ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL DO TEMPO A PARTIR DO LIVRO XI DE
CONFISSÕES, DE SANTO AGOSTINHO
Dr. João Bosco Batista
Departamento das Filosofias e Métodos – DFIME / UFSJ
Resumo: Santo Agostinho, no século V, expressou muito bem o seu sentimento de ambigüidade
diante da noção de Tempo, ao dizer: O que é então o tempo? Enquanto não me perguntam, eu sei; se me
perguntam e quero explicar, não sei. Na filosofia contemporânea, principalmente com o surgimento da
fenomenologia existencial, o tempo ocupa um lugar privilegiado ao ser tratado como uma dimensão
humana essencial. O tempo sempre intrigou e deixou estupefatos os filósofos da Antiguidade grega, assim
como povos de outras civilizações. Ele é personificado no mito grego como o deus Chronos. Isso retrata o
sentimento de estranheza e reverência do homem antigo diante do tempo, como uma dimensão sagrada.
Não apenas aos filósofos e às civilizações antigas criadoras de mitos o tempo exerceu o sentimento de
perplexidade, mas também aos cientistas e, tanto mais, aos teólogos e místicos de todos os tempos.
Palavras-chave: Tempo. Agostinho. Fenomenologia. Existência.
I
niciaremos nossa reflexão com uma citação do capítulo 3 do livro de Eclesiastes, versículos
de 1-8, que ao abordar o tema da morte propicia-nos um mergulho no mistério do tempo e da
temporalidade como categoria fundamentalmente humana. Assim diz o Eclesiastes, isto é,
aquele que fala à Assembléia:
Tudo tem o seu tempo, o momento oportuno
Para todo propósito debaixo do sol.
Tempo de nascer,
tempo de morrer;
tempo de plantar,
tempo de arrancar a planta.
Tempo de matar,
tempo de sarar;
tempo de destruir,
tempo de construir.
Tempo de chorar,
tempo de rir;
tempo de gemer,
tempo de bailar.
Tempo de atirar pedras,
tempo de recolher pedras;
tempo de abraçar,
tempo de se separar.
Tempo de buscar,
tempo de perder;
tempo de guardar,
tempo de jogar fora.
Tempo de rasgar,
tempo de costurar;
tempo de calar,
tempo de falar.
Tempo de amar,
tempo de odiar;
tempo de guerra,
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-2tempo de paz. (BIBLIA de Jerusalém,1981)
No Livro XI das Confissões, Agostinho apresenta o tempo como uma criatura de Deus. Ele surge
simultaneamente com a criação do mundo; logo, tempo e mundo constituem termos
inseparáveis. Por sua vez, o mundo é sempre mundo do homem, pois é ele quem confere
significado a este. O tempo encontra-se entranhado na estrutura própria da consciência. Ele é
expressão do acontecimento existencial no mundo. É o próprio homem acontecendo, isto é,
sendo em sua facticidade. Tal estrutura do tempo, como expressão do mistério do acontecimento
da consciência, levou o filósofo de Hipona a questionar:
“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá
apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu
conceito?” (AGOSTINHO,1992, p.278)
Heidegger aborda com profundidade o mistério do tempo por meio da estrutura temporal do ser
do homem (Dasein). Explica o filósofo alemão que o homem, enquanto Dasein, existe como um
ente que está em jogo seu próprio existir. Em sua essência, ele precede a si mesmo, o que o
possibilita ser como projeto, isto é, ser para seu poder-ser. É como lançado que ele se
desentranha no projeto. Lançado, ele se entrega ao “mundo” e de-cai, ocupando-se dele.
Enquanto “cuidado” (Sorge), ou seja, existindo na unidade do projeto lançado na de-cadência,
ele é o ente que se abriu como “aí” (Da-Sein). Sendo com os outros, ele se mantém numa
interpretação mediana, que se articula no discurso e se pronuncia na linguagem. Como ser-nomundo sempre já se pronunciou e, enquanto ser junto aos entes que vêm ao encontro dentro do
mundo, ele se anuncia, continuamente, na interpelação daquilo de que se ocupa. A ocupação,
para Heidegger, funda-se na temporalidade. Sendo que a ocupação se pronuncia no “então”, é
retendo que ele se pronuncia no “outrora” e é atualizando que o faz no “agora”. O “outrora”
abriga em si o “agora não mais”. O “então” e o “outrora” são compreendidos na perspectiva de
um agora.
Todo “então” é um “então, quando...”, todo “outrora”, um “outrora, quando...”, todo “agora”, um
agora em que...”. Chamamos a essa estrutura remissiva do “agora”, do “outrora” e do “então” de
“possibilidade de datação”. Essa dinâmica temporal só se viabiliza devido à abertura “ekstática”
da temporalidade, na qual passado, presente e futuro constituem uma unidade existencial,
através da qual o homem ek-siste; essa é a condição de sua datação ou databilidade no mundo
circundante. Na abertura constitutiva, o homem existe de fato no mundo do ser-com os outros.
Ele se mantém numa compreensibilidade pública e mediana. Lançado, o existente só pode
“ganhar” tempo e “perder” tempo, porque por meio da abertura do “Da” (aí), fundado na
temporalidade, o Dasein , entendido como temporalidade ekstaticamente es-tendida, recebe a
concessão de um “tempo” (trata-se aqui do tempo “público” das ocupações. O homem desse
modo se ocupa explicitamente do tempo, conferindo-lhe uma contagem. Do ponto de vista
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ontológico-existencial, porém, o decisivo na contagem do tempo não deve ser considerado na
sua quantificação; deve, ao contrário, ser concebido na sua originariedade a partir da
temporalidade como estrutura do Dasein que conta com o tempo.
Vimos que para Heidegger o tempo é entendido primeiro como “tempo mundano” (Weltzeit), o
tempo da cotidianidade, das colheitas e das refeições, encontros e tarefas, de levantar-se da
cama e ir dormir. Assim falamos que quando o homem nasce, é tempo de tempo...., ou seja, o
tempo datado, o tempo de uma biografia. Ele se define para o homem pelo nascer e pôr do sol,
como sucessão de agoras. Em contrapartida, o fenômeno da morte que revela o homem
essencialmente como ser-para-a-morte revela ao homem a finitude do tempo. Surge a
possibilidade de compreensão da temporalidade autêntica; esta não é uma realidade estranha e
exterior ao homem (o tempo natural), mas o modo pelo qual a existência se “temporaliza” a si
mesma e a seu mundo. Não é uma seqüência infinita de agoras pontuais uniformes, mas uma
estrutura finita de “momentos” diferenciados. O tempo, concebido fenomenologicamente é
“anterior” a toda subjetividade e objetividade porque constitui a própria possibilidade desse
“anterior”. Por meio de uma interpretação ontológica e existencial, a temporalidade é o
fundamento das possibilidades da existência própria e imprópria. Ela tem seu sentido mais
profundo na constituição do homem como “cuidado”. O tempo é a própria manifestação do ser a
ser interpretado em suas múltiplas variações que constituem o mistério da existência. O homem
não tem controle ou domínio sobre o tempo, somente por meio do fenômeno do cuidado, o
homem é capaz de vislumbrar o núcleo ontológico do tempo. Dessa forma, podemos dizer que o
homem não tem o tempo, ele se temporaliza à medida que existe no e com o tempo. Indagar
pelo tempo, é indagar pelo mistério da existência finita do homem no mundo como ser-para-amorte.
Agostinho já havia intuído o que viria a ser tematizado, além de Heidegger, por Husserl, Bergson
e Freud: o tempo como dimensão formadora do campo onde a vida psíquica (a consciência) se
desdobra. Estes autores, na linha de pensamento do autor medieval, apresentam o tempo em
sua íntima conexão com a realidade humana. O tempo é sempre o tempo da existência humana
– isto o que vimos em Ser e Tempo, de Heidegger. O tempo de vida expressa a essência do
homem como ser-no-mundo. Numa leitura freudiana do tempo, pode-se afirmar que o tempo da
vida é o tempo que corre entre o nascimento e a morte, e neste prazo o sujeito depara-se com o
limite e a possibilidade para seus desejos e para o encontro com aquilo que se lhe apresenta.
Neste sentido que, segundo Heidegger, o homem é ser de projeto que busca sua
essencialização (wesen).
O tempo, entendido como passagem (o tempo do tempo), apresenta-se como oportunidade de
elaboração criativa da existência, não apesar de sua fluidez, mas principalmente devido a ela.
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Em outras palavras, este estado de passagem do tempo é ativamente constituído pelo trabalho
de elaborar os limites sempre fugidios da existência. O assim chamado “curso da vida” não se
nos apresenta como um “curso de tempo” regular, ante o qual o homem é um mero espectador.
Segundo a análise freudiana, a experiência psicológica do tempo não é exterioridade, mas
produto de labor psíquico, estruturante de identidade. Desta forma, envelhecer não é seguir um
caminho já traçado, mas construí-lo. Eis a função do tempo: a construção da subjetividade.
Em outras palavras e em sentido, Santo Agostinho falava dos três momentos interiores através
dos quais se dava o tempo: expectação, atenção e memória. Com genialidade, o filósofo cristão
já intuía a síntese do tempo no fenômeno da temporalidade. O tempo que se dá no espírito
humano é unificado e não compartimentado entre passado, presente e futuro. Os três momentos
ou manifestações do tempo acontecem na vida do espírito por meio da dinâmica existencial.
O bispo de Hipona foi capaz de perceber e de tematizar o problema da unidade do ser do
homem. Para ele, evidentemente, como filósofo cristão, tal unidade encontrava-se no encontro
com Deus. Mas o que importa salientar aqui é insight que permeia a questão: o homem se vê um
ser dividido, ambíguo, ambivalente e anseia por alcançar sua unificação. Encontramos, pari
passu, também em Heidegger tal anelo, quando afirma que o homem existe temporalizando-se;
sem a temporalização, nenhum Dasein seria, e, sem o Dasein, o mundo também não seria. O
homem é transcendência no movimento ekstático da temporalidade. O homem temporalizandose é expressão da síntese ekstática de passado, presente e futuro. Assim como em Agostinho o
espírito humano encontra-se na dinâmica que busca alcançar o porvir, em Heidegger a
temporalidade, enquanto condição da existência como poder-ser é a possibilidade da
possibilidade. O homem existe temporalizando-se entre nascimento e morte. Vemos aí também
uma propulsão para o porvir (este é o sentido do ser-projeto do homem). O tempo ekstático
opera sua temporalização em vista do “futuro”. Há uma primazia do “futuro” como condição de
possibilidade do projeto e do poder-ser que constituem a estrutura temporal da existência.
Referências Bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1992.
DARTIGUES, André. O que é fenomenologia? São Paulo: Centauro, 2002.
FOGHIERI, Yolanda Cintrão (Org.) Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez & Autores Associados,
1984.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. II. Petrópolis: Vozes, 1989.
NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
_______. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992.
RÉE, Jonathan. Heidegger: história e verdade em Ser e Tempo. 2000. UNESP, São Paulo.
Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulinas, 1981, p.838.
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