CAPÍTULO . Anestésicos Locais LUIZ FERNANDO DOS REIS FALCÃO A M É R I C O M A S S A F U N I YA M A S H I TA INTRODUÇÃO Os anestésicos locais (AL) são fármacos que, em concentrações adequadas, possuem a propriedade específica de bloquear de forma reversível a geração e a propagação de impulsos elétricos em tecidos excitáveis, abolindo a sensibilidade e até a atividade motora.1 A vantagem prática dos AL baseia-se no fato de que sua ação é reversível em concentrações clinicamente relevantes, pois sua utilização é seguida pela recuperação completa na função do nervo, sem evidências de lesão nas células ou fibras nervosas. O primeiro anestésico local de valor clínico a ser usado foi a cocaína. Esse composto puro foi isolado inicialmente em 1860, por Albert Niemann que notou um gosto amargo que produzia o entorpecimento da língua, tornando-a insensível e quase destituída de sensação. Em 1880, Von Anrep observou que quando a cocaína era infiltrada no tecido subcutâneo a pele tornava-se insensível à picada de um alfinete. No entanto, embora já tivesse seu uso clínico recomendado, a cocaína foi utilizada somente quando Carl Köller a introduziu na oftalmologia como anestésico local, em 1884. Pouco depois, William Halstead popularizou seu uso na anestesia com bloqueio de condução e infiltração. Em função da alta toxicidade desse composto, procurou-se desenvolver diversos produtos substitutivos, que culminaram, em 1905, com Einhorn, na síntese da procaína, que, durante mais de meio século, foi considerada o anestésico padrão. Atualmente, porém, (), GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA ()- os enantiômeros levógiros com a levobupivacaína e a ropivacaína são considerados mais seguros. Devido ao efeito de curta duração da procaína, que por ser um derivado do ácido p-aminobenzoico (PABA) é rapidamente hidrolisado no sangue, novos agentes foram pesquisados. Em 1943, a lidocaína foi sintetizada por Löfgren a partir da anilina, dando origem a uma nova classe de drogas com mais estabilidade e menor potencial alergênico e, posteriormente, à prilocaína, em 1950, à bupivacaína e à ropivacaína, em 1966, à etidocaína, em 1970, e, mais recentemente, à levobupivacaína, em 2000. PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS Os AL são classificados conforme a ligação do resíduo aromático em tipo éster ou amida. A estrutura molecular básica dos anestésicos locais mais utilizados atualmente é constituída de três partes: s um grupo hidrofóbico e lipofílico, normalmente um anel aromático; s uma cadeia intermediária, geralmente um éster ou uma amida; s um grupo hidrofílico, em geral uma amina terciária (Figura 7.1). A ligação entre a cadeia intermediária e o grupo aromático pode ser do tipo éster ou do tipo amida. Esse tipo de ligação permite uma das classificações dos anestésicos locais em aminoésteres e aminoamidas, com diferente biotransformação e potencial alergênico (Tabela 7.1). Resíduo aromático (hidrofóbico) . Cadeia intermediária O C R Resíduo amínico (hidrofílico) R N R O Éster R N H R N R Amida FIGURA 7.1 Fórmulas estruturais dos anestésicos locais. (). Tipo éster Tipo amida Derivados de PABA Derivados de anilina Benzocaína Lidocaína Procaína Prilocaína Clorprocaína Bupivacaína Tetracaína Mepivacaína Derivados de ácido benzoico Piperocaína Hexilcaína ANESTÉSICOS LOCAIS CLASSIFICAÇÃO DOS ANESTÉSICOS LOCAIS CONFORME O TIPO DE LIGAÇÃO DO RESÍDUO AROMÁTICO TABELA 7.1 Ropivacaína Derivados de quinolina Dibucaína Os AL são bases fracas, devido à presença da porção hidrofílica de amina terciária que atua como aceptora de prótons, que são pouco solúveis na água, mas muito nos lipídios.1,2 O anestésico local destinado a ser empregado na prática clínica é preparado na forma de sal (cloridrato) pela adição de ácido clorídrico, o que melhora a hidrossolubilidade, aumenta a estabilidade em meio aquoso e impede que a solução sofra precipitação antes de ser administrada. Uma vez injetada, a solução ácida é rapidamente neutralizada por tampões do líquido intersticial e uma fração da forma catiônica é convertida à base livre, que é importante para a difusão através das membranas celulares. Nessas condições, quando injetado, se não houvesse um mecanismo capaz de regenerar a base difusível, o agente anestésico empregado seria ineficaz. A base livre difunde-se pelo meio extracelular e pelas barreiras lipídicas que envolvem o nervo, atingindo a membrana do axônio, onde exercerá sua atividade. O peso molecular desempenha papel importante na movimentação dos anestésicos locais pelos canais de sódio da membrana nervosa, além de ser um fator preponderante no grau de permeabilidade através da dura-máter. O peso molecular também influencia a taxa de dissociação dos anestésicos locais de seus sítios receptores. Agentes moleculares com moléculas menores podem escapar do receptor mais rapidamente.1 A capacidade de difusão do AL é uma propriedade intimamente associada ao grau de ionização (pKa) e ao pH tecidual (Tabela 7.2). Assim, de acordo com Henderson Hasselbach, quanto maior a fração livre difusível, maior a lipossolubilidade e a penetração e menor o tempo de latência.1,3,4 O início de ação está diretamente ligado à proporção do composto que existe na forma eletricamente neutra. A lidocaína, a mepivacaína, a prilocaína e a etidocaína apresentam início de ação rapidamente, enquanto a procaína e a tetracaína têm latência mais longa e a bupivacaína ocupa posição intermediária. Dessa maneira, anestésicos locais que possuem pKa elevados (p.ex., procaína) apresentam período de latência maior que aqueles que apresentam constantes de dissociação mais favoráveis. Em meio ácido (p.ex.: abscesso, regiões inflamadas) ou pobre em tampão, a dissociação do cloridrato é . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA ()/ prejudicada e pouca base livre é formada, tornando ineficiente o bloqueio de condução. Acresce, também, o fato de que essas regiões apresentam vasodilatação, o que acelera a remoção do AL. O pKa é o pH em que 50% do AL encontra-se na forma ionizada e 50% na forma não ionizada. A lipossolubilidade determina a atividade e a potência do AL, de modo que, quanto mais lipossolúvel for o AL, maior sua potência e, consequentemente, sua toxicidade4 (Tabela 7.2). A lipossolubilidade também está associada à maior duração do anestésico local. O grau de ligação proteica também determina a atividade do AL e a forma livre é a que possui atividade farmacológica. O AL sofre metabolização por sua porção livre de ligação à proteína e liga-se, no plasma, principalmente à alfa-1-glicoproteína e à albumina. Assim, quanto maior a ligação proteica, maior a duração do AL (Tabela 7.2). A bupivacaína tem maior ligação proteica (95%) com maior tempo de duração de anestesia, quando comparada à lidocaína com menor ligação proteica (64%). A estereoisomeria é outra propriedade importante dos anestésicos locais que apresentam carbono assimétrico em sua molécula1,4, assim como a mepivacaína e a bupivacaína. Essas substâncias quirais são capazes de produzir a forma levógiras (S, de sinistro) e a forma dextrógiras (R, de retus), que são a mesma substância química, mas com propriedades farmacocinéticas, farmacodinâmicas e toxicidades diferentes. Os aminoácidos dos canais de sódio dos nervos e do miocárdio são levógiros, permitindo fácil ligação e desligamento de um AL levógiro, reduzindo os efeitos tóxicos. A bupivacaína utilizada na prática são misturas racêmicas (50:50) de enantiômeros, isto é, metade sob forma levógira e metade sob forma dextrógira. A taquifilaxia é fenômeno frequentemente observado com uso de AL. A taquifilaxia é definida como redução na eficácia de uma droga após administrações repetidas. Não se conhece o exato mecanismo, mas acredita-se que esse fenômeno ocorra por consumo de tampões extracelulares pela solução ácida do AL, com menor restauração da base do anestésico. A adição de adrenalina ao AL favorece o aparecimento da taquifilaxia, pois a vasoconstrição promove isquemia e eleva a acidez. Por outro lado, a adição de bicarbonato de sódio ao AL melhora o bloqueio, devido à maior concentração de base. . TABELA 7.2 PROPRIEDADES FISICO-QUÍMICAS DOS AL Anestésico pKa % ionizada (pH 7,4) Solubilidade lipídica Ligação proteica Lidocaína 7,9 76 366 64 Prilocaína 7,9 76 129 55 Mepivacaína 7,6 61 130 77 Bupivacaína 8,1 83 3.420 95 Etidocaína 7,7 66 7.317 94 Ropivacaína 8,1 83 775 94 Cloroprocaína 8,7 95 810 N/D N/D: não disponível. ()0 O tronco nervoso é constituído por fibras calibrosas (mielínicas) e delgadas (amielínicas). A região central da fibra é o axônio, sendo sua membrana quem verdadeiramente conduz o potencial de ação. Em seu interior, há o axoplasma, um líquido intracelular viscoso, e, em torno do axônio, há a bainha de mielina, geralmente mais espessa, com a presença do nodo de Ranvier a intervalos de 1 a 3 mm (Figura 7.2). A bainha de mielina é formada, ao redor do axônio, pelas células de Schwann, que giram ao redor do axônio muitas vezes, depositando múltiplas camadas de membrana celular que contêm a substância lipídica esfingomielina (Figura 7.3), um excelente isolante elétrico que diminui o fluxo iônico através da membrana em aproximadamente 5.000 vezes e diminui a capacitância da membrana em até 50 vezes. Ao longo do axônio, na junção entre duas células sucessivas de Schwann, existe uma pequena área sem isolamento, de 2 a 3 mcm de comprimento, na qual os íons podem fluir com facilidade através da membrana, entre os líquidos extracelular e intracelular, chamada de nodo de Ranvier. Dessa forma, os potenciais de ação ocorrem somente nos nodos, sendo conduzidos de nodo a nodo, o que se chama de condução saltatória5 (Figura 7.3). ANESTÉSICOS LOCAIS FISIOLOGIA DO POTENCIAL DE AÇÃO NEURAL Bainha de mielina Axônio Citoplasma da célula de Schwann A Nodo de Ranvier Núcleo da célula de Schwann Axônios amielínicos Núcleo da célula de Schwann Citoplasma da célula de Schwann B FIGURA 7.2 (A) Enrolamento da membrana da célula de Schwann ao redor de um grande axônio para formar a bainha de mielina. (B) Enrolamento parcial da membrana e citoplasma da célula de Schwann ao redor de várias fibras nervosas amielínicas (corte transversal). . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (*' . Bainha de mielina 1 FIGURA 7.3 Axoplasma 2 Nodo de Ranvier 3 Condução saltatória ao longo do axônio mielinizado. A condução saltatória é importante por fazer o processo de despolarização saltar por grandes trechos ao longo do eixo da fibra nervosa, aumentando a velocidade da transmissão nervosa nas fibras mielínicas em 5 a 50 vezes, e por conservar energia para o axônio, visto que somente os nodos se despolarizam, permitindo perda de íons 100 vezes menor que a perda que ocorreria de outra forma. Portanto, necessita de um metabolismo menos intenso para restabelecer as diferenças de concentração de sódio através da membrana após uma série de impulsos nervosos. O potencial de repouso da membrana das fibras nervosas de grande diâmetro é cerca de -90 mV. Quando admitido que o único movimento de íons através da membrana é a difusão de íons potássio, devido à grande proporção entre os íons intra e extracelulares (35:1), o potencial de Nernst correspondente é de -94 mV. A proporção de íons sódio do interior para o exterior da membrana é 0,1, o que dá um potencial de Nernst para o interior da membrana de +61 mV. Na fibra neural normal, a permeabilidade da membrana ao potássio é cerca de 100 vezes maior que ao sódio. Utilizando-se desse valor na equação de Goldman, obtém-se um potencial interno da membrana de -86 mV. A bomba de Na+-K+ produzirá uma perda contínua de cargas positivas do interior da membrana (3 Na+ para fora e 2 K+ para dentro da célula), criando grau adicional de negatividade (cerca de -4 mV). Em resumo, apenas os potenciais de difusão causados pela difusão de potássio e de sódio produziriam um potencial de membrana de cerca de -86 mV, sendo quase todos determinados pela difusão do potássio. Assim, um adicional de -4 mV é acrescido ao potencial de membrana por meio da ação contínua da bomba eletrogênica de Na+-K+, criando o potencial efetivo de membrana de -90 mV5. Para que ocorra o potencial de ação neural, são necessárias as seguintes etapas: 1. Etapa de repouso: é o potencial de repouso da membrana, antes do início do potencial de ação. Diz-se que a membrana está polarizada durante essa etapa em razão da presença dos -90 mV de potencial de membrana negativo. (*( ANESTÉSICOS LOCAIS 2. Etapa de despolarização: nessa fase, a membrana torna-se, de repente, muito permeável aos íons sódio, permitindo o fluxo intenso de íons sódio carregados positivamente para o interior do axônio. O estado polarizado normal de -90 mV é de súbito neutralizado pelo influxo desses íons, elevando rapidamente o potencial em direção à positividade. 3. Etapa de repolarização: poucos décimos de milésimos de segundos após a membrana ter ficado altamente permeável aos íons sódio, os canais de sódio começam a se fechar e os de potássio se abrem mais do que o fazem normalmente. Em seguida, a rápida difusão de íons potássio para o exterior restabelece o potencial normal negativo de repouso da membrana. O canal de sódio voltagem-dependente tem duas comportas, chamadas comporta de ativação e comporta de inativação (Figura 7.4). Quando o potencial de membrana torna-se menos negativo que no estado de repouso, aumentando de -90 mV a zero, atinge uma voltagem, normalmente entre -70 e -50 mV, que produz súbita mudança conformacional na comporta de ativação, levando-a, rapidamente, para o estado aberto. O mesmo aumento da voltagem que abre as comportas de ativação fecha a comporta de inativação. Todavia, a comporta de inativação fecha em décimos de milésimos de segundo após a abertura da comporta de ativação, ou seja, a alteração conformacional que leva a comporta de inativação ao estado fechado é um processo muito mais lento que a alteração conformacional que abre a comporta de ativação. Assim, após o canal de sódio ter ficado aberto durante décimos de milésimos de segundo, a comporta de inativação se fecha e os íons sódio não podem mais passar para dentro da membrana. Nesse ponto, o potencial de membrana começa a retornar ao estado do potencial de repouso, constituindo o processo de repolarização6. A variação abrupta do potencial de membrana em fibra nervosa calibrosa de -90 mV para cerca de -65 mV, valor considerado limiar para estimulação, normalmente causa o desenvolvimento explosivo do potencial de ação. Comporta de ativação Comporta de inativação Repouso (-90 mV) FIGURA 7.4 Na+ Na+ Na+ Ativado (-90 a +35 mV) Inativado (+35 a -90 mV, retardado) Característica do canal voltagem-dependente de sódio mostrando a ativação e a inativação. . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (*) A maioria dos anestésicos locais age diretamente sobre as comportas de ativação dos canais de sódio, dificultando sua abertura e, assim, reduzindo a excitabilidade da membrana. Quando a excitabilidade estiver reduzida a um valor baixo, a relação entre a amplitude do potencial de ação e o limiar de excitabilidade (chamado de fator de segurança) é menor que 1 e os impulsos nervosos não passarão através dos nervos anestesiados (Figura 7.5). MECANISMO DE AÇÃO DOS ANESTÉSICOS LOCAIS Os anestésicos locais agem inibindo a condução dos nervos periféricos, basicamente por um decréscimo na permeabilidade ao sódio que impede a despolarização da membrana – primeiro evento do processo de excitação-condução no tecido nervoso (Figura 7.6). Essa ação dos AL é decorrente de sua interação direta com canais de Na+ sensíveis à voltagem.1,4,7 Ambas as formas, ionizadas e não ionizadas, estão envolvidas na atividade farmacológica. A base, lipossolúvel, difunde-se pela membrana celular, enquanto a forma carregada é muito mais ativa em bloquear o canal de sódio8 (Figura 7.6). Além dos canais de Na+, os AL podem ligar-se também a outras proteínas da membrana e podem, em particular, bloquear os canais de K+. No entanto, como a interação Despolarizaç Potencial de membrana (mV) ção . 0 Repolariza ão 40 -40 Limiar de excitabilidade Potencial de repouso Ação do anestésico local -80 0 1 2 3 4 Tempo (ms) FIGURA 7.5 Ação dos anestésicos locais impedindo que o potencial transmembrana ultrapasse o potencial limiar, evitando a despolarização. (** RNH+ RNH + RN RN RN Exterior Base livre RNH+ RNH+ Na+ – Interior – Expansão da membrana Portão M RNH+ Portão H Canal de sódio em repouso FIGURA 7.6 Cátion ANESTÉSICOS LOCAIS Pele RN Canal ativado Início do bloqueio Canal inativado bloqueado Após a administração de um anestésico local, ocorre sua dissociação, propiciando a liberação da base livre e lipossolúvel (RN). A penetração da base livre se faz por difusão na membrana lipoproteica. Uma vez no lado interno da célula, o anestésico local em sua forma catiônica (RNH) fixa-se na superfície interna, bloqueando de forma eficaz a passagem do íon sódio pelo canal e impedindo a formação do potencial de ação. dos AL com os canais de K+ exige concentrações mais elevadas do agente, o bloqueio da condução não é acompanhado por qualquer alteração significativa ou consistente no potencial de membrana em repouso devido ao bloqueio dos canais de K+. Estudos mais aprofundados sobre a estrutura e a função dos canais de Na+ mostram que estes são complexos heterotriméricos de proteínas glicosiladas com um agregado molecular de tamanho superior a 300 Kd, cujas subunidades individuais são designadas como alfa, beta-1 e beta-2. A grande subunidade alfa do canal de Na+ contém quatro domínios homólogos (I a IV) e acredita-se que cada domínio consista em seis regiões transmembranosas ou extensões na configuração alfa-helicoidal (S1 a S6)1 (Figura 7.7). Os resíduos dos aminoácidos importantes para a ligação do anestésico local são encontrados no segmento S6, no domínio IV. Os resíduos dos aminoácidos hidrofóbicos, próximos ao centro e à terminação intracelular do segmento S6, interagem diretamente com os anestésicos locais ligados. O grau do bloqueio produzido por uma determinada concentração de anestésico local depende de como o nervo foi estimulado e de seu potencial de membrana em repouso. O nervo em repouso é muito menos sensível a um anestésico local que o nervo que é repetidamente estimulado. Frequência mais elevada de estímulo e potencial de membrana mais positivo provocam maior grau de bloqueio anestésico. A concentração efetiva mínima de anestésico local necessária para o bloqueio da condução dos impulsos nervosos é denominada CEM . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (*+ Subunidade A Subunidade B1 I II Subunidade B III IV H3N+ H3N+ Extracelular + 1 23 4 5 + 6 + 1 23 4 5 + 6 + 1 23 4 5 6 + h -OOC Segmento transmembrana S4 sensível à voltagem + 1 23 4 5 + 6 P Membrana Intracelular COO- COO- Inativação P H3N+ − + P P P P Substrato para fosforilação através de proteína cinase dependente de AMPc P Substrato para proteína cinase C P Modulação FIGURA 7.7 . Estrutura e função dos canais de sódio sensíveis à voltagem. e varia conforme o diâmetro das fibras, o pH e a frequência da estimulação nervosa. A CEM para fibras motoras é cerca de duas vezes maior que a das fibras sensitivas, o que explica o motivo pelo qual a anestesia sensitiva nem sempre acompanha paralisia da musculatura esquelética. Os nervos periféricos são formados por fibras mielinizadas, A e B, e não mielinizadas, C (Tabela 7.3). Como regra geral, as pequenas fibras nervosas são mais suscetíveis à ação dos anestésicos locais que as grandes fibras. Existe uma superfície mínima da fibra mielinizada que precisa ser exposta a uma concentração adequada de anestésico local para que ocorra o bloqueio de condução. Pelo menos três nodos sucessivos de Ranvier (aproximadamente 1 cm) devem entrar em contato com o anestésico local. As fibras nervosas menores não são mielinizadas e são bloqueadas mais imediatamente que as fibras maiores mielinizadas. Todavia, o espectro de sensibilidade das fibras não-mielinizadas sobrepõe-se ao das fibras mielinizadas em algum grau, pois estas são bloqueadas antes das fibras não mielinizadas do mesmo diâmetro. Em geral, as fibras autônomas, as pequenas fibras C não mielinizadas (que medeiam as sensações da dor) e as pequenas fibras A-delta mielinizadas (que medeiam as sensações de dor e temperatura) são bloqueadas antes das fibras maiores mielinizadas A-gama, A-beta e A-alfa (responsáveis pelas informações sobre postura, tato, pressão e função motora). (*, CLASSIFICAÇÃO E SUSCETIBILIDADE PARA BLOQUEIO DOS TIPOS DE FIBRAS NERVOSAS Classificação Fibras A A-alfa A-beta A-gama A-delta Fibras B Fibras C Mielina Diâmetro (mcm) Velocidade de condução (m/s) Função Sensibilidade ao bloqueio Sim 6 a 22 30 a 120 Motora e propriocepção Sim 3a6 1a4 <3 15 a 35 5 a 25 3 a 15 Não 0,3 a 1,3 0,7 a 1,3 Tônus muscular Dor, temperatura e tato Vasomotora, visceromotora, sudomotora e pilomotora Função autonômica, dor e temperatura + ++ ++ +++ ++++ ANESTÉSICOS LOCAIS TABELA 7.3 ++++ Felizmente, para o paciente, a sensação de dor é a primeira modalidade a desaparecer, seguida pelas sensações de frio, calor, tato, compressão profunda e, finalmente, pela função motora, embora a variação entre os indivíduos seja grande. A duração da ação de um anestésico local é proporcional ao tempo em que este permanece em contato com o nervo. Agentes vasoconstritores, como a adrenalina, são adicionados aos anestésicos locais com o objetivo de retardar a absorção da droga e aumentar a duração da atividade anestésica de agentes de curta ou média duração. Alguns agentes vasoconstritores são absorvidos sistemicamente, às vezes a um grau suficiente para provocar efeitos indesejáveis. Além disso, retardam a cicatrização de ferimentos e provocam edema tecidual ou necrose após a anestesia local. Esses efeitos parecem ocorrer devido ao consumo de oxigênio do tecido pelas aminas simpatomiméticas com a vasoconstrição, levando à hipóxia e à lesão tecidual. O uso de AL que contém vasoconstritores durante cirurgias de dedos, mãos ou pés, que resultem na constrição prolongada das grandes artérias com circulação colateral limitada, pode provocar lesão hipóxica irreversível e necrose tecidual. FARMACOCINÉTICA Absorção A absorção dos AL pela circulação sistêmica depende do local da injeção, da dose total administrada, da associação ou não de vasoconstritor e das propriedades específicas da droga. Com exceção da cocaína e da ropivacaína, que, por dificultarem a recaptação de noradrenalina, apresentam vasoconstrição, os demais anestésicos locais produzem paralisia vasomotora, que leva ao aumento do fluxo sanguíneo na região injetada. . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (*- Injeções múltiplas, vascularização intensa e presença ou não de tecido adiposo na região do bloqueio podem explicar as diferentes concentrações sanguíneas de uma mesma droga segundo a técnica empregada.9 Distribuição Após a absorção, todos os tecidos são expostos aos anestésicos locais; porém, a concentração atingida pode variar entre os diferentes órgãos. A distribuição dos AL é proporcional ao seu coeficiente de partição tecido/sangue, à massa e à perfusão tecidual. Ainda que a concentração mais alta possa ocorrer em órgãos mais perfundidos, como rins, pulmões e cérebro, alguns fatores, como a lipossolubilidade e o grau de ligação proteica, também afetam a distribuição. Os anestésicos locais tipo amida distribuem-se mais amplamente pelos tecidos que os do tipo éster. O primeiro órgão a receber os anestésicos locais, uma vez presentes na circulação, é o pulmão,9 que funciona como grande capacitor, armazenando temporariamente grandes quantidades dessas substâncias. Os pulmões também exercem uma função protetora, uma vez que a concentração que atinge o sistema nervoso central e o coração é consideravelmente mais baixa quando comparada à da artéria pulmonar. Biotransformação e excreção A biotransformação dos anestésicos locais tipo éster é hidrolisada de forma rápida no plasma, possivelmente pela pseudocolinesterase plasmática, e possui tempo de meia-vida muito curto. O metabolismo dos AL que contêm grupamento amida ocorre principalmente no retículo endoplasmático liso hepático, com reações iniciais que envolvem N-desalquilação e hidrólise subsequente9 (Figura 7.8). Assim, deve-se evitar o uso extensivo de anestésicos locais amídicos em pacientes com grave lesão hepática. R1 . Éster O COCH2 N CH2 R3 H R2 Hidrólise Amida CH3 O R3 CHCCH Hidroxilação e conjunção FIGURA 7.8 R1 R2 Metabolização dos anestésicos locais. N NR4 de alquilação e ciclização (*. ANESTÉSICOS LOCAIS Os metabólitos menos tóxicos ou inativos são prontamente eliminados pelos rins. Apenas uma determinada proporção da droga (menos de 5%) é eliminada in natura pela urina. Como os AL possuem caráter básico, a acidificação da urina facilita sua eliminação. A fração remanescente é metabolizada por meio de reações enzimáticas e, posteriormente, é excretada sob a forma de vários metabólitos pelas fezes e pela urina. Diversas drogas, principalmente halotano e propranolol, diminuem a depuração dos anestésicos locais devido à inibição direta da atividade de oxidases e, em menor grau, à redução do fluxo sanguíneo hepático. Os antagonistas de receptor H2 (p.ex., cimetidina e ranitidina) podem, por meio de ligação ao citocromo P-450, alterar a disposição de drogas como anestésicos locais. ADMINISTRAÇÃO DOS ANESTÉSICOS LOCAIS Dose A dose do anestésico administrado deve ser a mínima necessária, desde que produza a analgesia adequada para o procedimento proposto. Para tanto, devem-se considerar características do paciente, como peso, região corpórea envolvida e possíveis doenças prévias, sendo que, de modo geral, portadores de doença hepática, insuficiência renal, anemia grave, febre, desnutrição e outras condições debilitantes, além de idade avançada, têm indicadas restrições quanto à dosagem, utilizando-se, geralmente, doses menores. Nesse sentido, as características do fármaco também são importantes para sua administração, conforme mostra a Tabela 7.4. A dose máxima dos anestésicos locais está demonstrada nas Tabelas 7.5 e 7.6. TABELA 7.4 PROPRIEDADES DOS ANESTÉSICOS LOCAIS Droga Procaína Lidocaína Tetracaína Bupivacaína Prilocaína TABELA 7.5 Início de ação Médio Rápido Muito lento Lento Médio Duração do efeito Curta Média Prolongada Prolongada Média Penetração Ruim Boa Moderada Moderada Moderada DOSE MÁXIMA DE ANESTÉSICO LOCAL EM ADULTOS Droga 2-cloroprocaína Lidocaína Prilocaína Mepivacaína Bupivacaína Fonte: adaptado de Miller.10 Sem adrenalina 11 mg/kg 4 a 5 mg/kg 7 mg 4 a 5 mg/kg 2,5 mg/kg Com adrenalina 14 mg/kg 7 mg/kg 8,5 mg/kg 7 mg/kg 3 mg/kg . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (*/ TABELA 7.6 DOSE MÁXIMA DE LEVOBUPIVACAÍNA E ROPIVACAÍNA EM ADULTOS Droga Dose única Dose total em 24 horas Levobupivacaína 2 mg/kg 5,5 mg/kg 3 mg/kg 11 mg/kg Ropivacaína Fonte: adaptado de Cox et al. 11 As preparações diluídas são as formas comerciais encontradas em geral, nas quais há uma solução devidamente preparada com certa porcentagem do agente anestésico. Assim, uma solução expressa em 1% contém 1 g da substância em cada 100 mL da solução, sendo regra prática para o cálculo da dose administrada em mg/mL multiplicar a porcentagem por 10. Velocidade de administração Uma vez que a toxicidade ao anestésico é reflexo de seu pico de concentração sérica, é razoável supor que sua velocidade de administração tem devida importância, de modo que, por exemplo, no caso da necessidade de anestesia de múltiplas áreas, seja mais seguro fazê-la por partes, isto é, procedê-la no tempo próximo do procedimento em cada região específica. Assim, consegue-se distribuir sua dose total em um período maior, diminuindo seus valores séricos e suas possíveis consequências. Vascularização do tecido . A velocidade de absorção sanguínea do anestésico é diretamente proporcional ao fluxo sanguíneo da área em questão. Logo, tecidos com intensa vascularização, como a pele da face ou as mucosas oral e nasal, devem ter sua anestesia feita de modo mais lento, além de um intervalo maior entre as aplicações. Recomenda-se adição de vasoconstritor ao AL, quando não há contraindicação, com objetivo de reduzir a absorção e diminuir a toxicidade dos anestésicos locais, principalmente nas injeções em áreas mais vascularizadas. Além disso, a adrenalina promove vasoconstrição local e aumento na duração da anestesia. Técnica de administração Embora a técnica de administração de um anestésico local pareça extremamente simples, algumas ações e precauções por parte do médico devem ser lembradas. Primeiro, deve-se valorizar a queixa de dor do paciente durante a introdução da agulha e a injeção do anestésico no tecido, sobretudo em um procedimento que busca a analgesia. Para tanto, a utilização de uma agulha do menor calibre possível, desde que adequada para a proposta anestésica, é o ideal. Outra medida é não introduzir a solução de modo abrupto, já que a distensão tecidual causada pelo volume injetado é uma das causas álgicas. Cabe, ainda, lembrar a grande importância de se aspirar antes de injetar o conteúdo, evitando, assim, introduzir um anestésico local no intravascular, o que provavelmente causaria maiores reações adversas. (*0 Os anestésicos locais são relativamente livres de efeitos colaterais se administrados na dose apropriada e na localização anatômica correta. No entanto, não é raro serem observadas reações adversas ao seu uso, sobretudo quando há injeção anestésica intravascular inadvertida ou em casos de superdosagem (Tabela 7.7). Essas reações variam quanto à magnitude, de acordo com a toxicidade da droga, a dose administrada, a velocidade e o local de administração, além da idade e da condição de saúde do paciente, tendo efeitos indesejáveis principalmente sobre o sistema nervoso central e cardiovascular.12 Um dos principais mecanismos envolvidos na toxicidade dos AL é a elevação da concentração plasmática dessas drogas em um curto período.13 No sistema nervoso central, geralmente os sinais e sintomas são do tipo excitatórios, além de sintomas como lipotímia, tontura, parestesia perioral, gosto metálico, zumbido, diplopia, alterações do discurso e confusão. Assim, tremores musculares faciais e em extremidades também podem ocorrer, culminando, menos comumente, em crises convulsivas tonicoclônicas. Por fim, em grau extremo de acometimento, o paciente apresenta depressão generalizada do sistema nervoso central, gerando coma e depressão respiratória. TABELA 7.7 ANESTÉSICOS LOCAIS TOXICIDADE PROGRESSÃO DA INTOXICAÇÃO POR ANESTÉSICOS LOCAIS Sintomas iniciais Discurso acelerado, progredindo para fala empastada Distúrbios auditivos (tinnitus) Desorientação, náusea, ansiedade Distúrbios gustativos (gosto metálico na boca) Dificuldade de acomodação visual (diplopia, fosfenas, escotomas) Agitação psicomotora, parestesias (língua, perioral), tremores musculares (face, pescoço) Progressão Letargia, demora para responder Sonolência Diminuição dos movimentos Queda do tônus muscular Diminuição da frequência respiratória Queda leve da pressão arterial Convulsões Movimentos tônico-clônicos generalizados Parada respiratória: apneia, hipóxia, cianose Hipotensão pronunciada Arritmias cardíacas Parada cardíaca Fonte: adaptado de Chen.14 . GUIA DE ANESTESIOLOGIA E MEDICINA INTENSIVA (+' Já em relação ao sistema cardiovascular, as reações adversas geralmente ocorrem na presença de maiores dosagem e concentração sanguínea da droga, em comparação àquelas do sistema nervoso central. No coração, os anestésicos locais exercem vários efeitos, como elevação do limiar de excitação, aumento do tempo de condução do estímulo elétrico cardíaco, alargamento do complexo QRS e diminuição do inotropismo, os quais podem gerar sinais como bradicardia, fibrilação ventricular e assistolia. Com exceção da cocaína, produzem, ainda, vasodilatação, atuando na musculatura lisa vascular, o que explica a hipotensão como outro possível efeito colateral. Quanto ao tratamento dessas reações, a prioridade é a profilaxia, utilizando-se dosagem e administração corretas e cuidadosas, considerando-se as características do paciente e do fármaco utilizado. Diante da intoxicação por anestésicos locais o tratamento deve ser imediato, primeiro suspendendo sua administração e iniciando a oferta de oxigênio. A convulsão é a reação tóxica mais temida do sistema nervoso central, devendo ser rapidamente controlada com: s s s s . oxigenação e ventilação; administração de benzodiazepínicos (diazepam 0,2 a 0,3 mg/kg); uso de tiopental (5 a 7 mg/kg), quando não há resposta com uso de diazepam; uso de succinilcolina (1 mg/kg) para facilitar a ventilação e a entubação nos casos graves. O controle da ventilação é fundamental, pois a hipocapnia eleva o limiar convulsivo. A intoxicação do sistema cardiovascular ocorre com maiores níveis plasmáticos de AL. As manobras convencionais de parada cardíaca deve ser também adotadas em casos de parada cardiorrespiratória (PCR) com intoxicação por AL. Contudo, o tempo de reanimação deve ser estendido por 60 a 90 min e deve-se manter um estado acidobásico de alcalemia, favorecendo a formação de base necessária para remoção do AL dos sítios de ligação. A evolução da PCR pós-intoxicação por anestésico local é incerta. Atualmente, há relatos de sucesso com infusão de lipídios após PCR refratários aos tratamentos convencionais15. Não se conhece o mecanismo de ação, mas diante desses resultados, acredita-se que, em breve, essa solução fará parte do tratamento para intoxicação grave por AL. O intralipide a 20% pode ser administrado em bolo de 1,5 mL/kg (100 mL em 1 min) e, depois, manter uma infusão de 0,25 mL/kg/min (400 mL em 20 min).16, 17 As reações de hipersensibilidade ligadas ao uso dos anestésicos locais são raras e, em geral, envolvem os preservativos usados na composição da solução ou os agentes do grupo éster, pois os fenômenos alérgicos vêm sendo creditados ao PABA (ácido para-aminobenzoico), metabólito comum dos anestésicos pertencentes a esse grupo e conhecidamente uma substância antigênica capaz de sensibilização linfocitária e ativação da resposta imune humoral. O paciente pode apresentar hipotensão, edema, taquicardia, urticária, broncoespasmo, dispneia, rinorreia e, drasticamente, choque anafilático, sendo obrigatória a interrupção do procedimento na observação de qualquer sinal de alergia. Nesses (+( ANESTÉSICOS LOCAIS pacientes, deve-se utilizar um anestésico de outro grupo em uma próxima e eventual necessidade, já que a alergia normalmente não se dá a um agente específico, mas ao seu grupo. A presença do metilparabeno como preservativo da solução anestésica deve ser evitada por apresentar similaridades com o Paba, sendo também responsável por reações alérgicas. Como investigação e orientação de conduta para um paciente com essas reações, podem-se utilizar métodos como testes cutâneos e, mais raramente, testes laboratoriais in vitro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Catterall WA, Makie K. Local anesthetics. In: Hardman JG, Limbird LE (eds.). Goodman & Gilman’s the pharmacological basis of therapeutics. 10.ed. New York: McGrow-Hill, 2001. p.367-89. 2. Subramaniam S, Tennant M. A concise review of the basic biology and pharmacology of local analgesia. Aust Dent J 2005; 50 Suppl 2:S23-S30. 3. Rang HP, Dale MM, Ritter JM. Farmacologia. 4.ed. 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