A construção poética do mundo FERNANDO PESSOA [Professor de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e organizador dos Seminários Internacionais Museu Vale] Os Seminários Internacionais Museu Vale se fundam em dois alicerces estruturais: por um lado, a ruptura dos limites que separam arte e pensamento e, por outro, a compreensão de que o exercício do pensamento transforma o homem. A arte contemporânea se caracteriza pela quebra de todos os limites e paradigmas que lhe definem um campo específico. Potencialmente, tudo é arte e todos somos artistas. Tendo como princípio último a criação, o que faz o que não era passar a ser, a arte busca promover a experiência da vida, regenerando a sua vitalidade na obra; tendo também como finalidade fundamental a criação, o pensamento busca compreender o mistério da vida, interpretando a sua origem: arte e pensamento comungam o mesmo princípio, a criação, e compartilham a mesma finalidade, a transformação. Com o tema Se essa rua fosse minha, esta sétima edição dos seminários propõe pensar a vida urbana, percorrendo suas ruas e desejos. Já que os homens vivem no mundo contemporâneo hegemonicamente em centros urbanos, e sendo, portanto, a cidade o modo principal de organização da vida humana atual, uma reflexão sobre a cidade impõe-se como uma necessidade histórica. Atendendo a essa demanda própria de nossa época, o tema do seminário visa tanto conferir quais são os problemas urbanos, como também proferir soluções que possam melhorar a qualidade de vida de nossas cidades. Como em todas as edições anteriores, o tema será considerado em diversas perspectivas. Queremos pensar as ruas em seus fluxos e afetos, o trânsito tanto no envio dos encontros, quanto nos desvios em que nos perdemos, refletir sobre os diversos modos de habitar e construir, o centro e a periferia, o homem e a sociedade, a cidade e o desejo. 13 SOBRE DESEJOS E CIDADES *** Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra. Hölderlin Como uma introdução ao assunto do seminário, este texto propõe tecer uma breve consideração preliminar sobre a relação do homem com o mundo, a fim de pensar a possibilidade poética de sua construção. Por uma herança do pensamento moderno, temos a tendência imediata de compreender o homem e o mundo em uma relação de interioridade espacial: o homem está dentro do mundo. Essa tendência ocorre graças à predominância da concepção cartesiana do homem como sujeito e do mundo como objeto, que, por cindir a realidade do real em duas partes distintas e autônomas, concebe a relação do homem com o mundo como uma justaposição física de dois entes. Ao contrário de uma justaposição de dois entes distintos e autônomos, o “estar dentro de...” que caracteriza a interioridade, Heidegger buscou mostrar, desde a sua obra Ser e tempo (1927), como essa relação se funda existencialmente em uma unidade originária, caracterizada nessa obra de 1927 como ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). Distinto da interioridade, do modo de ser de um ente que está fisicamente dentro do outro, como a água está no copo ou a roupa no armário, Heidegger indica que o homem mora, habita, detém-se junto do mundo – o ser-no-mundo caracteriza a relação existencial do homem morar junto e, assim, ser familiar ao mundo. O homem não está no mundo do mesmo modo que a água está no copo. Por se constituir existencialmente situado numa conjuntura mundana, o homem é sempre com, junto ao mundo. Ao contrário 14 A construção poética do mundo de dois entes já prontos em si mesmos e, depois, postos em relação, a conjuntura existencial é que abre, inaugura, constitui originalmente o homem e o mundo na conjunção de ser-no-mundo. Por meio de um diálogo crítico com o pensamento de Descartes, que pressupõe a separação do homem e do mundo em duas substâncias distintas e autônomas, a res cogitans e a res extensa, Heidegger propõe desconstruir a concepção moderna do espaço, a fim de mostrar a sua constituição existencial: A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença1 é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço.2 Pela hegemonia da perspectiva cartesiana de interpretação do espaço, o homem moderno não só não pensa como fica antecipadamente impedido de pensar a “espacialidade existencial” do mundo, eliminando, assim, a possibilidade de sua espacialização, sua percepção, sua experiência. A fim de compreender a espacialidade existencial do mundo, Heidegger indica a necessidade de desconstruir a opinião ingênua, motivada pela metafísica, da separação entre consciência espiritual e extensão corpórea, do homem como sujeito e do mundo como objeto, com a compreensão de nossa estrutura essencial, o ser-no-mundo. Distinto de uma justaposição de dois entes, 1. Presença é a tradução portuguesa do termo alemão Dasein, utilizado por Heidegger para indicar a constituição existencial do homem e do mundo, o ser-no-mundo: “‘Mundo’ não é um ente que a presença em sua essência não é. ‘Mundo’ é um caráter da própria presença.” (Ser e tempo, §14, p. 112). 2. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. PetrópolisBragança Paulista: Vozes-Editora Universitária São Francisco, 2006, §12, p. 102. 15 SOBRE DESEJOS E CIDADES o ser-no-mundo indica um fenômeno de unidade: o homem é no mundo na conjuntura existencial de sua presença. Heidegger pensa essa unidade de ser-no-mundo, a relação existencial do homem com o mundo, como habitar. Transcendendo à concepção de moradia, Heidegger pensa o habitar como o estar junto com os entes que nos rodeiam, numa relação familiar com a conjuntura – o habitar caracteriza o modo de o homem ser no mundo. Antes de ser o somatório de todos os entes circundantes, o mundo é a compreensão familiar da unidade prévia que permite articular conjunturalmente o sentido desses entes. O homem pré-compreende o seu mundo por ser desde sempre junto com ele. O mundo não é, portanto, algo estranho ao homem, mas o seu solo pátrio, sua terra mãe, o abrigo que lhe resguarda. No resguardo dessa habitação, o homem está preservado do dano e da ameaça; ele se sente em casa, senhor de si, livre. Habitar, ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo.3 Antes de ser definida por uma justaposição de dois entes físicos, a relação do homem com o mundo se caracteriza existencialmente em ser-no-mundo, no sempre já estar junto do que é familiar. A familiaridade desse pertencimento resguarda cada coisa em sua essência, deixando o homem ser na conjuntura existencial de seu próprio ser-no-mundo para, assim, descobrir originariamente o seu espaço existencial. A fim de mostrar essa possibilidade originária de ser-no-mundo, impedida de ser vista pelo preconceito moderno de que 3. Idem. Construir, habitar, pensar. Em: Ensaios e conferências. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 129. 16 A construção poética do mundo a realidade se realiza cindida em sujeito e objeto, espírito e corpo, homem e mundo, Heidegger indica como esse habitar do homem no mundo se funda no construir. Aqui também é preciso advertir que não devemos reduzir o sentido de construir à “opinião ingênua” que concebe a construção como um meio para a habitação. “Não habitamos porque construímos. Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que somos como aqueles que habitam”.4 Somente habitando, pode o homem compreender o que precisa ser construído; apenas por meio de suas construções, pode o homem habitar o mundo. Numa reciprocidade circular, tanto o habitar é o princípio do construir, quanto o construir é a origem do habitar. O homem habita o mundo construindo. Por habitar construindo, o espaço não é uma determinação geométrica do corpo extenso, a altura, largura e profundidade, mas a possibilidade plástica de construir o espaço habitando o mundo. Em seu texto Construir, habitar, pensar, Heidegger indica duas modalidades de construir: o cultivar, como um cuidar do crescimento do que, por si mesmo, frutifica, e o edificar do que é produzido pelo trabalho do homem: “Ambos os modos de construir – o construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e o construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar”.5 Cultivando o que nasce por si mesmo, tanto a cultura do arroz, do feijão, do milho, como também a cultura dos homens, e edificando o que é produzido pelo engenho das mãos humanas, o homem constrói a sua habitação no mundo. A fim de pensar como a relação do homem com o mundo se constitui a partir do habitar que constrói, Heidegger indica o exemplo da edificação de uma ponte, mostrando como é essa construção 4. Idem, ibidem, p. 128. 5. Idem, ibidem, p. 127. 17 SOBRE DESEJOS E CIDADES que reúne e integra as duas margens, formando um lugar. Não é a ponte que se situa em um lugar, mas o lugar que se estrutura a partir da ponte. A construção como edificação reúne e integra em torno de si um lugar: a ponte, a casa, a igreja. A relação entre esses lugares constitui o espaço.6 Distinto da concepção moderna do espaço como extensão geométrica, o espaço, para Heidegger, se espacializa com a arrumação dos lugares: “Os espaços que percorremos diariamente são ‘arrumados’ pelos lugares, cuja essência se fundamenta nesse tipo de coisas que chamamos construídas”.7 Considerando que as edificações constituem os lugares, e que são as relações entre os lugares que arrumam o espaço, podemos então pensar uma construção poética do mundo, a partir das edificações articuladas dos lugares. Mas a questão é: como edificar lugares que articulem poeticamente o espaço? Heidegger responde: somente sendo capazes de habitar é que podemos construir, indicando que, para compreender o que é necessário construir para arrumar poeticamente o espaço, o homem precisa habitar o mundo. Como um pertencimento que resguarda cada coisa em sua essência, o homem habita o mundo quando demora na conjuntura de seu acontecimento, reunindo e recolhendo o sentido do que se mostra. Nesse resguardo de ser no pertencimento da conjuntura, tanto o homem quanto o mundo se descobrem nas medidas que lhes são mais próprias. Esse descobrir que mostra a medida apropriada das coisas, do homem e do mundo, é poesia. Aqui, como também fizemos com relação às interpretações de habitar e construir, uma última advertência se faz necessária: distinto da compreensão de poesia como texto literário escrito em versos, Heidegger pensa a 6. Um exemplo: a construção da ponte Deputado Darcy Castello de Mendonça, chamada popularmente de Terceira Ponte, aproximou o Convento da Penha em Vila Velha dos moradores de Vitória, no Espírito Santo. 7. Idem, ibidem, p. 135. 18 A construção poética do mundo poesia como o modo de o homem habitar originalmente o mundo, recolhendo da conjuntura a medida apropriada do que se mostra: “O levantamento de medida constitui o poético do habitar. Ditar poeticamente é medir”.8 “Ditar poeticamente” é a tradução portuguesa da palavra alemã Dichtung, que significa a ação de poetar, no sentido de recolher o que se mostra na medida de sua propriedade e, resguardando cada coisa em sua essência, expor o sentido de ser dos entes. Ditar poeticamente consiste na liberdade de, habitando a conjuntura do mundo, ser na medida do que se mostra. Medir consiste, sobretudo, em se conquistar a medida com a qual se há de medir. Ao resguardar a liberdade que deixa o ente ser como propriamente ele se mostra e aparece na conjuntura, o poético é a medida que permite ao homem construir edificações apropriadas para sua habitação no mundo. O homem habita o mundo construindo edificações que compõem lugares que, por sua vez, arrumam o espaço. A construção poética do mundo consiste na descoberta conjuntural da medida que mostra as coisas em seu sentido mais próprio. Somente habitando a espacialidade existencial da conjuntura do mundo, pode o homem descobrir a medida apropriada das coisas e construir o mundo poeticamente. 8. “... poeticamente o homem habita ...” Em: Construir, habitar, pensar. Ensaios e conferências. Op. cit., p. 173. 19