A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS Édis Milaré1 Renata Castanho2 Sumário: 1. Introdução. - 2. A regra geral do CPC. - 3. A regra especial do CDC. - 4. A polêmica nas ações ambientais. - 4.1. Argumentos contrários à inversão. 4.2. Argumentos favoráveis à inversão. - 4.3. Um caminho a ser trilhado. - 5. As inovações do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. – 5.1. Histórico. – 5.2. A distribuição do ônus da prova no Anteprojeto. - 6. Conclusões. 1. Introdução A Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII, causou profundas mudanças na sociedade, em especial o surgimento da chamada sociedade de massa, que trouxe, em seu bojo, diferentes conflitos sociais. Esta nova ordem coletiva apontou a necessidade de reestruturação das regras do direito positivo e processual, em especial a alteração da prestação jurisdicional, que passaria a enfrentar conflitos entre interesses metaindividuais (jurisdição coletiva), sem prejuízo das já conhecidas lides individuais. 1 Procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Professor de Direito Ambiental, advogado e consultor jurídico ambiental. Ex-coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e exSecretário de Estado do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. 2 Advogada, militante da área ambiental. Especialista em Gestão Ambiental e Mestranda em Processo Civil pela USP. Professora de Direito Ambiental em cursos de pós-graduação lato sensu. A partir dessa constatação, de que os instrumentos processuais até então existentes eram adequados apenas para a solução de conflitos intersubjetivos, não sendo suficientes para a jurisdição coletiva, a doutrina passou a buscar, no direito alienígena, meios alternativos de solução dos conflitos metaindividuais, adaptando alguns institutos e inovando em outros. Assim é que, em 1985, nosso ordenamento foi impulsionado por um avanço significativo, mediante a edição da Lei da Ação Civil Pública - LACP (Lei 7.347/85), posteriormente integrada, em 1990, pelo Código de Defesa do Consumidor - CDC (Lei 8.078/90). Estes diplomas, em consonância com a Constituição Federal de 1988, criaram um microssistema processual especificamente destinado à tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil - CPC. O microssistema processual coletivo modernizou institutos tradicionais e individualistas do processo civil, de resto inadequados à tutela dos interesses metaindividuais. E, dentre os institutos tradicionais que não se mostravam satisfatórios à defesa dos interesses coletivos, destaca-se a questão relativa à distribuição do ônus da prova. 2. A regra geral do CPC Para melhor entendermos a questão relativa à inversão no ônus da prova, vale recordar a regra geral do Código de Processo Civil - CPC sobre a distribuição deste encargo processual. 2 Como é sabido, todos os pretensos direitos que podem figurar nos litígios a serem solucionados pela Justiça originam-se de fatos. Do exame dos fatos e de sua adequação ao direito, o juiz extrairá a solução do litígio. Assim, o processo de conhecimento tem como objeto as provas dos fatos alegados pelos litigantes, de cuja apreciação o juiz deverá definir a solução jurídica para a lide. Às partes não basta simplesmente alegar os fatos. Para que a sentença declare o direito, é preciso, antes de tudo, que o juiz se certifique da verdade do fato alegado, o que se dá através das provas. Certo é que no processo civil predomina o princípio dispositivo, que entrega a sorte da causa à diligência ou ao interesse da parte; por isso, assume especial relevância a questão do ônus da prova. Este ônus consiste na conduta processual exigida da parte para que a verdade dos fatos por ela arrolados seja admitida pelo juiz. Em atenção ao princípio dispositivo, o CPC, em seu artigo 333, repartiu o ônus da prova entre os litigantes do seguinte modo: “Art. 333 – O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”. Logo, cada litigante tem o ônus de provar os pressupostos fáticos do direito que pretende seja aplicado pelo juiz na solução do litígio. Esta é a regra clássica vigente no processo civil comum, desde o Direito Romano. Por se tratar de regra geral, a disciplina do CPC sobre a distribuição do ônus da prova está sujeita a exceções. 3 3. A regra especial do CDC Uma das exceções à regra clássica de distribuição do ônus da prova vamos encontrar no CDC, que, seguindo a tendência do moderno processo civil, estabeleceu, entre outros direitos básicos do consumidor, “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências” (artigo 6º, VIII). A necessidade de um tratamento processual diferenciado para a defesa do consumidor em juízo já se fazia sentir desde os tempos em que “a sociedade de consumo (mass consumption ou Konsumgesellschaft), caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça”, tornou-se uma verdade sabida e inegável3. Partindo do pressuposto de que o consumidor está em franca desvantagem perante o fornecedor de produtos e serviços, o CDC reconhece a vulnerabilidade daquele em face deste, conferindo-lhe então especial proteção legal, de cunho material e processual, com vistas a reequilibrar esta relação de consumo. Pois bem. Uma das formas eleitas pelo legislador para reequilibrar a relação de consumo foi a inversão do ônus da prova em favor do consumidor4, desde que a sua alegação seja verossímil ou que seja ele hipossuficiente. A verossimilhança de que fala a Lei deve ser entendida como a aparência de veracidade da alegação, a exemplo do que já se exige para a antecipação dos efeitos da tutela (CPC, artigo 273). Em outro dizer, “é o juízo de aparência da verdade, não é a 3 Ada Pellegrini Grinover e Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin. Introdução. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 6. 4 Vale lembrar que a inversão do ônus da prova poderá “incidir qualquer que seja a via eleita para a defesa dos direitos do consumidor, isto é, seja em ações individuais ou coletivas” (Débora de Oliveira Ribeiro. Inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. São Paulo, 2005. Dissertação de mestrado. Data da Defesa 23.05.2005. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. p. 117). 4 verdade; é o juízo de verossimilhança fundado nas afirmações da parte somado às regras de experiência”5. A hipossuficiência, de outro lado, está relacionada à menor capacidade do consumidor de produzir a prova, seja porque ele não dispõe de recursos econômicos para arcar com os seus custos (hipossuficiência econômica), seja porque o consumidor não domina as informações acerca do funcionamento do produto ou das condições de prestação do serviço (hipossuficiência técnica), ou porque “há invencível dificuldade que impede acesso à obtenção das informações nas quais estaria consubstanciada a prova do direito alegado”6 (hipossuficiência informativa), dentre outras razões. Reconhecendo que as alegações do consumidor têm aparência de veracidade ou7 que este não tem acesso ou não domina as informações técnicas acerca do produto ou serviço adquirido (hipossuficiente), o juiz pode determinar a inversão do ônus da prova, impondo ao fornecedor o encargo de fazer a prova de que as alegações do consumidor não procedem. Não resta dúvida, portanto, de que a inversão do ônus da prova nas relações de consumo é um direito do consumidor, que decorre de texto expresso de Lei, tratando-se de regra especial, que prevalece sobre a regra geral do CPC. 5 Tânia Lis Tizzoni Nogueira. A prova no direito do consumidor: o ônus da prova no direito das relações de consumo. Curitiba: Juruá, 2000, p. 120. 6 Sandra Aparecida Sá dos Santos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 p. 75. 7 Ressaltando a alternatividade dos requisitos estabelecidos na Lei, cite-se Barbosa Moreira: “o ato judicial, devidamente motivado, indicará a ocorrência de uma dentre essas duas situações: a) a alegação do consumidor é verossímil; ou b) o consumidor é hipossuficiente. O emprego da conjunção alternativa e não da aditiva ‘e’, significa que o juiz não haverá de exigir a configuração simultânea de ambas as situações, bastando que ocorra a primeira ou a segunda” (In Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo, São Paulo, v. 22, n. 86, abr./jun. 1997, p. 295-309). No mesmo sentido: Kazuo Watanabe. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 792/797. Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo. 18ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 166. Em sentido contrário: Antonio Gidi. Defesa do consumidor – aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Ciência Jurídica, n. IX, v. 64, 1995, p. 69. 5 4. A polêmica nas ações ambientais Mesmo raciocínio, entretanto, não se pode aplicar às ações em defesa do meio ambiente. A questão relativa à inversão do ônus da prova em matéria ambiental não é, nem de longe, pacífica. Ao contrário do que ocorre nas relações de consumo, em que há disposição expressa determinando a inversão do ônus da prova, em matéria ambiental não há lei que preveja expressamente esta possibilidade. Como visto, a LACP, que norteia as ações judiciais em defesa do meio ambiente, integra-se com o CDC em sua parte processual, formando um verdadeiro microssistema processual coletivo, especificamente destinado à tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Esta inter-relação entre a Lei 7.347/85 e o Título III da Lei 8.078/90 decorre de disposição expressa de ambos os diplomas (artigo 90 do CDC e artigo 21 da LACP8), estabelecendo-se uma verdadeira via de mão-dupla. Ocorre que o dispositivo legal que prevê a inversão do ônus da prova nas relações de consumo (artigo 6º, inciso VIII) não integra o Título III do CDC (artigo 76 e seguintes). Esta particularidade tem gerado grandes discussões acerca da possibilidade de inversão do ônus da prova nas ações civis públicas ambientais. Deveras, tirante as questões envolvendo relações de consumo, não há unicidade em doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de inversão do ônus da prova nos processos coletivos fundados na LACP. Analisemos, sucintamente, um e outro posicionamentos. 8 Dispositivo acrescentado pelo artigo 117 da Lei 8.078/90. 6 4.1. Argumentos contrários à inversão Pesam contra a inversão do ônus da prova, nas ações ambientais, os seguintes argumentos. O primeiro é textual e decorre da própria redação do artigo 21 da Lei 7.347/85, que se refere apenas aos dispositivos do Título III da Lei 8.078/90, deixando de incluir, deliberadamente, o artigo 6º, inciso VIII, do CDC. Esta constatação, por si só, é suficiente para que tal dispositivo não seja aplicado às ações civis públicas ambientais9, por força do princípio da legalidade e pelas regras do direito positivo. O segundo argumento baseia-se no fato de que a inversão do ônus da prova constitui um gravame para o réu. Sendo assim, a regra do artigo 6º, inciso VIII, do CDC não pode ser aplicada extensiva ou analogicamente às ações civis públicas que não envolvam relações de consumo, dado que é vedada a interpretação analógica ensejadora de restrição a direitos. Outro aspeto contrário à inversão nas ações ambientais está relacionado à influência que o direito material consumerista exerce sobre as regras processuais do CDC, que se destinam a reequilibrar a relação entre consumidor e fornecedor10. Com efeito, a inversão do ônus da prova é um dos mecanismos que revelam a nítida aproximação entre os direitos material e processual nas relações de consumo, “na medida em que esta [a inversão] faz com que os recursos da tutela jurisdicional sejam compatíveis com o direito material discutido no processo”11. 9 Nesse sentido Ada Pellegrini Grinover. Ações ambientais de hoje e amanhã. Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão / coord. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 252. 10 Tanto que a inversão do ônus da prova vem disciplinada no artigo 6º do CDC, que trata dos direitos básicos do consumidor, e não no Título III, que dispõe sobre a defesa do consumidor em juízo. 11 Débora de Oliveira Ribeiro, Op. cit., p. 121, citando Rodrigo Xavier Leonardo. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 249. 7 Nesta esteira, partindo do pressuposto de que a inversão do ônus da prova encontra sua justificativa na relação (material) de consumo, pode-se concluir que a “regra dispondo sobre a inversão do ônus da prova é norma de direito processualmaterial, incluindo-se entre aquelas normas do processo que são diretamente relacionadas e influenciadas pelos elementos e pela disciplina da relação jurídica material respectiva e que, como tais, não podem ser dissociadas do direito substancial debatido no processo”12. Nesse caso, a inversão do ônus da prova constitui mecanismo de facilitação da defesa do consumidor em juízo, tendo em vista as peculiaridades da relação entre este e o fornecedor, não se podendo estender um elemento da relação jurídica material de consumo a todas as outras demandas coletivas, em que se discutem outros direitos substanciais. Realmente, as demais relações jurídicas tuteladas pela LACP não se caracterizam necessariamente por um desequilíbrio entre os litigantes a ser restabelecido – em que pese a relevância do bem jurídico em jogo. Tampouco, a dificuldade probatória de uma das partes corresponde à facilidade da outra. Há casos em que a prova é de difícil produção para ambas as partes. Nesta hipótese, impor ao réu o ônus da prova, sem que haja previsão expressa de lei, e sem que a relação de direito material assim o requeira, é atentatório do princípio da isonomia (afinal, se não há desigualdade a reequilibrar, a inversão do ônus da prova é que causará um desequilíbrio e, por conseguinte, uma desigualdade). Como pondera Carmela Dell’Isola, “o tema da inversão do ônus da prova deve ser analisado com as precauções necessárias, a fim de que não sejam violados os dispositivos constitucionais e os princípios que orientam, sob o mesmo prisma constitucional, o processo civil brasileiro. Não se pode impor, de modo arbitrário, a uma das partes o encargo de uma probatio diabolica, o que eliminaria a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, bem como a igualdade assegurada pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal brasileira”13. 12 Novamente, Débora de Oliveira Ribeiro, Op. cit., p. 121 e 122. Carmela Dell'Isola. O ônus da prova e sua inversão no processo civil. São Paulo, 2001. Dissertação de mestrado. Data da Defesa 06.04.2001. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. p. 92. 13 8 4.2. Argumentos favoráveis à inversão De outro lado, a favor da inversão do ônus da prova nas ações civis públicas ambientais, destacam-se os seguintes argumentos. O primeiro vale-se de uma interpretação sistemática, ontológica e teleológica, no sentido de que o artigo 21 da Lei 7.347/85, quando se referiu ao Título III da Lei 8.078/90, quis dizer, em verdade, que se aplicam à LACP as “normas processuais” do CDC, o que abrange a regra relativa à inversão do ônus da prova, que tem caráter nitidamente processual. Este é o posicionamento de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, para os quais “são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo o Título III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova”14. O segundo argumento está relacionado ao princípio da precaução, norteador do Direito Ambiental, segundo o qual “a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a evitar a degradação do meio ambiente”15. Com base neste princípio, o critério da certeza é substituído pelo critério da probabilidade, com vistas a resguardar, o máximo possível, a integridade do ambiente, eximindo o autor da ação civil pública ambiental de provar o receio de dano. É o que leciona Álvaro Luiz Valery Mirra: “Pode-se dizer que, nas ações ambientais, para o autor da demanda basta a demonstração de elementos concretos e com base científica, que levem à conclusão quanto à probabilidade da caracterização da degradação, cabendo então ao réu a comprovação de que a sua conduta ou atividade, 14 Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 7ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 1.355 (comentário ao artigo 21 da LACP). 15 Édis Milaré. Direito do Ambiente. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 167. 9 com absoluta segurança, não provoca ou não provocará a alegada ou temida lesão ao meio ambiente. Assim, o princípio da precaução tem também esta outra relevantíssima conseqüência na esfera judicial: acarretar a inversão do ônus da prova...”16. Conforme já tivemos oportunidade de sustentar, “A incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não trarão conseqüências indesejadas ao meio considerado”17. Corroborando este entendimento, Paulo Affonso Leme Machado, citando os autores Alexandre Kiss e Dinah Shelton, aduz que: “Em certos casos, em face da incerteza científica, a relação de causalidade é presumida com o objetivo de evitar a ocorrência de dano. Então, uma aplicação estrita do princípio da precaução inverte o ônus normal da prova e impõe ao autor potencial provar, com anterioridade, que sua ação não causará danos ao meio ambiente”18. 4.3. Um caminho a ser trilhado Do exposto até aqui, duas conclusões podem ser extraídas sobre a inversão do ônus da prova em matéria ambiental: a primeira diz com a inexistência de disposição expressa de lei que a sustente, tratando-se de um gravame para o réu; a segunda, de que é necessário e premente que a lei discipline o assunto, tendo em vista a relevância do interesse em jogo. Considerando-se que a qualidade de vida das presentes e futuras gerações depende, inquestionavelmente, do equilíbrio ecológico e da integridade do ambiente, dúvida não há de que a sua proteção é um meio de garantir a própria existência da espécie humana. Ora, seguindo este raciocínio, é de se admitir que são bem vindos todos os instrumentos que possam auxiliar na defesa do meio ambiente. 16 Álvaro Luiz Valery Mirra. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano ao Meio Ambiente. 2ª ed.. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 268. 17 Édis Milaré. Op. cit., p. 167. 18 Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 69. 10 Daí não se poder prescindir, em sede de tutela jurisdicional do ambiente, da inversão do ônus da prova, como mecanismo facilitador de sua proteção. Todavia, por mais justificável que seja, do ponto de vista filosófico, a inversão do ônus da prova em favor da defesa dos valores ambientais, não se pode permitir qualquer violência aos cânones do Estado de Direito. Sim, porque os cidadãos têm direitos e eles precisam ser respeitados. Como visto, é princípio jurídico assente não se poder socorrer de analogia quando esta leve à restrição de direitos. Atualmente, a inversão do ônus da prova em matéria ambiental, segundo a rigorosa dicção do artigo 21 da Lei 7.347/85, violenta postulados básicos, como o devido processo legal e a isonomia das partes. Para que se resguarde o Estado de Direito, de um lado, e se assegure a defesa do meio ambiente, de outro, a inversão do ônus da prova, no caso, está a desafiar regra legal expressa, a exemplo do que fez o CDC nas relações de consumo. Até porque, como já salientamos alhures, o direito ambiental não pode contentar-se em ser um “meio direito”, valendo-se sempre da força da muleta dos outros ramos do direito para poder sustentar-se. Assim, “... não surpreenderá que o caminho a prosseguir conduza e justifique a instituição legal de um sistema assentado na inversão do ônus da prova, à semelhança do que já ocorre entre nós, em tema de relações de consumo”.19 É certo, portanto, que o legislador está a nos dever uma disciplina clara e expressa acerca da distribuição do ônus da prova em matéria ambiental. Enquanto isso não se fizer, a aplicação extensiva do artigo 6º, inciso VIII, do CDC não pode ser admitida. 19 Édis Milaré. Op. cit., p. 833. Comungam desse sentir, entre outros: Sérgio Ferraz. Responsabilidade civil por dano ecológico. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 49 e 50, 1979, p. 38; Francisco José Marques Sampaio. Responsabilidade civil e reparação de danos ao meio ambiente, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 232-233; José Rubens Morato Leite. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 193-195. 11 Nesse sentido, merece destaque a lição de Ada Pellegrini Grinover: “A caminhada do processualista, no campo ambiental, ainda não está concluída. Em primeiro lugar, porque algumas importantes disposições do CDC não são aplicáveis à LACP, por não se inserirem entre as disposições processuais do Código (é o caso, p. ex., da regra que possibilita ao juiz a inversão do ônus da prova, importante para as ações ambientais, quanto ao nexo causal)”20. Na mesma esteira, Francisco José Marques Sampaio salienta que “para que sejam incrementados os casos de reparação do dano ambiental, é mister a criação legal de situações de inversão do ônus da prova e a ampliação do âmbito de discricionariedade do julgador (...)”21. Assim, pelo bem do próprio sistema, para que não haja incertezas e lacunas, urge que o legislador discipline, de maneira expressa, a distribuição do ônus da prova em matéria ambiental. 5. As inovações do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos 5.1. Histórico A exemplo da questão ora tratada (da possibilidade ou não inversão do ônus da prova em matéria ambiental), inúmeras outras dificuldades têm se apresentado no campo prático, no exercício da jurisdição coletiva. Com efeito, institutos processuais da LACP e do CDC têm dado margem a grandes discussões que, por vezes, comprometem a própria efetividade dessas normas. 20 Ada Pellegrini Grinover. Ações ambientais de hoje e amanhã. Dano ambiental... Op. cit., p. 252. Francisco José Marques Sampaio. O dano ambiental e a responsabilidade. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 317, p. 125, jan/mai. 1992. 21 12 A uma porque, ainda hoje, os juízes têm aplicado às lides coletivas alguns institutos típicos dos conflitos intersubjetivos, gerando entraves à garantia constitucional de acesso à ordem jurídica justa. Como salienta Rodolfo de Camargo Mancuso, “fatores diversos, que vão da mera desinformação até o desinteresse pelo estudo e acompanhamento da evolução do Direito, especialmente o Processual, têm levado a lamentáveis equívocos no trato judiciário de conflitos metaindividuais, não raro baralhando-se conceitos e categorias que relevam dos planos coletivo e individual, tudo resultando em situações de perplexidade e de injustiça, com graves prejuízos para muitos jurisdicionados e desprestígio para o Judiciário”22. A duas, porque “Os resultados colhidos do dia-a-dia forense e dos debates acadêmicos demonstram que as soluções oferecidas pelos processos coletivos podem e devem ser aperfeiçoados. Os princípios e normas gerais pertinentes aos processos coletivos precisam ser reunidos em um estatuto codificado, dando tratamento sistemático e atual para a tutela coletiva, bem como preenchendo as lacunas existentes e dando respostas às dúvidas e controvérsias que grassam no meio jurídico”23. Com vistas a sanar estas dificuldades e atendendo aos anseios sociais, alguns doutrinadores passaram a estudar uma nova alternativa que compilasse e homogeneizasse o tratamento das normas processuais especificamente destinadas aos conflitos metaindividuais – isso no plano internacional e nacional. Os Professores Ada Pellegrini Grinover, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, Antonio Gidi e Kazuo Watanabe, enquanto representantes brasileiros do Instituto IberoAmericano de Direito Processual, participaram da elaboração e aperfeiçoamento do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América24, que homogeneizou as normas processuais específicas para a defesa dos interesses metaindividuais nos países membros. 22 Rodolfo de Camargo Mancuso. A concomitância de ações coletivas, entre si, e em face das ações individuais. RT, v. 89, n. 782, São Paulo, dez. 2000, p. 29. 23 Texto extraído da apresentação do Anteprojeto elaborado em conjunto nos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá (UNESA). 24 Aprovado nas Jornadas do Instituto Iberto-Americano de Direito Processual, na Venezuela, em 2004. 13 Inspirados pelas reformas propostas no Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e cônscios das dificuldades na aplicação prática da atual legislação, Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe25 deram início à elaboração de um diploma legal destinado a reunir, sistematizar e inovar os dispositivos processuais aplicáveis às demandas coletivas. Paralela e concomitantemente, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes desenvolveu uma discussão em torno do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos junto à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Estácio de Sá, resultando noutra proposta de Anteprojeto, que muito contribuiu para o aprimoramento da questão. Assim, ao mesmo tempo em que se comemoram os 20 anos da LACP e os 15 anos do CDC, encontra-se em discussão o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, que “objetiva reunir, sistematizar e melhorar as regras sobre ações coletivas, hoje existentes em leis esparsas, às vezes inconciliáveis entre si, harmonizando-as, conferindo-lhes tratamento consentâneo com sua relevância jurídica, social e política”26. 5.2. A distribuição do ônus da prova no Anteprojeto Dentre as inovações do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, destaca-se o tema relativo à inversão do ônus da prova que, a nosso ver, foi tratado de forma bastante ponderada e sensata. Confira-se: “Art. 10. Provas – São admissíveis em juízo todos os meios de prova, desde que obtidos por meios lícitos, incluindo a prova estatística ou por amostragem. Par. 1o. Sem prejuízo do disposto no artigo 333 do Código de Processo Civil, o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou 25 Juntamente com um grupo de pós-graduandos (mestrandos e doutorandos) da Universidade de São Paulo. 26 Ada Pellegrini Grinover. Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos. Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desafios / coord. Édis Milaré. São Paulo: RT, 2005, p. 16. 14 informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração. Par. 2º. O ônus da prova poderá ser invertido quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação, segundo as regras ordinárias de experiência, ou quando a parte for hipossuficiente. Par. 3o. Durante a fase instrutória, surgindo modificação de fato ou de direito relevante para o julgamento da causa (parágrafo único do artigo 4º deste Código), o juiz poderá rever, em decisão motivada, a distribuição do ônus da prova, concedendo à parte a quem for atribuída a incumbência prazo razoável para sua produção, observado o contraditório em relação à parte contrária (artigo 23, parágrafo 5º, inciso IV). Par. 4º. O juiz poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório”27. Responsável e discretamente, a proposta do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos parece ter atendido aos mais legítimos anseios da sociedade, atingindo um equilíbrio entre os princípios constitucionais que orientam o processo civil brasileiro e a proteção efetiva e necessária dos bens difusos e coletivos. O equilíbrio do Anteprojeto está justamente no fato de que ele não proíbe, nem impõe, como regra absoluta e imutável, a inversão do ônus da prova nas ações coletivas. Não há uma regra estanque, e sim dinâmica. O parágrafo 1º do artigo do Anteprojeto entrega à casuística a distribuição do ônus da prova, abraçando a idéia de que o encargo probatório deve recair sobre aquele que detém maior facilidade para produzir a prova. O bom senso e o princípio da economia processual estão a recomendar que a prova deva incumbir à parte que, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, esteja em melhores condições de produzi-la28. 27 Conforme texto encaminhado pelos organizadores do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos - Dezembro de 2005 - Ministério da Justiça - Última versão. 15 Vale dizer, o Anteprojeto não afasta a regra geral do CPC (artigo 333), e demonstra razoabilidade ao permitir que a distribuição do ônus da prova seja feita de acordo com a proximidade das partes em relação a ela. A flexibilidade do Anteprojeto reside no fato de reconhecer que, em determinadas situações, a prova é de difícil produção para ambas as partes, sendo que a dificuldade de uma delas não significa, necessariamente, a facilidade da outra. Nestes casos, o Anteprojeto não beneficia, de plano, o autor da ação. Pelo contrário, o autor só será desincumbido do ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito se o réu detiver maior facilidade para produzir a prova. É como se o critério da hipossuficiência fosse substituído pelo da hiperssuficiência. Vale dizer, a fraqueza de uma das partes não a exime, necessariamente, do seu encargo processual. É a força da parte contrária que atribuiu a esta o ônus de produzir a prova, numa espécie de vis attractiva. Conforme lição do Prof. Kazuo Watanabe: “Ocorrendo, assim, situação de manifesta posição de superioridade do fornecedor em relação ao consumidor, de que decorra a conclusão de que é muito mais fácil ao fornecedor provar sua alegação, poderá o juiz proceder à inversão do ônus da prova”29. Arriscamo-nos a dizer, neste ponto, que o Anteprojeto acabou afastando uma possível influência da relação jurídica de direito material sobre a distribuição dos encargos no processo – a exemplo do que ocorre nas relações de consumo. Com isto, a prova será atribuída a quem, processualmente, tiver melhores condições de produzi-la (tornando a instrução mais eficiente, mais econômica e mais célere), independentemente de haver ou não um desequilíbrio no campo do direito material. Em que pese o avanço trazido pelo texto em comento, o parágrafo 2º do citado artigo 10 permanece exigindo a verossimilhança ou a hipossuficiência como requisitos 28 Neste sentido, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 5, t. 1, p. 205. 29 Kazuo Watanabe. Código de Defesa do Consumidor comentado... Op. cit., p. 795 (grifamos). 16 para que o juiz possa inverter o ônus da prova nas ações coletivas, a exemplo do que já exigia o CDC. Quer-nos parecer, com a devida vênia, que os requisitos do parágrafo 2º são dispensáveis, diante da liberdade introduzida pelo parágrafo 1º. Talvez por isso a exigência da verossimilhança ou da hipossuficiência não estivesse presente nas versões anteriores do Anteprojeto30, como de fato não está na versão do Prof. Aluísio Gonçalves de Castro Mendes31. De qualquer forma, pela redação atual do parágrafo 2º do artigo 10 do Anteprojeto, o juiz só poderá inverter o ônus da prova quando for verossímil a alegação ou quando a parte for hipossuficiente. Pensemos, então, numa ação coletiva em defesa do meio ambiente em que se questiona a validade das licenças ambientais emitidas a determinada empresa potencialmente poluidora. Neste caso, considerando-se que a licença é um ato administrativo dotado de presunção de legitimidade, é de se reconhecer que a verossimilhança das alegações estará, salvo prova em contrário, com o réu. A hipossuficiência, por sua vez, não poderá ser aplicada ao Ministério Público, pois a Instituição detém meios de realizar prova em seu favor, já que conta com uma sólida e eficaz estrutura de apoio (os Centros de Apoio Operacional, por exemplo), assim como dispõe de um fortíssimo instrumento, consubstanciado no inquérito civil, que permite ao Promotor de Justiça requisitar, de quaisquer organismos públicos e privados, certidões, informações, exames ou perícias32 - inclusive, sob pena de crime, nos termos do artigo 10 da Lei 7.347/85. 30 Cite-se, como exemplo, a versão de maio de 2005, publicada na cartilha “Rumo a um Código Brasileiro de Processos Coletivos: Documentos Básicos para Análise e Discussão”, organizada por Carlos Alberto de Salles, por ocasião do 1º Seminário Internacional de Direitos Coletivos, da Universidade Católica de Santos. 31 Vide Art. 19 do Anteprojeto elaborado em conjunto nos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá (UNESA). 32 Conforme artigo 8º, §1º, da Lei 7.347/85. 17 De outro lado, no que tange ao parágrafo 3° do artigo 10 do Anteprojeto, nota-se que foram privilegiados os princípios que orientam o processo civil brasileiro, assegurando o contraditório e a ampla defesa nos casos de inversão do ônus da prova. Ainda com relação ao parágrafo 3º, este não assumiu uma posição estanque quanto ao momento processual para se determinar a inversão, admitindo-a mesmo “durante a fase instrutória”, desde que o juiz abra nova oportunidade de produção de provas para a parte sobre a qual pesa o ônus recém-invertido (eliminando eventuais prejuízos decorrentes do fator surpresa). Vale lembrar que a questão relativa ao momento processual mais adequado para se determinar a inversão do ônus da prova foi objeto de muitas discussões no âmbito do CDC. Enquanto alguns doutrinadores defendiam que a inversão do ônus da prova deveria ser determinada antes do início da fase probatória (no despacho inicial ou, de preferência, no saneamento), outros entendiam que a inversão do ônus da prova era uma regra de julgamento e, como tal, deveria ser aplicada no momento da prolação da sentença. Sem tomar partido a priori, o Anteprojeto se preocupa em garantir o contraditório e a ampla defesa, na linha do que já propunha Hugo Nigro Mazzilli: “Quid juris se o juiz se der conta de que é caso de inverter o ônus da prova somente depois que os autos lhe estiverem conclusos para sentença? Bem, nesse caso, não lhe restará senão converter o julgamento em diligência e facultar à parte contra quem passa a pesar o ônus a possibilidade de produzir novas provas”33. Cumpre, ainda, salientar, numa visão geral do Anteprojeto (aí incluídos o caput e os parágrafos do artigo 10), que o texto está permeado por uma nítida ampliação dos poderes do juiz, em consonância com a defining function, de que fala o direito norteamericano para as class actions. Conforme dito na Exposição de Motivos do Anteprojeto, o aumento dos poderes do juiz corresponde à necessidade de flexibilização da técnica processual nas ações coletivas. 33 Hugo Nigro Mazzilli. A defesa dos interesses difusos em juízo. 18ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 166. 18 A esse respeito, vale ponderar que os poderes do juiz atinentes à distribuição do ônus da prova, nos moldes do Anteprojeto, parecem não violar o direito do acusado de não produzir prova contra si mesmo. Isso porque se trata, justamente, de um ônus processual, e não de um dever. Assim, estando o réu mais próximo dos elementos de convicção, o juiz poderá incumbi-lo do ônus da prova, em que pese não ser o réu obrigado a produzi-la contra si. Neste caso, se o réu não produzir a prova, poderá ter como conseqüência um julgamento desfavorável, a exemplo do que já ocorre com ações de investigação de paternidade em que o suposto pai se nega a fazer o exame de DNA. Mesmo raciocínio se aplica aos casos de sigilo. O juiz não pode obrigar o réu a quebrar seu sigilo profissional ou empresarial, mas isso não o impede de distribuir o ônus da prova nos termos autorizados pelo Anteprojeto. De outro lado, cabe destacar que as disposições do artigo 10 do Anteprojeto têm correspondência com o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América que, em seu artigo 12, também prevê que o ônus da prova incumbe à parte que tiver maior facilidade em sua demonstração. Mas este Diploma vai mais além, ao determinar que, “se por razões de ordem econômica ou técnica, o ônus da prova não puder ser cumprido, o juiz determinará o que for necessário para suprir a deficiência e obter elementos probatórios indispensáveis para a sentença de mérito, podendo requisitar perícias à entidade pública cujo objeto estiver ligado à matéria em debate, condenandose o demandado sucumbente ao reembolso. Se assim mesmo a prova não puder ser obtida, o juiz poderá ordenar a realização, a cargo do Fundo de Direitos Difusos e Individuais Homogêneos” (artigo 12, parágrafo 1º). Ainda, confrontando o Anteprojeto, ora analisado, com a proposta do Professor Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, constata-se uma grande semelhança entre eles, com exceção dos requisitos da verossimilhança e da hipossuficiência (exigidos no primeiro e ausentes na segunda), e do momento processual adequado para o juiz determinar a inversão, que na proposta carioca deve ocorrer “por ocasião da decisão saneadora”34. 34 Vide artigo 19, parágrafo 1º: “O ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração, cabendo ao juiz deliberar sobre a distribuição do ônus da prova por ocasião da decisão saneadora” (g.n.). 19 No mais, o Anteprojeto merece elogios pelo simples fato de ter dado tratamento unificado ao assunto, para todas as ações coletivas, quer versem sobre relações de consumo, quer versem sobre meio ambiente ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo, propondo soluções concretas para o aprimoramento dos processos coletivos, com vistas a garantir o acesso à ordem jurídica justa. Por fim, registre-se que a edição de um Código Brasileiro de Processos Coletivos vai ao encontro de uma nova teoria que tem se formado a respeito da especialização35 do Direito Processual Coletivo enquanto ramo do direito processual36. 6. Conclusões Como visto, no processo civil tradicional predomina o princípio dispositivo, segundo o qual o ônus da prova incumbe a quem alega. Ou seja, a sorte da causa fica entregue à diligência ou ao interesse da parte. A regra clássica do CPC, no entanto, não se mostrava adequada à sociedade de consumo, especialmente para a defesa de interesses metaindividuais. Seguindo a tendência do moderno processo civil, o CDC estabeleceu especial proteção ao consumidor, por meio da inversão do ônus da prova em seu favor, desde que a sua alegação seja verossímil ou que seja ele hipossuficiente. 35 Dizemos especialização e não autonomia do Direito Processual Coletivo porque “o Direito é um só, no qual a influência recíproca e a relação contínua entre os seus diversos ramos é inevitável” (cf. Édis Milaré. Op.cit., p. 175). 36 Gregório de Almeida Assagra. Direito Processual Coletivo Brasileiro - Um novo ramo do Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 15-23; e Ada Pellegrini Grinover. Direito Processual Coletivo. Tutela Coletiva: 20 anos da Ação Civil Pública e Fundo de Defesa de Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor / Coord. Paulo Henrique dos Santos Lucon. São Paulo: Atlas, 2006, p. 302-308. 20 O ordenamento jurídico – ambiental, no entanto, não conta com disposição expressa de lei permitindo a inversão do ônus da prova nas demandas ajuizadas em prol do ambiente. Em que pese a falta de previsão expressa, dúvida não há de que a tutela jurisdicional do ambiente ganharia maior efetividade com a inversão do ônus da prova. Daí dizermos que o legislador está a nos dever uma disciplina clara e expressa acerca da distribuição do ônus da prova em matéria ambiental. Com vistas a atender a este e a outros anseios, encontra-se em discussão o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, que reuniu, sistematizou e inovou os dispositivos processuais aplicáveis às demandas coletivas. No que toca à distribuição do ônus da prova, o Anteprojeto não proíbe, nem impõe, como regra absoluta e imutável, a inversão do ônus da prova nas ações coletivas, assegurando, de um lado, os princípios constitucionais que orientam o processo civil brasileiro e, de outro, a proteção efetiva e necessária dos bens difusos e coletivos. Em suma, vale repisar que o Anteprojeto merece elogios pelo simples fato de ter dado tratamento unificado ao assunto, para todas as ações coletivas, quer versem sobre relações de consumo, quer versem sobre meio ambiente ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo, propondo soluções concretas para o aprimoramento dos processos coletivos, com vistas a garantir o acesso à ordem jurídica justa. 21