua classe de trabalhadores: matéria que será analisada na próxima aula que trata da parafiscalidade. 11.2. O PODER DE TRIBUTAR Luiz Emygdio F. da Rosa Jr 425 define o poder de tributar como: o exercício do poder geral do Estado aplicado no campo da imposição de tributos (...). O poder de tributar decorre diretamente da Constituição Federal e somente pode ser exercido pelo Estado através de lei, por delegação do povo, logo este tributa a si mesmo. De fato, sob o ponto de vista do constitucionalismo positivado, a Carta de 1988, em seu art.1º, parágrafo único, assim dispõe, in verbis: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 422 MOREIRA NETO. Op. Cit. pp.387-398. 423 MOREIRA NETO. Op. Cit. pp.391-400. 424 Cf. será enfrentado na aula sobre a parafiscalidade, as contribuições ( anuidades ) cobradas pela OAB não tem natureza tributária segundo entendimento jurisprudencial do STJ e do STF. 425 ROSA JR. Op. Cit. p. 269. FGV DIREITO RIO 186 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I É possível visualizar com mais clareza o poder estatal a partir do denominado Estado Moderno, em que a noção de supremacia do poder do Estado dentro dos limites de seu território caracteriza “um único poder com autoridade originária”, ensina Celso Ribeiro Bastos426, que identifica a soberania do Estado como fundamento do poder de tributar. No período medieval, a ideia de supremacia de uma pessoa ou ente político era praticamente inexistente, porquanto nesta época havia multiplicidade de entidades com poderes originários, como, por exemplo: “o Papa, o Sacro Império Romano-Germânico, os reis, a nobreza feudal, as cidades e as corporações de artes e ofícios, todos pretendiam exercer competência não derivadas de outrem, o que era o mesmo que dizer que não se reconhecia reciprocamente nenhuma soberania,” preleciona ainda Celso Ribeiro Bastos427. Aliás, foi com Jean Bodin428, em sua obra Les Six Livres de la Republique, no século XVI, que surgiu a primeira noção de soberania, no bojo da qual o autor defendia a ideia de supremacia do poder monárquico. No século XVI, na Europa, os reis passaram a impor seu poder dentro do espaço geográfico de seus reinados, afastando, desta forma, qualquer ingerência do Papado ou do Império Romano-Germânico429. Na realidade, vários são os fundamentos doutrinários a embasar a legitimidade do poder de tributar, bem como a justificar os limites ao exercício deste poder estatal. A partir de uma visão clássica, por exemplo, a prerrogativa para impor o tributo decorreria da própria soberania do Estado430. Ao passo que, partindo-se de premissas do constitucionalismo contemporâneo, o poder de tributar surgiria a partir da abertura permitida pelos direitos humanos fundamentais. A esta corrente de pensamento se filia Ricardo Lobo Torres431, que, ao discorrer sobre o poder de tributar, aponta a liberdade como elemento delimitador na criação de tributos, e – amparado na ideia de justiça a partir da teoria dos direitos humanos fundamentais –, preleciona que “o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado”. Nessa linha, o estudo moderno do Direito Tributário se direciona com grande ênfase para uma compreensão humanista da tributação, na medida em que os direitos humanos são, ao mesmo tempo, fundamento e limite ao poder de tributar. Essas duas posições, que se projetam também sobre as diferentes concepções acerca das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, parecem se correlacionar com as duas maneiras como Bobbio432 descreve a passagem do denominado estado natural ao estado civil, a primeira designada como hobbesiana, segunda a qual “aqueles que estipulam o contrato renunciam completamente a todos os direitos do estado natural, e o poder civil nasce sem limites: qualquer limitação futura será uma autolimitação”; 426 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 5. ed. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, p, 99. 427 Idem. Ibidem. p. 99. 428 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 16. ed. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, pp.65-66. Para Jean Bodin, a soberania representava o poder absoluto e perpétuo de uma República. Ensina Dallari, que a expressão “República” empregada por Jean Bodin “equivale ao moderno significado de Estado”. 429 BASTOS. Op. Cit. p. 99. 430 MACHADO. Op. Cit. p. 37. 431 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Os Direitos Humanos e a Tributação – imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1999, p. 2. 432 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 43. FGV DIREITO RIO 187 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I já a segunda, chamada de lockiana, o poder civil é “fundado com o objetivo de assegurar melhor gozo dos direitos naturais (como a vida, a propriedade, a liberdade) e, portanto, nasce originariamente limitado por um direito preexistente.” Nessa linha, no primeiro caso o Direito natural desaparece completamente ao dar vida ao Direito positivo; na segunda, o Direito positivo é o instrumento para a completa atuação do preexistente Direito natural. Nesse cenário, torna-se relevante destacar as mutações de conteúdo e alcance pelas quais tem a liberdade, como valor fundamental, experimentado ao longo das diversas fases em que a doutrina tipifica o desenvolvimento do Estado. Assim, ensina Ricardo Lobo Torres433 que, no Estado Patrimonial, a liberdade – em seu conteúdo restrito – era estratificada entre a realeza, os senhores feudais e a igreja, e consubstanciava “o exercício da fiscalidade, a reserva da imunidade aos tributos, a obtenção de privilégios, e o consentimento para a cobrança extraordinária de impostos”. Por sua vez, no Estado de Polícia, a liberdade – ainda com sua concepção restrita – se afirmava como a liberdade do príncipe e da burguesia em ascensão. Nessa fase, “o tributo passa a ser o fiador da conquista da riqueza e da felicidade, da liberdade do trabalho e do incentivo ao lucro no comércio e no câmbio, assumindo características de preço da liberdade”, assevera o mencionado autor434. Já no Estado Fiscal de Direito435, “o tributo é o preço da liberdade, pois serve de instrumentos para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver plenamente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Leviatã”, complementa Ricardo Lobo Torres. Conforme será visto a seguir, a atividade tributária compreende desde a instituição, regulamentação, arrecadação e fiscalização do tributo até o contencioso fiscal que pode se estabelecer entre o sujeito ativo e o sujeito passivo da obrigação tributária. Enquanto a instituição do tributo é atribuição típica e indelegável do Estado, posto envolver o poder de legislar, haja vista a exigência de lei em sentido formal e material para a sua exigência, nos termos do artigo 150, I, da CR-88, por outro lado as atividades de arrecadar, fiscalizar e executar leis, serviços, atos ou decisões proferidas relativamente a tributos possuem natureza eminentemente administrativa, passíveis, portanto, de delegação a outras pessoas jurídicas, matéria a ser examinada na parte final dessa aula e detalhada na próxima aula pertinente à parafiscalidade e na Aula 16 sobre o princípio da legalidade. 11.2.1 A titularidade do Poder de Tributar A doutrina diverge quanto à titularidade do poder de tributar. Alguns defendem a tese de que os entes políticos federados o possuem enquanto ou- 433 TORRES ( 1999 ). pp.2-5. 434 TORRES ( 1999 ). p. 2-3- 14. 435 TORRES ( 1999 ). p. 3. FGV DIREITO RIO 188 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tros, fundamentados na doutrina clássica, entendem ser indivisível o poder estatal, primariamente titularizado pelo povo e delegável apenas ao poder constituinte originário. Neste sentido, as pessoas jurídicas de direito público dotadas de autonomia na Federação somente receberiam competência tributária e não propriamente o poder tributário. Advogando a última tese, com fundamento nas lições de Rubens Gomes de Souza436, Edgard Neves437 sustenta: O Estado atua em determinado território, atendendo aos interesses de seu povo, do qual emana o poder absoluto, incontrastável, de querer coercitivamente e fixar competências, soberania. No enfoque que mais perto nos interessa, o Estado apresenta-se como um sistema organizado de serviços públicos, e a maior parte de suas fontes de renda está vinculada diretamente àquele poder absoluto, uno, indivisível e incontrastável, representado pelo seu jus imperii, ou seja, o poder de tributar. Materializando sua atuação, o Estado estrutura-se basicamente no binômio encargos – atendimento das necessidades públicas e recursos – rendas necessárias para aquela satisfação. Diferentemente dos Estados centralizados, nos descentralizados, federativos, as atribuições e recursos constitucionalmente esparramam-se pelos entes federados, os quais dentro de seus campos de atuação, devem perseguir o bem comum, o interesse público. (...) Assim, as pessoas jurídicas de direito público que formam a Federação recebem da Constituição não mais o poder, inerente à soberania do Estado Federal, mas, tão-somente, a competência para buscar receitas por meio das fontes nela previstas. (grifo nosso) Em linha de pensamento diversa, Sacha Calmon Navarro Coêlho438 ao analisar o artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assevera: Em primeiro lugar, verfica-se que várias são as pessoas políticas exercentes do poder de tributar e, pois, titulares de competências impositivas: a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Entre eles será repartido o poder de tributar. Todos recebem diretamente da Constituição expressão da vontade geral, as suas respectivas parcelas de competência e, exercendo-as, obtêm as receitas necessárias à consecução dos fins institucionais em função dos quais existem (discriminação de rendas tributárias). O poder de tributar originariamente uno por vontade do povo (Estado Democrático de Direito) é dividido entre as pessoas políticas que formam a federação. (grifo nosso) Saliente-se que a Seção II, do Capítulo I, do Título VI da CR-88, intitulada “Das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar” é dirigida aos entes políticos, conforme determina o caput do artigo 150, o que parece indi- 436 Rubens Gomes de Souza, citado por Edgard Neves, aponta: “O poder tributário, portanto – pertence ao Estado Federal, como um todo – é repartido sob a forma de competências tributárias, no Brasil, às pessoas políticas criadas pela Constituição Federal: União, Estados e Municípios”. In, SOUSA, Rubens Gomes. Estudos de Direito Tributário. São Paulo, 1950.p.266. 437 SILVA, Edgard Neves da. Imunidade e Isenção.In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coordenador). Curso de Direito Tributário. 10. Ed. rev.atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 281-282. 438 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 4-5. FGV DIREITO RIO 189 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I car que o poder constituinte originário fundamentou-se na premissa de que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios realmente possuem poder de tributar. 11.3. A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO TRIBUTÁRIO E A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA Preliminarmente, cumpre repisar, nos termos já explicitados na Aula 2, que compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Financeiro e Tributário, nos termos do artigo 24, inciso I. O âmbito da competência da União,439 como ente polítco de coordenação, é limitado às normas gerais, conferindo a Constituição, ao mesmo tempo, a competência suplementar aos Estados. Corolário da autonomia federativa estampada nos artigos 1º, 18 e 60, §4º, I, da CR-88, o Município, além de instituir e arrecadar os seus tributos (art. 30, III, da CR-88), também tem a atribuição de suplementar a legislação federal e estadual (artigo 30, II, da CR-88) no que couber. Essa prerrogativa para legislar sobre Direito Tributário conferida aos entes políticos constitui uma competência genérica440 para disciplinar os múltiplos aspectos das relações jurídicas tributárias por meio de leis dos seus respectivos parlamentos. É a denominada competência concorrente dos entes políticos para editar normas objetivando disciplinar a tributação. Conforme será examinado na parte final do semestre, no âmbito da competência concorrente para legislar sobre Direito Tributário, quando a União não edita a lei exigida pela Constituição para estabelecer as normas gerais, o Estado pode exercer a sua competência legislativa de forma plena (§1º do art. 24 da CR-88) A competência tributária, de forma diversa, é a atribuição constitucionalmente conferida ao ente político para instituir e disciplinar os tributos específicos de sua competência, também por meio de lei editada por seu Poder Legislativo. Nesse sentido, a chamada competência tributária comum441, a qual será examinada abaixo, nomenclatura utilizada no campo tributário para designar a competência tributária concorrente, ocorre na hipótese em que a Constituição confere a mais de um ente federado a prerrogativa de instituir determinado tributo de acordo com a sua competência administrativa, como ocorre nos casos (1) das taxas (art. 145, II, da CR-88); (2) das contribuições de melhoria (art. 145, III, da CR-88) e (3) das contribuições previdenciárias sobre os seus servidores (art. 149 caput e §1º da CR-88). Portanto, não se deve confundir a competência concorrente para legislar sobre Direito Tributário (art. 24, I, e 30, I, da CR-88) com a competência tributária concorrente ou comum (art. 145, II, III e 149 caput e §1º). 439 Esse dispositivo constitucional (art. 24, §1º) parece se dirigir (“limitar-se-á a estabelecer normas gerais”) exclusivamente à função coordenadora da União, conforme acima salientado, tendo em vista que a mesma União, como pessoa jurídica de direito público interno, no exercício de suas funções como ente político autônomo, nos termos do art. 18 da CR-88, também expede normas específicas de caráter exclusivamente federal no bojo da competência concorrente, dentro dos limites constitucionais estabelecidos, inclusive no que pertine à matéria financeira e tributária. Dessa forma, conforme já salientado, pode-se distinguir a legislação expedida pela União em duas modalidades, as leis de caráter nacional, posto vincularem a atividade legislativa dos entes políticos, e as leis de natureza eminentemente federal. A União pode expedir normas, por exemplo, de direito financeiro e de direito tributário concerenentes à sua atividade financeira específica, independentemente da edição das normas gerais referidas no citado §1º do artigo 24 da CR-88. 440 O Código Tributário Nacional, por exemplo, foi editado pela União com fundamento em sua competência para editar normas gerais sobre Direito Tributário o que não se confunde com as leis instituidoras dos tributos de competência da União, como é o caso da lei que insituiu, por exemplo, o imposto sobre a renda ou sobre produtos industrializados. 441 No âmbito do Direito Constitucional a competência comum se refere às atribuições de natureza administrativa de que trata o art. 23 da CR-88, ao lado da competência exclusiva (enumerada, no art. 21, e remanscente, de que trata o art. 25, §1º), decorrente (que está implícita na CR-88) e originária (art. 30) dos Municípios. Por outro lado, as competências legislativas são classificadas em: privativa (art. 22); concorrente (art. 24), suplementar (art. 24, §§1º a 4º); delegada (art. 22, parágrafo único, e 23, parágrafo único) e originária (art. 30). FGV DIREITO RIO 190 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O estudo específico da competência está subdividido em 5 tópicos a saber: 1. o conceito de “competência tributária”; 2. as suas características; 3. o seu destinatário; 4. a distribuição ou repartição da competência tributária pela CR-88; e 5. a correlação entre o poder de tributar, a competência tributária e a capacidade tributária. 11.3.1. Conceito de Competência Tributária No dizer de Paulo de Barros Carvalho442, “a competência tributária (...) é uma das prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos”, ou seja, a competência tributária é um atributo conferido pela Constituição à União, Estados, Distrito Federal e os Municípios, entes federados dotados de Poder Legislativo. Para Zelmo Denari443, “a competência tributária coloca-se no plano institucional do tributo, mas a outorga é de índole constitucional, pois os entes políticos (União, Estados e Municípios) só podem instituir os tributos discriminados na Constituição”, enquanto a capacidade tributária, alude o autor, “coloca-se no plano operacional e significa a aptidão para cobrar tributos legalmente instituídos”. Na perspectiva de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.444a competência tributária “é a parcela do poder conferida pela Constituição a cada Ente Político para criar tributos”. Na concepção de Luciano Amaro445 a competência tributária “implica a competência para legislar, inovando o ordenamento jurídico, criando o tributo ou modificando sua expressão qualitativa ou quantitativa, respeitados, evidentemente, os balizamentos fixados na Constituição (...)”. Pelo exposto pode-se concluir que a competência tributária, atribuição de natureza política que se vincula à função legislativa, representa a prerrogativa constitucionalmente conferida aos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para instituir e disciplinar os tributos, por meio de seu Poder Legislativo, no âmbito, limites e contornos de seu poder de tributar. Cabe, ainda, salientar que a competência, em seu sentido amplo, abarca também a capacidade tributária ativa, uma vez que o Ente competente para instituir e disciplinar a exação tem, igualmente, a prerrogativa de executar as leis, serviços, atos ou decisões administrativas relativas aos tributos a ele atribuídos, inclusive no que se refere à cobrança, arrecadação e fiscalização. Constata-se, portanto, que a denominada capacidade tributária ativa, ao contrário da competência tributária, compreende funções de natureza eminentemente administrativa, que não constituem, portanto, ações de caráter primariamente político, matéria cujo exame será explicitado no final desta aula e aprofundado na próxima aula sobre a parafiscalidade. 442 CARVALHO. Op. Cit. pp. 707-709. 443 DENARI, Zelmo. Sujeitos Ativo e Passivo da Relação Jurídica Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva ( coordenador ). Curso de Direito Tributário. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp. 171-190. 444 ROSA JR.Op. Cit. p.255. 445 AMARO. Op. Cit. p. 99 FGV DIREITO RIO 191 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 11.3.2. Características da Competência Tributária A competência tributária tem basicamente seis elementos caracterizadores, os quais podem ser delineados da seguinte maneira: a. privatividade; b.indelegabilidade; c.incaducabilidade; d.inalterabilidade; e. irrenunciabilidade; e f. facultatividade do exercício. A privatividade, como do termo mesmo se infere, significa a prerrogativa que determinado Ente da federação possui para exercer a competência tributária dentro de seu espaço territorial, afastando, dessa forma, a possibilidade de outro Ente extrapolar os limites demarcados pela Constituição. Nesse sentido, dispõe o art. 8º do Código Tributário Nacional (CTN) que “o não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído”, ou seja, não pode, por exemplo, um estado-membro da Federação instituir o imposto sobre grandes fortunas (o qual é da competência da União, nos termos do art. 153, inciso VII, da CRFB/88) pelo simples fato de o Ente competente, no caso a União, não o fazê-lo. A indelegabilidade é uma característica e atributo de caráter obstativo, isto é, veda a possibilidade de transferência da parcela delimitada do poder de tributar de determinado Ente Político a outro, ainda que parcialmente, tampouco ao Poder Executivo. A razão da indelegabilidade, certamente, vincula-se ao fato de que a função precípua de legislar não pode ser transferida, sob pena de relativização do próprio Estado Democrático de Direito ou do regime federativo adotado. Esta qualidade tem sentido significativo, visto que a competência tributária, tal como concebida em nosso constitucionalismo, decorre da delimitação do poder de tributar, afastando, deste modo, a possibilidade de os detentores de mandato eletivo, em sede dos respectivos Entes Políticos, utilizarem o tributo como instrumento político-eleitoreiro para outros interesses, até mesmo de caráter público, mas momentâneos. A incaducabilidade, a seu turno, tem como ratio subjacente a discricionariedade legislativa, isto é, o Poder Legiferante do Ente federativo não está adstrito a qualquer limitação temporal para criar seus tributos. O que não se confunde com o princípio da irrenunciabilidade, o qual pressupõe o potencial exercício da competência tributária, a despeito da discricionariedade temporal legislativa para o exercício da prerrogativa. A inalterabilidade vincula-se ao fato de que o Poder Público não pode ampliar o escopo da competência tributária determinada pela Constituição Federal, sob pena de violar o próprio pacto federativo. Por fim, a facultatividade do exercício da competência tributária. É preciso ter-se certo cuidado com este princípio, porquanto, ao mesmo tempo em que o Poder Público possui discricionariedade legislativa para criar seus FGV DIREITO RIO 192 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tributos, ele deve obediência à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), a qual, em seu artigo 11, dispõe: “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente federado”. Impõe-se, portanto, uma indagação: A não-instituição de um tributo, o qual a CRFB/88 atribuiu a determinado Ente Político, viola ou não o art. 11 da Lei Complementar 101/00 (a denominada Lei de Responsabilidade Fiscal), que dispõe: “Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”?446. 11.3.3. Os destinatários da Competência Tributária O destinatário da norma constitucional que confere competência é o Poder Legislativo do Ente Político respectivo, haja vista que no Estado de Direito o Poder Público também deve observância às normas jurídicas que edita, submetendo-se, portanto, ao princípio da legalidade. Dessa forma, a Administração Pública subsume a sua atuação aos ditames legais, ex vi do art. 37 e art. 150, inciso I, da Carta Constitucional de 1988. Nesse sentido, a Constituição não cria o tributo, apenas confere ou atribui competência para que o ente político o institua por meio de lei ordinária, salvo as exceções constitucionalmente fixadas, como é o caso da citada competência residual da União, para instituir outros impostos além daqueles listados no artigo 153, mediante lei complementar, observadas as restrições aludidas no artigo 154, I, da CR-88. A competência da União para instituir empréstimos compulsórios também é exercida por meio de lei complementar, nos termos do artigo 148 da CR-88, assim como a atribuição para criar outras contribuições para o financiamento da seguridade social, consoante o disposto no §4º do artigo 195, o qual estabele como requisito ao exercício dessa atribuição a observância do contido no já citado artigo 154, I, da CR-88. 11.3.4 A distribuição ou repartição da Competência Tributária A doutrina447 aponta, basicamente, três modalidades de competência tributária. Na realidade, a estratificação do instituto da competência em espécies ou modalidades visa, basicamente, a facilitar o entendimento do tema, pois, na realidade, é sempre possível apontar imperfeições e novas perspectivas. Nessa toada, importante destacar que “as classificações não são certas ou erradas – são úteis ou inúteis, na medida em que servem para identificar melhor o objeto de análise”, assevera Genaro A. Carrió448. Nesse contexto, vejamos as referidas modalidades apresentadas pela doutrina: 446 Como compatibilizar a LRF ( LC 110/00 ) com a norma inserta no art. 153, inciso VII, CR/88? 447 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p.95. 448 CARRIÓ, Genaro A. Notas sobre Derecho y Language. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1973, p. 72. FGV DIREITO RIO 193 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 1) a competência comum, a qual consubstancia a prerrogativa de todos os Entes Políticos instituirem tributos. Exemplos usualmente apontados quanto a esta atribuição são as taxas, a contribuição de melhoria e as contribuições previdenciárias cobradas dos respectivos servidores449; 2) a competência privativa450, por meio da qual apenas o Ente Político específico possui a atribuição para criar determinado tributo: por exemplo, cabe à União criar o imposto sobre exportação (vide art. 153, II, da CRFB/88); cada Estados tem a prerrogativa de instituir o ITCMD (cf. art. 155, I, da CRFB/88), aos Municípios incumbe o dever institucional relativo ao IPTU (nos termos do art. 156, I, da CRFB/88); e 3) a competência residual, que é conferida à União para instituir outros impostos, além daqueles expressamente descriminados na Constituição. Ensina Luciano Amaro451, no tocante à competência privativa da União, em sua vertente extraordinária, “o critério de partilha de situações materiais para a criação de impostos é afastado em caso de guerra ou sua iminência, pois, dada a excepcionalidade dessas situações, atribui-se à União competência para criar impostos extraordinários”. Ainda, segundo o autor, a Constituição de 1988, neste caso, permitiu a União instituir impostos, cujas situações materiais estão fora da moldura de sua competência tributária; ou seja, a União para criar impostos extraordinários “não fica adstrita às situações materiais a ela normalmente atribuídas (nomeada ou residualmente), podendo, além dessas, tributar aquelas inseridas, ordinariamente, na competência dos Estados ou dos Municípios (por exemplo, a circulação de mercadorias ou serviços de qualquer natureza)”. Ainda, com relação à competência privativa extraordinária da União, pertinente é a observação feita por Paulo de Barros Carvalho452: “(...) convém esclarecer, todavia, que por guerra externa haveremos de entender aquela de que participe o Brasil, diretamente, ou a situação de beligerância internacional que provoque detrimentos ao equilíbrio econômico-social brasileiro”. Na linha de intelecção do mencionado autor, a União pode lançar mão da competência extraordinária, desde que cumpridos os requisitos esculpidos no art. 154, II, da CRFB/88, ou seja, em casos de guerra ou de sua iminência, nos quais o Brasil busca a defesa de seus interesses nacionais. Apenas para fins didáticos, vejamos graficamente as mencionadas classificações: 449 Nesses casos, de competência tributária comum, a definição do ente político específico que tem a atribuição para instituir e disciplinar determinado tributo em particular depende da competência material definida pela Constituição. A competência para instituir e cobrar determinada taxa ou contribuição de melhoria depende de qual o ente político com atribuição para a realização da obra pública ou para o exercício do poder de polícia ou da prestação de serviço público específico e divisível, ou seja, a unidade federada que realiza o serviço público e a obra será a titular da exação. Nesses termos, somente é possível determinar qual é o ente competente para tributar nessas três hipóteses após desvendar-se a quem a Constituição conferiu a atribuição para prestar o serviço público específico, exercer o poder de polícia, realizar a obra pública ou, ainda, estabelecer a qual ente político se vincula o servidor público cuja contribuição previdenciária se exige. Dessa forma, por exemplo, a taxa de incêndio é de competência dos Estados enquanto a taxa de lixo é de titularidade dos Municípios, haja vista as repectivas atribuições materiais. Em suma, o ente político competente para instituir, cobrar e arrecadar a taxa, a contribuição de melhoria e a contribuição previdenciária sobre o servidor público será aquela unidade federada a qual se conecta a situação ensejadora da tributação, podendo ser, alternativamente, a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município. 450 A competência privativa se desdobra em ordinária e extraordinária, sendo que esta somente a União possui, nos termos do art. 154, II, da CRFB/88, que assim dispõe: “Art. 154. A União poderá instituir: II. na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária,os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação”. 451 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11 ed. rev. e atual. São Paulo; Editora Saraiva, 2005, pp. 97-98. 452 CARVALHO, Paulo de Barros. Competência Residual e Extraordinária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva ( coordenador ). Curso de Direito Tributário. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp. 707-709. FGV DIREITO RIO 194 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O quadro abaixo apresenta de forma esquemática a distribuição de competências em relação aos tributos de acordo com a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) das diversas espécies discriminadas na Constituição de 1988. O posicionamento do STF, relativamente ao agrupamento das diversas espécies tributárias, conforme já destacado, foi fixado especialmente no RE 138.284-8, RE 146.733 e ADC-1/DF. Nessas decisões foi adotada a tese qüinqüipartide dos tributos, isto é, seriam 5 (cinco) as espécies tributárias. Ressalte-se, entretanto, que após essas manifestações judiciais foi introduzido o artigo 149-A à CR-88, pela Emenda Constitucional 39/2002, dispositivo que atribuiu competência aos Municípios para instituírem a denominada contribuição de iluminação pública453. Portanto, atualmente, seriam considerados tributos: (1) os empréstimos compulsórios454 (artigo 148 da CR-88); (2) a contribuição de iluminação pública (art. 149-A); (3) as taxas (artigo 145, II, da CR-88); (4) as contribuições de melhoria (artigo 145, III, da CR-88); (5) os impostos (artigo 145, I, da CR-88); (6) as contribuições especiais (artigo 149 da CR-88), sendo estas últimas subdivididas em três grupos: (6.1) contribuições sociais; (6.2) contribuições de intervenção no domínio econômico e (6.3) contribuições de interesse das categorias profissionais e econômicas. As contribuições sociais (6.1), por sua vez, desdobram-se em: (6.1.1) sociais gerais; (6.1.2) de seguridade social (art. 195 da CR-88) e (6.1.3) outras de seguridade social (art. 195 §4º da CR-88). Importante repisar, ainda, que o artigo 149 da CR-88 confere competência privativa à União para criar contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, o que não afasta a possibilidade de os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituírem contribuição para a seguridade social de seus servidores, nos termos do §1º do mesmo dispositivo constitucional. De fato, o artigo 149 da CR-88 é o fundamento de validade constitucional das mencionadas contribuições especiais e, também, elemento de conexão entre a denominada Constituição Tributária e aquela que disciplina a Segurança ou Seguridade 453 De acordo com a jurisprudência fixada pelo STF os Municípios não podem cobrar taxas de iluminação pública. Vide Súmula nº 670: “O serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa”. 454 Conforme examinado na Aula 6, para os efeitos do Direito Financeiro, os empréstimos compulsórios são qualificados como dívidas forçadas, em contraposição às dívidas voluntárias contraídas pelo Poder Público, já que decorrem de obrigação legal. Não são receitas definitivas tendo em vista que seus valores devem ser restituídos. FGV DIREITO RIO 195 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Social, onde são previstas de forma detalhada e especificada essas espécies tributárias, tais como, por exemplo, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) – artigo 195, I, “b” –, a Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) – artigo 195, I, “c” –, a contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) – artigo 239 –, e etc. Espécies tributárias Distribuição de competência tributária fixada na Constituição de acordo com o federalismo fiscal brasileiro União Estados Municípios 1. Emprésti- Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos mos Comcompulsórios: pulsórios I–para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II–no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, “b”. Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição. Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica. 2. Contribuição de Iluminação Pública 3. Taxas Art. 145, II–taxas, em razão do exercício do (1) poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de (2) serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; Art. 145, II–taxas, em razão do Art. 145, II–taxas, em razão do exercício do (1) poder de exercício do (1) poder de polícia ou pela utilização, polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de (2) efetiva ou potencial, de (2) serviços públicos específicos serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua contribuinte ou postos a sua disposição; disposição; FGV DIREITO RIO 196 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Art. 145, III–contribuição de melhoria, 4. Contridecorrente de obras públicas. buição de Melhoria 5. Impostos Art. 145, III–contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. Art. 145, III -contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. 1) Imposto sobre a Proprieda1) Imposto de Importação de produtos 1) Imposto sobre a Transmisde Territorial Urbana (IPTUestrangeiros (art. 153, I); são Causa mortis e Doação, art. 156, I) 2) Imposto de Exportação, para o de quaisquer bens ou direi2) Imposto sobre a Transmisexterior, de produtos nacionais ou tos (ITCMD- art. 155, I) são de Bens Imóveis (ITBI nacionalizados (art. 153, II) 2) Imposto sobre operações re–art. 156, II) 3) Imposto de Renda da Pessoa Física lativas à circulação de mer(IRPF) e Jurídica (IRPJ) incidente sobre cadorias e sobre prestações 3) ISS–Imposto sobre Serviços de qualquer natureza, não o Ganho de Capital apurado na aliede serviços de transporte compreendidos no art. 155 nação de bens e direitos (art. 153, III) interestadual e intermuniII, definidos em lei comple4) Imposto sobre produtos industrializacipal e de comunicação, mentar (art. 156) dos (IPI- art. 153 IV) ainda que as operações e as prestações se iniciem no 5) Imposto sobre operações de crédito, exterior (ICMS–art. 155, II) câmbio e seguro, ou relativas a títulos e valores mobiliários -IOF (Art 153 V) 3) Imposto sobre a propriedade de Veículos Automotores 6) Imposto sobre a propriedade Territo(IPVA- art. 155, III) rial Rural (ITR – art. 153, VI) 7) Imposto sobre grandes fortunas (IGF – art. 153, VII) FGV DIREITO RIO 197 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 6. Contribuições especiais 1) Contribuição para a Previ1) Contribuições sociais dência dos seus servidores a. Gerais: Fundo de Garantia sobre o Tem(art. 149, §1º e art. 40). po de Serviço (FGTS – art. 7º, III); Salário Educação455 (art. 212,§5º) etc. b. Contribuição para a Seguridade Social em geral (art. 149 c/c art. 195) - Contribuição para a Previdência dos seus servidores (art. 149 caput e art. 40) Outras contribuições sobre a folha de salários e demais rendimentos (previdenciárias do empregador), sobre o trabalhador e demais segurados (previdenciária dos empregados) sobre o lucro (CSL), sobre a receita ou faturamento (COFINS), sobre a receita de concursos prognósticos, do impotador de bens e serviços. c. Outras de seguridade social (art. 195 §4º) Programa de Integração Social (art. 239) Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (art. 239) 2) intervenção no domínio econômico (art. 149 caput, §2º e art. 177, §4º–CIDE petróleo) e outras de interventivas (AFRMM, CODENCINE etc.) 3) de interesse das categorias profissionais ou econômicas: Contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e formação profissional vinculadas ao sistema sindical (art. 240): chamado sistema S, que compreende as contribuições para o serviço nacional de aprendizagem rural (SENAR), para o serviço nacional de aprendizagem de transporte (SENAT), para o serviço social de transporte (SEST), para o serviço social da Indústria (SESI), para o serviço nacional de aprendizagem comercial (SENAC), para o serviço nacional de aprendizagem industrial (SENAI), para o serviço social do comércio (SESC). Contribuição prevista no artigo 8º IV da CR-88. 1) Contribuição para a Previdência dos seus servidores (art. 149, §1º e art. 40). Conforme será examinado nas Aulas 13 e 14, pertinentes às diferentes bases econômicas de incidência de tributos e da extrafiscalidade, respectiva- 455 Dispõe a Súmula nº 732 do STF: “É constitucional a cobrança da contribuição do salário-educação, seja sob a carta de 1969, seja sob a Constituição Federal de 1988, e no regime da Lei 9424/1996.” FGV DIREITO RIO 198 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mente, e bem assim na aula concernente à capacidade contributiva (Aula 17), todas essas espécies tributárias supracitadas podem ser agrupadas e estudadas, além da perspectiva jurídica do nosso federalismo fiscal, conforme acima segmentado, também sob o ponto de vista: (1) das diferentes situações de fato ou situações jurídicas (atos, fatos ou negócio jurídicos) a ensejar a incidência de tributos, enfoque a ser utilizado na aula pertinente ao estudo da relação jurídica tributária (Aula 15); e (2) do substrato econômico a que se vinculam, isto é, o patrimônio, a renda ou o consumo, os quais consubstanciam as três bases econômicas de incidência dos tributos (Aula 13 e 14). Antes do início do último tópico desta aula, que serve de introdução ao conteúdo da próxima, pertinente à parafiscalidade (Aula 12), importante repisar que a competência tributária não se confunde com a capacidade tributária. Esta está compreendida naquela, já que se consubstancia no direito de arrecadar ou fiscalizar tributos ou a execução de leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, sendo, em regra, atribuição do próprio Poder Executivo do Ente Político competente para instituir o tributo, podendo, conquanto, ser delegada, nos termos do já citado art. 7º do CTN, ao contrário do que corre com a competência tributária, que é indelegável, haja vista ser vincualda à função legislativa de caráter político, conforme já salientado. De fato, na delegação da capacidade tributária ativa transfere-se o exercício de determinadas funções administrativas e não propriamente uma parcela da competência. 11.3.4. A Competência Tributária e a sua correlação com o Poder de Tributar, a Capacidade Tributária e a Sujeição Ativa É possível a delegação de capacidade tributária ativa para pessoas jurídicas de direito privado? A resposta para essa pergunta requer a preliminar determinação se a atribuição da capacidade tributária a outra pessoa altera – ou não – o sujeito ativo da relação jurídica tributária, questão que se projeta, também, sobre o processo judicial tributário. Essa análise suscita, também, o exame da equivalência ou não dos dois conceitos, isto é, se capacidade tributária ativa é – ou não – sinônimo de sujeição ativa. O artigo 119, do CTN dispõe sobre a sujeição ativa nos seguintes termos: Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir seu cumprimento. A regra geral, conforme já salientado, é que a competência e a capacidade tributária ativa estejam reunidas, isto é, normalmente o ente político competente para instituir o tributo também exerce as atividades de arrecadação, FGV DIREITO RIO 199 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I fiscalização e bem assim executa as leis, serviços, atos ou decisões administrativas relacionados ao tributo de sua atribuição. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a sujeição ativa é alterada na hipótese da delegação da capacidade tributária ativa, conforme se infere do seguintes trecho da ementa AgRg no Recurso Especial nº 257.642/SC456, cuja parte relevante da ementa revela: Ilegitimidade passiva da União e legitimidade do FNDE e do INSS, visto que este é o agente arrecadador e fiscalizador da contribuição do salário-educação, repassando àquele os valores devidos e arrecadados, sendo, portanto, o sujeito ativo da obrigação tributária, nos moldes do art. 119 do CTN. (grifo nosso) Caso a entidade para a qual foi deferida a capacidade tributária ativa seja extinta, ocorre a sucessão da sujeição ativa (da parte que ocupa um dos pólos da relação jurídica), que retorna ao ente político competente, conforme se extrai da seguinte ementa do REsp 655800/AL457, cujo acórdão prescreve: 1. A Contribuição de que trata o art. 64 da Lei 4.870/65 tinha por sujeito ativo o Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA. 2. A sujeição ativa, fixada por lei, não pode ser alterada por mera deliberação do Conselho do Instituto. 3. Com a extinção do IAA, a União, como sua sucessora, passou a ocupar o pólo ativo nas relações tributárias anteriormente titularizadas por essa autarquia. 4. De acordo com o art. 131, § 3º, da Constituição Federal, “na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”. 5. Ilegitimidade da Cooperativa dos Plantadores de Cana de Alagoas Ltda. (COPLAN) para promover, em nome próprio, execução de tributo devido à União. 6. Recurso Especial não provido. Em segundo lugar, importante destacar que, nos termos do §2º do citado artigo 7º do CTN, a delegação da capacidade triibutária ativa pode ser revogada expressamente, a qualquer tempo, por ato unilateral da pessoa jurídica de direito público que tenha conferido à outra pessoa jurídica a função de arrecadar ou fiscalizar tributos ou a execução de leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária. Um exemplo concreto de revogação de delegação de capacidade tributária ativa pode ser extraído da Lei nº 11.098/2005. Durante muito tempo a União, ente político competente para instituir as denominadas contribuições 456 BRASIL. Poder Judiciário. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 257642/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto. Julgamento em 15.08.2002. Brasília. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 16.05.2010. Decisão por unanimidade de votos. 457 BRASIL. Poder Judiciário. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 257642/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin. Julgamento em 06.12.2007. Brasília. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 16.05.2010. Decisão por unanimidade de votos. FGV DIREITO RIO 200 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I previdenciárias, espécie do gênero contribuição para financiamento da seguridade social (artigo 195 da CR-88), delegou a capacidade tributária ativa de algumas dessas contribuições previdenciárias para o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal458 dotada de personalidade jurídica própria, não se confundido, portanto, com o próprio ente federal. Assim, o INSS, além de sua atribuição para reconhecer benefícios previdenciários e realizar os pagamentos a eles vinculados, também possuia a capacidade tributária ativa por delegação da União, visto ser também responsável pelo custeio da previdência. Nesse sentido aponta Eduardo Tanaka459: Em 1990, o Sinpas é extinto. A Lei nº 8.029/90 cria o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como autarquia federal, mediante fusão do Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social (Iapas), repsonsável pelo custeio, com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), responsável pelo benefício. Desta forma, custeio e benefício unem-se em uma única entidade, o INSS. (grifo nosso) O Superior Tribunal de Justiça ao examinar a situação vigente à época, que foi posteriormente alterada conforme será abaxo explicitado, assim se pronunciou por meio do voto do relator José Delgado no AgRg no RESP 440921:460 Em realidade, está a parte autora a confundir a competência tributária com a capacidade tributária ativa. A União, no caso, detém a competência tributária, podendo legislar sobre a contribuição previdenciária, mas quem detém a capacidade tributária ativa para gerenciar, exigir e cobrar a contribuição previdenciária é a autarquia federal INSS. Confira-se a lição do renomado professor PAULO DE BARROS CARVALHO, in “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, SP, 1996, pág. 146. “A competência tributária, em síntese, é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Não se confunde com a capacidade tributária ativa. Uma coisa é poder legislar, desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando os expedientes necessários à sua funcionalidade, outra é reunir credenciais para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. O estudo da competência tributária é um momento anterior à existência mesma do tributo, situando–se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado ao ensejo de desempenho das competências, quando o legislador elege as pessoas componentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece, no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa. A distinção justifica-se 458 Nos termos do artigo 4º, II, do Decreto-lei 200/1967, a autarquia compõe a denominada Administração Indireta e possui personalidade jurídica própria, vinculando-se ao Ministério cuja área de competência estiver enquadradasua principal atividade. 459 TANAKA, Eduardo. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.p.7. 460 BRASIL. Poder Judiciário. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 440921/PR, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado. Julgamento em 22.10.2002. Brasília. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 04.01.2011. Decisão por unanimidade de votos. FGV DIREITO RIO 201 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I plenamente. Reiteradas vezes, a pessoa que exercita a competência tributária se coloca na posição de sujeito ativo, aparecendo como credora da prestação a ser cumprida pelo devedor. É muito freqüente acumularem-se as funções de sujeito impositor e de sujeito credor numa pessoa só. Além disso, uma razão de ordem constitucional nos leva a realçar a diferença: a competência tributária é intransferível, enquanto a capacidade tributária ativa não o é. Quem recebeu poderes para legislar pode exercê-los, não estando, porém, compelido a fazê-lo. Todavia, em caso de não-aproveitamento da faculdade legislativa, a pessoa competente estará impedida de transferi-la a qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da competência tributária, que arrolamos entre as diretrizes implícitas e que é uma projeção daquele postulado genérico do art. 2º da Constituição, aplicável, por isso, a todo o campo da atividade legislativa. A esse regime jurídico não está submetida a capacidade tributária ativa. É perfeitamente possível que a pessoa habilitada para legislar sobre tributos edite a lei, nomeando outra entidade para compor o liame, na condição de sujeito titular de direitos subjetivos, o que nos propicia reconhecer que a capacidade tributária ativa é transferível. Estamos em crer que esse comentário explica a distinção que deve ser estabelecida entre competência tributária e capacidade tributária ativa.” Resta claro, à luz dos ensinamentos transcritos, que no caso da contribuição previdenciária, a União não faz parte da relação jurídico-tributária referente à contribuição para o INSS, a qual existe entre o INSS e a parte requerente. O mesmo já não acontece em relação a outras contribuições, por exemplo a COFINS, cuja competência é da União e cuja capacidade tributária ativa também é da União, sendo a sua arrecadação administrada por um Órgão da União, no caso, a Receita Federal. O INSS não é órgão da União. É autarquia federal com personalidade jurídica própria. Posteriormente, a supracitada Lei nº 11.098/2005 autorizou a criação da Secretaria da Receita Previdenciária, no âmbito do Ministério da Previdência Social, à qual atribuiu as funções de arrecadação, fiscalização, lançamento e normatização de receitas previdenciárias, conforme revela a ementa do ato, atividades antes execidas pelo INSS, nos termos acima aludidos. Nesse sentido, o artigo 8º, inciso II, da mencionada lei, revogadora da capacidade tributária ativa da autarquia, autorizou o Poder Executivo a “transferir da estrutura do INSS para a estrutura do Ministério da Previdência Social os órgãos e unidades técnicas e administrativas que, na data de 5 de outubro de 2004, estejam vinculados à Diretoria da Receita Previdenciária e à CoordenaçãoGeral de Recuperação de Créditos, ou exercendo atividades relacionadas com a área de competência das referidas Diretoria e Coordenação-Geral, inclusive no âmbito de suas unidades descentralizadas”. Dessa forma, entre os efeitos FGV DIREITO RIO 202 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I da Lei 11.098/2005 está a revogação da capacidade tributária ativa anteriormente conferida ao INSS, autarquia dotada personalidade jurídica própria. As atribuições passaram, então, a ser exercidas pela própria União, por meio de sua Administração Direta461, isto é, pela citada Secretaria da Receita Previdenciária, órgão vinculado ao Minstério da Previdência, o qual compõe a Administração Direta do Poder Executivo federal. Ressalte-se que, posteriormente, já em 2007, a Lei nº 11.457/2007 extinguiu a Secretaria da Receita Previdenciária e criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, apelidada de “Super Receita”, conforme será analisado na próxima aula sobre a Parafiscalidade462. Alguns doutrinadores, a partir da premissa adotada pelo STJ no citado AgRg no Recurso Especial nº 257.642/SC463, segundo o qual a alteração da capacidade tributária ativa modifica a sujeição ativa, defendem a tese de que somente os Entes Políticos detentores de competência tributária para instituir tributos é que possuem capacidade tributária ativa, por força da literalidade do acima transcrito art. 119, do CTN (“Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir seu cumprimento”). Tal corrente doutrinária é capitaneada por Rubens Gomes de Souza464, Ricardo Lobo Torres465, e Hugo de Brito Machado466. Rubens Gomes de Souza467 acentua que “somente as entidades públicas468 dotadas de poder legislativo (...) é que podem ser sujeitos ativos de obrigações tributárias”. Nessa toada, limita a sujeição ativa ao próprio Ente Político instituidor da exação. Já Ricardo Lobo Torres469 admite que, além dos Entes Políticos, podem, também, ocupar o polo ativo da relação tributária as autarquias, “pois se lhe estende o conceito de Fazenda Pública e se lhes atribui a competência para a cobrança das contribuições especiais”, posição que se harmoniza com a delegação que ocorria no passado ao INSS, conforme acima descrito. Hugo de Brito Machado470, a seu turno, pontua que “só as pessoas jurídicas de direito público podem ser sujeitos ativos da obrigação tributária”. Nesse sentido, o autor amplia o conceito de capacidade tributária ativa e admite-a para todas as pessoas jurídicas de direito público; donde se infere que teriam capacidade tributária ativa, além dos Entes Políticos, as autarquias e as fundações públicas de natureza pública471. Em sentido diverso das referidas doutrinas, segue a linha de pensamento de Luciano Amaro472, o qual, apesar de reconhecer que o Ente Público instituidor do tributo é, em regra, o sujeito ativo da relação jurídico-tributária, que da exação criada emerge, admite exceções que afastam a indigitada norma geral, por força da disciplina constitucional, como ocorre, por exemplo, com as denominadas contribuições parafiscais ou especiais: isto é, aquelas cobradas e fiscalizadas por entidades fora do núcleo da Administração Pública. Aponta o mencionado autor: “uma coisa é a competência tributária (aptidão 461 A Administração Direta, nos termos do artigo 4º, I, do Decreto-lei 200/1967, se constitui dos serviços integrados na estrutura administativa da Presidência da República e dos Ministérios. Portanto, os órgãos integrantes da Administração Direta não possuem personalidade jurídica própria, exercendo as atividades de competência do ente politco por meio de distribuição interna de funções e atribuições administrativas. 462 Nesses termos, atualmente, todas as contribuições sociais, inclusive as previdenciárias e as contribuições arrecadadas pelos denominados “terceiros” (Sesc, Senai, Senac, Senar e outros) passaram a ser arrecadadas pela Super Receita. 463 BRASIL. Poder Judiciário. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 257642/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto. Julgamento em 15.08.2002. Brasília. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 16.05.2010. Decisão por unanimidade de votos. 464 SOUZA, Rubens Gomes de. Compendio de legislação tributária. Edição póstuma. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p.89. 465 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004, p. 253. 466 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2002, pp. 122-123. 467 SOUZA. Op. Cit. p. 89. 468 Ressalte-se aqui o uso da expressão “entidades públicas”para designar Entes Políticos. 469 TORRES ( 2004 ). p. 253. 470 MACHADO. Op. Cit. pp. 122-123. 471 Sobre este assunto vide DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p.365. Segundo a administrativista, a fundação pública pode ter caráter público ou privado, depende do que dispõe a lei que a instituir. Sendo certo que, quando a lei instituidora der a fundação personalidade jurídica de direito público, o seu regime jurídico será igual ao das autarquias, “sendo chamada de autarquia fundacional”, pontua a autora. 472 AMARO. Op. Cit. pp. 292-293. FGV DIREITO RIO 203 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I para instituir o tributo) e a outra é a capacidade tributária (aptidão para ser titular do pólo ativo da obrigação)”. Afirma, ainda, Luciano Amaro que a identificação do sujeito ativo da obrigação tributária “deve ser buscada no liame jurídico em que a obrigação se traduz, e não na titularidade da competência para instituir o tributo”. O raciocínio de Luciano Amaro, se analisado apenas o aspecto teórico e material da questão, ou seja, sem levar em consideração o aspecto processual473 que envolve a matéria no momento, parece se coadunar com o texto constitucional de 1988, o qual prevê em seu art. 8º, IV, a contribuição sindical cobrada pelos sindicatos (entidades privadas) e, ainda, as contribuições de interesse das categorias profissionais econômicas para manutenção do denominado sistema “S” (SESI, SENAI, SESC, SEBRAE etc) previstas no art. 240 da CR-88 e também fundamentadas no art. 149 da CR-88. Essas entidades que fazem parte do sistema “S”, assim como os sindicatos, são pessoas jurídicas de direito privado, realizando, entretanto, atividades voltadas ao incremento da formação profissional dos trabalhadores, o que também é de interesse público. Nesse cenário, parece possível uma leitura dos artigos 7º e 119 do CTN de forma a interpretá-los conforme a Constituição de 1988. De fato, a realidade jurídico-constitucional atual é diversa daquela vigente à época da edição do CTN, 1967. Cumpre, ainda, frisar que em 1967, quando da elaboração do CTN, os tributos enfeixavam apenas os impostos, as taxas e a contribuição de melhoria. As contribuições previdenciárias, sindicais, e o FGTS, não estavam incluídas no capítulo que tratava dos tributos, as quais foram, por emenda ao projeto, previstas posteriormente no capítulo das disposições finais e transitórias, nos termos do art. 217 do CTN. Repise-se que essa análise, baseada na doutrina de Luciano Amaro, não considera os aspectos processuais que envolvem a matéria nem a realidade prática fixada pela Lei nº 11.457/2007, conforme salientado na nota de rodapé nº 468 e será reexaminado na próxima aula. Na opinião de Aliomar Baleeiro474, o referido art. 217, acrescentado ao CTN, “visa a estancar dúvidas sobre a exigibilidade das contribuições parafiscais ou especiais, que ele indica e que, aliás, estão contempladas na Constituição Federal (na redação da Emenda nº 1/1969, art. 163, parag. Único; 165, XVI, 166, §1º; e art. 21, §2º, I)”. Com efeito, a referida emenda estabeleceu, no capítulo do Sistema Tributário, em seu art. 18, §2º, a competência da União para instituir “contribuições (...), tendo em vista intervenção no domínio econômico ou o interesse de categorias profissionais e para atender diretamente à parte da União no custeio dos encargos da previdência social”475. Diante desse quadro, a doutrina e a jurisprudência passaram a admitir a natureza tributária dessas exações. Paisagem que não durou muito tempo, pois, em 1977, por força da emenda constitucional nº 8, que afastou as con- 473 Essa matéria será examinada na disciplina Direito Tributário e Finanças Públicas III e envolve a intrincada possibilidade de pessoa jurídica de direito privado ajuizar execução fiscal nos termos da Lei nº 6.830/80. De fato, é possível sustentar que dever-se-ia aplicar na hipótese a execução por quantia certa contra devedor solvente, cujas regras procedimentais estão capituladas no Código de Processo Civil. No entanto, no caso da Contribuição Sindical Rural, por exemplo, que é espécie de Contribuição Social prevista no artigo 149 da Constituição, a jurisprudência é no sentido da possibilidade de pessoa jurídica de direito privado ocupar o pólo ativo da relação processual. A Contribuição Sindical Rural foi instituída pela Consolidação das Leis do Trabalho (arts. 578 e seguintes) e regulamentada pelo Decreto-Lei 1.166/71. A competência tributária para instituir essa contribuição é da União, conforme se extrai do próprio artigo 149 da CR-88. Já a capacidade tributária ativa (aptidão de arrecadar e fiscalizar o tributo), era por força do artigo 4º do Decreto-Lei 1.166/71, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Com advento da Lei nº 8.022, de 12/04/90, a competência para o lançamento e cobrança das receitas arrecadadas pelo INCRA, passou à Secretaria da Receita Federal (SRF). Posteriormente, em dezembro 1996, a SRF órgão transferiu a competência da arrecadação da contribuição sindical rural à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA, representante do sistema sindical rural, conforme previsto na Lei 8.847/94. De acordo com a Súmula 396 do STJ: “A Confederação Nacional da Agricultura tem legitimidade ativa para a cobrança da contribuição sindical rural”. Em sentido análogo ocorreu com Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Contribuição ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). Por sua vez, a Lei nº 11.457/2007, que criou a Receita Federal do Brasil estende a sua aplicabilidade às “contribuições devidas a terceiros, assim entendidas outras entidades e fundos, na forma da legislação em vigor, aplicando-se em relação a essas contribuições”. Nessa linha, dependendo das competências conferidas à Advocacia Geral da União (AGU), é possível que a União ocupe o polo ativo de execuções fiscais de “contribuições devidas a terceiros”, haja vista o disposto nos artigos 2º, 3º e 16, §7º, da norma que cria a RFB, bem como o contido nos artigos 578 e 610 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no caso das contribuições sindicais. Saliente-se, ainda, que nesses casos a administração do tributo ficaria sob responsabilidade da União devendo o ônus da cobrança judicial ficar a cargo do destinatário da arrecadação. Situação semelhante FGV DIREITO RIO 204 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tribuições sociais do capítulo do sistema tributário, para inseri-las na parte que trata das demais matérias afetas à competência legislativa da União, os estudiosos da matéria e o próprio STF passaram a defender a tese de que tais exações não teriam mais natureza tributária476. A Constituição de 1988 delineou novo cenário para as contribuições especiais, inserindo-as no capítulo do sistema tributário nacional: cuja regra matriz está no art. 149. Diante desta realidade, a doutrina em geral e a jurisprudência passaram novamente a admitir a natureza tributária das contribuições. De fato, recentemente, o STF, em decisão plenária, considerou inconstitucional o prazo prescricional de 10 anos previsto para a cobrança das contribuições previdenciárias, sendo, inclusive, matéria de súmula vinculante477. Alegou a Suprema Corte que, em razão da natureza tributária dessas exações, devem as mesmas se submeter aos prazos de prescrição e decadência previstos no CTN e não aqueles fixados o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que são inconstitucionais. Importante destacar, ainda, que, além das hipóteses supramencionadas, pertinentes à contribuição cobrada pelos sindicatos (art. 8º da CR-88) e bem assim das contribuições para manutenção do denominado Sistema S (artigo 240 da CR-88), situações passíveis de caracterização como de delegação da capacidade tributária ativa à pessoas jurídicas de direito privado, a Constituição também atribui aos cartórios privados478, a teor do artigo 236 da CR-88, a cobrança de emolumentos extrajudiciais. Essas exigências, além de caracterizadas como custas extrajudicais, são qualificadas pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com a jurisprudência fixada na ADI 1444-7, cuja ementa será adiante transcrita, como taxas, espécie de tributo vinculado, posto ser o produto de sua arrecadação afetado ao custeio de serviços públicos conexos àqueles cuja remuneração tais valores se destinam especificamente. Entretanto, antes da transcrição da ementa da ADI 1444-7, deve-se enfatizar a distinção entre as atividades desenvolvidas (1) pelos cartórios479 e serventias judiciais, serviços públicos essenciais exercidos diretamente pelo Poder Judiciário e que suscitam a cobrança de custas e emolumentos480 para a realização dos serviços forenses481, (2) daquelas atividades jurídicas próprias do Estado delegadas somente a pessoas naturais habilitadas por concurso público para realizar serviços notariais e de registros482. O art. 5º da Lei nº 8.935/1994483 define quais são os titulares484 de serviços realizados pelos cartórios privados: tabeliães de notas (art. 6º e 7º), tabeliães de protestos de títulos (art. 11), tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos (art. 10), oficiais de registros de imóveis (art. 12 e Lei nº 6.015/1973), oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas (art. 12 e Lei nº 6.015/1973) e oficiais de registro das pessoas naturais e de interdições e tutelas (art. 12 e Lei nº 6.015/1973). pode ocorrer com as contribuições para as entidades patronais (SESI, SESC, SENAI etc) cuja receita não está incluida no orçamento da União, mas a fiscalização e cobrança pode ser realizada pela Receita Federal do Brasil. 474 BALEEIRO. Op. Cit. pp.569-570. 475 BRASIL. Senado Federal. Constituições do Brasil. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas, 1986, p.530. 476 Nesse sentido, ver RE 86.595 de 07.06.1978. 477 Vide Súmula Vinculante 8: “São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”. 478 Dispõe o artigo 236 da CR-88: “art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 479 Ver art. 93, II, alínea “e”, da CR-88, com a redação fixada pela Emenda Constitucional nº 45/2004. 480 O § 2º do art. 98 da CR-88, com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, estabelece: “As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”. 481 Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorentemente sobre “custas dos serviços forenses”, nos termos do art. 24, IV, da CR-88. 482 De acordo com o disposto no art. 22, XXV, da CR-88, é competência privativa da União legislar sobre “registros públicos”. A Lei nº 6.015/74 disciplina os Registros Públicos no país. 483 A denominada lei dos cartórios regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro, qualificados como aqueles “de organização técnica e administrativa destinados a garantir a FGV DIREITO RIO 205 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I As custas e os emolumentos, tanto os judiciais como os extrajudiciais, conforme já salientado, são qualificados como taxas e, portanto, enquadramse como espécies tributárias, nos termos da citada decisão do STF (ADI 1444-7)485: ADI 1444 / PR – PARANÁ AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 12/02/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 11-04-2003 PP-00025 EMENT VOL-02106-01 PP-00046 Parte(s) REQTE.: CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL ADVDO.: FRANCISCO ERNANDO UCHOA LIMA ADVDO.: MARCELO MELLO MARTINS E OUTRO REQDO.: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ Ementa EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS: SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO Nº 7, DE 30 DE JUNHO DE 1995, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ: ATO NORMATIVO. 1. Já ao tempo da Emenda Constitucional nº 1/69, julgando a Representação nº 1.094-SP, o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que “as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais”, por não serem preços públicos, “mas, sim, taxas, não podem ter seus valores fixados por decreto, sujeitos que estão ao princípio constitucional da legalidade (parágrafo 29 do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69), garantia essa que não pode ser ladeada mediante delegação legislativa” (RTJ 141/430, julgamento ocorrido a 08/08/1984). 2. Orientação que reiterou, a 20/04/1990, no julgamento do RE nº 116.208MG. 3. Esse entendimento persiste, sob a vigência da Constituição atual (de 1988), cujo art. 24 estabelece a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar sobre custas dos serviços forenses (inciso IV) e cujo art. 150, no inciso I, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, a exigência ou aumento de tributo, sem lei que o estabeleça. 4. O art. 145 admite a cobrança de “taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”. Tal conceito abrange não só as custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), pois estas resultam, igualmente, de serviço público, ainda que prestado em caráter particular (art. 236). Mas sempre fixadas por lei. No caso presente, a majoração de custas judiciais e extrajudiciais resultou de Resolução – do Tribunal de Justi- publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. 484 Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Para análise da disciplina recomenda-se a leitura de RIBERIO, Juliana de Oliveira Xavier. Direito Notarial e Registral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 485 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 1444-7/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches. Julgamento em 12.02.2003. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus. br>. Acesso em 22.06.2010. Decisão unânime. FGV DIREITO RIO 206 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ça – e não de Lei formal, como exigido pela Constituição Federal. 5. Aqui não se trata de “simples correção monetária dos valores anteriormente fixados”, mas de aumento do valor de custas judiciais e extrajudiciais, sem lei a respeito. 6. Ação Direta julgada procedente, para declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Decisão – O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na inicial para declarar a inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Votou o Presidente, o Senhor Ministro Marco Aurélio. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello, e, neste julgamento, o Senhor Ministro Ilmar Galvão. Plenário, 12.02.2003. Portanto, de acordo com a jurisprudência do STF, tanto as custas e os emolumentos judiciais como os extrajudiciais são qualificados como tributos, da espécie taxa. As receitas arrecadadas por meio da cobrança das custas e os emolumentos, conforme determinação constitucional expressa (art. 98, §2º486), devem ser destinadas exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da justiça. As exações sobre os serviços notariais e de registro (custas e emolumentos extrajudiciais), de acordo com a jurisprudência do STF, têm natureza de taxa de polícia e não de taxa de serviço, haja vista a tríplice atividade exercida pelo Poder Judiciário, isto é, a vigilância, a orientação e a correição. Dessa forma, por serem remuneradas por taxa de polícia pode a receita ser vinculada a órgão, fundo ou despesa, da mesma forma que das custas e emolumentos judiciais, tendo em vista não ser aplicável às duas espécies o disposto no art. 167, IV, da CR-88, que se restringe aos impostos. Essa disciplina pode ser inferida da leitura da ementa da ADI 3643/RJ,487 que dispõe sobre o Fundo Especial da Defensoria Pública: ADI 3643 / RJ – RIO DE JANEIRO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. CARLOS BRITTO Julgamento: 08/11/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISO III DO ART. 4º DA LEI Nº 4.664, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2005, DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. TAXA INSTITUÍDA SOBRE AS ATIVIDADES NOTARIAIS E DE REGISTRO. PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DESTINADO AO FUNDO ESPECIAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. É constitucional a destinação do produto da arrecadação da taxa de polícia sobre 486 Dispositivo incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004. 487 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 3643-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Brito. Brasília. Julgamento em 08.11.2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 21.05.2010. O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação, nos termos do voto do Relator, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio. FGV DIREITO RIO 207 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I as atividades notariais e de registro, ora para tonificar a musculatura econômica desse ou daquele órgão do Poder Judiciário, ora para aportar recursos financeiros para a jurisdição em si mesma. O inciso IV do art. 167 da Constituição passa ao largo do instituto da taxa, recaindo, isto sim, sobre qualquer modalidade de imposto. O dispositivo legal impugnado não invade a competência da União para editar normais gerais sobre a fixação de emolumentos. Isto porque esse tipo de competência legiferante é para dispor sobre relações jurídicas entre o delegatário da serventia e o público usuário dos serviços cartorários. Relação que antecede, logicamente, a que se dá no âmbito tributário da taxa de polícia, tendo por base de cálculo os emolumentos já legalmente disciplinados e administrativamente arrecadados. Ação direta improcedente. O inciso III do artigo 31 da Lei Complementar nº 111 do Estado do Rio de Janeiro, de 13 de março de 2006, cujo projeto de lei foi apresentado pelo chefe do Poder Executivo e que alterou a Lei Complementar nº 15 (Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro), estabelece que 5% das custas judiciais e dos emolumentos extrajudiciais recebidos pelos notários e registradores devem ser vinculados como receita do Fundo Especial da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (Funperj). A Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3704), com pedido de liminar, contra esta norma do Estado do Rio de Janeiro. Nos termos da incial da ADI, a competência para legislar sobre custas e emolumentos judiciais e extrajudiciais é exclusiva do Poder Judiciário, conforme o parágrafo 2º do artigo 236 e o inciso IV do artigo 24 da Constituição Federal. Dessa forma, alega flagrante vício de iniciativa na proposição da lei e complementa no sentido de que: a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro não guarda a mínima relação com os serviços notariais e de registro. Eles não exercem poder de polícia sobre estes serviços delegados e não se encontram jungidos aos serviços notariais e de registro em suas atividades cotidianas. Alega ainda a entidade que o dispositivo questionado fere o caput do artigo 236 da Carta Magna, na medida em que ocorre o desvio na finalidade dos emolumentos para complementar os recursos financeiros do Funperj, tendo em vista “ser caracterizada como taxa, o destino da arrecadação não pode ter outro destino, conforme consta na Constituição Federal, no artigo 236, caput, que impede a destinação destas taxas para qualquer outra finalidade, seja pública ou privada”. Segundo a entidade, o Estado do Rio de Janeiro instituiu, por meio do dispositivo atacado, um tributo na modalidade de imposto sobre o emolumento. Neste caso, afrontaria o artigo 155 da Carta Magna, que prevê as FGV DIREITO RIO 208 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I hipóteses nas quais os Estados podem instituir imposto, e ao inciso I do artigo 154, que define que a competência para instituir imposto é exclusiva da União. Salienta, ainda, que a União já cobra imposto de renda com o mesmo fato gerador do instituído pela norma impugnada, conforme consta no artigo 8º, parágrafo 1º, da Lei nº 7.713/88. Por fim, sustenta que o dispositivo viola o inciso IV do artigo 167, da Constituição Federal, que proíbe a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. FGV DIREITO RIO 209 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 12 – A PARAFISCALIDADE COMO TÉCNICA ADMINISTRATIVA PARA DESENVOLVER ATIVIDADES DE INTERESSE PÚBLICO E O TRIBUTO NA CR-88 Cumpre, de pronto, destacar que não existe consenso na doutrina quanto ao sentido e o alcance da expressão “parafiscalidade”, conforme será visto adiante ao debruçarmos sobre o tema. O termo “parafiscalidade”, segundo apontam alguns estudiosos488, tem sua origem no campo financeiro, tendo sido empregado pela primeira vez no Inventário de Schumann, em 1946, na França, conforme preleciona Misabel Derzi489: “a expressão ‘parafiscalidade’ se consagrou a partir do inventário Schumann (...), que levantou e classificou os encargos assumidos por entidades autônomas e depositárias de poder tributário, por delegação do Estado, como parafiscais. O inventário incluiu, como encargos de natureza parafiscal, não só os encargos sociais, inclusive seguros sociais e acidentes do trabalho, como as taxas arrecadadas pelas administrações fiscais para certas repartições e estabelecimentos públicos financeiramente autônomos (Câmara da Agricultura, de Comércio, Fundo Nacional de Habitat etc.), como os profissionais (Associação Francesa de Padronização, Associações Interprofissionais e órgãos de classe)”. Como se observa no texto acima, a expressão parafiscalidade era utilizada na França para designar algumas contribuições e taxas, cuja arrecadação era delegada pelo Poder Público a certas entidades privadas autônomas490, as quais utilizavam o produto arrecadado para fazer face às suas atividades dotadas de interesse público, bem como a determinados órgãos públicos, que detinham autonomia financeira. A partir da Constituição mexicana de 1917 e da alemã Weimar de 1919, os direitos sociais passaram a ser consagrados pelo ordenamento jurídicoconstitucional, visando a aprimorar as condições de vida dos indivíduos e promover meios para diminuir as desigualdades provocadas, em grande escala, pela esfera econômica491. Nesse cenário que foi se formando, o Estado passou a atuar de forma mais significativa no campo econômico e social, o que se denominou de Estado Social (também chamado de Estado do Bemestar Social, Estado Intervencionista). Essa mudança se deu em razão do reconhecimento de que certas demandas coletivas deveriam ser incorporadas à atuação de um novo Estado, no qual os problemas sociais passavam a ser questões de interesse público – configurando necessidades públicas. Para ajudar na efetividade da atuação social, o Estado passou a delegar a entidades especiais autônomas – de natureza pública ou privada – a função de arrecadar determinadas contribuições para fazer face às despesas oriundas de atividades de interesse público confiadas o seu exercício às referidas pes- 488 Vide DERZI, Misabel Abreu Machado. A causa final e a regra-matriz das contribuições. In: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz ( coordenador ). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas- do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp. 626-666; ROSA JR. Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001; e BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976. 489 DERZI. Op. Cit. p. 632. 490 Entende-se por entidade, toda pessoa jurídica de natureza pública ou privada ( p. ex., sociedade, fundação e associação): na Administração Indireta tem-se as autarquias, as fundações, as sociedades de economia mista e as empresas públicas, consoante o disposto no art. 4º do Decreto-lei 200/67. No setor privado encontram-se as sociedades em geral, as associações, e as fundações., nos termos do art. 44 do CC/02. Vale realçar que não se deve confundir entidade com órgão, porquanto este não tem personalidade jurídica ( por ex., os Ministérios, as Casas Legislativas, os Tribunais de Contas etc.) 491 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. pp. 100/101. FGV DIREITO RIO 210 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I soas jurídicas. Isso ocorreu porque o Estado não conseguiria, sem aumentar demasiadamente a máquina administrativa, concretizar diretamente tais funções, precisando “criar braços” que ultrapassassem seu núcleo administrativo. Nesse cenário, cabe analisar a parafiscalidade a partir de, pelo menos, três perspectivas, as quais se interpenetram, conforme a seguir apresentado de forma sistemática para melhor compreensão: 12.1. O ORÇAMENTO E O FENÔMENO DA PARAFISCALIDADE Para alguns doutrinadores a parafiscalidade está correlacionada com o orçamento, isto é, está associada à ideia de que o produto arrecadado por entidades autônomas, as quais exercem atividade de interesse público, não integra o orçamento fiscal do Estado, sendo tal receita cobrada diretamente pelas referidas entidades. Nessa linha de intelecção, destacam-se Misabel Abreu Machado Derzi492 e Luiz Emygdio F. da Rosa Jr493. Para este autor, “a parafiscalidade significa, desde a sua origem, uma finança paralela, no sentido de que a receita decorrente das contribuições não se mistura com a receita geral do poder público”. Já Misabel Derzi, ao se debruçar sobre o tema, professa que: “semanticamente, pois, a palavra ‘parafiscalidade’ nasceu para designar a arrecadação por órgão ou pessoa paraestatal, entidades autônomas, cujo produto, por isso mesmo, não figura na peça orçamentária única do Estado, mas é dado integrante do orçamento do órgão arrecadador, sendo contabilizado, portanto, em documento paralelo ou ‘paraorçamentário’”. 492 DERZI, Misabel Abreu Machado. A causa final e a regra-matriz das contribuições. In: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz ( coordenador ). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas- do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp. 626-666. 493 ROSA JR. Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.. p. 415. FGV DIREITO RIO 211 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Tal posicionamento tem relevância e merece ser considerado quando se analisa o conteúdo e o alcance do instituto da parafiscalidade. De tal sorte que o estudo dos tributos a partir de suas múltiplas funções se faz necessário, especialmente quando enfeixam tarefas não meramente arrecadatórias para o cofre do Tesouro, com vistas a custear as despesas gerais da máquina administrativa, indo além, servindo de instrumento financeiro viabilizador de atividades delegadas a terceiros pelo Poder Público, bem como de outras finalidades pré-definidas a ensejar a instituição da exação que visa a financiar intervenções na ordem social e econômica pelo próprio Estado. Nesse contexto, “ser parafiscal é apenas não integrar o orçamento fiscal da União, não ser receita própria dela, podendo não obstante ser tributo”, assevera Misabel Derzi494 ao discorrer sobre o alcance semântico da palavra fiscal, que segundo a autora, não se confunde com o termo tributo, uma vez que, ao observarmos o orçamento fiscal da União, verificaremos que estão nele incluídas as receitas tributárias e as não-tributárias, como, por exemplo, as receitas patrimoniais e as industriais do Estado. 12.1.1. A Seguridade Social no Brasil e a parafiscalidade A partir da Constituição de 1988, a Seguridade Social ganhou novas feições, a começar por dispor de capítulo próprio, ter seu orçamento incluído na lei orçamentária da União, estando assim sujeita ao controle do Poder Legislativo. Diversamente, na Constituição de 1969, consoante dispunha o art. 62, §1°, o orçamento da Seguridade Social não estava inserido na lei orçamentária da União, era aprovado por simples ato do Poder Executivo, isto é, escapava do crivo do Poder legiferante, podendo ser alterado ou remanejado por decreto do Chefe do Executivo495. De acordo com o artigo 194 da Constituição a Seguridade Social compreende um conjunto de ações destinados a asseguras direitos relacionados à Saúde, Assistência e Previdência Social, sendo apenas a última de caráter contributivo. Nesse sentido, a proteção pública dos serviços de saúde de acesso universal e de assistência social independem de contribuição do beneficiário, ao contrário da previdência social que possui caráter contributivo. Nesse contexto, Misabel Derzi496 tem defendido a parafiscalidade necessária para todas as contribuições que servem de base econômica para desenvolver as atividades ligadas à Segurança Social, isto é, manter em (1) orçamento e (2) caixa próprios todos os valores arrecadados com vinculação específica para a Seguridade, por razões óbvias, entre elas, evitar o uso desses recursos para outras finalidades que não àquelas que deram origem ao nascimento das contribuições sociais, quais sejam: fazer face às despesas com o sistema da Seguridade Social, o qual abarca a saúde, a assistência e a previdência sociais. No dizer da autora “o que a Constituição de 1988 pretendeu fazer e, de 494 DERZI. Op. Cit. p. 633. 495 DERZI. Op. Cit. p. 635. 496 Idem. Ibidem. pp. 635-641. FGV DIREITO RIO 212 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I fato, fez, foi submeter os orçamentos da Seguridade e de investimentos das empresas estatais à apreciação do Poder Legislativo, de modo que os desvios de recursos e o estorno sem prévia anuência legal, ficassem vedados (art. 167, VI e VIII)”. Na realidade, as contribuições sociais para a Seguridade Social já se submeteram a diversos regimes. De tal sorte que, as contribuições previdenciárias, por exemplo, antes da Carta de 1988, conforme já examinado, eram arrecadadas diretamente por uma autarquia com personalidade jurídica própria, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), ou seja, eram contribuições parafiscais ou paraorçamentárias, visto não integrarem nem o orçamento da União, tampouco o caixa do Tesouro Nacional. Por outro lado, outras contribuições sociais para a Seguridade Social – não previdenciárias – eram arrecadadas pela União diretamente (ex. a FINSOCIAL – hoje COFINS –, o PIS, e a contribuição sobre o lucro), e repassadas para o INSS. Essa situação jurídica recebeu o aval do STF, conforme se verifica no RE 138284-8/92: EMENTA: Constitucional. Tributário. Contribuições sociais. Contribuições incidentes sobre o lucro das pessoas jurídicas. Lei 7.689, de 15.12.88. IV. Irrelevância do fato de a receita integrar o orçamento fiscal da União. O que importa é que ela se destina ao financiamento da seguridade social (Lei 7.689/88, art. 1º). A partir do referido julgado, é possível inferir que o STF refutou a tese esposada por Misabel Derzi acerca da parafiscalidade necessária em sede de contribuições sociais para a Seguridade Social497, ou seja, a Suprema Corte brasileira considerou legítima a cobrança e arrecadação da contribuição sobre o lucro das pessoas jurídicas por parte da União e só depois repassada ao INSS e destinadas à segurança social. Ocorre que recente reforma legislativa (Lei nº 11.457/2007) alterou novamente a sistemática das contribuições sociais para Seguridade Social, pelo menos sob o aspecto da capacidade ativa, no que concerne à legitimidade da União para cobrar diretamente, por meio da Secretaria da Receita Federal do Brasil, tais contribuições, as quais serão creditadas ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar 101/2000, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei 11.457/2007. A Lei 11.457, de 16 de março de 2007, criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil, antes denominada Secretaria da Receita Federal, órgão da Administração Direta subordinado ao Ministro de Estado da Fazenda, e extinguiu a Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Previdência Social498. Isso significa, conforme se depreende do art. 2º, do mencionado diploma legislativo, que as funções antes desempenhadas pela Secretaria da Receita 497 DERZI, Misabel. A ‘SuperReceita’pode levar à redução da nossa já combalida Previd ência Social. In: I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E PREVIDÊNCIA SOCIAL. São Paulo: UNAFISCO, jan. 2007, pp.34-40. Aponta a autora que até a edição da Emenda Constitucional 42/2003, a desvinculação de receitas de que trata o art. 76 do ADCT não atingia as contribuições previdenciárias. O ataque a tais contribuições ocorreu com o advento da mencionada emenda, que colocou no mesmo cesto todas as contribuições sociais, inclusive as previdenciárias, somente excluindo o salário-educação. Nesse sentido, estão sujeitas ao patamar de 20% de desvinculação todas as receitas tributárias para a seguridade social. Acrescenta, ainda, a autora: “(... ) não adianta a lei que criou a fusão das receitas dizer que a receita será arrecadada pela União e destinada imediatamente ao fundo ‘X’, ao fundo ‘A’ ou ‘B’. Porque existe uma norma na Constituição que permite a desvinculação. É uma exceção à regra. Fica desvinculada de órgão, fundo ou despesa, a importância de 20% da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico”. 498 DERZI. Op. Cit. pp. 635-641. FGV DIREITO RIO 213 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Previdenciária agora estão a cargo da “Super-Receita Federal”, senão vejamos o dispositivo em tela: Art. 2º. Além das competências atribuídas pela legislação vigente à Secretaria da Receita Federal, cabe à Secretaria da Receita Federal do Brasil planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, e das contribuições instituídas a título de substituição499. Diante desse novo panorama, é possível inferir que a parafiscalidade dentro da estrutura geral da Administração Pública, em especial, no que se refere às contribuições sociais para a Seguridade Social, assumiu feição híbrida, porquanto mudou a sistemática de arrecadação e fiscalização dessas contribuições, que agora são da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil, cabendo ao INSS, no entanto, as funções de emissão de guia para pagamento, de certidão relativa a tempo de contribuição, o cálculo dos valores a serem pagos, gerir o Fundo do Regime Geral da Previdência Social, entre outras atividades, como, por exemplo pagar os benefícios de que trata a Lei 8212/91, nos termos do art.5º do novo diploma legal, a Lei 11.457/2007. Saliente-se, também, que, apesar do artigo 56500 da Lei nº 4.320/1964 estabelecer o denominado princípio da unidade de tesouraria, conforme já destacado alhures, a Lei de Responsabilidade Fiscal criou uma exceção ao aludido preceito, fixando que a disponibilidade de caixa da previdência, espécie do gênero seguridade social, deve ser separada do sistema de caixa único no âmbito de todos os entes federados, conforme se infere da literalidade do artigo 43 da LRF: Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme estabelece o § 3o do art. 164 da Constituição501. § 1o As disponibilidades de caixa dos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos, ainda que vinculadas a fundos específicos a que se referem os arts. 249 e 250 da Constituição, ficarão depositadas em conta separada das demais disponibilidades de cada ente e aplicadas nas condições de mercado, com observância dos limites e condições de proteção e prudência financeira. Dessa forma, as outras disponibilidades da seguridade social, salvo aquelas relacionadas à previdência, tais como as pertinentes à saúde e a assistência social, seguem a regra geral da unidade de tesouraria. No que se refere especificamente à contribuições previdenciárias importante mencionar que a Emenda Cnstitucional nº 20/98 inclui o inciso XI ao 499 O art. 3º da mesma lei prevê as atribuições previstas no art. 2º também para outras contribuições, como, por exemplo, as contribuições destinadas ao Fundo Aeroviário, à Diretoria de Portos e Costas do Comando da Marinha , aquelas destinadas ao INCRA, e o salário-educação ( vide art. 4º, § 6º ). 500 Artigo 56. O recolhimento de todas as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio de unidade de tesouraria, vedada qualquer fragentação para criação de caixas especiais. 501 O dispositivo constitucional se refere ao Banco Central do Brasil relativamente à União e às instituições financeiras oficiais no casos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. FGV DIREITO RIO 214 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I artigo 167 da CR-88, o qual veda “a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201”. Além desse primeiro plano de projeção – vinculado à questão orçamentária e financeira em sentido estrito-, a parafiscalidade também pode ser compreendida a partir da legitimidade de determinadas entidades, que exercem atividades de interesse público e social, para arrecadar ou receber certas contribuições. 12.2. A PARAFISCALIDADE E AS ENTIDADES PÚBLICAS OU PRIVADAS QUE FICAM COM OS RECURSOS DE DETERMINADAS CONTRIBUIÇÕES Cabe, inicialmente, esclarecer que a estrutura administrativa varia de acordo com o modelo de Estado que se estabelece. Nesse ponto, devemos avaliar, a priori, as características de determinado Estado, para somente depois tentar entender a sua organização funcional-administrativa. Nesse contexto, ensina Hely Lopes Meirelles502que a organização administrativa está intimamente vinculada à “estrutura do Estado e a forma de governo adotadas em cada país”. Conforme já exaustivamente salientado, no Brasil temos como forma de Estado a federação, a qual é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, nos termos do art. 1º da CRFB/88: ainda dispõe o seu art. 18, que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Cumpre ressaltar que a estrutura de Estado que temos, malgrado detenham os Estados-membros, o DF e os Municípios, autonomia, consoante dispõe o citado art. 18, é significativo o poder centralizador nas “mãos” da União. Tal fato é visível ao verificarmos no texto constitucional de 1988 a sua ampla prerrogativa tributária em comparação aos demais entes, além de sua competência privativa para legislar sobre diversas matérias (art. 22) e, no tocante à competência concorrente com os Estados-membros, o DF, e os Município, a União tem a prerrogativa de ditar as normas gerais (vide arts. 24 e 30). Conforme dispõe o Decreto-lei 200/67, a organização administrativa federal se subdivide em Administração Direta e Administração Indireta (sistema que se irradia para os entes políticos estatais e municipais). Ainda, segundo lições de Hely Lopes Meirelles503: a Administração Pública Direta é o conjunto dos órgãos integrados na estrutura administrativa da União, e a Administração Indireta é o conjunto dos entes 502 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Editora Malheiros, 2001, pp.692-694. 503 Idem. Ibidem. pp.694-696. FGV DIREITO RIO 215 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (personalizados) que, vinculados a um Ministério, prestam serviços públicos ou de interesse público. Sob o aspecto funcional, a Administração Direta é a efetivada imediatamente pela União, através de seus órgãos próprios, e a Indireta é realizada mediatamente, por meio dos entes [também denominados entidades] a ela vinculados. A vinculação das entidades que compreendem a Administração Indireta , ou seja, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as autarquias e as fundações públicas, se dá em razão do sistema de controle interno da Administração Direta, denominado de tutela, ou como ensina Hely Lopes Meirelles505, supervisão ministerial, ou seja, tais entidades não estão ligadas à Administração Direta por meio do regime de subordinação, e sim de vinculação de suas respectivas atividades com os Ministérios (p. ex. o INSS está vinculado ao Ministério da Previdência Social, a Caixa Econômica está vinculada ao Ministério da Fazenda etc). Nesse passo, além das pessoas jurídicas criadas ou autorizadas pelo Poder Público para integrarem a Administração Indireta, e assim desenvolverem certas atividades de interesse público, o Estado precisou descentralizar ainda mais suas atividades, de tal sorte que o apoio de outras entidades, fora da Administração Pública, se fez necessário506. Dessa forma, criou-se a parafiscalidade envolvendo outras pessoas jurídicas – as quais podem ser de direito público ou direito privado, como, por exemplo, os sindicatos (natureza privada) e as entidades de classe (autarquias especiais de natureza pública). Aqueles (sindicatos) defendem interesses das classes de trabalhadores e coordenam as negociações e acordos entre empregados, empregadores, e com o próprio Poder Público, enquanto as entidades de classe ou de categorias profissionais tem o mister de regular e fiscalizar determinadas profissões (ex. CREA, CRM). No tocante a estas entidades, cumpre trazer à baila a decisão plenária, em sede de ADI, proferida pelo STF, no qual se enfrentou a questão da natureza jurídica das autarquias fiscalizadoras de atividades profissionais regulamentadas. Na ADI 1717/DF, o STF julgou inconstitucional o art. 58 e parágrafos da Lei 9.649/98, a qual, entre outras regras, consagrava a natureza privada dos conselhos de fiscalização profissionais, tendo como um dos fundamentos o disposto no art. 119 do CTN, que dispõe no sentido de que somente pessoas jurídicas de direito público podem ter sujeição tributária ativa, conforme se extrai de excertos do acórdão: 504 ADI 1717-DF – Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 07/11/2002 Órgão Julgador: Tribunal Pleno – Publicação DJ 28-03-2003 – PP-00061 – EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 504 Decorrência lógica do processo de descentralização das atividades de interesse público. 505 Idem. Ibidem. p. 696. 506 Ver, por exemplo, na CRFB/88, a título de ilustração: art. 8º que prevê a contribuição sindical, o art. 149, o qual elenca, dentre outras, as contribuições de categorias profissionais, as contribuições para o custeio do Sistema S ( SESI, SENAI, SENAC, SEBRAE etc ). Na realidade, o constituinte de 1988 buscou, por meio de entidades privadas, efetivar determinadas atividades de interesse público, tais como, a fiscalização e controle de certas atividades profissionais, a tutela de direitos trabalhistas por meio dos sindicatos e o fomento ao desenvolvimento tecnológico com o apoio do Sistema S: as quais se desenvolvidas diretamente pelo Poder Público contribuiria de forma significativa para o inchaço da máquina administrativa. FGV DIREITO RIO 216 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (grifo nosso) A Ordem dos Advogados do Brasil, por sua vez, apesar de também realizar a fiscalização de atividade profissional, se diferencia das demais entidades disciplinadoras de atividades profissionais, pois, segundo entendimento jurisprudencial do STF: “a OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional”507. De fato, tal entidade é considerada uma autarquia sui generi, pois, a atividade que disciplina e fiscaliza tem escopo constitucional e é reconhecida como essencial à Justiça, nos termos do art. 133 da CRFB/88, o que já determina a existência de regime diferente das demais autarquias que fiscalizam profissões regulamentadas. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também se refere à Ordem dos Advogados do Brasil como “uma autarquia sui generis”508. Ainda, no tocante à contribuição cobrada de seus membros, tem se manifestado o Tribunal da Cidadania no sentido de que não teria natureza tributária, não se submetendo, desta forma, a execução aos ditames da Lei 6.830/80 (lei de execução fiscal). Nesse sentido, vale trazer à luz ementa de acórdão, em sede de Recurso Especial, prolatado pela Corte Superior de Justiça: REsp 755595 / RS RECURSO ESPECIAL 2005/0090354-4 – SEGUNDA TURMA – Relator MIN. CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) – Data do Julgamento: 08/04/2008 – DJe 02/05/2008. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO. NÃO-CONHECIMENTO. OAB. ANUIDADE. NATUREZA JURÍDICA. NÃO-TRIBUTÁRIA. EXECUÇÃO. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 1. Não se conhece, em recurso especial, de violação a dispositivos constitucionais, vez que se trata de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102 da Constituição.2. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que as contribuições cobradas pela OAB não seguem o rito disposto 507 Vide ADI 3026/DF. Julgamento em 08/06/2008. Relator Min. Eros Grau. Nesta ação o STF se pronunciou no sentido de que a OAB compreende “categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro”. 508 Vide EREsp 462273 / SC – Julgamento em 13/04/2005. Rel.Min. João Otavio de Noronha. FGV DIREITO RIO 217 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I pela Lei nº 6.830/80, uma vez que não têm natureza tributária, q.v., verbi gratia, EREsp 463258/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, DJ 29.03.2004 e EREsp 503.252/SC, Rel. Ministro Castro Meira, PRIMEIRA SEÇÃO, DJ 18.10.2004.3. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido. Nessa perspectiva, quanto à legitimidade de entidades públicas ou privadas para cobrar tributos para suprir as demandas decorrentes das atividades de interesse público a elas incumbidas, cabe destacar, pelo menos, duas correntes doutrinárias: Corrente 1: Para alguns autores, como por exemplo, Geraldo Ataliba509 e Luciano Amaro510, a parafiscalidade está vinculada a entidades delegadas que estão fora do Estado. Consoante o pensamento de Geraldo Ataliba511, o conceito de parafiscalidade importa “no fenômeno pelo qual a lei atribui a titularidade de tributo a pessoas diversas do Estado, que as arrecadam em benefício das próprias finalidades”. Luciano Amaro512, corroborando com a linha de intelecção do mencionado autor, assevera: (...).Em verdade, ao lado das prestações coativas arrecadadas pelo Estado, outros ingressos financeiros, também instituídos por lei e absorvidos pelo conceito genérico de tributo, são coletados por entidades não estatais, de que são exemplos os sindicatos e os conselhos de fiscalização e disciplina profissional. Esse campo, dito da parafiscalidade, é paralelo ao da fiscalidade, ocupado pelo ingressos destinados ao Fisco ou Tesouro Público, esses tributos dizem-se parafiscais (grifo nosso). Corrente 2: Para esta corrente doutrinária, a parafiscalidade é decorrência da atribuição do Poder Público a outras entidades, sejam públicas ou privadas, integrantes ou não da Administração Pública513, para arrecadar contribuições a fim de suprir objetivos de natureza pública. Cabe destacar, nessa linha de intelecção, entre outros autores, Marco Aurélio Greco514, Aliomar Baleeiro515, Roque A. Carrazza516, e Hamilton Dias de Souza517. Este último, ao enfrentar o tema, se refere a órgãos especializados desvinculados da Administração Direta, ou seja, ele incluiu a Administração Indireta. Vale a pena trazer excertos de seu estudo sobre as contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas: 509 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 3 ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1992, p. 83. 510 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, pp. 2-3. 511 ATALIBA ( 1993). p.80-82. 512 AMARO. Op. Cit. p. 3. 513 Vale repisar que, nos termos do Decreto-lei 200/67, a Administração Pública se subdivide em Administração Direta e Indireta. Enquanto aquela ( direta ) “se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa do Poder Executivo e seus ministérios ( em âmbito federal ), e do Poder Executivo e secretarias ( em âmbito estadual e municipal ), a Administração indireta compreende as seguintes entidades autônomas, com personalidade jurídica: as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas. 514 GRECO, Marco Aurelio. Contribuições ( uma figura “sui generis” ). São Paulo: Editora Dialética, 2000, p.57. 515 BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976, pp.569-571. Aponta os Institutos de Aposentadoria e Pensões e as Caixas de Aposentadoria e Pensões como as primeiras entidades a arrecadar as chamadas contribuições parafiscais. Hodiernamente “há pulverização de receitas outras para manutenção de vários órgãos autárquicos e paraestatais, como a Ordem dos Advogados, o SENAI, o SENAC, o SESC, o SESI etc”. 516 CARRAZZA, Roque A. O sujeito da obrigação tributária. São Paulo, Resenha Tributária, 1977, p. 40. 517 SOUZA, Hamilton Dias de. Contribuições Especiais. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva(coordenador). Curso de Direito Tributário. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. pp. 667-705. FGV DIREITO RIO 218 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (...) tendo em vista serem distintos e peculiares os interesses de cada uma das categorias econômicas e profissionais envolvidas, a atuação do Estado geralmente se faz por intermédio de órgãos especializados e específicos, desvinculados da Administração Direta (...). É o caso, por exemplo, dos sindicatos e das entidades de fiscalização de profissões liberais (OAB, CRM, CREA). (grifo nosso). Marco Aurélio Greco518, ao discorrer sobre a evolução do Estado Fiscal para o Estado Intervencionista (Bem-estar social), preleciona: a partir do reconhecimento de determinadas necessidades sociais ou visando a atingir certos resultados ou objetivos econômicos, o Estado passou a atuar positivamente nestes campos, criando entidades específicas, fora de sua estrutura básica, que ficariam responsáveis pelo exercício de atividades pertinentes. Por sua vez, estas estruturas necessitavam de recursos financeiros para sobreviver. Estas começaram a cobrar da coletividade certas quantias que se justificavam em função das finalidades buscadas e que eram diretamente arrecadadas por estas entidades que se encontravam “ao lado”do Estado (as entidades ‘paraestatais’). (grifo nosso). Aliomar Baleeiro519 entende que a capacidade tributária ativa pode ser delegada tanto às entidades públicas como às privadas, cujas funções estão atreladas a uma finalidade pública. Apresenta o autor quatro elementos que delineiam a parafiscalidade: a) delegação do poder fiscal do Estado a um órgão oficial ou semi-oficial autônomo; b) vinculação especial ou ‘afetação’ dessas receitas aos fins específicos cometidos ao órgão oficial ou semi-oficial investido daquela delegação; c) em alguns países exclusão dessas receitas delegadas no orçamento geral (seriam então ‘para-orçamentárias’...); e d) consequentemente, subtração de tais receitas à fiscalização do Tribunal de Contas ou órgão de controle da execução orçamentária. Roque Carrazza520, a seu turno, apresenta a parafiscalidade como: a atribuição, pelo titular da competência tributária521, mediante lei, da capacidade tributária ativa, a pessoas públicas ou privadas (que persigam finalidades públicas ou interesse público), diversas do ente imposto que, por vontade desta mesma lei passam a dispor do produto arrecadado, para a consecução de seus objetivos. Por fim, merece repisar o fato de que a Lei 11.457/07, ao criar a Receita Federal do Brasil, atribuiu a esta – órgão vinculado ao Ministério da Fazenda – e não ao INSS – autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência Social, as funções de fiscalizar e arrecadar as contribuições sociais destinadas 518 GRECO, Marco Aurelio. Contribuições ( uma figura “sui generis” ). São Paulo: Editora Dialética, 2000, p.57. Aponta o autor que “no campo econômico, a ‘atuação’ da União pode consistir numa atuação material ou numa atuação de oneração financeira. Se a atuação for material a contribuição servirá para fornecer recursos para o exercício das atividades pertinentes e para suportar as despesas respectivas; se a atuação for no sentido de equilíbrio ou equalização financeira, a contribuição será o próprio instrumento da intervenção” (este aspecto será abordado na aula sobre a extrafiscalidade dos tributos ). 519 BALEEIRO, ALiomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976, pp.569-571. Aponta os Institutos de Aposentadoria e Pensões e as Caixas de Aposentadoria e Pensões como as primeiras entidades a arrecadar as chamadas contribuições parafiscais. Hodiernamente “há pulverização de receitas outras para manutenção de vários órgãos autárquicos e paraestatais, como a Ordem dos Advogados, o SENAI, o SENAC, o SESC, o SESI etc”. 520 CARRAZZA ( 1977 ). Op. Cit. p. 40 521 Embora a competência já tenha sido tratada em outra aula, merece, todavia, relembrar seu perfil, segundo as lições de Misabel Derzi: “competência é norma constitucional, atributiva de poder legislativo a pessoa estatal, para criar, regular e instituir tributos”. In: DERZI, Misabel Abreu Machado. A causa final e a regra-matriz das contribuições. In: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz ( coordenador ). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas- do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 632. FGV DIREITO RIO 219 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ao custeio da Seguridade Social. Desta feita, pode-se reconhecer que a parafiscalidade, sob a perspectiva da capacidade ativa de quem arrecada o tributo, somado à possibilidade de desvinculação de 20% dessas receitas por parte da União, nos termos do artigo 76 do ADCT da CR-88, teve parte substancial de seu conteúdo diluído na fiscalidade. Importante destacar que, apesar das entidades sindicais serem as destinatárias do produto da arrecadação das denominadas contribuições sindicais (artigo 8º da CR-88), é a União que aparece como o sujeito ativo em execuções fiscais, haja vista o disposto nos artigos 2º, 3º e 16, §7º, da Lei 11.457/2007, norma que cria a Receita Federal do Brasil, bem como o contido nos artigos 578 e 610 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), matéria a ser estudada em Direito Tributário e Finanças Públicas III. Saliente-se, ainda, que a administração do tributo fica a cargo da União devendo o ônus da cobrança judicial ficar a cargo do destinatário da arrecadação. Situação semelhante ocorre com as contribuições para as entidades patronais (SESI, SESC, SENAI etc) cuja receita não está incluida no orçamento da União, mas a fiscalização e cobrança é realizada pela Receita Federal do Brasil. Outra perspectiva que merece relevo, ao se enfrentar o complexo instituto da parafiscalidade, diz respeito à análise da natureza jurídica522 das contribuições de que trata o art. 149 da CRFB/88. 12.3. A PARAFISCALIDADE E A NATUREZA JURÍDICA DA EXAÇÃO (TRIBUTÁRIA OU NÃO-TRIBUTÁRIA). Ab initio, no direito comparado, merece destaque a doutrina de E. Morselli523, para quem a teoria da parafiscalidade encontra amparo: na distinção das necessidades públicas em fundamentais e complementares. As primeiras correspondem às finalidades do Estado, de natureza essencialmente política. As segundas correspondem às finalidades sociais e econômicas, as quais, sobretudo recentemente, assumiram grandes proporções e novas determinações financeiras. Trata-se principalmente de necessidades de grupos profissionais econômicos e de grupos sociais. Assim, às necessidades fundamentais correspondem uma finança fundamental (de entes públicos territoriais). A teoria da parafiscalidade explica a finança complementar. O mencionado jurista italiano, ao enfrentar o tema da natureza jurídica de certas contribuições (as quais denominou de contribuições parafiscais), concebeu-as como exações regidas por regime próprio, não tendo natureza tributária como os tributos em geral, porquanto estes têm origem no poder 522 Oportuno ressaltar que a análise da natureza jurídica de um instituto diz respeito ao seu enquadramento dentro do sistema ( ou sistemas ) a que está vinculado. 523 MORSELLI, E. Compendio di scienza delle finanze. Padova: Milani, 1967. FGV DIREITO RIO 220 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I essencialmente político, ao passo que as “contribuições parafiscais” têm como fundamento fazer face as necessidades de caráter econômicosociais524. Para E. Morselli525, a fiscalidade se diferencia da parafiscalidade na sua essência, uma vez que a fiscalidade – amparada nos tributos em geral – visa precipuamente a conseguir recursos para suprir as atividades fundamentais do Estado, tendo como base a capacidade contributiva, enquanto a parafiscalidade encontra sua ratio essendi no princípio da solidariedade526. A receita parafiscal, na linha de pensamento do referido autor, procura fazer frente às despesas não essenciais, relacionadas, em regra, com a seguridade social e outros interesse de grupos específicos, como os de categorias profissionais e econômicas. Nesse sentido, parte de uma concepção liberal da atividade do Estado. Na mesma trilha de E. Morselli parece caminhar Ricardo Lobo Torres527, para quem as contribuições sociais, interventivas e corporativas, não teriam, sob o critério científico, natureza tributária, malgrado reconheça que parte da doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal são no sentido de que tais exações têm natureza tributária: adota-se, na realidade, o critério topográfico, uma vez que as mencionadas contribuições foram inseridas dentro do capítulo do Sistema Tributário Nacional (art. 149, CRFB/88) pelo constituinte originário. Na visão do referido autor brasileiro, as contribuições em tela teriam conteúdo diferente dos tributos, na medida em que não estão afetadas a serviços essenciais do Estado Fiscal, e preleciona que a parafiscalidade, com o advento da Carta de 1988, desapareceu no direito brasileiro, amalgamando-se no conceito de fiscalidade528. Nesse passo, preleciona o autor que: Enquanto a fiscalidade se caracteriza pela destinação dos ingressos ao Fisco, a parafiscalidade consiste na sua destinação ao PARAFISCO, isto é, aos órgãos que, não pertencendo ao núcleo da administração do Estado, são paraestatais, incumbidos de prestar serviços paralelos e inessenciais por meio de receitas paraorçamentárias. A parafiscalidade, portanto, não deveria se confundir com a fiscalidade, nem as prestações parafiscais com os tributos, uma vez que constituiria autêntica contradictio in terminis falar em ‘tributos paratributários’ou em ‘fiscalidade parafiscal’: o que é para-tritbutário não pode ser tributário e o que é fiscal não pode ser ao mesmo tempo parafiscal. (grifo do autor)529. 524 MORSELLI 1960 apud TORRES, 2007, p. 527. 526 Aponta Ricardo Lobo Torres, in: TORRES ( 2007 ). Op. Cit. p. 554, “a solidariedade, como assinala a doutrina germânica, cria o sinalagma não apenas entre o Estado e o indivíduo que paga a contribuição, mas entre o Estado e o grupo social a que o contribuinte pertence”. 527 TORRES, Ricardo Lobo. A política industrial da Era Vargas e a Constituição de 1988. In: DE SANTI, Eurico Marcos Diniz ( coordenador ). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas- do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp.254-271. Ainda, do mesmo autor, Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004. 528 Argumenta ainda Ricardo Lobo Torres que a diluição da parafiscalidade na fiscalidade, a partir da normativa constitucional de 1988, fica clara especialmente no tocante às contribuições sociais “que deixaram de ser paraorçamentrárias (para-budgetaires, off budget) para se tansformarem em fontes orçamentárias”530. Vale ressaltar que a Carta Constitucional de 1988 adotou o princípio da unidade orçamentária, e o orçamento da Seguridade Social ROSA JR. Op. Cit. p. 415. 525 Idem. Ibidem. p.270. 529 Idem. Ibidem. p.269. Para o autor, as despesas para tutelar direitos sociais que não garantem o mínimo existencial são consideradas não essenciais e assumidas de forma subsidiária pelo Estado. 530 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. IV. Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, pp. 526-530. FGV DIREITO RIO 221 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I passou a integrar a lei orçamentária da União, ex vi do at. 165, § 5º, da CRFB/88: vale dizer que tal modelo só encontra paralelo no Direito português, aponta Ricardo Lobo Torres. Nesse passo, cumpre destacar que a parafiscalidade tem como forte referência histórica o período que se segue pós– 2ª Guerra Mundial, cujo principal propósito era carrear recursos para fazer face às despesas com a previdência social e outras atividades de caráter intervencionista do Estado delegadas a órgãos paralelos ao núcleo central da administração pública531. No Brasil, assim como na Itália, França, Espanha e Argentina, a concepção de parafiscalidade que emergiu de forma mais acentuada “foi considerada como fenômeno fiscal e as prestações parafiscais como tributos”, pondera Ricardo Lobo Torres532. Ainda, importante destacar que a Emenda Constitucional nº 1/69 inseriu no rol dos tributos as contribuições sociais, o que fez com que parte significativa da doutrina e jurisprudência admitissem a natureza tributária daquelas exações. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 8/77 retirou as contribuições sociais do capítulo dos tributos, o que ensejou novamente a discussão em torno da natureza jurídicas dessas exações, e passou-se a entender que não eram tributos. Nesse quadro de inconstâncias, o constituinte na Carta de 1988, por fim, decidiu colocar as contribuições em geral no capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional, inspirando a doutrina majoritária e a jurisprudência do STF no sentido de efetivamente considerar tais exações como tributo, ainda que discutível aludida solução sob o critério científico ou do desenvolvimento histórico de um conceito unitário dos tributos. Para ilustrar, vale transcrever excertos da decisão do STF, na qual a Corte enfrentou a questão da natureza jurídica das contribuições. Em sede de Recurso Extraordinário de n° 13884-CE, o Ministro Carlos Velloso classificou as contribuições sociais da seguinte maneira.533: As contribuições sociais desdobram-se em: (a.1) contribuições de seguridade social, disciplinadas no artigo 195, I, II, e III da CF/88, compreendendo as contribuições previdenciárias, as contribuições do FINSOCIAL (hoje COFINS), as da Lei 7689, o PIS, e o PASEP (art. 239). Não estão sujeitas à anterioridade (art. 149, art. 195, parágrafo 6°); (a.2) outras de seguridade social (art. 195, parágrafo 4°): não estão sujeitas à anterioridade (art. 149, art. 195, parag. 6°). A sua instituição, todavia, está condicionada à observância da técnica da competência residual da União, a começar, para a sua instituição, pela exigência de lei complementar (art. 195, parág. 4°, art. 154, I); (a.3) contribuições sociais gerais art. 149: o FGTS, o salário-educação (art. 212, parág. 5°), as contribuições do SENAI, SESI, SENAC (art. 240). Sujeitam-se ao princípio da anterioridade. 531 TORRES ( 2007 ). p. 529. Segundo Ricardo Lobo Torres, “a crise mundial surgida na década de 1970, com reflexos dramáticos no Brasil, fez com que se reavaliasse o papel do Estado Social de Direito e se extirpassem, do rol das suas funções essenciais, aquelas que só lhe deveriam caber em caráter supletivo e subsidiário, como sejam a propriedade de empresas, a intervenção no mercado e a previdência social. Ao mesmo tempo recuperou-se a consciência de que a categoria tributo possui entre os seus elementos característicos a destinação às despesas essenciais do Estado, inconfundível com a arrecadação a este ou àquele órgão, que realmente não tem influência para a elaboração do conceito”. 532 TORRES ( 2007 ). Op. Cit. pp. 526-527. 533 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. RE n° 13884-CE. Disponível no sítio: <www.STF.jus.br>. Pesquisa realizada em 12/02/2009. FGV DIREITO RIO 222 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Depois de longa discussão acerca do elenco das espécies tributárias, o STF firmou entendimento, com base na Teoria Quinquipartite, de que são modalidades de tributos: os impostos, as taxas, a contribuição de melhoria, elencadas no artigo 145 da CF/88, cuja competência para instituí-las é concorrente; o empréstimo compulsório, art.148; as contribuições sociais, as contribuições de intervenção no domínio econômico e as contribuições de categorias profissionais e econômicas, disciplinadas no artigo 149 da CF/88. Apenas a título de ilustração, cabe mencionar a posição de Sacha Calmon Navarro Coelho534, para quem todas as contribuições elencadas no art. 149 da CRFB/88 estão inseridas no conceito de exações parafiscais, ou seja, todas as contribuições sociais (gerais, de seguridade social ou outras de seguridade social), as de intervenção no domínio econômico, das categorias profissionais ou econômicas, independentemente de quem as arrecada, se pessoa jurídica de direito público ou privado, estariam abrangidas na parafiscalidade. No que se refere especificamente às contribuições sociais, cumpre destacar trecho do voto do Ministro Cesar Peluzo do Supremo Tribunal Federal na ADIN 3105-8, o qual esclarece: (...) Salvas raras vozes hoje dissonantes sobre o caráter tributário das contribuições sociais como gênero e das previdenciárias como espécie, pode dizerse assentada e concorde a postura da doutrina e, sobretudo, desta Corte em qualificá-las como verdadeiros tributos (RE nº 146.733, rel. Min. MOREIRA ALVES, RTJ 143/684; RE Nº 158.577, REL. Min. CELSO DE MELLO, RTJ 149/654), sujeitos a regime constitucional específico, assim porque disciplinadas as contribuições no capítulo concernente ao sistema tributário, sob referência expressa aos art. 146, III (normas gerais em matéria tributária) e 150, I e III (princípios da legalidade, irretroatividade e anterioridade), como porque corresponderiam à noção constitucional de tributo construída mediante técnica de comparação com figuras afins. Assim sendo, ressalvada a destinação das suas receitas, as quais são vinculadas aos fins para os quais foram criadas, as contribuições sociais tem natureza tributária, submetendo-se, dessa forma, às normas previstas no sistema tributário nacional, isto é, conformam-se e se subordinam a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, excepcionadas, naturalmente, pelas as disciplinas particulares especificamente traçadas na própria Constituição, como é o caso da noventena ou anterioridade nonagesimal535, matéria a ser apresentada na aula pertinente ao princípio da anterioridade. No tocante ao princípio da solidariedade, o STF, ao enfrentar a sistemática das contribuições sociais criadas pela União, desenvolveu o princípio estrutural da solidariedade, o qual se afasta um pouco do princípio da solidariedade do grupo para se firmar com norma-princípio estruturante das contribuições 534 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Manual de Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 51-54. Tais contribuições, segundo o autor, são “impostos afetados a finalidades específicas ( raramente são taxas )”. 535 Dispõe o artigo 195, § 6º, da CR88, relativamente às contribuições de seguridade social: “As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, “b”. Ou seja, afasta-se o princípio da anterioridade clássica, segundo o qual é vedado a cobrança de tributo instituído ou aumentado no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o criou ou incrementou, aplicando-se, tão somente, a noventena. FGV DIREITO RIO 223 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I sociais. Segundo entendimento da Suprema Corte brasileira, no acórdão proferido em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3105/DF e ADI 3128/DF de 18.08.2004), “o regime previdenciário visa a garantir condições de subsistência, independência e dignidade pessoais ao servidor idoso por meio de pagamento de proventos de aposentadoria durante a velhice e, nos termos do art. 195 da CF, deve ser custeado por toda a sociedade, de forma direta e indireta, o que se poderia denominar de princípio estrutural da solidariedade”536. Dito de outra maneira, enquanto a solidariedade de grupo consiste no binômio, encargo financeiro e benefício de determinado grupo de pessoas, o princípio estrutural da solidariedade em sede de regime previdenciário tem como escopo a garantia de um sistema forte em que todos, indistintamente, colaboram, ou seja, por meio deste princípio social a sociedade se une por uma causa maior, que é a tutela de vários valores fundamentais, como a vida digna e a saúde. Pelo exposto nesse item, pode-se concluir que a parafiscalidade possui pelo menos duas acepções de acordo com a doutrina: (1) a primeira restringindo o fenômeno às cobranças realizadas por entidades delegatárias autônomas, de natureza jurídica pública ou privada, que exerçam atividades de interesse público, como, por exemplo, os sindicatos dos trabalhadores e categorias profissionais, nos termos do artigo 8º, IV, da CR-88, as entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, o denominado sistema “S”, SESI, SESC SENAI, consoante o disposto no artigo 240 da CR-88, as entidades que exercem a fiscalização e a regulamentação das categorias profissionais e econômicas, a teor do artigo 149 da CR88, como o CREA e o CRM, à exceção da OAB, pelas razões já expostas,e etc., e (2) a segunda englobando, também, as exações criadas com o objetivo de financiar a denominada segurança ou seguridade social, as denominadas contribuições sociais, vinculadas à saúde, assistência ou previdência social, disciplinadas nos artigos 149 e 195 da CR-88. 536 TORRES ( 2007 ). Op. Cit. p. 556-557. FGV DIREITO RIO 224 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 13– ASPECTOS ECONÔMICOS DA TRIBUTAÇÃO E OS DIFERENTES SUBSTRATOS DE INCIDÊNCIA: O PATRIMÔNIO, A RENDA E O CONSUMO ESTUDO DE CASO 1 Suponha dois países distintos: X e Y. No país X há somente um tributo, o qual incide sobre a Renda (IR) auferida por pessoas físicas e jurídicas, seja proveniente do trabalho ou do rendimento do capital. No país Y também existe apenas um imposto, no entanto a exação incide exclusivamente sobre o Consumo (IC) das pessoas, e não sobre a renda auferida. Marx vive no país X e Adam Smith vive no país Y. O IR é retido pela fonte pagadora e o IC é pago pelo comerciante varejista mensalmente, sendo o ônus ou encargo financeiro do imposto repassado integralmente ao preço cobrado do consumidor final (Smith). Qual o total de imposto a pagar e o capital acumulado em cada País, por Marx e Smith, no final do primeiro e do segundo período, considerando os seguintes cenários e hipóteses: 1) somente IR no país X – alíquota de 10%; e 2) somente IC no país Y, também com alíquota de 10%, e: I – O rendimento do capital (juro) investido na aplicação financeira é de 10% nos dois países; e II – A renda do trabalho auferida no período 1 e no período 2 nos dois países, por Marx e por Smith, é igual a $1000, sendo o total consumido por cada um nos períodos equivalente a $600 (no período 1) e $900 (no período 2), respectivamente. O montante não consumido e não utilizado para pagamento de imposto será integralmente investido no mercado financeiro em renda variável cuja tributação é realizada na fonte pela alíquota de 10%, exclusivamente no país X, pois no país Y não há IR. FGV DIREITO RIO 225 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I País X – Marx – Imposto de Renda (IR) 10% País Y–Smith – Imposto sobre Consumo (IC) 10% Momento 1 Momento 1 Momento 2 Momento 2 Total de Tributo pago em 1 e 2: Total de Capital Acumulado ao final: Total de Tributo pago em 1 e 2: Total de Capital Acumulado ao final: ESTUDO DE CASO 2 (RE 589.216) O Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro encaminhou mensagem de nº 27/2003 (Projeto de Lei nº 566/2003) à Assembléia Legislativa do Estado, a qual aprovou o texto que foi sancionado, promulgado e publicado como Lei nº 4135, de 18 de agosto de 2003, com a seguinte redação: Art. 1º – A alíquota do Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS incidente sobre operação interna, interestadual destinada a consumidor final não contribuinte, e de importação, tendo por objeto arma de fogo e munição, suas partes e acessórios, passa a ser de 200% (duzentos por cento). Parágrafo único – Não se aplicam as disposições previstas no “caput” quando as operações, tendo por objeto armas de fogo e munições, suas partes e acessórios, forem destinadas às forças armadas ao sistema penitenciário e às entidades ligadas ao sistema nacional de desporto, bem como aos órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal, definidos no art. 144 da Constituição Federal, permanecendo, para essa finalidade, a alíquota vigente. Art. 2º – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, e produzirá efeitos a partir de 01 de janeiro de 2004. Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2003. FGV DIREITO RIO 226 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A Lei foi objeto da representação de inconstitucionalidade nº 001200028.2003.8.19.0000537, tendo o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro considerado inválida a lei estadual, haja vista que a norma fixa “alíquota de imposto estadual a caracterizar confisco e a estabelecer limitações ao tráfego de bens”. Impugnada a decisão do TJ-RJ junto ao STF, o relator do Recurso Extraordinário 589.216 proferiu decisão monocrática declarando a constitucionalidade da lei, sob fundamento de que a “jurisprudência do Supremo fixou-se no sentido de ser idôneo o uso do ‘caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia’ [ADI n. 1.276, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 29.8.02]”, razão pela qual a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, tendo logrado êxito na defesa do ato impugnado perante o Supremo Tribunal Federal, determina o cumprimento da decisão. Calcule o imposto incidente na venda de deteminada arma de fogo se o custo de uma unidade do produto sem o ICMS é R$ 1.000, 00 (hum mil reais). Considere para tanto que cabe à lei complementar, nos termos da alínea “i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da Constituição da República Federativa de 1988, dispositivo que disciplina o ICMS, “fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço” 538. 13.1 ASPECTOS PRELIMINARES DA INCIDÊNCIA ECONÔMICO-JURÍDICA Preliminarmente, cumpre distinguir a incidência jurídica do tributo de um lado, o que se exterioriza e é delimitado pelo disposto em lei, dos múltiplos efeitos econômicos da tributação sobre os diversos agentes econômicos – inclusive as famílias e o Estado – de outro. Ressalte-se, entretanto, que essa distinção, na verdade, apenas facilita a compreensão do fenômeno tributário, tendo em vista que a realidade é única e não comporta segmentações que visam apenas auxiliar a identificação e o raciocínio acerca da dinâmica do complexo processo impositivo que é intersistêmico. De fato, o fenômeno tributário é subsistema tanto do Direito como da Economia, sem mencionar os aspectos Políticos, Culturais etc. Nesse sentido, impõe-se enfatizar que a incidência dos tributos no Estado de Direito pressupõe a existência de um ato, um fato ou um evento juridicamente qualificado que possua relevância sob o ponto de vista econômico. Esta é a razão da indissociável imbricação entre a estrutura normativa e econômica da tributação, a partir da qual se exteriorizam e são identificados os signos de riqueza e a manifestação de capacidade econômica. 537 BRASIL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Representação de Inconstitucionalidade 110/2003, Rel. Des. Luiz Eduardo Rabello. Julgamento em 12.08.2009. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br>. Acesso em 17.06.2010. Ementa: “Representação por inconstitucionalidade de lei estadual frente a Constituição do Estado. Competência do Tribunal de Justiça. Art. 161, inc. IV, letra “a” da Carta Estadual. Representação formulada por Deputado Estadual. Legitimidade. Art. 162 da Constituição Estadual. Lei Estadual que eleva para 200% a alíquota do ICMS incidente sobre as operações tendo por objeto armas de fogo, munições, suas partes e acessórios. Elevação com o evidente objetivo de restringir comércio legal. Elevação desmedida de alíquota de imposto estadual a caracterizar confisco e a estabelecer limitações ao tráfego de bens. Inconstitucionalidade flagrante frente as normas constantes dos incisos IV e V do artigo 196 da Constituição Estadual. Procedência da representação”. 538 Dispositivo introduzido pela Emenda Constitucional nº 3/1993. Saliente-se, entretanto, que antes da alteração constitucional para introduzir a aludida alínea “i”, a Lei Complementar nº 87/1996, no §1º do art. 13 - e antes dela o Convênio ICMS 66/89 com fulcro na autorização constitucional contida no art. 34, §8º, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)- já determinava que o ICMS estaria incluído em sua própria base de cálculo. O Supremo Tribunal Federal, no RE 212209, já havia se pronunciado, antes mesmo da edição da Emenda Constitucional nº 33/2001, no sentido da constitucionalidade do denominado “cálculo por dentro”, isto é, que a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo não violava o princípio da não-cumulatividade. O julgamento ocorreu em 23/06/1999, e o acórdão possui a seguinte ementa: “Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS: inclusão no valor da operação ou da prestação de serviço somado ao próprio tributo. Constitucionalidade. Recurso desprovido.” FGV DIREITO RIO 227 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O fato de o indivíduo ter barba, ser calvo ou careca, por exemplo, não pode servir de elemento catalisador a ensejar a possibilidade de tributação, haja vista não consubstanciarem ou traduzirem aptidão para contribuir em sentido econômico, pressuposto e limite da tributação, tópico da matéria que será objeto de estudo específico na Aula 16. Por esse motivo a exigência de tributos no Estado de Direito é expressão da incidência econômico-jurídica, união indissociável que se projeta sobre a interpretação jurídico-econômica da norma impositiva, matéria a ser examinada no próximo semestre. Nesse sentido, a capacidade econômica, subprincípio da igualdade, conforme será examinado na próxima aula, que versa sobre a extrafiscalidade, apesar de se realizar potencialmente de múltiplas formas e medidas, é, ao mesmo tempo, limite e pressuposto da incidência de tributos, pois não há o que ser tributado caso não haja prévia e inequívoca manifestação de riqueza, em qualquer das formas em que possivelmente se exterioriza, ou seja, por meio dos diversos substratos econômicos539 de incidência de tributos: o consumo de bens e serviços, o auferimento de renda, a aquisição, posse, propriedade ou transmissão de patrimônio. Saliente-se, conforme será analisado abaixo, que o tributo formulado ou desenhado para incidir sobre determinada base econômica de tributação pode, de fato, não atingir aludido substrato, em função de condições de mercado ou da própria legislação tributária. Destaque-se, também, que nem sempre a pessoa eleita pela norma de incidência como o sujeito passivo da obrigação tributária é aquela que arca, na realidade, com o ônus econômico do tributo, ou seja, existe o chamado contribuinte de fato e o denominado contribuinte de direito, os quais podem ser ou não a mesma pessoa, também em função das condições dos mercados de bens e serviços e daqueles dos fatores de produção (terra, capital, trabalho etc.) assim como das normas de incidência. Ainda, importante salientar que pessoas jurídicas, criações do homem, não suportam, em última instância, a carga tributária, pois somente pessoas naturais arcam com o ônus econômico do tributo, isto é, a incidência econômica da exação sobre a pessoa jurídica dever ser analisada sob a perspectiva do retorno do capital empregado por aquele responsável por sua constituição ou seu beneficiário, o que requer análise conjunta da norma jurídica com a realidade econômica sobre a qual ela é aplicada. 13.2 A INCIDÊNCIA ECONÔMICO-JURÍDICA O ordenamento normativo conforma a denominada incidência jurídica, a partir de eventos do mundo real que denotem signos de riqueza, sendo que as consequências econômicas da exigência dos tributos dependem de múltiplas variáveis, inclusive a interpretação/aplicação da norma impositiva. 539 No anexo a esta aula, ao final desse material didático, é apresentado quadro que facilitar a visualização da divisão da competência de impostos e contribuições especiais sob a perspectiva jurídica constitucional do federalismo fiscal brasileiro já estudado na aula 11, considerando, agora, as bases econômicas de incidência. FGV DIREITO RIO 228 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O tipo de bem540 e serviço objeto de incidência, a estrutura de mercado541 e da remuneração dos fatores de produção542 em que se insere o objeto da tributação, a espécie de tributo543 adotado bem como o substrato econômico de incidência escolhido determinam os efeitos econômicos da incidência, os quais podem ser examinados sob enfoque da microeconomia ou da macroeconomia. Saliente-se, ainda, os inúmeros efeitos em potencial que a tributação pode causar sobre a concorrência entre os diversos agentes do mercado, na hipótese de regras tributárias não isonômicas. A pessoa eleita pela norma jurídica como sujeito passivo da obrigação tributária (art. 121 do CTN) e aquela que arca com o encargo financeiro do tributo (art. 166 do CTN) podem coincidir ou não, ou seja, podem ser ou não a mesma pessoa, tendo em vista que a imposição de tributos pode ocasionar alterações nos preços dos bens e serviços ou na remuneração dos fatores de produção. Dito de outra maneira, alterações de preços nos mercados de bens e serviços e de fatores de produção podem redirecionar o ônus econômico e financeiro do tributo para pessoa diversa daquela indicada pela lei como o contribuinte de direito. Considerando o exposto ensina Harvey Rosen544: The statutory incidence of a tax indicates who is legally responsible for the tax. (…) But the situations differ drastically with respect to who really bears the burden. Because prices may change in response to tax, knowledge of statutory incidence tells us essentially nothing about who is really paying the tax. (…) In contrast, the economic incidence of a tax is the change in the distribution of private real income brought by a tax. Complicated taxes may actually be simpler for a politician because no one is sure who actually ends up paying them. (grifo nosso) Em sentido análogo apontam Marco Antonio Vasconcellos e Manuel Garcia545: A proporção do imposto pago por produtores e consumidores é a chamada incidência tributária, que mostra sobre quem recai efetivamente o ônus do imposto. Há uma diferença entre o conceito jurídico e o conceito econômico de incidência. Do ponto de vista legal, a incidência refere-se a quem recolhe o imposto aos cofres públicos; do ponto de vista econômico, diz respeito a quem arca efeitvamente com o ônus. (grifo nosso) Ressalte-se ainda que, independentemente da denominação jurídica conferida ou da distribuição constitucional de competências tributárias entre os diversos entes políticos em uma Federação, conforme examinado na Aula 11, são três os substratos de incidência tributária sob o ponto de vista econômico:546 o patrimônio, a renda e o consumo. 540 A curva de demanda, assim definida como a escala que apresenta a relação entre possíveis preços a determinadas quantidades, é negativamente inclinada em decorrência da combinação de dois fatores: o efeito substituição e o efeito renda. Na hipótese em que dois bens sejam similares, mantidas as demais variáveis constantes (coeteris paribus), caso o preço de um deles aumente, o consumidor passa a consumir o bem substituto. Por exemplo, no caso do proprietário do automóvel flex, isto é, que possa utilizar múltiplos combustíveis, como o álcool etílico hidratado combustível (AEHC) ou a gasolina, se um dos dois produtos tem um aumento abrubpto, que ocasione uma desvantagem muito grande no consumo de um em relação ao outro, ocorrerá o efeito substituição. À exceção do denominado bem de Giffen, que pode ocorrer na improvável hipótese em que a demanda por um bem cai quando o seu preço é reduzido, a regra geral é que, mantidas as demais variáveis correlacionadas constantes (coeteris paribus), como a renda do consumidor e os preços dos outros bens, caso o preço de um bem aumente o consumidor perde poder aquisitivo e a demanda pelo produto será reduzida. A demanda de uma mercadoria é certamente inluenciada por outros fatores além da variável preço, como as preferências e renda dos consumidores, pelos preços de outros bens e serviços (bens complementares, substitutos), etc. A relação entre a renda e a demanda depende do tipo de bem. No caso do bem normal o aumento de renda do consumidor leva ao aumento da demanda do produto. Em sentido oposto, na hipótese dos denominados bens inferiores o aumento da renda causa uma redução da demanda, como ocorre, por exemplo, com o consumo da denominada “carne de segunda”. Já os denominados bens de consumo “saciado” não são influenciados diretamente pela renda dos consumidores (e.g. sal, farinha, arroz etc). 541 Monopólio, oligopólio, concorrência monopolística ou um mercado mais próximo da denominada concorrência pura ou perfeita etc. 542 Os recursos de produção da economia, os denominados fatores de produção são usualmente subdivididos em terra, capital, tecnologia e recursos humanos, trabalho e capacidade empresarial. Cada fator de produção possui uma remuneração: o aluguel (terra), juro (capital), royaltiy (tecnologia), salário (trabalho) e lucro (capacidade empresarial). 543 Existem múltiplas espécies de tributos sob o ponto de vista econômico, podendo-se segmentar a análise sob a perspectiva macroeconômica ou microeconômica. Os impostos incidentes FGV DIREITO RIO 229 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A análise individualizada de cada uma dessas bases de tributação, bem como a relação entre elas, ajuda a compreensão da dinâmica do sistema tributário em sua interface com a política econômica. De fato, apesar da maioria esmagadora dos países adotarem todos os supracitados substratos econômicos, ao mesmo tempo (patrimônio, renda e consumo), a relevância relativa ou o peso conferido a cada uma dessas bases de incidência revela em grande medida o perfil, os propósitos e os possíveis reflexos das diferentes políticas tributárias adotadas pelos governos nacionais. A preponderância de determinado substrato econômico de tributação indica, por exemplo, a ênfase da intenção de se utilizar o sistema tributário para redistribuir riqueza ou estimular os investimentos e a atividade econômica privada. Os impostos que recaem sobre o patrimônio e a renda, por exemplo, se adéquam com facilidade à política fiscal orientada para onerar mais pesadamente as pessoas que demonstrem maior capacidade econômica, seja por meio da utilização de alíquotas proporcionais ou progressivas. A incidência sobre o consumo, por outro lado, exclui a renda poupada da tributação, o que estimula o investimento e a geração de riqueza, apesar de ser considerado um tributo regressivo, tendo em vista não levar em consideração, em regra, a capacidade econômica do contribuinte, conforme será estudado na próxima aula pertinente à extrafiscalidade. Destaque-se, entretanto, que, idealmente, a medida do ônus global da incidência bem como das consequências distributivas da imposição tributária deveria combinar a análise do impacto da instituição e cobrança do tributo com o exame dos efeitos dos gastos que foram financiados pelas receitas cogentes. De fato, a introdução do imposto pode afetar a economia individual e coletiva em dois aspectos: (1) em relação à fonte dos recursos disponíveis (“source side”); e (2) no que se refere aos efeitos sobre os preços dos bens e serviços passíveis de serem adquiridos (“uses side”). De qualquer forma, importante repisar que nem sempre a pessoa eleita pela norma jurídica como o sujeito passivo da obrigação tributária, usualmente denominado de contribuinte de direito, é aquele que arca, na realidade, com o ônus econômico do tributo, enquadramento que depende das forças do mercado de fatores de produção e de bens e serviços. Em outras palavras, independentemente do substrato econômico de tributação utilizado (patrimônio, renda ou consumo), o contribuinte de fato, assim qualificado por suportar o encargo financeiro da incidência, pode ser ou não a mesma pessoa que o contribuinte de direito, que tem o dever jurídico de pagar o tributo, por determinação legal (o sujeito passivo da obrigação tributária). Essa possível dissociação decorre dos múltiplos efeitos dos tributos sobre os preços e condições dos mercados de bens e serviços e dos fatores de produção (terra, capital, trabalho, tecnologia etc.), do tipo de exação assim como da própria aplicação da norma jurídica de incidência, conforme acima salientado. Nesse sentido ensinam Marco Antonio Vasconcellos e Manuel Garcia547: no mercado de bens e serviços se diferenciam daqueles aplicáveis sobre a remuneração do mercado de fatores de produção. Saliente-se a possibilidade de exações instituídas sobre transações específicas não associadas diretamente ao consumo de bens e serviços ou à remuneração de fator de produção, mas que afetam indiretamente essas variáveis. Os tributos incidentes sobre as movimentações financeiras, por exemplo, instituídos como um percentual sobre os depósitos bancários ou das transações financeira, podem ou não estar vinculados diretamente ao consumo de serviços bancários ou à remuneração de aplicação no mercado. 544 ROSEN, Harvey S. Public Finance – 4th ed. United States: Irwin, 1995. Chapter 13, p. 273 a 302. 545 VASCONCELLOS, Marco Antonio; GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. 2ª Ed. Saraiva, 2006, p.48 (nota 5). 546 ROSEN. Op. Cit. p. 475. Conforme aponta Harvey S. Rosen: “(…) the base of an income tax is potential consumption. This chapter discusses two additional types of taxes: The first is consumption tax, whose base is the value (or quantity) of commodities sold to a person for actual consumption. The second is a whealth tax, whose base is accumulated saving, that is the accumulated difference between potential and actual consumption” 547 VASCONCELLOS, Marco Antonio; GARCIA, Manuel E. Op. Cit.p.48. FGV DIREITO RIO 230 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O produtor procurará repassar a totalidade do imposto ao consumidor. Entretanto, a margem de manobra de repassá-lo dependerá do grau de sensibilidade desse a alterações do preço do bem. E essa sensibilidade (ou elasticidade) dependerá do tipo de mercado. Quanto mais competitivo ou concorrencial o mercado, maior a parcela do imposto paga pelos produtores, pois eles não poderão aumentar o preço do produto para nele embutir o tributo. O mesmo ocorrerá se os consumidores dispuserem de vários substitutos para esse bem. Por outro lado, quanto mais concentrado o mercado – ou seja, com poucas empresas –, maior grau de transferência do imposto para consumidores finais, que contribuirão com parcela do imposto. Em suma, a interação entre tributo e preço estabelece a correlação fundamental para determinação de quem suporta o ônus do tributo, se é o próprio contribuinte de direito, que é o sujeito passivo da obrigação tributária (artigo 121 do CTN) e tem o dever jurídico de extinguir o crédito tributário pelo pagamento, nos termos do disposto no art. 156 do mesmo CTN ou, em sentido diverso, se o contribuinte de fato é outra pessoa. O contribuinte de direito é determinado pela lei em caráter formal e material, em obediência ao princípio da tipicidade expresso no art. 97 do CTN, conforme será examinado na aula pertinente ao estudo do princípio da legalidade, e pode ser ou não a mesma pessoa que se caracteriza como o contribuinte de fato, figura a ser definida pela dinâmica das diversas forças que formam o denominado mercado. 13.3 AS INTERFACES ENTRE OS DIVERSOS SUBSTRATOS ECONÔMICOS DE INCIDÊNCIA A interação entre as mencionadas bases econômicas de incidência (patrimônio, renda e consumo) é inequívoca, pois refletem o resultado da atividade econômica e do comportamento social passado e presente. Robert M. Haig e Henry C. Simons fixaram o conceito de renda sob o ponto de vista econômico nos seguinte termos548: income is the money value of the net increase to an individual’s power to consume during a period. This equals to the amount actually consumed during the period plus net additions to wealth. Net additions to wealth – saving – must be included in income because they represent an increase in potential consumption. Portanto, segundo a definição de Haig-Simons, renda, que representa o consumo em potencial, é igual ao consumo mais a poupança (net wealth)549, a qual, por sua vez, em termos agregados representa a capacidade de inves- 548 ROSEN. Op. Cit. pp. 360-361. 549 Renda = Consumo + Poupança FGV DIREITO RIO 231 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I timento de uma economia, sem levar em consideração a poupança externa. Por outro lado, o patrimônio, em dado momento do tempo, reflete a renda passada não consumida e que foi imobilizada. Assim sendo, todos os substratos econômicos de incidência tributária tem como origem primária a renda, passada ou presente. 13.3.1 A incidência sobre a Renda e o Patrimônio Duas são as modalidades de tributação do patrimônio: (1) a primeira, em que se considera a totalidade dos bens e direitos do sujeito passivo550; e (2) a segunda, a partir de elementos específicos ou parcelas que compõem o patrimônio do contribuinte, em função de (2.1) uma situação jurídica (propriedade, posse etc) ou (2.2) uma a transmissão patrimonial, a título gratuito ou oneroso. Diversos exemplos dessas últimas hipóteses de incidência já foram analisadas sob a perspectiva da distribuição de competências de nosso federalismo fiscal, como são os casos dos impostos sobre a propriedade territorial rural (art. 153, VI), predial e territorial urbana (art. 156, I), de veículos automotores (art. 155, III), de transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens e direitos (art. 155, I) e da transmissão intervivos, por ato oneroso de bens imóveis (art. 156, II). A renda e o patrimônio possuem conexão íntima podendo-se segmentar a primeira em: auferida, imobilizada ou transferida. Nesse sentido, sobre esses dois substratos econômicos de incidência, salienta Ricardo Lobo Torres551, na esteira de Richard Musgrave e Tipke: De feito, todos eles incidem sobre base muito semelhante, estremando-se em função da periodicidade ou das características formais do ato jurídico: não há nenhuma dúvida, por exemplo, que as doações e legados constituem incrementos da renda. Por isso mesmo Tipke engloba, em sua proposta de sistema tributário ideal, os impostos sobre o patrimônio e o capital debaixo da denominação de imposto de renda (Einkommernsteuer), ao qual se contrapõem os impostos sobre a renda consumida (Einkommensverwendung). Nessa linha, deve-se alertar que o tributo desenhado para incidir sobre a renda pode afetar, na realidade, o patrimônio do sujeito passivo da obrigação tributária, caso, por exemplo, o regime jurídico tributário aplicável às deduções das despesas e dos custos necessários ao seu auferimento não forem adequados para restringir a incidência sobre a renda líquida e não sobre a renda bruta552, afastando, dessa forma, a possibilidade de se atingir o próprio patrimônio. Um exemplo numérico pode facilitar a compreensão do que se deseja expressar no momento. 550 Pode-se considerar como exemplo dessa espécie no Brasil o Imposto sobre as grandes fortunas, de competência da União, nos termos do art. 153, VII, da CR-88, tributo até hoje não instituído. 551 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume IV. Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro. Renovar, 2007.p.56-57. 552 O PIS/PASEP e a COFINS são contribuições sociais que financiam a seguridade social e incidem sobre a receita ou o faturamento, nos termos do art. 195, I, “b”, da CR-88. FGV DIREITO RIO 232 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Imagine que a alíquota553 do imposto de renda da pessoa jurídica é 40% e uma empresa possua faturamento de R$ 1.000,00 (hum mil reais). Para atingir aludida receita bruta554, incorreu em custos e despesas de R$ 900,00 (novecentos reais) sob o ponto de vista econômico-societário. Nesse total de R$ 900,00 (novecentos reais) estão incluídos R$ 600,00 (seiscentos reais) de custos e despesas gerais de produção e venda e R$ 300,00 (trezentos reais) relativos a pagamentos já realizados de multas por descumprimento da legislação tributária – autuações impostas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. Portanto, a renda líquida (lucro) da empresa sob a perspectiva econômico-societária no período, antes do imposto de renda, é tão somente R$ 100,00 (cem reais), resultado da subtração do faturamento de R$ 1.000,00 (mil reais) pelas despesas e custos totais de R$ 900,00 (novecentos reais). Suponha, entretanto, que a legislação tributária restringiu os custos e as despesas dedutíveis555 para a apuração do imposto de renda, de forma que, para efeitos fiscais, somente foi possível abater R$ 600,00 (seiscentos reais) do faturamento quando da apuração do imposto de renda da pessoa jurídica no período, isto é, o Fisco não admitiu, por força do disposto na legislação tributária, o abatimento dos R$ 300,00 (trezentos reais) relativos ao pagamento de multas. Dessa forma, ao invés de pagar R$ 40,00 (quarenta reais) de imposto sobre a renda (40% * R$ 100,00), caso fosse possível deduzir os R$ 900,00 (novecentos reais) integralmente, o que redundaria em lucro após o pagamento do imposto no montante de R$ 60,00 (sessenta reais), o contribuinte deve ao fisco R$ 160,00 (cento e sessenta reais) a título da exação (40% * R$ 400,00). Dessa forma, tendo em vista que economicamente e societariamente obteve lucro bruto de apenas R$ 100,00 (cem reais), mas, por força das restrições impostas pela legislação tributária, tem que pagar R$ 160,00 (cento e sessenta reais) de imposto, parcela da exação, de fato, incidiria sobre o patrimônio da entidade, e não sobre a renda auferida no período, a qual seria insuficiente para o pagamento do tributo. Os dois quadros abaixo sintetizam o exposto: 553 A alíquota nominal, conforme será estudado no momento próprio, é um dos elementos objetivos da obrigação tributária, e deve, necessariamente ser fixada em lei, em função do disposto no art. 97 do CTN. No caso do imposto sobre a renda, a alíquota é sempre expressa em percentual que deve ser aplicado sobre uma base de cálculo, que é a expressão econômica do fato gerador e se consubstancia, da mesma forma que a hipótese de incidência e a alíquota, elemento objetivo do obrigação tributária, que deve ser estabelecido em lei em carárter formal e material. Nos termos em que será analisado na próxima aula, pode haver a aplicação de uma única alíquota ou múltiplas alíquotas para a mesma pessoa que aufere a renda , em função de objetivos de natureza extrafiscal. Já os impostos incidentes sobre bens podem ser calculados e apurados pela aplicação da chamada alíquota específica, também denominada de “ad rem” ou, ainda pela alíquota “ad valorem”, o que é mais comum. Esta incide sobre uma base de cálculo expressa em unidades monetárias (“ad valorem”), ao passo que a alíquota “ad rem” é aplicada sobre uma base de cálculo expressa em unidades físicas de medida, como metros, litros, m³, etc. Assim, por exemplo, pode ser cobrado R$ 2,00 (dois reais) por litro de vinho, ou R$ 50,00 (cinquenta reais) por metro de tecido, ou ainda, R$ 0,50 (cinquenta centavos) por m³ de combustível. A alíquota “ad valorem”, por outro lado, incide, em geral, sobre o preço dos bens e serviços objeto da tributação. Saliente-se que a alíquota nominal, isto é, aquela fixada em lei, seja ela “ad valorem” ou “ad rem”, pode ser ou não equivalente à alíquota real, também designada como a carga tributária efetiva, que expressa a proporção ou peso do tributo em relação à mercadoria, serviço ou renda, sem a consideração de inclusão do próprio tributo, conforme será examinado ainda nesta aula. Apuração Societária [1] Faturamento/Receita Bruta [2] Custo mais Despesas gerais R$ 600,00 [3] Despesas com Multas Fiscais R$ 300,00 [4]=[2]+[3] Total de Custos e Despesas R$ 900,00 [5]=[1]-[4] Lucro antes do Imposto do IR [6]=[5]*40% Imposto de Renda (40%) R$ (40,00) [7]=[5]-[6] Lucro Societário R$ 60,00 R$ 1.000,00 R$ (900,00) R$ 100,00 FGV DIREITO RIO 233 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Apuração Fiscal [1] Faturamento/Receita Bruta [2] Custo mais Despesa gerais R$ 600,00 [3] Despesas com Multas Fiscais R$ 300,00 [4]=[2]+[3] Total de Custos e Despesas Dedutíveis R$ 600,00 [5]=[1]-[4] Resultado antes do IR [6]=[5]*40% Imposto de Renda (40%) R$ (160,00) [7]=[5]-[6] Resultado após IR pelas regras fiscais R$ 240,00 [8]=[6]- R$100 R$ 1.000,00 R$ (600,00) R$ 400,00 Impacto do pagamento das Multas Fiscais no Patrimônio Pelo exposto, pode-se constatar que o imposto, apesar de formulado para incidir sobre a renda, considerando as premissas apontadas e bem assim a aplicação da legislação tributária, repercutiu sobre o patrimônio da pessoa jurídica reduzindo-o, haja vista que o pagamento de R$ 160,00 (cento e sessenta reais) exigido à título de IR foi além da renda líquida alcançada sob o pondo de vista societário (lucro societário antes do IR = R$ 100,00). Assim sendo, o impacto foi negativo em R$ 60 sobre o patrimônio. Essa é a razão pela qual, por mais variado que seja o conceito possível de renda, os economistas, financistas e os juristas em geral concordam no sentido de que o imposto deveria incidir sempre sobre um ganho ou acréscimo do patrimônio556, apesar da grande controvérsia em relação aos fatos e extensão dos eventos que consubstanciam essa situação sob o ponto de vista jurídico. De fato, a definição jurídica do conteúdo e alcance da expressão “renda e proventos de qualquer natureza”, fundamento de incidência do imposto de competência da União fixada no art. 153, III, da CR-88, é objeto de muita discussão e desencontros, tanto na doutrina como na jurisprudência nacional. O inteiro teor do Recurso Extraordinário (RE) 201465557 revela o elevado grau de dissenso jurisprudencial entre os próprios Ministros do Supremo Tribunal Federal. O relator do RE, Ministro Marco Aurélio, sustentou no recurso a tese de que o conceito constitucional de renda vincula-se ao de “acréscimo patrimonial” (p. 437) indicando, ainda que o Direito Tributário, com fundamento no art. 110 do CTN, não pode “alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos e formas de direito privado” utilizado pela Constituição para definir ou limitar competência tributária (p. 436-437). Assim, parece indicar no sentido da existência de um conceito ontológico ou natural de renda. Nessa mesma linha, se posicionou o Ministro Sepúlveda Pertence, ao ressaltar (p. 433-434): R$ (60) 554 O conceito de faturamento e receita bruta no exemplo é o mesmo, apesar da legislação fixar distinções que não são relevantes para o caso e serão examinadas no curso Direito Tributário e Finanças Públicas II. Saliente-se, apenas, o seguinte trecho do voto condutor, do Ministro Moreira Alves, na ADC nº 1, quanto ao conceito fixado no art. 2º da Lei Complementar 70/91: “Note-se que a Lei Complementar ao considerar o faturamento como ‘receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza’ nada mais fez do que lhe dar a conceituação de faturamento para efeitos fiscais, como bem assinalou o eminente Ministro Ilmar Galvão, no voto que proferiu no RE 150.764, ao acentuar que o conceito de receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços “coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, foi sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei 187/36). ” 555 Ver art. 13 da Lei nº 9249/95, art 14 da Lei nº 9.430/96 e art 11 §2º da Lei 9532/97. São hipóteses de restrições de aproveitamente ou de despesas que devem ser adicionadas ao lucro líquido do período apurado de acordo com as regras societárias. São despesas controladas na parte B do chamado Livro de Apuração do Lucro Real (LALUR) para fins de determinação do lucro real fiscal. 556 Nesse sentido ver voto proferido pelo Min. Cunha Peixoto nos autos do RE nº 89.791-RJ. FGV DIREITO RIO 234 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Lembra-me o voto do velho Ministro Luiz Galloti, dizendo, com elegância ímpar, o que muitos têm dito: o dia em que for dado chamar de renda o que renda não é, de propriedade imóvel o que não o é, e assim por diante, estará dinamitada toda a rígida discriminação de competências tributárias, que é o próprio âmago do federalismo tributário brasileiro, o qual, nesse campo, é de discriminação exaustiva de competências exclusivas e, portanto, necessariamente postula um conceito determinado dos campos de incidência possível da lei instituidora de cada tributo nele previsto. Não se pode, é claro, reclamar da Constituição uma exaustão da regulação da incidência de cada tributo, mas há um mínimo inafastável, sob pena – repito – de dinamitação de todo o sistema constitucional de discriminação de competências tributárias. (grifo nosso) Em sentido substancialmente diverso, o Ministro Nelson Jobim, relator para o acórdão, em seu voto vista, sustentou (p. 393-398) que: a legislação ordinária, no lugar da expressão constitucional ‘Renda’, passou a utilizar, para uma das modalidades de base de cálculo, a expressão ‘LUCRO REAL’. Observo que a adjetivação ‘REAL’ é obra da legislação infraconstitucional ordinária. Não está na Constituição, nem na lei complementar – CTN. A definição de ‘LUCRO REAL’ está no DL 1.598, de 26.12.1977 (...) A técnica legal para a determinação do LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é a da enumeração taxativa (a) dos elementos que compõem o LUCRO LÍQUIDO DO EXERCÍCIO e (b) dos itens que devem ser, a este adicionados e abatidos. (...) Vê-se, desde logo, que o conceito de LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é puramente legal e decorrente exclusivamente da lei, que adota a técnica da enumeração exaustiva. Algumas parcelas que, na contabilidade empresarial, são consideradas despesas, não são assim consideradas no BALANÇO FISCAL. É o caso já exemplificado dos brindes e das despesas de alimentação dos sócios. Insisto. Isso tudo demonstra que o conceito de LUCRO REAL TRIBUTÁVEL é um conceito decorrente da lei. Não é um conceito ontológico, como se existisse, nos fatos, uma entidade concreta denominada de ‘LUCRO REAL’. Não tem nada de material ou essencialista. É um conceito legal. Não há um LUCRO REAL que seja ínsito ao conceito de RENDA como quer o relator” (em alusão ao voto do Ministro relator Marco Aurélio). (grifo nosso) Dessa forma, afasta a existência de um conceito natural ou ínsito ao substrato econômico de incidência tributária (renda). Na mesma toada do voto vista, que acabou prevalecendo, também indicou o Ministro Moreira Alves: Por outro lado, com relação à definição de ‘renda’, o próprio conceito de ‘lucro real’ é de natureza legal. A Constituição Federal prevê apenas ‘renda’ e ‘provento’, mas isso não impede a lei, desde que não seja desarrazoada, possa exa- 557 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. RE n° 201.465-MG, Rel. Min. Marco Aurélio e Rel.p/acórdão Min. Nelson Jobim. Julgamento em 02.05.2002. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 17.06.2010. Decisão por maioria de votos. FGV DIREITO RIO 235 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I minar o conceito de ‘renda’. Tanto isso é verdade que, desde o início da cobrança de imposto de renda e da existência de inflação no País, sempre foi cobrado imposto de renda, com relação às pessoas físicas, corrigido monetariamente, sem que jamais se tenha sustentado que isso feria o conceito de “renda”. Não sendo este conceito legal desarrazoado –, no caso não me parece que o seja, até porque o próprio Código Tributário, quando trata do fato gerador, alude à aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica –, a correção monetária não deixa de acarretar a aquisição de uma disponibilidade econômica. Independentemente da divergência apontada, importante ressaltar que o imposto sobre a renda subdivide-se em dois grandes grupos: aquele incidente sobre as pessoas físicas (income tax) e o imposto sobre as pessoas jurídicas (corporate tax). O imposto sobre a renda da pessoa física (income tax) é usualmete classificado como um imposto direto, assim qualificado pelo fato de a incidência econômica recair sobre aquele determinado pela lei como o contribuinte de direito. Em sentido diverso, o enquadramento do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (corporate tax) como direto ou indireto é objeto de muita dicussão e dissenso. Alguns autores repudiam até mesmo a própria classificação que segmenta os impostos entre diretos e indiretos, por considerarem-na, a segmentação, sem relevância sob o ponto de vista jurídico tributário, como é o caso de Regis Fernandes de Oliveira558, que assevera no seguinte sentido: A classificação [impostos diretos e indiretos] é financeira, uma vez que para o direito é irrelevante quem suporta o ônus. (grifo nosso) Apesar de realmente ser controvertido e impreciso o conceito, distinção e enquadramento das diversas espécies tributárias em um dos dois grupos – impostos diretos ou indiretos – a afirmativa transcrita na parte final, no sentido de que a determinação de quem suporta o ônus do tributo é irrelevante para o direito, é inadequada, ainda que se considere apenas o aspecto normativo da tributação. De fato, o próprio ordenamento jurídico brasileiro prevê, expressamente, a relevância da análise da repercussão559 ou não do ônus ou do encargo financeiro do tributo, conforme disciplina expressa no artigo 166 do CTN, o qual prescreve: Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la. 558 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 140. 559 A complexa discussão se a repercussão é econômica ou não tanscende os objetivos da presente aula. FGV DIREITO RIO 236 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Dessa forma, inequívoca a relevância jurídica do exame das espécies tributárias no que se refere à distribuição alocativa do ônus do tributo. Nessa linha, apesar de criticar a classificação (tributos diretos e indiretos) para efeitos jurídico-tributários, aponta Hugo de Brito Machado560 no sentido da relevância da determinação de quem suporta o ônus do tributo em nosso ordenamento jurídico: A classificação dos tributos em diretos e indiretos não tem, pelo menos do ponto de vista jurídico, nenhum valor científico. É que não existe critério capaz de determinar quando um tributo tem ônus transferido a terceiro, e quando é o mesmo suportado pelo próprio contribuinte. O imposto de renda, por exemplo, é classificado como imposto direto; entretanto, sabe-se que nem sempre o seu ônus é suportado pelo contribuinte. O mesmo acontece com o IPTU, que em se tratando de imóvel alugado é quase sempre transferido para o inquilino. Atribuindo, porém, relevância a tal classificação, o CTN estipulou que ‘a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la’. A nosso ver, tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro são somente aqueles tributos em relação aos quais a própria lei estabeleça dita transferência. Somente em casos assim aplica-se a regra do art. 166 do CTN, pois a natureza a que se reporta tal dispositivo legal só pode ser a natureza jurídica, que é determinada pela lei correspondente, e não por meras circunstâncias econômicas que podem estar, ou não, presentes, sem que se disponha de um critério seguro para saber se deu, e quando não se deu, tal transferência. (grifo nosso) Sobre o mesmo tema esclarece Luciano Amaro561: A repercussão, fenômeno econômico, é difícil de precisar. Por isso esse dispositivo (art. 166 do CTN) tem gerado inúmeros questionamentos na doutrina. Ainda que se aceitem os “bons propósitos” do legislador, é um trabalho árduo identificar quais tributos, em que circunstâncias, têm natureza indireta, quando se sabe que há a tendência de todos os triubtos serem “embutidos” no preço de bens ou bens ou serviços e, portanto, serem financeiramente transferidos para terceiros. Diante dessa dificuldade, a doutrina tem procurado critérios para precisar o conteúdo do preceito; Leo Krakoviak, com apoio em Marco Aurélio Greco, sustenta que o art. 166 do Código “supõe a existência de uma dualidade de pessoas”, de modo que, “se o fato gerador de um tributo ocorre independentemente da realização de uma operaçao que envolve uma relação jurídica da qual participem dois contribuintes, em virtude da qual o ônus financeiro do tributo possa ser transferido diretamente do contribuinte de direito para o 560 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 176. 561 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª Edição. 2005, pp. 425426. FGV DIREITO RIO 237 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I contribuinte de fato, não há como falar-se em repercussão do tributo por sua natureza (...)“...... Gilberto Ulhôa Canto relata a história deste artigo e os precedentes jurisprudenciais e lamenta ter contribuído para sua inclusão no texto do Código Tributário Nacional, destacando, entre outros argumentos, o fato de que a relação de indébito se instaura entre o solvens e o accipiens, de modo que o terceiro é estranho e só poderá, eventualmente, invocar direito contra o solvens numa relação de direito privado. Ricardo Lobo Torres, por outro lado, sublinha o principal argumento do Supremo Tribunal Federal (já antes do CTN) para negar a restituição de triubto indireto, qual seja, o de que é mais justo o Estado apropriar-se do indébito, em proveito de toda a coletividade, do que o contribuinte de jure locupletar-se, não obstante a generalizada censura da doutrina à posição pretoriana, agora respaldada, com temperamentos, pelo art. 166 do Código. Registra, porém, que o direito brasileiro está na contramão do direito comparado. Marco Aurélio Greco já aplaude o dispositivo. Aliomar Baleeiro que, no STF, se insurgia contra a Súmula 71 (que proclamara a impossibilidade de restituição de tributo indireto), registrando “a nocividade, do ponto de vista ético e pragmático, duma interpretação que encoraja o Estado mantenedor do Direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades, na certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus agentes e órgãos”, considerou racional a solução dada pelo art. 166 do Código. Ainda sobre o mesmo tema pontua Sacha Calmon562: Quando afirmamos que os impostos se norteiam pelo princípio da capacidade contributiva, faz-se necessário, absolutamente necessário, operar uma distinção fundamental. É que os impostos indiretos são feitos pelo legislador para repercutir nos contribuintes de fato, os verdadeiros possuidores de capacidade econômica (consumidores de bens, mercadorias e serviços). É o ato de consumir o visado. É a renda gasta no consumo que move o legislador. Os agentes econômicos que atuam no circuito da produção-circulação-consumo apenas adiantam e repassam o ônus financeiro do tributo para a frente. É o que ocorre com o ICMS e o IPI. Por isso mesmo o CTN (art. 166) veda aos contribuintes de direito receber de volta o indébito, salvo prova de que não repassaram o ônus do imposto ou de que estão munidos de autorização para repetir. Em sendo assim, se um tributo é denominado de contribuição, se é cobrado de agentes econômicos mas acaba sendo incluído nos custos de produção e circulação para ser transferido aos preços, a sua natureza de imposto indireto sobre o consumo salta aos olhos. Este é o argumento-base para desmistificar a teoria da contribuição como quarta espécie [tributária]. Todavia, por serem cumulativas, estruturadas fora da não-cumulatividade, às contribuições não se aplica o art. 166 do CTN. O que são COFINS e o PIS senão impostos sobre preços? 562 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 427. FGV DIREITO RIO 238 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Por sua vez, a incidência econômica do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (corporate tax) também é matéria controvertida na doutrina econômica nacional e estrangeira. Em que pese o contribuinte de direito – o sujeito passivo da obrigação tributária – ser a pessoa jurídica que aufere a renda, pode ocorrer, economicamente, o repasse do encargo ou o ônus do tributo, razão pela qual pode ser qualificado como imposto indireto, sob o ponto de vista econômico. Nessa linha salienta Fernando Rezende563: Como foi visto, o modelo neoclássico supõe que o imposto não afete a curva de custo marginal e o preço de venda dos produtos, provocando apenas uma redução no lucro em poder das firmas. Nesse caso, o ônus da tributação recairia igualmente sobre o produtor. A hipótese de que o ônus de um imposto sobre o lucro recai integralmente sobre o produtor constitui-se numa das principais controvérsias dessa modalidade de tributação. Na verdade, a possibilidade de transferência parcial ou total desse ônus para terceiros é reforçada tanto por modificações nas hipóteses teóricas sobre o comportamento das firmas quanto por análises empíricas do problema. Em estudo sobre o assunto, Claudio Roberto Contador aponta quatro casos em que se admite claramente a possibilidade de transferência do ônus para o consumidor final: o modelo mark up, o modelo Kryzaniak-Musgrave, o modelo neoclásico em condições de risco e uma versão dinâmica do modelo neoclássico. (grifo nosso) Na mesma toada indica Case e Fair564: The tax may affect profits earned by owners of capital, wages earned by workers, or prices of corporate and noncorporate products. Once again, the key question is how large these changes are likely to be......The great debate about whom the corporate tax hurts illustrates the advantage of broad-based direct taxes over narrow-based indirect taxes. Because it is levied on an institution, the corporate tax is indirect, and therefore is always shifted. Furthermore, it taxes only one factor (capital) in only one part of the economy (the corporate sector). The income tax, in contrast, taxes all forms of income in all sectors of the economy, and it is virtually impossible to shift. It is difficult to argue that a tax is good tax if we can’t be sure who ultimately ends up paying it. (grifo nosso) Ainda, importante repisar que as pessoas jurídicas, criações do homem, não suportam, em última instância, a carga tributária, pois somente pessoas naturais arcam com o ônus econômico do tributo, isto é, a incidência econômica da exação sobre a pessoa jurídica dever ser analisada sob a perspectiva do retorno do capital empregado por aquele responsável por sua constituição ou seu beneficiário, o que requer a análise conjunta da norma jurídica com a realidade econômica sobre a qual ela é aplicada. 563 REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª edição, Atlas, 2001 4ª reimpressão 2006, pp. 201-202. 564 CASE, Karl E. e FAIR, Ray C.. Principles of Microeconomics. 4th Ed. New Jersey – USA: Prentice Hall, p.468. FGV DIREITO RIO 239 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I 13.3.1 A incidência sobre o Consumo A seu turno, a tributação sobre base econômica do consumo pode ser efetivada de duas formas: (1) por meio da adoção do chamado Personal Consumption Tax ou do Saving-exempt income tax, hipótese em que os dados apresentados pelo próprio consumidor configuram instrumento essencial para apuração do montante devido ou, ainda, o que é mais comum, (2) pelos impostos incidentes sobre transações (Transaction Consumption Tax), os quais podem ser monofásicos ou plurifásicos, cumulativos ou não. No caso dos impostos incidentes sobre a circulação e vendas de bens e serviços, monofásicos ou plurifásicos, objetiva-se que o imposto recaia sobre o consumidor final565, podendo essa previsão estar expressa no ordenamento jurídico ou não. Repise-se, entretanto, que o tributo juridicamente desenhado para incidir sobre determinada base econômica pode, de fato, não atingir aludido substrato sob o ponto de vista econômico, em função das condições de mercado, da técnica utilizada em cada tipo de exação ou da própria interpretação/aplicação da legislação tributária, conforme será examinado ao longo do curso. Nos impostos plurifásicos, desenhados para incidir sobre o consumo, o contribuinte de direito é, em regra, o industrial, o atacadista ou o varejista, ou todos eles, como ocorre no denominado imposto incidente sobre o valor agregado (IVA), amplamente adotado no exterior, em especial na União Européia. Em relação a esses tipos de incidência, a Constituição estabelece que devem ser adotadas medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços, consoante o disposto no §5º do art. 150, o qual estabelece: Art. 150. (...) § 5º – A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. O imposto sobre mercadorias ou serviços pode ser monofásico, isto é, incidir apenas em uma fase do ciclo econômico, ou plurifásico, assim qualificado por haver tributação em algumas ou todas as etapas de circulação entre a produção e o consumo. Esses mesmos tributos podem ser cumulativos, assim qualificados se a base de cálculo de determinada etapa de circulação incluir tributo da mesma espécie já incidente em etapa anterior, ou não cumulativos, hipótese em que a incidência limita-se ao valor adicionado em cada fase do ciclo econômico-tributário do bem ou serviço. O fenômeno da repercussão ou da translação do ônus do tributo para as etapas subseqüentes de circulação de imposto incidente sobre mercadorias e serviços pode ser – ou não – expressamente previsto na norma jurídica, isto 565 Dessa forma, nessa modalidade de tributação sobre o Consumo, a capacidade econômica é do contribuinte de fato, apesar da relação jurídicatributária se estabelecer com o sujeito passivo da obrigação tributária que tem o vínculo com o Fisco. FGV DIREITO RIO 240 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I é, a transferência do encargo financeiro do tributo para terceiros pode decorrer da própria estrutura normativa de incidência. Repize-se, no entanto, que independentemente de sua formatação jurídica pode ocorrer, economicamente, o aludido repasse do ônus financeiro do tributo para as etapas subseqüentes de circulação, dependendo das condições dos mercados de fatores e de bens e serviços. O imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (ICMS), por exemplo, tributo de competência privativa566 dos Estados e do Distrito Federal, é constitucionalmente desenhado para que o seu encargo financeiro seja repassado ao consumidor final, razão pela qual é considerado como imposto incidente sobre o consumo567. Essa característica decorre da combinação de dois dispositivos constitucionais, a saber: (1) do disposto no artigo 155, §2º, I, o qual estabelece que o ICMS “será não-cumulativo compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”, o que objetiva, como regra geral, que o imposto estadual incida somente sobre o valor adicionado em cada etapa de circulação; e (2) do contido no artigo 155, §2º, XII, “i”, que dispõe caber à lei complementar “fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço” 568, isto é, o preço da mercadoria ou do serviço objeto de incidência compreende, também, o montante do imposto estadual. Dessa forma, o ICMS deve estar incluído no próprio preço cobrado nas diversas fases de circulação, razão pela qual o montante total incidente em todas as fases será repassado até o consumidor final, o qual arca com o encargo financeiro do imposto estadual569. Outros tributos, em sentido diverso, não estão incluídos em sua própria base de cálculo, mas ainda assim constam expressamente da nota fiscal que acoberta a transação e repercutem para as etapas subsequentes, como é o caso do IPI, conforme será examinado ainda nesta aula. No caso do ICMS, portanto, há repercussão constitucional obrigatória, independentemente da realidade econômica subjacente a influenciar as alterações de preços nas diversas etapas de circulação. A figura ilustrativa abaixo auxilia a compreensão do que foi até aqui exposto em relação ao ICMS, supondo a alíquota nominal do imposto fixada em 10%, conforme lei do Estado “X”, onde ocorrem todas as transações. No caso hipotético (1) a Indústria “A” não realizou qualquer aquisição no período e somente vendeu para o Atacadista “B” mercadorias no valor total de R$ 100,00 (cem reais), montante que inclui o ICMS destacado na nota fiscal no valor de R$ 10,00 (dez reais) ; (2) o Atacadista “B” somente 566 Art. 155, II, da CR-88. 567 Conforme será estudado em Direito Tributário e Finanças Públicas II a arrecadação do imposto nas transações entre os diversos Estados e o Distrito Federal pode ser toda do Estado de origem, integralmente atribuída ao Estado do destino ou um sistema híbrido de alocação distribuição da arrecadação na Federação, dependendo onde ocorra o consumo da mercadoria ou a fruição do serviço prestado. Em âmbito internacional o princípio geral é o do destino, isto é, as exportações não sofrem incidência ao passo que as importaçõs são normalmente tributadas. 568 Dispositivo introduzido pela Emenda Constitucional nº 3/1993. Saliente-se, entretanto, que antes da alteração constitucional para introduzir a aludida alínea “i”, a Lei Complementar nº 87/1996, no §1º do art. 13 - e antes dela o Convênio ICMS 66/89 com fulcro na autorização constitucional contida no art. 34, §8º, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)- já determinava que o ICMS estaria incluído em sua própria base de cálculo. O Supremo Tribunal Federal, no RE 212209, já havia se pronunciado, antes mesmo da edição da Emenda Constitucional nº 33/2001, no sentido da constitucionalidade do denominado “cálculo por dentro”, isto é, que a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo não violava o princípio da não-cumulatividade. O julgamento ocorreu em 23/06/1999, e o acórdão possui a seguinte ementa: “Constitucional. Tributário. Base de cálculo do ICMS: inclusão no valor da operação ou da prestação de serviço somado ao próprio tributo. Constitucionalidade. Recurso desprovido.” 569 Nesse sentido, aplica-se o diposto no artigo 166 do CTN na hipótese de pedidos de restituição de indébito. FGV DIREITO RIO 241 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I realizou aquisições da Indústria “A” e vendeu exclusivamente para o Varejista “C” as mesmas mercadorias adquiridas pelo valor de R$200,00 (duzentos reais), preço total que contém ICMS correspondente a R$ 20,00 (vinte reais) consignado na nota fiscal de venda; e (3) o varejista “C” vendeu todo o seu estoque que era composto apenas pelas mercadorias adquiridas do Atacadista “B” por R$ 400,00, preço ao consumidor final que contém ICMS destacado no valor de R$ 40,00 (quarenta reais): O repasse do tributo para as etapas subseqüentes até o consumidor final ocorre por meio do pagamento do preço, o qual compreende, também, o ICMS incidente em cada fase, isto é, o imposto está incluído no valor pago pelo atacadista ao industrial (ICMS de R$ 10,00 incuído no preço pago, equivalente a R$ 100,00), no montante pago pelo varejista ao atacadista (ICMS de R$20,00, correspondente a R$ 10,00 da primeira etapa e R$ 10,00 da segunda fase, montante incluído no preço de R$ 200,00) e, por fim, no preço pago pelo consumidor final ao varejista, o qual compreende os R$ 40,00 de ICMS incidente em todas as etapas, montante incluído no preço final de R$ 400,00570. Saliente-se, entretanto, que o repasse encargo financeiro para as etapas subseqüentes pode ocorrer sem que haja previsão constitucional expressa no sentido que o tributo seja incluído em sua própria base de cálculo. Este é o caso, por exemplo, do Imposto sobre produtos industrializados (IPI), de competência da União, cujo imposto não está incluído em sua base de cálculo, razão pela qual opera-se o já denominado fenômeno da repercussão, o qual, para muitos autores, é princípio constitucional do qual a não-cumulatividade é subprincípio571. É essa translação obrigatória que caracteriza tanto o IPI como o ICMS, impostos da espécie incidente sobre o valor acrescido, como tributo sobre o substrato econômico do Consumo. 570 Constata-se, dessa forma, que, considerando um mercado próximo ao de concorrência perfeita, onde os preços são fixados no mercado e não por meio de fixação de Mark-up, mantida uma alíquota constante, o total arrecadado pelo imposto incidente sobre o valor adicionado (IVA) em todas as fases de circulação corresponde ao mesmo montante alcançado caso seja aplicado um imposto monofásico na etapa do varejista. 571 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. IV, Os Tributos na Constituição, Renovar, 2007.p.321. “O princípio constitucional da repercussão obrigatória, do qual a não-cumulatividade é um subprincípio, sinaliza no sentido de que a carga econômica do ICMS deve repercutir sobre o contribuinte de fato.” FGV DIREITO RIO 242 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Mas qual a diferença prática entre as duas hipóteses, isto é, quando o imposto está ou não incluído em sua própria base de cálculo? Preliminarmente, deve-se destacar que as metodologias de cálculo e os seus efeitos são diversos, o que pode ocasionar muita confusão, desde o momento da produção legislativa até as decisões judiciais das mais altas cortes, conforme será examinado a seguir. No caso do ICMS estadual deve-se realizar o denominado “cálculo por dentro”, por determinação constitucional expressa, ao passo que na hipótese do IPI federal realiza-se o chamado “cálculo por fora”. Preliminarmente, entretanto, importante destacar que o intérprete se nutre e colhe elementos não apenas dos textos normativos (mundo do deverser), mas, também, do caso concreto e da realidade para a aplicar o Direito, matéria que será aprofundada na última aula do curso. Nessa linha ensina o Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau em estudo doutrinário572: Por ora, repitamos: a norma encontra-se, em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele incolucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento histórico no qual se opera a interpretação – em cujo contexto serão eles aplicados. (grifo nosso) Portanto, a realidade ocupa papel central na definição do sentido, alcance e eficácia das normas jurídicas, devendo o interprete e aplicador da lei observar, com cuidado especial, a razão, decorrente da lógica e das leis físicas, que não podem ser revogadas ou afastadas pela simples vontade humana expressa na linguagem do Direito. Importante, portanto, fixar duas premissas em relação ao raciocínio que será adiante exposto: (1) que a Constituição determina que o ICMS está incluído em sua própria base de cálculo (alínea “i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da CR-88) e (2) que a interpretação pressupõe, além da leitura do texto normativo, a compreensão do caso e da realidade, em especial a razão e as leis físicas, que não podem ser afastadas pela vontade do legislador ou da norma extraída de decisão judicial, nem mesmo do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, procurar-se-á demonstrar que qualquer lei determinado a aplicação de alíquota nominal do ICMS em percentual igual ou superior a 100% (cem por cento) é inexeqüível573. De fato, conforme será demonstrado, qualquer norma nesse sentido, como é o caso, por exemplo, da supratranscrita Lei nº 4153/03, é inapta a produzir efeitos jurídicos, ainda que 572 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. Malheiros, 5ª Ed. 2009. p.32. 573 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Editora Unidade de Brasília, 10ª Ed 1999. Ensina o consagrado autor: “uma norma que proibisse uma ação necessária ou ordenasse uma ação impossível seria inexeqüível”. FGV DIREITO RIO 243 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I declarada formalmente constitucional e transitada em julgado a decisão, com é o caso daquela monocrática exarada no Recurso Extraordinário 589.216.574 A inequívoca demonstração que a mencionada alíquota de 200% é inexeqüível, desde a publicação da Lei, requer a explicitação da metodologia e operacionalização do denominado “cálculo por dentro”, em comparação ao chamado “cálculo por fora”, questão que passou despercebida em todas as instâncias judiciais em que a matéria foi examinada, haja vista a concentração e limitação da análise sobre a configuração ou não de confisco ou da utilização do imposto com efeitos confiscatórios. Dito de outra forma, a comprovação de que uma alíquota do ICMS igual ou superior a 100% representa uma contradição real e não apenas aparente pressupõe a compreensão do significado do dispositivo constitucional que estabelece que o ICMS integra a sua própria base de cálculo em comparação à sistemática aplicável aos impostos em que esta regra não se aplica. É o que se passa a examinar. Diferentemente do caso do ICMS, na hipótese dos impostos não incluídos em sua própria base de cálculo, como é o IPI, por exemplo, a alíquota nominal é exatamente igual à alíquota real, isto é, a carga tributária comparada ao valor do produto sem o imposto expressa o mesmo percentual que a alíquota fixada em lei. Isso ocorre porque a base de cálculo é equivalente ao próprio custo da mercadoria sem o imposto. O exemplo numérico a seguir revela e demonstra o fato: suponha que o custo de uma mercadoria sem tributo é igual a R$ 90,00 (noventa reais) e que a alíquota nominal de determinado imposto que não está incluído em sua própria base de cálculo é de 10% (dez por cento). O imposto incidente seria equivalente ao valor de R$ 9,00 (nove reais), resultado da multiplicação do custo da mercadoria sem o imposto, no montante de R$ 90,00 (noventa reais), pela alíquota nominal de 10% (dez por cento) fixada em lei. Já o total do produto mais o imposto seria igual a R$ 99,00 (noventa e nove reais). A alíquota real, por sua vez, a qual significa e expressa a proporção que o imposto corresponde da mercadoria sem o próprio imposto, calcula-se por meio da divisão do valor do tributo pelo custo do produto, sendo, nessa hipótese, resultante da divisão entre R$ 9,00 (nove reais) pelos R$ 90,00 (noventa reais) da mercadoria, isto é, 10% (dez por cento). Constata-se, dessa forma, que, no caso dos impostos não são incluídos em sua própria base de cálculo, a alíquota nominal fixada em lei é exatamente igual à alíquota real. Pode-se apresentar o exposto em termos matemáticos da seguinte forma: • • • • • Base de Cálculo = R$ 90,00 (x) Alíquota nominal = ___ 10%____ (=) IPI incidente = R$ 9,00 Alíquota real = 10% = R$ 9,00/R$90,00 Total da mercadoria mais IPI = R$ 99,00 = R$9,00+R$90,00 574 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. RE n° 589.216-RJ, Rel. Min. Eros Grau. Julgamento em 12.08.2009. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 17.06.2010. Decisão monocrática com fulcro no disposto no artigo 557, §1º-A, do Código de Processo Civil, dispositivo incluído pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998, o qual estabelece: “Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.” A parte relevante do acórdão está assim fundamentada: “7. O recurso merece prosperar, tendo em vista que a incidência, no caso, atende ao requisito da seletividade, que lhe confere caráter extrafiscal. O tributo cumpre, na espécie, função extrafiscal; visa a desestimular a compra de armas de fogo e munições, suas partes e acessórios. 8. A jurisprudência do Supremo fixou-se no sentido de ser idôneo o uso do “caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia” [ADI n. 1.276,Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 29.8.02].” A exrafiscalidade será objeto de estudo da próxima aula e o exame das limitações constitucionais ao poder de tributar, das quais fazem parte, entre outros, o princípio da isonomia e do não confisco será iniciado na aula 15. FGV DIREITO RIO 244 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Caso a alíquota nominal seja aumentada, por exemplo, para 200% (duzentos por cento), mantida a mesma base de cálculo, o montante do imposto seria equivalente a R$ 180,00 (cento e oitenta reais), resultado da multiplicação da mercadoria no valor de R$ 90,00 (noventa reais) pela alíquota correspondente a 200% (duzentos por cento). Dessa forma, o total da mercadoria mais o imposto seria R$ 270,00 (duzentos e setenta reais), o que pode ser representado nos seguintes termos: • • • • • Base de Cálculo = R$ 90,00 (x) Alíquota nominal = _ 200%____ (=) IPI incidente = R$ 180,00 Alíquota real = 200% = R$ 180,00/R$90,00 Total da mercadoria mais IPI = R$ 270,00 = R$180,00+R$90,00 Pode-se concluir, portanto, que, neste caso, do imposto não incluído em sua própria base de cálculo, não há limite lógico ou teto máximo para a alíquota nominal, que poderá ser equivalente a qualquer percentual, observado, entretanto, obviamente, as denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial a capacidade econômica ou contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, matéria que será objeto de estudo a partir da aula 15. Nesse sentido, a extrafiscalidade, assim qualificada no momento como a utilização dos tributos com outros objetivos além da arrecadação (estimular ou desestimular o consumo por exemplo), pode ser utilizada de forma mais aguda e radical. Isso ocorre na hipótese dos tributos que não estão incluídos em sua própria base de cálculo porque não há de limite lógico na fixação da alíquota nominal. Por outro lado, a alíquota nominal do ICMS, considerando que o imposto está incluído em sua própria base de cálculo, nos termos da alínea “i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da CR-88, conforme será adiante demonstrado, possui um limite máximo, que decorre da razão e não de princípios ou regras constitucionais expressas, como o princípio do não confisco ou da capacidade econômica. De fato, a lógica formal obstaculiza a incidência de tributo, cuja base de cálculo o inclua, em alíquota nominal igual ou superior a 100% (cem por cento), motivo pelo qual esta tem que ser, necessariamente, sempre, independentemente da vontade humana expressa por meio das normas jurídicas de decisão, inferior a 100% (cem por cento). Isso ocorre pos a base de cálculo do imposto é diferente do custo da mercadoria sem o imposto. Pode-se comprovar essa conclusão em relação às alíquotas nominais do ICMS de duas formas: a) pela apresentação de exemplos numéricos e fórmulas matemáticas simples; ou b) por meio de demonstração gráfica, o que pode facilitar a compreensão do tema em tela por todos, ainda que não familiarizados com as ciências exatas. FGV DIREITO RIO 245 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Analogamente ao exercício que foi acima apresentado em relação a imposto que não está incluído em sua própria base de cálculo (caso do IPI), suponha agora, na situação de o tributo analisado ser o ICMS, hipótese em que o custo de uma mercadoria sem o imposto é, igualmente, R$ 90,00 (noventa reais) e que a alíquota nominal incidente é, também, de 10% (dez por cento). Diferentemente do caso anterior, tendo em vista que o ICMS está incluído em sua própria base de cálculo, o imposto incidente não é R$ 9,00 (nove reais), pois no caso sob exame neste momento o tributo incidente não é resultado da multiplicação do custo da mercadoria sem o imposto pela alíquota nominal de 10% (dez por cento) fixada em lei. De fato, se a base de cálculo contém o próprio imposto, como no caso do ICMS, pode-se concluir que o montante sobre o qual se aplica a alíquota nominal de 10% (dez por cento) é o resultado da soma do custo da mercadoria sem o tributo adicionado do próprio ICMS. Dessa forma teríamos: • Base de Cálculo = (R$ 90 + ICMS) • (x) Alíquota nominal = ___ 10%____ • (=) ICMS incidente = ICMS Podemos, portanto, por meio da equação abaixo, deduzir qual é o valor do ICMS e, por conseguinte, da base de cálculo do imposto. • • • • • • (R$90,00 + ICMS) * 10% = ICMS (R$9,00) + (10% * ICMS) = ICMS (R$9,00) = ICMS – (10% * ICMS) (R$9,00) = 0,90 * ICMS ICMS = R$9,00 /0,90 = R$ 10,00 é o valor absoluto de ICMS Logo, R$ 90,00+ICMS= R$ 90,00 + R$ 10,00= R$ 100,00*10% = R$ 10,00 • Alíquota Real = ICMS de R$ 10,00/R$90,00 = 11,11% Portanto, na hipótese do imposto incluído em sua própria base de cálculo a alíquota real difere da alíquota nominal, pois o ICMS de R$ 10,00 (dez reais), dividido pela mercadoria sem imposto, no montante de R$ 90,00 (noventa reais), equivale a uma carga tributária efetiva de 11,11% (onze inteiros e onze décimos por cento), superior, portanto, à alíquota definida em lei para ser aplicada sobre a base de cálculo. A mesma conclusão pode ser alcançada pela aplicação de uma regra de três, por meio da seguinte proposição: se R$ 90,00 (noventa reais) corresponde a 90%, a incógnita a ser alcançada é igual a 100% (cem por cento). Nesses termos, teríamos: FGV DIREITO RIO 246 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I TOTAL RECOLHIDO = R$ 40 (10+10+20)= NF última etapa R$ 400 * 10% Assim, definida a base de cálculo de R$100,00 (cem reais), é possível afirmar que o ICMS incidente é igual a R$ 10,00 (dez reais), tendo em vista a incidência da alíquota nominal de 10% (dez por cento) sobre a expressão econômica do fato gerador. Para evitar todos esses cálculos é possível, ainda, determinar a base de cálculo do imposto a partir da seguinte fórmula, bastando conhecer a alíquota nominal e o valor da mercadoria sem o imposto. • Fórmula: Base de cálculo = 1 * (Valor da mercadoria sem ICMS) 1- alíquota nominal O quadro abaixo serve de comparativo entre os dois impostos: o ICMS e o IPI: IPI ICMS Alíquota 10% 10% Custo da mercadoria R$ 90,00 R$ 90,00 Base de Cálculo R$ 90,00 R$ 100,00 Imposto R$ 9,00 (10%* R$ 90,00) R$ 10,00 (10%* R$ 100,00) Total da Nota R$ 99,00 R$ 100,00 Os oito exemplos numéricos abaixo comprovam a impossibilidade matemática de aplicação de alíquota nominal igual ou superior a 100%, na hipótese de o imposto estar inserido em sua própria base de cálculo. O primeiro caso reflete a hipótese já apresentada, de custo da mercadoria sem ICMS equivalente a R$ 90,00 (noventa reais) e alíquota de 10%. Em seguida é mantido o mesmo valor da mercadoria sem ICMS, sendo acrescida a alíquota para 50%, no caso 2, até 200%, no caso 8. Caso 1 Caso 2 Custo sem ICMS R$ 90,00 Custo sem ICMS R$ 90,00 Base de cálculo com ICMS R$ 100,00 Base de cálculo com ICMS R$ 180,00 Alíquota Nominal do ICMS 10% Alíquota Nominal do ICMS 50% ICMS em R$ R$ 10,00 ICMS em R$ R$ 90,00 Caso 3 Custo sem ICMS Caso 4 R$ 90,00 Custo sem ICMS R$ 90,00 FGV DIREITO RIO 247 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Base de cálculo com ICMS R$ 9.000,00 Base de cálculo com ICMS R$ 90.000,00 Alíquota Nominal do ICMS 99% Alíquota Nominal do ICMS 99,90% ICMS em R$ R$ 8.910,00 ICMS em R$ R$ 89.910,00 Caso 5 Caso 6 Custo sem ICMS R$ 90,00 Custo sem ICMS R$ 90,00 Base de cálculo com ICMS R$ 9.000.000,00 Base de cálculo com ICMS R$ 90.000.002.545,37 Alíquota Nominal do ICMS 99,9990% Alíquota Nominal do ICMS 99,99999990% ICMS em R$ R$ 8.999.910,00 ICMS em R$ R$ 90.000.002.455,37 Caso 7 Caso 8 Custo sem ICMS R$ 90,00 Custo sem ICMS R$ 90,00 Base de cálculo com ICMS #DIV/0! Base de cálculo com ICMS R$ (90,00) Alíquota Nominal do ICMS 100,0% Alíquota Nominal do ICMS 200,0% ICMS em R$ #DIV/0! ICMS em R$ R$ (180,00) Saliente-se que a alíquota nominal do ICMS equivalente a 66,67% (sessenta e seis inteiros e sessenta e sete décimos por cento) reproduz uma alíquota real ou carga tributária efetiva de 200% (duzentos por cento), ou seja, é a alíquota que conduz a ser o dobro a proporção do imposto incidente sobre o custo da mercadoria sem o ICMS. Os números que revelam e demonstram o exposto são os seguintes: (1) Custo sem ICMS R$ 90,00 (2) = {(1)/[1-(3)]} Base de cálculo com ICMS R$ 270,00 (3) Alíquota Nominal do ICMS 66,67% (4) = [(2)-(1)] ICMS em R$ R$ 180,00 (5) = [(4)/(1)] Alíquota Real 200,00% Saliente-se, entretanto, que a tentativa de interpretar o artigo 1º, da Lei nº 4153/03, no sentido de fixação de alíquota real ou carga tributária efetiva esbarra e contraria, além do próprio conceito de alíquota fixado no art. 97 do Código Tributário Nacional, também o disposto no parágrafo único do mesmo artigo 1º da Lei que visou instituir a indigitada alíquota de 200% (duzentos por cento), tendo em vista que o dispositivo alude à “alíquota vigente” 575, que é, evidentemente, aquela nominal fixada no art. 14, VII, “a”, da Lei nº 2.657/96, a qual será objeto de exame a seguir. 575 Dispõe o artigo 1º: “Art. 1º - A alíquota do Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - ICMS incidente sobre operação interna, interestadual destinada a consumidor final não contribuinte, e de importação, tendo por objeto arma de fogo e munição, suas partes e acessórios, passa a ser de 200% (duzentos por cento).Parágrafo único - Não se aplicam as disposições previstas no “caput” quando as operações, tendo por objeto armas de fogo e munições, suas partes e acessórios, forem destinadas às forças armadas ao sistema penitenciário e às entidades ligadas ao sistema nacional de desporto, bem como aos órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal, definidos no art. 144 da Constituição Federal, permanecendo, para essa finalidade, a alíquota vigente.” FGV DIREITO RIO 248 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A segunda forma de se demonstrar a impossibilidade lógica de incidência de alíquota igual ou superior a 100% (cem por cento), na hipótese de o imposto estar incluído em sua própria base de cálculo, se realiza por meio de demonstração gráfica, o que pode facilitar a compreensão do tema sem a necessidade de conhecimento profundo ou exame detalhado das denominadas ciências exatas, o que me parece tornar a questão compreensível para todos. Sob o ponto de vista visual entendo que a melhor análise, objetivando alcançar o que se deseja no momento, é aquela por meio da qual se fixa a base de cálculo do imposto sempre no mesmo montante, em R$ 100,00 (cem reais), por exemplo, alterando-se, apenas, a alíquota nominal aplicável. Dessa forma, pode-se perceber com mais facilidade o acréscimo do valor do ICMS incidente e o seu limite potencial visualmente, tendo em vista que todos os gráficos possuem a mesma proporção e escala. Entretanto, visando reproduzir, sob representação gráfica, os exemplos numéricos anteriormente apresentados nos denominados casos 1, 2 e 3, apresentar-se-á, em seguida, os desenhos pertinentes, sem a precisão da escala relativa que seria desejável. Nesses casos, portanto, parte-se, sempre, de um custo de mercadoria sem ICMS correspondente a R$ 90,00 (noventa reais). Suponha-se que o círculo abaixo representa a base de cálculo do ICMS, e que corresponda, exatamente, ao montante de R$ 100,00 (cem reais), ponto de partida de todos os exemplos que serão apresentados nessa primeira parte. Conforme já salientado acima, nos termos da alínea “i” do inciso XII do §2º do artigo 155 da CR-88, cabe à lei complementar “fixar a base de cálculo” do ICMS, “de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”. Dessa forma, o próprio ICMS está incluído ou inserido nos R$ 100,00 (cem reais) acima definidos como a base de cálculo do imposto. Dito de outra forma, o ICMS está, necessariamente, por força do mandamento constitucional, contido em sua base de cálculo, montante a partir do qual se extrai, ou melhor, é obtida, pela aplicação da alíquota nominal, o valor absoluto do imposto devido. Inquestionavelmente, no exemplo acima, o valor absoluto do ICMS incidente não pode superar ou ultrapassar os hipotéticos R$ 100,00 (cem reais). Caso a alíquota nominal do ICMS fixada em lei corres- FGV DIREITO RIO 249 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I ponda ao percentual de 10% (dez por cento), por exemplo, o imposto, em termos absolutos, seria equivalente a R$ 10,00 (dez reais). Graficamente teríamos: Conforme se pode constatar pelo desenho acima, o valor absoluto do ICMS não pode, por questões de lógica formal576, ser maior do que a sua própria base de cálculo, dentro da qual está contido, sendo esta última regra imposta pela própria Constituição. Na hipótese de a alíquota nominal do ICMS ser alterada para 90% (noventa por cento), por exemplo, o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 90,00 (noventa reais), resultado da multiplicação de R$ 100,00 (cem reais) por nove décimos (0,9 = 90/100 =90%). Graficamente teríamos: Caso a alíquota nominal do ICMS fosse alterada para 99% (noventa e nove por cento), por exemplo, o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 99,00 (noventa reais), resultado da multiplicação de R$ 100,00 (cem reais) por noventa e nove décimos (0,99 = 99/100 =99%). Graficamente teríamos: 576 O subconjunto não pode superar o próprio conjunto dentro do qual está inserido e faz parte. FGV DIREITO RIO 250 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Se aplicada a alíquota nominal de 100% (cem por cento), o valor do ICMS torna-se equivalente ao total da base de cálculo do imposto, isto é, corresponderia a sua integralidade, razão pela qual todo o preço pago pelo consumidor adquirente seria debitado na escrita fiscal do contribuinte. Nessa toada, caso o imposto esteja integrado à sua base de cálculo o seu montante absoluto não pode ser superior ao valor a partir do qual é calculado, o que implica não ser possível a aplicação de uma alíquota nominal igual ou maior do que 100% (cem por cento). Este é o motivo em função do qual, não obstante ser inquestionavelmente válida a adoção da seletividade, que confere caráter extrafiscal ao ICMS, sua alíquota nominal possui um limite máximo que decorre da racionalidade e não especificamente das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, como o princípio do não confisco. Portanto, a tentativa de fixar ou aplicar alíquota nominal em percentual superior a um inteiro, na hipótese de o imposto estar integrado à sua própria base de cálculo, configura contradição real, ilógica, na medida em que não é possível algo ser e não ser ao mesmo tempo, estar contido e conter ao mesmo tempo! Ainda sob representação gráfica, objetivando apresentar os mesmos exemplos numéricos dos denominados casos 1, 2 e 3, conforme já enfatizado, apresentar-se-á, em seguida, os desenhos pertinentes, sem a precisão da escala relativa que seria desejável. Nesses casos, o custo de mercadoria sem ICMS é fixado em valor correspondente a R$ 90,00 (noventa reais), alterando-se apenas a alíquota nominal aplicável, a qual será, inicialmente, nos mesmos termos do caso 1, igual a 10% (dez por cento). Graficamente teríamos: FGV DIREITO RIO 251 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Mantido o custo da mercadoria sem imposto em R$ 90,00 (noventa reais) e alterada a alíquota nominal do ICMS para 50% (cinqüenta por cento), o imposto, em termos absolutos, será correspondente a R$ 90,00 (noventa reais), resultado da multiplicação da base de cálculo no valor de R$ 180,00 (cento e oitenta reais) por cinco décimos (0,5 = 50/100 =50%). A base de cálculo de R$ 180,00 (cento e oitenta reais) pode ser obtida diretamente por meio da aplicação da fórmula já apresentada: • Fórmula: Base de cálculo = 1 * (Valor da mercadoria sem ICMS) 1- alíquota nominal Dessa forma teríamos R$ 90,00 (noventa reais) dividido por 1 menos 0,5 (50/100 = 5%). Pode-se representar a hipótese graficamente nos seguintes termos: Caso a alíquota nominal do ICMS fosse alterada para 99% (noventa e nove porcento), mantido o custo da mercadoria sem imposto em R$ 90,00 (noventa reais), o que reproduz o citado caso 3, a base de cálculo seria igual a R$ 9.000,00 (nove mil reais), obtida por meio da aplicação da fórmula acima apresentada. Graficamente teríamos: FGV DIREITO RIO 252 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Na mesma linha já apontada, caso o imposto esteja integrado à sua base de cálculo o seu montante absoluto não pode ser superior ao valor a partir do qual é calculado, o que implica não ser possível a aplicação de uma alíquota nominal igual ou maior do que 100% (cem por cento), o que restringe a margem de utilização da extrafiscalidade nos tributos que adotam essa metodologia de cálculo (“por dentro”). Assim sendo, constata-se que as atividades e as prescrições do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e bem assim dos órgãos de representação judicial e de consultoria jurídica das respectivas unidades federadas, como é o caso da Procuradoria Geral do Estado, apesar de serem órgãos dotados de prerrogativas e funções constitucionais essenciais ao exercício do “Poder Estatal”, encontram limites na razão. De fato, conforme arguta observação de Lourival Vilanova577, altera-se o mundo físico, mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito. Entretanto, a racionalidade, decorrente da lógica e das leis físicas, não pode ser revogada ou afastada pela simples vontade humana expressa pela linguagem do Direito, seja ela exteriorizada por meio do texto normativo expedido pelo Parlamento seja ela extraída de decisão judicial, motivo pelo qual a Lei nº 4.135, de 18 de agosto de 2003, que estabelece a alíquota de 200% (duzentos por cento) sobre as vendas de armas de fogo e munições, suas partes e acessórios, como qualquer outra que estabeleça alíquota nominal do ICMS igual ou superior a 100% (cem por cento), é inexeqüível e ineficaz desde a data de sua publicação, sendo inapta a produzir efeitos jurídicos em relação aos fatos passados, aqueles que ocorrem no presente e bem assim aos eventos que ocorrerão no futuro. 577 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, Revista dos Tribunais, 1977, p.3-4. FGV DIREITO RIO 253 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Dessa forma, considerando nunca ter sido aplicável a Lei nº 4.135/2003, continua em vigor, sem interrupção, o disposto no artigo 14, inciso VII, alínea “a”, da Lei nº 2.657/1996, dispositivo que estabelece a alíquota de 37% (trinta e sete por cento) em operação interna, interestadual destinada a consumidor final não contribuinte, e de importação, com “arma e munição, suas partes e acessórios”. Por todo o exposto, e tendo em vista, em especial, que a razão não se adaptará à norma jurídica de decisão, deveria a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro reduzir a alíquota fixada pela citada Lei nº 4.135/2003, para percentual inferior a 100% (cem por cento), ou, alternativamente, abrogar esta lei inexequível, visto ser inaplicável desde a data de sua publicação. Comprova-se, dessa forma, a inquestionável correlação e indissociabilidade da análise econômica e jurídica da tributação, que se subordina, também, às leis físicas e à razão. FGV DIREITO RIO 254 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 14 – A POLÍTICA FISCAL E A EXTRAFISCALIDADE: A NECESSÁRIA COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE EFICIÊNCIA ECONÔMICA, JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E A CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA DOS TRIBUTOS. Pode-se dizer, sem exagero, que rios de tinta já foram gastos e muita discussão ainda hoje existe na busca da melhor resposta para algumas questões fundamentais relacionadas à ideal organização política, econômica e social no âmbito interno de cada país, visando ao alcance do desenvolvimento socialmente sustentável, dentre as quais se destacam: 1. Quais deveriam ser as funções estatais na ordem econômica e social, ou seja, quais seriam as atividades e os limites da atuação do tradicional Estado-Nação578? 2. Em quais circunstâncias e em que medida deveria o Estado intervir na alocação de recursos realizada pelo “mercado” bem como no retorno e remuneração dos fatores de produção (terra – alugueres, capital-juro ou dividendo, trabalho– remuneração ou salário, empreendedorismo– lucro ou dividendo, tecnologia – royalties, e etc.), ou seja, quais seriam os contornos e os graus de interferência estatais desejáveis? 3. A ação do Estado deve somente corrigir as falhas de “mercado” por questões de eficiência econômica ou deve ir além, também para evitar/impedir a concentração da renda ou mesmo para realizar políticas públicas objetivando redistribuir a riqueza579, ainda que não sejam ótimas essas ações públicas sob o critério exclusivamente econômico em sentido estrito, isto é, deveria o poder público considerar outros valores contendo razoável grau de subjetividade como a equidade, justiça distributiva, etc.? 4. Caso concluído no sentido da necessidade ou imprescindibilidade das políticas públicas objetivando a redistribuição e a transferência de renda entre classes economicamente estratificadas para diminuir desigualdades, deveriam ser utilizados os tributos que priorizem a neutralidade580 do seu impacto sobre as decisões dos agentes econômicos aliado à adoção de uma eficaz política de redução de desigualdades somente na vertente da despesa pública ou, alternativamente, adotar-se exclusivamente ou preponderantemente a política extrafiscal na via da receita? Não seria mais adequado adotar uma política fiscal abrangente e conjunta, compreendendo, ao mesmo tempo, a política tributária e, também, os gastos visando a alcançar objetivos de intervenção na ordem econômica e social? Essas políticas seriam diferentes dependendo do país nas quais são adotadas? 5. Qual é a distribuição de renda e de riqueza ideal? Quais os critérios e os riscos dessa atuação estatal em face das liberdades fundamen- 578 A aceleração do processo de integração de mercados, em âmbito regional e global, impõe inevitáveis restrições e condicionantes às políticas públicas locais, as quais se vinculam – e se subordinam em muitas circunstâncias - cada vez mais às ordens jurídicas e econômicas supranacionais. Entretanto, os atuais dilemas relacionados às possíveis políticas tributárias e de gastos a serem adotadas contém em sua raiz os mesmos tipos de escolhas e problemas do tradicional Estado-Nação, os denominados “trade-offs”. Na realidade, como em toda política pública, na política fiscal ocorre uma escolha na margem entre algumas virtudes de um lado em detrimento de outras qualidades de outro (como justiça distributiva e equidade na distribuição dos custos governamentais de um lado e crescimento econômico e a adequação administrativa por outro). Conforme pontua Messere, em relação, especificamente, à política tributária:“Tax policy is about trade-offs, not truths”. In. MESSERE, Ken. Half Century of Changes in Taxation. 53 Bulletin for International Fiscal Documentation 340. 1999. p. 343-344. Assim, ao lado da necesária segurança jurídica, os três planos clássicos nos quais as políticas tributárias devem ser analisadas – (1) eficiência econômica, (2) equidade/justiça distributiva, e (3) adequação administrativa ou praticalidade – permanecem, ao lado dos novos parâmetros e desafios inerentes à pósmodernidade, em especial a necessidade de interagir e competir em âmbito global. Os elementos envolvidos devem ser ponderados cuidadosamente, um verdadeiro exercício de sintonia fina e não apenas de escolha excludente. 579 O índice ou coeficiente de Gini é a medida expressa em pontos percentuais, normalmente utilizado em estudos econômicos para identificar o grau de desigualdade e de concentração de renda em determinado país. O índice para dado país varia entre 0 e 1 (ou 100), onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (todos teriam a mesma renda) e 1 (ou 100) corresponderia à completa desigualdade (apenas uma pessoa teria toda a renda). Segundo o relatório 2007/2008 do Human Development Report das Nações Unidas, com base em dados do Banco Munidal, obtido no sitio http://hdrstats.undp. org/indicators/147.html, acesso em 19/01/2009, o Brasil apresenta o índice de 57.0, enquanto Moçambique 47.3, Nigéria 50.5, Etiópia 30.0, Zambia 50.8, Ruanda 46.8, Uganda 45.7, Gana 40.8, Serra Leoa 62.9, Lesoto 63.2. Já o índice da Noruega é 25.8, Japão 24.9, Finlandia 26.9, Dinamarca 24.7, França 32.7, Inglaterra 36.0, Estados Unidos 40.8 etc. Conforme será destacado a seguir, os dados pertinentes à distribuição de riqueza/patrimônio não são disponíveis como aqueles relativos à renda. FGV DIREITO RIO 255 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tais? Quem deveria arcar com o ônus financeiro de eventuais políticas públicas visando à redistribuição de renda e riqueza e quais os limites desses encargos para o cidadão contribuinte? 6. A política tributária deveria incorporar outros objetivos – além da arrecadação dos recursos financeiros e redistribuir renda e riqueza – como estimular ou desestimular comportamentos e decisões das pessoas (físicas ou jurídicas)? Essas questões podem ser certamente respondidas sob múltiplas perspectivas, tais como a filosófica, política, econômica, jurídica, sem esquecer, entretanto, dos requisitos práticos e operacionais, bem como dos aspectos dinâmicos e interativos das suas conseqüências, ou seja, como implementar as respectivas diretivas e como identificar os seus efeitos reflexos, incentivos e desestímulos, ao longo do tempo, elementos comumente relegados ao segundo plano. Os economistas apontam em geral razões de ordens distintas para a atuação estatal, as denominadas “determinantes das despesas públicas”:581 destacando-se entre elas: (1) as falhas de mercado, envolvendo a existência de bens públicos, caracterizados pela impossibilidade de exclusão do seu consumo e por ser “não-rival”, isto é, “o consumo por parte de um indivíduo ou de um grupo social não prejudica o consumo do mesmo bem pelos demais integrantes da sociedade”582, bem como (2) as externalidades, (3) o poder de mercado, e (4) as informações assimétricas e etc. Sobre essa questão indica o especialista em Finanças Públicas Harvey S. Rosen583: If properly functioning competitive markets allocate resources efficiently, what role does the government have to play in the economy? Only a very small government would appear to be appropriate. Its main function would be to establish a setting in which property rights are protected so that competition can work. Government provides law and order, a court system, and national defense. Anything more is superfluous However, such reasoning is based on a superficial understanding of the fundamental theorem. Things are really more complicated. For one thing, it has implicitly been assumed that efficiency is the only criterion for deciding if a given allocation of resources is good. (…) The Fundamental Theorem of Welfare Economics states that, under certain conditions, competitive market mechanisms lead to Pareto efficient outcomes. It is not obvious, however, that Pareto efficiency584 by itself is desirable. (…) The framework used by most public finance specialists is welfare economics, the branch of economics theory concerned with the social desirability of alterative economics states. The theory is used to distinguish the circumstances under which markets can be expected to perform well from those under which markets fail to produce desirable results. (…) Despite its appeal, Paretto efficiency has no obvious claim as an ethical norm. Society may prefer an inefficient allocation on the basis of equity, justice, or 580 Conforme será examinado a seguir, qualquer espécie tributária afeta o comportamento dos agentes econômicos, podendo, entretanto, dependendo do tipo de exação, ser maior ou menor o seu impacto quanto à decisão de poupar ou consumir, sobre os preços relativos dos bens e serviços, no que se refere à taxa de retorno dos investimentos, em relação aos incentivos para trabalhar ou para o lazer, quanto à adoção das distintas formas de produção (maior intensidade na aplicação de capital ou de trabalho no processo produtivo) etc. Um imposto geral sobre todos os bens e serviços, por exemplo, com a adoção da mesma alíquota em todas as etapas de circulação tem reduzido impacto sobre os preços relativos da economia, haja vista a uniformidade de seus efeitos sobre os agentes econômicos e o processo produtivo. Essa desejável e difícil neutralidade dos tributos sobre a economia é aniquilada caso adotadas alíquotas ou tratamentos tributários diferenciados dependendo do tipo ou categoria de mercadorias e serviços, hipótese em que os respectivos preços seriam impactados de formas diversas, o que pode ocasionar ineficiência sob a perspectiva exclusivamente econômica. Na mesma linha, no caso do imposto incidente sobre a renda auferida, a existência de cargas tributárias distintas para determinados tipos de rendimento ou de acordo com a faixa de renda pode estimular ou desestimular comportamentos, como a intenção de poupar ou consumir mais ou menos no presente ou no futuro, dedicar-se mais intensamente ou não ao trabalho vis a vi o tempo para o lazer, a decisão de realizar determinado investimento ou não, atuar na formalidade ou na informalidade e etc. 581 REZENDE, Fernando. Finanças Públicas. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.27-41. 582 GIAMBIAGI, Fabio e ALÉM, Ana Cláudia. Finanças Públicas. Teoria e Prática no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 4. 583 ROSEN, Harvey S. Public Finance – 4th ed. United States: Irwin, 1995. p. 38 e 47. Destaca o autor que: “‘In general, the art of government consists in taking as much money as possible from one class of citizens to give to the other.’ While Voltaire’s assertion is an overstatement, it is true that virtually every important political issue has implications for distributions of income. Even when they are not explicit, questions of whom will gain and who will lose lurk in the background of public policy debates. (…) Before proceeding, we should discuss whether economists ought to consider distributional issues at all. Not everyone thinks they should. Notions concerning the “right” income distribution are value FGV DIREITO RIO 256 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I some other criterion. This provides one possible reason for government intervention in the economy. As tensões entre os valores eficiência585 e racionalidade econômica de um lado e equidade e justiça distributiva586 de outro subjazem e se refletem em todo o processo decisório acerca das políticas públicas a serem possivelmente adotadas, não havendo, entretanto, em face do atual estágio de desenvolvimento e conhecimento humano, possibilidade de supressão absoluta587 de qualquer dos dois componentes (eficiência ou justiça distributiva), sendo, portanto, problema solucionado por meio da ponderação mais adequada em cada situação concreta, do conjunto e do peso dos valores que a sociedade, por meio do processo político, decide priorizar e conferir relevância. De fato, no mundo atual, a definição do modelo de atuação estatal vai além da simples contradição e escolha entre maior ou menor intervencionismo, pois reflete o conjunto de valores priorizados, conforme observa Odete Medauar:588 as linhas contrastantes nos estudos atuais sobre o Estado demonstram o caráter multifacetário do tema e, em especial, a impossibilidade de tratamento unilinear, simplista, monocórdio, como por exemplo, a perspectiva reducionista, expansionista ou abolicionista. (...) Torna-se fundamental, portanto, indagação a respeito da natureza, função e fim do Estado, o que envolve a questão da estrutura de valores dentro dos quais a vida pública será conduzida; tal indagação diz respeito também ao efetivo exercício da autoridade pública, sobretudo a administrativa, na realização desses valores. (grifo nosso) No contexto de extrema complexidade caracterizadora do denominado mundo pós-moderno, destaca-se a dificuldade de adoção de um conceito unívoco para os serviços públicos589, área de titularidade do poder público (artigo 175 da CR-88), bem como para a determinação dos contornos, limites e interpenetrações entre o público e o não público, nas áreas de titularidade do setor privado e de exploração direta da atividade econômica pelo Estado (artigo 173 e 174 da CR-88). Pode-se afirmar, apenas, que essas definições dependem da sociedade e do Estado nos quais se perquire os respectivos conceitos e conteúdos, caracterizando-se, portanto, por sua mutação e variabilidade no tempo e no espaço. Nessa linha, aponta Tércio Sampaio Ferraz590 que: Modernamente, no entanto, a própria transformação e o aumento da complexidade industrial vieram colocando as coisas em outro rumo. Não resta dúvida que hoje o Estado cresceu para além de sua função protetora repressora, aparecendo até muito mais como produtor de serviços de consumo social, regulamentador da economia e produtor de mercadorias. Com isso foi sendo mon- judgments and there is no ‘scientific’ way to resolve differences in matters of ethics. Therefore, some argue that discussion of distributional issues is detrimental to objectivity in economics and economists should restrict themselves to analyzing only the efficiency aspects of social issues. This view has two problems. First, as emphasized in Chapter 4, the theory of welfare economics indicates that efficiency by itself cannot be used to evaluate a given situation. Criteria other than efficiency must be brought to bear when comparing alternative allocation of resources. Of course, one can assert that only efficiency matters, but this in itself is a value judgment. In addition, decision makers care about the distributional implications of policy. If economists ignore distribution, then policy makers will ignore economists. Policymakers may thus end up focusing only on distributional issues and pay no attention at all to efficiency. The economist who systematically takes distribution into account can keep policymakers aware of both efficiency and distributional issues. Although training in economics certainly does not confer a superior ability to make ethical judgments, economists are skilled at drawing out the implications of alternative sets of values and measuring the costs of achieving various ethical goals”. 584 O ótimo de Pareto, ou Paretto efficiency, é utilizado em estudos econômicos para avaliar a eficiência de determinada alocação de recursos, é o marco para medir resultados. Reflete a posição na qual, para fazer uma pessoa melhorar a sua situação, necessariamente alguém será prejudicado ou terá a sua satisfação reduzida. Ou seja, em uma distribuição que não seja ótima é possível incrementar a satisfação de alguém sem reduzir a de outra pessoa. 585 A CR-88 consagra a eficiência no artigo 37 caput, o qual estabelece os princípios regedores da Administração Pública, bem como no artigo 70, caput, ao determinar que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial deve observar, além de outros princípios, conforme já examinado na aula pertinente ao controle e fiscalização das finanças públicas, a economicidade. 586 Nos termos já enfatizados na aula sobre a repartição de receitas, o artigo 3º da CR-88 fixa como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre outros, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 587 Com a crise internacional que assola o mundo desde o final do ano de 2008 FGV DIREITO RIO 257 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tado um complexo sistema normativo que lhe permite, de um lado, organizar sua própria máquina de serviços, de assistência e de produção de mercadorias, e, de outro, montar um imenso sistema de estímulos e subsídios. Ou seja, o Estado, hoje, substitui, ainda que parcialmente, por exemplo, o próprio mercado na coordenação da economia, tornando-se centro da distribuição da renda, ao determinar preços, ao taxar, ao subsidiar. A realização desse plexo de funções e atividades inerentes à atuação estatal tem custo elevado, o qual deve ser financiado de alguma forma, além de exigir a adoção de inúmeros instrumentos, entre os quais aqueles de caráter regulatório e de intervenção na ordem econômica e social, podendo os mesmos estar ou não vinculados às políticas de natureza fiscal (receita e despesa). Na realidade, conforme já salientado, o próprio processo de obtenção de receita (tributária e não tributária) pode trazer em seu bojo uma política intencional que transcenda e vá além do objetivo exclusivo de carrear recursos para os cofres públicos, por meio da utilização da já examinada parafiscalidade, matéria que foi objeto de estudo na Aula 12, ou da extrafiscalidade dos tributos, podendo esta última política compreender objetivos592: (1) de redistribuição de renda e riqueza e/ou (2) regular a atividade econômica ou induzir o comportamento social, oferecendo incentivos ou desestímulos aos agentes econômicos e à sociedade em geral. Ainda que consideradas necessárias ou mesmo indispensáveis, é preciso não perder de vista que essas duas políticas elevam acentuadamente a complexidade do sistema de cobrança dos tributos e assemelhados, criando diversas exceções e regras pormenorizadas, afastando drasticamente a ampla aplicação das disciplinas gerais e uniformes, o que dificulta sobremaneira a administração das exações e eleva os custos administrativos, tanto do poder público como dos contribuintes que tem de adimplir com a exigência, além de propiciar os denominados loopholes ou brechas na legislação, que facilitam e muitas vezes fomentam a evasão e a perda de receita. Como conseqüência, invariavelmente, além de afastada a desejável simplicidade da tributação, o que prejudica a transparência do sistema, a carga tributária sobre aqueles que não podem ou não conseguem escapar da exigência é sobrelevada. Entretanto, importante salientar que, independentemente da vontade ou intenção do legislador, os tributos, mesmo que instituídos apenas para a obtenção de recursos, podem afetar os preços relativos dos bens e serviços bem como modificar a mais eficiente alocação de recursos pelos agentes econômicos, ensejar alterações nas decisões corporativas quanto à melhor estrutura de financiamento593, se por meio da captação de capital próprio ou capital de terceiros (Debt vs. Equity), distorcer a taxa de retorno de determinada atividade econômica em detrimento de outra, incrementar ou diminuir o nível oferta de mão-de-obra disponível, incentivar – ou não – novas contratações de pessoas ou de aquisição de máquinas e equipamentos pelas empresas. As591 os argumentos da primazia e autosuficiência do mercado para resolver os problemas econômicos fundamentais, em especial de alocação e distribuição de recursos entre a denominada economia real e os mercados financeiros, parecem estar em cheque, conforme constata o professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV/EESP, Yoshiaki Nakano, ao afirmar em artigo publicado no Jornal Valor de 13 de janeiro de 2009 (A11): “Muitos bancos e empresas símbolos já quebraram ou estão sendo socorridos pelo governo, como Citibank, GM e Ford, com medidas que estavam no índex do pensamento convencional. A visão de mundo e idéias que fundamentavam o pensamento econômico convencional como mercado eficiente e, que se auto-regulam, ruíram com a crise.” Considerando, entretanto, que os desejos e demandas individuais e coletivas são ilimitados e instáveis, combinado com o fato de que os recursos e fatores de produção são limitados ou escassos (terra, capital, trabalho, tecnologia em determinado momento), aliado ao fato de que o Estado de Planificação, manifestação totalitária ou socialista, é incapaz de atender as demandas individuais e coletivas, é certo que o mercado e o sistema privado de formação de preços, em conjunto com o Estado, em um novo sistema não separatista a ser delineado nesse início de século XXI, continuarão a exercer papel central nas decisões e soluções dos problemas econômicos fundamentais, tais como: o que produzir, como produzir e para quem produzir. No mesmo sentido apontou o presidente dos Estados Unidos Barack Obama em seu discurso de posse, em 20/01/2009, ao declarar: “A pergunta que fazemos agora não é se nosso governo é grande demais ou pequeno demais, mas se ele funciona. Não enfrentamos a questão se o mercado é uma força para o bem ou o mal. O seu poder de gerar riqueza e expandir liberdade não tem paralelo. Mas esta crise nos lembrou que, sem um olhar vigilante, o mercado pode sair do controle; que a nação não pode prosperar por muito tempo se favorecer apenas os prósperos”. 588 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 77 589 Após destacar a dificuldade de se conceituar serviços públicos, e apontar para o modelo adotado por Celso Antonio Bandeira de Mello – o qual desvincula o conceito da noção de “atividade econômica”, e conecta-o às atividades estatais essenciais – a professora Maria Silvia Di Pietro define “serviços públicos” como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus FGV DIREITO RIO 258 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I sim sendo, pode ocasionar uma ineficiente alocação dos fatores de produção (terra, capital, trabalho, tecnologia, empreendedorismo) e baixa produtividade. Em suma, a simples existência dos tributos já é suficiente para modificar o comportamento das pessoas, individualmente, das famílias, das empresas, da sociedade como um todo e dos próprios governos, razão pela qual é ínsito à tributação redefinir a alocação dos recursos socialmente disponíveis, o que afeta a demanda e a oferta no mercado de fatores de produção e de bens e serviços, ocasionando modificação nos respectivos preços594, motivos pelos quais sempre existiu – e continua a existir – intenso debate acerca do “melhor” substrato de incidência (patrimônio, renda ou consumo) sob a perspectiva da eficiência econômica, objetivando causar o menor grau de distorção possível em relação às decisões que seriam efetivadas caso inexistente a exação. Dessa forma, se na seara tributária a expressão extrafiscalidade tem o sentido de outros efeitos da imposição dos tributos, além da arrecadação dos recursos para financiar a atividade do Estado, importante repisar que o fenômeno é indissociável e intrínseco à denominada fiscalidade, haja vista que mesmo as exações mais neutras sob a perspectiva econômica causam repercussões e impactos de naturezas diversas, que não apenas a obtenção de receitas públicas. Em análise sobre a neutralidade como um dos objetivos a serem alcançados no desenho do modelo tributário, William D. Andrews595 esclarece: Neutrality means avoiding or minimizing distortions of normal economic incentives, and it is another crucial objective. Virtually any tax will distort market incentives to some extent, but some taxes are worse than others in this respect, and we should prefer the latter on that account. In part distortion varies because different aspects of economic behavior vary in their sensitivity to costs and prices, and this criterion provides some reason for avoiding taxes on particularly sensitive items. Some would argue, for example, that investment is particularly sensitive to after-tax rates of return, and capital gains cannot be subjected to high graduated tax rates without impairing the normal flow of capital into new enterprises. Therefore, the argument concludes, capital gains should be given special protection against ordinary rates. Others are skeptical of that argument at several points, but is important to keep in mind the extent in which various aspects of the tax system may alter economic choices that would be made in its absence. Assim sendo, parece correta a definição de Estevão Horvath596 que estabelece a distinção entre a fiscalidade e a extrafiscalidade em função da ênfase da intenção com a qual o tributo é criado e aplicado: fala-se em tributo fiscal quando ele é cobrado com a finalidade precípua de abastecer os cofres públicos de dinheiro, para que o Estado possa realizar os seus fins delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. v. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 99. Já o Ministro Eros Grau, do STF, enquadra o serviço público como espécie de atividade econômica, tomado esse último em seu sentido lato: “Daí a verificação de que o gênero – atividade econômica – compreende suas espécies: o serviço público e a atividade econômica”. Ressalva, ainda, que se trata de conceito aberto, a ser preenchido com os dados da realidade, e como tal, depende do confronto entre o capital de um lado – que procura “reservar para sua exploração, como atividade econômica em sentido estrito, todas as matérias que possam ser, imediata ou potencialmente, objeto de profícua especulação lucrativa” - e o trabalho, de outro, que “aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva não de modo especulativo, o maior número possível de atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir deste confronto – do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico – que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos das atividades econômicas em sentido estrito e dos serviços públicos”. v. GRAU, Roberto Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 92 e 99. 590 FERRAZ, Tércio Sampaio. Apresentação. In: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.p.12. 591 GRAU. Op. cit. p.82. “Daí se verifica que o Estado não pratica intervenção quando presta serviço público ou regula a prestação de serviço público. Atua, no caso, em área de sua própria titularidade, na esfera pública. Por isso mesmo dir-se-á que o vocábulo intervenção é, no contexto, mais correto do que a expressão atuação estatal: intervenção expressa atuação estatal em área de titularidade do setor privado; atuação estatal, simplesmente, expressa significado mais amplo. Pois é certo que essa expressão quando não qualificada, conota inclusive atuação na esfera do público” (grifo nosso). 592 AVI-YONAH, Reuven S. The three goals of Taxation. 60 Tax Law Review 01, 2006. O professor americano sumariza a questão nos seguintes termos: “To answer these puzzles, it is necessary to resurrect a question that has not been considered recently in the tax policy literature: What are taxes for? The obvious answer is that taxes are needed to raise revenue for necessary governmental functions, such as the provision of public goods. And, indeed, all taxes have to fulfill this function to FGV DIREITO RIO 259 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I adrede estabelecidos. Diz-se extrafiscal, por sua vez, o tributo que se arrecada mais com a intenção de buscar estimular ou desestimular certos comportamentos (desencorajar a manutenção de latifúndios improdutivos, por exemplo) que de encher as burras do Estado. (grifo nosso) A utilização do tributo com fim extrafiscal, seja para a redefinição do grau de concentração de riqueza e de renda ou como instrumento regulatório, é matéria extremamente complexa e de difícil consenso, pois além de envolver premissas e elementos de natureza ideológica e de valores de elevado grau de subjetividade, tais como liberdade, justiça distributiva e equidade, dependem amplamente do ambiente jurídico, econômico, político, cultural no qual essas políticas são adotadas, além, é claro, da viabilidade administrativa da exação. 14.1 A ADOÇÃO DE POLÍTICA FISCAL COMO INSTRUMENTO PARA DESCONCENTRAR RENDA E RIQUEZA Durante a vigência do denominado patrimonialismo, conforme já destacado na primeira aula, predominavam as receitas dominiais bem como aquelas decorrentes da exploração das colônias, em que pese em alguns países já se fazer presente a necessidade de prévia autorização para a cobrança de impostos, como a Inglaterra a partir de 1215. Não havia, entretanto, à época, distinção entre a Fazenda pública e a do monarca, sendo fundamentada a exigência dessa espécie tributária nas necessidades dos Reis e da nobreza. Assim, além da receita extrapatrimonial ser secundária e excepcional, a suscitar apenas em algumas circunstâncias a anuência e a aprovação preliminar dos estamentos, os impostos não se vinculavam à idéia de liberdade nem de igualdade, que somente passaram a fundamentar essa exação no Estado Liberal. De fato, apenas com o processo de extinção dos privilégios da nobreza e do clero e com o surgimento do liberalismo e do Estado de Direito, que marcam o início do constitucionalismo moderno, é que o imposto deixa de ser apropriado privadamente e passa a ser notadamente público, consubstanciando-se na principal categoria dos ingressos e a mais destacada fonte das receitas públicas597. Nessa toada, com o advento do denominado Estado Fiscal, as necessidades financeiras passam a ser essencialmente cobertas por impostos, o que tem sido a regra no estado moderno, salvo as exceções de estados proprietários, produtores e empresariais, os quais, conforme assevera José Casalta Nabais598, “em virtude do grande montante de receitas provenientes da exploração de matérias primas (petróleo, gás natural, ouro, etc.) ou até da concessão do jogo (como Mônaco ou Macau), podem dispensar os respectivos cidadãos de serem o seu principal suporte financeiro”. A partir do Estado Fiscal o imposto passa a ser caracterizado como o valor “que se paga be effective; as the Russian government discovered in the 1990’s [FN10] (following many others in history), a government that cannot tax cannot survive. And there is widespread ideological agreement that this function is needed, even while people vehemently disagree about what functions of government are truly necessary, and what size of government is required. [FN11] But taxation also has two other functions, which are more controversial, but which modern states also widely employ. Taxation can have a redistributive function, aimed at reducing the unequal distribution of income and wealth that results from the normal operation of a market-based economy. This function of taxation has been hotly debated over time, and different theories of distributive justice can be used to affirm or deny its legitimacy. What cannot be denied, however, is that many developed nations in fact have sought to use taxation for redistributive purposes, although it also is debated how effective taxation was (or can be) in redistribution. [FN12] Taxation also has a regulatory component: It can be used to steer private sector activity in the directions desired by governments. This function is also controversial, as shown by the debate around tax expenditures. [FN13] But it is hard to deny that taxation has been and still is used widely for this purpose, as shown inter alia by the spread of the tax expenditure budget around the world following its introduction in the United States in the 1970’s [FN14]” (grifo nosso). 593 Modigliani, F. and M. Miller (1958), “The Cost of Capital, Corporation Finance and the Theory of Investment”, The American Economic Review, Vol. 48, No. 3, (June 1958) p. 261-297 594 Os efeitos dessas mudanças sobre os preços dos bens e serviços e dos fatores de produção, ocasionados pela cobrança ou aumento dos tributos, beneficiam alguns em detrimento de outros (consumidores, industriais, comerciantes, prestadores de serviços, trabalhadores, empreendedor, e etc.), razão pela qual o efeito líquido dessas alterações é o que define quem arca em cada hipótese com o ônus ou encargo financeiro do tributo, podendo ser ou não a mesma pessoa eleita pela legislação como o sujeito passivo da obrigação tributária dependendo do tipo de imposto, do produto e seus substitutos e complementares, do mercado onde se insere e etc.. Conforme salienta Vasconcelos: “O produtor procurará repassar a totalidade do imposto ao consumidor. Entretanto, a margem de manobra de repassá-lo dependerá do grau de sensibilidade desse a alterações do preço do bem. E essa sensibilidade (ou elasticidade) dependerá do tipo de mercado. Quanto mais competitivo ou FGV DIREITO RIO 260 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I para viver em uma sociedade civilizada”, conforme preconizado por Oliver Wendell Holmes599, ou por ser “o preço da liberdade, tendo em vista que é pago sem qualquer contraprestação por parte do Estado e afasta o cidadão das obrigações pessoais”, como identificado por Ricardo Lobo Torres600. Se as demandas da nobreza e do clero, o que posteriormente se designará por “razão de Estado”601, são os núcleos fundamentais para justificar a cobrança dos impostos no Estado Patrimonial, a igualdade e a liberdade do cidadão, decorrentes do contrato social, são as razões de ser da imposição no Estado Liberal de Direito, na medida em que o imposto602 possuia natureza liberatória, vez que, consoante lições de Gabriel Ardant, “representava a transformação de outras obrigações, do serviço militar, da armada, das prestações in natura, ele liberava o homem da constrição de caráter feudal ou comunitário, ele lhe restituía a disposição de seu tempo e de seu trabalho”. Por outro lado, o poder estatal, agora submetido à própria ordem jurídica que emanava, se conformava não apenas pela liberdade, mas também pela igualdade que se expressava preponderantemente pela sua vertente formal, princípio que se exterioriza na seara tributária por meio da denominada capacidade contributiva de cada cidadão, fundamento e limite intransponível da tributação. Nesse sentido, preponderava a legalidade estrita para resguardar a segurança jurídica dos contratos e das atividades exercidas pelos agentes econômicos, bem como as iguais liberdades individuais em face de possíveis abusos do Estado. Ocorre, entretanto, que a igualdade, e de forma reflexa a capacidade contributiva, possui diversas acepções possíveis, o que pode alterar drasticamente, dependendo da concepção adotada, a escolha entre os três substratos econômicos de incidência, ou a preponderância de alguma(s) dessas bases (patrimônio, renda e consumo), o que está atrelado à intensidade da tributação e à distribuição do ônus dos gastos (tributação proporcional, progressiva ou regressiva). Essas opções alteram significativamente as conseqüências decorrentes da exação, questão que se vincula à escolha entre a utilização ou não – e a ênfase – do tributo como instrumento para reduzir a concentração de renda/riqueza e a definição de uma entre as diversas opções quanto à distribuição do ônus das despesas públicas. No século XVIII, marcado pela independência americana e pela revolução francesa, a capacidade contributiva foi vinculada à idéia de benefício que cada indivíduo recebe do Estado, uma construção filosófica iniciada já no século XVII por Thomas Hobbes, para quem as pessoas deveriam pagar impostos de acordo com o que elas efetivamente usufruem da ação estatal, ratio que vincula a vertente das receitas ao lado da despesa pública, e que foi sedimentada pelo economista Adam Smith no seu famoso livro Inquérito sobre a Natureza e as Causas das Riquezas das Nações. Nesse sentido salientam Karl Case e Ray Fair603: concorrencial o mercado, maior a parcela do imposto paga pelos produtores, pois eles não poderão aumentar o preço do produto para nele embutir o tributo. O mesmo ocorrerá se os consumidores dispuserem de vários substitutos para esse bem. Por outro lado, quanto mais concentrado o mercado – ou seja, com poucas empresas -, maior grau de transferência do imposto para consumidores finais, que contribuirão com parcela do imposto.” In.VASCONCELLOS, Marco Antonio. Fundamentos de Economia, 2a Ed. Saraiva, 2006, p.48 595 ANDREWS, William D. Basic Federal Income Taxation. Little, Brown and Company. Boston. Fourth Edition. 1991. p. 7. 596 HORVATH, Estevão. O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002. 597 A preponderância dos impostos sobre as outras categorias de entradas ou ingressos públicos começou a ser relativizada em diversos países com o início do intervencionismo estatal da ordem social, tendo em vista que a segurança ou seguridade social (saúde, assistência e previdência social) passou a ocupar papel destacado. Dessa forma, para fazer face às novas despesas caracterizadoras do Estado de Bem-Estar Social, muitos países, como o Brasil, passaram a instituir e cobrar as denominadas contribuições sociais, hoje incluídas expressamente no âmbito das exações de natureza tributária pela Constituição (artigo 149 e 195 da CR-88) e caracterizadas por sua vinculação à determinada finalidade específica, o que estabelece uma distinção marcante em relação aos impostos, os quais, salvo as exceções constitucionais (artigo 167, IV, da CR-88), são destinados às despesas públicas gerais. 598 NABAIS, José Casalta. Algumas Reflexões sobre o Actual Estado Fiscal. In: Revista Fórum de Direito Tributário. RFDT. ano 1, n.1 jan/fev. 2003. Belo Horizonte Fórum, 2003. p. 92-93. 599 Compania Gen. Tabacos de Filipinas v. Collector of Internal Revenue, 275 U.S. 87, 100 (1927) (Holmes J., dissenting). 600 TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos Fundamentais e Finalísticos dos Tributos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Tributo. Reflexão Multidisciplinar sobre a sua natureza. São Paulo: Editora Forense, 2007. p. 37. “O Estado Liberal Clássico, ou Estado Guarda-Noturno, necessita da receita tributária para atender às suas finalidades essenciais, menos escassas que anteriormente. O conceito jurídico de imposto se cristaliza a partir de algumas idéias fundamentais: a liberdade do cidadão, a legalidade estrita, a destinação pública do ingresso e a igualdade”. FGV DIREITO RIO 261 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I The view favoring consumption as the best tax base dates back at least to the seventh-century English philosopher Thomas Hobbes, who argued that people should pay taxes in accordance with ‘what they actually take out of the common pot, not what they leave in’. (…) One theory of fairness is called the benefits-received principle. Dating back to the eighteenth century economist Adam Smith and earlier writers, the benefits-received principle holds that taxpayer should contribute to government according to the benefits that they derive from public expenditures. This principle ties the tax side of the fiscal equation to the expenditure side. For example, the owners and users of cars pay gasoline and automotive excise taxes, which are paid into the Federal Highway Trust Fund that is used to build and maintain the federal highway system. The beneficiaries of public highways are thus taxed in rough proportion to their use of those highways. The difficulty with applying the benefits principle is that the bulk of public expenditures are for public goods – national defense, for example. The benefits of public goods fall collectively on all members of society, and there is no way to determine what value individual taxpayers receive from them. Dessa forma, a igualdade de sacrifício para fazer face às despesas públicas seria proporcional ao benefício privado individual decorrente da atividade estatal, o que confere o sentido de proporcionalidade à capacidade contributiva. Em sentido diverso, se forem desvinculadas as vertentes da receita de um lado e a despesa pública de outro, surgem diversas alternativas quanto ao sentido e a extensão do conceito de capacidade contributiva, matéria intimamente relacionada à adoção da extrafiscalidade como instrumento para reduzir desigualdades sociais604. Karl Case e Ray Fair605 esclarecem a questão nos seguintes termos: A different principle, and that has dominated the formulation of tax policy in the United States for decades, is the ability-to-pay principle. This principle holds that taxpayer should bear tax burdens in line with their ability to pay. Here the tax side of the fiscal equation is viewed separately from the expenditure side. Under this system, the problem of attribution the benefits of the public expenditures to specific taxpayer or groups of taxpayer is avoided. Nessa linha, a capacidade contributiva pode assumir a conotação de igual sacrifício, no sentido de justiça utilitarista (Utilitarian Justice), ou outro conceito que reflita a possibilidade para contribuir, tendo como elementos subjacentes outros sentidos de justiça distributiva606 (Distributive Justice), a qual possui diversas vertentes, e opositores 607. O “igual sacrifício” preconizado John Stuart Mill608, com base no utilitarismo de Jeremy Bentham609, concebido no final do século XVIII, se fun- 601 BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1986. Para explicar o sentido da razão de Estado, “é preciso a identificação dos momentos cruciais da história do Estado moderno ... [surgido com o fim precípuo de permitir] à autoridade suprema do Estado impor coercivamente à população que lhe estava sujeita as regras indispensáveis à convicção ...” (p. 1067) 602 ARDANT, Gabriel. Histoire de l’ Impôt. Paris: Fayard, 1971, v. 1, p.431. 603 CASE, Karl E. e FAIR, Ray C.. Principles of Microeconomics. 4th Ed. New Jersey – USA: Prentice Hall. p.466-468. 604 A utilização da tributação como mecanismo de redução de desigualdade pode ter como fundamento desde argumentos de natureza ética e moral, passando por proposições como a justiça utilitarista, calcada nos argumentos propugnados por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, na teoria do valor trabalho de Marx, que atribuía o valor dos bens e serviços em função do trabalho inserido e o lucro como uma expropriação da mais valia, ou ainda por meio da utilização da teoria justiça de Rawls, que estabelece como premissa um contrato social no qual maximiza-se o bem estar daquele pior sucedido na sociedade. Para um resumo da questão vide CASE e FAIR. Op. cit. p. 446 a 451. 605 CASE e FAIR. Op. cit. p. 466. 606 Apesar da existência de variados critérios e diferentes opiniões quanto à diferenciação entre justiça (1) geral, (2) distributiva, (3) comutativa e (4) corretiva, como aqueles sustentados por Aristóteles ou Tomás de Aquiino (vide Justiça Social - Gênese, estrutura e aplicação de um conceito, de Luis Fernando Barzotto, disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/Artigos/ART_LUIS.htm), a segunda espécie (distributiva) diz respeito ao que é considerado justo ou certo relativamente à alocação de bens e riqueza em uma sociedade, em determinado momento no tempo, ou seja, o enfoque é a aceitabilidade do resultado distributivo produzido pelo mercado, por si só, vis a vi um parâmetro ideal variável, a ser alcançado por uma política de redução de desigualdades que pode ser mais ou menos redistributiva de acordo com a sociedade. No entanto, nem todos aqueles adeptos das teorias consequencialistas, apesar de objetivarem resultados geradores de maior bem estar e riqueza, estão preocupados com uma sociedade justa no sentido igualitário estrito, de equivalente distribuição de bens. Dessa forma, justiça distributiva vincula-se ao exame da realidade sob múltiplos parâmetros, considerando a riqueza absoluta, as suas disparidades, ou qualquer outra FGV DIREITO RIO 262 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I damentava no conceito de utilidade marginal do capital, isto é, a utilidade da moeda seria inversamente proporcional à riqueza (a utilidade de uma unidade monetária seria maior para o mais pobre do que para o mais rico), o que serviu como justificativa para a aplicação da tributação progressiva e não apenas proporcional. De acordo com o pensamento utilitarista, se a utilidade declina na medida em que a renda aumenta seria justificável a tributação mais gravosa dos ricos, o que produziria desconcentração de renda na sociedade e distribuição desigual no financiamento das despesas públicas na medida das respectivas possibilidades contributivas. Saliente-se, entretanto, que a intensidade da progressividade pode variar drasticamente, em razão dos variados impactos em relação à tributação proporcional, conforme será demonstrado quando do exame comparativo da tributação regressiva, proporcional e progressiva. As crescentes demandas sociais e a elevação da complexidade da dinâmica econômica no início do século XX impuseram novas funções e demandas ao Estado, que passou a intervir na ordem econômica e social para garantir condições mínimas de vida para a maioria da população610 e impor disciplina ao mercado, o que suscitou a utilização de novos instrumentos de coerção para o exercício do poder de polícia e novas fontes de financiamento, algumas delas associadas às atividades reguladoras, matéria a ser examinada no tópico seguinte. Nesse momento é importante destacar que o denominado Estado Fiscal, caracterizado pela preponderância do financiamento das necessidades financeiras públicas por impostos, apesar de assumir a feição tanto do Estado Liberal como do Estado Social, conforme pontua José Casalta Nabais611, está fortemente associado à pretensão de limitar a atuação e dimensão da estatalidade, pois: “ao contrário do que alguma doutrina actual afirma, recuperando ideias de Joseph Schumpeter, não se deve identificar o estado fiscal com o estado liberal, uma vez que o estado fiscal conheceu duas modalidades ou dois tipos ao longo da sua evolução: o estado fiscal liberal, movido pela preocupação de neutralidade econômica e social, e o estado fiscal social economicamente interventor e socialmente conformador. O primeiro, pretendendo ser um estado mínimo, assentava numa tributação limitada – a necessária para satisfazer as despesas estritamente decorrentes do funcionamento da máquina administrativa do estado, que devia ser tão pequena quanto possível. O segundo, movido por preocupações de funcionamento global da sociedade e da economia, tem por base uma tributação alargada – a exigida pela estrutura estadual correspondente. Não obstante o estado fiscal ser tanto o estado liberal como o estado social, o certo é que o apelo a tal conceito tem andado sempre associado à pretensão de limitar a actuação e a correspondente dimensão do estado”. forma utilitarista de padrão de medida. É normalmente contrastada com a justiça comutativa, caracterizada como aquela em que um particular, e não a sociedade, confere ou dá a outro particular o bem que lhe é devido, e a justiça procedimental, a qual diz respeito à legitimidade dos procedimentos e a administração da justiça. Conforme aponta The Stanford Encyclopedia of Philosophy, disponível no sítio http:// plato.stanford.edu/entries/justicedistributive/, acesso em 28/01/2009, “Principles of distributive justice are normative principles designed to guide the allocation of the benefits and burdens of economic activity. After outlining the scope of this entry and the role of distributive principles, the first relatively simple principle of distributive justice examined is strict egalitarianism, which advocates the allocation of equal material goods to all members of society. John Rawls’ alternative distributive principle, which he calls the Difference Principle, is then examined. The Difference Principle allows allocation that does not conform to strict equality so long as the inequality has the effect that the least advantaged in society are materially better off than they would be under strict equality. However, some have thought that Rawls’ Difference Principle is not sensitive to the responsibility people have for their economic choices. Resource-based distributive principles, and principles based on what people deserve because of their work, endeavor to incorporate this idea of economic responsibility. Advocates of Welfare-based principles do not believe the primary distributive concern should be material goods and services. They argue that material goods and services have no intrinsic value and are valuable only in so far as they increase welfare. Hence, they argue, the distributive principles should be designed and assessed according to how they affect welfare.” 607 A mesma The Stanford Encyclopedia of Philosophy, esclarece que: “Advocates of Libertarian principles, on the other hand, generally criticize any patterned distributive ideal, whether it is welfare or material goods that are the subjects of the pattern. They generally argue that such distributive principles conflict with more important moral demands such as those of liberty or respecting self-ownership.(…) The market will be just, not as a means to some pattern, but insofar as the exchanges permitted in the market satisfy the conditions of just exchange described by the principles. For Libertarians, just outcomes are those arrived at by the separate just actions of individuals; a particular distributive pattern is not required for justice. Robert Nozick has advanced this version of Libertarianism (Nozick 1974), and is its most well-known contemporary advocate.” FGV DIREITO RIO 263 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Vários são os reflexos do novo cenário, marcado pelo intervencionismo estatal na ordem econômica e social, na seara tributária, destacando-se o distanciamento do fundamento do imposto na liberdade, que passa a ser subsidiária, e a conexão de sua justificativa aos aspectos econômicos da incidência, conforme destaca Ricardo Lobo Torres612, passando “a questão da justiça tributária, como parcela da proteção social, a ser obtida de acordo com a ideologia utilitarista,” o que se efetiva em conjunto a uma nova compreensão dos princípios da igualdade e da legalidade, os quais passam a se desenvolver dentro dos parâmetros utilitaristas e no contexto do positivismo jurídico. Nesse contexto do Estado de Bem-Estar social, e de intervencionismo estatal na ordem econômica e social, a discussão quanto à melhor escolha entre os diversos substratos econômicos de incidência e a preponderância ou não de alguma(s) delas (patrimônio, renda e consumo613), bem como a intensidade da tributação (tributação proporcional, progressiva ou regressiva), ganha ainda maior relevo, em que pese essa discussão ter se iniciado algum tempo antes, conforme destacado por Joseph Bankman e David A. Weisbach614: Perhaps the single most important tax policy decision is the choice between an income tax and a consumption tax. The topic has been discussed and argued over since at least the time of Hobbes and Mill without apparent resolution.615 Consumption and income taxes both represent substantial sources of revenue in all modern economies. A seguir serão examinados os aspectos extrafiscais dos tributos de acordo com o substrato econômico de incidência: consumo, renda e patrimônio. 14.1.1 A tributação sobre o Consumo Apesar de opiniões em sentido contrário616, o imposto incidente sobre o consumo é tido como regressivo, não sendo, portanto, tributo adequado, por si só, ao objetivo de redistribuição de renda ou de riqueza. De fato, a propensão marginal a consumir dos mais pobres é maior, comparada àquela dos mais ricos, na medida em que o indivíduo com menor rendimento consome parcela comparativamente maior de sua renda, isto é, o rico gasta pouco proporcionalmente aos seus rendimentos totais, sendo tributado apenas em um pequeno percentual do que ganha. Assim, afastada a incidência sobre a renda não consumida – que equivale àquela poupada – maior será o benefício daquele com maior capacidade relativa de poupança, razão pela qual é considerado tributo regressivo e que privilegia diretamente aquele que ganha mais, relativamente àquele de menor renda. A tabela abaixo ajuda a compreensão do argumento no sentido da regressividade dessa base de tributação, adotando-se uma alíquota nominal uniforme 608 MILL, John Stuart. Princípios de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.290: “A igualdade de tributação, portanto, como máxima de política, significa igualdade de sacrifício”. 609 BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. 1ª Ed. São Paulo: Abril Cultural e Industrial. 1974. p. 9-13. 610 Conforme argutamente identificado por Aristóteles: “É evidente, pois, que a comunidade civil mais perfeita é a que existe entre os cuidados de uma condição média, e que não pode haver Estados bem administrados fora daqueles nos quais a classe média é numerosa e mais forte que todas as outras, ou pelo menos mais forte que cada uma delas: porque ela pode fazer pender a balança em favor do partido ao qual se une, e, por esse meio, impede que uma ou outra obtenha superioridade sensível. Assim, é uma grande felicidade que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para as suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou ainda uma tirania insuportável, produto infalível dos excessos opostos. Com efeito, a tirania nasce comummente da democracia mais desenfreada, ou da oligarquia. Ao passo que entre cidadãos que vivem em uma condição média, ou muito vizinha da mediana, esse perigo é muito menos de se temer. Disso daremos razão, alias, quando tratarmos das revoluções que abalam os governos. (…) Mas que a multidão dos pobres que se torna excessiva, sem que a classe média aumente na mesma proporção, surge o declínio, e o Estado não tarda a perecer”. In: ARISTÓTELES. A Política. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 16. Tradução Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Escala. p.187. 611 NABAIS. Op. Cit. p. 93-94. 612 TORRES. Op. Cit. p.39. 613 O consumo de bens e serviços, o domínio e a propriedade sobre os bens móveis e imóveis bem como a renda auferida são considerados os signos de riqueza a ensejar a possibilidade de tributação, haja vista denotar capacidade econômica e a possibilidade de contribuir para o custeamento das despesas públicas. 614 BANKMAN, Joseph & WEISBACH, David A. The Superiority of an ideal Consumption Tax over and Ideal Income Tax, 58 Stanford Law Rev (2006). 615 A literatura é vastíssima. See, e.g., THOMAS HOBBES, LEVIATHAN (1651); JOHN STUART MILL, PRINCIPLES OF POLITICAL ECONOMY (1871); IRVING FISHER, THE NATURE OF CAPITAL AND INCOME (1906); NICHOLAS KALDOR, AN FGV DIREITO RIO 264 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I hipotética de 5% sobre o consumo total do mês, isto é, sem alterações em função do tipo de bem ou serviço, e percentuais específicos de poupança617 para cada faixa de renda: Imposto sobre o Consumo: Indivíduo Renda mensal 5% Índice de poupança individual Poupança Renda disponível para o Consumo 5% de Imposto sobre Consumo (IC) Consumo efetivo – excluindose a incidência do imposto Peso médio do IC em relação à Renda mensal (a) (b) (c) (d) = (b)*(c) (e) = (b)– (d) (f ) = 5%*(e) (g) = (e)-(f ) (h) = (f )/(b) A R$ 50.000 50% R$ 25.000 R$ 25.000 R$ 1.250 R$ 23.750 2,50% B R$ 20.000 40% R$ 8.000 R$ 12.000 R$ 600 R$ 11.400 3,00% C R$ 10.000 20% R$ 2.000 R$ 8.000 R$ 400 R$ 7.600 4,00% D R$ 5.000 10% R$ 500 R$ 4.500 R$ 225 R$ 4.275 4,50% E R$ 3.500 8% R$ 280 R$ 3.220 R$ 161 R$ 3.059 4,60% F R$ 2.500 5% R$ 125 R$ 2.375 R$ 119 R$ 2.256 4,75% G R$ 1.500 4% R$ 60 R$ 1.440 R$ 72 R$ 1.368 4,80% H R$ 1.433 3% R$ 43 R$ 1.390 R$ 70 R$ 1.321 4,85% Dessa forma, a incidência exclusiva sobre o consumo implica carga tributária relativa inversamente proporcional à renda do cidadão – quanto mais pobre maior o peso relativo do imposto em relação à renda auferida. Enquanto o peso do imposto para “A” é de apenas 2,5% (dois e meio por cento) sobre a sua renda, “H” suporta carga de 4,85% (quatro inteiros e oitenta e cinco décimos por cento). A eliminação ou redução da incidência sobre os bens e serviços essenciais pode atenuar o quadro, sem eliminar, no entanto, a concomitante exclusão da base de incidência daqueles com maior renda, razão pela qual em alguns países não é adotada a redução ou eliminação da carga tributária sobre os produtos, mas operacionalizada a devolução dos valores despendidos com o imposto incidente sobre o consumo para as camadas mais pobres da população. Por outro lado, importante ressaltar que o incentivo à poupança, haja vista a exclusiva oneração tributária sobre o consumo, e não sobre o retorno do capital investido, repercute positivamente sobre o crescimento econômico em potencial, haja vista maiores disponibilidades para o investimento em geral e a conseqüente geração de empregos e de riqueza total, o que tende a au- EXPENDITURE TAX (1955); William Andrews, A Consumption-type of Cash Flow Personal Income Tax, 87 HARV. L. REV. 1113 (1974); Michael Graetz, Implementing a Progressive Consumption Tax, 92 HARV. L. REV. 1575 (1979); Alvin Warren, Would a Consumption Tax Be Fairer Than an Income Tax, 89 YALE L.J. 1081 (1980); David Bradford, The Case for a Personal Consumption Tax, in WHAT SHOULD BE TAXED: INCOME OR CONSUMPTION 75 (Joseph Peckman ed., 1980); DAVID F. BRADFORD & THE U.S. TREASURY TAX POLICY STAFF, BLUEPRINTS FOR BASIC TAX REFORM (2d ed. 1984); Barbara H. Fried, Fairness and the Consumption Tax, 44 STAN. L. REV. 961 (1992); ALAN AUERBACH & LAWRENCE KOTLIKOFF, DYNAMIC FISCAL POLICY (1987); DANIEL SHAVIRO, WHEN RULES CHANGE (2000). 616 Vide, por exemplo, Daniel N. Shaviro, Replacing the Income Tax with a Progressive Consumption Tax, 103 Tax Notes 91 (Apr. 5, 2004) e Joseph Bankman & David A. Weisbach. The Superiority of an ideal Consumption Tax over and Ideal Income Tax, 58 Stanford Law Rev (2006). Uma das críticas é o fato de que a definição e a análise quanto à regressividade requer a mudança da base de FGV DIREITO RIO 265 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mentar o bem estar social total, sem a garantia, entretanto, do perfil da distribuição de renda e riqueza. De fato, conforme já estudado na aula passada, a tributação exclusiva sobre o consumo elimina a dupla incidência econômica sobre a renda poupada, imobilizada ou investida, o que estimula a poupança e o investimento, motores do crescimento econômico. A utilização dos tributos incidentes sobre o consumo com objetivos regulatórios e com o fulcro de alterar as decisões dos agentes econômicos, o que também pode ser realizado como instrumento para atenuar desigualdades, por meio, por exemplo, de isenções e benefícios fiscais para os bens e serviços essenciais, será examinada no tópico seguinte. 14.1.2 A tributação sobre a Renda Em que pese a possibilidade de utilização dos impostos incidentes sobre o consumo e sobre o patrimônio com o objetivo de atenuar ou reduzir as desigualdades sociais, a adoção da tributação sobre a renda das pessoas físicas nos Estados Unidos foi um dos marcos históricos fundamentais na utilização intencional dos tributos com fim de redistribuição de renda e riqueza. Nesse sentido aponta o professor Reuven Avi-Yonah relativamente à experiência internacional:618 The case for drastic progression in taxation must be rested on the case against inequality.” [FN47] Henry Simons. The revenue goal of taxation thus explains why all other OECD members619, and most other countries, have both an income tax and a consumption tax as their principal sources of revenue. But this still leaves the second puzzle--why would any country change from relying primarily on consumption taxes to relying primarily on income taxes? This is what the United States did when it adopted the Sixteenth Amendment in 1913. Throughout the nineteenth century, with the brief exception of the Civil War and its immediate aftermath (1862-1872), [FN48] the federal government was funded entirely by tariffs (that is, taxes on consumption). [FN49] Following the passage of the Sixteenth Amendment (authorizing the federal government to levy taxes on income without apportionment), the United States began levying an income tax, and from World War II onward this became the principal source of revenue of the U.S. federal government. [FN50] Even when taking the state level sales taxes into account, income taxes currently account for over 80% of total U.S. tax revenue. [FN51]. Historically, the answer to the question of why the change to an income tax occurs is clear: The income tax was substituted for the tariffs because of its redistributive impact. The post-Civil War industrialization and urbanization had led to a shift from a mostly agrarian society to one dominated by large industrial corporations and a sharp rise in inequality, as measured by the comparação do consumo para a renda. Nesse sentido, é sustentado que o consumo também deveria ser o parâmetro de comparação. 617 O mesmo exercício pode ser efetivado a partir da propensão marginal a consumir de cada indivíduo, de acordo com a faixa de renda. O índice é o inverso daquele atribuído à poupança mensal. 618 AVI-YONAH. Op. Cit. p.6. 619 A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – é formada pelos 30 países comprometidos com a economia de mercado mais desenvolvidos do mundo. O Brasil, ao lado da China, Índia, Indonésia e África do Sul, têm sido chamado para participar mais intensamente das reuniões do grupo, enquanto o Chile, Estônia, Israel, Eslovênia e Rússia foram convidados a participar de discussões com vistas a se tornarem países membros efetivos, que conta atualmente com os seguintes países Australia, Austria, Belgium, Canada, Czech Republic, Denmark, Finland, France, Germany, Greece, Hungary, Iceland, Ireland, Italy, Japan, Korea, Luxembourg, Mexico, Netherlands, New Zealand, Norway, Poland, Portugal, Slovak Republic, Spain, Sweden, Switzerland, Turkey, United Kingdom, United States. Para obtenção de maiores informações http://www.oecd.org. FGV DIREITO RIO 266 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I distribution of income or wealth. [FN52] Lawmakers of both parties viewed this state of affairs as inequitable, [FN53] and the existing tax system was considered ineffective in remedying the situation because it relied completely on consumption taxes, which were regarded as regressive because the poor consume a higher proportion of their income than the rich. [FN54] In addition, state level personal property taxes were seen as ineffective in reaching intangible forms of property such as stocks and bonds, [FN55] which formed the bulk of the new wealth in the hands of the industrialists. [FN56] The result was a focused and sustained effort to enact a federal income tax on both individuals and corporations, as well as an estate tax. In 1895 the Supreme Court blocked the first attempt to do so, [FN57] but Congress ultimately enacted the corporate tax in 1909, [FN58] the modern estate tax in 1916, [FN59] and the individual income tax in 1913 [FN60] after the adoption of the Sixteenth Amendment abated concerns regarding its constitutionality.[FN61] Significantly, until World War II, the income tax applied only to the richest Americans, because the exemption levels were set high enough to leave the bottom 90% of the population outside the reach of the income tax. [FN62] Redistribution was considered to require only taxing the rich, and beginning in World War I, the rich were subject to income tax at very high rates. [FN63] After a period of rate reductions in the 1920’s, [FN64] Elliott Brownlee shows that by World War II, this “soak the rich” [FN65] tax policy resulted in quite high effective tax rates on the top 1% of earners (the effective tax rate in 1944 was 58.6%, with a top marginal rate of 94%). [FN66] These high rates on the top earners persisted through the late 1970’s and early 1980’s (70% top marginal rate), although the effective rate by then had declined to 28.9%. [FN67] Thus, a primary goal of the income tax historically was seen as redistributing wealth from the rich to everyone else. This explains why it was first adopted in the United States, and it also explains why the income tax is persistently maintained today in developing countries that could satisfy their entire revenue needs by the VAT620. Even though the personal income tax in these countries has a spotty record, they insist on maintaining it because of its symbolic potential in achieving redistribution (although, as I argue below, redistribution in these countries can be achieved through consumption taxes as well). A comparação dos resultados das tabelas abaixo facilita a compreensão dos distintos efeitos da utilização da tributação proporcional da renda e da adoção de diferentes modelos de progressividade. Na primeira hipótese a alíquota nominal do imposto de renda da pessoa física (IRFP) é 20%, não havendo qualquer faixa de isenção, ou seja, independentemente do nível de renda há tributação, inexistindo, também, qualquer possibilidade de dedução ou exclusão da base de incidência, ao contrário do ocorre em geral no mundo real em relação a algumas despesas como, por 620 VAT é o Value Added Tax – Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), ou sobre o Valor Acrescido, na tradução portuguesa do termo, imposto aplicado por cerca de 130 países no mundo e amplamente utilizado na Comunidade Européia. Espécie de imposto multifásico (ou plurifásico) sobre o consumo, incide em todas as etapas de circulação das mercadorias e dos serviços, ao contrário do Sales Tax – Imposto sobre Vendas, caracterizado por ser imposto monofásico incidente apenas nas vendas pelo varejo ao consumidor final. FGV DIREITO RIO 267 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I exemplo, gastos de educação, saúde e etc., ainda que permitidas em montantes inferiores aos valores realmente despendidos. Nesse cenário, ao contrário do que se verificará posteriormente, a alíquota efetiva real é a mesma que a alíquota nominal, isto é, 20%. Imposto de renda da PF: 20% OBS: IRPF Sem isenção, deduções ou exclusões. Indivíduo Renda mensal Imposto de Renda no mês (IRPF) (a) (b) (c) = 20%*(b) (d) = (b)-(c) (e) (f) = (d)*(e) (g) = (f)/(b) (h) = (c)/(b) A R$ 50.000 R$ 10.000 R$ 40.000 50% R$ 20.000 R$ 30.000 20% B R$ 20.000 R$ 4.000 R$ 16.000 40% R$ 6.400 R$ 13.600 20% C R$ 10.000 R$ 2.000 R$ 8.000 20% R$ 1.600 R$ 8.400 20% D R$ 5.000 R$ 1.000 R$ 4.000 10% R$ 400 R$ 4.600 20% E R$ 3.800 R$ 760 R$ 3.040 8% R$ 243 R$ 3.557 20% F R$ 3.000 R$ 600 R$ 2.400 5% R$ 120 R$ 2.880 20% G R$ 2.000 R$ 400 R$ 1.600 4% R$ 64 R$ 1.936 20% H R$ 1.566 R$ 313 R$ 1.253 3% R$ 38 R$ 1.528 20% Renda disponível Índice de poupança Poupança Renda disponível para Consumo Alíquota média efetiva do IRPF No segundo exemplo, que será apresentado abaixo, ao invés da adoção da proporcionalidade aplicada no caso acima, onde a alíquota nominal incidente é sempre a mesma, independentemente da renda, e cuja alíquota média final é sempre 20%, implementar-se-á a progressividade no sistema. Assim, a alíquota será acrescida de acordo com o aumento dos rendimentos, os quais serão os mesmos dos outros exemplos já analisados acima, não havendo, entretanto, para facilitar a compreensão do que se deseja alcançar no momento, a possibilidade de deduções ou exclusões621. Suponha, uma faixa de isenção para a renda auferida até R$ 1.566,61 (hum mil quinhentos e sessenta e seis reais e sessenta e um centavos). Destaque-se que adotar-se-á nesse próximo exemplo a metodologia aplicável nos Estados Unidos para o IRPF, onde cada fatia de renda, correspondente a cada faixa da tabela, é tributada de acordo com a alíquota específica incidente, independentemente do total dos rendimentos. Dessa forma há perfeita equivalência da tributação em cada segmento de renda, apesar da maior complexidade do cálculo, conforme será visto. 621 No Brasil, de acordo com a Lei nº 11.482, de 11 de maio de 2007, com a sua redação conferida pela Lei nº 12.469, de 26 de agosto de 2011, fruto da conversão da Medida Provisória nº 528/2011, para o ano calendário de 2011, havia isenção do imposto sobre a renda das pessoas físicas até o montante mensal de R$ 1.566,61. A partir de R$ 1.566,62 até R$ 2.347,85 a alíquota aplicável era de 7,5%, sendo dedutível o montante de R$ 117,49; de R$ 2.347,86 a R$ 3.130,51 a alíquota era de 15%, permitindo-se a dedução da parcela de R$ 293,58; de R$ 3.130,52 até R$ 3.911,63 a alíquota era 22,5%, com o valor passível de dedução de R$ 528,37, e, por fim, para a renda acima de R$ 3.911,63 a alíquota era de 27,5%, admitindo-se a dedutibilidade de R$ 723,95 nessa última faixa de renda. Ou seja, no atual sistema brasileiro a alíquota máxima aplicável é 27,5%. Saliente-se que essas parcelas a deduzir apenas ajustam os valores a recolher aos cálculos simplificados da alíquota marginal sobre a renda total auferida, conforme será examinado a seguir. A partir do ano calendário de 2012 e seguintes, a faixa de isenção será de R$ 1.637,11, para a renda mensal de R$ FGV DIREITO RIO 268 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Tabela Progressiva Mensal do IRPF de acordo com a faixa de Renda (R$) de ou acima de Até Alíquota (%) (a) (b) (c) 30.000,01 ... 42,0% 15.000,01 30.000,00 38,0% 10.000,00 15.000,00 32,0% 6.000,00 9.999,99 28,0% 3.911,64 5.999,99 27,5% 3.130,52 3.911,63 22,5% 2.347,86 3.130,51 15,0% 1.566,62 2.347,85 7,5% 0,00 1.434,59 0,0% (isenção) Assim, o indivíduo com renda equivalente a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), por exemplo, tem parcela de sua renda isenta (R$ 1.566,61 * 0%), outra parte é submetida à incidência pela alíquota de 7,5% (R$ 781,23 = R$ 2.347,85 – R$1.566,62), determinando o valor devido em função dessa fatia em R$ 58,59, e, por fim, o montante de R$ 152,14 (cento de cinquenta e dois reais e quatorze centavos), o qual equivale à diferença entre R$ 2.500,00 e R$ 2.347,86, sendo tributado pela alíquota de 15%, o que redunda em mais R$ 22,82 (vinte e dois reais e oitenta e dois centavos) de imposto devido. Dessa forma, o imposto de renda devido no mês é igual à soma de R$ 0 (faixa isenta) + R$58,59 + R$ 22,82, o que perfaz o total de R$ 81,41 (oitenta e um reais e quarenta e um centavos). Nesse caso, a alíquota média real é 3,25%, correspondente ao imposto de R$ 81,41, dividido pela renda auferida de R$ 2.500, o que difere da alíquota marginal aplicável a essa faixa de renda de 15%, tendo em vista que parte da renda é isenta e parcela substancial é tributada pela alíquota nominal de 7,5%. Resumidamente pode-se explicitar a situação no seguinte quadro: (e) = (c)*(d) (f) =R$ 2.500 – 2.347,86 (g) = (f)*(c) (a) (b) (c) (d) = (b) –(a) 2.347,86 3.130,51 15,0% 152,14 22,82 1.566,62 2.347,85 7,5% 781,23 58,59 0,00 1.566,61 0,0% 1.566,61 0,00 81,41 Aplicando-se a mesma sistemática para todos os indivíduos teríamos: 1.637,12 até R$ 2.453,50, alíquota de 7,5% (e dedução de R$122,78), de R$ 2.453,51 até R$ 3.271,38 (e dedução de R$306,80), alíquota de 15%, de R$ 3.418,60 até R$ 4.271,59, alíquota de 22,5% (e dedução de R$552,15) e acima de R$ 4.271,59, alíquota de 27,5% (e dedução de R$756,63). FGV DIREITO RIO 269 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I (a) (b) (c) = %*(b) (d) = (b)-(c) (e) (f) = (d)*(e) (g) = (f)/ (b) (h) = (c)/ (b) Indivíduo Renda mensal Imposto de Renda devido no mês Renda disponível Índice de poupança Poupança Renda disponível para Consumo Alíquota média real do IRPF A R$ 50.000 R$ 17.746 R$ 32.254 50% R$ 16.127 R$ 16.127 35,49% B R$ 20.000 R$ 5.546 R$ 14.454 40% R$ 5.782 R$ 8.672 27,73% C R$ 10.000 R$ 2.046 R$ 7.954 20% R$ 1.591 R$ 6.363 20,46% D R$ 5.000 R$ 651 R$ 4.394 10% R$ 435 R$ 3.914 13,02% E R$ 3.800 R$ 327 R$ 3.473 8% R$ 278 R$ 3.196 8,60% F R$ 3.000 R$ 156 R$ 2.844 5% R$ 142 R$ 2.701 5,21% G R$ 2.000 R$ 33 R$ 1.967 4% R$ 79 R$ 1.888 1,63% H R$ 1.566 R$ – R$ 1.566 3% R$ 47 R$ 1.519 0,00% Constata-se que a aplicação da tabela progressiva supramencionada enseja alíquotas médias reais finais crescentes à medida que a renda do contribuinte aumenta, realizando-se, dessa forma, a progressividade do imposto, na medida em que é tributado mais fortemente aquele que possui maiores possibilidades contributivas. Cumpre destacar, entretanto, que a adoção da extrafiscalidade na vertente da receita pública como instrumento para reduzir desigualdades tem custo administrativo e risco elevado para a Administração Tributária, haja vista que o incentivo para evitar a incidência do tributo por aquele contribuinte potencialmente atingido pela elevada carga tributária é diretamente proporcional ao grau de progressividade do sistema, isto é, quanto maior a progressividade maior será o ganho esperado em se evitar a incidência, o que pode ocorrer de forma lícita ou ilícita. Essa é a razão pela qual alguns estudos apontam que, em face da deficiente estrutura na administração dos tributos em países em desenvolvimento, bem como pela redução dos controles de capitais em âmbito internacional aliado às isenções fiscais para os rendimentos decorrentes de investimentos em instrumentos financeiros públicos e privados no mercado de capitais622 de diversos países, dependendo das circunstâncias, deve-se priorizar a adoção de tributos mais neutros, como os impostos sobre o consumo, com alíquotas uniformes e sem exceções de incidência, e que apresentem menor grau de incentivo à evasão e elisão aliado a uma eficaz política de redistribuição de renda e de riqueza quase que exclusivamente pela vertente da despesa pública. Em relação a essa política nos países em desenvolvimento Eric Zolt e Richard Bird concluíram em importante estudo que:623 622 ZOLT, Eric M. e BIRD, Richard M. Redistribution via Taxation: The limited Role of the Personal Income Tax in Developing Countries. Research paper nº 05-22, disponível no sitio http:// sstn.com/abstract=804704, acesso em 19/01/2009, p.38-39: Apontam os autores que um sistema progressivo de imposto de renda da pessoa física afeta mais fortemente o comportamento dos agentes econômicos em um país em desenvolvimento do que em um país desenvolvido. A influência sobre a escolha entre um emprego formal ou informal bem como a decisão entre operar empresarialmente na economia formal ou informal é inequivocamente maior em uma economia ainda em desenvolvimento. Destacam, ainda, que: “high personal income tax rates may influence decisions of where to locate capital investment. Reductions in capital controls and improvements in financial technology have made it easier than ever before for individuals and firms to invest funds outside their home countries . Changes in tax laws, particularly the change in U.S. tax law providing for no U.S. taxation of portfolio interest earned by nonresidents, have also made it more attractive for the wealthy in developing countries to invest in U.S. government and corporate securities. Given the apparently growing ability of high –income individuals in some countries to hide capital abroad (in untaxed U.S. deposits or other fiscal havens, for example), it become increasingly difficult to have an effective progressive tax system in developing countries without FGV DIREITO RIO 270 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I After reviewing the past fifty years of fiscal futility in achieving distributional goals through income tax progressivity, many development specialists have argued that developing countries concerned with equity and growth are better off to collect as much revenue as they can through as nondistorting a tax system as possible and then seek to reduce inequality or poverty through expenditure side. Given the tax mix dominant in most developing countries, this approach in part calls for devoting resources to improve compliance under consumption taxes rather than trying to improve coverage and compliance for the personal income tax. More importantly, it also calls for good spending. Just as the end of production is consumption, so the end of taxation is expenditures. (grifo nosso) Portanto, após a decisão preliminar quanto à necessidade de políticas públicas para reduzir o nível de concentração de renda e de riqueza, visando à diminuição das desigualdades sociais, por meio de uma política fiscal ativa, impõe-se determinar em cada país, considerando todas as circunstâncias relevantes624, qual é a melhor ponderação e o modelo redistributivo desejado, seja pela via da receita, por meio da realização das despesas, ou, ainda, pela adoção de um mix nas duas vertentes. Importante destacar também, ainda que constatada a necessidade política ou mesmo a inevitabilidade ética da adoção de tais instrumentos visando à redistribuição de renda e de riqueza pela via da receita, a imprescindibilidade do estabelecimento de limites para essas políticas tributárias extrafiscais visando a reduzir as desigualdades sociais, haja vista a inafastável restrição imposta pela capacidade contributiva do cidadão, núcleo essencial para além do qual as exações tributárias perdem a sua legitimidade no Estado Democrático de Direito, razão pela qual a própria Constituição, no seu artigo 150, IV, determina a vedação da utilização de tributos com o efeito de confisco, matéria a ser examinada posteriomente. Nesse sentido também estabelece a CR-88 em seu artigo 150, §1º, verbis: § 1º – Sempre que possível, os impostos625 terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Diversamente dos exemplos acima apresentados, de acordo com a legislação brasileira, desde 2009, o imposto de renda das pessoas físicas possui apenas quatro alíquotas distintas – 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%– havendo, ainda, uma faixa de isenção no IRPF, sendo, para o exercício de 2011, correspondente ao montante de R$ 1.566,61. As alíquotas no exercício de 2011 foram as mesmas, alterando-se apenas os valores das deduções permitidas, subjecting income from these investments to some level of taxation and, as all countries know, doing so is far from easy. (…) An aspect of inequality that has been little explored is its possible relation to the quality of the tax administration. A recent U.S. study argues that inequality and tax evasion are positively related for at least two reasons. First, because an increasing fraction of higher incomes normally accrues in forms that are less observable than wages, there is more opportunity for the rich to evade and remain undetected. ‘Richer means harder to tax’, both because it is difficult to tax capital income effectively and because those who receive high labor incomes can often control the timing and form of their compensation. Second, because the rich normally perceive a growing gap between what they pay in taxes and what they get in benefits from the public sector, the opportunity cost of compliance also rises with income. Such problem are even greater in developing countries than they are in developed ones.” 623 ZOLT, Eric M. e BIRD. Op cit. p. 46-47 624 ZOLT, Eric M. e BIRD. Op cit. p. 40. “In at least some developing countries, the attempt to implement a progressive, comprehensive global income tax was probably not the best strategy in the first place. Substancial enforcement, compliance, and efficiency costs arise from progressive income taxes – and it may be that such costs are greater when the level of inequality is higher. When, as in many developing countries, progressive income tax systems are accompanied by high levels of tax evasion and (often well justified) low levels of satisfaction with governments use of tax revenues, the net distributional benefits are unlikely to be great. Such countries thus have the worst of both worlds – the costs of a progressive income tax system with few, if any, of the benefits.” 625 Muito se discute na doutrina tributária brasileira se o comando constitucional, apesar de sua literalidade, se estende – ou não - a todos os tributos, gênero do qual o imposto é apenas mais uma espécie. FGV DIREITO RIO 271 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I As mencionadas deduções, pertinentes a cada faixa de renda (nos valores de R$ 117,49; R$ 293,58; R$ 528,37, e R$ 723,95, no exercício de 2011) apenas facilitam o cálculo do imposto, o qual, ao invés de ser operacionalizado por meio da aplicação das diversas alíquotas sobre cada faixa de rendimento, conforme acima realizado no último exemplo, permite a multiplicação do total da renda pela alíquota final incidente (aquela correspondente ao último real auferido). Após a multiplicação da alíquota pela renda auferida deduz-se o montante permitido pela legislação, produzindo-se, entretanto, o mesmo resultado. Seguindo a tabela editada pela Lei nº 11.482, de 11 de maio de 2007, com a sua redação conferida pela Lei nº 12.469/2011, fruto da conversão da Medida Provisória nº 528/2011, para o exercício de 2011 e para as mesmas pessoas dos exemplos acima, teríamos: (a) (b) (c) = (%*(b))dedução (d) = (b)-(c) (e) Indivíduo Renda mensal Imposto de Renda devido no mês Renda disponível A R$ 50.000 R$ 13.026 B R$ 20.000 C (f) = (d)*(e) (g) = (f)/ (b) (h) = (c)/ (b) Índice de poupança Poupança Renda disponível para Consumo Alíquota média real do IRPF R$ 36.974 50% R$ 18.487 R$ 18.487 26,05% R$ 4.776 R$ 15.224 40% R$ 6.090 R$ 9.134 23,88% R$ 10.000 R$ 2.026 R$ 7.974 20% R$ 1.595 R$ 6.379 20,26% D R$ 5.000 R$ 651 R$ 4.349 10% R$ 435 R$ 3.914 13,02% E R$ 3.800 R$ 327 R$ 3.473 8% R$ 278 R$ 3.196 8,60% F R$ 3.000 R$ 156 R$ 2.844 5% R$ 142 R$ 2.701 5,21% G R$ 2.000 R$ 33 R$ 1.967 4% R$ 79 R$ 1.889 1,63% H R$ 1.566 R$ – R$ 1.566 3% R$ 47 R$ 1.519 0,00% Constata-se, portanto, uma queda no grau de progressividade a partir da faixa de rendimento de R$ 10.000,00 (dez mil reais) mensais se comparado o resultado com aquele obtido no exemplo anterior, haja vista não serem utilizadas as alíquotas superiores para as faixas de rendas acima de R$ 6.000,00 anteriormente aplicadas (28%, 32%, 38% e 42%, respectivamente). De fato, a redução da intensidade da progressividade no Brasil ocorreu nos anos 90 do século XX, como reflexo do movimento iniciado nos Estados Unidos após 1986, sob a liderança do governo liberal de Reagan, conforme salientado por Reuven Avi-Yonah 626: 626 AVI-YONAH, Reuven S. Why Tax the Rich? Efficiency, Equity, and Progressive Taxation: Does Atlas Shrug? The Economic Consequences of taxing the Rich (Joel Slemrod ed., 2001), 111 Yale L.J. 1391 (2002). FGV DIREITO RIO 272 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Statutory marginal tax rates are important for their symbolic significance and incentive effects, but from an economic perspective, it is just as important to determine the effective tax rate facing the rich. The effective rate is the rate the rich pay after taking into account lower rates for lower brackets of income and the available deductions, credits, and other methods of narrowing the tax base (i.e., reducing the taxable income on which the marginal rate is imposed). Brownlee helpfully provides estimates of the historical effective rates for the richest one percent of households as well. He indicates that effective rates during the high marginal rate years of World War I reached 15.8%, and that during the high marginal rate years of World War II they reached an astonishing 58.6% in 1944. n9 After the war, while the top marginal rate remained extremely high at 91%, the effective rate for the rich declined to 32.2% in 1952, then 24.6% in 1963, rising to 28.9% when Ronald Reagan took office and declining to 22.1% following the 1986 tax reductions. n10 More recent estimates for the Clinton years are not yet available. The conclusion drawn by Brownlee is that the rich can be taxed at very high effective rates during times of national emergency, but that at other times their political clout ensures that effective rates are much lower than marginal rates. It turns out that when Ayn Rand was writing Atlas Shrugged, the actual burden borne by the “prime movers” was not so high after all; by the late 1940s the rich had “largely succeeded in removing the redistributional fangs from the movement for progressive taxation.” n11 14.1.3 A tributação sobre o Patrimônio A incidência sobre o patrimônio, por sua vez, que para muitos é o verdadeiro termômetro para medir a capacidade de comandar recursos, o que lhe conferiria o status de substrato econômico ideal para a tributação com fins de reduzir desigualdades. Entretanto, a sua adoção apresenta obstáculos de variadas naturezas, destacando-se, inicialmente, a dificuldade administrativa de identificar a sua composição, em especial em uma economia internacional integrada e caracterizada pela relevância crescente dos intangíveis e bens de alta portabilidade ou mobilidade, o que redundaria em ônus exclusivo para aqueles contribuintes com capital imobilizado apenas em uma jurisdição fiscal. Ademais, inexistente uma transação real precificada no mercado, isto é, não havendo uma alienação onerosa, a valoração do patrimônio é muito dificultada, tornando-se necessária a adoção de critérios muitas vezes subjetivos para determinar a base de cálculo de algo que não está sendo transacionado nem ofertado de fato. Ainda, importante mencionar, também, o problema da liquidez, tendo em vista que, independentemente do substrato econômico de incidência, todos os tributos são pagos da renda disponível não imobilizada, e nem sempre o proprietário possui recursos financeiros líquidos para efetivar o pagamento, isto é, a falta de cash pode impelir e obrigar a alienação de pelo menos de parte do capital imobilizado para fazer face à exação. FGV DIREITO RIO 273 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Além desses problemas de natureza operacional e financeira em sentido estrito, importante ressaltar que os argumentos favoráveis e contrários à utilização da tributação sobre patrimônio como instrumento para reduzir desigualdades são muito semelhantes àqueles pertinentes ao uso da incidência sobre a renda, conforme destacam Karl Case e Ray Fair: Data on the distribution of wealth are not as readily available as data on the distribution of income (…) Clearly, the distribution of wealth is significantly more unequal than the distribution of income. Part of the reason is that wealth is passed from generation to generation and thus accumulates. Large fortunes also accumulate when small businesses become successful large business. Some argue that an unequal distribution of wealth is the natural and inevitable consequence of risk taking in a market economy: It provides the incentive structure necessary to motivate entrepreneurs and investors. Others believe that too much inequality can undermine democracy and lead to social conflict. Many of the arguments for and against income redistribution, (…), apply equally well to wealth redistribution. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a exigência ou possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas627 em diversas hipóteses no que se refere aos impostos incidentes sobre o patrimônio, como, por exemplo, no artigo 153, §4º, inciso I, relativamente ao Imposto Territorial Rural (ITR); no artigo 155, §6º, em relação ao imposto sobre a propriedade de veículo automotor (IPVA) e no artigo 156, §1º, alterado pela Emenda Constitucional nº 29/2000, e no artigo 182, §4º, II, no que se refere ao Imposto sobre a propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Não há disciplina expressa quanto ao imposto estadual incidente sobre a transmissão causa mortis e doação (ITCMD ou ITD), nem em relação ao imposto municipal incidente sobre a transmissão onerosa de bens imóveis entre vivos (ITBI). A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal sempre foi no sentido da impossibilidade de utilização dos impostos incidentes sobre o patrimônio com fins extrafiscais, salvo expressa previsão constitucional. Nesse sentido aponta a Súmula nº 656 do STF: É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão “inter vivos” de bens imóveis – ITBI com base no valor venal do imóvel. Nessa mesma linha dispõe a Súmula nº 668 do STF: 627 A expressão alíquota diferenciada aqui esta sendo utilizada como gênero, compreendendo tanto a progressividade, que significa aumentar a alíquota na medida em que a base de cálculo acresce, como a alíquota diferenciada em sentido estrito, incluindo as diversas situações em que as alíquotas podem ser alteradas para alcançar algum objetivo de política tributária específica, como tributar de forma diversa os imóveis localizados em regiões ou localizações distintas ou estabelecer incidência diferenciada se o automóvel for utilizado em determinado segmento de atividade ou possuir características peculiares, como os vários tipos de combustíveis disponíveis. FGV DIREITO RIO 274 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana. Saliente-se, quanto à parte final desse enunciado, que o poder constituinte originário já havia previsto a possibilidade do IPTU progressivo para o alcance da função social da propriedade, nos termos do citado artigo 182, §4º, II. Nessa toada, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 586693, julgou constitucional, a Lei municipal 13.250/2001, de São Paulo. A norma instituiu a cobrança do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), com base no valor venal do imóvel (valor de venda de um bem que leva em consideração a metragem, a localização, a destinação e o tipo de imóvel). Em que pese o exposto, parece que a jurisprudência tradicional do STF acima aludida pode ser alterada, haja vista o desenrolar da votação no Recurso Extraordinário 562045628, que diz respeito ao ITCMD, para o qual não há autorização constitucional específica no sentido da possibilidade da adoção da progressividade, mas os votos até agora proferidos consideraram possível a aplicação de alíquotas mais gravosas de acordo como montante transmitido a título gratuito e causa mortis. 14.2 A EXTRAFISCALIDADE COMO INSTRUMENTO PARA ESTIMULAR OU DESESTIMULAR COMPORTAMENTOS E AFETAR A ORDEM ECONÔMICA O intervencionismo estatal na e sobre a ordem econômica pode se realizar de forma direta ou indireta. A criação de empresas estatais, sociedades de economia mista e empresas públicas (artigo 37, XIX e XX, da CR-88), para a exploração de atividade econômica, as quais podem estar submetidas ao regime de monopólio (artigo 177 da CR-88) ou não (artigo 173 da CR-88), consubstanciam a atuação do denominado Estado Empresário de forma direta na economia, matéria que foge ao escopo do curso. Ainda, além da prestação de serviços públicos (artigo 175 da CR-88), cuja titularidade é do poder público, realizados diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, o Estado pode intervir indiretamente no domínio econômico tanto pela regulação629, matéria que também está fora do âmbito desta disciplina, como por meio da extrafiscalidade, isto é, utilizando-se de determinados ingressos especiais de natureza não tributária ou mesmo por meio de tributos que são instituídos não apenas para arrecadar, mas, também, ou preponderantemente, como instrumentos de regulação e de implementação de política econômica e de incentivo ao comportamento das pessoas (físicas e jurídicas), em especial no que se refere ao perfil e a intensidade das decisões de consumir, investir e poupar. 628 Pedido de vista do ministro Carlos Ayres Britto interrompeu o julgamento pelo Plenário do STF do referido RE, e de outros dez processos versando sobre o mesmo assunto, nos quais se discute a hipótese da progressividade da alíquota do ITCMD, para o qual não há até o momento previsão constitucional expressa da possibilidade de adoção da progressividade. O governo do Rio Grande do Sul contesta a decisão do Tribunal de Justiça daquele estado (TJ-RS), que declarou inconstitucional a progressividade da alíquota do ITCD, prevista no artigo 18 da Lei gaúcha nº 8.821/89 (com alíquotas variáveis de 1% até 8%), e determinou a aplicação da alíquota de 1% aos bens envolvidos no espólio de Emília Lopes de Leon, que figura no pólo passivo do Recurso Especial em causa. Conforme noticiado no sítio do STF ( http://www.stf. jus.br ), acesso em 22/01/2009, “No momento em que ocorreu o pedido de vista, quatro ministros haviam admitido a progressividade e, portanto, se pronunciaram pelo provimento do RE, enquanto um, o ministro Ricardo Lewandowski, apresentou voto pelo não-provimento”. Caso o tribunal mantenha o entendimento majoritário até o momento ocorrerá uma mudança radical da jurisprudência até agora seguida pelo STF sobre o assunto. 629 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004. FGV DIREITO RIO 275 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I O quadro abaixo sumariza as lições de Eros Grau630 acerca das múltiplas faces da atuação estatal, as quais podem ocorrer na ordem econômica, quando o Estado atua em regime de monopólio de determinada atividade ou participa diretamente de um segmento econômico por meio de suas estatais, ou quando intervém sobre o domínio econômico, nos termos sintetizados por Mario Gomes Shapiro631, “ao buscar influir nos processos de mercado, todavia, sem desempenhar diretamente um papel de agente econômico”, o que pode ocorrer pela regulação direta da atividade – Estado normatizador e regulador – ou pela direção indireta de determinado segmento. A direção indireta pode ser realizada por intermédio: (1) de estímulos/desestímulos a determinados comportamentos que influenciam as decisões de consumir, investir e poupar, todas elas políticas de indução que podem ser exercidas, conforme já salientado, por meio (1.1) de exações especiais autônomas, qualificadas ou não como tributos dependendo do regime constitucional e da doutrina, ou (1.2) de impostos de caráter extrafiscal; ou, ainda, (2) de comandos disciplinadores da atividade privada, o que insere elementos de poder de polícia632 na seara do poder de tributar, como os regimes especiais de tributação e de recolhimento de impostos (ex: a sistemática de retenção na fonte do IR ou de substituição tributária para frente do ICMS, os quais objetivam inviabilizar a possibilidade de redução, pela evasão ou elisão, do pagamento dos impostos). 630 GRAU. Op. cit. 631 SCHAPIRO, Mario Gomes. Estado, direito e economia no contexto desenvolvimentista: breves considerações sobre três experiências – governo Vargas, Plano de Metas e II PND. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coordenador). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 83-84. O autor apresenta quadro sintético semelhante, sem diferenciar, entretanto, a indução de comportamento ou da atuação dos particulares por meio de tributos ou de exações de natureza não tributária. 632 Ver conceito legal do poder de polícia no artigo 78 do Código Tributário Nacional a ensejar a instituição de taxa. FGV DIREITO RIO 276 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Atuação estatal na Ordem Econômica e Financeira Atuação no domínio econômico Absorção – Estado guarda para si a titularidade de determinadas atividades Estado atua com exclusividade em determinado setor –monopoliza a atividade (artigo 177 da CR-88) Participação direta na atividade econômica em sentido lato Estado atua diretamente por meio das empresas públicas e sociedades de economia mista em segmento econômico específico ou, ainda, prestando serviços públicos, quando o mesmo é qualificado como subespécie do gênero atividade econômica (artigo 173 c/c 175 da CR-88) Intervenção sobre o domínio econômico Regulação Estado dirige a atividade econômica diretamente, atuando como agente normativo e regulador das condutas dos particulares (artigo 174 da CR-88) Indução ou disciplina do comportamento dos particulares visando restringir e limitar a liberdade, direito ou interesse, ou induzir determinado comportamento (consumo, investimento e poupança) tendo em vista o interesse público: (1) através da instituição de exações especiais, categoria autônoma de ingressos públicos não qualificados como tributos. Modelo não utilizado no Brasil mas existente, por exemplo, na Alemanha e na Itália. (2) por meio: (2.1) da instituição de tributos específicos (art. 149 e 177, §4º, da CR-88), ou (2.2) da utilização de impostos de caráter extrafiscal (ex: arts. 150, §1º, 153, §1º, e §3º, I, 155, §2º, III da CR88, etc.), ou (2.3) da adoção de regimes tributários especiais como a substituição tributária ou a retenção na fonte visando reduzir a possibilidade de evasão e elisão fiscal. No Brasil, desde a Emenda Constitucional nº 1/69, o que foi ratificado pela Constituição de 1988, as exações especificamente voltadas para intervir na ordem econômica são enquadradas e qualificadas como tributos (vide artigo 149 c/c 177, §4º, da CR-88), ao contrário do que ocorre em diversos países, como a Itália e a Alemanha, conforme ensina Ricardo Lobo Torres633: Na Alemanha as contribuições econômicas ou ingressos especiais (Sonderabgaben) não se confundem com os tributos (impostos, taxas ou contribuições – Steuern, Gebühren, Beiträge), eis que são cobrados com base no dispositivo constitucional que autoriza a intervenção indireta na economia. As contribuições especiais não são exigidas com fundamento nos dispositivos constitucionais que distribuem a competência tributária (art. 105 da GG), mas com apoio na competência concorrente para legislar sobre ‘Direito Econômico (minérios, indústria, energia, artesanato, pequena indústria, comércio, regime bancário, bolsa e 633 TORRES, Ricardo Lobo. A política industrial da Era Vargas e a Constituição de 1988. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coordenador). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 262-263. FGV DIREITO RIO 277 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I seguros de direito privado)’ prevista no art. 74, item XI, da Constituição alemã, tudo de conformidade com a distinção entre competência de legislar sobre tributos (Steuergesetzgegungskompetenz) e competência legislativa genérica (Gesetzgebungskompeten). Os adversários dessa interpretação vêm-na acusando de criar uma Constituição Tributária apócrifa (eine aporkryphe Steuerverfassung). É considerado de natureza excepcional o Sonderabgaben, e, por isso, necessita sempre de justificativa”. Para o eminente autor, transformar as contribuições de intervenção no domínio econômico em tributos ou qualifica-las com tal, significa dar à intervenção estatal um caráter de permanência e essencialidade que não possui no Estado Fiscal, mas que no Brasil foi uma opção em torno da maior estatização da economia e, portanto, um enfraquecimento do Estado Fiscal e da liberdade. Considerando que essas exações foram situadas e qualificadas pelo constituinte originário brasileiro de 1988 como receitas tributárias, essas contribuições interventivas no domínio econômico (CIDE) se submetem ao mesmo regime jurídico dos tributos, o que pode significar sob determinados aspectos maior segurança ao sujeito passivo da obrigação legal constitucionalmente disciplinada e limitada. Além de regular o comportamento dos particulares por meio dessas contribuições tributárias específicas de intervenção na ordem econômica (CIDE), também os impostos podem ser utilizados como instrumentos para disciplinar634 a atividade privada e estimular e desestimular as decisões e as ações dos particulares visando implementar determinada política econômica, o que se efetiva por intermédio da elevação da carga tributária em situações específicas ou através da concessão de incentivos e benefícios fiscais (vide art. 165, §6º c/c 174 da CR-88), os quais podem estar direta ou indiretamente vinculados à tributação, conforme será examinado a seguir. De fato, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal635 fixou-se no sentido de ser idônea a utilização do “caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia”, conforme voto da Relatora Ministra Ellen Gracie na ADI n. 1.276. Antes, entretanto, importante repisar que a adoção dessas políticas indutivas eleva sobremaneira a complexidade da tributação, criando múltiplas exceções e tratamentos diferenciados que suscitam novas alterações para atender outras particularidades decorrentes das previsões anteriormente expedidas, criando uma verdadeira colcha de retalhos e um ciclo vicioso, o que amplia as brechas (loopholes) que facilitam a evasão e a elisão fiscal, dificultando de forma acentuada a administração dos tributos, o que demanda muito investimento na Administração Tributária para que esta obtenha receita, objetivo primário quando da criação dos tributos. 634 TORRES. Op. Cit. p. 257. “Os tributos, ao lado de sua função de fornecer recursos para as despesas essenciais do Estado, exercem o papel de agentes do intervencionismo estatal na economia, de instrumentos de política econômica: é o intervencionismo fiscal de que fala Neumark. Os tributos já não se apresentam apenas como fruto do poder de tributar, mas simultaneamente como emanação do poder de polícia, ou melhor, o poder de tributar absorve o poder de polícia na tarefa de regular a economia; só heuristicamente se pode falar de um poder tributário ao lado de um poder de polícia, pois o tributo juridicamente emana do poder tributário.” 635 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 1276/ DF, Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 18.06.2010. Decisão unânime. FGV DIREITO RIO 278 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A tributação sobre o consumo636 de bens e serviços é amplamente utilizada com objetivos extrafiscais, seja por meio da ampliação ou da redução da carga tributária. O incremento das alíquotas dos impostos incidentes637 sobre os bens e serviços importados, por exemplo, pode reduzir a demanda por aqueles estrangeiros e ampliar o mercado interno para os similares nacionais, o que estimula a indústria e a produção local. No mesmo sentido, pode ser elevada a imposição sobre determinados produtos que o poder público deseja desestimular o consumo, como ocorre, em geral, com o cigarro e a bebida alcoólica, produtos que aumentam de forma exponencial a possibilidade de doenças graves e os acidentes que tanto prejudicam as pessoas atingidas diretamente e oneram sobremaneira o sistema público de saúde, o que aumenta drasticamente as despesas do setor público, que devem ser financiadas de alguma forma, a gasolina – combustível altamente poluente o qual tem como origem o petróleo, produto fóssil não renovável, e etc. Por outro lado, a redução desses impostos usualmente denominados de indiretos, haja vista que o encargo financeiro do tributo não recai diretamente sobre aquele designado em lei como o sujeito passivo da obrigação tributária (comerciante, industrial atacadista e etc.) e sim sobre o consumidor final, o qual não possui relação jurídica tributária com o Estado, é muito utilizada como instrumento de política econômica para estimular a economia e elevar a demanda agregada em fases recessivas ou de baixo crescimento, o que seria preferível se comparado ao incremento de gastos no caso brasileiro atual, de acordo com a tese do economista Rubens Penha Cysne638: São várias as razões pelas quais, no Brasil, o estímulo à demanda através da elevação da renda pessoal líquida obtida por meio da redução de impostos indiretos pode ser preferível à elevação de gastos. Primeiro, reduções de impostos indiretos levam diretamente à queda dos preços finais ao consumidor, o que pode amenizar o concomitante impacto altista de fomento à demanda (decorrente da majoração da renda disponível do setor privado). Segundo, impostos indiretos menores compensariam também as recentes pressões altistas do câmbio sobre os preços. No jargão macroeconômico isto equivaleria a dizer que choques de oferta adversos (aumento do preço do dólar) combatem-se com choques de oferta positivos (redução de impostos). O que os empresários gastam a mais com insumos importados, ou com a elevação das demandas salariais daí decorrentes, compensam com menores transferências ao governo, sem necessidade de maiores elevações de preços. Terceiro, a carga tributária nacional tem aumentado sobremaneira desde os anos 1980 (de 26% para algo em torno de 35% do PIB), o que tem ocorrido a taxas superiores àquelas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A se manter a trajetória atual, em breve o Brasil estará alcançando os 36,5% da OCDE. O problema com estes números 636 O principal instrumento utilizado nos impostos incidentes sobre o consumo para alcançar objetivos de natureza extrafiscal é a seletividade, a qual se efetiva por meio da adoção de alíquotas diferenciadas para os diversos bens e serviços de acordo com a essencialidade dos mesmos – alíquotas menores para aqueles essenciais e maiores para os supérfulos ou não essenciais (vide artigo 153, §3º, I da CR-88, no que se refere à obrigatoriedade de aplicação do princípio ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), imposto de competência privativa da União, e o artigo 155, §2º, III da CR-88, quanto à facultatividade para o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Comunicação e de Transporte Interestadual e Intermunicipal – ICMS, imposto de competência privativa dos Estados e do Distrito Federal). Apesar da citada facultatividade, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, considerando a essencialidade da energia elétrica, na Argüição de Inconstitucionalidade nº 2008.017.00021, declarou a inconstitucionalidade do art. 14, VI, “b”, da Lei nº 2.657/96, que institui o ICMS no Estado do Rio de Janeiro, com a nova redação dada pela lei 4.683/2005, que fixava em 25% ( vinte e cinco por cento ) a alíquota máxima de ICMS sobre operações com energia elétrica. O Tribunal considerou que a lei ordinária viola os princípios da seletividade e da essencialidade assegurados no art. 155, § 2º, da Carta Magna de 1988, devendo-se aplicar, portanto, a alíquota geral de 18% (dezoito por cento). Saliente-se que os benefícios fiscais também são amplamente adotados nos impostos incidentes sobre o consumo com objetivos outros que não exclusivamente fomentar e incrementar a arrecadação futura, como, por exemplo, facilitar o consumo de determinados bens e serviços essenciais ou obstar a aquisição daqueles considerados prejudiciais ou se visa desestimular. 637 Importante destacar a necessária adequação desses aumentos na carga tributária dos bens e serviços de origem estrangeira com os condicionamentos fixados nos tratados firmados em âmbito local, regional ou internacional, multilaterais ou não, como é o caso, por exemplo, dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), que sucederam aqueles do GATT (General Agreement on Trade and Tariffs), do tratado que disciplina o Mercosul, os quais limitam ou estabelecem parâmetros para a política tributária nacional unilateral, matéria a ser examinada na parte final do semestre. 638 CYSNE, Rubens Penha. Reação à Crise. Conjuntura Econômica. Jan 2009. Vol. 63. nº 01. Fundação Getúlio Vargas. p. 18-19. FGV DIREITO RIO 279 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I não é apenas sua magnitude. Mas o fato de não se observarem, no Brasil, serviços públicos com a qualidade e amplitude daqueles providos, na média, pelos 30 países da OCDE (que engloba Estados Unidos, Alemanha, França, e vários outras economias de liderança tecnológica mundial). Quarto, porque no Brasil o pagamento de salários das três esferas da administração pública, somado à compra de bens e serviços a empresas, apresenta valores injustificadamente superiores àqueles de outras economias (...) Cumpre salientar que países com elevada dívida pública e alto volume de despesas de baixa mutabilidade no curto prazo, como é o caso brasileiro, possuem inevitáveis restrições quanto à redução de impostos de forma ampla e abrangente em situações de crise econômica. Por outro lado, a redução pontual e discriminada impostos deve ser combatida se violadora do princípio da igualdade. No sentido inadequação da redução do IPI incidente sobre veículos para o combate à crise no início de 2009 assevera Gustavo Loyola639: “(...) Aliás, no campo fiscal, um dos equívocos freqüentes é a redução temporária de impostos, como ocorreu com o IPI incidente sobre a produção de veículos. Esse tipo de medida, além de discriminatória, não tem como condão aumentar a demanda, mas apenas antecipa o consumo que seja de qualquer modo realizado no futuro. Havendo espaço fiscal, o correto seria, no Brasil, buscar-se uma menor carga tributária, por meio de quedas de tributos que beneficiam a economia como um todo, e não apenas setores eleitos pelo poder do príncipe”. Considerando a possibilidade de utilização desses impostos e de outros tributos para a realização de política econômica, bem como para estimular e desestimular comportamentos dos agentes econômicos, a Constituição de 1988 estabelece regime jurídico especial para várias espécies tributárias, excepcionando, por exemplo, a aplicação do princípio da legalidade, no que se refere à exigência de lei em caráter formal para aumentar a alíquota de determinados impostos, a teor do artigo 153, §1º, ou ainda, ao ressalvar a aplicabilidade do princípio da anterioridade para determinadas exações, nos termos do artigo 150, §1º, ou, ainda, ao prever a seletividade, através da qual os bens não essenciais são tributados mais gravosamente (artigo 153, e §3º, I, e 155, §2º, III da CR-88) e etc. Também a concessão de benefícios e incentivos fiscais, isto é, a desoneração de determinados bens e serviços, por meio da redução das alíquotas, criação de isenções, de reduções de base de cálculo, de créditos presumidos e etc., são amplamente utilizadas pelo Estado como instrumento para modificar e induzir o comportamento dos particulares e das empresas em geral. Pode ser reduzida a carga tributária de uma mercadoria específica objetivando aumentar ou facilitar o seu consumo por questões de ordem sanitária, de 639 LOYOLA, Gustavo. Resposta à Crise não pode ser recuo. Jornal Valor. Segunda feira, 30 de março de 2009.p.A13. FGV DIREITO RIO 280 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I saúde pública ou de planejamento familiar, como é o caso, por exemplo, dos preservativos e etc. Salvo a concessão de subsídios de natureza financeira, vinculados à tributação, a possibilidade de utilização de incentivos tributários nos impostos incidentes sobre o consumo para afetar decisões sobre investimentos dos agentes econômicos pressupõe que na sua base de incidência sejam também incluídos os bens de capital, o que de certa forma desnatura a exação como um verdadeiro consumption tax. A maioria dos países do mundo que adota o citado Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA ou VAT) exclui da respectiva base de tributação os bens destinados a compor o ativo fixo imobilizado do investidor, ou seja, não há fato gerador e cobrança de imposto na saída da máquina ou do equipamento destinada a ampliar a capacidade produtiva do adquirente, posto estar essa hipótese fora do campo de incidência. Dessa forma, esses impostos formulados para incidência sobre o consumo não são utilizados para realizar política tributária visando incentivar ou desestimular investimentos. No Brasil, entretanto, ao contrário da maioria dos países que adotam a tributação exclusivamente sobre esse substrato econômico, as aquisições para o ativo imobilizado estão inseridas no campo de incidência de diversos impostos e contribuições, como é o caso do IPI e do ICMS, além da PIS e da COFINS, razão pela qual esses tributos são amplamente utilizados com fins extrafiscais, tanto por meio de benefícios de natureza tributária como através de incentivos financeiros que se vinculam à tributação. Assim, é possível no Brasil incentivar certos investimentos por meio de impostos usualmente formulados para incidir sobre o consumo, com vistas, por exemplo, a facilitar640 a aquisição de bens de capital para aumentar a capacidade produtiva de determinado setor da economia, como a produção de biocombustíveis, que são renováveis e não são poluentes. No que se refere às contribuições sociais para o financiamento da seguridade social devida pelo empregador641, o §9º do artigo 195 da CR-88, com a sua redação conferida pela Emenda Constitucional nº 47/2005642, estabelece a possibilidade de adoção de alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. As contribuições dos servidores públicos, por sua vez, são disciplinadas nos artigos 39 e 40 da CR-88, sem a previsão da adoção de alíquotas diferenciadas ou de progressividade. Nesse sentido, por não se submeterem às regras gerais da seguridade social, salvo nas hipóteses e situações previstas na Constituição, o STF, no julgamento da medida cautelar na ADI 2010 MC, decidiu no sentido da impossibilidade de utilização da progressividade nas contribuições para o financiamento da seguridade social devida pelos servidores públicos. Dispõe a parte relevante do acórdão643 na ação direta: 640 Em sentido contrário, pode o poder público desejar desestimular a ampla automação em determinado setor econômico, objetivando resguardar a utilização de mão de obra ao invés de máquinas. 641 A decisão na ADI 2010 a seguir explicitada afasta a possibilidade da progressividade em relação à contribuição dos empregados e em relação a parcela devida pelos servidores públicos no que se refere aos respectivos sistemas próprios de segurança social. 642 O §9º foi incluído ao artigo 195 pela EC nº 20/1998, prevendo-se apenas as alíquotas ou bases de cálculo diferencidas “em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão de obra”. A EC nº 47/2005 incluiu a possibilidade relativamente às hipóteses de “porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho”. 643 BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. ADI 2010 MC-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches. Julgamento em 30.09.1999. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus. br>. Acesso em 07.05.2010. Decisão por unanimidade de votos. FGV DIREITO RIO 281 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL – SERVIDORES EM ATIVIDADE – ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS: A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA SUPÕE EXPRESSA AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO JURÍDICO DA TESE. – Relevo jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode valer-se da progressividade na definição das alíquotas pertinentes à contribuição de seguridade social devida por servidores públicos em atividade. Tratando-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional – CF, art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição social devida pelo empregador) – inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição. Inaplicabilidade, aos servidores estatais, da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição, introduzida pela EC nº 20/98. A inovação do quadro normativo resultante da promulgação da EC nº 20/98 – que introduziu, na Carta Política, a regra consubstanciada no art. 195, § 9º (contribuição patronal) – parece tornar insuscetível de invocação o precedente firmado na ADI nº 790-DF (RTJ 147/921). A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Já a utilização do imposto incidente sobre a renda, da pessoa física (IRPF) ou da pessoa jurídica (IRPJ), como instrumento regulatório, tem como objetivo precípuo alterar as decisões quanto à modalidade e a intensidade dos investimentos e da poupança, e não propriamente incentivar ou desestimular diretamente o consumo de determinado bem ou serviço, o que pode ocorrer de maneira subsidiária. Nesse sentido destaca o professor Reuven Avi-Yonah644 quanto ao caráter regulatório e indutor de crescimento e desenvolvimento econômico do imposto de renda nos Estados Unidos: The income tax, and in particular the corporate income tax, had been seen as a potential regulatory tool from the beginning. President Taft, in proposing the corporate tax in 1909, had emphasized its regulatory potential: By adopting the tax, he said, the government can achieve “supervisory control of corporations which may pre– vent a further abuse of power.” [FN118] And in adopting and developing the reorganization provisions from 1918 onward, [FN119] the United States began a long series of measures designed to reward some forms of corporate activity and deter others. The heyday, however, of using the income tax as a regulatory tool was in the post World War II period. This was part of a general tendency to entrust regulatory powers to the state--the so-called “golden period of the nation state.” [FN120] In the 1960’s and 1970’s, in particular, hundreds of provisions were added to the Code to influence investment and spending de- 644 AVI-YONAH. Op. Cit. p.12-14. FGV DIREITO RIO 282 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I cisions by both individuals and corporations. The problem, of course, was that these regulatory provisions (“tax expenditures”) clashed with the other goals of taxation--they made the income tax less effective in both raising revenue and as a redistributive tool, since most of the tax expenditures were aimed at the rich. In addition, the tax expenditures made the Code far more complex. The result was a backlash led by academics like Stanley Surrey, who wanted to restore the tax law to its “pure” functions of revenue raising and redistribution and achieve regulatory aims directly by subsidies and direct regulation. [FN121] (…) Some private activities can best be regulated by consumption taxes--consumption activities. In fact, if the goal of the government is to deter consumption of certain items (for example, tobacco, alcohol or gasoline), excise taxes on these items are the most effective way of achieving this aim--far better than denying an income tax deduction. General consumption taxes are also widely used (although this use is more controversial) to impose extra taxes on some items (luxuries) and lower taxes on others (food and medicine). (It should be noted, however, that the aim of these provisions frequently is to abate regressivity, which can be achieved better by spending programs.) But most of the regulatory function of taxation relates not to consumption, but to investment and saving behavior. The biggest tax expenditures in all countries tend to be those that encourage individuals to invest for certain goals (for example, retirement, housing or education). [FN131] Other important ones are designed to encourage corporate investments (for example, accelerated depreciation, investment tax credits). [FN132] These types of regulation can be achieved only in the context of a system that taxes individual and corporate income, not consumption. A utilização de benefícios e incentivos fiscais do imposto incidente sobre a renda para alterar as decisões econômicas e induzir uma política de crescimento econômico tem sido amplamente utilizada em diversos países, inclusive o Brasil, o que evidentemente eleva sobremaneira a complexidade do sistema. Ademais, a concessão indiscriminada de benefícios fiscais é um mal que assola diversas nações, razão pela qual os especialistas em finanças públicas Stanley S. Surrey645 e Paul R. McDaniel, conforme já destacado na aula pertinente às receitas públicas, instituíram o conceito que se denominou de “tax expenditure”, ao equiparar o incentivo fiscal implementado pela via da receita ao gasto fiscal, isto é, passou a qualificar e registrar os benefícios fiscais (renúncia de receita) como despesas públicas, o que eleva o grau de transparência da política fiscal realizada com os recursos públicos. Nesse sentido, o artigo 165, § 6º, da CR-88 estabelece que o “projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”. Ressalte-se, no entanto, que se por um lado a Constituição estabelece o princípio da transparência das 645 SURREY, Stanley. Tax Expenditures. Cambridge: Harvard University Press, 1985. FGV DIREITO RIO 283 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I mencionadas renúncias de receitas visando a reduzir o uso indiscriminado dos benefícios fiscais, por outro lado institui o princípio do desenvolvimento regional e prestigia a redução das desigualdades, nos termos dos artigos 3º, III e 174, § 1º, razão pela qual parece adotar o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico das diferentes regiões do país (artigo 151, I, da CRFB) como hipótese excepcional e justificável para a adoção dos incentivos na seara tributária. No que se refere à tributação sobre o patrimônio, conforme já mencionado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas em diversas hipóteses como instrumento indutivo de política urbana, rural e de incentivo ou desestímulo ao comportamento dos agentes econômicos e das famílias, como, por exemplo, no artigo 153, §4º, inciso I, relativamente ao Imposto Territorial Rural (ITR); no artigo 155, §6º, em relação ao imposto sobre a propriedade de veículo automotor (IPVA) e no artigo 156, §1º, alterado pela Emenda Constitucional nº 29/2000, e no artigo 182, §4º, II, no que se refere ao Imposto sobre a propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Por fim, cumpre destacar que a doutrina nacional aponta a possibilidade de utilização de determinadas técnicas de tributação, que alteram a sistemática básica de operacionalização da exação, o que caracterizaria e qualificaria o uso extrafiscal do tributo, como mecanismo para disciplinar o comportamento dos agentes econômicos, restringindo a sua liberdade de atuação, de forma a evitar a possibilidade de redução intencional de impostos, por meios lícitos ou ilícitos (a denominada elisão e a evasão tributária). Nessa hipótese, são adotados determinados regimes tributários e procedimentos especiais de pagamento do imposto, como, por exemplo, a substituição tributária para frente do ICMS ou a retenção na fonte pagadora do imposto incidente sobre a renda daquele que recebe os pagamentos e aufere renda. Deve-se ressaltar a necessária razoabilidade e proporcionalidade desses instrumentos, tendo em vista que a facilidade administrativa e o objetivo de reduzir a possibilidade de evasão ou elisão não podem justificar eventual violação à capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, seja ele contribuinte ou o responsável, nem descaracterizar a essência e a natureza de incidência. O regime de substituição tributária do ICMS em relação às operações e prestações subseqüentes da cadeia de circulação de mercadorias e da prestação de serviços (substituição para frente) é um exemplo de utilização de medidas simplificadoras do procedimento fiscalizatório, que reduzem os custos da Administração Tributária, mas que restringem a liberdade e interesse do contribuinte, ao determinar o pagamento de imposto relativo a transações que ainda não ocorreram. Nessa hipótese, o industrial ou fabricante, além de pagar o imposto pertinente à própria operação que realiza (ICMS próprio), é o responsável pelo recolhimento do tributo incidente sobre toda a cadeia FGV DIREITO RIO 284 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I circulatória posterior de forma antecipada (ICMS retido ou ST), isto é, antes da ocorrência do fato econômico que fundamenta a exigência do imposto. A razão de ser dessa sistemática é, naturalmente, a adequação administrativa da exação, o que reduz os custos operacionais, haja vista a extrema dificuldade que teria o Poder Público se tivesse que fiscalizar o elevado número de contribuintes varejistas (bares, restaurantes, farmácias, ambulantes e etc.) para verificar a correção ou não do recolhimento do ICMS sobre as suas vendas. Dessa forma, ao determinar o pagamento antecipado na etapa inicial de circulação, é medida que disciplina o comportamento dos agentes econômicos por meio de regimes especiais de pagamento, os quais objetivam diminuir o volume de despesas com a máquina administrativa, tendo em vista reduzir a possibilidade de elisão e evasão tributária. 14.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto nesta aula conclui-se que as características e as razões de ser da exigência dos tributos modificam-se ao longo da história, pois, se o fundamento dos impostos na vigência do denominado patrimonialismo são as “razões de Estado” e as necessidades da nobreza e do clero, no Estado de Liberal de Direito a igualdade e a liberdade do indivíduo contra a opressão do precedente absolutismo monárquico figura como a sua matriz. Já no denominado Estado de Bem-Estar Social que preponderou desde a segunda metade do século XX até o início dos anos oitenta, é o intervencionismo na ordem social e econômica que denota e qualifica o tributo não somente por seus aspectos arrecadatórios, mas, também, por suas finalidades extrafiscais e parafiscais. Essa crescente demanda e pressão sobre a política fiscal como um todo, incluindo a vertente das despesas, é intensificada na realidade atual, em que se apresenta o duplo desafio estratégico do desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo sob o ponto de vista social harmonizado com o meio ambiente no qual se realizam e processam as atividades humanas. A extrafiscalidade se exterioriza de forma intencional em pelo menos cinco vertentes distintas: (1) pela utilização das exações tributárias com o objetivo de reduzir desigualdades sociais e transformar o tributo em instrumento de redistribuição de renda e riqueza; (2) por meio de exações específicas para disciplinar e dirigir os agentes privados, como as contribuições para a intervenção no domínio econômico (CIDE), que podem ter ou não natureza tributária dependendo do regime constitucional; (3) através do uso dos próprios tributos, diretos ou indiretos, como mecanismos de regulação e indução da atividade econômica e do comportamento social, (4) beneficiando e incentivando a atividade econômica visando elevar o nível de desenvolvimento por meio dos benefícios e incentivos fiscais ou reduzindo a carga tributária FGV DIREITO RIO 285 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I como ferramenta indutora das demandas e ações dos agentes econômicos, e (5) disciplinando a atividade ou a forma do recolhimento do imposto, objetivando a facilidade na administração do tributo. Por fim, importante destacar que vários são os argumentos a favor e contrários à adoção da incidência sobre o consumo, a renda ou o patrimônio, bem como para a utilização da proporcionalidade ou da progressividade, a qual pode comportar diversos graus e intensidades distintas. FGV DIREITO RIO 286 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I AULA 15 – A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA, OS ELEMENTOS E AS DIVERSAS FASES DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. O MOMENTO DE FIXAÇÃO DO REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO. ESTUDO DE CASO646 Determinada Lei Estadual, publicada em 10/01/2010, estabeleceu a redução (1) das alíquotas e (2) das multas aplicáveis, respectivamente, aos (1) fatos jurídicos tributáveis e (2) ilícitos fiscais previstos na legislação do ICMS daquele Estado. Considerando que certo contribuinte tenha sido autuado pela fiscalização local em 15/12/2009, em razão de falta de pagamento do ICMS relativo aos meses de fevereiro/2009 a novembro/2009, poderia ser aplicada a nova lei aos (1) fatos geradores e (2) infrações fiscais ocorridas em 2009, uma vez que este contribuinte ofereceu impugnação em tempo hábil, estando ainda pendente de julgamento na esfera administrativa? Responda, com base na legislação aplicável à espécie. 15.1 – ASPECTOS GERAIS ACERCA DA RELAÇÃO JURÍDICA-TRIBUTÁRIA As relações entre as pessoas constituem-se por fundamentos variados, desde os laços familiares e de amizade despretensiosos sob o ponto de vista patrimonial até aquelas levadas a efeito por interesse individual ou coletivo de caráter exclusivamente pecuniário, em que há inequívoca manifestação de vontade das partes – sejam elas convergentes a determinado objetivo, como ocorre nos pactos conveniais, ou simplesmente contrapostas, como nas relações contratuais-. Por outro lado, há vínculos que surgem por força e em decorrência do próprio sistema jurídico, como é o caso da relação jurídica tributária, sem que haja a necessidade de manifestação de vontade das partes, bastando, tão somente, o enquadramento do caso concreto – o fato da vida – na hipótese genérica e abstrata prevista em lei, seguindo a lógica e a racionalidade647 da subsunção que caracteriza a aplicação da norma no Estado de Direito Liberal, marcadamente influenciado pela demanda por liberdade, igualdade formal e segurança jurídica do cidadão ou, ainda, em função da necessidade de se atingir determinados objetivos socialmente desejados, de acordo com a racionalidade dos fins, típica do denominado Estado de Bem Estar Social de caráter interventivo, o qual confere relevo a valores sociais como a justiça distributiva, igualdade material e solidariedade. O momento em que se instaura a relação jurídica tem relevância para a determinação do conjunto de regras e princípios aplicáveis a um caso concreto, haja vista a possibilidade de ocorrência de eventos que se realizam instantaneamente, um ponto no tempo, ou, de forma diversa, durante um lapso 646 Exame de Ordem Unificado – 2010.2 - Questão 3 do Prova Prático-profissional. Leia os artigos 105, 106, II, 113, 114, 115 e 144 do Código Tributário Nacional. 647 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui generis”). São Paulo: Dialética, 2000, p. 43-44. Essa questão será aprofundada nas aulas pertinentes à interpretação e aplicação da legislação tributária. FGV DIREITO RIO 287 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I temporal. Ainda, importante destacar desde já a possibilidade de alteração do regime jurídico aplicável ao longo do tempo. O princípio geral é no sentido de que deve incidir a lei ou o conjunto de normas vigentes durante a ocorrência dos eventos disciplinadores da hipótese (tempus regit actum). A natureza de toda relação, segundo uma concepção causalista, é definida por seu fundamento, sua razão de ser mediata, e pelo seu objeto, que é o elemento material em torno do qual as pessoas se vinculam. Seus efeitos e conseqüências também podem constituir a sua natureza, de acordo com uma visão consequencialista. No campo obrigacional privado a prestação do devedor, que é o objeto da relação, consistente sempre em uma ação humana, compreende um dar, um fazer ou não fazer algo, razão pela qual não se confunde com a coisa em que se especializa,648 consoante o disposto no Título I, do Livro I, da Parte Especial do Código Civil (art. 233 a 285). Caso descumprido o dever jurídico vinculado ao fazer, em suas duas modalidades não expressas em unidades monetárias, converte-se o objeto em uma prestação de dar o equivalente em pecúnia649 a título de perdas e danos, caso o devedor culposamente der causa, ainda que não tenham as partes “cogitado do seu caráter econômico originário”.650 A relação jurídica tributária, por sua vez, é multifacetada, na medida em que a mesma se constitui, de acordo com o disposto no Código Tributário Nacional (CTN), por três causas ou fundamentos distintos, abaixo descritos, e se desdobra nos três modais supracitados (dar, fazer ou não fazer), envolvendo, ao mesmo tempo, prestações de caráter patrimonial e pecuniário assim como outras de cunho não patrimonial. O tributo e as prestações a ele vinculadas – essas últimas existentes para garantir a higidez e solidez do sistema651 – caracterizam a natureza pública da relação tributária, o que determina a aplicabilidade de um regime jurídico diferenciado. Conforme será examinado abaixo, a relação jurídica tributária pode possuir três causas remotas652 distintas, de acordo com o art. 113 do CTN: (1) o dever de pagar (1.1) o tributo ou (1.2) a penalidade expressa em moeda corrente, o que faz nascer uma relação de caráter patrimonial, qualificada como obrigação de dar pela maior parte da doutrina e denominada de principal pelo CTN; (2) a obrigação do sujeito passivo de realizar prestações positivas e negativas (“fazer” ou “não fazer”), de natureza não patrimonial, nomeada de obrigação acessória pelo mesmo Codex, as quais têm como objetivo precípuo garantir o correto cumprimento da obrigação principal, mas também possibilitam o controle de todo o sistema tributário pelo Fisco e, por fim, (3) a relação constituída em função e em decorrência do descumprimento do dever de pagar o tributo (item 1.1) ou de realizar as prestações positivas e negativas anteriormente citadas (item 2). A terceira modalidade de constituição da relação jurídica tributária somente ocorre no caso de infração imputável ao sujeito passivo da obrigação 648 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p.2-5. 649 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2002. Forense. Rio de Janeiro, 2002. p. 596. “Pecúnia – Do latim pecunia, de ecus, sempre foi empregado em sentido técnico do Direito ou da Economia, para designar o dinheiro ou a moeda. Dele, com a mesma significação, forma-se o pecuniário, para qualificar tudo o que concerne ao dinheiro ou à pecúnia.” 650 PEREIRA. Op. Cit. p.17. Daí a patrimonialidade da obrigação na seara privada, conforme será examinado a seguir. 651 De fato, no mundo ideal não seria necessária a exigência de que o sujeito passivo cumprisse as denominadas obrigações acessórias, que em última instância objetivam garantir o correto pagamento dos tributos, nem a previsão de sanções objetivando desestimular ou coibir a possibilidade de infração. 652 Em sentido diverso, pode ser considerado como a causa próxima ou imediata o fato concreto previsto abstratamente na norma jurídica ou a própria lei do ente político competente para instituir o tributo e regulamentá-lo por meio de seu poder legislativo. FGV DIREITO RIO 288 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tributária, de natureza primariamente administrativa e de caráter sancionatório, a qual redundará, de acordo com o determinado em lei, em penalidade pecuniária de cunho patrimonial, consubstanciada em uma obrigação de dar, nos termos acima citados. Saliente-se, ainda, que o descumprimento653 da legislação tributária pode ter ou não implicações criminais, dependendo do enquadramento do fato em algum tipo penal654 bem como de seus desdobramentos em âmbito administrativo655 e judicial. Assim sendo, da mesma forma que o estudo jurídico da extrafiscalidade pressupõe a compreensão da correlação entre o denominado poder de polícia e o poder de tributar, a análise dessa terceira forma por meio da qual a relação jurídica tributária se constitui, requer o exame da interface entre esses poderes e o poder de punir. Cumpre realçar que várias são as teorias que tentam explicar a essência ou a natureza da relação tributária, desde a sua qualificação como simples relação de poder, destituída de qualquer outra fundamentação, sendo a norma impositiva do tributo no Estado de Direito simples ordem sem a real natureza de lei656, até as teses que incorporam estruturas e disciplinas do direito obrigacional privado para o Direito Tributário. Pode-se ainda destacar aquela mais moderna, que vincula e estuda a relação jurídica tributária a partir do enfoque e perspectiva constitucional, malgrado também qualificá-la e definila como modalidade de obrigação ex lege, não obstante deslocar o foco e ênfase para o seu fundamento de validade, ao invés de se direcionar para o instrumento ou o veículo normativo por meio do qual se manifesta. Alcides Jorge Costa657 ao abordar o tema esclarece: Antes de se iniciar o estudo da obrigação tributária é útil ter em mente que, no Estado-Polícia, no qual o soberano tinha poder absoluto, o patrimônio público, chamado Fisco, foi concebido como um ente dotado de personalidade, sujeito às regras de Direito Privado e, portanto, aos tribunais comuns. Essa concepção protegia os cidadãos, pois lhes dava o direito de discutir, perante os tribunais comuns, as questões patrimoniais que pudessem ter com o Estado. Assim, nessas questões não havia mera submissão ao poder absoluto do soberano. Com o fim do Estado-Polícia e o advento do Estado de Direito, o que não aconteceu em todos os países ao mesmo tempo e que sucedeu por caminhos variados, a chamada doutrina do Fisco não podia mais prevalecer, por ter desaparecido o poder absoluto com o qual contrastava. Mas ainda era necessário proteger o contribuinte. Os administrativistas alemães da parte final do século XIX e início do século XX inclinavam-se por ver uma relação de poder entre o Estado e o contribuinte quando se tratava da cobrança de tributos. Da mesma forma, na Itália houve quem visse na relação tributária uma simples sujeição do contribuinte ao poder do Estado. Foi o caso de Orlando, que concebia as leis instituidoras de impostos como simples ordem, sem real natureza de lei. Foi também o caso de Lolini, 653 Conforme destaca Ricardo Lobo Torres, “Inconfundíveis o poder de punir e o poder de tributar. Estremam-se pela natureza e objetivo. O poder de punir, atribuído ao Estado no pacto constitucional, destina-se a garantir a validade da ordem jurídica. O poder de tributar, restringindo a propriedade privada, procura garantir ao Estado o dinheiro suficiente para atender às necessidades públicas. Aproximam-se entretanto, por terem sede constitucional e por se constituírem no espaço aberto pela liberdade.” In. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 231. 654 A Lei nº 8.137/90 tipifica os crimes contra a ordem tributária e os artigos 168-A, 334 e 337-A do Código Penal tipificam, respectivamente, o crime de apropriação indébita previdenciária, os crimes de contrabando e descaminho e o de sonegação de contribuição previdenciária. 655 O Supremo Tribunal editou a Súmula Vinculante nº 24 com o seguinte teor: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. De fato, de acordo com a jurisprudência tradicional do STF, HC 81.611, HC 85185, HC 86120, HC 83353 e HC 85463, entre outros, falta justa causa para ação penal na hipótese de lançamento do tributo pendente de decisão definitiva em âmbito administrativo, ou seja, enquanto estiver em curso o contencioso administrativo não pode ser proposta a ação penal. 656 Nesse sentido assevera Oto Mayer, citado por Ricardo Lobo Torres, que “o dever geral de o sujeito pagar impostos é uma fórmula destituída de sentido e valor jurídico”. In. TORRES. Op. Cit. p. 231. 657 COSTA, Alcides Jorge. Obrigação Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. (Coordenador). Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 191. FGV DIREITO RIO 289 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I cujos escritos a respeito datam de 1912 e 1920 e, mais tarde, Di Paolo. A reação a essa concepção veio por meio da assimilação da relação Estado-contribuinte à relação obrigacional, conceito haurido no Direito Privado. Dessa maneira, não prevaleceu a idéia de mera relação de poder, mas de uma relação obrigacional, na qual os sujeitos de encontram em pé de igualdade. Dessa forma, novamente o recurso a instituto do direito privado é utilizado como meio de proteção do contribuinte. Hoje a noção de obrigação tributária está tão arraigada que sua origem histórica é esquecida. Na mesma linha, Hugo de Brito Machado658, ressalta que a relação entre o Estado e as pessoas sujeitas à tributação não é uma simples relação de poder, mas uma relação jurídica de natureza obrigacional, pois: No Direito Tributário inegavelmente encontram-se as características do Direito Obrigacional, eis que ele disciplina, essencialmente, uma relação jurídica entre um sujeito ativo (fisco) e um sujeito passivo (contribuinte ou responsável), envolvendo uma prestação (tributo). Ao explicitar essa doutrina, que conceitua o tributo como objeto de uma relação obrigacional criada por lei, isto é, que desloca o núcleo da definição da natureza da relação jurídica tributária para o vínculo obrigacional, ao invés do enfoque exclusivo na lei ou no poder que possibilita a sua imposição, Ricardo Lobo Torres659 assevera e alerta que: O núcleo da definição passou a ser o vínculo obrigacional, pois a relação jurídica se firmava entre dois sujeitos – credor e devedor do tributo – que se subordinavam à lei em igualdade de condições. O tributo, portanto, tinha na lei a sua fonte ou causa, mas se definia principalmente em função do fato gerador que dava nascimento à obrigação tributária, nova estrela na constelação financeira (...). Corolário da tese central é a exacerbação formalista do poder tributário, com a sua redução ao momento legislativo, vedada à Administração qualquer parcela de discricionariedade; (...). A teoria da relação obrigacional trouxe, contudo, algumas perplexidades. Não explicava, diante da questão da soberania, como o Estado poderia, no ato de legislar, se colocar em relação de igualdade com o contribuinte. Além disso, confundia o plano da norma e da definição abstrata do fato gerador com o plano do contingente e da ocorrência do fato gerador (vide p. 240). Finalmente, afastava o fenômeno tributário de suas matrizes constitucionais, reduzindo-o ao campo da legislação ordinária e confundindo-o com outras figuras de direito privado, mercê de sua absorção na idéia de vínculo obrigacional.” Em linha de pensamento diversa, Alcides Jorge Costa enfatiza: 658 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 54. 659 TORRES. Op. Cit. p. 231 a 233. FGV DIREITO RIO 290 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A discussão sobre se a obrigação de direito privado e obrigação tributária se identificam ou diferem não é meramente acadêmica. Se há identidade, as normas de direito privado aplicam-se à obrigação tributária. Caso contrário, não se aplicam. A resposta a essa indagação é alcançada considerando-se existir, entre obrigações de direito privado e obrigação tributária, identidade estrutural, mas não funcional. Daí decorre que, em princípio, as normas legais concernentes à obrigação de direito privado aplicam-se à obrigação tributária, exceto se, à vista da diferença funcional, a aplicação não puder ou não dever ser feita. A isso se acrescente o óbvio: se a lei tributária contiver regras específicas (o que ocorre com freqüência em vista da diferença de função), aplicam-se estas e não as de direito privado. A obrigação tributária é uma obrigação ex lege. Que significa isso? A resposta liga-se à classificação das fontes das obrigações, assunto que tem sido, desde os juristas romanos, objeto de controvérsia ainda não pacificadas. Não interessa, aqui, aprofundar esse debate. Basta dizer que se chamam de fontes das obrigações os fatos que a produzem. A obrigação é uma relação jurídica e há de ter por fonte mediata sempre a lei. Mas não se fala em fonte nesse sentido, porque, se o fizesse, não existiria qualquer dificuldade, uma vez que sempre haveria uma só fonte, a lei. Acontece que entre a lei abstrata e geral por natureza e a obrigação, relação jurídica particular, há sempre um fato, um ato ou uma situação jurídica a cuja a lei liga o nascimento da obrigação. Quando se fala de fonte da obrigação está se fazendo referência a esse fato, ato ou situação. É nesse contexto que se busca classificar as fontes das obrigações. Como foi dito, a matéria é controversa. Após explicitar outras teses que enfatizavam o ato ou o procedimento administrativo de lançamento como o núcleo central da imposição, as quais fundamentam a relação jurídica tributária em teorias procedimentais, matéria que será examinada na disciplina de Direito Tributário e Finanças Públicas III, Ricardo Lobo Torres660 esclarece que: A doutrina mais moderna e mais influente estuda a relação jurídica tributária a partir do enfoque constitucional e sob a perspectiva do Estado de Direito, estremando-a das relações jurídicas do direito privado: a sua definição depende da própria conceituação do Estado. Assim pensam, entre outros, K. Tipke e Birk na Alemanha e F. Escribano na Espanha. Claro que, apesar da abordagem constitucional do problema, a relação jurídica tributária continua a se definir como obrigação ex lege. Mas sua origem legal se complementa e se equilibra com os momentos ulteriores do exercício do poder de administrar e do poder de julgar as controvérsias surgidas da aplicação da lei, sem os quais não se forma, na vida real, o vínculo de direito. (...) A imbricação constitucional da relação tributária orienta a sua problemática para o campo das conexões entre a receita e os gastos públicos, dado importan- 660 TORRES. Op. Cit. p. 233. FGV DIREITO RIO 291 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tíssimo na atual fase das finanças públicas. A relação jurídica tributária, por outro lado, aparece totalmente vinculada pelos direitos fundamentais declarados na Constituição. Nasce, por força de lei, no espaço previamente aberto pela liberdade individual ao poder impositivo estatal. (grifo nosso) A relação jurídica tributária qualificada nos termos apontados por Ricardo Lobo Torres permitem, por um lado, (1) a contenção do exercício do poder de tributar, que já surge subordinado aos direitos e garantias fundamentais, o que confere relevância aos aspectos essenciais da liberdade do cidadão e da segurança jurídica visando neutralizar a superioridade da parte mais forte da relação, matéria a ser examinada a partir da Aula 15, quando se inicia o estudo das denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, e, ao mesmo tempo, (2) afasta o formalismo normativista, que limita e restringe de forma extremada e exacerbada a atuação e o papel do Estado Juiz na interpretação e aplicação do Direito e do Estado Administração no exercício dessas mesmas funções e, ainda, em especial, na realização de sua função normativa regulamentar. Nesse momento é oportuno destacar que o enquadramento e a aplicação da disciplina jurídica das relações obrigacionais de direito privado às relações tributárias, sem temperamentos e adaptações, abrem amplo espaço ao cometimento de abusos por parte daqueles sujeitos passivos que praticam atos e negócios jurídicos sem o essencial propósito negocial. Nesse passo, agindo com o objetivo único de evitar ou obstar661 a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária ou de seus elementos constitutivos, não pagar impostos de acordo com as respectivas capacidades contributivas e em consonância com a desejável justiça fiscal entre aqueles que se encontram em situação econômica equivalente, o que sobrecarrega a carga tributária daqueles que não podem ou não se dispõem a praticar atos que visam exclusivamente à redução do ônus tributário. A matéria é complexa e controvertida, haja vista a inquestionável necessidade de garantir igualdade material e justiça fiscal ao mesmo tempo em que seja também assegurada a adequada segurança jurídica, amplo estímulo e elevado grau de liberdade na escolha da melhor estrutura para o exercício da atividade econômica, razão pela qual a questão merece novas abordagens ao longo de todo o curso. 15.2 A ESTRUTURA DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E OS ELEMENTOS DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA Nos mesmos termos de qualquer outra relação jurídica, que une pessoas em face de um objeto, a relação jurídica tributária liga o sujeito ativo e o su- 661 O parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional utiliza a expressão dissimular, dispositivo que para alguns doutrinadores representa verdadeira norma geral antielisiva enquanto para outros apenas a aplicação no campo tributário da vedação à simulação, tão conhecida no âmbito direito privado, matéria que será examinada ao longo do curso. FGV DIREITO RIO 292 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I jeito passivo em torno três espécies de prestações (dar, fazer ou não fazer ou tolerar algo), por três fundamentos distintos, conforme já salientado acima. De acordo com o art. 113 do CTN, conforme já salientado, a relação jurídica tributária pode ter caráter patrimonial – ou não – e possuir como causas remotas: (1) o dever de pagar (1.1) o tributo ou (1.2) a penalidade de caráter pecuniário; (2) a obrigação de fazer ou não fazer, isto é, de realizar prestações positivas ou negativas de caráter não patrimonial, exigidas com o objetivo de garantir o adimplemento das prestações pecuniárias, ou (3) o descumprimento do dever de pagar o tributo (item 1.1) ou de realizar as prestações positivas e negativas anteriormente citadas (item 2). A primeira forma em que se manifesta a relação jurídica tributária, que tem por objeto o dever de pagar o tributo ou a penalidade pecuniária, é designada pelo §1º do artigo 113 do Código Tributário Nacional (CTN) como obrigação principal. A característica fundamental dessa primeira modalidade em que se consubstancia e se desdobra a relação jurídica tributária é a sua natureza patrimonial e pecuniária, atributos tanto (1) do pagamento do tributo, que é uma das formas de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156, I, do CTN, como (2) do pagamento da penalidade expressa em unidades monetárias, seja ela decorrente de inadimplemento do dever de pagar o tributo como aquela incidente em função do descumprimento das denominadas obrigações acessórias, a serem abaixo explicitadas. Dessa forma, de acordo com o CTN, a obrigação principal é gênero, que abrange duas espécies: o dever de pagar o tributo bem como a penalidade pecuniária. Nesse sentido, o conceito de obrigação principal não se confunde com aquele utilizado pelo próprio CTN662 para definir o tributo, o qual não compreende a prestação pecuniária compulsória que constitua sanção de ato ilícito. De fato, apesar de não se enquadrar no conceito do artigo 3º do CTN a multa fiscal é um dos objetos da obrigação principal, ao lado do pagamento do tributo, possuindo, ambos, portanto, caráter patrimonial e pecuniário, características essenciais da denominada obrigação principal. Não obstante os distintos fundamentos de validade, do poder de punir e do poder de tributar, conforme salientado em nota acima, e apesar da multa fiscal não ser tributo, consoante o disposto no citado artigo 3º do CTN, a obrigação de pagar a penalidade pecuniária (a multa fiscal) possui natureza tributária. Essa opção do CTN, uma aparente contradição, visa a submeter tanto a cobrança do tributo como a das multas ao mesmo regime jurídico tributário, seja a penalidade pecuniária exigível em decorrência do inadimplemento do dever de pagar o próprio tributo seja em função do descumprimento das denominadas obrigações acessórias, o que permite a aplicabilidade de diversas regras especiais aos denominados créditos fiscais. A segunda modalidade em quê se constitui e desdobra a relação jurídica tributária tem natureza instrumental, viabilizadora do correto pagamento do 662 Dispõe o art. 3º do CTN: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Ricardo Lobo Torres entende que a Carta de 1988 constitucionalizou a definição fixada pelo CTN, não podendo a legislação infraconstitucional modificar o seu conceito, ressaltando o jurista, no entanto, que: “nem por isso se poderá considerá-la imune a complementações. A grande utilidade da definição consiste justamente em servir de pauta de interpretação para o conceito constitucional, pelo que necessita ela própria de interpretações e de contacto com outras definições e conceitos tributários. Ademais, a definição do nosso Código Tributário tem origem doutrinária, pois se baseou fundamentalmente em conceitos positivistas, inteiramente superados. E, ainda mais, apresenta o defeito imenso de se apegar ao critério de definir segundo o gênero próximo, sem atentar para as diferenças específicas: os elementos da compulsoriedade e da atividade vinculada, por exemplo, embora sejam essenciais à noção de tributo, pertencem a outras categorias de entrada, como os preços públicos e multas.” In. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. IV. Os Tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p.22. Dessa forma, o artigo 3º não apresenta todos os elementos do tributo, apesar de todos aqueles por ele apontados serem essenciais. FGV DIREITO RIO 293 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I tributo e da higidez do sistema tributário, denominada de obrigação acessória, pelo §2º do mesmo artigo 113 do CTN. Incluem-se no conceito de obrigação acessória tanto as denominadas prestações positivas, assim qualificadas por consistir num fazer (ex: emitir a nota ou o cupom fiscal, preencher e encaminhar a declaração de rendimentos anualmente ou das operações e prestações realizadas, etc), como as obrigações de não fazer algo, designadas como prestações negativas (ex: não rasurar os documentos fiscais, a vedação de realizar importações proibidas, o que aproxima a relação jurídica tributária atinente ao imposto de importação ao poder de polícia expresso por meio da denominada pena de perdimento, a proibição de transportar mercadorias sem os respectivos documentos fiscais, o dever de tolerar o exame em livros, arquivos e documentos comprobatórios da atividade econômica realizada etc). Repise-se, ainda, que o não cumprimento da obrigação principal (deixar de pagar o tributo) assim como o inadimplemento pelo sujeito passivo de obrigação acessória (não emitir nota ou cupom fiscal, não escriturar os livros fiscais, não prestar as informações exigidas etc), impõe ao Fisco o dever de propor as penalidades cabíveis, por meio da lavratura do denominado auto de infração ou de notificação de lançamento de ofício663, inclusive no que se refere àquela de natureza pecuniária prevista como sanção ao descumprimento da obrigação acessória. Nessa hipótese não há espaço para a realização de juízo de conveniência e de oportunidade, característica dos atos discricionários, pois a atividade da Administração Tributária é plenamente vinculada à lei, nos termos do parágrafo único do artigo 142 do CTN, razão pela qual a causa motivadora da já citada terceira modalidade em que a relação jurídica tributária se constitui, de natureza sancionatória, pressupõe o descumprimento de alguma das prestações tributárias exigíveis, de natureza patrimonial e pecuniária (o pagamento do tributo) ou de caráter instrumental (obrigação acessória). Pelo exposto, constata-se que essa terceira modalidade de constituição da relação jurídica tributária somente ocorre no caso de infração imputável ao sujeito passivo da obrigação tributária, de natureza primariamente administrativa e de caráter sancionatório. Conforme já explicitado, a relação jurídica tributária, da mesma forma que as outras relações jurídicas constituídas por força de lei, surge quando ocorre na realidade concreta aquela hipótese genérica (indeterminada quanto às pessoas a que se dirige) e abstrata (indeterminação quanto aos casos a que se aplica) prevista na norma jurídica. Nesse sentido, a lei tributária estabelece (plano normativo tributário) determinado evento, por meio do qual se exterioriza capacidade econômica (patrimônio, renda ou consumo), como condição necessária e suficiente para constituir a relação, a qual se consubstancia e concretiza juridicamente caso verificada a sua ocorrência, o que pode ser: (1) uma situação de fato; ou (2) uma situação jurídica, a teor do artigo 116 do CTN. 663 O Código Tributário Nacional prevê nos seus artigos 147 a 150 três modalidades de lançamento: 1) lançamento por declaração (Art. 147 CTN); 2) lançamento de ofício (Art. 148 e 149), efetuado nas hipóteses descritas no artigo 145 c/c 149, abrangendo a revisão do lançamento anteriormente efetuado (Art. 149) e o arbitramento (Art. 148) e , por fim, 3) lançamento por homologação (Art. 150). A jurisprudência gaúcha, como será visto adiante, procurando adequar as modalidades de lançamento previstas no CTN, formuladas para a realidade brasileira das décadas de 60 e 70, à realidade do Brasil moderno, caracterizado por elevado números de contribuintes e grande velocidade na troca de informações e registros eletrônicos, prevê, também, na hipótese de imposto caracterizado por fato gerador periódico, consubstanciado em uma situação jurídica, uma outra sub-espécie de lançamento: “lançamento ¨direto¨, periódico e rotineiro” (Apelação cível nº 70002607448- Relator: Des. Roque Joaquim Volkweiss – Primeira Câmara Cível- Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) FGV DIREITO RIO 294 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I A relevância da diferenciação entre as duas situações (“de fato” ou “jurídica”) decorre dos diferentes momentos em que se considera ocorrido o fato gerador, isto é, “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”, nos termos do artigo 114 do CTN. A identificação temporal do fato gerador, o momento de sua ocorrência, é, por sua vez, essencial para determinar o regime jurídico (conjunto de regras e princípios – ex: alíquota, base de cálculo etc) aplicável à obrigação tributária principal correspondente, haja vista a possibilidade de alteração da norma tributária ao longo do tempo. De fato, o lançamento, que será objeto de breve análise abaixo, de acordo com o disposto no caput do artigo 144 do mesmo CTN, reporta-se à data da ocorrência do fato gerador e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente a lei tributária disciplinadora seja modificada ou revogada (tempus regit actum). Assim, a identificação do momento em que ocorre o fato gerador é requisito à determinação do regime jurídico aplicável ao lançamento do tributo. No que se refere à obrigação principal, parece-nos que se enquadra como situação de fato, aludida no inciso I, do citado artigo 116, por exemplo, “a comunicação”, que é uma das hipóteses de incidência do ICMS estadual. Nesse sentido aponta Marco Aurélio Greco,664 partindo do pressuposto de que o intérprete da Constituição não está vinculado a conceito previamente fixado pelo Direito Privado: [...] o conceito de ‘comunicação’ utilizado pela CF-88 não é um conceito legal (que se extraia de uma determinada lei), mas sim um conceito de fato (que resulta da natureza do que é feito ou obtido) (Os grifos não são do original) 664 GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000. p.136. 665 SILVA. Op. Cit. p. 230. “Fatura. Do latim factura, de facere (fazer) significando feitio, quer indicar todo ato de fazer alguma coisa. Desse modo fatura e feitura equivalem-se, pois que ambos exprimem o ato ou ação de fazer ou executar alguma coisa. Fatura. Na técnica jurídico-comercial, no entanto, é especialmente empregado para indicar a relação de mercadorias ou artigos vendidos, com os respectivos preços de venda, quantidade e demonstrações acerca de sua qualidade e espécie, extraída pelo vendedor e remetida por ele ao comprador. A fatura, ultimando a negociação, já indica a venda que se realizou. Na técnica mercantil a fatura se distingue da conta-corrente, do pedido de mercadorias e das notas parciais. A fatura é o documento representativo da venda já consumada ou concluída, mostrando-se o meio pelo qual o vendedor vai exigir do comprador o pagamento correspondente, se já não foi paga e leva o correspondente recibo de quitação. E quando a venda se estabelece para o pagamento a crédito ou em prazo posterior, a fatura é elemento necessário para extração de duplicata mercantil, desde que caso de sua feitura obrigatória. (...) Faturar. Derivado de fatura, quer significar o ato de se proceder à extração ou formação da fatura, a que se diz propriamente de faturamento.” 666 Outras situações de fato também podem ser apontadas em nosso sistema tribuário, como a “entrada” de produtos estrangeiros em território nacional, situação que determina a incidência do imposto de importação, nos termos do artigo 19 do CTN; a “circulação de mercadoria”, que ocorre em regra no momento da “saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, hipótese de incidência do ICMS, nos termos do artigo 12 da Lei Complementar nº 87/96; o “faturamento” da sociedade empresaria, hipótese de incidência da COFINS e do PIS, nos termos do artigo 195, I, “b” da CR-88, etc. Nesse sentido, aponta o Dicionário De Plácido e Silva, 665 ao definir as expressões fatura, faturar e faturamento. Por outro lado, conforme apontado, a relação jurídica tributária também pode surgir com a ocorrência no mundo real daquele ato, fato, negócio ou situação jurídica666 prévia e genericamente prevista em lei abstrata, constitucionalmente fundamentada, que juridiciza determinado evento, o qual, posteriormente, a norma tributária, por sua vez, identifica como manifestação BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. p. 81. Após apresentar a teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale, aponta o professor fluminense: “As regras de direito, portanto, consistem na atribuição de efeitos jurídicos aos fatos da vida, dando-lhes um peculiar modo de ser. O direito elege determinadas categorias de fatos humanos ou naturais e qualifica-os juridicamente, fazendo-os ingressar numa estrutura normativa. A incidência de uma norma legal sobre determinado suporte fático converte-o em um fato jurídico. Identificam-se, por conseguinte, como realidades próprias e diversas o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Os fatos jurídicos resultantes de uma manifestação de vontade denominam-se atos jurídicos. Cifrando o objeto de nosso estudo, tem-se que os atos jurídicos – e, ipso facto, os atos normativos de todo grau hierárquico – comportam análise científica em três planos distintos e inconfundíveis: o da existência, o da validade e o da eficácia.” FGV DIREITO RIO 295 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I de riqueza (capacidade contributiva). Nesse caso, a lei tributária, em circunstâncias específicas por ela determinada, qualifica os mesmos atos, fatos, negócios ou situações jurídicas como hipóteses de incidência de tributo, o que faz nascer a relação tributária entre o sujeito ativo e o sujeito passivo, como ocorre, por exemplo, na hipótese da propriedade de determinados bens, situação jurídica ou instituto qualificado e disciplinado pelo Código Civil (ex: propriedade de um veículo automotor, de um imóvel predial territorial urbano ou de imóvel territorial na zona rural) ou a sua transmissão causa mortis ou entre vivos, a título gratuito ou oneroso, hipóteses também reguladas pelo mesmo Codex (ex: a transmissão da propriedade em decorrência de um fato natural causa mortis ou de um ato voluntário a título gratuito entre vivos fazem nascer a obrigação tributária relativamente ao ITCMD), etc. Nessas hipóteses, a lei tributária se utiliza de situações previamente qualificadas e disciplinadas pelo ordenamento jurídico não fiscal para identificar e caracterizar o fato gerador da obrigação, o que, como visto, é essencial para a definição do seu aspecto temporal, o qual, por sua vez, fundamenta a mencionada fixação do regime jurídico aplicável (tempus regit actum). Com o surgimento da relação jurídica, por força da ocorrência do fato gerador, nasce a correspondente obrigação tributária667, a qual possui múltiplas significações possíveis segundo a doutrina.668 Em termos gerais, é possível identificar duas grandes linhas de pensamento, com variantes em relação aos seus desdobramentos, tanto na seara privada como pública. A primeira, em acepção ampla, fundamenta-se na dicotomia entre o Direito de um lado e a obrigação de outro, razão pela qual, conforme ensina o professor Washington de Barros Monteiro669: Direito e obrigação constituem realmente, os dois lados da mesma medalha, o direito é o avesso do mesmo tecido. Sob esse aspecto, numa imagem feliz, houve quem afirmasse que as obrigações são como as sombras que os direitos projetam sobre a vasta superfície do mundo. Ressalta o mesmo autor, no entanto, que sob o ponto de vista técnico, no âmbito do Direito Obrigacional, o seu conceito é diverso, e após salientar a existência de vários sentidos e características, conclui que “efetivamente, obrigação é a relação jurídica de caráter transitório”670, já que não pode “ocorrer a perpetuidade”, mas sempre estabelecida “entre duas pessoas, credor e devedor”, razão pela qual tem natureza pessoal, com a peculiaridade de, no caso de inadimplemento, “induzir responsabilidade patrimonial do devedor” 671, já que o objeto da obrigação – a prestação – “há de ser sempre suscetível de aferição monetária; ou ela tem fundo econômico, pecuniário, ou não é obrigação, no sentido técnico legal”. Ao lado do duplo sujeito (elemento subjetivo) e do objeto (elemento material – prestação de dar, fazer ou não fazer), o vínculo jurídico 667 Nos termos a seguir salientados, parte da doutrina entende que o surgimento da obrigação tributária dependeria da pratica de um ato complementar, o denominado lançamento do tributo, fundamentando-se na premissa de que caso a obrigação existisse seria possível pagá-la desde o seu nascimento, sem a necessidade da pratica de qualquer outro ato. Em contraposição a doutrina majoritária entende que obrigação tributária que nasce com o surgimento da relação jurídica tributária encontra-se em sua fase ilíquida, ou seja, a obrigação já existiria, mas pendente de liquidação para tornar o crédito tributário exigível. 668 Sobre o assunto vide, entre outros: AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.p. 243245; COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. pp. 172-177. 669 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito das Obrigações. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 3. 670 MONTEIRO. Op. Cit. p.8. 671 MONTEIRO. Op. Cit. p.9. FGV DIREITO RIO 296 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I comporia o terceiro elemento essencial da obrigação, posto unir os dois sujeitos em torno ou por causa da prestação, e fixar, ao mesmo tempo, o dever de a pessoa obrigada cumprir ou realizar a prestação (debitum), bem como estabelecer a sua responsabilidade, em caso de inadimplemento (obligatio), isto é, a submissão de seu patrimônio como garantia de última instância. Nesse sentido a obrigação, estabelecida entre o devedor e o credor, seria, para o Washington de Barros Monteiro 672, a própria relação jurídica, sempre de caráter patrimonial, transitória, cujo objeto consistiria em uma prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, sendo o patrimônio do devedor a garantia do seu adimplemento. Percebe-se, desde já, que a obrigação assim qualificada, inviabiliza ou pelo menos causa perplexidade diante do que se disse anteriormente quanto ao determinado pelo CTN (no artigo 113), especificamente no que se refere aos denominados deveres instrumentais do contribuinte (ex: a emissão da nota fiscal etc.), posto qualificá-los como obrigações – tributárias acessórias –, apesar da não possuírem caráter patrimonial nem serem expressas em unidades monetárias. Inúmeros autores673, entretanto, apesar de mantida a patrimonialidade e a estrutura dos elementos constitutivos, dissociam o conceito de relação daquele aplicável à obrigação, ao caracterizá-la, a obrigação, como vínculo jurídico, fundamentando o argumento a partir da etimologia da palavra: O recurso à etimologia é bom subsídio: obrigação, do latim ob + ligatio, contém uma idéia de vinculação, de liame, de cerceamento da liberdade de ação, em benefício de pessoa determinada ou determinável (...) É certo que alguns se insurgem contra o laço ou o vínculo, ali referido, preferindo substituir-lhe “relação ou situação jurídica”. Inevitável retorno faz, entretanto, sentir na obrigação a idéia de vinculação, acentuada nas Institutas: (...) obrigação é o vínculo jurídico ao qual nos submetemos coercitivamente, sujeitando-nos a uma prestação (...) A predominância do vinculum iuris é inevitável. Cremos que as tentativas de substituí-lo pela idéia de relação não passam de anfibologia, já que na própria relação obrigacional ele revive (...) Também nós, procurando um meio sucinto, definimo-la, sem pretensão de originalidade, sem talvez elegância do estilo e sem ficarmos a cavaleiro das críticas: obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável.(...) Por outro lado, e numa segunda ordem de idéias, a vida social conhece números atos cuja realização é indiferente ao direito. Se a obrigação pudesse ter por objeto prestação não-econômica, faltaria uma separação nítida entre ela e aqueles atos indiferentes, e é precisamente a pecuniariedade que extrema a obrigação em sentido técnico daqueles deveres que o direito institui, numa órbita diferente, como exempli gratia, a fidelidade recíproca dos cônjuges, imposta pela lei, porém exorbitante da noção de obrigação. 672 MONTEIRO. Op. Cit. p.3-10. 673 PEREIRA, Op. Cit. p.2-5 e 17. FGV DIREITO RIO 297 DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS I Caracterizada como a própria relação jurídica, como visto anteriormente, ou como o vínculo jurídico, a obrigação de natureza privada sempre gira em torno de uma prestação de caráter patrimonial passível de ser expressa em unidades monetárias. Assim sendo, pode-se concluir que, ou o CTN qualifica indevidamente o dever instrumental como obrigação acessória, posto envolver exigência não patrimonial, ou, em sentido diverso, não há vinculação necessária entre o conceito de obrigação atribuído pelo direito privado àquele aplicável na seara tributária, haja vista que no direito tributário a patrimonialidade não consubstancia elemento ou requisito necessário à constituição do vínculo obrigacional, seja por que: (1) a Constituição da República de 1988, fundamento de validade de todo ordenamento jurídico, por meio de seu artigo 146, III, “b”, autorizou a lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre “obrigação tributária”, e o CTN definiu o instituto para efeitos tributários de forma distinta daquele construído no campo privado, ou (2) pelo fato de que a obrigação não constitui uma categoria jurídica axiomática da Teoria Geral do Direito, aplicável a todos os seus ramos indistintamente, mas sim um instituto cujas características e contornos são fixados pelo próprio Direito positivo em cada circunstância específica. Essa questão é controvertida na seara tributária, conforme identifica Regina Helena Costa674: Lembraremos primeiro, os ensinamentos da doutrina que leva em consideração as construções teóricas laboradas no âmbito do Direito Civil, a qual salienta a patrimonialidade do vínculo obrigacional. Assim é que, invocando a clássica lição civilista, “obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável. De acordo com tal ótica, pode-se vislumbrar, no âmbito tributário, duas espécies de relações jurídicas. A primeira delas é a relação jurídica obrigacional ou obrigação tributária, consubstanciada no vínculo abstrato que surge pela imputação normativa, mediante o qual o sujeito ativo ou credor – o Fisco – pode exigir do sujeito passivo ou devedor – o contribuinte – uma prestação de cunho patrimonial denominada tributo. A segunda modalidade de relação jurídica é a relação de cunho não obrigacional, vale dizer, o vinculo abstrato que surge pela imputação normativa mediante o qual o sujeito ativo ou o Fisco pode exigir do sujeito passivo ou contribuinte uma prestação consistente na realização de um comportamento, positivo ou negativo, destinado a a