O DANO MORAL E A ESCOLA-BASE: O LEAD CASE DO STJ
PAULO R. ROQUE A. KHOURI
Advogado
Mestrando em Direito Privado pela Universidade de Lisboa
Autor do Livro Contratos e Responsabilidade Civil no CDC
Professor do UniCeub - Brasília/DF
O recente julgamento, pelo STJ do caso que ficou conhecido como o da EscolaBase, de São Paulo, com a majoração em quase 200% da indenização por danos
morais, arbitrando-a em R$ 250.000,00 para cada um dos sócios, fixa no Brasil um
verdadeiro lead case acerca do quantum indenizatório devido em função de
cometimento de danos não patrimoniais.
A despeito da grande injustiça cometida, no passado, contra os donos da EscolaBase, o caso representa um verdadeiro lead case exatamente porque no Brasil os
valores pagos a título de danos morais são, na maioria dos julgados,
reconhecidamente baixos. Com a decisão em tela, o próprio STJ superou o teto
indenizatório de R$ 200.000,00 ou mil salários mínimos fixado para os casos mais
graves, como os de homicídio.
É verdade que o Direito brasileiro, principalmente da segunda metade do século
passado até aqui, experimentou espetacular evolução no que tange ao dano moral,
saindo de uma posição refratária a qualquer indenização para os danos não
patrimoniais, para uma posição de aceitação plena. Em matéria de danos morais, o
último obstáculo a ser vencido é justamente o do valor da indenização. Ou seja, nos
tribunais brasileiros já não se encontram dificuldades com relação ao
reconhecimento dos danos que sejam efetivamente morais, o problema é o quantum
debeatur. Daí a importância do caso da Escola-Base.
E os valores indenizatórios relativos ao dano moral são baixos no Brasil devido a
pouca atenção dada a um critério, que, no Direito americano, v.g., é fundamental na
definição do quantum debeatur: o da punição pecuniária do ofensor, o que
denomina-se Punitive-Damage. Esse critério deve estar sintonizado com outros três:
o da gravidade da conduta, da repercussão da ofensa no meio social e o da
capacidade econômica do ofensor.
Parece-me que o Direito brasileiro, a exemplo de outras legislações como a francesa
e portuguesa(1), acertou em deixar com o magistrado o poder de arbitrar o valor dos
danos morais. Entretanto, o mero arbitramento sem ater-se aos critérios acima pode
levar a desajustes dos dois lados, ou seja, o que acabaria prevalecendo seria a
indesejável arbitrariedade: tanto o de uma indenização extremamente pesada que
não possa, sequer, ser paga pelo ofensor, como o de uma reparação extremamente
leve, que acabe premiando o ofensor.
Entretanto, não se pode olvidar que também a adoção isolada de cada um dos
critérios para fixação do dano moral, sem entrelaçá-los pode levar à fixação de
indenizações injustas tanto para o ofensor, quanto para o ofendido. O arbitramento
que levasse em consideração tão-somente a forte capacidade econômica do
ofensor, sem considerar a gravidade da conduta e a repercussão da ofensa, poderia
resultar em um valor irreal, punindo de forma excessiva o ofensor e, por conseguinte,
dando um verdadeiro prêmio ao ofendido por ter sido lesado.
Da mesma forma não se concebe a fixação de uma verba indenizatória que apenas
avalie a gravidade da conduta em si, desconsiderando por inteiro a capacidade
econômica do ofensor e a repercussão no meio social; poder-se-ia chegar aqui a um
valor tão irrisório, mesmo simbólico, que acabaria por premiar o ofensor.
Tem-se que o quantum indenizatório deve resultar da adoção cautelosa de todos os
quatro critérios para que ao final a condenação represente uma punição tal ao
ofensor, que sentir-se-á desestimulado a cometer novas lesões, e ao mesmo tempo
uma compensação à vítima por, injustamente, ter sofrido uma violação em um direito
que lhe é tão caro. Como sustenta Cáio Mário da Silva Pereira, a reparação do dano
moral tem uma natureza compensatória para a vítima e um "caráter punitivo imposto
ao agente"(2). Anote-se que esse desestímulo, na forma de punição pecuniária
acaba se estendendo ao meio social, inibindo também outras pessoas, que tomaram
conhecimento da condenação, e que, portanto, não querem aquilo para si próprias.
Autores como Humberto Theodoro Júnior e Espínola Filho(3) sustentam não ser
função do Direito Civil punir alguém, esta função seria própria do Direito Penal. O
que ocorre é que o próprio instituto da responsabilidade civil e, portanto, da
indenização foi concebido desde os primórdios, da lei de talião até aqui, com o
escopo da punição. O que evoluiu foi a forma de efetivar esta punição; em um
primeiro momento ele centrou-se na própria pessoa do ofensor, nos maus-tratos,
depois evoluiu-se para uma punição pecuniária, independente do dano, apenas de
acordo com a gravidade da conduta, e hoje, modernamente, a punição continua a
ser pecuniária, mas passa a exigir a prova do dano, seja ele material ou moral. Na
indenização por dano material não é difícil enxergar que o ofensor também está
sendo punido quando é obrigado a indenizar a vítima.
Veja o simples caso de uma colisão de automóveis. Fosse o acidente provocado por
um fato alheio a qualquer dos condutores, cada qual assumiria os seus prejuízos,
como sendo "penalizado" pelas fatalidades da vida. Agora, se um dos condutores
deu causa ao acidente, ele deverá sofrer o prejuízo com o dano a seu veículo e
ainda indenizar todos os prejuízos que o outro sofrera. Em outras palavras, o EstadoJuiz vai tirar patrimônio do ofensor para transferi-lo à vítima. E esta transferência
patrimonial acaba revelando-se uma punição exatamente porque com ela o ofensor
acaba mais pobre do que era antes de ofender a esfera jurídica alheia, ou seja,
objetivamente falando, ele se empobrece para impedir o empobrecimento da vítima.
É isso que também vai ocorrer na indenização por dano moral, o problema quanto a
perseguição da idéia punitiva neste tipo de dano decorre do fato de que o bem
lesado não tem valor, está fora de comércio.(4)
Por que a indenização do dano moral a cada dia desperta mais interesse na
sociedade? Evidente que esta tendência deve-se à própria gravidade do dano moral,
que para Carlos Alberto Bittar(5) são "aqueles que atingem os aspectos mais íntimos
da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou da
própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação e da
consideração pessoal)". Neste sentido não se pode banalizar também o dano moral,
enquadrando-o em tudo que cotidianamente desagrada o ser humano, como um
mero aborrecimento, uma querela qualquer. Esses são fatos considerados como
riscos normais da simples convivência social. Se pleiteia-se dano moral é preciso
que o ofendido indique, rigorosamente, qual dos seus direitos da personalidade terá
sido atingido.
Ora, se o dano moral revela-se na ofensa a qualquer dos direitos da personalidade,
direitos como a vida, a liberdade, a integridade física, a honra, a imagem, o respeito
das pessoas, é natural que a sanção civil pecuniária contra essas violações seja um
desejo de toda a sociedade.
A violação a um direito extrapatrimonial, indisponível, inalienável, tão sagrado da
personalidade, sem os quais não se concebe a existência digna de qualquer pessoa
deve, pois, merecer do Estado-Juiz uma justa resposta, no âmbito penal, e também
na esfera cível, na forma da indenização por dano moral que realmente desestimule
de forma exemplar novas violações dos direitos da personalidade no meio social.
NOTAS
(1) Art. 495 do Código Civil português: "Na fixação da indenização deve atender-se
aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito."
(2) Responsabilidade Civil, 9. ed., p. 90, Forense, RJ, 1990.
(3) Espínola Filho, Eduardo. O Dano Moral em Face da Responsabilidade Civil, p.
27, prefácio do livro O Dano Moral no Direito Brasileiro, de Avio Brasil, Rio de
Janeiro, Jacinto, 1944.
(4) Cf. Cahali, Yussef Said. Dano Moral, p. 39, 2. ed., RT, SP, 2000. O referido fala
do caráter sancionatório na reparação do dano moral: "... tem-se que o fundamento
ontológico da reparação dos danos morais não difere substancialmente, quando
muito em grau, do fundamento jurídico do ressarcimento dos danos patrimoniais,
permanecendo ínsito em ambos os caracteres sancionatório e aflitivo, estilizados
pelo direito moderno."
(5) Reparação Civil por Danos Morais, p. 41, RT, São Paulo, 1992.
“EMENTA. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO.
DANO MORAL. ATO PRATICADO POR DELEGADO DE POLÍCIA. DIVULGAÇÃO
TEMERÁRIA DA PRÁTICA DE ABUSO SEXUAL CONTRA ALUNOS DA ESCOLA
DE BASE. NOTÍCIA POSTERIORMENTE DESMENTIDA. AUMENTO DO VALOR
FIXADO PELA CORTE DE ORIGEM. POSSIBILIDADE DE REVISÃO POR ESTE
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.Restaram regularmente analisadas as matérias
discutidas no recurso especial, razão pela qual não há violação ao artigo 535 do
Código de Processo Civil.Não se aplica, na hipótese, a Lei de Imprensa, visto que, "o
que levou os litigantes ao absurdo de serem repudiados e quase linchados pela
população, perdendo não só a honra, mas o estabelecimento de ensino e o sossego
de viver honesta e tranqüilamente, não foi a veiculação jornalística provocada pela
imprensa, e sim a irresponsável conduta do agente estatal" (voto proferido pela
Ministra Eliana Calmon)."Comprovada a responsabilidade subjetiva do agente
público, impõe-se-lhe o dever de ressarcir ao erário do valor preciso e certo do
desfalque provocado, sem que se possa para tal limitá-lo às condições econômicas
do obrigado" (voto proferido pela Ministra Eliana Calmon). "Na oportunidade em que
se fizer a liqüidação por artigos, novos honorários serão devidos e, assim, à vista de
um quantitativo certo e determinado, será de todo pertinente a fixação dos
honorários, nos termos do dispositivo aqui invocado pelos autores (art. 20, § 3º)"
(voto proferido pela Ministra Eliana Calmon). Já decidiu este Superior Tribunal de
Justiça que "o valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do
Superior Tribunal de Justiça, sendo certo que, na fixação da indenização a esse
título, recomendável que o arbitramento seja feito com moderação, observando as
circunstâncias do caso, aplicáveis a respeito os critérios da Lei nº 5.250/67" (REsp nº
295.175/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU de 2.4.2001). Veja-se,
também o REsp nº 439.465/MS, rel. Min. Paulo Medina, julgado em 15.10.2002. A
quantia proposta pelo douto colegiado a quo não é idônea a trazer qualquer alegria
aos autores capaz de fazê-los superar o evento lastimável, que não apenas abalou,
mas destruiu sua reputação e seu equilíbrio emocional. Não há, desde que guardada
a proporcionalidade e razoabilidade da indenização, possibilidade de enriquecimento
ilícito da vítima em detrimento do autor do dano, quer pela própria dificuldade de
mensuração do prejuízo quer pela evidente necessidade de impedir que a
indenização arbitrada seja tão leve que incentive o réu a continuar causando danos
morais contra outras vítimas, ou que a sociedade comece a ver com naturalidade tais
comportamentos e passe a agir da mesma forma. O fato de, eventualmente, o
servidor causador do dano não ter condições de arcar com o valor integral da
indenização pouco importa para a solução da presente controvérsia, visto que, em
casos nos quais se faz presente a responsabilidade civil do Estado, a indenização
deverá ser calculada com base na sua capacidade e não na do agente público
causador do dano. Recurso especial do Estado de São Paulo provido, em parte,
para condenar o litisdenunciado a ressarcir os cofres públicos por inteiro. Recurso
especial dos autores provido para aumentar a indenização a título de danos morais
para R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil reais), para cada um dos recorrentes.
(Recurso Especial nº 351779/SP (2001/0112777-9), 2ª Turma do STJ, Rel. Min.
Eliana Calmon. Rel. p/ Acórdão Min. Franciulli Netto. j. 19.11.2002, unânime, DJ
09.02.2004).”
Referência Legislativa:
Leg. Fed. CF/1988 Art. 37 Par. 6º
Leg. Fed. Lei 8.112/1990 Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União
Art. 46 Art. 122
Leg. Fed. Lei 3.071/1916 Código Civil Art. 159
Leg. Fed. Lei 5.869/1973 Código de Processo Civil Art. 20 Par. 3º Par. 4º
Doutrina:
Obra: Instituição de Direito Civil, Forense, 12. ed., v. 2, p. 242-243. Autor: Caio Mário
da Silva Pereira.
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